A MERITOCRACIA NA CONTRAMÃO DA LUTA PELA GARANTIA DO PISO E DA CARREIRA DE PROFESSOR1 José Carlos Libâneo Professor da Pontifícia Universidade de Goiás [email protected] O texto apresenta uma análise política e pedagógica sobre a política da meritocracia, a qualidade do ensino-aprendizagem e o trabalho dos professores. A meritocracia vai na contramão da luta do professorado pelo piso salarial e planos de carreira, bandeira de quase todos os sindicatos de esquerda em nosso país. No entanto, para recusar a meritocracia como critério de remuneração do trabalho dos professores e, em seguida, de ranqueamento das escolas, é preciso recusar, também, o modelo de responsabilização da escola e do professor com base nos testes de desempenho escolar dos alunos, orientação que provem de organismos internacionais, como o Banco Mundial, e que está por detrás do uso do critério da meritocracia em vários Estados brasileiros para a remuneração de professores. Serão abordados aqui os seguintes pontos: a) a subordinação das políticas educacionais brasileiras aos organismos internacionais; b) qual é a lógica da aplicação da meritocracia na política educacional brasileira é a lógica de mercado; c) a perversidade do sistema educacional, do ponto de vista pedagógico, em adotar da escola de resultados e o uso da avaliação de desempenho dos alunos para bonificação dos professores; d) qual é o sentido da profissão docente e o quais devem ser os critérios de avaliação de desempenho dos professores. A subordinação das políticas educacionais brasileiras aos interesses de organismos internacionais Antes de detalhar esse assunto, trago tópicos de uma entrevista e de um livro de uma norte-americana chamada Diane Ravitch. Ela foi secretária-adjunta do Ministério da Educação para implantar a educação por resultados nos Estados Unidos nos governos Clinton e Bush e membro do sistema nacional de avaliação da educação no período de 1997 a 2004. A entrevista foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 2/8/2010 e pode ser localizada na Internet. A professora diz que se arrependeu profundamente de ter colaborado na implantação desse modelo de educação por resultado. Pergunta: Por que a senhora mudou de ideia sobre a reforma educacional americana? DR - Eu apoiei as avaliações, o sistema de accountability (responsabilização de professores e gestores pelo desempenho dos estudantes) (…), mas as evidências acumuladas nesse período sobre os efeitos de todas essas políticas me fizeram repensar. Não podia mais continuar apoiando essas abordagens. O ensino não melhorou e identificamos apenas muitas fraudes no processo. Pergunta: Em sua opinião, o que deu errado com os programas No Child Left Behind e Accountability (Responsabilização)? DR – Como as metas de aprendizagem eram muito altas, os Estados acabaram diminuindo suas exigências e rebaixando seus padrões para tentar atingir as metas; redução ao currículo. (...) A legislação apostou numa estratégia de avaliações e de responsabilização que levou a alguns tipos de trapaças, 1 Texto de palestra apresentado no 9º Congresso Estadual do Sindicato de Trabalhadores em Educação de Goiás (SINTEGO), Goiânia, 2013. 1 manobras para driblar o sistema e outros tipos de esforços duvidosos para alcançar um objetivo que jamais seria atingido. (...) Quando as metas são altas, educadores vão encontrar um jeito de aumentar artificialmente as pontuações. Muitos vão passar horas preparando seus alunos para responderem a esses testes, e os alunos não vão aprender os conteúdos exigidos nas disciplinas, eles vão apenas aprender a fazer essas avaliações. (Desse modo), os professores passam a ensinar a responder testes, a diminuir as exigências, e outras maneiras de melhorar a nota dos estudantes sem, necessariamente, melhorar a educação. (...) A responsabilização dos professores está sendo usada para destruí-los. Pergunta: Quais são os conceitos que devem ser mantidos e quais devem ser revistos? DR – O foco deve ser sempre melhorar a educação e não simplesmente aumentar as pontuações nas provas de avaliação. Ficou claro para nós que elas não são necessariamente a mesma coisa. Educação é muito mais que saber fazer uma prova. (...) Precisamos de jovens que estudaram história, ciência, geografia, matemática, leitura, mas o que estamos formando é uma geração que aprendeu a responder testes de múltipla escolha. Em um dos capítulos do livro da pesquisadora “Vida e morte do grande sistema escolar norte-americano” (Editora