dissertação completa em PDF

Propaganda
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
DESIGUALDADE E IDENTIDADE NO SERVIÇO DOMÉSTICO: INTERSECÇÕES
ENTRE CLASSE, RAÇA E GÊNERO
NEVILLE JULIO DE VILASBOAS E SANTOS
GOIÂNIA, MARÇO DE 2010
1
NEVILLE JULIO DE VILASBOAS E SANTOS
DESIGUALDADE E IDENTIDADE NO SERVIÇO DOMÉSTICO: INTERSECÇÕES
ENTRE CLASSE, RAÇA E GÊNERO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia
da
Faculdade
de
Ciências
Sociais,
da
Universidade Federal de Goiás, como um dos requisitos para
a obtenção do título de mestre em sociologia.
ORIENTADOR: Prof Dr. Joaze Bernardino Costa
GOIÂNIA, MARÇO DE 2010
2
NEVILLE JULIO DE VILASBOAS E SANTOS
DESIGUALDADE E IDENTIDADE SERVIÇO DOMÉSTICO: INTERSECÇÕES
ENTRE CLASSE, RAÇA E GÊNERO
Dissertação defendida e aprovada em _____ de ____________ de 2010, pela banca
examinadora constituída pelos professores:
______________________________________________
Profº Dr. Joaze Bernardino Costa / UFG (Presidente)
______________________________________________
Profª Dra. Eliane Gonçalves / UFG
______________________________________________
Profª Dra. Ângela Lucia Silva Figueiredo / UFRB
______________________________________________
Profº Dr. Dijaci David de Oliveira / UFG (Suplente)
3
À Valdeci e Ana, pai e mãe, por todo
o amor, carinho e dedicação
ao longo da vida.
.
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom da ciência e pelo prazer de conhecer.
À minha família, pai mãe, e irmão, sem os quais eu não existiria.
À minha esposa, Jaqueline, por tudo que representa na minha vida, por seu amor,
amizade, carinho, respeito, e por acreditar sempre em mim. Estendo este agradecimento ao
meu sogro, sogra e cunhados, pelo apoio recebido.
Ao meu orientador, Joaze Bernardino Costa, pelo apoio, pelo aprendizado e por ter se
colocado sempre à disposição quando foi necessário. Agradeço por ter aberto sua biblioteca
pessoal a mim e por não tolher, mas direcionar o tortuoso caminho que leva à conclusão de
um trabalho.
Aos membros da banca avaliadora, professora Eliane Gonçalves e professor Dijaci
David de Oliveira, por suas valiosas contribuições na ocasião da qualificação e em nossas
sempre boas conversas informais. Agradeço especialmente a professora Ângela Figueiredo,
por atender nosso convite e se colocar a disposição para contribuir com meu trabalho.
A todos os professores, professoras e funcionários da Faculdade de Ciências Sociais,
pelos mais de seis anos de convivência e aprendizado.
Ao programa de Pós-Graduação em Sociologia, seus coordenadores e funcionários,
que se esforçam para que tenhamos condições de desenvolver nossos estudos.
A Universidade Federal de Goiás, pelas oportunidades que me deu de crescer
profissionalmente.
À CAPES, pela concessão da bolsa que permitiu minha dedicação ao curso e à
pesquisa.
Ao contribuinte brasileiro, que financia nossa formação. Que nós possamos gerar o
devido retorno colocando nossos conhecimentos a serviço da sociedade.
A todos os familiares e amigos, da academia e de fora dela, que sempre me
incentivaram e torceram por mim nesses anos de estudo.
Por fim, quero registrar um agradecimento mais que especial às mulheres que
aceitaram participar da pesquisa, trabalhadoras domésticas e patroas, personagens da vida real
com as quais eu certamente aprendi muito.
5
RESUMO
Este estudo tem o objetivo de analisar as identidades construídas nas relações entre
trabalhadoras domésticas e patroas a partir de um estudo empírico realizado na cidade de
Goiânia. A pesquisa se justifica pela importância histórica que o trabalho doméstico assume
no Brasil e pelo peso dessa ocupação na força de trabalho feminina. A perspectiva utilizada
foi a da interseccionalidade, numa tentativa de articulação dos estudos sobre identidade a
partir das perspectivas do interacionismo simbólico, dos estudos culturais e do feminismo
negro. Tal objetivo se pautou pela hipótese de que o serviço doméstico se baseia em relações
que envolvem uma conexão complexa entre diferenças e desigualdades de classe, raça e
gênero, que, de acordo com o contexto, forjam identidades mais ou menos estáveis. Foi
fundamental para esse trabalho o uso do conceito de diferença, enquanto categoria analítica, o
que reforçou o aspecto relacional e não-essencialista das identidades, permitindo entrever não
apenas a opressão e a subalternidade, mas também possibilidades de mudanças, ainda que
entre as nuvens das desigualdades. Foram entrevistadas 14 mulheres, sete trabalhadoras
domésticas e sete patroas, com o auxílio de um roteiro semi-esturuturado. Os resultados
revelaram a conexão entre classe, raça e gênero no trabalho doméstico, com especial ênfase
na enorme desigualdade de classe
6
ABSTRACT
This study aims to examine the identities constructed in the relations between domestic
workers and employers from an empirical study in the city of Goiania. The research is
justified by the historical importance that domestic work takes in Brazil and the weight of this
occupation in the female labor force. The perspective used was that of intersectionality in an
attempt to articulate the identity studies from the perspectives of symbolic interactionism,
cultural studies and black feminism theory. This goal is guided by the assumption that
domestic service is based on relationships that involve a complex connection between
differences and inequalities of class, race and gender, which, according to the context, forge
identities more or less stable. It was fundamental for this work using the concept of
difference, as an analytical category, which increased the relational aspect and nonessentialism of the identities, allowing a glimpse not only the oppression and subordination,
but also possibilities for changes, even between the clouds of inequalities. We interviewed 14
women, seven domestic workers and seven mistresses, with the aid of a semi-structured
guide. The results revealed the connection between class, race and gender in domestic work,
with particular emphasis on large class inequality.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................9
I O tema da pesquisa.......................................................................................................9
II O problema de pesquisa.............................................................................................12
III O método..................................................................................................................13
IV Plano da dissertação.................................................................................................17
CAPÍTULO
–
1
O
SERVIÇO
DOMÉSTICO
NO
BRASIL,
ONTEM
E
HOJE........................................................................................................................................19
1.1 O legado da escravidão...........................................................................................19
1.2 O trabalho doméstico antes e depois da Abolição...................................................34
1.3 Os estudos atuais sobre o tema................................................................................47
1.4 O trabalho doméstico do ponto de vista jurídico.....................................................61
1.5 Trabalho feminino e subalternidade........................................................................64
CAPÍTULO
2
–
FUNDAMENTAÇÃO
IDENTIDADE,
DIFERENÇA
E
DESIGUALDADE:
TEÓRICA
E
CONCEITUAL................................................................................................72
2.1 Pensando a identidade no serviço doméstico..........................................................72
2.2 Perspectivas teóricas para o estudo da identidade...................................................73
2.3 Perspectivas essencialistas e não-essencialistas da identidade...............................77
2.4 A concepção dos estudos culturais: identidade e diferença,
representação e discurso...............................................................................................79
2.5 Uma concepção interacionista e relacional da identidade:
linguagem e socialização...............................................................................................83
2.6 Identidade e desigualdade.......................................................................................90
CAPÍTULO 3 – CLASSE, RAÇA E GÊNERO ENTRE TRABALHADORAS
DOMÉSTICAS E PATROAS: INTERSECÇÕES .............................................................94
3.1 Por que falar em interseccionalidade?.....................................................................94
3.2 Classe, raça e gênero: independência, complementaridade
8
ou inter-determinação?..................................................................................................96
3.3 Perfis das personagens da pesquisa: trabalhadoras domésticas
e patroas.......................................................................................................................108
3.4 Ser trabalhadora doméstica...................................................................................111
3.5 Ser patroa...............................................................................................................120
3.6 A dinâmica da relação...........................................................................................127
3.7 Interseccionalidade e desigualdade.......................................................................137
CONCLUSÕES.....................................................................................................................140
REFERÊNCIAS....................................................................................................................144
APÊNDICES..........................................................................................................................150
9
INTRODUÇÃO
I. O tema da pesquisa
A identidade tem se destacado, desde meados do século XX, como uma das questões
mais importantes nas discussões contemporâneas das ciências sociais. Seja nas relações
pessoais, nos debates sobre Estado-Nação e nacionalidade, na emergência dos novos
movimentos sociais, nas reconstruções globais de identidades nacionais e étnicas, o debate
sobre identidade coloca em questão uma série de certezas tradicionais, em certa medida dando
força ao argumento corrente de que existe uma “crise das identidades” nas sociedades
contemporâneas. O tema das identidades tem passado, nos últimos tempos, por uma
desconstrução sistemática no interior de diferentes disciplinas, todas com uma característica
em comum, que é a crítica à idéia de uma identidade integral, unificada, essencializada em
indivíduos ou grupos sociais. As “políticas de identidade” se multiplicaram na segunda
metade do século XX, tanto nos movimentos sociais e no debate político quanto nos círculos
acadêmicos. A discussão da extensão na qual as identidades são defendidas ou contestadas na
atualidade leva à análise da importância da diferença e das diferentes “políticas da diferença”,
que complementam, ressignificam e desafiam as identidades.
A diferença, enquanto elemento central nos sistemas de classificação por meio dos
quais são construídas identidades, têm sido foco de vários esforços de pesquisa recentes nas
ciências sociais. Cabe destacar os campos de estudo sobre gênero e sobre relações étnicas e
raciais. Entretanto, se os estudos sobre desigualdade de raça e de gênero têm crescido cada
vez mais nos últimos anos, a desigualdade de classes não deixou de ser estudada. Partindo de
um referencial que não é mais fundado apenas nos aspectos ortodoxos da teoria marxista, a
noção de classe tem sido reformulada há algum tempo, incorporando também as idéias de
Max Weber e Pierre Bourdieu. De toda forma, houve uma ampliação do conceito, mas que
não deixou de considerar a posição de indivíduos e grupos na divisão social do trabalho.
Nesse sentido, classe, raça e gênero são campos de pesquisa recorrentes quando se fala em
diferença, identidade, desigualdade e cidadania.
Nos últimos 30 anos vem se tornando cada vez mais presente a preocupação teórica e
política de se considerar em conjunto as causas e efeitos das desigualdades de classe, raça e
10
gênero. Tal preocupação deriva da diversificação ocorrida tanto entre os movimentos
feministas quanto entre os movimentos anti-racistas. Pensadoras negras, tanto da academia
quanto da militância, manifestaram sua insatisfação diante de sua exclusão sistemática dos
discursos tanto dos primeiros movimentos feministas, constituídos predominantemente por
mulheres brancas de classe média e alta, quanto dos movimentos negros, conduzidos
predominantemente com base nos ideais de homens negros. Surgiu, então, a necessidade de
procurar desenvolver ferramentas teóricas e metodológicas que possibilitassem uma postura
crítica que congregasse tanto o ponto de vista feminista quanto o ponto de vista anti-racista,
sem se reduzir à cada um deles. Daí a proposta de um “feminismo negro”, diferente do
feminismo branco e do anti-racismo masculinista, mas não indiferente às suas principais
contribuições.
O serviço doméstico remunerado
se constituiu, então, como um objeto
fundamentalmente importante para essa perspectiva. Suas características tradicionais, de
trabalho feminino executado predominantemente por negras e pobres, o fez um dos objetos
centrais das preocupações do feminismo negro. Um olhar atento sobre as estatísticas oficiais e
uma breve revisão da bibliografia existente já é capaz de levar-nos a presumir que interações
entre os aspectos de classe social, raça/cor e gênero estão, em maior ou menor intensidade,
presentes nas relações entre trabalhadoras domésticas e patroas.
As pesquisas feitas no Brasil e no mundo sobre o trabalho doméstico apontam essa
relação como uma das mais complexas do ponto de vista sociológico. Em praticamente todas
essas pesquisas, os autores sublinham a singular presença das clivagens de classe, raça e
gênero, ainda que não abordem as três dimensões do ponto de vista que se pretende fazer
aqui. As contingências históricas que levaram à construção dos Estados-Nação europeus e,
concomitantemente, das colônias que lhes deram sustento e riqueza durante séculos, hoje
integrantes do chamado “Terceiro Mundo”, não conduziram apenas a uma conformação das
relações entre países e continentes, mas também a estruturas de interação internas em cada um
deles. Os países do Terceiro Mundo, ou países subdesenvolvidos, ainda convivem com
padrões de desigualdades que estão ligados não somente à ordem global atual, mas também às
consequências das configurações das relações internacionais e das formas de organização
social internas a cada país ou colônia nos últimos 500 anos.
A modernidade, marco para o pensamento sociológico, desde seus primórdios se
constitui sobre um conjunto de relações desiguais entre grupos humanos. A história do mundo
foi marcada pelo imperialismo e pelo colonialismo. A política econômica imperialista criou
uma ideologia racial e sexual que, ao longo dos séculos, transformou diferenças em
11
desigualdades, por meio da naturalização de um discurso discriminatório. Pessoas negras e
indígenas foram escravizadas sob relações paternalistas, e as próprias mulheres brancas não
escaparam à opressão masculina. A modernidade, assim, foi um projeto instituído pelo
homem branco europeu, e todo o “resto” foi lançado às margens da ordem social. O modo de
produção e de relações capitalistas instaurou um novo padrão de dominação em escala
mundial, fundando ao mesmo tempo a modernidade e a colonialidade (QUIJANO, 2007,
p.94).
As transformações mundiais impostas pela modernidade imprimiram divisões e
diferenciações sociais cujas consequências são ressignificadas e recriadas no dia-a-dia,
respeitadas as especificidades históricas de cada país e região. Em toda a América foi
implementado um sistema de produção escravista que não apenas subordinou africanos e
indígenas, mas criou novas identidades raciais, transformando diferenças em desigualdades.
Independente das diferenças entre a colonização inglesa, espanhola, portuguesa e francesa,
esse sistema implicou certo número de relações de trabalho, organizadas em relação às
clivagens raciais e de gênero. Ideologias racistas e sexistas alimentaram por muito tempo o
discurso que legitimava a perpetuação das desigualdades no plano material, ao passo que essa
desigualdade material cotidiana reforçava as desigualdades raciais e de gênero, num
movimento espiral poderoso. A conquista da independência e o fim dos regimes escravistas
concederam a liberdade legal, mas não a liberdade cultural e moral aos estratos mais
subordinados da sociedade colonial. Atividades desvalorizadas praticadas antes por escravos e
escravas africanos ainda hoje são associadas aos negros e às mulheres.
