Okoshi e cols. Artigo Original Pressão diastólica do VE e dP/d Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 1), 1999 Influência da Elevação da Pressão Diastólica do Ventrículo Esquerdo sobre os Valores da Primeira Derivada Temporal da Pressão Ventricular (dP/dt) Katashi Okoshi, José Roberto Fioretto, Rossano César Bonatto, Maria Teresinha Trovarelli Tornero, Paulo José Ferreira Tucci Botucatu, SP Objetivo - Avaliar o comportamento da elevação da pressão diastólica final do ventrículo esquerdo (PDFVE) sobre o valor da 1ª derivada temporal da pressão ventricular (dP/dt). Métodos - Foram estudados 19 cães anestesiados, ventilados mecanicamente, e submetidos a toracotomia e bloqueio do sistema nervoso parassimpático. Um circuito de perfusão, conectado ao átrio esquerdo, permitia o controle da PDFVE, ajustando-se a altura de um reservatório. A elevação da PDFVE era realizada elevando-se, subitamente, a altura do reservatório repleto de sangue sob registro contínuo do eletrocardiograma, das pressões aórticas e ventriculares e da dP/dt. Resultados - Não ocorreu variação da freqüência cardíaca com a elevação da PDFVE (167±16,0bpm, antes; 167±15,5bpm, após). Todas as outras variáveis analisadas apresentaram aumentos significantes seguindo-se à expansão da cavidade ventricular: pressão arterial sistólica (128±18,3mmHg e 150±21,5mmHg); pressão arterial diastólica (98±16,9mmHg e 115±19,8mmHg); PDFVE (5,5±2,49 e 9,3±3,60mmHg); e dP/dt (4.855 ± 1.082mmHg/s e 5.149±1.242mmHg/s). Embora o aumento dos valores da dP/dt tenha sido estatisticamente significante, em 6 cães houve comportamento interessante, isto é, queda dos valores da dP/dt. Conclusão - A elevação súbita da PDFVE acarretou aumento dos valores da dP/dt, apesar da resposta não ter sido uniforme em alguns cães. Palavras-chave: mecanismo de Frank-Starling, dP/dt, função ventricular Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP Correspondência: Katashi Okoshi – Faculdade de Medicina de Botucatu–UNESP - Depto de Clínica Médica – Distrito de Rubião Jr, S/N - 18618-000 - Botucatu, SP Recebido para publicação em 5/10/98 Aceito em 4/11/98 A taxa de variação da pressão no tempo (dP/dt), designada, habitualmente, como 1ª derivada temporal da pressão ventricular, é um dos índices utilizados para avaliação da função do ventrículo esquerdo (VE). Nas décadas de 60 e 70, os valores máximos da dP/dt (dP/dt máx) foram amplamente utilizados com o intuito de avaliar o inotropismo cardíaco 1-4. Os estudos efetuados naquela ocasião foram considerados como indicativos de que a dP/dt não refletia com fidelidade o estado inotrópico. O conceito que acabou prevalecendo foi o de que a dP/dt máx é um indicador do inotropismo com aplicaç es práticas limitadas 5. A principal limitação considerada 6,7 referia-se sua inespecificidade, visto que outros fatores, além do inotropismo miocárdico, interfeririam no valor máximo da dP/dt. Entre os fatores capazes de interferir nos valores da dP/dt máx são citados: a pós-carga 7,8, a pré-carga 9,10 e a presença de hipertrofia miocárdica 2,11. A correta interpretação a respeito da relação entre o grau de estiramento miocárdico (pré-carga) e a dP/dt é particularmente complexa. Segundo a versão mais tradicional dos conceitos sobre função ventricular, inotropismo cardíaco e variação do desempenho cardíaco decorrente da alteração do comprimento muscular de repouso (mecanismo de Frank-Starling) eram concebidos como propriedades miocárdicas independentes, e a interferência do mecanismo de Frank-Starling na dP/dt máx não guardaria relação com alterações do inotropismo cardíaco. Por esta razão, variações do volume ventricular, que ocorressem durante avaliações da dP/dt máx, impossibilitariam definir, com exatidão, o estado inotrópico. A evolução dos conhecimentos sobre as bases fisiológicas da contração miocárdica torna incerta esta posição tradicional e, atualmente, possibilita interpretaç es alternativas. Informações mais recentes 12-17 acerca dos ajustes subcelulares envolvidos nas relações entre o estiramento em repouso e o desempenho mecânico ventricular indicam que o