Sulina, Brasil), ela escreve sobre as lições aprendidas: “Nossas escolas não melhorarão se nós as introduzirmos no mágico mundo do mercado. Mercados têm ganhadores e perdedores. Nossas escolas não vão melhorar se funcionários indicados se intrometem no território pedagógico e tomam decisões que apropriadamente deveriam ser tomadas por educadores profissionais. Nossas escolas não melhorarão se esperamos delas que atuem como empresas privadas, lucrativas. Escolas não são negócios, elas são um bem público. O objetivo da educação não é produzir altas pontuações, mas educar as crianças para serem pessoas responsáveis, com pensamento bem desenvolvido e bom caráter”. Nosso país tem mania de copiar coisas de fora, e frequentemente acontece que quando políticas educacionais são adotadas aqui elas já estão sendo questionadas lá onde foram gestadas. Penso que ninguém de nós pode ignorar que as políticas educacionais do Brasil são aplicações das recomendações de organismos internacionais, principalmente do Banco Mundial. Desde 1980, junto com o aparecimento das políticas neoliberais, começaram no mundo todo as reformas educacionais para adequar a educação aos interesses econômicos do capitalismo. Elas começam na Inglaterra, avançam para os países europeus e Estados Unidos, depois para a America Latina. No Brasil, a reforma educativa começou no início dos anos 1990, com a elaboração do Plano Decenal de Educação - 1993-2003. O Banco Mundial e outros organismos multilaterais, ligados às oito potências econômicas, definem regras para controlar as relações econômicas e comerciais entre os países e impõem políticas de controle nas políticas econômicas e sociais desses países. O Banco Mundial definiu suas políticas para educação para os países pobres em várias conferências internacionais a partir da Conferência Mundial de Educação para Todos, na Tailândia, em 1990, realizada em co9njunto com outras organizações. Ao longo das décadas, o Banco vem produzindo documentos de diagnósticos e análises sobre as políticas de educação e saúde para países pobres, alguns específicos para o Brasil. É dessas políticas que vem a orientação para implantação de uma escola para proteção social da pobreza, expressa em escola de ciclos, a escola de tempo integral, a progressão continuada, o afrouxamento da avaliação da aprendizagem, a escola do acolhimento e integração social. Não se trata de uma proposta humanitária; é que o aumento da pobreza no mundo não interessa hoje aos interesses globais do capitalismo. Nesse guarda chuva da escola de proteção social para os pobres vem: a) um currículo 2 instrumental, pragmático, visando empregabilidade para os mais pobres; b) uma escola de conteúdos mínimos. c) uma aprendizagem controlada por testes; d) uma escola de acolhimento e integração social para controlar conflitos. A escola que temos no Brasil desde 1990 até hoje é a escola de resultados que oferece um “kit” de habilidades mínimas para a sobrevivência social e necessidades imediatas e mais elementares dos alunos. É uma escola que não tem interesse em prover condições pedagógicas e didáticas para formar a reflexividade, para propiciar o desenvolvimento intelectual, afetivo e moral dos alunos. Seu principal problema é negar validade ao conhecimento universal, é fazer pouco dos conteúdos e limitar o papel da escola ao acolhimento e integração social. Perde-se o sentido de escola, o sentido do pedagógico, que é de formação intelectual, formação afetiva, formação moral. Essa escola há tempos lugar transformou-se num lugar de proteção social para os pobres, para suprir carências de saúde, de lazer, de assistência social, atendendo a ações que deveriam caber a outros setores do estado, da sociedade, das empresas. Os programas sociais via-escola dissimulam as omissões do estado na saúde, na cultura, no lazer, no esporte. Os objetivos do ensino, os conteúdos significativos, o desenvolvimento das capacidades mentais, a ajuda aos alunos no desenvolvimento do seu pensamento e da atitude critica passam ao segundo plano. Na verdade, o currículo de resultados imediatos, a redução do ensino à avaliação por testes, são uma forma simplificada e ligeira de incorporar os pobres à nação como força de trabalho, consumidores e usuários de tecnologias digitais. Estudos relacionados com a internacionalização das políticas educacionais para países emergentes comprovam que as políticas para a escola estão penduradas nas políticas sociais de proteção