O trabalho doméstico figura como uma dessas atividades e tem a peculiaridade de
reunir em si a herança simbólica da escravidão negra e da desvalorização histórica do trabalho
feminino. Após a Abolição e o advento da República, essa atividade antes exercida por
escravos continuou sendo associada, no nível das representações sociais, às pessoas de cor e
pobres, confundindo classe e raça. Embora o trabalho doméstico executado dentro da casagrande incorporasse uma grande quantidade de homens negros, suas funções mais
significativas àquela época, assim como hoje, eram desempenhadas por escravas, como
cozinhar, lavar roupa, limpar as dependências internas e cuidar de crianças. Essas atividades,
tidas como reprodutivas dentro do contexto do trabalho capitalista, desde períodos imemoriais
são vinculadas à mulher. No período escravocrata e no subseqüente período republicano não
foi diferente. Portanto, além das marcas de classe e de raça, o trabalho doméstico possui uma
marca profunda de gênero, e é a tematização discursiva dessas marcas na relação entre
trabalhadora doméstica e patroa que interessa aos objetivos dessa pesquisa.
12
A proposta de um estudo interseccional da relação entre trabalhadoras domésticas e
patroas na atualidade não prescinde da consideração da trajetória histórica do trabalho
doméstico no Brasil, que é, sem dúvida, marcada por significativas transformações, mas
também por sólidas continuidades. Interseccionalidade, do ponto de vista aqui abordado, se
refere não apenas à intersecção sincrônica de características sociais individuais, mas à
interseção entre o passado e o presente, entre relações e identidades individuais e grupais.
Consiste em um olhar ao mesmo tempo sincrônico e diacrônico sobre um determinado
contexto, já que o contexto é construído historicamente. Partindo da metáfora da
interseccionalidade como cruzamento, conexão, combinação, o presente trabalho visa analisar
sob esse enfoque as diferentes formas pelas quais diferenças e desigualdades de classe, raça e
gênero podem se encontrar em um determinado contexto, conformando dinamicamente
identidades individuais e grupais.
II. O problema de pesquisa
O problema da pesquisa é saber como trabalhadoras domésticas e patroas, nas suas
relações e interações, percebem e vivenciam as diferenças e desigualdades de classe, de raça e
de gênero. Importa saber o que determina essa percepção e quais são as conseqüências disso
para a relação.
Em outras palavras, o objetivo é responder as seguintes perguntas: Como se
configuram as relações entre trabalhadoras domésticas e patroas? Diferenças de classe, raça e
gênero interferem nessa relação? Como? Em que medida? A pesquisa elege os conceitos de
“identidade” e “diferença” como categorias analíticas centrais, e elege as categorias de classe,
raça e gênero como marcadores das diferenças que perpassam essa relação, oferecendo as
bases para a construção de identidades. Tanto as diferenças como as identidades são
construídas pelo e atuam através do discurso. Por isso, a intenção desta pesquisa é, por meio
da interpretação e da análise do discurso de trabalhadoras domésticas e patroas, compreender
como elas se relacionam e interagem tendo em vista suas diferenças. Para isso, será preciso
compreender como elas interpretam suas diferenças e como agem no dia-a-dia levando essas
diferenças em consideração. O esforço de pesquisa vai no sentido de interpretar a
interpretação dos sujeitos acerca de suas próprias relações, analisando os modos como esses
sujeitos constroem a realidade com suas práticas e ações e a reconstroem em seu discurso.
13
Nessa direção, algumas perguntas fundamentais precisam ser respondidas. Como
trabalhadoras domésticas e patroas interpretam suas diferenças? Como as identidades das
trabalhadoras domésticas e das patroas são construídas nessa relação? As diferenças são
sempre equacionadas como desigualdades? Quais as estratégias de trabalhadoras domésticas e
patroas diante das diferenças e das (presumidas) desigualdades? Qual é o peso das diferenças
de raça, classe e gênero nessas relações? De que forma essas diferenças se conectam entre si,
resultando em desigualdade e opressão?
E para responder a essas perguntas, é preciso passar por algumas etapas fundamentais,
não apenas na pesquisa empírica, mas também no levantamento bibliográfico de fontes
teóricas e históricas importantes, para: a) definir e situar o trabalho doméstico e seu papel na
sociedade brasileira atual, considerando sua posição na divisão trabalho; b) investigar as
formas pelas quais se dão as relações entre trabalhadoras domésticas e suas patroas; c)
analisar as formas pelas quais trabalhadoras domésticas e patroas constroem uma imagem de
si mesma e da “outra” no contexto de interação face-a-face, considerando noções como classe,
raça e gênero; d) investigar como, quando e por quê trabalhadoras domésticas acionam
identidades de classe, de raça e de gênero; e) descortinar os contextos sociais onde essa
relação se insere, considerando-os na sua diversidade e complexidade.
III. O método
Tendo como objeto de análise o discurso de trabalhadoras domésticas e patroas sobre
as relações do trabalho doméstico, buscou-se técnicas mais abertas de coleta de dados
qualitativos que dessem conta de contemplar o objetivo proposto. Elas, se não garantem uma
representatividade estatística em grande escala, permitem a investigação em profundidade de
histórias de vida, estratégias individuais e coletivas, casos singulares em contextos
particulares. Há que se reconhecer que tais técnicas não permitem generalizar seus resultados
para grandes contingentes populacionais. As teorias da identidade que serão discutidas ao
longo deste trabalho e aplicadas na análise do material empírico coletado sugerem que tal
abordagem implica uma “teoria do ponto de vista”, uma abordagem contextual, que possa vir
a ser articulada e comparada com outros estudos, em outros contextos, ou mesmo com estudos
estatisticamente representativos de um contexto mais amplo
14
Os objetivos da pesquisa conduzem à necessidade de analisar o discurso de
trabalhadoras domésticas e patroas a respeito de suas relações em torno do serviço doméstico.
A abordagem do discurso feita por Foucault (1996) será a base da abordagem teóricometodológica para a interpretação do material da pesquisa empírica. Segundo este autor, um
sujeito social se constitui por meio do discurso, entendido aqui como a construção e
representação lingüística do mundo social imposta por um indivíduo ou grupo na relação com
outros dentro de um contexto de significação. Nessa abordagem, discurso e sujeito se
constroem simultânea e mutuamente. Assim, a compreensão da construção do discurso nos
levará à constituição do próprio sujeito social. Todo sujeito produz um discurso a partir de um
lugar na sociedade, de uma determinada posição na estrutura social.
A entrevista semi-estruturada foi a principal técnica utilizada. Essa técnica tem como
característica permitir uma interação entre pesquisador e pesquisado tal que este se sinta mais
à vontade para falar sobre o que é solicitado, sem a interferência freqüente do pesquisador. A
intenção da utilização deste instrumento é criar estímulos para que as respostas sejam dadas
em forma narrativa, abrindo espaço para a reflexão, elaboração, e ordenação própria do
sujeito respondente. O recurso à memória e ao raciocínio são características desse tipo de
técnica de pesquisa, o que permitirá analisar, dentro das falas dos entrevistados, as
vinculações e relações efetuadas por eles sobre as experiências de vida em torno do trabalho
doméstico. Assim como Rollins (1985), partilho da opinião de que aqueles que vivenciam a
experiência do trabalho doméstico tem muito o que dizer, e essa fala, perpassada pela
experiência, é material rico para o sociólogo. Portanto, o método qualitativo e a técnica aqui
empregada buscam contemplar a dimensão da experiência na vida social.
Foram executadas 14 entrevistas semi-estruturadas, sendo 7 com trabalhadoras
domésticas e 7 com patroas, tomando as duplas – trabalhadora doméstica e patroa – da mesma
residência. A opção de entrevistar trabalhadora doméstica e patroa da mesma residência foi
muito útil para a compreensão da interação entre elas, visto que se pôde interpretar a relação
de ambos os ângulos, o que enriqueceu os resultados e forneceu alternativas às abordagens
anteriores que se preocuparam em investigar o serviço doméstico a partir de apenas uma das
personagens que dele fazem parte.
O método de amostragem utilizado foi a amostragem teórica. Segundo Flick (2004), a
amostragem teórica tem por princípio básico selecionar casos ou grupos de casos de acordo
com critérios concretos que digam respeito ao seu conteúdo, em vez de utilizar critérios
metodológicos abstratos. A continuidade da amostragem se dá de acordo com a relevância dos
casos, e não com sua representatividade. Essa técnica não se baseia nos princípios usuais de
15
amostragem estatística. A representação de uma amostra não é garantida nem pela
amostragem aleatória nem pela estratificação. Ao invés disso, grupos ou indivíduos são
selecionados de acordo com seu nível “esperado” de novos insights para a teoria em
desenvolvimento em relação à situação da elaboração da teoria até o momento. A escolha de
uma amostra, na realidade, assume possibilidades infinitas. Nessa técnica de amostragem
teórica, em particular, devem ser escolhidos grupos de acordo com critérios teóricos. A
limitação da amostra é dada por critérios definidos em relação à teoria, considerando o quanto
o caso seguinte será promissor e qual a sua relevância para o desenvolvimento da pesquisa. O
critério utilizado, de acordo com a teoria, para interromper a coleta de dados é a “saturação
teórica” da categoria. O ponto de saturação é alcançado quando não mais se encontra nenhum
dado adicional através do qual o pesquisador possa desenvolver propriedades da categoria, ou
seja, quando não se encontra nada de novo nos dados coletados. De acordo com Flick (2004),
a amostragem teórica é a forma genuína e típica da seleção de material na pesquisa
qualitativa.
A pesquisa foi realizada apenas com mulheres devido ao fato de aproximadamente
95% (DUTRA & MORI, 2008; BERNARDINO-COSTA, 2007; BRUSCHINI &
LOMBARDI, 2000; IPEA, 2008), das pessoas inseridas no trabalho doméstico remunerado
serem do sexo feminino. Ou seja, é uma ocupação predominantemente feminina e feminizada.
Os poucos homens integrantes da categoria ocupacional ocupam posições bem específicas
como jardineiro, motorista e mordomo. Como a pesquisa visa compreender as interações mais
especificamente dentro do ambiente doméstico, essas posições puderam ser excluídas sem
prejuízo. Escolheu-se entrevistar, do outro lado, as patroas, porque são elas, de acordo com os
estudos anteriores, quem estabelecem um contato mais direto com as trabalhadoras
domésticas, que supervisionam, que dão as ordens, que observam, enfim, que se relacionam
mais diretamente com as contratadas. Daí a delimitação dos sujeitos da pesquisa.
O recrutamento das pessoas participantes seguiu diferentes estratégias. Desde o
recurso à rede de contatos pessoais, cujos integrantes indicaram possíveis participantes, até o
método “bola de neve”, no qual uma entrevistada indicou outra a ser entrevistada, e essa
indicou outra, e assim por diante. As estratégias variaram e o controle de atributos como cor e
ocupação das patroas foi flexibilizado justamente para captar a diversidade espontânea do
contexto pesquisado. O contato inicial foi feito em certos casos com a patroa, e em outros
com a trabalhadora doméstica. A primeira contactada indicava sua parceira de interação. Com
o aceite de ambas, as entrevistas eram agendadas em datas, lugares e horários específicos para
16
cada uma, de forma a evitar qualquer tipo de interferência de uma no andamento e no
resultado da entrevista da outra.
Fizeram parte da amostra recrutada apenas aquelas trabalhadoras domésticas
mensalistas que trabalhavam no mínimo cinco dias na semana. Dessa forma, a categoria
chamada diarista, que presta serviços descontínuos e esporádicos, não fez parte do universo
pesquisado, visto que o objetivo da pesquisa é o de compreender as relações estabelecidas
continuamente no cotidiano doméstico entre as partes contratante e contratada.
As entrevistas foram executadas na cidade de Goiânia, Goiás, estendendo-se também
para Aparecida de Goiânia, cidade vizinha, onde moravam duas das trabalhadoras domésticas
entrevistadas. A extrapolação da cidade alvo da pesquisa já era um fato esperado, haja vista
que, como ocorre em todas as capitais, em geral as patroas residem nos bairros centrais ou
nobres da cidade, enquanto as trabalhadoras domésticas ocupam geralmente as periferias da
cidade e cidades vizinhas na região metropolitana, como foi o caso.
A pesquisa apresentou algumas dificuldades, sobretudo na seleção das entrevistadas.
Várias trabalhadoras domésticas e patroas ficaram com receio de conceder entrevistas, já que
a metodologia previa a participação de ambas, falando sobre a mesma relação. Os temores
decorreram da desconfiança de que pudesse haver algum fluxo de informações mais íntimas
de trabalhadora doméstica para patroa, e vice-versa, via pesquisador, o que poderia prejudicar
a relação de trabalho que, em alguns casos, já parecia ser conflituosa. É claro que o fato de o
pesquisador ser do sexo masculino intimidou algumas mulheres, que preferiram não
participar. Desse modo, algumas entrevistas chegaram a ser feitas, ou com a trabalhadora
doméstica, ou com a patroa, porém, como a outra parte não aceitou ou desistiu de participar, a
entrevista isolada não entrou diretamente na análise mais específica, ainda que tenha sido
muito útil para as análises gerais das condições de vida e da relações de trabalho de patroas e
de trabalhadoras domésticas.
Outra questão que também se coloca são as dificuldades, já esperadas, que decorreram
da execução de uma pesquisa sobre a relação entre mulheres no espaço doméstico,
considerando aspectos de classe, raça e gênero, conduzida por um pesquisador do sexo
masculino e negro. Certamente, a minha condição como pesquisador limitou as possibilidades
de uma observação continuada da relação no espaço doméstico onde ela se desenvolve. Tentei
buscar compensações para estes limites na entrevista, cobrando o máximo possível de
detalhes do cotidiano da interação. Não obstante essa limitação, informações muito
reveladoras puderam ser coletadas, permitindo realizar interpretações sem prejuízos
significativos. A pesquisa, assim, pôde avançar sobre os aspectos da interseccionalidade que
17
fazem parte da estruturação e recriação cotidiana das relações entre patroas e trabalhadoras
domésticas.
IV. Plano da dissertação
O estudo das relações entre trabalhadoras domésticas e patroas se inicia com o resgate
das características principais do trabalho doméstico nos moldes escravocratas, presentes na
historiografia que cobre principalmente o século XIX, e da integração do negro à sociedade
capitalista e republicana na primeira metade do século XX. Em seguida, o trabalho do negro
depois da Abolição, sobretudo o trabalho doméstico, será analisado considerando as
contribuições das teses de Gilberto Freyre, Florestan Fernandes. Na seção seguinte, será
desenvolvida uma revisão dos resultados dos estudos mais recentes sobre o trabalho
doméstico, seus sujeitos e relações. Na quarta seção terão lugar os direitos das trabalhadoras
domésticas até agora conquistados, e os que ainda faltam para que ela alcance o status de
cidadão dos demais trabalhadores. A quinta e última seção busca uma síntese sobre a relação
entre trabalho e subalternidade.
