Considerações sobre o negro no Brasil César Melo Há muito tempo eu me vejo comprometido com o pensamento de uma sociedade onde o negro seja parte majoritária da construção de si mesmo, da sociedade que deseja e da sua história. Na maioria das vezes em que analisamos o negro e o modo como ele se movimenta na sociedade, prestamos atenção e formulamos nossas opiniões a partir das experiências que temos. Dificilmente fazemos o exercício necessário e mental de analisarmos o que nos trouxe até aqui. Para falar do negro é importante falarmos da história do negro por mais que a sociedade ache que a escravidão não trouxe consequências que ainda nos perseguem. E pior, o processo de apagamento do negro e exclusão que se seguiu após a Lei áurea. Um exemplo disso é o quadro intitulado “A Redenção de Can” onde uma senhora negra ergue as mãos para os céus agradecendo a Deus porque sua filha, já miscigenada, agora tem nos braços o seu neto branco fruto também da miscigenação. No livro “Dicionário Crítico da Pintura no Brasil” (1988) dedicado ao quadro “A Redenção de Cam” (1895), o jornalista e crítico José Roberto Teixeira Leite disse se tratar de uma obra “muitíssimo bem pintada”, mas indubitavelmente “uma das pinturas mais preconceituosas da Escola Brasileira”. A crítica carregada sobre a tela do espanhol Modesto Brocos tem sua razão de existir. A pintura foi feita pouco depois de declarada a abolição da escravidão e da instituição da República no país. No caminho para um suposto progresso, o Brasil adotava a Europa branca como referência. Sua população, no entanto, pouco se assemelhava à europeia. O negro representava, aos olhos de boa parte da intelectualidade, o passado e o atraso. Surgiram no século 19 as chamadas teorias científicas do branqueamento, propondo como solução para o problema, misturar a população negra com a branca, incluindo os imigrantes europeus, geração por geração, até mudar o perfil "racial" do país, de negro para branco. O quadro “A Redenção de Cam”, reverenciado e premiado em sua época, é considerado uma representação visual dessa tese. O médico e diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda apresentou o quadro no Congresso Universal das Raças, realizado em Londres, em 1911, para ilustrar como o Brasil se livraria da chaga do negro na sociedade. Acabar com o negro no Brasil foi politica institucionalizada. Outro exemplo disso é o quadro “O Lavrador de Café” de Cândido Portinari. O pintor faz uma representação do que chamamos de arcaico mítico, Cândido não desejou representar um negro mas, ele desejou representar O Negro icônico, o negro icônico brasileiro. Quem é o negro brasileiro e qual o seu lugar? Como e onde desejamos vê-lo dentro da organização social que queremos? Neste quadro o negro iônico brasileiro é um homem com pés e mãos enormes e seus pés estão plantados nos chão. Ele segura uma enxada com uma das mãos e atrás dele um campo recém derrubado de café é a paisagem. Outro fator importante é o de que os negros mesmo livres ainda eram proibidos de comprar e possuir terras. O direito ao voto veio apenas em 1934. É importante pra mim, sempre fazer uma introdução como essa se quisermos falar sobre o negro de hoje, afinal as consequências deste olhar está ainda estampado na nossa sociedade. Eu defendo politicas públicas, movimentos sociais que exerçam pressão para que haja mudanças no modo como olhamos o negro na sociedade brasileira. Essa sociedade foi constituída a partir de conceitos que caracterizou o negro como um ser menor, antes ainda, uma ser animalizado, um nada, um burro de carga, um acéfalo. E por mais que não aceitemos esses conceitos, eles estão entranhados na nossa sociedade. Porque não aceito a meritocracia como teoria válida para um pais como este resolver este problema? Os exemplos acima são auto explicativos mas, mais que isso, vivemos num mundo corrupto e corruptível, herdamos de Portugal uma política de camaradagens e vantagens familiares, o jeitinho, moramos num pais machista onde a feminicídio acaba de atingir status de epidemia, ou seja, como podemos numa sociedade dessas garantir que todos aqueles que merecem serão premiados justamente e apenas por seus méritos? Como saberemos que no processo de reconhecimento do mérito não teremos um olhar preconceituoso? Hoje, enquanto escrevo esse texto recebo via whattsap uma matéria denunciativa de Belo Horizonte. Em um pais onde o desemprego é a realidade de aproximadamente 12, 5 milhões de brasileiros segundo os dados do IBGE a difícil missão de conseguir um emprego ainda esbarra no racismo dificultando ainda mais a vida do negro no Brasil. Vítima desta situação em particular, uma mulher de 41 anos que trabalha como cuidadora em Belo Horizonte, resolveu procurar a Policia Civil no inicio do mês para denunciar uma caso de preconceito explicito em uma oportunidade de emprego na capital. A descrição exigia que as candidatas não fossem negras ou gordas”. Como exercer a meritocracia num pais assim? Para Tatiana Lotierzo, doutoranda em antropologia social, as teses de embranquecimento presentes não só em “A Redenção de Cam” como em outras obras da época, deixaram uma herança na “constatação de que pessoas de pele mais clara têm acesso a mais privilégios no Brasil, melhores empregos e salários, melhores condições de vida, entre outros aspectos". Segundo a autora, é marcante no Brasil um tipo de racismo que pode escapar às estatísticas e que se expressa em diversas discriminações no cotidiano. “Isso remete ao que pesquisadores tem chamado de branquitude ou branquidade, ou seja, as diferentes formas de percepção do mundo e autopercepção que manifestam a prerrogativa de que ser branco é um privilégio que habilita outros privilégios”. Para Lotierzo, a prevalência dessas percepções e suas implicações “é um dos aspectos mais marcantes do racismo à brasileira, diante do qual se fazem urgentes ações que resultem numa tomada de consciência e na reparação das desigualdades raciais”