Prescrição do dano ao erário: uma leitura do § 5º

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Prescrição do dano ao erário:
uma leitura do § 5º do art. 37
da Constituição
Thiago Igor de Paula Souza
Bacharel em Direito pela UFMG.
Resumo: Sob o crivo do raciocínio crítico, este artigo se baseou em uma
ampla pesquisa doutrinária e jurisprudencial sobre a interpretação do § 5º
do art. 37 da Constituição Federal de 1988. Verificou-se que a doutrina e
a jurisprudência majoritária se inclinam a compreender que o aludido
dispositivo consagra uma pretensão de ressarcimento, a favor da Fazenda
Pública, que não se submete a prazo prescricional. Buscou-se esclarecer os
argumentos que escoram essa interpretação, submetendo-os à análise crítica
em face da dogmática jurídica, mormente à luz do princípio da segurança
jurídica e dos direitos fundamentais à ampla defesa e ao contraditório. Com
o escopo de perseguir uma interpretação constitucionalmente adequada,
propôs-se uma leitura do citado dispositivo tendo-se em conta as demais
normas constitucionais, o caráter excepcional da imprescritibilidade
e a evolução redacional na Assembleia Constituinte. Concluiu-se pela
inadequação da tese da imprescritibilidade, por implicar ofensa aos direitos
fundamentais do contraditório e da ampla defesa, bem como ao princípio da
segurança jurídica.
Palavras-chave: Dano ao erário. Prescrição da pretensão de ressarcimento.
Art. 37, § 5º, da CF/88. Prescritibilidade. Direitos fundamentais. Prazo
prescricional aplicável.
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PRESCRIÇÃO DO DANO AO ERÁRIO:
UMA LEITURA DO § 5º DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO
1 INTRODUÇÃO
Praticado um ato lesivo ao erário, surgem para o Estado certas pretensões, isto é, coloca-se o
Estado em situação de poder exigir do agente que praticou o ilícito certas prestações e, se for o
caso, puni-lo e submetê-lo a procedimentos específicos. Isso se dá porquanto as responsabilidades
nas searas civil, administrativa e penal são autônomas e independentes, podendo se configurar
isolada ou cumulativamente, a depender da pessoa do agente e do tipo de norma que violou: civil,
administrativa e/ou penal.
Passados pouco mais de 20 anos da vigência da Constituição Federal, muita discussão ainda há
sobre a norma constante de seu art. 37, § 5º, abrindo divergência na doutrina e nos tribunais pátrios
em torno da tese de que este dispositivo teria encampado e, ainda, dos seus contornos jurídicos.
De fato, ao estatuir que “A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por
qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações
de ressarcimento”, a redação do art. 37, § 5°, da CF/88, não deixou bem claro seu alcance jurídico,
no que se refere à ressalva na parte final do dispositivo: à prescrição ou, apenas, à legislação que se
enuncia — que estabelecerá tais prazos prescricionais.
Segundo a corrente majoritária, ao ressalvar as ações de ressarcimento, o legislador constituinte, no
referido dispositivo, teria previsto uma hipótese de imprescritibilidade da pretensão reparatória,
quer dizer: poderia o Poder Público, a todo momento, exercer em juízo sua pretensão indenizatória
contra o agente que lesou o tesouro1.
Por outro lado, para aqueles que perfilham a tese antagônica, não haveria ali hipótese de exceção
à prescrição, de modo que, inevitavelmente, estaria também a Fazenda sujeita às consequências
de sua inércia2. Para tanto, interpretam que a ressalva contida no dispositivo constitucional tem
o sentido de desvincular a pretensão punitiva, enunciada na primeira parte do dispositivo, da
pretensão reparatória, enunciada na parte final. Isto é: a ressalva teria o escopo de estabelecer a
autonomia entre os prazos prescricionais de tais pretensões.
Nesse ponto, surge ainda maior polêmica quando se trata de definir qual seria o lapso temporal do
prazo prescricional para o manejo, pelo Poder Público, da ação de ressarcimento contra o agente
que lesou o erário.
Ao interpretar o § 5º do art. 37 da Carta Federal, os defensores da tese da imprescritibilidade da
pretensão de ressarcimento, de um modo geral, baseiam-se numa suposta “clarividência” de sua
redação. Ademais, invocam o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular para
justificar essa necessidade de recomposição do erário, não sujeita a prazo prescricional.
Conquanto alguns doutrinadores de escol apontem que a recomposição do erário, nesses casos,
seja impositiva e imprescritível em razão do princípio da supremacia do interesse público, outras
Em pesquisa doutrinária, revela ser a tese encampada por José dos Santos Carvalho Filho, Manoel Gonçalves Ferreira Filho,
Pinto Ferreira, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, José Afonso da Silva, Alexandre de Moraes, Juarez Freitas, Marino Pazzaglio Filho,
Emerson Garcia, entre outros.
2
Nesse sentido, podemos citar: Luciano Ferraz, Celso Antônio Bandeira de Mello, Emerson Gabardo, Luiz Antônio Ribeiro da Cruz,
Demóstenes Tres Albuquerque, Antônio Roberto Winter de Carvalho.
1
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vozes se insurgem contra este entendimento, buscando fixar prazo prescricional para a pretensão de
ressarcimento, com fundamento nos princípios da segurança jurídica, ampla defesa e contraditório.
Vejamos em suas nuances as duas teses.
1.1 O entendimento de José Afonso da Silva: a prescrição apenas da apuração e da
punição do ilícito, mas não da respectiva pretensão reparatória
Segundo o constitucionalista, apenas a apuração e a punição do ilícito prescreverão, mas não o
direito da Administração de perseguir o ressarcimento do prejuízo causado pelo agente ao erário
(2008, p. 673).
Apesar de se alinhar àqueles que defendem a imprescritibilidade da ação de ressarcimento, o autor
demonstra claro incômodo nesta posição, ao asseverar que: “É uma ressalva constitucional e, pois,
inafastável, mas, por certo, destoante dos princípios jurídicos, que não socorrem quem fica inerte
(dormientibus non sucurrit ius)” (2008, p. 673).
Ao que tudo indica, o professor da Universidade do Largo de São Francisco ressaltou, em sua tarefa
hermenêutica, a literalidade do dispositivo, sem, contudo, perder de vista o princípio da unidade da
Constituição, orientador da interpretação constitucional, ao sublinhar que esta imprescritibilidade
é destoante dos princípios jurídicos, que não socorrem a quem fica inerte.
É notório que o tempo tem influência direta no direito de defesa daquele que se vê acionado
judicialmente para ressarcir o Estado. Seria tarefa hercúlea exigir daquele que trava relações
jurídicas com o Estado que mantenha em sua guarda todos os elementos probatórios capazes de
realizar seu direito fundamental à ampla defesa. Essa, talvez, seja a razão que levou José Afonso da
Silva a afirmar que a apuração do ilícito prescreve.
Se a apuração do ilícito prescreve, como seria imprescritível a pretensão de ressarcimento deste,
uma vez prescrita aquela? Vê-se que a posição do constitucionalista não se sustenta, já que o
ressarcimento pressupõe a apuração do ilícito3. Ainda que se cogite que o ilícito seja apurado
em tempo hábil, não há razão para justificar que o Estado, já o tendo apurado, não promova o
respectivo ressarcimento e essa situação se prolongue indefinidamente, ao arrepio da eficiência, um
dos princípios norteadores da administração pública.
1.2 A hipótese clara de imprescritibilidade prevista no § 5º, art. 37, CF/88 — a
interpretação de Raquel Melo Urbano de Carvalho
Segundo a doutrina de Raquel Melo Urbano de Carvalho (2009, p. 339), malgrado existirem
posições doutrinárias que sustentem a prescritibilidade das ações de ressarcimento, com
3
São as percucientes observações de Luciano Ferraz (2010).
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José Afonso da Silva (2008, p. 673), após identificar o princípio da prescritibilidade como um
princípio geral de Direito — sendo, portanto, a regra em nosso ordenamento jurídico —, consigna
que há uma ressalva constante do § 5º do art. 37 da Carta Federal de 1988.
PRESCRIÇÃO DO DANO AO ERÁRIO:
UMA LEITURA DO § 5º DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO
fundamento, sobretudo, no princípio da segurança jurídica, é necessário que este seja ponderado
com as demais normas do ordenamento, em especial as de status constitucional, como a
juridicidade e a supremacia do interesse público.