estiramento miocárdico interfere na intensidade da ativação do fenômeno contrátil, isto é, na contratilidade Arq Bras Cardiol, volume 73 (nº 1), 37-41, 1999 37 Okoshi e cols. Pressão diastólica do VE e dP/dt miocárdica. A identificação de interação funcional entre mecanismo de Frank-Starling e contratilidade miocárdica exige a adequação dos conceitos acerca da validade da dP/ dt máx nas avaliações do inotropismo cardíaco quando varia a pré-carga. Vários autores têm descrito relação direta entre aumento do volume ventricular e valores da dP/dt 1,18-20. No entanto, outros 3,21,22 relatam a não associação entre estes dois parâmetros. Vale ressaltar que estes estudos foram realizados de acordo com protocolos que estabeleciam um período de estabilização da preparação após elevação da pré-carga e, portanto, permitiam acomodação circulatória. Conseqüentemente, a relação direta entre volume ventricular e a dP/dt era afetada pelo ajuste circulatório. Em estudo realizado em nosso laboratório, utilizando preparação de coração isolado de cães, verificamos que a dilatação ventricular súbita era seguida, invariavelmente, de incremento dos valores de dP/dt 15. Neste experimento, o comportamento da dP/dt indicava somente a resposta cardíaca à expansão da cavidade ventricular. Protocolo similar não foi colocado em prática em coração in situ de cães. O objetivo deste estudo é, portanto, analisar o comportamento dos valores da dP/dt máx, seguindo-se à manobra de elevação súbita da pressão diastólica final do VE, e discutir os resultados sob o conceito atual envolvendo estiramento miocárdico e contratilidade miocárdica. Métodos Foram estudados 19 cães pesando (x±sd) 19,6±4,4kg. Os animais foram anestesiados pela administração de meperidina (2,0mg/kg) por via intramuscular associada à mistura de cloralose (60mg/kg) e uretana (600mg/kg) administrada por via intravenosa. Após anestesiados, os cães eram posicionados em decúbito dorsal horizontal, intubados e ventilados mecanicamente. A veia femoral era cateterizada para administração de drogas e reposição volêmica. A seguir, era realizada toracotomia mediana e pericardiotomia. Um cateter (comprimento: 4cm; diâmetro interno: 1,4mm ) foi introduzido na cavidade ventricular esquerda por punção do apex e a extremidade de outro cateter, introduzido pela artéria femoral, foi posicionada na aorta ascendente. As extremidades distais destes cateteres foram conectadas a transdutores Statham P23-ID que, por sua vez, eram acoplados a amplificadores modelo 1205 do polígrafo VR-12 Electronics for Medicine. Para controlar a pressão de enchimento ventricular foi idealizado um circuito de perfusão que era conectado à aurícula esquerda e às veias jugulares externas. O circuito (fig. 1) era constituído por tubos, um reservatório que dispunha de sistema limitador de nível, uma haste de sustentação do reservatório que possibilitava a sua movimentação no sentido vertical e uma bomba de perfusão. As pressões do VE e da aorta, a dP/dt e uma derivação bipolar do eletrocardiograma eram monitorizadas continuamente. Após os procedimentos cirúrgicos e administração de atropina (0,5mg/kg IV), era aguardado um período de 38 Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 1), 1999 Fig. 1 - Representação esquemática do circuito de perfusão utilizado no experimento. 30min para estabilização da preparação. O reservatório era preenchido com sangue e sua altura era ajustada de modo que o nível sangüíneo no seu interior correspondesse pressão do átrio esquerdo. Durante apnéia expiratória sustentada por 10s, o reservatório era subitamente elevado para promover aumento rápido da pressão atrial. Estas manobras permitiam que as pressões ventriculares e aórticas e a dP/dt fossem registradas em uma situação controle e durante a elevação da pressão de enchimento ventricular. Para análise da significância das variaç es dos valores da dP/dt máx foi utilizado o teste t de Student para dados pareados, considerando-se como significantes as diferenças cujas probabilidades de dependerem do acaso fossem <5% (p<0,05). Para caracterizar a magnitude do aumento