Qualificando o saldo - Núcleo de Estudos Conjunturais

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CONJUNTURA&
CELESTE PHILIGRET*
Qualificando o
Saldo
Se no plano político o ano que está se encerrando pode
ser considerado pleno em termos de abertura de novas
perspectivas, o quadro econômico vivenciado em 2002
foi marcado por uma série de tensões, expressas,
principalmente, na dificuldade em controlar variáveis
chave no contexto da política econômica adotada nos
últimos oito anos. Assim é que a moeda se desvalorizou
para muito além das expectativas, a inflação ultrapassou
o teto, a dívida do setor público se ampliou
impetuosamente e, por fim, foi interrompida a trajetória
de queda lenta da taxa referencial de juros, que passou a
elevar-se não tão lentamente. Tudo isso num cenário de
estagnação econômica com altas taxas de desemprego.
Freqüentemente, ao tentar relativizar as turbulências
vivenciadas pela economia brasileira no decorrer de 2002,
porta-vozes oficiais e analistas econômicos, além de
enfatizar o cumprimento dos acordos com o FMI,
destacam o significativo superávit da Balança Comercial
como sinalizador de bom funcionamento do setor
externo. O deveras expressivo superávit logrado tem,
contudo, vários significados.
Em primeiro lugar, ele é tão expressivo quanto
inesperado no sentido de que é muito mais efeito indireto
do que consecução de objetivo. Isso fica claro se
considerarmos as estimativas divulgadas pelas
autoridades responsáveis pela condução da política
econômica no início de 2002. Na realidade, o saldo de
dezembro de 2001, que representou 32% do superávit
alcançado no ano passado, já foi classificado, nas Notas
da reunião do Comitê de Política Monetária – COPOM
de janeiro, como algo “surpreendente”. A análise de
conjuntura do Instituto de Pesquisas Econômicas
Conj. & Planej., Salvador: SEI, n.103, p.15-20, Dez. 2002
Aplicadas – IPEA, de 22 de julho de 2002, projetava
um superávit de US$ 4,9 bilhões para o ano. Passados
três meses, a mesma publicação já havia mais que
dobrado sua projeção (US$ 10,7 bilhões em 15 de
outubro de 2002). As próprias expectativas de mercado,
levantadas por pesquisa periódica do Banco Central e
que, em parte, embasam os prognósticos
governamentais, projetavam superávit relativamente
modesto e foram se ajustando ao longo do ano.
Em segundo lugar, é apenas a partir de julho que as
exportações começam a registrar expansão, já que em
todo o primeiro semestre os saldos mensais foram
inferiores aos registrados nos mesmos meses de 2001 e
o superávit do período, portanto, decorrente do
encolhimento das importações. Assim, parece óbvio que
a disparada forçada da cotação do dólar tem íntima
relação com a trajetória da Balança Comercial.
A observação de alguns dados relativos às contas
externas brasileiras ajudam na reflexão sobre o
significado do superávit comercial, sua origem e
sustentabilidade. No resultado dos onze primeiros meses
do ano, a Balança Comercial apresentou um saldo
positivo de US$ 11.320 milhões. Considerando que em
igual período do ano passado esse valor atingia US$
1.797 milhões, essa é uma diferença efetivamente
significativa. O comparativo dos últimos doze meses
também revela mudança relevante no resultado das
transações comerciais entre o Brasil e os demais países:
US$ 12.174 milhões entre dezembro de 2001 e
novembro de 2002 contra US$ 1.588 milhões nos doze
meses anteriores. Essa alteração substantiva no saldo de
comércio é decorrente, no acumulado dos onze
primeiros meses de 2002, do aumento do valor
exportado (2,3%) mas, sobretudo, da redução das
compras externas (-15,9%).
O aumento do valor exportado deveu-se aos produtos
Básicos e Semimanufaturados, cujas vendas expandiramse em 9,5% e 8,1%, respectivamente. Dentre os
principais produtos Básicos, o maior crescimento foi
apresentado pelo petróleo. Ainda com referência aos
Básicos, do segmento dos agronegócios, a soja, seja em
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grão ou na forma de farelo, apresentou o crescimento
mais significativo. Embora detenha peso menos
expressivo no conjunto das exportações, o óleo de soja
em bruto registrou a maior taxa de crescimento no grupo
dos Semimanufaturados, confir mando a boa
performance do complexo soja. A segunda maior
variação positiva coube aos semimanufaturados de ferro
e aço.