Preleciona a jurista mineira que a regra da prescritibilidade das pretensões admite exceção e que
uma delas estaria prevista justamente no § 5º do art. 37 de nossa Carta Federal. Segundo a autora,
“uma simples leitura do dispositivo deixa claro a imprescritibilidade que decorre da ressalva às
ações de ressarcimento da lei futura que estabelecerá prazos de prescrição para ilícitos praticados
por agentes” (2009, p. 343).
Em que pese o entendimento da autora, consideramos que da redação do dispositivo em questão
não se extrai uma só exegese. Ao contrário, a redação do § 5º do art. 37 da CF/88 admite, a nosso
ver, dois sentidos: a) as ações de ressarcimento estão ressalvadas da prescrição (são imprescritíveis);
b) as ações de ressarcimento estão ressalvadas da futura lei que estabelecerá os prazos prescricionais
para ilícitos que causem prejuízo ao erário. E, neste último caso, parece-nos significar que o
constituinte apenas quis afirmar que há prazo prescricional para a ação de ressarcimento e que
este não precisa coincidir — por ser autônomo — com aquele que a futura lei enunciará (prazo
prescricional para a pretensão punitiva).
Cabe indagar: a violação ao patrimônio público é mais grave que a violação ao princípio da
moralidade administrativa, a justificar que somente a primeira seja imprescritível?
Não há dúvidas sobre a relevância da necessidade de proteção do patrimônio público, ainda mais
se considerarmos sua aparente escassez frente às necessidades sociais. Porém, ao buscarmos
exceções constitucionais ao princípio da prescritibilidade, previstas, por exemplo, nos incisos XLII
e XLIV do art. 5º da Constituição, nos deparamos com redações expressas que trazem consigo bens
jurídicos que visam tutelar a dignidade da pessoa humana e a integridade do Estado brasileiro,
respectivamente.
Assim, comungamos a compreensão de Clito Fornaciari Júnior, para quem:
Os valores jurídicos aqui comparados são muito diferentes, hierarquicamente. Protege-se
o próprio Estado e a Democracia quando se permite alcançar a qualquer tempo a ação de
quem contra eles atente, e, quando se apresenta a repulsa ao racismo, valoriza-se um dos
objetivos fundamentais da República e um dos princípios, que, no âmbito internacional,
regem a atuação do Brasil. Dessa forma, transparece não ser razoável sustentar-se a
imprescritibilidade também da mera ação de ressarcimento, que longe está de justificar tal
tratamento (FORNACIARI JÚNIOR, 2005, p. 33).
1.3 A imprescritibilidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal
No Mandado de Segurança n. 26.210-9/DF, julgado em 04/09/2008, o STF4, através de seu Tribunal
Pleno, enfrentou pela primeira e única vez a questão da prescrição da ação de ressarcimento
promovida pelo Estado contra o particular.
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STF. Tribunal Pleno. Mandado de Segurança n. 26.210-9/DF. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Julgado em: 4 set. 2008.
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Tratava-se de um writ em que se discutia o ressarcimento ao erário devido a suposto dano ocorrido
há cerca de sete anos do seu questionamento judicial, no qual foi aventada a prescrição da pretensão
reparatória.
O Ministro Lewandowski, então relator, concluiu pela imprescritibilidade da ação de ressarcimento
invocando a doutrina de José Afonso da Silva, exatamente na passagem anteriormente analisada.
Ainda neste julgamento, o Ministro Cezar Peluso conferiu ao § 5º do art. 37 da CF/88, uma terceira
interpretação. Segundo o preclaro jurista, tal dispositivo traria mesmo uma exceção ao princípio
da prescritibilidade, porém apenas quando se tratar de ação de ressarcimento de danos oriundos
de ilícitos criminais.
Apesar de o julgamento do writ em comento ter-se dado pelo Tribunal Pleno, apenas cinco
ministros proferiram votos, dos quais um já não compõe aquela Corte (Ministro Eros Grau) e dois
aposentar-se-ão no ano de 2012 (Ministro Ayres Brito e Ministro Cezar Peluso). Assim, talvez a
tese que prevaleceu naquele julgamento não seja ratificada em um novo pronunciamento daquela
Corte, seja porque sua composição tem-se alterado, seja porque na ocasião do julgado em comento
apenas cinco ministros votaram.
Ademais, frise-se que o Mandado de Segurança n. 26.210-9/DF é um importante precedente para
sustentar a corrente da imprescritibilidade das ações de ressarcimento, porém, até o estágio atual, é
temeroso falar que a jurisprudência do Pretório Excelso neste sentido se posiciona5.
1.4 Controvérsia no Superior Tribunal de Justiça
Analisando a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), vê-se que, diferentemente
do Supremo, não foram poucas as ocasiões em que aquela Corte se deparou com a querela da
interpretação do § 5º do art. 37 da Constituição Federal.
De fato, no âmbito do STJ, não há jurisprudência firmada sobre o assunto. Em pesquisa ao
repertório jurisprudencial desta Corte, é possível identificar decisões que se posicionam pela
imprescritibilidade6, bem como pela prescritibilidade, divergindo, neste caso, quanto ao prazo
prescricional aplicável à espécie: a) Código Civil7; b) art. 21 da Lei de Ação Popular8; c) art. 23 da
Lei de Improbidade9.
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São também as observações de Luiz Cruz (CRUZ, Luiz Antônio Ribeiro da. Ação de Ressarcimento por Dano ao Erário: Por
que imprescritível?) Brasília/Varginha, jun. 2010). Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/48031026/Acao-deRessarcimento-por-dano-ao-erario-Porque-nao-e-imprescritivel>. Acesso em: 6 abr. 2012.
Nesse sentido, por todos, cf.: Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 1.224.532/SP, Relator: Min. Hamilton Carvalhido.
DJe, de 10/02/2011.
Veja, por exemplo: Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 993.527/SC, Relator: Min. Castro Meira. DJe, de 11/09/2008.
Vide Recurso Especial n. 727.131/SP, Relator: Min. Luiz Fux, DJe, de 23/04/2008.
É o decidido no Recurso Especial n. 1.063.338/SP, Min. Relator: Francisco Falcão. DJe, de 15/09/2008.
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Abrindo divergência, o Ministro Marco Aurélio de Mello, em defesa da tese da prescritibilidade,
concluiu que a ressalva do art. 37, § 5º, da CF/88, não estabelece a imprescritibilidade das ações
reparatórias, mas sim remete o prazo prescricional à legislação pertinente.
PRESCRIÇÃO DO DANO AO ERÁRIO:
UMA LEITURA DO § 5º DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO
Vê-se, portanto, que o STJ está longe de uma posição uniforme sobre o tema. Porém, é de se
reconhecer que seus julgados mais recentes (sobretudo após o mencionado pronunciamento
do STF no Mandado de Segurança n. 26.210-9/DF, julgado em 04/09/2008) adotam a tese da
imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento.
Contudo, é notória a carência de fundamentação desses julgados quanto à tese que encampam.
Quando não se limitam a fundamentar sua posição numa suposta obviedade (interpretação
literal/gramatical) da redação do § 5º do art. 37 da CF/88, citam precedentes da própria Corte
como se jurisprudência firmada fossem, embora haja, no acervo dos julgados do STJ, uma imensa
divergência sobre o tema.
1.5 A matéria no âmbito do Tribunal de Contas da União
Examinando a coletânea de julgados do Tribunal de Contas da União (TCU), vê-se que, também
lá, a interpretação do dispositivo em comento não é pacífica. Pode-se dizer que, no repertório
das decisões da Corte de Contas, são perceptíveis duas principais orientações: por um lado, há o
posicionamento pela imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento por dano ao erário10; por
outro, considera-se prescritível tal pretensão, aplicando-se o prazo do Código Civil11.
Buscando dirimir a controvérsia no âmbito do TCU, foi instaurado incidente de uniformização
de jurisprudência, julgado na Sessão Plenária de 26/11/2008, fixando, “[...] no âmbito desta Corte,
que o art. 37 da Constituição Federal conduz ao entendimento de que as ações de ressarcimento
movidas pelo Estado contra os agentes causadores de danos ao erário são imprescritíveis [...]”12,
sobretudo sob fundamento de que a matéria era exclusivamente de interpretação de dispositivo
constitucional e, assim, afeta ao STF, que já havia se manifestado pela imprescritibilidade no
Mandado de Segurança n. 26.210-9/DF, alhures analisado.