da pressão diastólica final do ventrículo esquerdo (PDFVE) e das pressões arteriais sistólica (PAS) e diastólica (PAD) foram construídos intervalos de confiança a 95%. Resultados A tabela I mostra os valores médios e os desvios-padrão das variáveis analisadas nas situações controle e durante elevação da PDFVE. Não houve variação significante dos valores da freqüência cardíaca (167±16,0bpm e 167±15,5 bpm). Houve aumento, em todos os cães, dos valores da PAS, PAD e da PDFVE. A PAS aumentou de 128 ± 18,3 mmHg para 150±21,5mmHg e o intervalo de confiança de 95% para a variação foi de 17,7 a 26,5mmHg. A PAD aumentou de 98±16,9mmHg para 115±19,8mmHg e o intervalo de confiança de 95% para a variação foi de 12,9 a 22,2mmHg. A PDFVE elevou de 5,5±2,49mmHg para 9,3±3,60mmHg com intervalo de confiança de 95% para a variação de 2,94 a 4,64mmHg. Em relação aos valores da dP/dt máx houve aumento de 4.855±1.082mmHg/s para 5.149±1.242mmHg/s, que foi estatisticamente significante (p=0,0169). A análise Okoshi e cols. Pressão diastólica do VE e dP/d Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 1), 1999 Tabela I - Dados hemodinâmicos em situação controle e durante elevação da pressão diastólica do ventrículo esquerdo FC (bpm) PAS (mmHg) PAD (mmHg) PDFVE (mmHg) dP/dtmáx (mmHg/s) Controle Elevação 167±16,0 128±18,3 98±16,9 5,5±2,49 4.855±1.082 167±15,5ns 150±21,5* 115±19,8* 9,3±3,60* 5.149±1.242# FC- freqüência cardíaca; PAS- pressão arterial sistólica; PAD- pressão arterial diastólica; PDFVE- pressão diastólica final do ventrículo esquerdo; dP/dtmáx- valor máximo da 1ª derivada temporal da pressão ventricular; #- p<0,05; ns- p>0,05; *- ocorreu elevação em todos os cães. dos dados individuais desta variável (fig. 2) possibilitou verificar que, inesperadamente, em número apreciável de ocasiões (6 cães), os valores da dP/dt máx se reduziram seguindo-se à elevação da pressão de enchimento ventricular. Discussão O aumento dos valores da dP/dt verificado neste estudo está de acordo com os dados previamente relatados, quando provocamos distensão ventricular similar em preparação de coração isolado perfundido com sangue de outro cão 15. A queda dos valores da dP/dt observada no presente estudo foi completamente inesperada em relação ao experimento anterior. Na preparação de coração isolado, a expansão ventricular foi seguida de aumento dos valores da dP/dt em todos os experimentos 15. Fig. 2 - Valores individuais da 1ª derivada temporal da pressão ventricular (dP/dt máx) antes e após a elevação da pressão diastólica final do ventrículo esquerdo. Neste estudo, é necessário considerar a possibilidade de os valores da dP/dt máx terem sofrido influências da elevação da pressão arterial (PA), de modificaç es das propriedades visco-elásticas do miocárdio e do mecanismo de Frank-Starling. A elevação da pressão aórtica poderia afetar os valores da dP/dt por fazer variar a pós-carga 8,23, a pressão de perfusão e o fluxo coronariano 24-27. Em diversas publicaç es 3,7,8,23 é descrito que os valores máximos da dP/dt são diretamente proporcionais aos níveis da PA, entretanto, em outras 9,28,29 é considerado que não há influência da pressão aórtica sobre a dP/dt. A grande variabilidade dos modelos e dos protocolos experimentais utilizados nesses trabalhos pode ser considerada como a determinante dos resultados divergentes. Os autores que verificaram relação entre estas duas variáveis consideraram que, durante oscilações da PA, a dP/dt pode ter seus valores modificados pelas variaç es da pós-carga ou da perfusão coronariana. Estudos desenvolvidos em nosso laboratório 29-31, que se valeram de condiç es metodológicas análogas às do presente trabalho, demonstraram que, nas condições experimentais por nós utilizadas, a elevação súbita da pressão aórtica não interfere sobre os valores da dP/dt máx. Outro fenômeno que deve ser considerado como capaz de interferir sobre a função ventricular, quando se eleva a PA de forma abrupta, é o efeito Anrep. O conceito atual sobre o efeito Anrep estabelece que, após elevação súbita da PA, ocorre depressão transitória do estado inotrópico