a meritocracia na contramão da luta pela garantia do piso e da

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A MERITOCRACIA NA CONTRAMÃO DA LUTA PELA GARANTIA DO
PISO E DA CARREIRA DE PROFESSOR1
José Carlos Libâneo
Professor da Pontifícia Universidade de Goiás
[email protected]
O texto apresenta uma análise política e pedagógica sobre a política da
meritocracia, a qualidade do ensino-aprendizagem e o trabalho dos professores. A
meritocracia vai na contramão da luta do professorado pelo piso salarial e planos de
carreira, bandeira de quase todos os sindicatos de esquerda em nosso país. No entanto,
para recusar a meritocracia como critério de remuneração do trabalho dos professores e,
em seguida, de ranqueamento das escolas, é preciso recusar, também, o modelo de
responsabilização da escola e do professor com base nos testes de desempenho escolar
dos alunos, orientação que provem de organismos internacionais, como o Banco
Mundial, e que está por detrás do uso do critério da meritocracia em vários Estados
brasileiros para a remuneração de professores. Serão abordados aqui os seguintes
pontos: a) a subordinação das políticas educacionais brasileiras aos organismos
internacionais; b) qual é a lógica da aplicação da meritocracia na política educacional
brasileira é a lógica de mercado; c) a perversidade do sistema educacional, do ponto de
vista pedagógico, em adotar da escola de resultados e o uso da avaliação de desempenho
dos alunos para bonificação dos professores; d) qual é o sentido da profissão docente e o
quais devem ser os critérios de avaliação de desempenho dos professores.
A subordinação das políticas educacionais brasileiras aos interesses de organismos
internacionais
Antes de detalhar esse assunto, trago tópicos de uma entrevista e de um livro de
uma norte-americana chamada Diane Ravitch. Ela foi secretária-adjunta do Ministério
da Educação para implantar a educação por resultados nos Estados Unidos nos governos
Clinton e Bush e membro do sistema nacional de avaliação da educação no período de
1997 a 2004. A entrevista foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 2/8/2010
e pode ser localizada na Internet. A professora diz que se arrependeu profundamente de
ter colaborado na implantação desse modelo de educação por resultado.
Pergunta: Por que a senhora mudou de ideia sobre a reforma educacional
americana?
DR - Eu apoiei as avaliações, o sistema de accountability (responsabilização de
professores e gestores pelo desempenho dos estudantes) (…), mas as
evidências acumuladas nesse período sobre os efeitos de todas essas políticas
me fizeram repensar. Não podia mais continuar apoiando essas abordagens. O
ensino não melhorou e identificamos apenas muitas fraudes no processo.
Pergunta: Em sua opinião, o que deu errado com os programas No Child Left
Behind e Accountability (Responsabilização)?
DR – Como as metas de aprendizagem eram muito altas, os Estados acabaram
diminuindo suas exigências e rebaixando seus padrões para tentar atingir as
metas; redução ao currículo. (...) A legislação apostou numa estratégia de
avaliações e de responsabilização que levou a alguns tipos de trapaças,
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Texto de palestra apresentado no 9º Congresso Estadual do Sindicato de Trabalhadores em Educação de
Goiás (SINTEGO), Goiânia, 2013.
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manobras para driblar o sistema e outros tipos de esforços duvidosos para
alcançar um objetivo que jamais seria atingido. (...) Quando as metas são altas,
educadores vão encontrar um jeito de aumentar artificialmente as pontuações.
Muitos vão passar horas preparando seus alunos para responderem a esses
testes, e os alunos não vão aprender os conteúdos exigidos nas disciplinas, eles
vão apenas aprender a fazer essas avaliações. (Desse modo), os professores
passam a ensinar a responder testes, a diminuir as exigências, e outras maneiras
de melhorar a nota dos estudantes sem, necessariamente, melhorar a educação.
(...) A responsabilização dos professores está sendo usada para destruí-los.
Pergunta: Quais são os conceitos que devem ser mantidos e quais devem ser
revistos?
DR – O foco deve ser sempre melhorar a educação e não simplesmente
aumentar as pontuações nas provas de avaliação. Ficou claro para nós que elas
não são necessariamente a mesma coisa. Educação é muito mais que saber
fazer uma prova. (...) Precisamos de jovens que estudaram história, ciência,
geografia, matemática, leitura, mas o que estamos formando é uma geração que
aprendeu a responder testes de múltipla escolha.