Um caso, porém, colhido desse repertório, muito chama a atenção. Trata-se de processo instaurado
contra ex-bolsista do CNPq que buscava o ressarcimento ao erário em virtude de supostas
irregularidades, depois de mais de dez anos do encerramento dos repasses, quando foi constituída
tomada de contas especial com vistas ao ressarcimento dos valores repassados13.
Muito embora esse caso seja posterior ao aludido incidente de uniformização de jurisprudência
que, como vimos, assentou a tese da imprescritibilidade da pretensão reparatória no âmbito da
Corte de Contas da União, reconheceu-se que:
O transcurso de longo período de tempo compromete a efetiva prática das garantias
constitucionais mencionadas [contraditório e ampla defesa], pois influi negativamente
na qualidade da defesa, na validade do processo, na segurança jurídica [...] neste caso
concreto, os princípios do contraditório, da ampla defesa e da segurança jurídica devem
Encampando tais entendimentos, vide o acórdão: Ação Civil n. 4106-27/09-1, Sessão de 11/08/09, Relator: Min. José Jorge.
Nesse sentido, confira os julgados do TCU: Ação Civil n. 0547-05/08-1, Sessão de 04/03/08, Relator: Min. Marcos Vinicios Vilaça;
Ação Civil n. 2645-30/07-1, Sessão de 04/09/07, Relator: Min. Valmir Campelo; Ação Civil n. 1231-16/07-2, Sessão de 22/05/07.
12
Acórdão n. 2709/2008 — Plenário, Sessão de 26/11/2008, Relator: Min. Benjamin Zymler.
13
Ação Civil n. 5001-31/10-2, Sessão de 31/08/10, Relator: Min. Raimundo Carreiro.
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prevalecer sobre o princípio da imprescritibilidade das ações de ressarcimento movidas
pelo Estado contra os agentes causadores de danos ao erário (TCU. Ação Civil n. 500131/10-2. Sessão de 31/08/10, voto do Ministro Rel. Raimundo Carreiro).
Exemplo disso é um procedimento de tomada de contas no qual cumpre àquele que recebeu verba
pública demonstrar a sua aplicação escorreita. É notório que um administrador público, durante
seu mandato, ordena uma infinidade de despesas para atender as necessidades da sua comunidade.
Questionado a qualquer momento (20, 30 ou 50 anos após, por exemplo) nesta tomada de contas,
o administrador tem de justificar cada uma das despesas que autorizou, sob pena de ver suas contas
rejeitadas e ressarcir o erário.
Não nos parece seja lícito afirmar que um grande lapso temporal entre o fato gerador (ordenar
despesas) e a apuração pelo Tribunal de Contas não possa mitigar os direitos (fundamentais, digase de passagem) de defesa e de contraditório do administrador. Ao revés, soa um tanto quanto
difícil comprovar a aplicação de cada uma das verbas públicas após considerável interregno14.
2 O DIREITO DE DEFESA COMO ÓBICE À IMPRESCRITIBILIDADE — A LIÇÃO
DE CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO
Mudando o entendimento encampado até a 26ª Edição (jan./2009) de seu Curso, sobretudo
após a exposição do Professor Emerson Gabardo, proferida no VI Congresso Mineiro de Direito
Administrativo, em maio de 2009, em Belo Horizonte/MG, Bandeira de Mello (2011) registra
que a tese da imprescritibilidade esbarra no direito de defesa, que fica mitigado (ou, até mesmo
eliminado).
De fato, segundo o autor, o homem médio não guarda, além de um prazo razoável, por via de regra
não demasiadamente longo, documentação que seria necessária à sua defesa em juízo. Por outro
lado, vislumbra que o Poder Público pode manter em seus arquivos, por longos períodos de tempo,
elementos para manejar suas acusações a terceiros, que remanesceriam desarmados perante tais
imputações.
Acresce aos seus argumentos abonadores da prescrição o fato de a Constituição ser expressa
nos casos de imprescritibilidade (art. 5º, XLII e XLIV), que sempre tratam de matéria penal,
e, por isso, não se eternizam, por não passar de uma vida. Quer dizer: muito embora sejam
imprescritíveis estes crimes, a sua apuração e punição estão jungidos à pessoa que os praticou,
não se transmitindo a herdeiros, como parece resultar da tese da imprescritibilidade da pretensão
reparatória.
14
Nesse sentido, o § 4º, do art. 5º da Instrução Normativa TCU n. 56/2007 impõe que, salvo determinação em contrário do TCU,
fica dispensada a instauração de tomada de contas especial após transcorridos dez anos desde o fato gerador. Vê-se, portanto, que
esta instrução normativa também considera o tempo como fator relevante à apuração de ilícitos.
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Revista TCEMG|out.|nov.|dez.|2012| DOUTRINA
Este aresto traz à baila uma conclusão inafastável: adotar a corrente de imprescritibilidade, em
diversas ocasiões, implicaria mitigar direitos fundamentais, como o direito ao contraditório e à
ampla defesa.
PRESCRIÇÃO DO DANO AO ERÁRIO:
UMA LEITURA DO § 5º DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO
Dessa forma, interpreta o § 5º do art. 37 da Constituição Federal como que tivesse o escopo de
desatrelar o prazo prescricional do ilícito propriamente (penal ou administrativo) dos prazos das
ações de ressarcimento. Ou seja: não haveria necessidade de coincidirem, por serem autônomos.
Por último, entende que o prazo prescricional da ação de ressarcimento seria, então, igual ao prazo
decadencial que tem a Administração Pública para invalidar os atos administrativos eivados de
vício: cinco anos, ausente a má-fé, e dez anos, presente esta — sempre contados do término do
mandato do governante em cuja gestão o ato lesivo foi praticado.
2.1 A prescritibilidade como exigência da segurança jurídica — Luciano de Araújo
Ferraz
Luciano Ferraz, em artigo direcionado ao estudo da interpretação do § 5º do art. 37 da Constituição
Federal, traz à discussão o irrespondível argumento de que reconhecer a imprescritibilidade das
ações de ressarcimento implicaria abranger todas as ações cujo pleito seja a reparação em favor
da Fazenda Pública. Desse modo, seriam imprescritíveis as ações de ressarcimento oriundas de
ilícitos penais, tributários, administrativos e de improbidade — porquanto não há especificação da
natureza do ilícito no aludido dispositivo constitucional.
Entendendo que esse posicionamento é violador dos princípios da segurança jurídica e do devido
processo legal (art. 5º, LV, CF/88), o autor esclarece:
[...] a regra geral num Estado de Direito é o reconhecimento da prescritibilidade (das
pretensões) como inerência à estabilização das relações jurídicas — e em obséquio ao
princípio da segurança jurídica —, se do dispositivo constitucional (art. 37, § 5º) se puder
extrair interpretação que prestigie dita estabilização, esta haverá de ser a exegese única a
ser perseguida pelo intérprete (FERRAZ, 2010, p. 19).
Desta forma, sugere o autor que o § 5º do art. 37 da CF/88 seja interpretado em conjunto com
o § 4º deste mesmo artigo15, indicando que os ilícitos aludidos naquele dispositivo (§ 5º) sejam
exclusivamente ilícitos com o plus da improbidade, excluindo, assim, da incidência do § 5º, os
demais ilícitos: civis, tributários, administrativos sem improbidade — os quais seguirão os prazos
prescricionais previstos em leis infraconstitucionais.
Quanto à ressalva de que o § 5º do art. 37 da Constituição contempla, entende o douto jurista
que ela se refere não à Lei de Improbidade, mas, sim ao prazo nela previsto. São suas palavras: “as
ações de ressarcimento decorrentes de atos de improbidade não iniciam seu prazo de prescrição,
enquanto não transcorrido o prazo previsto no art. 23 da Lei de Improbidade Administrativa”
(FERRAZ, 2010, p. 21). Quer dizer: o termo a quo da prescrição da pretensão de ressarcimento
decorrente de atos de improbidade só teria início após o termo ad quem do prazo prescricional
previsto no art. 23 da Lei de Improbidade, referente às sanções, e seria correspondente a cinco anos,
por ser prazo típico do direito público.
15
Também entendendo que o § 5º do art. 37 da CF/88 deve ser lido e interpretado em conexão com o § 4º do mesmo artigo, cf.
