CORREA. A noção de teleologia na concepção de história em Husserl

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Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Filosofia
A NOÇÃO DE TELEOLOGIA NA CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA EM HUSSERL NO
TEXTO “A CRISE DAS CIÊNCIAS EUROPÉIAS E A FENOMENOLOGIA
TRANSCENDENTAL”
Texto elaborado por Ionadir Rodrigues
Correa Junior, aluno do curso de Filosofia,
para avaliação na disciplina História da
Filosofia Contemporânea I, sob orientação do
prof. Dr. Marcus Sacrini.
São Paulo, 26 de junho de 2012
A NOÇÃO DE TELEOLOGIA NA CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA EM HUSSERL NO
TEXTO “A CRISE DAS CIÊNCIAS EUROPÉIAS E A FENOMENOLOGIA
TRANSCENDENTAL”
O tema de que trata este texto corresponde à noção de teleologia na concepção de
história na filosofia de Husserl, tal como se apresenta no texto “A crise das ciências européias e a
fenomenologia transcendental"1, redigido em 1936, mas baseado nas conferências “A filosofia na
crise da humanidade européia”, de 1935. Mais do que qualquer outra pretensão acerca do texto
husserliano, tentaremos buscar uma definição da noção da teleologia, compreendida como elemento
que participa do conceito de história em Husserl, e este objetivo, a princípio, não deve ultrapassar as
fronteiras do texto A Crise. Para tanto, partiremos de duas breves definições desse termo, tal como
aparece na filosofia clássica aristotélica e na filosofia marxiana. Essas definições, porém, deverão
servir apenas como referências, utilizadas para esse fim por conta da sua pertinência e amplo estudo
no interior de suas próprias perspectivas. Segue-se, então, a proposta da filosofia fenomenológica,
da qual iniciaremos um exame breve e preliminar do texto A Crise, ao final do qual esperamos obter
uma compreensão minimamente clara sobre a noção do termo objeto deste estudo.
1. Teleologia em Aristóteles e na filosofia marxiana
Destacamos esses dois referenciais filosóficos porque apresentam definições com
relação ao termo estudado aqui. Entretanto, não se trata de explorar, nem introdutoriamente, o
conjunto de aspectos que podem derivar de suas concepções acerca da teleologia. Servirão, neste
momento, apenas como referencial para tentar definir um terceiro, o referencial fenomenológico
husserliano. Dito isso, vamos a elas.
A noção de teleologia em Aristóteles se apresenta em diversos momentos de sua obra,
como, por exemplo, na Metafísica, na Ethica Nicomachea e na Física. Em todas essas passagens
verifica-se o caráter onienglobante que ajusta ao termo um certo fim. No livro V da Metafísica, por
exemplo, Aristóteles define a teleologia como causa final e distingue a causa da matéria, de um
lado, e causa enquanto princípio do movimento, de outro. Na Ethica Nichomachea, por seu turno, a
teleologia aparece como a forma do bem supremo, isto é, o resultado final do ato de bem deliberar.
A definição de teleologia, que aparece na Metafísica, parece-nos, segue a coerência
aplicada por Aristóteles em sua Física. Nessa obra o filósofo grego exercita o debate sobre as
formas de necessidades encontradas na natureza: necessidade sem mais, de um lado, e necessidade
sob hipótese, de outro2. Chama-se de necessidade sem mais a necessidade causal envolvida nas
1
Doravante tratado como A Crise.
Tomamos como referência para essa pequena discussão o texto de Luís Angioni: “Necessidade, Teleologia e Hielomorfismo em
Aristóteles” (2006), ver referência.
2
relações causais mais simples ou materiais. A nosso ver, trata-se da mesma causa, com as mesmas
conseqüências de uma causa material. Deve-se observar, contudo, que tal necessidade é antes uma
propriedade desencadeada acidentalmente. Para ser mais preciso, é uma necessidade que se impõe,
enquanto causa, apenas a partir da relação de um evento não previsto.
Segue, entretanto, que Aristóteles parece não reconhecer na necessidade causal mais
simples dos elementos da natureza, condição suficiente para explicar a complexidade da natureza.