Em um dos capítulos do livro da pesquisadora “Vida e morte do grande sistema
escolar norte-americano” (Editora Sulina, Brasil), ela escreve sobre as lições
aprendidas: “Nossas escolas não melhorarão se nós as introduzirmos no mágico mundo
do mercado. Mercados têm ganhadores e perdedores. Nossas escolas não vão melhorar
se funcionários indicados se intrometem no território pedagógico e tomam decisões que
apropriadamente deveriam ser tomadas por educadores profissionais. Nossas escolas
não melhorarão se esperamos delas que atuem como empresas privadas, lucrativas.
Escolas não são negócios, elas são um bem público. O objetivo da educação não é
produzir altas pontuações, mas educar as crianças para serem pessoas responsáveis, com
pensamento bem desenvolvido e bom caráter”.
Nosso país tem mania de copiar coisas de fora, e frequentemente acontece que
quando políticas educacionais são adotadas aqui elas já estão sendo questionadas lá
onde foram gestadas. Penso que ninguém de nós pode ignorar que as políticas
educacionais do Brasil são aplicações das recomendações de organismos internacionais,
principalmente do Banco Mundial. Desde 1980, junto com o aparecimento das políticas
neoliberais, começaram no mundo todo as reformas educacionais para adequar a
educação aos interesses econômicos do capitalismo. Elas começam na Inglaterra,
avançam para os países europeus e Estados Unidos, depois para a America Latina. No
Brasil, a reforma educativa começou no início dos anos 1990, com a elaboração do
Plano Decenal de Educação - 1993-2003. O Banco Mundial e outros organismos
multilaterais, ligados às oito potências econômicas, definem regras para controlar as
relações econômicas e comerciais entre os países e impõem políticas de controle nas
políticas econômicas e sociais desses países. O Banco Mundial definiu suas políticas
para educação para os países pobres em várias conferências internacionais a partir da
Conferência Mundial de Educação para Todos, na Tailândia, em 1990, realizada em
co9njunto com outras organizações. Ao longo das décadas, o Banco vem produzindo
documentos de diagnósticos e análises sobre as políticas de educação e saúde para
países pobres, alguns específicos para o Brasil.
É dessas políticas que vem a orientação para implantação de uma escola para
proteção social da pobreza, expressa em escola de ciclos, a escola de tempo integral, a
progressão continuada, o afrouxamento da avaliação da aprendizagem, a escola do
acolhimento e integração social. Não se trata de uma proposta humanitária; é que o
aumento da pobreza no mundo não interessa hoje aos interesses globais do capitalismo.
Nesse guarda chuva da escola de proteção social para os pobres vem: a) um currículo
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instrumental, pragmático, visando empregabilidade para os mais pobres; b) uma escola
de conteúdos mínimos. c) uma aprendizagem controlada por testes; d) uma escola de
acolhimento e integração social para controlar conflitos.
A escola que temos no Brasil desde 1990 até hoje é a escola de resultados que
oferece um “kit” de habilidades mínimas para a sobrevivência social e necessidades
imediatas e mais elementares dos alunos. É uma escola que não tem interesse em prover
condições pedagógicas e didáticas para formar a reflexividade, para propiciar o
desenvolvimento intelectual, afetivo e moral dos alunos. Seu principal problema é negar
validade ao conhecimento universal, é fazer pouco dos conteúdos e limitar o papel da
escola ao acolhimento e integração social. Perde-se o sentido de escola, o sentido do
pedagógico, que é de formação intelectual, formação afetiva, formação moral. Essa
escola há tempos lugar transformou-se num lugar de proteção social para os pobres,
para suprir carências de saúde, de lazer, de assistência social, atendendo a ações que
deveriam caber a outros setores do estado, da sociedade, das empresas. Os programas
sociais via-escola dissimulam as omissões do estado na saúde, na cultura, no lazer, no
esporte. Os objetivos do ensino, os conteúdos significativos, o desenvolvimento das
capacidades mentais, a ajuda aos alunos no desenvolvimento do seu pensamento e da
atitude critica passam ao segundo plano. Na verdade, o currículo de resultados
imediatos, a redução do ensino à avaliação por testes, são uma forma simplificada e
ligeira de incorporar os pobres à nação como força de trabalho, consumidores e usuários
de tecnologias digitais. Estudos relacionados com a internacionalização das políticas
educacionais para países emergentes comprovam que as políticas para a escola estão
penduradas nas políticas sociais de proteção social à pobreza. Como escreve a
pesquisadora Eveline Algebaile, nas atuais políticas públicas, quanto mais aparece o
discurso pela escola, pela valorização da escola, mais ela se empobrece como instituição
destinada ao ensino, à relação com o conhecimento. Ou seja, não são as políticas
educacionais que definem as funções da escola, são as políticas sociais de ações
fragmentadas, tópicas, emergenciais, para compensar o pouco investimento em direitos
básicos como saúde e educação.