COUTO E SILVA, Almiro do. Notas sobre o dano moral no Direito Administrativo. Revista eletrônica de Direito do Estado (REDE).
Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 18, abr./jul. 2009. Disponível em: <www.direitodoestado.com.br>. Acesso em:
15 maio 2012.
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Conclui, assim, que essa interpretação
[...] concilia o princípio da segurança jurídica e a necessidade de prazos prescricionais
maiores para o ressarcimento decorrente de atos de improbidade administrativa, ao
mesmo tempo em que prestigia a prescritibilidade das sanções típicas e das ações de
ressarcimento (FERRAZ, 2010, p. 22).
Durante a Assembleia Constituinte, a redação do atual § 5º do art. 37 da Constituição Federal sofreu
diversas alterações, pelo que julgamos profícua a análise dos documentos legislativos representativos
desta evolução16. Em um primeiro momento desta evolução, encontramos a proposta de emenda ao
anteprojeto do relator da subcomissão n. 36, de 18/05/1987, que sugeria a seguinte redação ao § 5º
do art. 37 da Constituição Federal: “Art. 4º. São imprescritíveis os ilícitos praticados por qualquer
agente, servidor público ou não, que causem prejuízo ao erário público.”
Conforme se extrai deste excerto, o art. 4º desta proposta de emenda previa claramente a
imprescritibilidade dos ilícitos praticados por agentes públicos que lesionassem os cofres públicos,
independentemente de sua natureza: penal, administrativa ou civil (incluídas aqui, por óbvio, as
ações de ressarcimento do erário).
Várias outras emendas a anteprojetos foram sucessivamente apresentadas e rejeitadas, entre as
quais merece referência a de setembro de 1987, com redação muito próxima ao texto atual:
Art. 43. [...] § 4º. A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por
qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas
ações de ressarcimento, que serão imprescritíveis. (grifo nosso)
Cotejando esta proposta de emenda com a anterior (maio de 1987), percebe-se que a
imprescritibilidade que antes se referia aos ilícitos penais, administrativos e cíveis, agora, dizia
respeito somente à pretensão reparatória.
Em seguida, na evolução redacional do dispositivo em comento, retirou-se a expressão “que serão
imprescritíveis”, ou seja, mantiveram-se os mesmos termos da emenda de setembro de 1987, porém
retirou-se a parte que tornava as ações de ressarcimento imprescritíveis.
Desta forma, é de se ver que, no processo de elaboração da Constituição, a regra era a
imprescritibilidade de ilícitos de todas as espécies, o que, depois, foi limitada às ações de
ressarcimento e veio a ser, ao final, também, eliminada. Ou seja: percebe-se que no processo
constituinte da Carta de 1988 cogitou-se da imprescritibilidade das ações de ressarcimento dos
danos ao erário, mas que, como visto, o constituinte originário não a adotou. Trilhando essa
mesma linha, Almiro do Couto e Silva observa que, quando se aboliu a imprescritibilidade
dos ilícitos praticados em detrimento do patrimônio público, também foi suprimida, no texto
16
Baseamo-nos na abordagem de Sérgio de Andréa Ferreira, a quem conferimos os devidos créditos pela exposição (FERREIRA,
1991, p. 312-314).
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3 NOSSO ENTENDIMENTO SOBRE A PARTE FINAL DO ART. 37, § 5º, DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
PRESCRIÇÃO DO DANO AO ERÁRIO:
UMA LEITURA DO § 5º DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO
definitivo da Carta Federal, a imprescritibilidade das ações de ressarcimento, concluindo,
então:
Daí porque a locução ‘ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento, que serão
imprescritíveis’, que se lia na última versão do Projeto da Constituição, foi transposta para
o § 5º sem as três palavras finais, ‘que serão imprescritíveis’ [...] (COUTO E SILVA, 2005,
p. 45).
A evolução redacional do § 5º do art. 37 da CF/88 nos demonstra que o constituinte originário
poderia ter afirmado textualmente que as ações de ressarcimento são imprescritíveis, como, de
resto, fez nas já citadas hipóteses do art. 5º, XLII e XLIV. No entanto, não o fez. Se foi suprimida
exatamente a passagem que teria consagrado a imprescritibilidade, é de se reconhecer que esta não
foi a vontade política (e tese) que a Carta Federal consagrou.
3.1 Princípios constitucionais em questão
Em verdade, entendemos que a discussão sobre qual das teses (prescritibilidade ou
imprescritibilidade) que se haveria consagrado no § 5º do art. 37 da Carta de 1988 exige sejam
debatidos os princípios constitucionais que, necessariamente, estão implicados nesta questão, em
busca de uma interpretação constitucionalmente adequada.
Por um lado, sustenta-se que a ressalva contida na parte final do § 5º do art. 37 da Constituição
Federal é expressa e taxativa em eximir da prescrição a pretensão de ressarcimento ao erário.
Escora este entendimento a necessidade de recomposição do tesouro, materializando o princípio
constitucional da supremacia do interesse público sobre o interesse particular. Por outro, sustentase que a mencionada ressalva no aludido dispositivo fez-se apenas com o intuito de frisar que a
prescrição relativa à pretensão de ressarcimento há de ser observada, mas sua regulação mediante
lei não deverá necessariamente coincidir com a regulação legal que se der à prescrição da pretensão
punitiva. Socorrem a este entendimento os princípios constitucionais da segurança jurídica, da
ampla defesa e do contraditório.
3.1.1 Do princípio da segurança jurídica
A tese da prescritibilidade homenageia o princípio constitucional implícito da segurança jurídica,
que é da essência do Estado de Direito.
Considerar o princípio constitucional da segurança jurídica como da essência do Estado de Direito
implica reconhecer sua posição fundamental na tábua axiológica de nossa Carta Constitucional,
a informar todo o sistema interpretativo desta, fixando que a segurança jurídica seja a regra e
que, para desafiá-la, impõe-se que as exceções sejam expressas, nítidas, claras, não oriundas de
interpretações extensivas.
Como se percebe, a doutrina identifica no princípio da segurança jurídica (lato sensu) dois polos,
um de natureza objetiva e o outro, subjetiva. O polo de natureza objetiva diz respeito aos limites
à retroatividade dos atos estatais, materializando-se, nos institutos do direito adquirido, ato
98
jurídico perfeito e coisa julgada — denominado por alguns “princípio da segurança jurídica stricto
sensu”. Por sua vez, o polo de natureza subjetiva concerne à proteção à confiança das pessoas nos
atos, procedimentos e condutas do Estado, nos diferentes aspectos de sua atuação — nominado
“princípio da proteção à confiança”.
Ao encampar a tese da prescritibilidade, é certo de que não se está defendendo o enriquecimento
ilícito daquele que, embebido de má-fé, cause dano ao erário. O foco é outro. O princípio da proteção
à confiança tutela aquele que, atuando de boa-fé, se vê surpreendido, muitos anos após, por uma
ação de ressarcimento, que não fora ajuizada em tempo razoável, imputando-lhe um débito por
danos ao tesouro que supostamente teria dado causa.
Outrossim, é de se reconhecer que, em situações em que se passou largo período de tempo entre
o fato que causou dano ao erário e a pretensão da Administração de ser ressarcida, poderá ficar
prejudicada a apuração do ilícito e, com isso, a discussão sobre a má-fé do agente, presumindo-se,
então, a sua boa-fé. É neste ponto, de presunção da boa-fé, que o princípio da proteção à confiança
deverá ter incidência para proteger a situação em análise. É que, conforme salientou José Afonso
da Silva (2008, p. 673), a apuração do ilícito não está imune à prescrição.
A razão é simples: a inércia da Administração cria uma legítima expectativa no acusado de que sua
atuação se deu conforme os ditames legais, e a perseguição do ressarcimento, muitos anos após o
fato (por omissão da Administração), pode mitigar alguns direitos fundamentais do acusado, entre
eles, a ampla defesa e o contraditório.
Igualmente, é de se observar que o princípio da segurança jurídica stricto sensu (em seu aspecto
objetivo) nos traz uma importante conclusão. Como já salientado, este princípio diz respeito,
fundamentalmente, à irretroatividade dos atos estatais.