Já os Manufaturados, que atualmente respondem por
mais de 50% do valor das exportações brasileiras,
apresentaram retração de 1,4%. As vendas de aviões,
que detêm o maior peso relativo nesse grupo,
apresentaram queda de 22,2%. Outros produtos com
participação importante como automóveis de
passageiros e calçados também apresentaram retração
nas vendas, a qual, no caso dos calçados, foi superior a
10%. Com bom desempenho aparecem os aparelhos
transmissores e receptores e motores para veículos.
O crescimento detectado no valor das exportações neste
segundo semestre de 2002 é originado da expansão do
quantum exportado de produtos Básicos e
Semimanufaturados. A evolução da quantidade
exportada de Manufaturados ainda apresenta
desempenho negativo. O índice de preços do conjunto
das exportações revela continuidade da trajetória
descendente, acumulando, até setembro de 2002,
decréscimo de 5,5%. A redução dos preços é mais
acentuada nos produtos Básicos (-6,3%) e nos
Semimanufaturados (-7,8), porém, mesmo no caso dos
Manufaturados, a queda já atinge 4,3% neste ano. A
observação dos índices de preços e quantum por
categorias de uso revela queda nos preços de todas as
categorias, à exceção dos Bens de capital. Em volume,
se ampliam as exportações de Produtos intermediários
(5,9%), Bens de consumo não duráveis (7,2%) e
Combustíveis (42,4%).
Dentre os três principais parceiros comerciais do Brasil,
apenas os Estados Unidos aumentaram o valor das
compras, registrando-se pequena redução nos valores
adquiridos pela União Européia e queda acentuada nas
compras dos países que compõem a Associação LatinoAmericana de Integração – Aladi. Neste último caso, a
redução decorreu, principalmente, dos problemas
enfrentados pelos integrantes do Mercado Comum do
Cone Sul – Mercosul – e pela Venezuela, pois os demais
componentes da Aladi incrementaram suas aquisições,
sendo que o México tem hoje peso semelhante ao da
Argentina enquanto parceiro comercial do Brasil.
Aumentaram também as exportações para mercados
menos tradicionais como a Ásia, que já tem participação
próxima à dos países componentes da Aladi; a África;
o Oriente Médio e a Europa Oriental.
Quanto às importações brasileiras, houve queda em
todas as categorias. A estagnação da economia e a
desvalorização cambial levaram à redução acentuada das
compras externas de Matérias primas e produtos
intermediários em 15,7% e ainda maior das aquisições
de Bens de capital que declinaram 20,9%. Reduziram-se
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também as compras de Bens de Consumo não duráveis
(-6,4%) e despencaram as de duráveis (-29,9%). Dentre
estes últimos, as compras de automóveis diminuíram
48,4%.
Os principais parceiros comerciais do Brasil são os
Estados Unidos e a União Européia, cada um
absor vendo em torno de 25% das exportações
brasileiras. Também cerca de 50% das compras externas
efetuadas pelo Brasil são originárias da União Européia
ou dos Estados Unidos, sendo que, nesse caso, o peso
do bloco europeu é um pouco superior.
Ocupam o terceiro posto em grau de importância para
o comércio externo do Brasil os países que compõem a
Aladi. Esse grupo de países, no qual está contido o
Mercosul, fornece em torno de 18% dos produtos
comprados pelo Brasil e, apesar da perda de participação
decorrente, principalmente, da crise argentina, absorveu,
nos onze primeiros meses de 2002, 16,3% das
exportações brasileiras. Ressalte-se que em 1998 o
Mercosul chegou a constituir-se no destino de 16,3%
das exportações brasileiras, participação que se encontra
atualmente reduzida a 5,4%. A Ásia – especialmente a
Índia e a China – vem aumentando sua participação
enquanto destino das exportações brasileiras e, no
acumulado até novembro de 2002, adquiriu 14,6% dos
produtos exportados pelo Brasil.
As transações internacionais brasileiras, envolvendo
Serviços e Rendas, são cronicamente deficitárias. As
informações já disponíveis para 2002 (até outubro)
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revelam um saldo negativo de US$ 19.308 milhões,
sendo US$ 4.025 milhões decorrentes das despesas
líquidas com Ser viços (Transportes, Viagens
Internacionais, Seguros, Serviços financeiros, Serviços
de computação e informações, Royalties e licenças,
Aluguel de equipamentos, Serviços governamentais e
Outros serviços) e US$ 15.283 milhões relativos às
Rendas líquidas enviadas ao exterior.