social à pobreza. Como escreve a pesquisadora Eveline Algebaile, nas atuais políticas públicas, quanto mais aparece o discurso pela escola, pela valorização da escola, mais ela se empobrece como instituição destinada ao ensino, à relação com o conhecimento. Ou seja, não são as políticas educacionais que definem as funções da escola, são as políticas sociais de ações fragmentadas, tópicas, emergenciais, para compensar o pouco investimento em direitos básicos como saúde e educação. A lógica da aplicação da meritocracia na política educacional brasileira é a lógica de mercado É no contexto do que acabamos de expor que devemos analisar a meritocracia. Ela deve ser compreendida no contexto da ideologia neoliberal e da supremacia da lógica do mercado sobre outras lógicas sociais, como a cultura, a comunicação, a justiça etc. E é precisamente esse contexto que caracteriza a ação dos organismos internacionais, principalmente do Banco Mundial, baseadas em políticas educacionais elaboradas por economistas, cujo foco inevitavelmente são os resultados. Não por acaso, nossos dois recentes ministros da educação têm formação em economia e a própria presidente é economista. Uma das características principais da lógica de mercado é vincular o serviço público à obrigação de resultados. O raciocínio é simples: é preciso racionalizar todo tipo de atividade social. Ou seja, essa ação racional consiste em agir de acordo com metas possíveis de serem avaliadas quantitativamente de modo a determinar meios eficazes para atingir essas metas. Temos ai o principio da eficácia. Por exemplo, uma empresa que não visa eficácia ótima, está condenada ao fracasso. Esta eficácia ótima requer das pessoas competência, um saber-fazer, em relação às metas. Dentro da lógica da obrigação de resultados, isso vale para o engenheiro, para o medico, um gestor de 3 vendas, um ortopedista. O profissional tem que conhecer seu trabalho, avaliar os problemas que surgem e definir modos de agir, estratégias, meios, etc. Esta é a lógica do capitalismo, a lógica dos organismos internacionais cujo princípio é a obrigação de resultados. Para isso, são necessárias quatro coisas: previsão de metas quantificáveis, meios adequados, pessoas bem treinadas e avaliação das ações em temos de sucesso ou fracasso. Qual é o motor de todo esse processo? A competição individual, assegurada pelos mecanismos da meritocracia. Ou seja, o principio da meritocracia é a competição, de modo a individualizar as responsabilidades pelo sucesso ou fracasso das metas. O que é o sistema de meritocracia? A palavra meritocracia vem do latim e do grego, meritum e cracia, quer dizer, governo pelo mérito, gestão pelo merecimento da pessoa. Por meio do seu mérito individual, a pessoa pode ganhar mais, subir na profissão, galgar posições hierárquicas na empresa. Por exemplo, os concursos, o vestibular, o ENEM, são formas de seleção meritocráticas. A meritocracia está diretamente vinculada a uma política de gestão baseada em resultados. São gratificados, premiados, os funcionários que atingem os resultados esperados e apresentam aquelas competências, procedimentos e técnicas estabelecidas previamente pelas organizações. No caso da educação, pelo sistema de ensino. Bom diretor, bom professor, bom funcionário, é o que garante os resultados. Os que defendem esse modelo de meritocracia entendem que esse é um procedimento justo, porque avalia os méritos de cada um independentemente de características individuais e sociais. Dizem que a meritocracia é um método de reconhecimento público das habilidades e do esforço de cada um que isso é um procedimento democrático. A obrigação de resultados em educação é a transposição desse raciocínio ao sistema educacional e às escolas. O uso da meritocracia como sistema de remuneração dos professores começa na medição de desempenho de alunos por meio de testes, a partir do que são avaliados os professores e as escolas. Desse modo, a avaliação do professor fica subordinada aos resultados do rendimento dos alunos com base em testes padronizados. A partir daí, instalam-se a responsabilização unilateral de professor e de gestor, a competição entre os professores e ranqueamento entre as escolas e a bonificação salarial pela “produtividade” de cada professor. Com a meritocracia, institui-se a tirania da obrigatoriedade de resultados: pressão em cima dos professores e dirigentes escolares, concorrência e competição entre escolas e professores, recompensa aos