Nesse sentido, uma vez instaurado o governo das leis, é necessário que, para serem observadas
e aplicadas, sejam conhecidas de antemão. Assim, “norma que projeta seus efeitos sobre fatos
pretéritos implicaria um atestado de má-fé do Estado, uma burla ao sistema jurídico, vez que
qualificaria condutas que se materializaram sem tê-la em conta” (VALIM, 2010, p. 95), sobretudo em
se tratando de norma que pretenda restringir retroativamente a esfera jurídica dos administrados.
Indaga-se: como, então, conciliar as mudanças jurisprudenciais com o aludido princípio?
Enfrentando a questão, o mestre administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello adverte que
somente depois de “prévia e pública notícia” é que a nova interpretação poderá incidir sobre as
situações de fato, ou seja, nova interpretação que restrinja a esfera jurídica dos administrados só
99
Revista TCEMG|out.|nov.|dez.|2012| DOUTRINA
O princípio da proteção à confiança, como bem acentuou Canotilho, diz respeito à “calculabilidade
e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos do ato” (2000, p. 256). Ou seja, este
princípio tutela a legítima expectativa do administrado em relação aos atos estatais aos quais está
sujeito, impondo limitações ao Estado “[...] na liberdade de alterar sua conduta e de modificar atos
que produziram vantagens para os destinatários, mesmo quando ilegais [...]” (COUTO E SILVA,
2005, p. 5).
PRESCRIÇÃO DO DANO AO ERÁRIO:
UMA LEITURA DO § 5º DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO
pode ser aplicada a fatos ulteriores à pública notícia da alteração (BANDEIRA DE MELLO apud
VALIM, 2010, p.98)17.
Nesse ponto, vem à tona o que nos interessa para este artigo: tendo em vista que o STF só veio a
julgar, pela primeira vez, em 04/09/2008, no Mandado de Segurança n. 26.210-DF, questão que
dizia respeito às ações de ressarcimento, previstas no dispositivo do § 5º do art. 37 da Carta Federal,
e que, até então, existia ampla divergência doutrinária e jurisprudencial (como já analisado),
questiona-se: violaria a segurança jurídica (em seu aspecto objetivo) a aplicação retroativa da tese
da imprescritibilidade das ações de ressarcimento fixada naquele precedente?
No particular, não há como negar que este precedente (MS n. 26.210-9/DF) consigna uma
interpretação mais gravosa ao administrado, que não conhecia dos efeitos de seus próprios atos
quando da sua prática.
Desta feita, a prevalecer a vertente da imprescritibilidade das ações de ressarcimento por dano
ao erário, é de se esperar, no mínimo, uma aplicação ex nunc desta interpretação, após ampla
divulgação, para alcançar apenas os fatos que lhe sejam posteriores, resguardando, assim, o
princípio da segurança jurídica em sua vertente objetiva.
3.1.2 Do direito à ampla defesa e ao contraditório
O processo e o procedimento são instrumentos de composição de conflitos, pacificação social, que
se realizam sob o manto do contraditório, que, de resto, lhes é pressuposto de validade.
Como salienta autorizada doutrina (MARINONI, 1999, p. 255), a democracia no processo recebe
o nome de contraditório, isto é, o contraditório possibilita a participação das partes, legitimando o
exercício democrático do poder jurisdicional. Neste sentido, o princípio do contraditório pode ser
decomposto em duas garantias: a) participação — isto é, audiência, comunicação, ciência (vertente
formal); b) possibilidade de influência na decisão (vertente material).
Na vertente formal, o contraditório se dá através da participação, isto é, garante-se à parte o direito
de ser ouvido, de participar no processo, de ser comunicado dos atos processuais, de poder-se
manifestar no processo ou procedimento. Esta é a concepção de grande parte da doutrina do
instituto do contraditório, como um todo.
Porém, a moderna doutrina processualista aponta que a vertente formal do princípio do contraditório
é insuficiente para a realização plena desta garantia fundamental. É neste sentido, então, que Fredie
Didier Jr. (2009) aponta a vertente material desta garantia, qual seja, o denominado “poder de
influência”. Segundo entende o jurista baiano:
Se não for conferida a possibilidade de a parte influenciar a decisão do magistrado — e
isso é poder de influência, poder de interferir na decisão do magistrado, interferir com
argumentos, interferir com ideias, com fatos novos, com argumentos jurídicos novos; se
17
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. A estabilidade dos atos administrativos. apud VALIM, Rafael, O princípio da segurança
jurídica no direito administrativo brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2010, p. 98. (Coleção Temas de Direito Administrativo, n. 23).
100
ela não puder fazer isso, a garantia do contraditório estará ferida. É fundamental perceber
isso: o contraditório não se implementa, pura e simplesmente, com a ouvida, com a
participação; exige-se a participação com a possibilidade, conferida à parte, de influenciar
no conteúdo da decisão (DIDIER JR., 2009, p. 57).
É sabido que o passar do tempo influi negativamente na qualidade do direito de defesa, seja
porque os documentos que se prestariam ao pleno exercício deste direito não são ordinariamente
guardados por um tempo além do razoável, seja tendo-se em conta a infinidade de atos praticados
pelos agentes e pela Administração Pública. Discordar neste ponto seria equivalente a afirmar que
é tão difícil ao agente defender-se de um fato ocorrido recentemente quanto o é defender-se de fato
que ocorreu há 20, 30 anos, etc., o que seria, a nosso ver, desarrazoado. Outrossim, também não
seria proporcional impor ao Estado, com espeque no § 2º do art. 216 da Constituição Federal, o
ônus de manter todos estes documentos, muito embora possa tê-lo feito, difusamente, imputando
pontuais débitos a alguns agentes.
Com fundamento nas já aludidas lições de Celso Antônio Bandeira de Mello (2011), não restam
dúvidas de que a tese da imprescritibilidade esbarra no direito de defesa (e contraditório,
acrescentamos) do administrado, que fica mitigado ou, até mesmo, eliminado.
Questiona-se então: como exercer os direitos fundamentais ao contraditório, sobretudo em sua
vertente material (“poder de influência”), e à ampla defesa na ocasião de fatos ocorridos em
passados remotos?
Vê-se que o poder de influenciar, ínsito ao direito do contraditório — aquele, sem este não é
exercido em sua plenitude —, pode ficar mitigado ou, até mesmo, eliminado. É perceptível que
o agente público poderá participar do processo, ser ouvido, se manifestar (vertente formal do
contraditório). Porém, o contraditório exige mais que isso, ou seja, é necessário que esteja o agente
público em condições de trazer fatos, argumentos, ideias, provas que possam efetivamente interferir
no julgamento pelo magistrado, o que, a nosso ver, torna-se prejudicado pelo largo decurso de
tempo entre o fato e o seu questionamento administrativo ou judicial.
Tanto com relação ao contraditório quanto à ampla defesa, vislumbra-se que a tese da
imprescritibilidade das ações de ressarcimento pode colocar a Fazenda Pública em condições de
superioridade em relação ao agente que supostamente causou o dano, desequilibrando a relação
processual, isto é, violando o princípio da isonomia processual. Neste sentido:
[...] não é legítimo o poder exercido em um processo em que as partes não podem
efetivamente participar ou em que apenas uma delas possui efetivas condições de influir
sobre o convencimento do juiz. Um processo desse tipo certamente não é um ‘processo
justo’ ou um processo democrático. Daí porque se diz que as partes não só têm o direito
101
Revista TCEMG|out.|nov.|dez.|2012| DOUTRINA
No mesmo sentido do raciocínio esposado, a ampla defesa é a garantia conferida às partes de “trazer
para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade [...]” (MORAES, 2004, p. 124),
isto é, às partes deve ser oportunizada ampla produção probatória para confirmar suas alegações,
seja provando os fatos constitutivos de seu direito, seja elidindo imputações que lhes forem feitas,
realizando, assim, seu direito de (ampla) defesa.
PRESCRIÇÃO DO DANO AO ERÁRIO:
UMA LEITURA DO § 5º DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO
de participar do processo, como também o direito de participar em paridade de armas
(MARINONI, 2006, p. 410).
3.1.3 Do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular
Os autores que sustentam a imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento por dano ao tesouro
interpretam o § 5º do art. 37 da Carta Constitucional invocando o princípio da supremacia do
interesse público sobre o particular, do qual resultaria uma pretensão eterna de recomposição do
erário. Incumbe-nos, porém, tecer alguns comentários acerca deste preceito, questionando: a) sua
natureza jurídica de norma-princípio; b) seu conteúdo indeterminado; c) a suposta contradição
entre interesse público e privado; d) a possibilidade de resultar deste princípio uma pretensão
reparatória não sujeita à prescrição.