No segundo capítulo, o objetivo é discutir a relação entre as noções de identidade,
diferença e desigualdade a partir do ponto de vista de diferentes abordagens teóricas. Essa
discussão enriquecerá o quadro teórico-conceitual da interseccionalidade e articulação entre
gênero, raça e classe, que será apresentado no capítulo seguinte. A primeira seção visa
justificar a importância da compreensão da identidade na relação em foco. A segunda sessão
considera a importância da identidade para a resolução de problemas fundamentais da
sociologia, como a cisão entre individuo e sociedade na maioria das análises. Na seção
seguinte, o objetivo é abraçar uma noção não-essencialista das identidades, tomando partido
dela no presente trabalho. Na quarta seção apresentamos a noção de identidade e diferença
dos estudos culturais, na quinta seção apresentamos a versão relacional da identidade no
interacionismo simbólico para, então, na última parte, proceder a uma síntese das duas
abordagens, com o objetivo de fundamentar metodologicamente o estudo qualitativo dos
processos de diferenciação e identificação que se busca compreender.
O terceiro capítulo se inicia com a discussão do conceito de interseccionalidade e sua
utilidade para pensar a relação entre trabalhadoras domésticas e patroas. A segunda parte
esclarece a noção de intersecção nas suas determinações de classe, raça e gênero. As seções
18
seguintes se dedicam à análise dos dados qualitativos coletados, primeiro sobre as
trabalhadoras domésticas, depois sobe as patroas, depois sobre a dinâmica complexa dessa
interação. Para fechar o terceiro capítulo, retoma-se a vinculação entre interseccionalidade e
desigualdade. A partir da problematização dos conceitos de raça, classe e gênero, noções
centrais para a teoria social na atualidade.
A conclusão não traz respostas definitivas, mas sim algumas constatações que podem
apontar para questões novas que dizem respeito tanto às estruturas da nossa sociedade quanto
às situações de interação mais próximas.
CAPÍTULO 1 – O SERVIÇO DOMÉSTICO, ONTEM E HOJE, NO
BRASIL
19
1.1 O legado da escravidão
O sistema escravista de organização da sociedade sob o qual o Brasil se desenvolveu
durante séculos inevitavelmente deixou marcas para além de seus limites históricos. O seu
legado seguiu, no período pós-abolição, influenciando mais ou menos diversas configurações
relacionais, dentre elas as relações de prestação de serviço doméstico. Até hoje, no domínio
das representações, o trabalho doméstico remunerado é relacionado ao trabalho escravo,
desempenhado pela escrava negra, cujo ícone é a figura da mucama, da preta velha e gorda,
habilidosa na cozinha e carinhosa no cuidado com as crianças e com a casa. Essa figura é
recorrente na literatura sobre escravidão no Brasil. Embora não seja objetivo deste trabalho
fazer uma revisão da literatura sobre a escravidão no Brasil, considero importante
contextualizar o trabalho doméstico executado no contexto escravocrata para esclarecer
continuidades e rupturas que hoje se encontram presentes na relação abordada. Espera-se,
assim, compreender algumas das características dessa atividade no atual contexto, que ainda
hoje influenciam a compreensão e interpretação das relações entre trabalhadoras domésticas e
seus empregadores.
O trabalho doméstico é uma ocupação bastante antiga no Brasil e as relações sociais e
situações que envolviam seus agentes ao longo do período de escravidão são intrinsecamente
relacionadas à estrutura da sociedade escravocrata e à condição dos negros nessa sociedade.
Por isso, esse capítulo começa com a reconstrução das condições do elemento negro na
sociedade brasileira no período que vai do início do século XIX, cobrindo o período PósAbolição, até a metade do século XX para tentar compreender as continuidades e rupturas nas
relações de trabalho, sobretudo no trabalho doméstico, após a conquista do status “livre” por
parte dos negros.
De acordo com Costa (1998), o regime de escravidão deixou heranças culturais e
sociais. Após a abolição, restou o problema da integração do negro na nova ordem social e a
conquista do status de homem livre. O fim do escravismo exigia a reelaboração da autoconcepção de status por parte dos negros e mestiços, a formação de novos ideais e padrões de
comportamentos, além de uma mudança de comportamento do homem branco diante do negro
livre. Entretanto, a mudança legal não implicou uma mudança automática de valores. Os
negros permaneceram em uma situação de dependência econômica e as representações
racistas só muito lentamente vêm mudando. Sobreviveram representações e estereótipos
20
associados à cor e às diferenças raciais forjadas no tempo da escravidão, como a afirmação da
inferioridade mental, moral e social do negro. Assim, os significados que a cor e a diferença
racial tinham no regime escravista continuaram oferecendo as bases para padrões de
ajustamento inter-racial. Tipos de controle social que só tinham sentido na escravidão
continuaram a vigorar mesmo após a abolição, ainda que em um contexto econômico
diferente.
Como mostra Mattoso (1982), o negro africano trazido à força para o Brasil durante a
colonização passava por uma profunda despersonalização. Tratado como um animal de carga,
era capturado, vendido, alugado, usado como uma ferramenta, enfim, tratado como um objeto
ou animal qualquer, sem alma ou espírito, sem cultura ou saber. Inserido forçosamente na
colônia, reconquistava aos poucos parte da personalidade perdida, se adaptando de forma
muito precária diante das mais variadas e rígidas limitações que a sociedade colonial
impunha. A ruptura de personalidade e a “dessocialização” a que era submetido o escravo
implicava a interdição a qualquer personalidade jurídica ou pública. Ele não adentrava uma
função definida no modo de produção, mas ocupava as mais variadas posições das quais
dependiam a própria existência do senhor e de sua família. O senhor precisava mais do
escravo do que o escravo do senhor, mas, ainda assim, era este quem ditava as regras dessa
relação. A abissal inferioridade do escravo em relação ao seu senhor era juridicamente
sacramentada. O escravo não podia dispor sobre si mesmo. Por isso, sua sobrevivência
dependia da aceitação de seu papel, ainda que de maneira aparente e superficial, e da sua
obediência e lealdade ao senhor.
Desse modo, o negro se inseriu de forma completamente subalterna no mundo dos
brancos e as tensões dessa integração contraditória o levaram a aceitar seu papel subordinado.
Apesar do caráter desumano dessa forma de organização da vida social, os senhores, mais
cedo ou mais tarde, reconheciam que os escravos também eram seres humanos com os quais
eles inevitavelmente iriam construir relações de intimidade. Assim, a inserção do escravo e
sua aceitação no mundo dos homens livres dependiam dos resultados que seu trabalho
rendesse em termos não só de produtividade, mas também de lealdade, fidelidade e
obediência. Esses fatores eram os constituintes da identidade do “bom escravo”, que poderia
ser formada de maneira suave ou violenta (MATTOSO, 1982; GRAHAN, 1992).
Para o escravo recém chegado da África, havia uma dupla exigência de adaptação,
tanto em relação à sociedade dominante, quanto em relação aos semelhantes escravos. De
ambas dependia sua identidade, e a segunda adaptação era tão difícil quanto a primeira.
Primeiro, pela barreira da diferença de idioma e religião. Segundo, porque o casamento entre
21
escravos era mal visto ou mesmo proibido em alguns lugares. Considerando-se o número
muito superior de homens escravos em relação ao de mulheres escravas, a família não se
constituiu como uma unidade de integração e construção da identidade do negro. Essa relação
de proximidade, afetividade e amizade era mais procurada – e frequentemente mais bem
sucedida – nas relações de vizinhança, nas confrarias, no grupo de trabalho, na religião e no
lazer. Os crioulos1, criados na família do senhor, eram fortemente marcados pelos valores dos
brancos. Eles tinham maiores problemas de integração e adaptação: por um lado, não eram
brancos, pois eram filhos de escravos negros ou mestiços; por outro lado, eram socializados
nos valores e na moral dos brancos. Assim, os crioulos eram objeto de contradição, porque os
brancos esperavam muito mais deles do que do negro importado da África, e, por isso,
exigiam e pressionavam-no muito mais do que qualquer branco. De outro lado, mesmo sendo
negros ou mestiços, tinham dificuldade de se integrar aos demais escravos, em decorrência de
seus valores e formas de pensar e agir aprendidos a partir da ótica do senhor. Dessa forma, o
crioulo, mais ainda do que o negro, era forçado a uma dupla adaptação.
Ainda de acordo com Mattoso (1982), a obediência, no contexto do trabalho escravo,
se mostrava não como uma alternativa, mas como uma necessidade. Contudo, essa
necessidade surgia de maneira diferente conforme o contexto, se no campo ou na cidade. A
obediência dependia do trabalho que era executado. Os escravos foram trazidos à força
primeiramente para o trabalho ao redor da cana-de-açúcar no ambiente rural. A estrutura
produtiva do engenho exigia uma organização racional, mas reduzida a poucas posições na
cadeia produtiva. Assim, o escravo estava cercado de perto por um forte sistema de
dominação e controle adaptado às necessidades de exploração. Nesse sistema, o proprietário
tinha o controle quase total e o escravo não passava de uma ferramenta, sobrando uma
margem de mobilidade social muito próxima de zero. Já nas minas, as relações entre senhores
e escravos, brancos e negros, eram menos rígidas, permitindo confraternizações. Fortuna feita
ou esgotados os recursos e o solo, o explorador vendia seus escravos ou vendia a eles a
liberdade. Nesse contexto, muitos escravos se tornaram libertos, chegando às vezes a se
associarem livremente aos brancos. Havia uma maior possibilidade de mobilidade, podendo o
negro ascender em uma estrutura social mais fluida.
Nas cidades grandes, a sociabilidade urbana era menos dicotomizada. Nela se
concentravam as atividades comerciais, os serviços produtivos e pessoais e a administração
1
O termo crioulo assume dois sentidos na bibliografia sobre a escravidão nas Américas. Quando referido ao
colonizador, sobretudo espanhol, o termo designa o branco nascido na colônia. Aqui, emprega-se o segundo
sentido, mais popular no Brasil, que designa os escravos nascidos no Brasil, mestiços ou não, que falavam
português e eram criados na família do senhor e educados segundo os valores da família branca.
22
pública. Os escravos eram destinados às atividades mais vis, sujas, rejeitadas pelos homens
brancos que não queriam se “sujar” ou “rebaixar” executando serviços manuais. Mas ainda
assim havia possibilidades – pequenas – de mobilidade. Na cidade vivia um grande
contingente de pessoas que não eram nem escravos, nem proprietários, nem funcionários
públicos, nem comerciantes, constituindo uma camada intermediária bastante heterogênea, o
que facilitava a mobilidade social. O escravo urbano era mais independente que o escravo
rural. Não era raro os senhores alugarem seus escravos e estes passarem longo tempo
trabalhando bem longe, o que permitia uma maior circulação pela cidade e o estabelecimento
de vínculos com seus semelhantes (COSTA, 1998; MATTOSO, 1982).
Os privilégios recebidos pelos escravos urbanos “da rua” se aproximavam dos
recebidos pelos escravos domésticos, o que não os eximia da necessidade de obediência. A
literatura mostra que os escravos domésticos eram, dentre todos os escravos – na zona rural,
urbana, nas minas, etc. – os “mais bem tratados”. Eram escolhidos a dedo pelos seus senhores,
que buscavam neles características que os assemelhassem o quanto possível aos brancos, já
que era com eles que os senhores, e principalmente as senhoras e os filhos, passariam a maior
parte do tempo. Contudo, as exigências impostas a esses escravos e escravas não eram
menores. Suas jornadas de trabalho costumavam ser maiores que as dos demais escravos –
apesar de seu trabalho ser menos árduo –, executavam jornada dupla na residência e nas ruas
comercializando quitutes e artesanatos, e a intimidade e a proximidade com a família do
senhor supunha inevitavelmente um maior controle e vigilância do trabalho e exigia maior
obediência e fidelidade.
Falou-se muito que os senhores escolhiam para seu serviço pessoal os escravos
próximos do modelo branco, os nascidos no Brasil, por vezes na própria família do
proprietário, nela nascidos e educados, os criados, vale dizer, literalmente „criados‟
e moldados na casa grande. Quando se trata de vendê-los, os senhores não
economizam elogios às suas qualidades e os periódicos os descrevem em seus
anúncios como indivíduos estimáveis e capazes. Além disso, os escravos domésticos
tornam-se facilmente indispensáveis aos seus senhores, aos quais se devotam
cotidianamente ou lhes proporcionam o fruto do trabalho que executa fora, além das
tarefas da casa. Grande número de escravos domésticos saem com seus tabuleiros de
doces e rendas que vendem nas ruas para o senhor, proporcionando-lhe lucros
suplementares não-desprezíveis. Mas nem tudo é idílico na vida do escravo, sempre
debaixo do olho do senhor, sempre controlado e vigiado. Para que possa esperar
subir na escala social e finalmente obter sua liberdade, o escravo doméstico, mais
que qualquer outro, deve praticar a obediência, a humildade e a fidelidade, virtudes
cardeais do “bom escravo” nos termos em que o senhor o modela (MATTOSO,
1982, p. 111).
Como mostra a autora nessa passagem, a obediência e fidelidade do escravo não se
deviam apenas à vigilância e à ameaça da violência, como um instinto de sobrevivência. A
obediência, além de necessária, era vista também como uma possibilidade de ascensão social.
23
Diante da inferioridade legitimada pela lei e pelos costumes, tanto no campo quanto na
cidade, ao escravo negro restava como única possibilidade de subir na escala social a adoção
de valores da sociedade branca. Oferecendo obediência, lealdade e disciplina ao seu senhor,
ele alimentava a possibilidade de receber em troca privilégios que o permitisse alcançar uma
posição melhor, ainda que minimamente superior a que ele se encontrava. A obediência,
assim como a dedicação ao trabalho e a aceitação da religião do branco, era uma moeda de
troca. Os escravos domésticos, vivendo mais perto do seu senhor, tinham mais chance de
aprender a língua e adquirir outras possibilidades que facilitariam a sua alforria.
Entretanto, para merecer um falacioso privilégio de viver na intimidade do senhor, o
escravo deveria estar à disposição dia e noite. Teria que ficar longe da vida comunitária do
“mundo negro” para evitar o trânsito de informações e dificultar rebeliões ou revoltas. Em
compensação, era mais bem vestido, morava melhor, tinha oportunidade de aprender a língua
e desempenhava um trabalho menos pesado que o escravo da cidade ou do campo. Ou seja,
tornava-se quase um branco, uma legítima cria, daí a nomenclatura criado (MATTOSO,
1982). Mas, ainda que não pudesse participar da vida comunitária com seus irmãos negros, o
escravo doméstico nutria um forte sentimento de pertença à sua “raça”, trafegando – com
dificuldade – pelos dois mundos. Eram discriminados por seus semelhantes em função de seus
valores brancos. Mas com freqüência usavam a astúcia e a mentira para tentar agradar ao
senhor e se integrar no grupo negro ao mesmo tempo.