Ele observa que ao insistir nessa compreensão, poderíamos concluir que todo o complexo do mundo
físico ocorre por espontaneidade a partir de eventos concomitantes. Ora, nesse caso, a natureza
seria, ela mesma, o resultado de uma séria causal acidental. É nesse momento do debate que o
filósofo grego introduz a noção de teleologia como a causalidade de um fim ou a causa como
princípio de movimento. Logo, a noção de necessidade sem mais cede espaço para a noção de
necessidade sob hipótese, leia-se, necessidade por princípio. Se o resultado do complexo da série
causal poderia ocorrer por concomitância, nesse caso, o resultado da série causal seria em vista de
algo e a necessidade causal se daria por um princípio de movimento anterior. Aristóteles argumenta
em favor da validade dessa segunda definição ao mostrar, no contexto de sua Física, que se pode
observar, no mundo natural, que os fenômenos ocorrem com alguma regularidade ou, de outra
forma, sempre ou no mais das vezes e não por acidente.
Seguindo o argumento que adotamos, a noção de teleologia incorpora a noção de
necessidade, especificamente a noção de necessidade sob hipótese. Esse modo de necessidade
envolve as relações causais em vista de algo. Por seu turno, essa “algo”, a que se refere Aristóteles,
é o fim colocado pela causalidade enquanto princípio. A nosso ver, podemos dizer que esse fim é a
própria substância metafísica ou a forma a que se refere o movimento. Portanto, se estamos tratando
de uma causalidade com fins a forma metafísica, essa definição de teleologia carrega um caráter
universal. Entretanto, muito embora universal, devemos ressaltar que e expressão “necessidade sob
hipótese” se refira a uma noção que possui o sentido de um determinismo inexorável, isto é, que a
causalidade final ponha em movimento um processo que não pode ser de outra forma. Se assim
fosse, não seria apropriada a expressão “sempre ou no mais das vezes”. Vale dizer, pelo menos
assim nos parece, que o caráter universal da teleologia aristotélica se funda nos conceitos de
regularidade e generalidade do que é possível deduzir sobre a realidade.
Por fim, acreditamos ter elementos suficientes para a discussão sobre a noção de
teleologia, contudo, voltaremos a ela apenas na conclusão, quando teremos oportunidade de avaliar
essa e as demais noções sobre o mesmo termo. Vejamos agora como a filosofia marxista o define.
A formulação mais completa acerca da noção de teleologia, no interior da filosofia
marxiana, a encontramos na elaboração da ontologia do ser social do pensador húngaro Gyorgy
Lukäcs. Em sua obra Para uma Ontologia do Ser Social3, escrita na década de 60 do século passado
e publicados em tradução italiana a partir de 1976, Lukäcs desenvolve a noção de teleologia
especialmente no desenvolvimento da categoria do Trabalho. Para sua compreensão é
imprescindível um rápido percurso pelos termos mais gerais de sua ontologia.
Partindo da noção de ser em geral, Lukäcs observa a diferenciação produzida no seu
interior a partir de momentos dialéticos que ele denomina de salto ontológico, no qual uma esfera
do ser manter certas características do momento anterior e apresenta novas propriedades que
definem essa mesma esfera. Assim, sobre o ser natural inanimado, após o salto ontológico, surge,
por assim dizer, o ser natural animado, orgânico ou biológico, capaz de reprodução de si mesmo.
Desta esfera do ser surge o ser social, que carrega as propriedades das duas esferas ontológicas
anterior, mas é ainda capaz da reprodução do novo. O momento do salto ontológico, para o filósofo
húngaro, ocorre com o ato do trabalho, sendo este a categoria ontológica fundante do ser social.
Assim, inicialmente devemos considerar o trabalho como a protoforma do agir humano,
mas, sobretudo, enquanto ação do modo de relação entre o homem e a natureza no processo de
constituição do ser social. Na natureza, isto é, nas outras duas esferas do ser em geral, observamos
uma relação de necessidade que pode ser chamada de causalidade dada, que produz os efeitos a
partir das propriedades da matéria que se relacionam. Diante da natureza, o homem, porém, deve
agir em razão da manutenção de sua vida, para a sua sobrevivência. Ele assim o faz a partir de uma
elaboração subjetiva, digamos, acerca de como ele pode agir. Tal elaboração é chamada, por
Lukäcs, após Marx, de prévia-ideação. A ação humana sobre os elementos da natureza, partindo
dessa prévia-ideação, está carregada não apenas de uma certa finalidade, específica ao homem, mas
também incide sobre a causalidade dada, alterando o seu movimento. Esta ação transforma a
causalidade dada em causalidade posta, pois é o resultado de uma teleologia posta.