Nos dizeres de Bandeira de Mello, o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular
é
[...] verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade
do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como
condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último (2011, p. 60).
O que trazemos à discussão, neste primeiro momento, é se, tecnicamente, poder-se-ia falar em
supremacia do interesse público sobre o particular como um princípio (no sentido de normaprincípio, isto é, de observância obrigatória e incidência direta) e como se daria sua aplicação.
Conforme as lições de Humberto Ávila,
A teoria geral do Direito define os princípios jurídicos [normas-princípios] como
normas de otimização concretizáveis em vários graus, sendo que a medida de sua
concretização depende não somente das possibilidades fáticas, mas também daquelas
jurídicas; eles permitem e necessitam de ponderação [...], porque não se constituem em
regras prontas de comportamento, precisando, sempre, de concretização (ÁVILA, 2001,
p. 7).
Desta forma, segundo a doutrina do autor, os princípios (no sentido aqui dado, qual seja,
norma-princípio) têm seu conteúdo revelado de acordo com as circunstâncias do fato concreto
e em confronto com os demais princípios em jogo, através de uma ponderação, para que seja
determinado o peso relativo de cada norma-princípio no caso em que se debruça. Fala-se, então,
em uma hierarquia móvel entre os princípios.
Neste ponto, o denominado “princípio” da supremacia do interesse público sobre o privado não
pode ter natureza de norma-princípio, uma vez que:
Sua descrição abstrata não permite uma concretização em princípio gradual, pois a
prevalência é a única possibilidade (ou grau) normal de sua aplicação, e todas as outras
possibilidades de concretização somente consistiriam em exceções e, não, graus; [...] o
interesse público deve ter maior peso relativamente ao interesse particular (ÁVILA, 2001,
p. 9).
Em suma: a solução de qualquer colisão envolvendo este “princípio” se dá mediante regras de
prevalência, estabelecidas previamente, sempre em favor do interesse público, que, conforme
102
evidenciado, possui prioridade abstrata e é independente dos interesses privados correlacionados.
Desta forma, considerar a supremacia do interesse público sobre o particular como normaprincípio não condiz com a atual Teoria Geral do Direito, em que a relação de prevalência entre o
interesse público e o particular só pode ser verificada em face das circunstâncias fáticas e jurídicas
subjacentes ao caso em análise.
Desse modo, não há de se falar na existência da supremacia do interesse público sobre o particular,
enquanto norma-princípio, de forma que é inadequado invocar o aludido preceito, abstratamente,
para justificar uma interpretação que seja favorável ao interesse público, como fazem os
doutrinadores que encampam a imprescritibilidade da pretensão reparatória do erário.
Contudo, como vislumbramos que não se pode perder de vista a relevância do interesse público
para a teoria do Direito Administrativo, acolhemos a observação de Luciano Ferraz, para quem:
A controvérsia doutrinária em torno da temática é, pois, mais semântica do que substancial
derivada provavelmente da expressão ‘supremacia’ que traduz a ideia de hierarquização,
como se o interesse público já ingressasse na relação jurídica em foco como vencedor do
eventual conflito (FERRAZ, 2011, p. 26-28).
Assim, pensamos ser mais congruente acatar a sugestão de Daniel Sarmento (2010), que alude
ao princípio da tutela do interesse público, banindo a expressão supremacia, por ser fonte de
controvérsias.
De igual modo, cumpre questionar o que se deva entender por interesse público. Por se tratar de
conceito jurídico indeterminado, na categoria de termo vago, o interesse público tem conteúdo
indeterminável (ÁVILA, 2001). Conforme destaca Odete Medauar, hoje a doutrina reconhece a
“[...] indeterminação e dificuldade na definição do interesse público, a sua difícil e incerta avaliação
e hierarquização, o que gera crise na sua pretensa objetividade” (MEDAUAR apud SARMENTO,
2010, p. 98)18.
De fato, em uma sociedade marcada por valores distintos e muitas vezes antagônicos, o que é
considerado interesse público por um grupo social nem sempre o será por outro, de forma que a
definição de seu conceito fica fragmentada.
Ademais, não se pode perder de vista dois relevantes pontos: a) está ultrapassada a noção de que
interesse público e interesse privado estão sempre em linhas divergentes, de forma que, não raras
vezes, atender ao interesse privado é realizar o interesse público; b) não existe um só interesse
público a socorrer dada situação, podendo o conflito se dar entre interesses públicos diversos.
18
MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. p. 181-182, apud SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses
Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional. In: SARMENTO, Daniel. (org.). Interesse público versus interesse
privado — desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. 3. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 98.
103
Revista TCEMG|out.|nov.|dez.|2012| DOUTRINA
Em sede conclusiva, arremata o professor gaúcho que “não há uma norma-princípio da supremacia
do interesse público sobre o particular no Direito brasileiro. A administração não pode exigir um
comportamento do particular (ou direcionar a interpretação das regras existentes) com base
neste ‘princípio’” (ÁVILA, 2001, p. 29) (grifo nosso).
PRESCRIÇÃO DO DANO AO ERÁRIO:
UMA LEITURA DO § 5º DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO
No sistema constitucional atual, com nítido caráter garantista dos direitos individuais, é pertinente
afirmar que quando o Estado lhes assegura a efetivação em sua amplitude constitucional e, assim,
concretiza um interesse particular, está assegurando, também, um interesse público genuíno,
consubstanciado na realização dos direitos e garantias constitucionais. Quer dizer: interesses
privados e públicos não são necessariamente antagônicos, convergindo em muitos casos.
Da mesma forma, vários interesses públicos podem-se revelar em uma dada situação. No caso objeto
de nosso estudo, o interesse público genuíno seria perseguir ad aeternum a recomposição do erário
ou, de forma diversa, reconhecer a omissão do Estado, em alguns casos de agir tempestivamente
(e buscar a correção destas falhas administrativas), porém, respeitando o princípio da segurança
jurídica, bem como os direitos fundamentais à ampla defesa e ao contraditório? A atuação eficiente
da Administração no controle e fiscalização do erário dispensaria a existência de uma pretensão
reparatória eterna?
Percuciente é a observação de Daniel Sarmento de que é inválida a restrição a direitos fundamentais
quando baseadas em termos muito vagos porque
[...] permitem ingerências imprevisíveis no âmbito de proteção do direito, conferindo
ao aplicador da norma uma discricionariedade exagerada, que pode resvalar ao arbítrio
(SARMENTO, 2010, p. 96).
Mais à frente completa o autor seu raciocínio afirmando ser difícil pensar em uma limitação
mais vaga e indeterminada aos direitos fundamentais do que a ‘proteção ao interesse público’
(SARMENTO, 2010, p. 96).
Assim, é forçoso concluir que a mera invocação do princípio do interesse público, na interpretação
do § 5º do art. 37 da CF/88, por si só, nada diz, porquanto seu conteúdo jurídico é indeterminado,
não necessariamente se contrapõe ao particular, bem como não é o único princípio a ser considerado
na tarefa hermenêutica.
Nesse ponto, é precisa a lição de Luciano Ferraz, ao identificar que os interesses públicos e
particulares devem ser analisados à luz do ordenamento jurídico, falando-se, assim, em direitos e
deveres. Quer dizer:
[...] para se saber até que ponto os interesses públicos prevalecem sobre os interesses
privados (na perspectiva de direitos e não de interesses), deve-se deslocar o foco da
Administração Pública para o particular e questionar se o ordenamento jurídico o obriga
(impõe o dever) a suportar a atuação da Administração Pública. De igual modo, deve-se
questionar se dado interesse público está, em face do ordenamento jurídico, obrigado a
conformar-se diante de outro interesse público, igualmente exercitável pela Administração
Pública. De que lado estará o Direito, eis a questão. (FERRAZ, 2011, p. 27).
Posto desta forma, o cerne da questão objeto deste artigo passa a ser identificar se o ordenamento
jurídico permite que haja uma pretensão reparatória exercitável ad aeternum, em favor do erário,
estando o agente obrigado a suportá-la, bem como averiguar se este seria o interesse público
genuíno, que deva prevalecer sobre os demais.