A literatura não é consensual a respeito dos castigos corporais aplicados aos escravos,
principalmente os escravos domésticos. Mas, ao que parece, as flagelações corporais não eram
usuais ou freqüentes. Freyre (2000) reitera a personalidade sádica dos senhores, mas ao
mesmo tempo defende que a convivência entre negros escravos e brancos eram marcadas
também pela afetividade. Outros autores negam completamente a existência de afetividade e
respeito entre senhores e escravos, enquanto outros ainda defendem que as agressões eram
raras. Tudo indica que os senhores preferiam conquistar primeiro a afetividade e a anuência
de seus escravos, já que a utilização da violência de modo freqüente tendia a gerar revolta
entre os agredidos. Com certeza houve muitos senhores sádicos, mas o primeiro recurso era a
persuasão, ficando o castigo físico para o último caso. A sociedade escravista brasileira, por
mais rígida que fosse, sempre deixava brechas para a insubordinação pontual. As regras que
moviam as relações entre senhores e escravos, em dados momentos, poderiam ser
parcialmente recusadas pelos escravos. Os cativos não poderiam, claro, recusá-las por inteiro,
pois lhes restaria o castigo físico ou a morte. Mas eles frequentemente adaptavam as regras
(MATTOSO, 1992; COSTA, 1998; KARASCH, 2000).
24
A criança negra escravizada ocupava a parte inferior da pirâmide social. Sua
socialização e aprendizado no trabalho doméstico eram tão cruéis quanto o trabalho no campo
ou na cidade. Além do senhor e da senhora, submetia-se a todos os escravos encarregados de
sua formação. Era-lhe inculcada a ideologia da obediência e disciplina para que pudesse,
quem sabe, ascender socialmente e talvez comprar sua liberdade ou ganhá-la em troca dos
bons serviços prestados. Se não, seria relegada à multidão de trabalhadores braçais, levando
uma vida extremamente dura e sem esperança.
De maneira bastante detalhada, Mattoso (1982) mostra como as relações entre senhor
e escravo eram fundamentadas em uma desconfiança recíproca, mas esse embate era sempre
desigual. Se, de um lado, o senhor tinha a seu favor a lei e o poder de vida e morte sobre o
escravo, este por sua vez tinha suas armas que se mostravam frequentemente eficazes, como a
possibilidade de minar lentamente a autoridade do senhor, de sabotar suas ordens, de
prejudicar sutilmente a organização da produção, furtando alimentos, roupas, dinheiro,
mercadorias, ou o próprio desmazelo, lentidão proposital, trapaças, fugas, suicídio. Essas
formas de resistência, na sua maioria, coexistiam com a humildade e a obediência do escravo,
ou pelo menos não faziam alarde maior. O escravo não era um simples elemento passivo da
ordem social. Exercia cotidianamente a resistência que lhe parecia possível, tentando não
colocar sua vida diante de um risco maior do que o que a própria condição de escravo já lhe
impunha. Essa resistência sutil, muda e contínua era recorrente entre os escravos domésticos.
O trabalho, se realizado de forma eficaz, criava um espaço de liberdade, relaxando
relativamente a vigilância do senhor. Mas a vida do trabalho geralmente não era suficiente
para suprir as necessidades psíquicas dos escravos, que buscavam outros refúgios como as
confrarias e irmandades, que derrubavam as fronteiras étnicas entre os escravos das mais
diversas origens e permitiam a contestação ao sistema. Dentre as formas de resistência, as
mais expressivas e temidas eram as fugas em massa e rebeliões.
Não havia apenas senhores brancos e ricos. Eles estavam distribuídos em diversas
classes sociais e podiam ser “mulatos”, mestiços e mesmo negros. Ao contrário do que se
poderia esperar, o fato de um negro ou mulato se assenhorear de outro negro ou mulato para
seus serviços pessoais não garantia nenhum tipo de solidariedade. Independente de sua
condição de classe e cor, para o escravo o senhor era sempre branco, pois “ser branco” na
sociedade brasileira era adotar certas atitudes de dominação e exercer certo poder. Parecia
pouco provável uma relação de solidariedade entre senhor e escravo. Ainda que não se negue
o fato, há certamente uma polêmica a respeito da tese sobre os “senhores negros”. Tal tese
gera dúvidas sobre qual sistema teve proeminência no Brasil, se o sistema social ou racial.
25
Mas, de qualquer forma, o “ser negro” não garantia por si só a solidariedade entre os escravos.
Mattoso (1982) transcreve essa estrofe cantada com raiva pelos escravos:
Branco diz que preto furta,
Preto furta com razão,
Sinhô branco também furta,
Quando faz a escravidão.
A vida do escravo era marcada por uma hierarquia ambígua e por uma dupla moral.
Mas, mesmo diante da ambigüidade, o escravo não tinha escolha. Por outro lado, não poderia
acomodar-se se pretendia ascender socialmente. Somente através da alforria o escravo
experimentava a liberdade. Por isso, dedicava-se com astúcia a ser obediente e humilde para
conseguir se libertar. Na verdade, poucos escravos conseguiam se tornar livres, porque a
libertação dependia da vontade do senhor. Os que eram mais comumente libertados eram os
que já haviam remunerado com sobras o capital investido em si e demonstravam merecimento
pelos serviços prestados, também aqueles que apresentavam perigo para a organização do
grupo e a integridade do senhor e aqueles que já não tinham saúde para trabalhar. Alguns
senhores alforriavam os escravos com a condição de que continuassem trabalhando para eles.
Isso era especialmente freqüente entre os escravos domésticos. Os escravos domésticos, os da
cidade e os da mina tinham mais chance de conseguir a alforria, mas em troca disso
continuavam devendo obediência ao senhor. Assim, a alforria quase sempre era uma
armadilha. Aproximadamente 70% das concessões de liberdade dependiam de pagamento ou
eram submetidas a cláusulas restritivas. A carta de alforria, assim, era um ato mais comercial
do que caridoso (MATTOSO, 1982; COSTA, 1998).
Os escravos domésticos tinham, sem dúvida, mais oportunidades de conseguir a
alforria porque eram os que mais se dedicavam ao senhor e os que tinham mais oportunidades
de aprender as regras dos brancos. Essas alforrias dizem muito sobre o paternalismo
moralizador, mais interesseiro do que generoso, que parece persistir até hoje como marca
singular da relação entre trabalhadoras domésticas e patroas. Os escravos domésticos que
conseguiam comprar sua alforria mais rapidamente eram aqueles que desempenhavam
serviços nas ruas, como “escravos de ganho”, cuja remuneração era dividida com o senhor.
Entretanto, o escravo não tinha o direito de dispor livremente do que ganhava, salvo heranças.
Isto demonstra a forma do paternalismo e da tutela à qual eram submetidos os escravos. Sua
alforria nunca era um empreendimento solitário, mas o resultado do estabelecimento bem
sucedido de uma rede de solidariedade e troca de favores e conveniências. As cartas de
26
alforria eram um reflexo das mentalidades dos senhores. Não resultavam automaticamente em
liberdade, já que um alforriado quase nunca era tratado como igual na sociedade.
Ser libertado sob condições era ser escravo de certa forma. Mas a liberdade prometida
se tornava uma possibilidade real pelo menos para os filhos do liberto. Eram recorrentes os
casos em que o liberto pagava sua liberdade com prestação de serviços domésticos por longos
anos a outro empregador, credor de seu senhor, ou a seu próprio ex-senhor. O negro escravo,
principalmente o escravo doméstico, nunca foi um personagem simplesmente passivo da
história da escravidão. Aceitação e submissão eram táticas que faziam parte de uma dialética
na qual o cativo encontrava respostas para os problemas de sua vida dupla, de sua dupla
consciência (MATTOSO, 1982; FERNANDES, 1965).
Na sociedade escravocrata brasileira, de um modo geral, a ideologia do
embranquecimento ganhou uma força surpreendente. Por um lado, buscava-se “purificar o
sangue” e, por outro, apropriar-se do “novo branco” – o mestiço – fazendo-o romper os laços
com seus semelhantes e com sua cultura africana. As escravas domésticas, já escolhidas entre
todas as escravas por sua semelhança e proximidade com a raça branca, eram as que estavam
mais expostas ao ímpeto da homogeneização racial. Essa ideologia conduziu a profundas
contradições mesmo no interior dos grupos negros e mestiços. Como pobreza e negritude
passaram a ser sinônimos, o embranquecimento tornou-se o único meio de ascensão social, e
tornar-se branco era, antes de tudo, aderir aos valores brancos. Daí a animosidade entre negros
e mestiços, entre escravos e forros.
Freyre (2000) defende a tese de que a miscigenação existente no Brasil colonial
contribuiu para diminuir a distância social entre o negro e o branco que, de outro modo, teria
dificultado ainda mais ou impossibilitado a convivência “pacífica”. As condições que levaram
a essa miscigenação, segundo o autor, foram o sistema de produção baseado na monocultura
latifundiária – que exigia o modo escravista de organização da sociedade – e a escassez de
mulheres brancas entre os conquistadores. A miscigenação se deu sem impedir que se
construíssem hierarquias entre os brancos e os negros, atuando apenas no sentido de
“amolecê-la”. Os senhores, demonstrando forte inclinação ao sadismo, viram na escrava
passiva – tanto a indígena quanto a africana – a possibilidade de aumentar a sua prole e
consolidar a dominação. Além desses fatores condicionantes, Freyre afirma que a
miscigenação foi possibilitada ainda pelo fato de que as desigualdades se baseavam mais no
exclusivismo religioso do português do que em uma “consciência da raça”, o que se reforçaria
pela inclinação histórica do português decorrente de seu passado étnico e cultural de povo
intermediário entre a África e a Europa. Daí a “plasticidade” e a “flexibilidade” do
27
colonizador português que, segundo Holanda (1995), estariam presentes nas “raízes do
Brasil”. Tal interpretação, equivocada sob o ponto de vista aqui defendido, levou à crença
tanto numa “democracia racial” quanto no mito do “bom senhor”, como veremos mais
adiante.
Freyre (2000) destaca que no Brasil funcionou o ditado “Branca pra casar, mulata pra
f..., preta pra trabalhar” (p.87). Para o autor, isto revela a superioridade da mulher branca face
à preta, mas também a preferência sexual pela “mulata” que, aliás, foi sempre exaltada como
símbolo de beleza. Além da atração pela mulher “mulata”, o autor deixa de perceber (ou de
mencionar) sua desvalorização moral e social presente nessa preferência, já que o homem
branco via na “mulata” não somente as curvas de seu corpo, mas também a imagem da mulher
“fácil”, com a qual o intercurso sexual estaria sempre facilmente disponível. No interior de
uma seleção racial, as “mulatas” eram as mais frequentemente escolhidas para o trabalho
doméstico, ficando mais expostas às investidas libidinosas dos senhores.
As relações entre brancos e negros, especialmente entre senhores e escravos
domésticos, segundo Freyre (2000), seriam marcadas pelo sadismo do senhor e pelo
masoquismo do escravo. Esse sadismo de conquistador sobre conquistado, de senhor contra
escravo, se ligava à circunstância econômica e social de nossa formação patriarcal, que fazia
da mulher uma vítima do domínio e abuso do homem, reprimida sexual e socialmente pelo
pai, pelo marido e pela sociedade como um todo. Era freqüente o sadismo da mulher branca
para com os escravos, sobretudo com a escrava doméstica negra, quase sempre por ciúme ou
inveja sexual. Esse sadismo do senhor e o masoquismo do escravo iriam além da vida
doméstica, fazendo-se sentir nos planos social e político, em forma de comportamento
político autoritário e mandonismo. Entretanto, se do ponto de vista descritivo Freyre avança,
mostrando detalhes empíricos importantes, deixa a desejar na interpretação. O masoquismo do
escravo, que aparece em seu argumento como uma “inclinação volitiva” no comportamento
do negro, não é senão a consciência – ainda que fragmentada – do negro de que sua
integridade física dependia da sua obediência, inclusive às ordens que colocavam sua própria
vida em risco, ainda que totalmente contra a sua vontade (MATTOSO, 1982; GRAHAN,
1992).
A interpretação enviesada de Freyre (2000) alcança a sua mais forte expressão na
afirmação de que a intercomunicação e a fusão racial no Brasil se deram de maneira
harmoniosa. Mesmo admitindo a enorme desigualdade, o autor insiste que não se pode acusar
a sociedade brasileira de rígida ou fechada no que diz respeito à mobilidade social vertical,
sendo este país “um dos mais democráticos, flexíveis e plásticos” (p.123). Tal afirmação
28
reforçou a idéia da existência de uma “democracia racial no Brasil”, sustentada por outra idéia
correlata, a idéia que funda o mito do “bom senhor”, de que as relações entre senhor e escravo
no Brasil, diferentemente de outros países, seriam pautadas mais por uma inclinação solidária
e amistosa do que pela oposição hierárquica e violenta (BERNARDINO-COSTA, 2007,
2002). Tais mitos mascararam o ideal de “embranquecimento” inerente à miscigenação no
Brasil.
A interpretação de Freyre (2000) se tornou a interpretação hegemônica do Brasil, que
teve vigência durante muito tempo e até hoje manifesta seus resquícios. Tal interpretação cria
uma representação do Brasil a partir da casa-grande e da senzala – que, segundo ele, seria a
unidade de entendimento do Brasil – que permite visualizar de forma mítica as trabalhadoras
domésticas e a divisão sexual e racial do trabalho. Freyre, como sabemos, sintetizou tais
idéias sob o comprometimento com a construção de um projeto de nação. Segundo a sua
teoria, brancos e negros estavam hierarquicamente integrados na casa-grande e senzala,
complementando-se. Essa integração revelaria o caráter democrático do sistema social, tanto
do ponto de vista econômico quanto racial, que garantiria a possibilidade de mobilidade social
dos negros e pobres. A ascensão se daria pela miscigenação, pelo “branqueamento”, cujo
produto é o “mulato”, filho bastardo do encontro entre o senhor de engenho e a mucama.
Nesse sistema social, a escrava doméstica seria superior à escrava da senzala. Assim,
misturadas as raças, se construiria a narrativa da “democracia racial”, onde a raça deixaria de
ser o elemento significativo para a ascensão social das pessoas, dando lugar ao mérito. A
intimidade entre elementos opostos implicaria as relações sociais no Brasil colonial. Também
o equilíbrio de antagonismos e a harmonia de culturas marcariam o período “pós-escravidão”.
O resultado disso tudo, segundo Freyre, seria a formação de uma sociedade plástica, flexível e
democrática, caracterizada pela afetividade e comunicação entre raças e culturas, sendo uma
sociedade onde as relações raciais seriam singulares se comparadas com as de outros países,
como Estados Unidos ou África do Sul. Isso não significa que a desigualdade e o conflito
estariam fora das relações. Certo sado-masoquismo, segundo o autor, seria marca das relações
possíveis. Contudo, nesse argumento, o conflito, a exploração, a violência simbólica e o
próprio sado-masoquismo são camuflados em prol de uma interpretação que harmoniza os
pólos discordantes e condena toda interpretação baseada na violência, o que mancharia o
nacionalismo que se queria criar à época (BERNARDINO-COSTA, 2007, 2002).