Na conta de Serviços, as alterações mais significativas
ocorreram com os itens Transportes e Viagens
Internacionais, ambos fortemente sensíveis tanto à
desvalorização cambial quanto ao desaquecimento da
economia. Quanto à Conta de Rendas, US$ 4.395
milhões representaram remessa líquida de lucros e
dividendos, e US$ 10.972 milhões foram relativos a
pagamentos líquidos de juros (houve ingresso líquido
de rendimentos do trabalho totalizando US$ 84
milhões). Persiste a tendência de aumento da remessa
de lucros, em boa parte decorrente do processo de
privatização/desnacionalização ocorrido nos anos 1990.
Computando as Transferências Unilaterais correntes
líquidas, com valor positivo de US$ 1.923 milhões, chegase, até outubro, a um déficit de US$ 7.323 milhões em
Transações Correntes.
A conta Capital e Financeira revela a forma como vem
sendo financiado o déficit em conta corrente. A conta
Capital, que inclui as transferências de patrimônio tem
peso menos relevante e registrou valor positivo de US$
366 milhões. Quanto à conta Financeira, até outubro
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houve ingresso líquido de Investimentos diretos no
montante de US$ 11.557 milhões. Esse valor é 37,5%
inferior aos ingressos líquidos ocorridos no mesmo
período de 2001, expressando tanto o desaquecimento
da economia mundial quanto a perda de capacidade de
atração de investimentos da economia brasileira.
Registre-se ainda que cerca de 45% dos ingressos de
Investimentos diretos ocorridos até outubro de 2002
referem-se a conversões e em torno de 55% significaram
ingresso de moeda. No mesmo período de 2001, essas
proporções eram de14% e 86%, respectivamente.
No caso dos Investimentos em carteira, os chamados
capitais voláteis, o fluxo líquido foi negativo (-US$ 4.424
milhões) principalmente em função da fuga de capitais
aplicados em títulos de renda fixa. Os Derivativos, com
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peso bem menor, também registraram valor negativo.
O item Outros investimentos, no qual estão incluídos
os empréstimos, contribuiu com US$ 788 milhões.
Em 1994, ano da implantação do Plano Real, o grau de
abertura da economia brasileira situava-se em 7,1% (o
grau de abertura da economia de um país é usualmente
medido através da participação no PIB da média
aritmética do somatório das exportações com as
importações). Esse indicador alcança um mínimo de 6,5%
em 1996, oscila nos dois anos subsequentes, apresenta
nítida tendência de crescimento a partir de 1999, ano em
que o câmbio passa a flutuar, atingindo 11,3% em 2001.
Como em 2002 o crescimento das exportações não deve
compensar a queda das importações, mesmo com um
crescimento muito limitado do PIB, o grau de abertura
da economia deve se reduzir.
Entre 1994 e 2001, as exportações mundiais se
expandiram a uma taxa anual média de 6,4%, as
exportações brasileiras a 5,5%, enquanto o crescimento
das nossas importações situou-se em 12,0%. Esse
comportamento fez com que a participação brasileira
no total das exportações mundiais se mantivesse, durante
todo o período, próxima de 1% (máximo de 1,04% no
ano inicial da série e mínimo de 0,86% em 1999). Por
outro lado, as importações brasileiras tiveram
participação máxima com relação às importações
mundiais em 1997 (1,13%) e mínima no primeiro ano
da série (0,81%).
Os dados apresentados, ao revelarem traços importantes
da evolução recente das transações econômicas externas
do país, induzem e fundamentam algumas considerações
sobre as características do saldo comercial de 2002 e as
perspectivas que se abrem.
O atual superávit da Balança Comercial começa a ser
construído no segundo semestre de 2001, a partir da
redução das importações. A forte desvalorização a que
foi submetido o Real no decorrer de 2002,
principalmente no segundo semestre, elevou a
rentabilidade das exportações e encareceu as
importações. Os efeitos da desvalorização sobre o
comércio externo foram potencializados pelas
circunstâncias de estagnação econômica. Tudo isso
permitiu que o superávit comercial se avolumasse. Os
mesmos fatores atuaram sobre a conta de Serviços não
fatoriais, cujo déficit se reduziu. Superávit na Balança
Comercial e déficit menor na conta de Serviços aliviaram
a Conta Corrente e, consequentemente, a pressão por
seu financiamento.