A lógica da aplicação da meritocracia na política educacional brasileira é a lógica de
mercado
É no contexto do que acabamos de expor que devemos analisar a meritocracia.
Ela deve ser compreendida no contexto da ideologia neoliberal e da supremacia da
lógica do mercado sobre outras lógicas sociais, como a cultura, a comunicação, a justiça
etc. E é precisamente esse contexto que caracteriza a ação dos organismos
internacionais, principalmente do Banco Mundial, baseadas em políticas educacionais
elaboradas por economistas, cujo foco inevitavelmente são os resultados. Não por acaso,
nossos dois recentes ministros da educação têm formação em economia e a própria
presidente é economista.
Uma das características principais da lógica de mercado é vincular o serviço
público à obrigação de resultados. O raciocínio é simples: é preciso racionalizar todo
tipo de atividade social. Ou seja, essa ação racional consiste em agir de acordo com
metas possíveis de serem avaliadas quantitativamente de modo a determinar meios
eficazes para atingir essas metas. Temos ai o principio da eficácia. Por exemplo, uma
empresa que não visa eficácia ótima, está condenada ao fracasso. Esta eficácia ótima
requer das pessoas competência, um saber-fazer, em relação às metas. Dentro da lógica
da obrigação de resultados, isso vale para o engenheiro, para o medico, um gestor de
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vendas, um ortopedista. O profissional tem que conhecer seu trabalho, avaliar os
problemas que surgem e definir modos de agir, estratégias, meios, etc.
Esta é a lógica do capitalismo, a lógica dos organismos internacionais cujo
princípio é a obrigação de resultados. Para isso, são necessárias quatro coisas: previsão
de metas quantificáveis, meios adequados, pessoas bem treinadas e avaliação das ações
em temos de sucesso ou fracasso. Qual é o motor de todo esse processo? A competição
individual, assegurada pelos mecanismos da meritocracia. Ou seja, o principio da
meritocracia é a competição, de modo a individualizar as responsabilidades pelo sucesso
ou fracasso das metas.
O que é o sistema de meritocracia? A palavra meritocracia vem do latim e do
grego, meritum e cracia, quer dizer, governo pelo mérito, gestão pelo merecimento da
pessoa. Por meio do seu mérito individual, a pessoa pode ganhar mais, subir na
profissão, galgar posições hierárquicas na empresa. Por exemplo, os concursos, o
vestibular, o ENEM, são formas de seleção meritocráticas. A meritocracia está
diretamente vinculada a uma política de gestão baseada em resultados. São gratificados,
premiados, os funcionários que atingem os resultados esperados e apresentam aquelas
competências, procedimentos e técnicas estabelecidas previamente pelas organizações.
No caso da educação, pelo sistema de ensino. Bom diretor, bom professor, bom
funcionário, é o que garante os resultados. Os que defendem esse modelo de
meritocracia entendem que esse é um procedimento justo, porque avalia os méritos de
cada um independentemente de características individuais e sociais. Dizem que a
meritocracia é um método de reconhecimento público das habilidades e do esforço de
cada um que isso é um procedimento democrático.
A obrigação de resultados em educação é a transposição desse raciocínio ao
sistema educacional e às escolas. O uso da meritocracia como sistema de remuneração
dos professores começa na medição de desempenho de alunos por meio de testes, a
partir do que são avaliados os professores e as escolas. Desse modo, a avaliação do
professor fica subordinada aos resultados do rendimento dos alunos com base em testes
padronizados. A partir daí, instalam-se a responsabilização unilateral de professor e de
gestor, a competição entre os professores e ranqueamento entre as escolas e a
bonificação salarial pela “produtividade” de cada professor. Com a meritocracia,
institui-se a tirania da obrigatoriedade de resultados: pressão em cima dos professores e
dirigentes escolares, concorrência e competição entre escolas e professores, recompensa
aos bem-sucedidos, punição aos malsucedidos.