Nessa elaboração a noção de teleologia aparece no interior do complexo categorial do
trabalho, ato fundante do ser social. Com este ato, o ser social cria a possibilidade de produção e
reprodução do novo, instaura um movimento ontológico inexistente até então, pois que o ser natural
orgânico conhecia, por assim dizer, era apenas a reprodução do mesmo. Em certa medida, o
trabalho não apenas funda, mas instaura uma dimensão histórica do ser social. Entretanto, o
transformar a natureza com o ato do trabalho, não implica a eliminação da causalidade dada, bem
como não determina todo o processo histórico. A causalidade posta, produto da teleologia posta, se
transformará em uma nova causalidade dada a partir de novas interações não previstas no interior da
3
Não há tradução para a língua portuguesa do texto completo. Recentemente a editora Boitempo publicou a tradução de parte do
texto, sob responsabilidade de Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nelio Schneider, que corresponde à parte histórica, de um
estudo ontológico ainda composto pela parte sistemática, na qual o autor desenvolve as categorias do ser social, incluindo a categoria
do trabalho. Contudo, referências em língua portuguesa, podemos encontrar nos Prolegômenos para uma ontologia do ser social, do
próprio Lukäcs, traduzido do alemão para o português por Lya Luft e Rodnei Nascimento, pela mesma editora. Como não se
constitui em tema central do presente estudo, usaremos como base, para os fins aqui pretendidos, um texto introdutório, Para
Compreender a Ontologia de Lukäcs (2007), do prof. Sergio Lessa.
própria teleologia posta inicialmente. Da mesma forma, a história não é definida a partir do ato
fundante, mas é constituída a partir de cada nova escolha definida pelo ser social. Noutros termos e
para finalizar, diferente de outras filosofias finalistas como, por exemplo, a hegeliana, a filosofia
marxiana se constitui enquanto um sistema aberto (Meszáros, 2006), porque compreende que o
movimento histórico é indeterminado, que cada momento exigirá uma nova resposta do ser social,
em última instância e em termos mais abstratos, uma nova reposição teleológica a partir de um
contexto concreto por ele já produzido.
Portanto, para a filosofia marxiana a teleologia é uma noção própria ao ser social,
constituinte da categoria do trabalho e, através desta, de modo muito abstrato, do processo histórico.
Como não é uma propriedade observada no ser em geral, não tem um caráter universal
propriamente, bem como não deve ser admitida como uma noção determinista e nem mesmo
necessária, senão sob o ponto de vida da humanidade em sentido genérico.
2. A Fenomenologia Transcendental de Edmund Husserl
A filosofia do alemão Edmund Husserl (1859-1938) poderia ser tomada, a princípio,
como mais um capítulo da discussão no campo epistemológico, em um contexto histórico no qual a
ciência vivia sob a hegemonia do positivismo. Uma de suas principais referências diz respeito à
obra do também alemão Immanuel Kant. A fenomenologia transcendental de Husserl é uma
filosofia do sujeito transcendental do conhecimento. No entanto, ela rompe com o kantismo na
medida em que procura descrever a vivência do fenômeno, buscar o sentido do ser tal como este se
põe no fenômeno, portanto, ultrapassando o conceito do fenômeno enquanto limite à coisa-em-si,
preconizada por Kant.
O projeto da fenomenologia husserliana não é apenas uma filosofia, mas ainda mais, é
um método de investigação filosófica. Acreditamos, desse modo, poder partir deste item no sentido
de estabelecer, minimamente, a descrição simplificada da fenomenologia husserliana.