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Já aí alguns problemas são detectáveis: O primeiro deles
situa-se no cenário internacional de estagnação dos fluxos
comerciais, no qual a previsão da OMC é de crescimento
do comércio mundial de, no máximo, 1%, o que não
favorece a aparente estratégia brasileira de redução do
deficit em conta corrente via aumento das exportações
e conseqüente geração de grandes saldos na Balança
Comercial. A tensão ora vigente no mercado de petróleo
frente à possibilidade de invasão do Iraque, comandada
pelos Estados Unidos, tampouco se constitui num fator
favorável.
Por outro lado, ajustes em Conta Corrente sustentados
na depreciação cambial e em baixas taxas de crescimento
da economia parecem, no mínimo, insuficientes.
Supondo que crescer pouco não deva, mormente no
caso de um país com tantos problemas sociais a serem
enfrentados, constituir-se em algo desejável, uma
retomada mais consistente do crescimento fatalmente
conduziria ao aumento significativo das compras
externas mesmo na hipótese de um bem sucedido
programa de substituição de importações. O fato de
grande parte do comércio mundial ocorrer
intracompanhias e o presente grau de internacionalização
de economia brasileira corroboram essa afirmativa. A
reativação da economia também atuaria, embora em
menor escala, sobre a conta de Serviços, reforçando
sua tendência deficitária crônica.
Restaria, como fator de sustentação, a desvalorização
do câmbio. Mas esta também tem limites e, no caso
presente, o que se configurou foi muito mais um jogo
especulativo visando à maximização de ganhos
financeiros que uma política de desvalorização. E nesse
jogo a dívida pública se ampliou enormemente e a
inflação ameaça fugir do controle.
Como em 2002 o crescimento das
exportações não deve compensar a
queda das importações, mesmo com um
crescimento muito limitado do PIB, o
grau de abertura da economia deve se
reduzir.
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Outra característica a ser considerada na expansão recente
do valor exportado é a sua concentração em produtos
Básicos e Semimanufaturados. Por mais que o Brasil
tenha uma série de vantagens que o tornam competitivo
no caso de vários desses produtos, parece prudente
desconfiar de um retorno à dependência muito acentuada
da exportação de produtos cujas cotações internacionais
apresentam tendência histórica de queda aliada a forte
instabilidade.
O fato de o Brasil dispor de um leque de parceiros
comerciais relativamente amplo constitui-se num
elemento favorável em processos de negociação,
conferindo maior independência e menor
vulnerabilidade em relação a decisões unilaterais que
eventualmente venham a ser tomadas, a exemplo, neste
ano, das barreiras criadas pelos Estados Unidos com
relação ao aço, ou dos subsídios concedidos à agricultura
por este mesmo país. Esse é um ângulo do nosso
comércio externo a ser reforçado.
Considerando que a formação de blocos comerciais
tende a concentrar o comércio no interior do bloco,
mormente quando a assimetria entre os participantes é
muito acentuada, relações comerciais mais diversificadas
dão ao Brasil mais flexibilidade e poder de negociação
inclusive no âmbito das negociações sobre a Área de
Livre Comércio das Américas – ALCA. Dados sobre
as trocas externas dos países participantes do North
American Free Trade Agreement – Nafta ilustram bem
a concentração do comércio no interior do bloco.
Embora nesse caso os laços comerciais preexistentes já
fossem bastante fortes, o Canadá e o México dirigem
hoje mais de 80% das suas exportações para os Estados
Unidos e, das suas importações, mais de 70% são
originárias desse país.
Enfim, o bom uso das condições políticas renovadas
nas últimas eleições não se limita, no caso do setor externo
da economia, a políticas gerais de estímulo à exportação
ou incentivos a programas com efeitos substitutivos.
Saldos comerciais significativos aliviam a necessidade de
financiamento externo e ganham maior relevância em
momentos em que esse financiamento se torna mais difícil
e só ocorre em condições mais adversas. Contudo, o
enfrentamento efetivo dos problemas do Balanço de
Pagamentos não pode se restringir à política de
intercâmbio de bens. Até porque, mesmo nesse terreno,
ele passa pelo reconhecimento de que, nas atuais
condições da economia mundial, exportar mais também
leva à expansão das importações. Mas, num plano mais
geral, passa, sobretudo, pela criação de condições para
que o crescimento econômico deixe de ser meta
subordinada ao atendimento de compromissos com o
capital financeiro internacional, passando a constituir-se
em meta soberana de governo.
* Celeste Philigret é professora da Faculdade
de Ciências Econômicas/UFBA e
coordenadora do Núcleo de Estudos
Conjunturais/FCE/UFBA
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