Os professores que me ouvem sabem como as coisas funcionam nesse modelo:
a) O sistema de ensino estabelece uma lista de metas a serem atingidas pelas escolas
conforme cada nível de ensino, na forma de competências; b) São elaborados e
distribuídos livros didáticos ou apostilas conforme as competências exigidas; c)
Professores ”passam” a matéria e preparam os alunos a responder testes; d) São
preparadas provas padronizadas a serem aplicadas nas escolas; e) Corrigidas as provas,
as escolas serão classificadas de acordo com as médias obtidas; f) Escolas e alguns
professores cujos alunos foram bem sucedidos (conforme a média obtida) recebem
prêmios em dinheiro, para individualizar as responsabilidades.
Ou seja, na cabeça dos economistas a educação custa muito caro, tanto no
investimento econômico como no investimento social e humano. A sociedade tem que
fazer as contas. Então é preciso tornar as coisas mais eficazes, mais rápidas, mais
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facilitadas. Então diretores e professores precisam prestar contas do resultado do que
fazem.
Em resumo, uma política curricular baseada em resultados imediatos visa a
responsabilização, escolas e professores são premiados ou punidos em função do seu
“mérito” pelo bom ou mau desempenho dos alunos. Nesse sentido, o sistema de ensino
não precisa de bons professores, precisa de professores que cumpram metas, seja lá por
quais meios. Resumindo, do ponto de vista pedagógico, teremos: um professor que
transmite o conteúdo com base numa apostila pronta, responsabilizado pelo êxito ou não
dos alunos nos testes; uma escola ocupada em treinar os alunos para os testes; nenhuma
atenção à formação e desenvolvimento das capacidades mentais dos alunos;
secundarização da formação da personalidade voltada para valores morais solidários e
visão critica da sociedade, predominando valores econômicos, individualistas e
egoístas.
A obrigação de resultados e o prejuízo pedagógico
A adoção do modelo de escola por resultados por onde se utiliza a avaliação de
desempenho dos alunos para bonificação dos professores é uma perversidade
pedagógica. Começamos por perguntar: o que acontecerá com escolas com instalações
físicas ruins, sem equipamentos e material didático, professores mal-pagos e sem
acompanhamento pedagógico, famílias com baixa escolaridade e baixo nível
socioeconômico? Qual será o destino desses alunos? Qual será a motivação e as
expectativas que os professores terão sobre seu trabalho e sua profissão?
Os problemas que decorrem dessa transposição são muitos. Destaco apenas dois
deles. Por um lado, a obrigação de resultados subordina a lógica das práticas educativas
à lógica do mercado, à lógica do mundo econômico. Por outro, a educação (como a
saúde) lida com seres humanos e esse tipo de atividade parte de outros princípios, que
são éticos, políticos, culturais, pedagógicos.
O que acontece com as escolas nesse modelo? Na escola de resultados
imediatos, o sistema põe todos os alunos no regime de competição, são submetidos às
mesmas provas. Então, as diferenças se aprofundam rapidamente. Em pouco tempo,
nota-se que alguns alunos são incapazes de competir. Os alunos que fracassam são
responsabilizados individualmente pelo seu fracasso, constroem uma imagem de mau
aluno, diminui sua autoestima, e são candidatos à indisciplina e à violência. Mas a
competição continua. Gradativamente cria-se um abismo entre os “alunos bons” e os
“alunos ruins”. Exclusão dos alunos com mais dificuldades, porque em algum momento
são empurrados (em algumas escolas são dispensados de fazer a Provinha
Brasil).Temos, assim, a falácia e a falência da educação para todos.
No entanto, a escola não fabrica automóveis, ela não pode fazer uma linha de
montagem... A professora não pode pegar o aluno, montar e desmontar, como uma peça.
Ela não pode resolver em uma aula, uma semana, um mês, dificuldades de
aprendizagem ou falta de pré-requisitos de aprendizagem. Os resultados do nosso
trabalho não são imediatos, levam tempo. O fracasso escolar, como todo professor sabe
ou devia saber, é um circulo vicioso que envolve um conjunto de variáveis, a origem
social e social, a pobreza, o ambiente familiar, a formação do professor, o salário do
professor, as condições de trabalho, etc. Mesmo que uma professora faça o possível para
conseguir o progresso escolar do aluno, ela não pode controlar outras variáveis sociais,
culturais, individuais, que atuam no processo de ensino aprendizagem. Além do mais, a
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educação é sempre uma ação coletiva, depende da equipe da escola, a qual, por sua vez,
depende de condições de trabalho, de equipamentos, der material didático.