bem-sucedidos, punição aos malsucedidos. Os professores que me ouvem sabem como as coisas funcionam nesse modelo: a) O sistema de ensino estabelece uma lista de metas a serem atingidas pelas escolas conforme cada nível de ensino, na forma de competências; b) São elaborados e distribuídos livros didáticos ou apostilas conforme as competências exigidas; c) Professores ”passam” a matéria e preparam os alunos a responder testes; d) São preparadas provas padronizadas a serem aplicadas nas escolas; e) Corrigidas as provas, as escolas serão classificadas de acordo com as médias obtidas; f) Escolas e alguns professores cujos alunos foram bem sucedidos (conforme a média obtida) recebem prêmios em dinheiro, para individualizar as responsabilidades. Ou seja, na cabeça dos economistas a educação custa muito caro, tanto no investimento econômico como no investimento social e humano. A sociedade tem que fazer as contas. Então é preciso tornar as coisas mais eficazes, mais rápidas, mais 4 facilitadas. Então diretores e professores precisam prestar contas do resultado do que fazem. Em resumo, uma política curricular baseada em resultados imediatos visa a responsabilização, escolas e professores são premiados ou punidos em função do seu “mérito” pelo bom ou mau desempenho dos alunos. Nesse sentido, o sistema de ensino não precisa de bons professores, precisa de professores que cumpram metas, seja lá por quais meios. Resumindo, do ponto de vista pedagógico, teremos: um professor que transmite o conteúdo com base numa apostila pronta, responsabilizado pelo êxito ou não dos alunos nos testes; uma escola ocupada em treinar os alunos para os testes; nenhuma atenção à formação e desenvolvimento das capacidades mentais dos alunos; secundarização da formação da personalidade voltada para valores morais solidários e visão critica da sociedade, predominando valores econômicos, individualistas e egoístas. A obrigação de resultados e o prejuízo pedagógico A adoção do modelo de escola por resultados por onde se utiliza a avaliação de desempenho dos alunos para bonificação dos professores é uma perversidade pedagógica. Começamos por perguntar: o que acontecerá com escolas com instalações físicas ruins, sem equipamentos e material didático, professores mal-pagos e sem acompanhamento pedagógico, famílias com baixa escolaridade e baixo nível socioeconômico? Qual será o destino desses alunos? Qual será a motivação e as expectativas que os professores terão sobre seu trabalho e sua profissão? Os problemas que decorrem dessa transposição são muitos. Destaco apenas dois deles. Por um lado, a obrigação de resultados subordina a lógica das práticas educativas à lógica do mercado, à lógica do mundo econômico. Por outro, a educação (como a saúde) lida com seres humanos e esse tipo de atividade parte de outros princípios, que são éticos, políticos, culturais, pedagógicos. O que acontece com as escolas nesse modelo? Na escola de resultados imediatos, o sistema põe todos os alunos no regime de competição, são submetidos às mesmas provas. Então, as diferenças se aprofundam rapidamente. Em pouco tempo, nota-se que alguns alunos são incapazes de competir. Os alunos que fracassam são responsabilizados individualmente pelo seu fracasso, constroem uma imagem de mau aluno, diminui sua autoestima, e são candidatos à indisciplina e à violência. Mas a competição continua. Gradativamente cria-se um abismo entre os “alunos bons” e os “alunos ruins”. Exclusão dos alunos com mais dificuldades, porque em algum momento são empurrados (em algumas escolas são dispensados de fazer a Provinha Brasil).Temos, assim, a falácia e a falência da educação para todos. No entanto, a escola não fabrica automóveis, ela não pode fazer uma linha de montagem... A professora não pode pegar o aluno, montar e desmontar, como uma peça. Ela não pode resolver em uma aula, uma semana, um mês, dificuldades de aprendizagem ou falta de pré-requisitos de aprendizagem. Os resultados do nosso trabalho não são imediatos, levam tempo. O fracasso escolar, como todo professor sabe ou devia saber, é um circulo vicioso que envolve um conjunto de variáveis, a origem social e social, a pobreza, o ambiente familiar, a formação do professor, o salário do professor, as condições de trabalho, etc. Mesmo que uma professora faça o possível para conseguir o progresso escolar do aluno, ela não pode controlar outras variáveis sociais, culturais, individuais, que atuam no processo de ensino aprendizagem. Além