O mito da “democracia racial” e o “ideal de embranquecimento” deram origem a uma
realidade social na qual a discussão sobre a realidade da população negra foi considerada
desnecessária, indesejável e mesmo condenável, sob a acusação de ser também racista. A
29
recusa em reconhecer essa realidade racial fez do Brasil uma das sociedades mais
preconceituosas do mundo (Bernardino-Costa, 2002). Diversos leitores de Freyre creditam
essa interpretação ao compromisso do autor com a construção de uma identidade nacional
mais homogênea e integradora, necessária à difusão da ideologia política do Estado Novo.
Diversos autores também concordam com as conseqüências negativas da disseminação desses
mitos raciais e das conseqüências práticas que eles adquiriram na vida cotidiana da população
brasileira, até mesmo entre a população negra (FERNANDES, 1965; SKIDMORE, 1976;
MATTOSO, 1982; COSTA, 1998; BERNARDINO-COSTA, 2002).
No argumento de Fernandes (1965), a homologia entre a estrutura social e a estrutura
racial deixava claras as possibilidades disponíveis para cada raça. Mas ainda assim, não foi
obstruída a representação ilusória que conferiu à relação entre brancos e negros o caráter de
uma democracia racial, que permitia atribuir a incapacidade do negro aos dramas humanos da
população de cor da cidade, isentando o branco de qualquer responsabilidade pela espoliação
e deterioração progressiva da condição do negro após a Abolição, formando uma falsa
consciência da realidade racial brasileira. Como consequência dessa idéia, fortaleceram-se as
idéias de que o negro não tem problemas no Brasil, de que não existem distinções de raças
entre nós, que as oportunidades de acumulação de riqueza, prestígio e poder foram as mesmas
para todos, que o povo preto estava satisfeito com a vida que leva.
Assim, o mito da democracia racial contribuiu para a inércia social, perpetuando os
esquemas de ordenação das relações sociais do passado e os privilégios dos grupos sociais
dominantes, que mantinham sua distância para com os demais grupos da sociedade. Em vez
de ser um elemento de dinamização, foi um elemento de estancamento, de estagnação. A
democracia racial fez parecer que a desigualdade entre negros e brancos era uma desigualdade
apenas de classe e não de raça. Porém, se os negros não puderam nem adentrar de imediato na
estrutura de classes que então se desenvolvia no Brasil no início do século XX, a desigualdade
não poderia ser vista apenas em termos classistas (FERNANDES, 2000).
Para Freyre (1968) o sistema casa-grande/senzala alcançou, em alguns pontos, um
nível avançado de acomodação do escravo ao senhor, do preto ao branco, do filho ao pai, da
mulher ao marido. Quando a paisagem começou a se alterar, no sentido das casas grandes se
urbanizarem em sobrados mais sofisticados e as senzalas se reduzirem a mucambos ou a
quartos de empregada, aquela acomodação quebrou-se e novas relações de subordinação e
novas distâncias sociais começaram a desenvolver-se entre ricos e pobres, brancos e pretos,
entre as casas grandes e as menores. Uma relação de poder que, apesar de diferente,
continuava a ser dominada pelos homens ricos e brancos, em detrimentos das mulheres, dos
30
pobres e dos negros. As trabalhadoras domésticas, ou as “criadas de servir” – nomenclatura
típica da época – seriam o elo principal que ainda vincularia o elemento negro ao branco,
agora separados em centro e periferia pelos processos de urbanização.
De acordo com Fernandes (1965), em seu estudo sobre a integração do negro na
sociedade de classes em São Paulo, a desagregação do regime senhorial e escravista operouse, na sociedade Brasileira, sem que se cercassem os antigos agentes do trabalho escravo de
garantias e assistência que os protegessem e integrassem na transição para o trabalho livre. Os
antigos senhores de escravos se eximiram da proteção sobre os libertos, e nem o Estado, a
Igreja ou qualquer outra instituição assumiram responsabilidades sobre a preparação dos
negros para o novo regime de trabalho. O liberto viu-se convertido em senhor de si mesmo,
responsável por sua família, embora não dispusesse de meios materiais para isso. A Abolição,
portanto, transformou-se em uma cruel espoliação.
A preocupação do senhor com o escravo sempre esteve ligada ao controle e
organização do trabalho. Com a Abolição, a atenção dos senhores volta-se para a proteção de
seus próprios interesses face à ameaça da nova condição dos negros. No conjunto, as próprias
condições psicossociais e econômicas que fundaram a ordem social competitiva tornaram-se
impróprias e perigosas para a massa de libertos. De outro lado, as limitações introduzidas em
suas personalidades pela escravidão impediam seu ajustamento à nova vida urbana.
Para Fernandes (1965), sem garantias e reparações materiais e morais, a Abolição
equivalia à condenação e à eliminação do negro do mercado competitivo do trabalho, ou, no
mínimo, ao aviltamento de sua condição, como agente potencial do trabalho livre, e o
desajustamento ocupacional e social. As condições em que se processou a Abolição não
permitiram que os negros fomentassem uma consciência coletiva que os possibilitasse se
posicionar racionalmente na direção da consolidação de um lugar decente na sociedade de
classes. Além disso, em todos os lugares, tinham de enfrentar a concorrência com o branco
imigrante e com o branco nacional, mais preparados psicossocialmente para o trabalho
assalariado nos moldes do novo regime. Tudo contribuía para aumentar a insegurança e a
ansiedade do elemento negro. As oportunidades de engajamento no trabalho agrícola ou
urbano representavam, para o negro, uma nova degradação.
O regime escravista não preparou o negro para agir como um trabalhador livre.
Preparou-o apenas para cumprir uma rede de ocupações e serviços os quais os agentes
brancos recusavam. A escravidão deformou o seu agente de trabalho, impedindo que o negro
e o mestiço tivessem plenas possibilidades de colher os frutos da universalização do trabalho
livre em condições de competição com os brancos. Deformou também o próprio trabalho
31
manual, tido cada vez mais como sujo e indigno. O colono branco, por sua vez, foi o agente
do trabalho livre assalariado, da transplantação de novas atitudes e mentalidade econômica, da
acumulação e poupança capitalistas. Ao perderem a posição de principal agente do trabalho
mecânico, o negro e o mestiço perderam as oportunidades de participar de forma vantajosa
das relações de produção e da distribuição de renda.
Entre os negros, a mulher encontrou maior facilidade de ajustamento no trabalho livre.
De um lado, no regime escravocrata, os serviços domésticos – sobretudo nas zonas urbanas –
não envolviam a mesma degradação física do seu agente do eito, na zona rural. O serviço
doméstico forçava um maior contato permanente com os brancos e facilitava as relações
paternalistas tradicionais. Assim, várias condições favoreciam a estabilidade da mulher negra,
enquanto serviçal doméstica. De outro lado, a concorrência com o estrangeiro não assumiu
proporções tão dramáticas nessa área. Por sua integração à rede de serviços urbanos, é a
mulher negra – e não o homem negro – que vai ocupar uma posição privilegiada no trabalho,
não pela sua recompensa, mas por sua estabilidade, exercendo essa atividade como um meio
de vida. Mas essa “vantagem” do trabalho doméstico não se estendeu para outras ocupações.
A participação marginal nos papéis socioeconômicos de real importância estratégica excluía o
negro como agente do crescimento urbano. Essa exclusão, por sua vez, acentuou o isolamento
econômico, social e cultural do negro, aumentando sua dependência e o seu apego à uma
herança cultural desvantajosa (FERNANDES, 1965).
Dentre os trabalhos mais executados pelos negros no meio urbano pós-Abolição
estavam: ajudante de pedreiro, pedreiro, biscateiro, criadas domésticas, camareiras,
vendedores ambulantes, carpinteiros, marceneiros, pintores. Mesmo os serviços menores, mas
que oferecessem perspectivas lucrativas, como peixeiro, jornaleiro, sapateiro, eram feitos
pelos imigrantes. Com freqüência, negros eram obrigados a trabalhar para italianos em
condições precárias. As vantagens de se trabalhar como criada doméstica no meio urbano,
para além das destacadas acima, estavam na possibilidade de receber roupas, utensílios e
objetos usados de seus patrões, além da possível indicação e recomendação para um emprego
melhor. Os escravos que saíram do eito sofreram muito com a Abolição e a fixação na cidade,
em função da pauperização e do abandono. Os negros vindos da casa-grande frequentemente
desprezavam os negros que viviam em piores condições e que não possuíam seus ideais.
Sentiam-se chocados com o modo “largado” de viver de seus semelhantes. E esse
distanciamento cultural gerava certos atritos entre negros. Apenas uma pequena parcela
apresentava comportamento inconformista, tentando forjar uma consciência que se inclinasse
32
para os interesses econômicos, sociais e políticos do negro. Os trabalhadores domésticos, pelo
contato que mantinham com os patrões brancos, preferiam não bater de frente com eles.
A cidade em si, segundo Fernandes (1965), não foi especialmente desumana e hostil
ao negro. Ela repeliu o escravo e o liberto, por não possuírem os atributos psicossociais
requeridos para a organização social do comportamento livre. Dessa forma, a questão não é
simplesmente racial, mas também se liga intrinsecamente à classe e ao contexto histórico de
transição do modo de produção. O isolamento econômico, social, e cultural do negro, com
suas consequências, foi o produto natural de sua incapacidade relativa de agir como homem
livre. As condições de anomia social não só preservaram o nível de pobreza inicial da
população negra, como agravaram-na, transformando o pauperismo em um estilo de vida na
cidade e na constante de seu ajustamento ao mundo urbano. Daí falar-se na “cadeia de ferro”,
que aprisionou negros e “mulatos” no círculo vicioso gerado pela miséria e em níveis de
existência que se aviltava e se degradava progressivamente, independente da sua disposição
ou esforço em sentido contrário.
A tese defendida por Florestan Fernandes foi, portanto, a de que a raça era um mero
epifenômeno das relações sociais frente as questões de classe. Em outras palavras, a
sobrevivência da raça (ou fatores raciais) na sociedade brasileira resultaria de uma transição
incompleta da ordem escravocrata pra a ordem livre. Porém, com o desenvolvimento da
modernização e industrialização das sociedades, o peso da raça desapareceria. Esta tese foi
contestada anos depois por Hasenbalg (1979), que demonstrou estatisticamente que a
desigualdade e a discriminação racial no Brasil não eram um mero efeito do ajustamento de
uma sociedade colonial aos moldes da sociedade de classe capitalista, mas que sua reprodução
se dava em escala institucional no seio das próprias instituições da chamada sociedade de
classes. Ou seja, a nova sociedade de classes da qual falou Fernandes manteve os padrões de
discriminação racial não apenas como um arcaísmo do passado, destinado a desaparecer, mas
como princípios que estruturaram as próprias instituições sociais, fazendo com que os negros
sofressem impactos sucessivos de tal discriminação ao longo de seus ciclos de vida.
Mas indica Fernandes (1965), de forma bastante pertinente, que as consequências
resultantes dos arranjos estruturais inerentes aos diversos tipos de famílias negras que se
formaram indicam que a mulher – e não o homem – era a figura dominante onde persistia
alguma desintegração nos laços familiares e conjugais. A mulher negra nesse período figura
como a artífice da sobrevivência dos filhos e até dos maridos ou compenheiros. Merece
destaque a citação de Fernandes (1965) ao considerar o papel heróico da doméstica negra:
33
“Sem a sua cooperação e suas possibilidades de ganho, fornecidas pelos empregos
domésticos, boa parte da „população de cor‟ teria sucumbido ou refluído para outras
áreas. Heroína muda e paciente, mais não podia fazer senão resguardar os frutos de
suas entranhas: manter com vida aqueles a quem dera a vida! Desamparada,
imcompreendida e detratada, travou quase sozinha a dura batalha pelo direito de ser
mãe e pagou mais que os outros, verdadeiramente „com sangue, suor e lágrimas!‟, o
preço pela desorganização da „família negra‟. Nos piores contratempos, ela era o
„pão‟ e o „espírito‟, consolava, fornecia o calor do carinho e a luz da esperança.
Ninguém pode olhar para essa fase do nosso passado, sem enternecer-se diante da
imensa grandeza humana das humildes „domésticas de cor‟, agentes a um tempo da
propagação e da salvação do seu povo” (FERNANDES, 1965, p.162).
A pauperização decorreu da degradação que sofreram com a perda do monopólio de
certos serviço que eram fontes regulares de ganho e de sustento e com a adaptação inevitável
à ocupações flutuantes, descontínuas e mal remuneradas. Assim, compreende-se que a
pauperização foi fator sócio-dinâmico fundamental. A desorganização social permanente
atuou como um fator de apatia compelindo o negro e o “mulato” a aceitarem como normais as
condições anômicas operantes no meio negro. Com a dificuldade em integrar os ex-escravos
aos imperativos da nova ordem social, o negro e o mulato foram enclausurados na situação
estamental do “liberto” e nela permaneceram mesmo depois da Abolição, ocupando uma
posição ambígua na sociedade.
O impulso de modernização foi intercalado e combinado com fases de compromisso
com o passado, de resistência a inovações sócio-econômicas imperiosas. Reminiscências de
estruturas arcaicas reconstruíram o “antigo regime” em várias dimensões da convivência
social, inclusive no serviço doméstico. Na raiz do fenômeno da desigualdade entre negros e
brancos após 1888, afirma Fernandes (1965), não há nenhuma intolerância ou ódio raciais
explícitos. Os brancos nunca colocaram uma barreira objetiva que impedisse a ascensão dos
negros após a Abolição, mesmo porque o negro nunca opôs resistência aberta, consciente e
organizada à dominação que sofria. Foi a omissão do branco, e não a ação, que redundou na
perpetuação do status quo dominante. Não havendo conflito direto, predominava a aceitação
de antigos padrões de acomodação racial.
1.2 O serviço doméstico antes e depois da Abolição
34
Considerava-se como doméstica, durante o século XIX, as mucamas, as amas-de-leite,
as carregadoras de água, as lavadeiras, costureiras, copeiras, cozinheiras e arrumadeiras. O
que as distinguia era apenas a especialização e o grau de supervisão. As mucamas,
encarregadas de adentrar os lugares mais íntimos da casa para servir seus senhores e seus
filhos, eram as mais vigiadas de todas. O trabalho da cozinha e os trabalhos de limpeza geral
da casa tinham um nível de vigilância intermediário. Já as carregadoras de água, as lavadeiras
e as costureiras trabalhavam quase sempre fora da circunscrição da casa e dos olhos da patroa,
podendo trabalhar para diversas famílias e ter uma vida independente no seu lar. Homens
negros estavam também presentes no serviço doméstico, mas não adentravam todas as
especialidades. Alguns inseriam-se nos trabalhos da cozinha. Os demais ocupavam funções
como a de criado pessoal, carregador de água e outros objetos pesados, além de cuidarem das
tarefas de manutenção das áreas externas das casas dos senhores e fazer demais serviços “de
rua” (GRAHAN, 1992).