devido à isquemia subendocárdica. Como decorrência de vasodilatação auto-regulatória 15,32,33, a perfusão cardíaca é rapidamente restabelecida, possibilitando recuperação do inotropismo miocárdico. Dado que as avaliaç es da dP/dt máx foram por nós realizadas no transcurso de poucos segundos após variação da carga (pré e pós-carga) cardíaca, é possível que o efeito Anrep possa ter sido o precipitante da queda dos valores da dP/dt máx observada em alguns cães do nosso estudo, isto é, a avaliação da dP/dt pode ter ocorrido durante o período em que estava ocorrendo isquemia miocárdica transitória. Além disso, alguns autores 34-36 verificaram piora da perfusão miocárdica decorrente de elevação da pressão diastólica da cavidade ventricular esquerda, como conseqüência, também, do colapso dos vasos coronarianos subendocárdicos. O envolvimento da perfusão miocárdica é, provavelmente, o mecanismo responsável pela queda dos valores da dP/dt observada em alguns experimentos. Levando em conta as características de nosso protocolo, outro aspecto a ser considerado diz respeito as propriedades visco-elásticas do miocárdio 12,37-39. O componente visco-elástico do músculo cardíaco oferece resistência s alterações agudas do comprimento muscular 37,38,40. Esta resistência é dependente da velocidade do estiramento e do comprimento muscular inicial 40-42. Assim, LeWinter e cols. 37 observaram que, para atingir o mesmo valor de PDFVE, a dilatação do VE era maior quando a manobra de elevação da pressão diastólica era realizada lentamente. Em nosso estudo, não é possível precisar a interferência das propriedades visco-elásticas em nossos resultados. No entanto, se as considerarmos como 39 Okoshi e cols. Pressão diastólica do VE e dP/dt Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 1), 1999 possível fator de influência, seria no sentido de limitar a magnitude de dilatação ventricular e, portanto, de menor solicitação do mecanismo de Frank-Starling. O efeito principal da manobra de infusão de volume realizada em nosso estudo é a melhora do desempenho ventricular decorrente do mecanismo de Frank-Starling. Esta melhora do desempenho ventricular, atualmente, é considerada como decorrente da participação de fatores físicos e de fatores que alteram a intensidade da ativação da contração 12-15,17,43,44. Os fatores físicos relacionam-se com a disposição espacial dos miofilamentos, isto é, o estiramento miocárdico propicia maior interação espacial entre os miofilamentos e acentua o número de ligações ativas entre a miosina e a actina, com conseqüente melhora do desempenho ventricular. Os fatores ativadores da contração estão relacionados com a contratilidade miocárdica. Tem sido demonstrado que o estiramento miocárdico aumenta o fluxo transarcolemal de cálcio 44-46, provoca maior liberação de cálcio pelo sistema retículo sarcoplasmático 13,47,48 e aumenta a afinidade da troponina C pelo cálcio 49-52. Acredita-se que o componente principal da melhora do desempenho ventricular decorrente do estiramento seja a melhora da contratilidade miocárdica 13,49,53. Assim, nossas verificações de aumento dos valores da dP/dt máx, desencadeado pela elevação da pressão diastólica ventricular, se afiguram como decorrência espontânea da intensificação do processo de ativação da contração. Em sendo correta esta interpretação, não mais é cabível o enfoque que ainda prevalece sobre as relaç es entre a pré-carga e a dP/dt, que considera as modificaç es do indicador decorrentes do estiramento como sinalização imprópria de desvios do estado contrátil. Pelo contrário, as oscilações da dP/dt que ocorrem nestas circunstâncias podem estar indicando o grau de ativação da contração secundária mobilização dos fatores intervenientes na cinética do cálcio. Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 40 Reeves TJ, Hefner LL, Jones WB, Coghlan C, Prieto G, Carroll J. The hemodynamic determinants of the rate of change in pressure in the left ventricle during isometric contraction. Am Heart J 1960; 60: 745-61. Gleason WL, Braunwald E. 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