Dois são os conceitos fundamentais da fenomenologia. O primeiro é chamado de
epoché definida, resumidamente, como o pôr em suspensão o juízo acerca do mundo exterior,
reduzindo-o ao fenômeno, o que resulta na chamada redução fenomenológica; redução ao mundo
transcendental da consciência ou vivência puras. A partir daqui entra em ação um segundo
momento ou segundo conceito, à saber, o de redução eidética. Esta consiste em sucessivas reduções
operadas sobre o fenômeno, em um processo de análise descritiva em direção à sua essência (eidos).
O resultado desses dois processos de redução é a percepção e o percebido a partir da pura imanência
da consciência ou, noutros termos, ato e correlato. Sendo a percepção ato da consciência e o
percebido o seu correlato. Segue um terceiro muito caro à fenomenologia e que descreve a essência
mesmo da consciência, a saber: a intencionalidade.
Com efeito, na fenomenologia hussserliana a consciência é sempre consciência de algo,
ou simplesmente consciência de. A consciência pode ser descrita como forma ou puro ato. Sendo
puro ato e coerente com a afirmação do método fenomenológico, o mundo percebido é um correlato
intencional da consciência. As implicações dessa relação vão para além de uma teoria da percepção.
Com efeito, na fenomenologia o ato da consciência é portador da atribuição de sentido. A
intencionalidade, assim, implica ação de significação. Este talvez seja um dos aspectos mais
peculiares da filosofia fenomenológica.
Para os objetivos deste texto é importante notar a centralidade que o conceito de
intencionalidade ocupa no escopo fenomenológico husserliano. As conseqüências de sua aplicação
estão na base de algumas concepções ontológicas das filosofias existencialistas pós-husserliana, em
particular a sartriana, bem como na base da concepção histórica de Husserl.
É necessário observar, nessa pequena descrição, que a fenomenologia husserliana se
destaca pelo objeto do projeto de uma filosofia radical, que pretende ultrapassar o mundo empírico
dado em direção à sua essência. O que se pode dizer sobre a diferença entre uma atitude natural e
uma atitude fenomenológica. Menos do que procurar explicar o fenômeno, o que está em jogo é
compreender o sentido da essência do “mundo da vida”, que implica a existência humana de modo
geral e universal, deduzindo daí a sua vocação edidética.
3. Teleologia no Husserl no texto A Crise
A noção de teleologia, como sugere o subtítulo, circunscreve àquela exposta por Husserl
no texto A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental. Eventualmente a
discussão dessa noção pode ser complementada com base em outros textos do mesmo filósofo,
como parece sugerir Morujão (2007). Assim, é necessário observar que o texto em questão é situado
historicamente, isto é, nas vésperas da segunda grande guerra, em um intervalo que remonta à
primeira grande guerra, composto por crises políticas e econômicas. Além disso, esse texto é
baseado nas conferências para tratar um tema próprio: A Crise das Ciências Européias e a
Psicologia. Ainda, muito embora seja um tema caro à pesquisa e produção husserlianas, é escrito
em um período que, por assim dizer, corresponde a fase tardia do pensamento desse filósofo.
Queremos dizer, com isso, que não se trata, pelo menos aqui, de explorar, senão preliminar e
provisoriamente, a noção de teleologia.
A crise científica a que se refere Husserl, em seu texto, é a razão da maré montante que
configura a ciência positivista de seu tempo. Não se trata de apontar uma crise aos resultados
práticos e técnicos que essa ciência produziu, haja visto os benefícios e mesmos avanços que pode
ofertar a humanidade4 (européia). Contudo, observa Husserl: “Meras ciências de fatos fazem meros
homens de fatos” (2012, p. 3), chamando a atenção para a perspectiva sobre a qual pretende tratar o
tema:
“Na urgência de nossa vida – ouvimos – esta ciência nada nos têm a dizer. Ela
exclui de um modo inicial justamente as questões que, para os homens nos nossos
desafortunados tempos, abandonados às mais fatídicas revoluções, são as questões
prementes: as questões acerca do sentido ou ausência de sentido de toda esta
existência humana” (idem, p. 3)
Esse trecho caracteriza a crise enquanto uma crítica, no sentido mesmo de limite das
possibilidades da ciência positiva responder à demanda pelo sentido da existência. Observa-se, com
isso, também, o caráter universal da ciência enquanto expressão do espírito humano. Isto é, não se
trata de uma crítica circunscrita a uma dimensão particular da cultura e ainda menos de uma ciência
em particular.