104
Diversos argumentos infirmam a imprescritibilidade desta pretensão reparatória. O primeiro deles
é o silêncio eloquente do constituinte originário, que, como vimos, extirpou, da redação do § 5º do
art. 37 da CF/88, a expressão que conduziria a este entendimento.
Outra razão situa-se no fato de que a prescrição é, de longe, a regra no ordenamento jurídico,
de forma que não é dado ao intérprete criar exceções quando não haja o constituinte assim se
pronunciado, devendo, então, interpretar restritivamente dispositivos francamente excepcionais.
Assim, ainda que se admita, por hipótese, que o ressarcimento seja um interesse público (embora
a doutrina de Bandeira de Mello qualifique o interesse do erário como interesse privado da
Administração, distinto daquele — 2005, p. 55), vislumbramos que a segurança jurídica e os direitos
fundamentais à ampla defesa e ao contraditório inegavelmente também são manifestações genuínas
de interesse público, de maior porte, uma vez que são da essência de um Estado Democrático de
Direito.
Seguindo a linha de raciocínio de Luciano Ferraz, conclui-se, então, que não está o agente
obrigado a suportar uma atuação do Poder Público baseada em uma interpretação ampliativa de
dispositivo restritivo, que lhe seja francamente gravosa, destoante de todo o sistema de pretensões
condenatórias e violador do princípio da segurança jurídica e dos direitos fundamentais à ampla
defesa e ao contraditório.
Além dos motivos exaustivamente já apontados na doutrina e que já foram objeto de nossa análise
crítica, outros nos permitem defender a aludida prescritibilidade. Ao tentar resguardar o interesse
público, a tese da imprescritibilidade se opõe a sistemática que regula as pretensões reparatórias,
para os quais o Direito tipicamente estabelece um termo final.
A regra geral para a pretensão de reparação é a prescritibilidade 19, de forma que não é consistente
uma interpretação que tente inferir exceção a esta regra de uma norma que não a estabeleça de
forma direta e que admita interpretações bem menos interventivas.
Nesse caso, é perfeitamente possível entender (e, sobretudo, mais consentâneo com o ordenamento),
como o faz a maioria da doutrina que encampa a tese aqui defendida, que o citado dispositivo
constitucional simplesmente indica que a prescrição do ilícito não acarreta a prescrição da pretensão
de reparação.
Não se perca de vista, ademais, que a norma do § 5º do art. 37 da CF/88 foi pensada dentro de
uma sistemática em que a prescrição da pretensão de reparação civil era de 20 anos, enquanto
a prescrição das infrações administrativas mais graves se davam em 5 anos, de tal forma que a
prescrição da pretensão de exercer o poder disciplinar se operava bem antes que prescrevesse
19
Reconhecendo que são imprescritíveis apenas as pretensões constitutivas sem prazo especial definido em lei e as declaratórias, cf.
AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência. in Revista dos Tribunais, São Paulo. v.
300, out. 1960. p. 27-28.
105
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Além disso, é cediço que uma pretensão reparatória ad aeternum esbarraria no princípio da
segurança jurídica, bem como nos direitos fundamentais à ampla defesa e ao contraditório, como
já explanado.
PRESCRIÇÃO DO DANO AO ERÁRIO:
UMA LEITURA DO § 5º DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO
a pretensão indenizatória civil. Assim, o dispositivo constitucional em comento apenas buscou
esclarecer uma situação, deixando explícita a incomunicabilidade das pretensões disciplinares e
reparatórias. Resta-nos, então, definir qual o prazo prescricional destas últimas.
Na busca do prazo prescricional em comento, pensamos ser mais apropriado perquirir antes os
prazos aplicáveis ao ramo do Direito Público, seja porque o § 5º do art. 37 da Carta está inserido
no Capítulo VII — Da Administração Pública — do Título III — Da Organização do Estado,
seja porque se trata de matéria afeta ao regime jurídico administrativo, com traços e conotações
próprias, diversos daqueles típicos do regime de Direito Privado. Neste ponto, lembramos a lição de
Bandeira de Mello (2011), para quem as razões que inspiram o ramo privado são profundamente
distintas das que informam o ramo público.
Como cediço, o prazo prescricional e decadencial no ramo publicista, seja a pretensão a favor ou
contra a Fazenda Pública é, tipicamente, de 5 anos20. Não há, contudo, prazo prescricional genérico
para as pretensões de ressarcimento no Direito Público, como se dá, por exemplo, no ramo privado,
com o art. 205, § 3º, V, do Código Civil21.
À mingua de prazo prescricional genérico no ramo público para a pretensão de ressarcimento,
interessa-nos sobremaneira aqueles previstos na Lei da Ação Popular e na Lei de Improbidade
Administrativa. Entendemos, assim, pelas razões que passamos a explanar, que o prazo prescricional
da ação popular deve ser aplicável às pretensões de ressarcimento oriundas de ilícito comum, que
não se qualifique como improbidade administrativa, ao passo que o prazo prescricional estabelecido
na Lei de Improbidade deve ser aplicado à pretensão de ressarcimento oriunda de ilícito qualificado
como improbidade administrativa.
Segundo balizada doutrina, a ação popular é um meio constitucional à disposição de qualquer
cidadão para obter a invalidação de atos administrativos ilegais e lesivos ao patrimônio público
(MEIRELLES, 2010, p. 169-170). Como consectário, uma vez apurada a lesão ao patrimônio
público e perseguida a sua invalidação, naturalmente buscar-se-á a reparação na via desta ação.
Note-se que a ação popular é um meio de dar efetividade à pretensão de reparação ao patrimônio
público, com nuances próprias, uma vez que tem, por exemplo, o cidadão como legitimado ativo.
Neste ponto, fala-se que o prazo prescricional de 5 anos, previsto no art. 21 da Lei n. 4.717/65, não
é propriamente um prazo genérico para as pretensões reparatórias do erário, mas, sim, específico
para a pretensão aviada nos termos daquela lei.
Porém, como inexiste o aludido prazo genérico no Direito Público, entende-se que este prazo
da ação popular deve ser estendido às pretensões de ressarcimento quando aviadas também por
outros meios (como o STJ tem feito em relação à Ação Civil Pública), salvo se houver previsão legal
específica (como no caso da Lei de Improbidade).
Diversos dispositivos confirmam essa assertiva: arts. 168, 173 e 174 do CTN; art. 23, Lei 8.429/92; art. 1º, Dec. n. 20.910/32; art.
21, Lei n. 4.717/65; art. 54, Lei n. 9784/99 e art. 1º-C, Lei n. 9.494/97.
21
Averbe-se que, segundo entendemos, caso se busque o prazo prescricional no ramo privado, este não será outro senão o de 3 anos
previsto no art. 206, §3º, V, CC/2002. Isto porque este prazo é específico para a pretensão de ressarcimento e prefere aos demais
previstos no CC. Em outras palavras: o prazo de 10 anos do art. 205, CC, só se aplica “quando a lei não lhe haja fixado prazo
menor”, o que não é o caso.
20
106
Isto se dá porque as mesmas razões que limitam temporalmente a pretensão de recomposição do
erário quando utilizada a ação popular existem para limitar esta pretensão reparatória, quando
utilizado outro meio. Ademais, conforme identifica a doutrina, o prazo de 5 anos é uma constante
no Direito Administrativo, seja o seu curso em favor, seja contra a Fazenda Pública.
Porém, quando o ilícito se qualificar com o plus da improbidade administrativa, por existir lei
específica (Lei n. 8.429/92), esta deverá ser aplicada, afastando o prazo prescricional previsto na
Lei de Ação Popular.
Como já visto, o art. 23 da Lei de Improbidade fixou os termos da prescrição quando se trata de ato
de improbidade administrativa. Seja-nos permitido, por questões didáticas, transcrever o aludido
dispositivo:
Art. 23. As ações destinadas a levar a efeitos as sanções previstas nesta lei podem ser
propostas:
I — até cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de
função de confiança;
II — dentro do prazo prescricional previsto em lei específica para faltas disciplinares
puníveis com demissão a bem do serviço público, nos casos de exercício de cargo efetivo
ou emprego. [...]
Conforme discutido alhures, doutrina e jurisprudência divergem sobre o alcance da expressão
“sanções” no caput deste dispositivo, quer dizer: a pretensão de ressarcimento estaria ali incluída?