As negras que executavam o serviço doméstico na casa dos grandes senhores na
primeira metade do século XIX, além de cozinhar, limpar e lavar, frequentemente eram
mandadas para as ruas a fim de vender quitutes ou obter um emprego externo. Os escravos de
famílias de renda média ou baixa, além dos cuidados com a casa, via de regra, trabalhavam
fora. As jovens “mulatas” que os donos anunciavam nos jornais para trabalhar alugadas nas
casas de cavalheiros solteiros quase sempre serviam também de amantes. A prostituição era
uma atividade quase exclusiva das negras escravas, seja para seu próprio ganho, seja para o
ganho de seu dono (GRAHAN, 1992; KARASCH, 2000; COSTA, 1998).
O sentido hierárquico não existia somente entre negros e brancos. Entre os escravos
domésticos também existia uma hierarquia, baseada na especialização de atividades, chefiada
pela mucama, criada pessoal geralmente bem vestida e digna de agrados e vantagens, de
ancestralidade mista, que, em vários casos, mantinha algum parentesco com a família
senhorial ou uma relação de amante com o senhor. Ela servia de governanta, supervisora dos
demais escravos, às vezes era ama-de-leite e ajudava na criação dos filhos do senhor. Na
hierarquia, depois da mucama, vinham os filhos bastardos reconhecidos do senhor, que
possuíam ocupações de maior importância social, cresciam com os outros filhos brancos,
sendo as meninas treinadas para serem mucamas e os meninos para serem pajens ou criados
pessoais (KARASCH, 2000).
Segundo Karasch (2000), o serviço doméstico era executado por homens e mulheres
negras. Os escravos pessoais de famílias ricas geralmente se distinguiam dos outros pelas suas
vestes. Eram, na sua maioria, “mestiços”. Outros escravos especializados de ambos os sexos
35
eram os cozinheiros e compradores. Havia também uma demanda especial pelas criadas que
faziam e lavavam roupas. No pólo mais inferior da hierarquia estavam os escravos que
desempenhavam as tarefas mais subalternas, como limpar, carregar água, servir à mesa,
auxiliar na cozinha e cuidar do lixo. Essas eram as tarefas dos africanos recém chegados, das
crianças, idosos e enfermos, que não tinham uma relação próxima com o senhor.
A
situação dos escravos domésticos, mesmo daqueles ocupados em tarefas menos subalternas,
geralmente era melhor do que a de outros escravos, tanto urbanos quanto rurais. Contudo, ser
um escravo doméstico não garantia por si só melhores condições de vida e tratamento. A
proximidade podia tanto significar maus-tratos quanto boas oportunidades.
De acordo com Freyre (2000), dentre os escravos, os “Congo”, os “Sombrenses” e os
“Angola” eram considerados os melhores para o trabalho no eito. Os da Guiné, Cabo e Serra
Leoa, eram considerados maus escravos, mas possuíam uma beleza de corpo singular. Por
isso, eram os preferidos para o trabalho doméstico nas casas-grandes. As negras dessa
descendência eram as preferidas dos senhores de engenho para o concubinato. Para servirem
de amantes dos brancos, as negras Minas e Fulas, de pele mais clara e “pré-dispostas” para o
trabalho doméstico, eram as preferidas. Essa “seleção racial” de determinados escravos para o
contato próximo com o senhor deixa claro o ideal de “branqueamento” presente na
estruturação das relações sociais. Algumas chegavam da África como escravas e eram
elevadas à condição de donas-de-casa, exercendo, às vezes, certos poderes que as
distanciavam relativamente da condição de escrava.
As chamadas mães-pretas ocupavam lugar de honra na família. Escravas alforriadas
em gratificação aos serviços prestados, tinham o respeito das crianças, brancas e negras, e os
escravos tratavam-nas de senhoras. Essa promoção de indivíduos da senzala à casa-grande
não se fazia à revelia, mas por um processo de seleção, atendendo a qualidades físicas e
morais. Dentre as melhores escravas da senzala eram escolhidas as “mulatas” amas-de-leite,
que cuidavam não só da alimentação como da higiene das crianças. Escolhiam-se as mais
bonitas, fortes, menos “boçais”, mais abrasileiradas e mais propícias ao cristianismo, escolha
feita com a finalidade de diminuir o risco de “contágio” das crianças pelas “pestes” negras.
Era freqüente o senhor conceder alforria ou contemplar em sua herança o escravo ou escrava
que saciava sua gula com iguarias. Mas isso não encobre o fato de que ao escravo negro eram
impostos os trabalhos mais imundos na higiene doméstica e pública dos tempos coloniais. Um
deles era o de carregar da casa para a praia ou aterros sanitários, na cabeça, os “tigres”, barris
de excremento que ficavam longos dias enchendo nas casas-grandes (FREYRE, 2000).
36
Grahan (1992), na sua pesquisa sobre o trabalho doméstico no Rio de Janeiro,
referente ao período entre 1860 e 1910, afirma que as relações entre domésticas e seus patrões
se davam em termos de proteção e obediência.
“As criadas atendiam às exigências de trabalho e obediência e, em troca, recebiam
proteção. De sua parte, os senhores as proviam nas necessidades diárias, cuidando
delas quando estavam doentes e proporcionando uma infinidade de favores
arbitrários que tornava concreto seu papel de patrões. O poder exercido pelos
senhores sobre os dependentes no domínio da família e dos agregados da casa era
privado e pessoal. Os dependentes não podiam apelar para nenhuma instituição
pública em sua defesa para contrabalançar o peso do poder privado ou temperar as
decisões pessoais do senhor. Ao contrário, o exercício de seu poder individual era
corroborado pelas tradições da lei portuguesa e eclesiástica, reforçadas pelas práticas
locais de escravidão” (GRAHAN, 1992, p. 15).
De acordo com esta autora, apesar das desigualdades bem marcadas, uma vida
doméstica compartilhada impunha inevitáveis intimidades. Essa intimidade, por vezes,
ameaçava as diferenças que definiam as relações. As imagens contrastantes da casa e da rua
marcavam os contextos do trabalho doméstico. De forma geral, a casa significava um domínio
seguro e estável, enquanto a rua representava o incerto, o imprevisível, o sujo, o perigoso.
Mas esses significados poderiam se tornar ambíguos para as domésticas: para elas, a casa
poderia ser o lugar de injustiça, punição, exploração, e a rua o lugar de liberdade.
Embora dependentes dos criados, os patrões os encaravam com a mesma suspeição
que julgavam negros e pobres em geral. Manter a criadagem implicava um risco, mas, dentre
os criados da casa, as mulheres representavam maior risco, na visão dos patrões, pois
normalmente desempenhavam as funções mais pessoais no serviço doméstico. As amas-deleite eram consideradas perigosas porque poderiam contaminar os filhos dos senhores com
doenças assustadoras. Elas eram vistas como o exemplo do dilema que todo criado
representava: um mal necessário.
Segundo a pesquisa de Grahan, realizada no Rio de Janeiro (1992), já na entrada do
século XX a maioria das mulheres trabalhavam, não apenas as escravas, mas as livres
também. Em 1906, a metade das mulheres que trabalhavam eram domésticas. Antes da virada
do século, eram a maioria, atingindo 70%. O serviço doméstico já era a maior ocupação
feminina e a presença das domésticas na vida urbana do Rio de Janeiro era maciça. As outras
ocupações desempenhadas pelas mulheres eram, na sua grande maioria, ocupações
subalternas.
O trabalho doméstico não era exercido somente por escravas. Escravas e livres, negras
e brancas poderiam ocupar as mesmas tarefas. O trabalho doméstico perpassava as diferenças
de cor, esbarrando, em termos práticos, apenas na fronteira de classe. O estudo das criadas
brasileiras demonstra que a situação de mulheres específicas confunde as categorias simplistas
37
de escrava e livre. Por diversas vezes, mulheres nas duas condições trabalhavam lado a lado.
Uma escrava podia, inclusive, viver fora da jurisdição de seu dono. Tendo sido muito tempo
fiel a uma família, podia gozar de alta estima e ser recompensada com a liberdade, enquanto
uma branca livre poderia ser vista com desconfiança e receber pouca estima. As criadas,
negras ou brancas, escravas ou livres, viviam em condições muito semelhantes (GRAHAN,
1992; MATTOSO, 1982).
A reforma sanitarista do final do século XIX e início do século XX incidiu sobre os
trabalhadores negros e pobres, principalmente sobre as trabalhadoras domésticas. A reação do
Estado foi a de pôr fim aos cortiços que cresciam nos centros das cidades, construir redes de
água e esgoto encanadas e mandar as populações pobres que ocupavam esses cortiços para as
periferias da cidade. Na década de 1860, os primeiros bondes possibilitaram a cidade do Rio
de Janeiro expandir-se em novos subúrbios residenciais. Todas essas mudanças alteraram os
tipos e locais de trabalho das domésticas e levaram à perda das relações de vizinhança nos
cortiços, onde elas conviviam com outros trabalhadores pobres (GRAHAN, 1992).
A distinção entre os ambientes da casa e da rua exigiam das mulheres um
comportamento público apropriado, em intensidade e significado diferente das expectativas de
comportamento dos homens. Estes, podiam desfrutar do trânsito fácil pelas rua para “fazer
negócios”, cultivar amizades, mas as mulheres de boa posição social que saíssem às ruas,
mesmo durante o dia, se não acompanhadas por suas criadas ou sem finalidade específica,
eram mal vistas. Tal situação não apenas reproduzia hábitos de distinção de classe entre as
senhoras como também identificava hierarquias entre criadas de condição variada, as criadas
portas adentro e as portas afora. Certas criadas conheciam as ruas, já outras eram proibidas
de sair de casa. Para as criadas acompanhantes, que saíam à rua para fazer compras ou passear
com suas patroas, a vida nas ruas era normal. Estas geralmente eram mais velhas e
experientes, conheciam os perigos e as artimanhas das ruas. Outras, como as cozinheiras e as
criadas alugadas para servirem dentro de casa, por exemplo, só podiam trabalhar portas
adentro (GRAHAN, 1992).
Já começavam a se disseminar agências de criados domésticos. Contudo, para os
proprietários, empregar criados indicados por agências apenas trazia mais problemas, pois
elas não lidavam com criados confiáveis. Entretanto, apesar da má fama das agências,
proprietários frequentemente recorriam a elas. Tais agências cresceram após a década de
1860, passando a indicar também os serviços de mulheres livres, brancas e imigrantes. A
abolição, em 1888, pouco afetou a forma de contratação de criados e criadas domésticas.
38
Muito da reprodução da desigualdade residia nos mecanismos de escolha de criadas
por parte dos senhores. Seus critérios iam além do custo e da disponibilidade, baseando-se
primeiro na condição legal – escrava ou livre – e na cor. Os termos “branca”, “preta”, “parda”
ou “mulata” eram utilizados correntemente para descrever a cor de uma mulher. “Preta”
designava quase única e exclusivamente a mulher escrava. Já quando se falava em uma
“senhora de cor”, designava-se uma mulher “preta” ou “mulata” livre. “Branca” era a
designação para a mulher que nunca havia sido escrava. Tudo isso indicava que a cor e o
status eram vistos como coincidentes. Dessa forma, patrões compartilhavam uma preferência
declarada por mulheres brancas, eram ambivalentes em relação às “mulheres de cor livres”,
mas quase sempre terminavam por se apropriar dos serviços das jovens escravas porque, além
do baixo custo, apresentavam mais resistência diante condições de trabalho, o que, na visão
dos patrões, compensava o “risco” que se imaginava assumir ao colocar uma criada “preta”
dentro de casa (GRAHAN, 1992).
Embora o emprego de mulheres negras fosse maior, as mulheres brancas livres cada
vez mais adentravam o serviço doméstico ao passo que o século XIX foi chegando ao fim. Tal
situação gerou apreensão e desconforto nos patrões. Se a escravidão havia permitido aos
senhores reterem o poder de conceder favores e punir escravos de acordo com suas próprias
regras pessoais, e ao escravo não sobrava alternativa senão obedecer, a partir do final da
década de 1870, as mulheres livres, principalmente brancas, inseridas no serviço doméstico,
não podiam ser sujeitas aos mesmos controles. Mulheres de cor e crianças que trabalhavam
diretamente sob a supervisão do senhor ofereciam menor ameaça à ordem tradicional da
relação entre senhor e criada. Assim, na virada do século, era clara a inversão da situação
anterior, ficando manifesta a preferência dos patrões por criadas de cor (GRAHAN, 1992;
MATTOSO, 1982).
Cada vez mais a empregada doméstica foi se distanciando do controle em tempo
integral da família empregadora. Nem pertencendo à família, nem sendo totalmente
desconhecidas, as criadas ocupavam espaço ambíguo e suspeito entre esses dois extremos. A
criadagem era, portanto, o elo que ligava classes e raças diferentes. E o dilema estava
colocado: para fazer funcionar uma casa, era necessário expô-la aos perigos da “rua”.
De acordo com Grahan (1992), a diversidade de tipos e lugares de trabalho doméstico
derivava do fato de que os lares, para funcionarem, necessitavam de serviços que somente
mais tarde começaram a ser fornecidos pelo Estado, via companhias de serviços urbanos. Fato
fundamental era o de que não havia sistema de água encanada e esgoto. Não havia geladeiras
e os moradores não produziam nem estocavam os alimentos que consumiam. Eram as criadas
39
que carregavam água, lavavam roupas nos chafarizes públicos e faziam compras diárias. Daí
surgirem distinções entre as criadas externas, que compartilhavam dos imprevisíveis e
grosseiros espaços públicos, e as criadas internas. Supunha-se que as primeiras eram mais
velhas, mais traquejadas e principalmente sexualmente experientes, enquanto as últimas eram
as protegidas, favoritas, porém, ingênuas e vulneráveis. Entretanto, para as criadas, os locais
de trabalho poderiam assumir sentidos opostos, invertendo os sentidos da casa e da rua, do
limpo e do sujo, do valorizado e do depreciado, do seguro e do perigoso. A vida da doméstica
revelava um mundo de significados ambivalentes.
Das criadas internas – ou portas adentro, na linguagem da época - esperava-se que
possuíssem habilidades de manusear utensílios domésticos de cozinha, além de dominar forno
e fogão e saber cuidar das roupas. Além dessas ocupações, amas-de-leite e mucamas
prestavam serviços no interior da casa dos patrões. As famílias selecionavam,
preferencialmente, uma criada da casa que tivesse dado à luz recentemente para amamentar
seus filhos. Ou então, alugava-se uma ama-de-leite, também chamada jocosamente de
“mercenária”, para morar na casa. A mucama era a que, de todas as criadas, se aproximava
mais intimamente da patroa. Uma mucama negra tinha a função de acompanhar de forma
confiável suas senhoras nas suas saídas, ajudá-las com as roupas íntimas, pentear seus
cabelos, abanar sua patroa na hora do almoço para espantar as moscas, ouvir pacientemente
suas memórias, comprar objetos importantes, carregar dinheiro e etc. As costureiras, antes da
chegada das máquinas de costura no Brasil, também trabalhavam muito próximas às suas
patroas, situação que se transformou apenas a partir da década de 1870. As criadas
empregadas nessas funções testemunhavam e participavam da vida diária de seus senhores
(GRAHAN, 1992).