As crianças, portanto, trazem para a escola bagagem distinta devido a condições
sociais e culturais das famílias. Alem disso, mesmo entre essas crianças de camadas
sociais semelhantes há as diferenças individuais. Ou seja, temos as desigualdades
sociais que pesam fortemente nas desigualdades escolares, e temos também as
diferenças individuais, pois estão atributos dos seres humanos. Também as escolas são
muito diferentes entre si. Escolas de periferia, escolas mais retiradas, escolas de
municípios menores ou mais afastados carregam consigo um acúmulo de problemas,
envolvendo prédio escolar, corpo docente instável, condições de ensino, pobreza das
famílias, capital cultural e linguístico requerido para a aprendizagem escolar, terão um
impacto das avaliações mais negativas. Então a competição entre escolas e professores,
que serve de critério para a meritocracia, é uma fragrante injustiça social.
Há que se considerar outro tipo de perversidade em relação aos mais pobres. O
governo sabe que há muitas crianças com dificuldades escolares, que tem dificuldades
de se adaptar à escola. Mas então o MEC, as Secretarias da Educação transformam
desigualdades socioeconômicas em “diferenças individuais”. Então o que o faz o
sistema de ensino? Fecha o semestre em meados de novembro, dispensa os alunos com
notas boas, e coloca os “diferentes” em aulas de reforço e os empurram para frente e
isso é feito em nome do respeito às diferenças individuais. Ou não menos pior: inventa
um tipo de escola de tempo integral e um programa de ações socioeducativas para
compensar as carências dos “diferentes”.
Em resumo, com a aplicação de testes padronizados a uma clientela escolar com
profundas diferenças individuais, sociais e culturais, as crianças pobres acabam
irremediavelmente injustiçadas. Nesse sentido, a ideia de afixar na porta das escolas
uma placa com a nota do IDEB é extremamente infeliz. É um acinte, um pecado ético
que se comete contra a pobreza. Pergunta-se: é moralmente legítimo submeter todas as
escolas aos mesmos padrões de desempenho, sem levar em conta as características dos
alunos e de seu meio, além das diferenças gritantes entre as escolas em relação às suas
instalações físicas, preparo do corpo docente, condições socioeconômicas das famílias?
Qual a utilidade dos indicadores quantitativos e do IDEB senão impor uma
uniformidade de desempenho, sem que o governo possa dar a todas as escolas as
condições para chegar aos padrões estabelecidos? Não há uma perversidade em pautar o
desempenho das escolas, dos professores e dos alunos a um padrão daquela escola bemsucedida ou do professor bem-sucedido, onde falham a infraestrutura, as condições
físicas, materiais e de equipamentos, as condições de remuneração e de trabalho dos
professores? Onde ficam as possibilidades de criação, autonomia e inovação dentro da
própria escola, em que os professores estão face-a-face com seus alunos? Que meios de
trabalho a Secretaria da Educação colocará nas mãos dos professores para que os alunos
possam ter mais êxito escolar?
A meritocracia é uma solução fácil, alem de perversa. É mais fácil jogar com
incentivos financeiros individuais, iludir o professor com um 14º salário ou uma
gratificação, do que cuidar da infraestrutura das escolas, de aumentar o piso salarial, dar
condições de trabalho. Alem disso, é mais fácil jogar a culpa do sucesso ou do fracasso
na escola e no professor do que investir nas condições mínimas de funcionamento das
escolas. De que adianta exigir responsabilidade profissional dos professores nos
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resultados de aprendizagem dos alunos se sua formação é precária e seus salários
aviltantes?
Qual é o sentido da profissão docente e quais devem ser os critérios de avaliação de
desempenho dos professores.
Quero concluir com uma observação importante e inevitável. Vamos acabar com
toda a avaliação por mérito? Penso que não, o ensino é uma responsabilidade social e
ética e isso inclui esperar resultados. E devemos valorizar e dimensionar nosso trabalho
dos professores. Qualquer plano de carreira necessita estabelecer critérios de
merecimento, ao lado de outros direitos e deveres da carreira. O que temos que pensar é
como avaliar o mérito conforme a natureza e as condições peculiares de uma atividade
com seres humanos, conforme já mencionado, pois professores e alunos não são objetos
econômicos. Dizendo de outra maneira: as escolas precisam proporcionar bons
resultados em relação à aprendizagem dos alunos por meio do processo de ensino e
aprendizagem. Esses bons resultados são moralmente desejáveis e tem a ver com a
redução das desigualdades sociais e dos processos de exclusão escolar e social.