No § 3° do texto, Husserl fala do caráter primordial, unitária e universal da filosofia, de
uma ciência onienglobante, resgatada pelo Renascimento da cultura clássica antiga, do qual a
ciência positivista, de seu tempo, não passa de um “conceito residual” (p. 5). O resultado
contraditório do percurso da ciência aparece para Husserl como um problema de natureza
metafísica que põe as questões do homem enquanto ser racional e do sentido da razão na história.
Certamente não nos é permitido falar em metafísica no estrito sentido aristotélico, pelo menos não
enxergamos elementos para tanto. Por outro lado, é quase irresistível5 especular que a crítica à
ciência positivista carrega os elementos de uma crítica à falta de fundamento, em sentido
metafísico, enquanto portadora universal do sentido histórico da existência humana. Sobretudo, a
noção de teleologia, parece-nos, deve ser apreciada no contexto em que está em jogo o conceito de
história e o apelo a uma certa noção ontológica do sentido.
No § 6° apresenta uma quantidade relevantes de elementos para a sua compreensão da
noção de teleologia:
“Só assim se decide se o telos que, com o nascimento da filosofia grega, se tornou
inato à humanidade européia, o telos de – no movimento infinito da razão latente
até a manifesta, e no esforço infinito de autonormação por meio desta verdade e
genuidade da humanidade – querer ser uma humanidade a partir de uma razão
filosófica, e de só poder ser como tal, é um mero delírio histórico fático, uma
aquisição acidental de uma humanidade acidental, no meio de muitas
humanidades e historicidades; ou se antes não irrompeu na humanidade grega,
4
Pode-se debater a questão, mas aparentemente, trata-se de uma concepção eurocênctrica de humanidade ou, pelo menos, uma
concepção ocidental de humanidade. Acreditamos que essa perspectiva é fundamental na sua definição (de Husserl) da noção de
teleologia.
5
As teorias existencialistas pós-husserlianas e influenciadas por sua fenomenologia parecem provar a validade desse sentido na
relação entre sentido e fundamento ontológico.
pela primeira vez, aquilo que, na humanidade enquanto tal, se definiu, segundo a
sua essência, como enteléquia” (idem, p. 11)
De imediato parece que Husserl coloca a questão e a sua resposta em torno da definição
da possibilidade de uma teleologia enquanto principio anterior ao movimento histórico. Contudo, a
nosso ver, a própria posição teleológica é uma noção que está em questão. A investigação a que se
propõe, Husserl, consiste em determinar se o movimento histórico instaurado pela filosofia grega
funda-se em uma teleologia de caráter universal, a causa de um movimento que tem por resultado a
enteléquia da humanidade européia ou, se antes, se não é possível falar em uma teleologia enquanto
tal. Nesse caso, o autor contrapõe determinações acidentais, de um lado, e uma teleologia enquanto
essência de um processo histórico, enquanto a causa a um fim e este enquanto uma forma
substancial da humanidade.
Nesse momento é necessário admitir o caráter problemático dessa noção de teleologia.
Primeiro: temos a impressão de que o filósofo o apresenta com o atributo universal e essencial,
unitário: a possibilidade de uma teleologia na história é a possibilidade da humanidade atingir esse
fim que a si mesmo se propôs. Sabemos que a resposta husserliana será positiva, sendo esse o
próprio motivo que justifica a sua produção intelectual. Contudo, de um lado, a teleologia a que se
refere parece não ter uma constituição determinista. Se assim o fosse, não interessaria todos os
eventos históricos que a contrariam porque, ao fim e ao cabo, prevaleceria o resultado finalístico.
Por outro lado, tanto na instauração grega quanto no processo de sua recuperação pela sociedade
contemporânea, a teleologia, compreendida como caminho necessário a forma substancial, parece
ser uma posição escolhida pela humanidade. Tomando o primeiro entendimento como válido,
poderíamos admitir que mesmo a ciência positiva é um acidente histórico, pronto a ceder o lugar,
em um momento ou outro para a verdadeira e essencial forma da ciência filosófica autêntica.