Muito embora a pretensão de ressarcimento não seja tecnicamente uma “sanção” — como já
acentuamos —, entendemos que o legislador infraconstitucional se valeu do termo de forma
atécnica, como sinônimo de cominação legal ou, simplesmente, de consequência jurídica, noção
esta que obviamente inclui a pretensão de ressarcimento.
Isto porque ao volvermos o olhar para o art. 12 da referida lei, inserido no Capítulo III, denominado
“Das penas”, de logo se percebem as consequências jurídicas ali atribuídas ao ato de improbidade
administrativa, entre as quais se destaca o ressarcimento integral do dano. Ora, se o legislador
inseriu no capítulo denominado “Das penas” um único artigo que traz as consequências jurídicas
do ato de improbidade e entre elas inseriu o ressarcimento integral do dano, vê-se que não primou
pelo rigorismo técnico.
22
23
Nesse sentido, cf. STJ, Recurso Especial n. 782.067-MG, Relator: Min. Castro Meira, DJ de 27/02/2007.
Nesse sentido, cf. STJ, Recurso Especial n. 693.959/DF, Relator: Min. João Otávio de Noronha, DJ de 17/11/2005 e, também,
MEIRELLES; WALD; MENDES, 2010, p. 176.
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Há certa discussão em torno do termo inicial do prazo prescricional consignado no art. 21 da Lei de
Ação Popular. Isso porque, à míngua de regulação legal, há quem entenda que o prazo prescricional
de cinco anos tem início com a prática do ato lesivo22, e outros, que o dies a quo é fixado a partir da
publicidade do ato lesivo23. Entendemos que à Administração deve ser dada a chance de conhecer
o dano, para promover a responsabilização, pelo que julgamos ser mais convincente a segunda
corrente, contando o prazo prescricional de cinco anos para ilícitos comuns da data que o evento
danoso tornou-se público.
PRESCRIÇÃO DO DANO AO ERÁRIO:
UMA LEITURA DO § 5º DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO
Desta feita, em nosso sentir, a pretensão de ressarcimento oriunda de ilícito que se caracterize com
o plus da improbidade administrativa estará sujeita à prescrição estipulada no aludido art. 23.
Assim, a pretensão de ressarcimento do erário oriunda de ato de improbidade poderá ser exercida:
a) nos casos de ilícitos praticados por aquele que exerce mandato, cargo em comissão ou função
de confiança, em até cinco anos após a extinção do vínculo (inciso I); b) nos casos de exercício
de cargo efetivo ou emprego, dentro do prazo prescricional previsto em lei específica para faltas
disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço público (inciso II). Na esfera federal e no
que diz respeito aos cargos de provimento efetivo, esse prazo é de cinco anos, contado a partir da
data em que o fato se tornou conhecido (art. 142, I, c/c §1º, da Lei n. 8.112/90). Nas demais pessoas
federativas, o prazo será aquele fixado nos estatutos próprios.
Cabe, ainda, aludir à hipótese da prescrição da pretensão reparatória por ilícito de improbidade
que envolva terceiros (particulares), por terem sido coniventes com o agente público ímprobo, por
tê-lo induzido ou concorrido para a sua prática. À míngua de regulação legal, afigura-se cabível a
aplicação dos incisos I ou II, a depender do vínculo do agente público com a Administração.
Em suma: quando se tratar de ilícito comum, a pretensão reparatória prescreverá em cinco anos, a
contar da publicidade do ato (art. 21, Lei n. 4.717/65); quando se tratar de reparação por ilícito de
improbidade, a respectiva pretensão prescreverá em cinco anos, a contar da extinção do mandato,
cargo em comissão ou função de confiança ou, nos casos de cargo de provimento efetivo ou
emprego, no prazo previsto nos estatutos próprios para apuração de faltas disciplinares puníveis
com demissão a bem do serviço público.
4 CONCLUSÕES
Ao final da análise crítica exposta neste artigo, algumas conclusões devem ser evidenciadas. A
primeira delas é a de que deixamos assentado que a prescritibilidade das pretensões é a regra
em nosso ordenamento jurídico e que as exceções devem ser criadas pelo legislador, e não pelo
intérprete, que não se pode investir nas funções daquele, interpretando extensivamente preceitos
francamente excepcionais. Nesse sentido, ficou claro que todas as hipóteses de imprescritibilidade
consagradas na Constituição são expressas, não oriundas de interpretações extensivas.
Concluímos que a ressalva prevista na redação do § 5º do art. 37 da Carta Política não tem o condão
de estabelecer uma hipótese de imprescritibilidade, mas, ao invés, tem o escopo de distinguir os
prazos prescricionais das pretensões punitivas dos prazos prescricionais das pretensões reparatórias.
Relembramos que ao tempo da elaboração da Carta, o prazo prescricional máximo para as sanções
disciplinares era de 5 anos, ao passo que a prescrição da pretensões reparatórias se dava em 20
anos, motivo pelo qual o constituinte estabeleceu a ressalva, no intuito de evidenciar a autonomia
de cada prazo.
Conforme se expôs, a interpretação deste dispositivo é deveras divergente na doutrina e na
jurisprudência, de forma que, a nosso ver, a exegese mais consentânea com a Constituição deve ser
construída sob a orientação dos princípios constitucionais que necessariamente estão implicados
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nesta tarefa. Assim, se de um lado a tese da imprescritibilidade homenageia o ‘princípio’ da
supremacia do interesse público sobre o particular, de outro, a tese da prescritibilidade da
pretensão reparatória tem fundamento nos princípios da segurança jurídica, ampla defesa e
contraditório.
Concluímos, outrossim, que a imprescritibilidade da pretensão indenizatória, por trazer a
reboque uma pretensão reparatória exercitável a todo tempo, enseja a mitigação (e até mesmo o
esvaziamento) dos princípios do contraditório, da ampla defesa e da segurança jurídica, quando
houver largo decurso de tempo entre o suposto dano e a sua apuração.
Asseveramos o real prejuízo ao direito de defesa que o decurso de largo período de tempo
ocasiona ao agente, tolhendo-lhe a possibilidade de influenciar na decisão a que se submeterá,
violando a vertente material do contraditório — “poder de influência”. Assim, chegamos
à conclusão que a tese da imprescritibilidade coloca a Fazenda Pública em situação de
superioridade, violando a isonomia processual e retirando a legitimidade do processo que
nestes termos se desenvolve.
Ao cabo, acreditamos ficar comprovada a inadequação da tese da imprescritibilidade, por todos
os fundamentos aduzidos, concluindo que esta compreensão, que hoje é majoritária na doutrina e
jurisprudência, deve ser revista.
REFERÊNCIAS
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Embora não se negue a devida relevância ao interesse público, pensamos ter contribuído para que
se revisite o entendimento de que o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular
impõe que deva o interesse público prevalecer, aprioristicamente, sobre interesses particulares,
mormente quando se traduzam em direitos fundamentais. Assim, a nosso ver, é insuficiente invocar
o aludido preceito, abstratamente, para afirmar a imprescritibilidade da pretensão reparatória,
porquanto, tão somente isso nada diz.
PRESCRIÇÃO DO DANO AO ERÁRIO:
UMA LEITURA DO § 5º DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO
COUTO E SILVA, Almiro do. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no
direito público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus próprios atos
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Keywords: Damage to the public treasury. Limitation of the indemnification
intent. Article 37, § 5º, Federal Constitution 1988. Prescriptibility.
Fundamental rights. Applicable statute of limitation.
Data de recebimento: 19 set. 2012
Data de aceite para a publicação: 13 nov. 2012
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Abstract: Under the scrutiny of critical reasoning, this paper is based on
a broad doctrinal and jurisprudential research over the interpretation of
Article 37, § 5º, of the 1988 Federal Constitution. It has been verified that
major legal doctrine and jurisprudence are prone to understand that such
legal provision enshrines an indemnification intent, in favour of the public
treasury, which is not subject to a statute of limitation. The arguments
which found such an interpretation were sought to be clarified through a
critical analysis in light of the legal dogmatics, especially the principle of
legal security and the fundamental rights of due process. Within the scope
of seeking an interpretation based on the principle of constitutional unity,
an interpretation of the Article in question was proposed account being
taken to the whole body of constitutional norms, the exceptional nature of
imprescriptibility and hansard from the 1988 constitutional convention. The
conclusion points towards the inadequacy of the idea of imprescriptibility as
it violates fundamental rights. 
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