Já em 1860 haviam desaparecido os famosos “tigres”, barris de excrementos que os
escravos eram obrigados a carregar na cabeça para despejá-los no mar ou em fossas.
Entretanto, as criadas domésticas ainda eram responsáveis por limpar urinóis e privadas,
conduzindo os excrementos até fossas públicas. Daí a força da vinculação do serviço
doméstico à sujeira, à imundície (FREYRE. 2000). Reforça essa idéia a avaliação moral das
criadas que executavam serviços fora da casa de seus senhores. Estar na rua sem uma
companhia adequada era o suficiente para que a criada fosse confundida com uma prostituta.
O ambiente da rua, no qual predominava uma linguagem predominantemente racial e sexual,
era considerado imoral. Para os patrões, era um favor que concediam para as criadas portas
adentro o fato de empregá-las no interior da casa, longe da contaminação moral das ruas. Os
40
patrões consideravam que o trabalho dentro de casa exigia mais habilidade e sensibilidade e,
por isso, as criadas encontravam maior satisfação em executá-lo.
As criadas pessoais, como as mucamas e amas-de-leite, podiam esperar ser
recompensadas com afeição e confiança. A proximidade gerava o contato direto e a afinidade
que a criada conquistava pela atenção dada aos patrões frequentemente lhe rendia
recompensas tangíveis. Tal intimidade as fazia ter contato com os hábitos de uma classe à
qual elas jamais pertenceriam, mas com a qual se identificavam. Em retribuição aos serviços
prestados, podiam receber roupas, jóias que as distinguiam de outras criadas com funções
inferiores, melhor alimentação, viagens junto com seus patrões, casamentos com os escravos
preferidos e, talvez, a alforria. Mesmo com a diminuição do número de escravos ao longo do
século XIX, as criadas pessoais foram as que se mantiveram por mais tempo ligadas aos seus
patrões por laços de lealdade e privilégio. Mesmo livres, muitas permaneceram até o fim da
vida trabalhando na casa onde cresceram (MATTOSO, 1982; GRAHAN, 1992).
A jornada de trabalho de uma criada era longa e rigorosa. Começava antes de
amanhecer e ia até a hora em que todos da família se recolhiam. Tinham trânsito restrito à
área de serviço, à despensa, à cozinha e ao quintal. Os recintos confortáveis, como salas e
quartos, eram proibidos para elas, a menos que estivessem executando determinado serviço ou
função que obrigasse a entrada nesses cômodos. Daí hoje em dia a vinculação dos negros,
principalmente das mulheres, à “cozinha” (nascer negro é “nascer na cozinha”). Apesar de ser
o lugar por excelência da criada na casa, os referidos cômodos também eram visitados
livremente pelas pessoas da família. Seu trabalho era sempre supervisionado de perto.
Aprendiam, com isso, a escapar das reprimendas ou punições aflitivas. Mesmo guardando
uma proximidade com os senhores, as criadas não podiam nem sonhar em discordar, sob pena
de ser alvo da raiva da patroa ou do abuso sexual do patrão. Estavam o tempo todo sujeitas às
acusações de furto de utensílios da casa, roupas e jóias. Ao invés da proteção, a reclusão
poderia representar o isolamento e o aviltamento das criadas (GRAHAN, 1992). Assim como
os significados da casa poderiam mudar, poderiam mudar também os significados da rua.
No interior da casa, os criados desenvolviam formas de resistência. Uma delas era
negar-se a fazer serviços que iam além de sua especialidade. Segundo notas de escritores da
época, sintetizadas por Grahan (1992), os escravos nunca resistiam abertamente nem
contestavam uma ordem de maneira explícita, mas recorriam a outros subterfúgios. As patroas
sabiam que quando pedissem a uma cozinheira para lavar as dependências da casa não iam
encontrar um serviço bem feito. Quando a casa possuía apenas uma criada, ela não tinha esse
pretexto. Porém, poderia executar seus serviços de maneira lenta e displicente. Se os criados
41
livres podiam ser despedidos se flagrados nesse tipo de comportamento, os criados escravos
não se preocupavam com isso, pois não podiam ser simplesmente despedidos.
A água encanada, a construção do sistema de esgoto subterrâneo e a rede de
transportes públicos alteraram gradualmente a natureza do serviço doméstico. Tal tecnologia
obrigou a diminuição do número de criadas empregadas no serviço de limpeza. Apesar da
falta de água constante e os problemas nos encanamentos, as criadas gradualmente foram
deixando de ir até os chafarizes públicos lavar roupas, o que trouxe conseqüências sociais
como o estreitamento da sua vida social, com o fim dos pretextos para escapar da vigilância
dos patrões e encontrar com os amigos nas praças e chafarizes da cidade. Tal mudança
contribuiu para o isolamento paulatino das criadas.
Mesmo antes da abolição, as escravas começaram gradativamente a conseguir horários
e locais para conduzir sua vida privada. Se grande parte das criadas livres já possuía sua casa,
ficando na casa dos patrões apenas durante o dia, as criadas escravas também começaram a
forçar o estreitamento dos limites de seu tempo de trabalho. Conseguiram êxito a ponto de os
patrões começarem a se organizar para tentar regular legalmente a permanência da criada na
residência em tempo total. Tais tentativas de regulação começaram a ser rebatidas pelas
criadas por meio de resistência passiva, expressa na lentidão, no desleixo e na mentira.
As relações de serviço doméstico eram incomodamente pessoais. As trocas diárias
dentro dos estreitos limites da casa acentuavam as tensões e tornavam difícil saber quem era e
quem não era da família. Tendo que confiar em mulheres que, por serem estranhas, não
obtinham sua confiança total, os patrões se tornavam vulneráveis. Tanto a criada experiente
como a muito jovem, aos olhos das patroas, apresentavam perigos. Se a criada era experiente,
apesar de apresentar maior traquejo e habilidade no serviço doméstico, poderia tentar impor,
pela própria experiência adquirida, sua maneira própria de fazer o serviço, fazendo valer sua
voz nos assuntos do lar. Aí então a dona de casa, para defender seu espaço, teria que reforçar
o seu comando e executar ela mesma alguma tarefa doméstica. Se a criada fosse inexperiente
e jovem, apesar de ser mais fácil de moldar que a criada experiente, não apresentava
habilidades muito desenvolvidas, demorava mais nas tarefas do lar, e apresentava o risco de
atrair para si os olhares cobiçosos dos patrões e de seus filhos (GRAHAN, 1992; MATTOSO,
1982).
As patroas demonstravam desconfiança ao vigiarem o tempo todo o trabalho das
criadas. Contudo, sabiam que a vigilância também deveria obedecer certos limites. Se
exagerada, provocava antipatia nas criadas, que buscavam saídas para tal opressão burlando o
trabalho. Se condescendente, a patroa sabia que era grande a possibilidade de desrespeito. No
42
equilibrar e desequilibrar da relação, ambas – patroa e criada – eram forçadas a algum tipo de
acomodação a fim de contrabalançar suas diferenças. O objetivo das patroas era manter as
criadas em disciplina e ordem, trocando proteção por obediência. Gestos benevolentes, na
presença de outras pessoas, confirmavam a autoridade conjugada ao poder de conceder ou
negar favores. Dessa forma, a benevolência expressa em público encobria um gesto que de
bondade não tinha nada, ao contrário, confirmava a desigualdade entre patrões e criados
(MATTOSO, 1982).
Uma criada branca e livre não necessariamente recebia o pagamento por seu trabalho
em dinheiro. Foi justamente a combinação entre as proteções tradicionais, o pagamento em
gêneros e os salários que proporcionaram uma continuidade que suavizou a transição do
trabalho escravo para o trabalho livre, influenciando, inclusive, a permanência das criadas nas
casas dos patrões em tempo parcial.
Grahan (1992) mostra que a administração disciplinada da ordem doméstica dependia
da manutenção da postura correta e distanciada dos senhores em relação às suas criadas.
Contudo, as ligações sexuais entre eles eram toleradas com facilidade, desde que sua
notoriedade não prejudicasse o poder dos senhores para impor respeito e que a propriedade
não fosse parar em “mãos erradas”. Se a conduta irresponsável e inadequada do senhor
expressasse um abuso da autoridade, pondo em risco todo o sistema, podia haver ingerência
dos demais membros de sua classe no domínio do seu lar. Para perdurar, a autoridade
precisava de limites. Isso era especialmente importante dado a ambigüidade da relação. A
proximidade entre criadas e patrões gerava tensões, pois os laços que os uniam eram
extremamente instáveis. Os patrões desconfiavam sempre de suas criadas, e essa desconfiança
gerava uma ambivalência. Isso era mais significativo quando as criadas moravam na casa de
seus patrões. Se morassem em casas separadas, os laços se tornavam mais frágeis, os patrões
não poderiam esperar a mesma lealdade e devoção, bem como as criadas não poderiam
esperar a mesma proteção. Mas ainda assim, havia obrigações recíprocas que deveriam ser
cumpridas e atualizadas no cotidiano.
Com a proximidade do fim da escravidão, o número de criados caiu muito em
diferentes cidades brasileiras, causando um desequilíbrio na oferta desse tipo de mão-de-obra,
balanceada pelo início do movimento migratório de europeus para o Brasil. Contudo, embora
os mecanismos legais que garantiam a escravidão tivessem em vias de serem extintos, a
condição escrava e sua moralidade e valores permeava e corroíam todas as relações sociais,
atingindo também as pessoas livres. A escravidão, combinada com o paternalismo,
estabelecera o paradigma para todas as relações entre senhores e criados, e a pressão para o
43
fim da escravidão parecia não causar nenhum impacto no plano dos valores (GRAHAN,
1992; FERNANDES, 1965).
Matos (1994) demonstra que, na virada do século XIX para o século XX, nos períodos
das crises do café, a população urbana dava saltos, crescia o número de trabalhadores que
ultrapassavam a necessidade do mercado de trabalho e se inseriam em diversas ocupações
precárias, temporárias, atividades domiciliares, eventuais e incertas. Nessa conjuntura de
rotatividade de mão-de-obra, o serviço doméstico era uma atividade que absorvia grandes
quantidades de trabalhadores, na sua maioria mulheres, fossem solteiras ou casadas, brancas
ou negras, nacionais ou migrantes, que em grande número moravam na casa dos patrões.
O movimento de ampliação da presença do imigrante no trabalho doméstico se insere
em um quadro de transformações do mercado de trabalho. O processo migratório foi
acompanhado da construção de um discurso que valorizava o imigrante branco, homem,
civilizado, ordeiro, pacífico – um perfil ideal para os serviços domésticos – em face do negro,
que encarnaria as características opostas.
Particularmente na década de 1920, os afazeres domésticos se alteraram em relação
estreita com o processo de expansão urbana e industrial. Se, por um lado, a água encanada, os
fogões a gás e a nova ordenação do comércio de víveres pouparam trabalho doméstico, os
surtos de febres e epidemias – que resultaram na ampliação do campo da medicina e elevaram
a importância da difusão de novas normas de higiene que, dirigidas quase sempre para o
interior das casas, elevou a importância da limpeza na vida das pessoas – ampliaram a
responsabilidades da dona-de-casa e das empregadas. Além disso, as exigências por uma
regulamentação do trabalho doméstico ficavam cada vez mais rigorosas, o que exigia também
certa produtividade das criadas aliada a uma maior racionalidade do trabalho doméstico
(MATOS, 1994).
O caráter invisível do trabalho da doméstica estava na repetição rotineira e no fato de
ser desnecessária a formação profissional para executar tal função. Todavia, a rotina se
diferenciava de casa para casa, de acordo com as exigências e com o estilo de vida dos
patrões. É certo que a introdução da água encanada, do fogão à gás e das novas normas
higiênicas modificaram um pouco a rotina do serviço doméstico, mas tal modificação foi
lenta, inconstante e experimentou resistências por parte das domésticas. Com o estímulo da
migração, também houve uma diversificação dos gostos e formas de preparar os alimentos, o
que gerou uma carga de trabalho maior para as domésticas (MATOS, 1994). A introdução da
água encanada teve como consequência a perda gradativa – não sem resistência – do caráter
público e externo da atividade da lavadeira nas margens dos rios e nos chafarizes. Essa função
44
passou a ser executada prioritariamente, embora não de forma exclusiva, no interior dos
domicílios dos patrões, onde as lavadeiras começaram a trabalhar como mensalistas ou
diaristas (FREYRE, 2000).
Uma das funções domésticas que possibilitavam melhores salários era a função da
ama-de-leite. Esse ganho mais elevado se deve à responsabilidade que essas domésticas
tinham com o cuidado dos filhos dos patrões, à paciência e a dedicação que ofereciam a eles.
A versão atual da ama-de-leite, a babá, continua sendo uma das ocupações domésticas melhor
remuneradas, dado que hoje, pelo menos entre as famílias mais abastadas, já se exige um
preparo técnico e um treinamento especializado para o cuidado de crianças.
O aleitamento remunerado era uma questão que preocupava pais e governos,
sobretudo na conhecida época da reforma sanitarista, período no qual se reforçou a imagem da
ama-de-leite enquanto principal agente de transmissão de doenças, como a tuberculose e a
sífilis, para os patrões e especialmente para seus filhos através do leite. Houve várias
tentativas de regulamentar essa ocupação, mas o que influenciou na gradativa diminuição das
amas-de-leite foram as questões de saúde pública e as alterações nas relações familiares. A
busca frenética pela higiene modificou a família ao adaptá-la à ordem urbana, redefinindo as
noções de mulher, lar, educação e higiene.
Disseminava-se uma noção de família orientada hermeticamente para o interior do lar,
o que conduziu a mulher totalmente ao ambiente doméstico, considerado o lócus privilegiado
da realização de seus talentos. A noção de que a responsabilidade por cuidar do lar e protegêlo das ameaças das doenças, da subversão moral e da criminalidade conduzida pelas criadas
domésticas seria toda da mulher, da dona-de-casa, introjetou nelas a importância da missão de
mãe. Dessa forma, a designação das mulheres ao espaço doméstico foi correlativa a uma
transformação na visão sobre o trabalho doméstico executado pelas criadas. Nessa atmosfera,
todo comportamento desviante, ameaçador, impuro, anti-higiênico, deveria ser combatido.
Entretanto, a utilização do serviço de amas-de-leite continuou até 1930 (RONCADOR, 2008;
MATOS, 1994).