Entretanto, tomando o segundo sentido, o positivismo, tanto quanto a matematização da natureza
seriam razões de novas posições teleológicas, que se põem determinando o processo histórico,
tornando e dotando de sentido os eventos históricos factuais. O conhecimento da fenomenologia
husserliana nos convida a assumir a segunda proposta como ingênua em favor da primeira. Dessa
forma, a sua compreensão, da noção de teleologia ainda fica, admitimos, um tanto obscura.
O aprofundamento desse problema nos levará, inevitavelmente ao estudo, à tentativa de
compreensão do conceito de história em Husserl, o que alargaria em demasia o propósito aqui
estipulado. Segundo Morujão (2007): “para que a humanidade grega e o que foi por ela fundado
tenha podido determinar o sentido da nossa história e o esteja ainda determinando; é necessário
proceder à compreensão do seu sentido interno, para lá do seu carácter factual. Tal será a tarefa
reservada à compreensão teleológica da história” (p. 188). O que se observa aqui, se proceder o
argumento desse autor, é que a teleologia adquire sentido para além da história factual. Essa noção
está atrelada a um sentido de abrangência universal, que deve reconhecer a sua origem no eidos de
uma ontologia regional: a história. Isto é, para Morujão, podemos afirmar que Husserl encontra,
com a filosofia grega, o sentido do movimento teleológico que deverá resultar na forma acabada de
ciência, da qual o positivismo não passa de um conceito residual.
Quando, porém, os casos de matematização da natureza, bem como o seu produto (o
positivismo), parecem pôr abaixo o processo teleológico delineado pelos gregos; tais eventos
passam a ser considerados como percurso em zig-zag, que ora sai trajetória inicial para depois
encontrá-la logo adiante (Crises, 2012, § 9), justificando, desse modo, a própria filosofia
fenomenológica husserliana.
Zilles (2008) retoma o argumento husserliano em um aspecto que ser decisivo para o
delineamento da noção de teleologia:
“O télos espiritual da humanidade européia, no qual está compreendido o télos
particular das nações singulares e dos homens individuais, situa-se no infinito, é
uma idéia infinita, para a qual tende, por assim dizer, o vir-a-ser espiritual
global” (Husserl apud Zilles, 2008, p. 36)
Esse argumento parece favorecer uma explicitação maior da noção da teleologia
husserliana. Com efeito, o télos é uma dimensão universal do vir-a-ser da humanidade. Mas,
enquanto vir-a-ser espiritual, parece carregado de sentido, isto é, a teleologia seria o movimento
essencial do sentido. A teleologia seria, assim, sobretudo, um sentido teleológico da história
humana. O que permanece desconfortável nesse argumento, assim, nos parece, é que esse
movimento tem um momento decisivo específico: a fundação da ciência grega. Essa teleologia, de
referência espiritual e onienglobante, parece está fundada em uma posição teleológica, chamada de
acordo com o método fenomenológico, de intencionalidade (Zilles, op. cit.). Morujão (2008) parece
concordar com essa noção quando afirmar que a categoria da intencionalidade permanece
subjacente mesmo quando o objeto (no caso, o objeto ou fatos e causas históricas) desaparecem.
A noção de teleologia de Husserl, dessa forma, parece conviver com um par de
conceitos aparentemente contraditórios: de um lado, enquanto processo finalístico universal
(metafísico), de outro, fundado em uma posição teleológica do sujeito real (humanidade) segundo a
intencionalidade nela (teleologia) subjacente.
Temos assim, noções básicas acerca da noção e questão e problema (ou pseudoproblemas) que pode nos proporcionar um debate preliminar, que faremos a seguir.
Considerações Finais (preliminares)
Acreditamos que podemos, neste momento, retomar as noções de teleologia até
examinados para, a guisa de conclusão deste texto, chegar a uma compreensão preliminar sobre a
forma como ela aparece no discurso husserliano da A Crise.