do mais, a 5 educação é sempre uma ação coletiva, depende da equipe da escola, a qual, por sua vez, depende de condições de trabalho, de equipamentos, der material didático. As crianças, portanto, trazem para a escola bagagem distinta devido a condições sociais e culturais das famílias. Alem disso, mesmo entre essas crianças de camadas sociais semelhantes há as diferenças individuais. Ou seja, temos as desigualdades sociais que pesam fortemente nas desigualdades escolares, e temos também as diferenças individuais, pois estão atributos dos seres humanos. Também as escolas são muito diferentes entre si. Escolas de periferia, escolas mais retiradas, escolas de municípios menores ou mais afastados carregam consigo um acúmulo de problemas, envolvendo prédio escolar, corpo docente instável, condições de ensino, pobreza das famílias, capital cultural e linguístico requerido para a aprendizagem escolar, terão um impacto das avaliações mais negativas. Então a competição entre escolas e professores, que serve de critério para a meritocracia, é uma fragrante injustiça social. Há que se considerar outro tipo de perversidade em relação aos mais pobres. O governo sabe que há muitas crianças com dificuldades escolares, que tem dificuldades de se adaptar à escola. Mas então o MEC, as Secretarias da Educação transformam desigualdades socioeconômicas em “diferenças individuais”. Então o que o faz o sistema de ensino? Fecha o semestre em meados de novembro, dispensa os alunos com notas boas, e coloca os “diferentes” em aulas de reforço e os empurram para frente e isso é feito em nome do respeito às diferenças individuais. Ou não menos pior: inventa um tipo de escola de tempo integral e um programa de ações socioeducativas para compensar as carências dos “diferentes”. Em resumo, com a aplicação de testes padronizados a uma clientela escolar com profundas diferenças individuais, sociais e culturais, as crianças pobres acabam irremediavelmente injustiçadas. Nesse sentido, a ideia de afixar na porta das escolas uma placa com a nota do IDEB é extremamente infeliz. É um acinte, um pecado ético que se comete contra a pobreza. Pergunta-se: é moralmente legítimo submeter todas as escolas aos mesmos padrões de desempenho, sem levar em conta as características dos alunos e de seu meio, além das diferenças gritantes entre as escolas em relação às suas instalações físicas, preparo do corpo docente, condições socioeconômicas das famílias? Qual a utilidade dos indicadores quantitativos e do IDEB senão impor uma uniformidade de desempenho, sem que o governo possa dar a todas as escolas as condições para chegar aos padrões estabelecidos? Não há uma perversidade em pautar o desempenho das escolas, dos professores e dos alunos a um padrão daquela escola bemsucedida ou do professor bem-sucedido, onde falham a infraestrutura, as condições físicas, materiais e de equipamentos, as condições de remuneração e de trabalho dos professores? Onde ficam as possibilidades de criação, autonomia e inovação dentro da própria escola, em que os professores estão face-a-face com seus alunos? Que meios de trabalho a Secretaria da Educação colocará nas mãos dos professores para que os alunos possam ter mais êxito escolar? A meritocracia é uma solução fácil, alem de perversa. É mais fácil jogar com incentivos financeiros individuais, iludir o professor com um 14º salário ou uma gratificação, do que cuidar da infraestrutura das escolas, de aumentar o piso salarial, dar condições de trabalho. Alem disso, é mais fácil jogar a culpa do sucesso ou do fracasso na escola e no professor do que investir nas condições mínimas de funcionamento das escolas. De que adianta exigir responsabilidade profissional dos professores nos 6 resultados de aprendizagem dos alunos se sua formação é precária e seus salários aviltantes? Qual é o sentido da profissão docente e quais devem ser os critérios de avaliação de desempenho dos professores. Quero concluir com uma observação importante e inevitável. Vamos acabar com toda a avaliação por mérito? Penso que não, o ensino é uma responsabilidade social e ética e isso inclui esperar resultados. E devemos valorizar e dimensionar nosso trabalho dos professores. Qualquer plano de carreira necessita estabelecer critérios de merecimento, ao lado de outros direitos e deveres da carreira. O que temos que pensar é como avaliar o mérito conforme a natureza e as condições peculiares de uma atividade com seres humanos, conforme já