Tenho como convicção que a escola com qualidade educativa deve ser aquela
que assegura as condições para que todos os alunos se apropriem dos saberes
produzidos historicamente e, através deles, possam desenvolver-se cognitivamente,
afetivamente, moralmente. Desse modo, a escola promove a justiça social cumprindo
sua tarefa básica de planejar e orientar a atividade de aprendizagem dos alunos,
tornando-se, com isso, uma das mais importantes instâncias de democratização social e
de promoção da inclusão social. E aprendizagem não pode se resumir na oferta de um
“kit” de habilidades sem conteúdo. Ela requer uma relação pessoal entre o professor e o
aluno para a conquista dp conhecimento e do desenvolvimento das capacidades
intelectuais e formação da personalidade.
Nesse sentido. escola justa, democracia na escola, justiça social na escola, busca
de igualdade social na escola significa, no mínimo, reduzir a diferença de níveis de
escolarização e educação entre os grupos sociais.
Então, onde estão os méritos do professor? Estão no seu trabalho de favorecer e
acompanhar a aprendizagem e o desenvolvimento de todos os alunos, de promover
mudanças qualitativas no seu modo de ser e de agir. Cada aluno tem suas características
individuais, sociais, culturais. Todo professor sabe que cada aluno carrega consigo as
práticas sociais e culturais em que vive. Cada aluno carrega consigo sua identidade
cultural e sua subjetividade. Desse modo, tem méritos o professor que sabe identificar
necessidades de aprendizagem dos alunos, inclusive aquelas falhas acumuladas em anos
anteriores de escolarização, ou a falta de pré-requisitos que os alunos trazem do seu
meio social, meio cultural; que trabalha para o desenvolvimento cognitivo, afetivo,
moral, estético, de cada aluno no grupo, não para atingir metas quantificáveis; que pode
planejar seu trabalho com autonomia, ele próprio formulando suas metas de
aprendizagem, considerando a realidade dos seus alunos, da família, da comunidade.
Penso que o trabalho docente perde sentido para o professor quando se afasta da
natureza e do conteúdo dessa atividade, que é atuar com os conteúdos e a formação dos
processos mentais, a atuação do desenvolvimento da personalidade global dos alunos.
Se o professor é levado a trabalhar apenas para sobreviver, a ensinar só em função do
salário, para receber bonificação, então o sentido de sua atividade profissional se perde.
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O trabalho docente vira uma mercadoria que se compra, um trabalho alienado em que a
profissão fica descaracterizada perdendo-se o sentido dessa atividade. Ou seja, a
atividade profissional fica externa ao trabalhador, e não como algo interno, algo que é
fator de realização pessoal, de ajuda no crescimento intelectual, afetivo, moral, no
crescimento do outro, de desenvolvimento de capacidades humanas. Desse modo, a
bonificação salarial, o pagamento de gratificações, incentiva apenas o interesse
individual pela remuneração, não toca no sentido da atividade profissional docente.
Não impulsiona o professor em aprimorar seus conhecimentos, a autorealizar-se com
seu trabalho, a desejar uma formação mais elevada para aprimorar seu trabalho. Não
ajuda nada na construção de uma escola para formar alunos reflexivos, críticos, prontos
para compreender a realidade e transformá-la.
Não há como não concordar com outras palavras da professora norte-americana
que mencionei no início: vamos deixar as decisões sobre as escolas para os educadores,
não para os políticos ou empresários; que se pague um salário justo aos professores pelo
seu trabalho, não um “salário por mérito” baseado em pontuações de testes
profundamente falhos e não confiáveis.
Concluindo: eu quis trazer nesta palestra a ideia de que a meritocracia –
considerada aqui como pilar da sociedade neoliberal e do sistema de mercado – não está
apenas na contramão da luta pelo piso salarial e pelos planos de carreira. Ela também
está na contramão de uma escola justa e democrática, cujo papel é eliminar a
desigualdade social propiciando conhecimento e desenvolvimento das capacidades
intelectuais de fato a todos os alunos.
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