Em Aristóteles, a noção de teleologia é definida como um modo de causalidade, a
causalidade final. Do ponto de vista de sua Metafísica, essa causalidade final corresponde ao
princípio do movimento, podemos dizer, a razão em vista de algo. Entendemos, a partir da
aplicação dessa noção ao estudo da natureza, que o filósofo grego assim o define diante dos
fenômenos que ocorrem “sempre ou no mais das vezes”, vale dizer, se contrapõe ao aspecto
acidental de uma perspectiva baseada na noção de concomitância. A teleologia ou causalidade final
é, como a compreende Aristóteles, uma “necessidade sob hipótese”, cujo resultado é previsto a
partir do início de seu movimento. Ao fim e ao cabo, podemos afirmar que a noção de teleologia,
em Aristóteles, tem um caráter universal e cabe no interior de uma concepção metafísica, não
apenas de uma ontologia regional, como pode ser entendido a partir da investigação sobre a
natureza. Entretanto, tomando como referência a expressão “sempre ou no mais das vezes”, para
afirmar o caráter regular distintivo da teleologia, que esse termo não possui, apesar de incorporar
ainda o conceito de necessidade, uma forma de determinismo inexorável.
Por seu turno, a teleologia compreendida pelo marxismo deve ser entendida como no
âmbito do ser social, enquanto posição teleológica, vale dizer, a ação do homem sobre a natureza
(causalidade dada) a partir de uma previa-ideação. Essa posição teleológica coloca em movimento
nexo causais inicialmente não previstos. Assim, de um lado, podemos afirmar que a posição
teleológica põe em movimento o processo histórico, contudo, não se trata de processo universal. A
cada nova etapa essa teleologia deve ser reposta, porque diz respeito menos a um princípio
metafísico do que a própria condição histórica objetiva. A teleologia, aqui, é própria de uma
ontologia regional, a uma ontologia do ser social. Ou, pelo menos, a concepção marxiana não nos
permite ir além, para a sua aplicação em uma investigação da natureza, orgânica ou inorgânica.
Tomando esses dois sentidos de teleologia por parâmetros, inicialmente somos tentados
a enxergar uma aproximação da noção husserliana à noção aristotélica. Com efeito, no primeiro,
assim como no segundo, podemos compreender a teleologia em um sentido anterior aos eventos
acidentais do movimento histórico, em direção a um fim, posto no início (pela filosofia grega no
caso de Husserl?) como o eidos ou forma final do movimento. Nesse caso, em tudo, ou pelo menos
no que há de fundamental se distingue da noção marxiana. Nesta, não se verifica o menor espaço
para a acepção de uma teleologia universal, que ultrapasse o desdobramento histórico concreto, isto
é, a explicitação do ser social, em cada um dos seus momentos. Não há uma idéia original que
subjaz e determina, mesmo em termos de constituição do sentido, o movimento histórico. O que faz
a posição teleológica é pôr em movimento os nexos categorias de uma realidade dada.
Entretanto, é possível afirmar que o télos husserliano é o movimento da forma do
sentido da existência humana, quer dizer, trata-se de um sentido teleológico antes de uma
causalidade final. Aparentemente paradoxal, a teleologia husserliana parece ser antes puxada pelo
sentido do que impulsionada por uma causa, tal como se daria na perspectiva aristotélica. Se esta
fórmula parece possuir alguma conseqüência, pode-se afirmar, portanto, que a teleologia
husserliana, muito embora de caráter universal e finalista, não compreende fundamentos
determinantes de um processo regular e inexorável. Antes, a sua possibilidade consiste mesmo na
efetivação desse sentido teleológico e que a própria fenomenologia transcendental procura atender.
Aqui, muito embora ainda se mantenha distante da noção marxiana enquanto necessidade de
reposição do sentido teleológico universal.
Finalmente, muito embora a teleologia husserliana tende a ser melhor compreendida a
partir da perspectiva aristotélica, por esta não pode ser deduzida. Com efeito, trata-se de uma noção
que está a meio caminho entre as outras duas que nos propusemos a analisar. A teleologia enquanto
movimento infinito ao sentido último da existência humana é peculiar, própria e fundamental a
fenomenologia e que deve gerar suas próprias dificuldades a categoria de história que nela se
fundar. Não é, em todo, assim nos parece, uma concepção realista de história, apesar de se
distinguir das demais noções idealistas. Como uma primeira incursão ao estudo de noção, parece ser
este o resultado preliminar mais adequado.
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