mencionado, pois professores e alunos não são objetos econômicos. Dizendo de outra maneira: as escolas precisam proporcionar bons resultados em relação à aprendizagem dos alunos por meio do processo de ensino e aprendizagem. Esses bons resultados são moralmente desejáveis e tem a ver com a redução das desigualdades sociais e dos processos de exclusão escolar e social. Tenho como convicção que a escola com qualidade educativa deve ser aquela que assegura as condições para que todos os alunos se apropriem dos saberes produzidos historicamente e, através deles, possam desenvolver-se cognitivamente, afetivamente, moralmente. Desse modo, a escola promove a justiça social cumprindo sua tarefa básica de planejar e orientar a atividade de aprendizagem dos alunos, tornando-se, com isso, uma das mais importantes instâncias de democratização social e de promoção da inclusão social. E aprendizagem não pode se resumir na oferta de um “kit” de habilidades sem conteúdo. Ela requer uma relação pessoal entre o professor e o aluno para a conquista dp conhecimento e do desenvolvimento das capacidades intelectuais e formação da personalidade. Nesse sentido. escola justa, democracia na escola, justiça social na escola, busca de igualdade social na escola significa, no mínimo, reduzir a diferença de níveis de escolarização e educação entre os grupos sociais. Então, onde estão os méritos do professor? Estão no seu trabalho de favorecer e acompanhar a aprendizagem e o desenvolvimento de todos os alunos, de promover mudanças qualitativas no seu modo de ser e de agir. Cada aluno tem suas características individuais, sociais, culturais. Todo professor sabe que cada aluno carrega consigo as práticas sociais e culturais em que vive. Cada aluno carrega consigo sua identidade cultural e sua subjetividade. Desse modo, tem méritos o professor que sabe identificar necessidades de aprendizagem dos alunos, inclusive aquelas falhas acumuladas em anos anteriores de escolarização, ou a falta de pré-requisitos que os alunos trazem do seu meio social, meio cultural; que trabalha para o desenvolvimento cognitivo, afetivo, moral, estético, de cada aluno no grupo, não para atingir metas quantificáveis; que pode planejar seu trabalho com autonomia, ele próprio formulando suas metas de aprendizagem, considerando a realidade dos seus alunos, da família, da comunidade. Penso que o trabalho docente perde sentido para o professor quando se afasta da natureza e do conteúdo dessa atividade, que é atuar com os conteúdos e a formação dos processos mentais, a atuação do desenvolvimento da personalidade global dos alunos. Se o professor é levado a trabalhar apenas para sobreviver, a ensinar só em função do salário, para receber bonificação, então o sentido de sua atividade profissional se perde. 7 O trabalho docente vira uma mercadoria que se compra, um trabalho alienado em que a profissão fica descaracterizada perdendo-se o sentido dessa atividade. Ou seja, a atividade profissional fica externa ao trabalhador, e não como algo interno, algo que é fator de realização pessoal, de ajuda no crescimento intelectual, afetivo, moral, no crescimento do outro, de desenvolvimento de capacidades humanas. Desse modo, a bonificação salarial, o pagamento de gratificações, incentiva apenas o interesse individual pela remuneração, não toca no sentido da atividade profissional docente. Não impulsiona o professor em aprimorar seus conhecimentos, a autorealizar-se com seu trabalho, a desejar uma formação mais elevada para aprimorar seu trabalho. Não ajuda nada na construção de uma escola para formar alunos reflexivos, críticos, prontos para compreender a realidade e transformá-la. Não há como não concordar com outras palavras da professora norte-americana que mencionei no início: vamos deixar as decisões sobre as escolas para os educadores, não para os políticos ou empresários; que se pague um salário justo aos professores pelo seu trabalho, não um “salário por mérito” baseado em pontuações de testes profundamente falhos e não confiáveis. Concluindo: eu quis trazer nesta palestra a ideia de que a meritocracia – considerada aqui como pilar da sociedade neoliberal e do sistema de mercado – não está apenas na contramão da luta pelo piso salarial e pelos planos de carreira. Ela também está na contramão de uma escola justa e democrática, cujo papel é eliminar a desigualdade social propiciando conhecimento e desenvolvimento das capacidades intelectuais de fato a todos os alunos. 8