Um dos principais elementos de continuidade presente no trabalho doméstico atual em
relação ao trabalho doméstico na escravidão ou no período pós-Abolição é a representação do
serviço doméstico como uma atividade que poderia ser realizada por qualquer um, sem a
necessidade de uma aprendizagem técnica. Desde muito cedo, escravas ou mulheres livres e
pobres se iniciavam nos trabalhos domésticos, cuidando inclusive de seus irmãos menores.
Essa necessidade treinava as meninas ainda na infância para executar esse serviço na vida
adulta.
45
As “criadas de servir” não exerciam as mesmas ocupações nem recebiam os mesmo
salários que os homens. Os serviços executados por elas eram desprestigiados, desvalorizados
monetária e socialmente. Os homens inseridos nos postos domésticos mais tradicionalmente
masculinos, como jardineiro e cocheiro, ou ainda como cozinheiro, criados e lavadores de
casa, ganhavam mais que as mulheres, com exceção da ama-de-leite (MATOS, 1994). Os
serviços domésticos sempre foram vistos como funções “femininas” que exigiam menor
esforço físico, eram monótonos e invisíveis aos olhos da sociedade, e isso era interiorizado
pelas próprias mulheres, que viam sua atividade como uma “ajuda” financeira aos maridos,
mesmo quando recebiam o mesmo ou mais que eles.
Matos (1994) destaca também os perigos que envolviam a execução do trabalho
doméstico no início do século XX, pouco mencionados em função da própria invisibilidade
que envolvia e ainda envolve a atividade. Os acidentes sofridos pelos criados chegavam às
vezes a deixá-los incapacitados. As lavadeiras eram atingidas por ferimentos nas mãos, além
de frequentemente sofrerem afogamentos nos rios, tanques e poços. As passadeiras eram
correntemente acometidas por queimaduras. As cozinheiras, além de queimaduras com água
ou óleo ferventes, sofriam picadas de cobras e escorpiões ao apanhar lenha. Os criados
sofriam acidentes com faca e machado, queimaduras no fogão e ao abastecer lâmpadas com
álcool ou querosene. Também sofriam quedas, fraturas e contusões. Muitas criadas sofriam de
varizes. Além da tuberculose, o reumatismo era uma doença freqüente entre os domésticos,
devido às deficiências na alimentação. Eram numerosas também as crises nervosas e
tentativas de suicídio.
A antiga estabilidade dos criados domésticos mantida pela escravidão foi substituída
por uma grande rotatividade no período pós-Abolição, que passou a preocupar patrões e
instituições públicas, levantando a discussão acerca da necessidade de regulamentação da
profissão. Esse imenso contingente de pessoas pobres era considerado um foco de
criminalidade que, dizia-se, precisava ser controlado. As preocupações não giravam em torno
apenas de garantir os bens materiais dos senhores, mas também de prevenir a contaminação
física e moral, baseado na crença de que a doença estava vinculada à pobreza e à sujeira e de
que os pobres, vivendo no espaço público, traziam para dentro dos lares a imundície e a
promiscuidade (GRAHAN,1992; MATOS, 1994).
Nas relações de trabalho no domicílio, tentava-se articular dispositivos estratégicos
capazes de, ao mesmo tempo, estreitar os vínculos e manter a hierarquia entre empregados e
patrões. Mesmo envolvidos numa teia de dominação, os criados aproveitavam as brechas
abertas, gozando de privilégios e chegando, às vezes, a estabelecer vínculos de amizade,
46
solidariedade e cumplicidade, em meio à tensão característica dessa relação. Por vezes os
criados preferiam bom tratamento que salários altos. Apesar da árdua rotina, às vezes tinham
roupa e comida. Quando a casa era farta, a condição dos empregados superava a de muitos
operários.
A maternidade alterava a participação da mulher no serviço doméstico. Em geral,
passavam a preferir o trabalho como diarista que morar na casa dos patrões. Às que moravam
fora, era permitido levar sobras de comida, roupas, utensílios domésticos e móveis velhos, o
que caracterizava uma espécie de “sobre-salário”. Além disso, frequentemente lhe sobrava
tempo para serviços ocasionais como lavar ou costurar “para fora”, ou fazer doces e quitutes
para vender.
Todavia, como mostra Matos (1994), era o autoritarismo e a violência que
caracterizavam as relações no cotidiano dos domicílios. Os criados eram explorados, malremunerados, tinham péssimas condições de moradia e alimentação, além de sofrer maus
tratos, agressões e abusos e de enfrentar uma extensa jornada de trabalho. Os noticiários
mostravam fugas de criadas, principalmente crianças, escapando de tais condições. Era
costume trazer menores para dentro de casa para executar os serviços domésticos em troca de
moradia, vestuário e alimentação. Algumas meninas enfrentavam um cotidiano de dominação,
humilhação, sendo usadas até para a iniciação sexual dos filhos do patrão. Eram constantes os
casos em que a patroa, enciumada, perseguia, expulsava ou agredia uma criada doméstica. O
medo marcava essa relação. Todavia não se podia esperar apenas passividade das criadas. A
resistência, embora baseada numa consciência fragmentada, era constante, através do furto, do
desmazelo, da lentidão.
Oscilando entre a repressão direta e a atitude paternalista, os patrões buscavam
controlar a execução dos serviços sem causar revoltas explícitas. Para isso, estabeleciam-se
relações bastante sutis onde o conflito era negado e camuflado sob imagens de harmonia e
serenidade. O patrão era identificado como pai e protetor, reforçando a autoridade sem
estimular a rebelião. “Era a ambivalência da relação de “controle-repressão-concessão” que
caracterizava o cotidiano dos domicílios, onde as práticas patronais constituíam estratégias de
um processo de dominação” (MATOS, 1994, p.211). Apenas a partir da década de 1930, com
a entrada de novas leis em vigor, o trabalho doméstico começa, muito lentamente, a sofrer
algumas modificações que, na verdade, serão sentidas apenas na década de 1960.
1.3 Os estudos atuais sobre o tema no Brasil
47
O objetivo desta seção é dialogar com os trabalhos cuja análise se volta para contextos
mais atuais em relação ao tema da pesquisa. Portanto, recuperaremos contribuições que
remetem ao contexto da década de 1960 até os dias atuais. O diálogo com essas contribuições
tem a intenção de perceber e reiterar as continuidades e rupturas em relação ao trabalho
doméstico, suas interações e sua composição de classe, raça e gênero. Além disso, será útil o
aproveitamento de avanços que tais trabalhos alcançaram para os argumentos que aqui serão
defendidos mais adiante.
Não são muitos os trabalhos desenvolvidos sobre o serviço doméstico no Brasil. A
maioria deles, feitos a partir de 1960, foi efetuada pelas perspectivas feministas. Salientam
que a “liberação” de muitas mulheres se deu à custa da subordinação de outras. Antes de
começarmos a discutir algumas das contribuições mais importantes, cabe uma ressalva. Até
agora, usou-se os termos “trabalhadora doméstica”, “empregada doméstica”, “criada”, ao
fazer referência aos trabalhos desenvolvidos sobre o tema no século XIX e na primeira
metade do século XX. Entretanto, como salienta Bernardino-Costa (2007), o desenvolvimento
de associações e sindicatos de trabalhadoras e trabalhadores domésticos, apesar de congregar
um número muito pequeno de agentes dessa ocupação (menos de 2%), têm enfatizado a
necessidade de combater todas quantas forem as manifestações que tenham como
consequência a degradação do trabalho e da imagem da trabalhadora doméstica. Na sua luta,
há décadas, pela regulamentação e formalização das relações de trabalho doméstico, um dos
pontos ao qual se tem chamado a atenção é o do sentido pejorativo que alguns termos
assumem, dentre eles o termo “empregada”, conotando a servidão paternalista típica do
contexto escravocrata. Na luta pelo reconhecimento da categoria, os sindicatos defendem que
o termo “trabalhadoras domésticas”, ao invés de “empregadas domésticas” é mais adequado
para se referir às agentes do serviço doméstico remunerado, afastando a visão pejorativa da
profissão. Por isso, se o termo “empregada” foi usado até aqui, foi porque o contexto
analisado antecedeu essa demanda, e porque o termo fazia mais sentido nas situações
históricas expostas. Daqui em diante, emprega-se o termo “trabalhadora doméstica” para
designar a agente do serviço doméstico remunerado, mas usa-se também o termo
“empregada” quando fizer referência a alguma consideração pejorativa.
Saffioti (1978) analisa a questão a partir de dois referenciais: o exército industrial de
reserva e a articulação do modo de produção capitalista com formas de trabalho não
capitalistas. Segundo sua perspectiva, os trabalhadores não inseridos nas formas capitalistas
de trabalho se inserem em trabalhos não-capitalistas. Na sua visão, a trabalhadora doméstica
48
não executaria tarefas capitalistas porque realizadas dentro do espaço doméstico da família.
Mas, embora não capitalistas, as tarefas da trabalhadora doméstica tornariam possível a
reprodução da força de trabalho. O trabalho doméstico remunerado, segundo esse argumento,
nasce com o capitalismo, mas não constitui uma forma capitalista de trabalho, pois é
remunerada com renda pessoal e não com capital, e não produz o que se chama de
“mercadoria”, no sentido marxiano, não produzindo, assim, mais-valia. Apesar disso, o
próprio capitalismo não pode passar sem esse tipo de trabalho, pois ele permite sua
reprodução. Assim, a relação entre empregador e trabalhadora doméstica não seria racional ou
impessoalmente capitalista, mas afetiva e paternalista. A autora, entretanto, fica devendo uma
análise mais detida das relações sociais estabelecidas entre trabalhadoras domésticas e
patroas.
Em torno dessa tese se desenvolveram outras, como a de que, se o serviço doméstico
contribui com a organização produtiva, é também um trabalho produtivo. Ou ainda a de que o
serviço doméstico é marginal no Brasil, mas é tanto maior quanto maior for o centro urbano
considerado, o que revelaria que o trabalho doméstico expressa a especificidade do
desenvolvimento capitalista no Brasil, que desencoraja a mobilidade social de uma parcela
importante da população. Várias são as classificações para o serviço doméstico no Brasil:
trabalho produtivo não capitalista, trabalho capitalista improdutivo, trabalho marginal, etc. A
relação de trabalho doméstico pode ainda ser considerada como uma relação de dominaçãosubordinação de tipo tradicional. Ou ainda, do ponto de vista da invisibilidade, o serviço
doméstico dependeria mais da qualidade da relação entre patroa e trabalhadora doméstica do
que do próprio conteúdo do emprego2
Para Saffioti (1978), Embora a independência financeira da mulher não seja condição
suficiente para colocar homens e mulheres em pé de igualdade, a atividade ocupacional
representa condição indispensável para a participação da mulher em outras esferas da vida
social. Por essa razão, a atividade profissional fora do lar é muitas vezes tomada como
progresso da condição da mulher em direção à igualdade perante o homem. Contudo, para
algumas mulheres, dependendo da atividade profissional, sua inserção no mercado de trabalho
torna-se um avanço apenas relativo. Algumas mudanças na sociedade brasileira a partir da
década de 1960, como a elevação da renda dos que alcançaram algum nível de instrução,
incremento dos membros da PEA que apresentaram educação de nível superior e acentuação
do grau de concentração de renda, dentre outros, levaram ao aparecimento de uma nova classe
2
Teses discutidas em Kofes (2001).
49
média de assalariados de rendas elevadas. Juntamente com o aumento da procura por bens
duráveis de consumo, aumentou também a demanda por serviços pessoais, principalmente o
serviço doméstico. Dessa forma, uma grande parte da força de trabalho que não foi absorvida
pela grande empresa, acabou se colocando a serviço da nova classe média. Neste processo de
marginalização de parte da força de trabalho, a mulher foi a mais prejudicada. A
modernização da economia não levou ao aumento significativo da participação das mulheres
na economia nacional. Ao contrário, impeliu-as a aceitar, para sobreviver, o desempenho de
atividades mal remuneradas e pouco prestigiadas do ponto de vista social (SAFFIOTI, 1978).
Nunes (1993) perseguiu o objetivo de, a partir do conceito de identidade, investigar a
elaboração da cidadania das trabalhadoras doméstica em Brasília. A autora analisou trajetórias
profissionais no sentido de apreender identidades e representações sociais sobre o trabalho
doméstico. Com foco nas relações em que as trabalhadoras domésticas estão inseridas, a
autora reconstruiu um caminho que começa na relação, passa pela identidade e produz
representações sociais a respeito da realidade. É na interação social que a identidade é
construída, é nela que os atores aprendem a orientar seus comportamentos. Destaca também a
invisibilidade das trabalhadoras domésticas para aqueles que usufruem da força de trabalho
delas. Além disso, nas entrevistas que efetuou, mostra como a imigração está relacionada com
o trabalho doméstico. Primeiro emprego para muitas jovens pobres, o trabalho doméstico se
afigura para essas pessoas como algo transitório, sem segurança do ponto de vista dos direitos
trabalhistas, além de se concretizar como exploração em muitos casos.
De acordo com Nunes (1993), houve uma transformação na imagem da doméstica ao
longo dos últimos cem anos: escrava, criada, cria, empregada, secretária, entre outras. A partir
dessa constatação, ela questiona quais transformações de identidade significam essas
mudanças de nome e se haveria uma real mudança quanto à mentalidade ou o resvalamento
semântico significaria somente uma busca de eufemismos para mascarar o conflito. Tais
questões ainda não encontraram resposta satisfatória. E a dificuldade em encontrar respostas
para essas questões está no fato de que, quando se fala da atividade da trabalhadora
doméstica, não se trata apenas de competências técnicas: o saber da doméstica é colocado
como “dever” das mulheres. Mas essa afirmação exige cuidado, pois pode-se aceitar que uma
intelectual não saiba fazer os trabalhos domésticos com competência, mas de uma mulher
pobre espera-se que possa ser trabalhadora doméstica. Isto, claramente, tem um sentido
cultural. Assim, critérios de valorização como mulher são diferentes segundo o poder
aquisitivo, mas o espelho é sempre o das mulheres ricas, valorizadas não porque sabem fazer,
mas porque sabem dar ordens.
50
Um trabalho de grande destaque no que diz respeito propriamente à relação entre
trabalhadoras domésticas e suas patroas é o de Kofes (2001). A questão que motiva a autora é:
o que a relação social (em suas múltiplas dimensões, incluindo a interação face a face) entre
trabalhadoras domésticas e patroas afirma sobre a combinação entre os termos identidade,
diferença, igualdade e desigualdade? A identidade aqui é entendida como se referindo a um
campo
de reconhecimento sociocultural
estruturalmente disponível para o auto-
reconhecimento dos atores sociais. O conceito de identidade, segundo a autora, pode tornar-se
frágil se não for articulado com as noções de diferença, igualdade e desigualdade. Outra
consideração importante é a de que a relação focalizada está sob o jogo simultâneo de dois
modelos de relações, o familiar e o de trabalho, nenhum impondo-se completamente sobre o
outro, mas enfrentando-se.
A autora desenvolve uma perspectiva de gênero por meio da qual questiona a categoria
mulher como um lugar de reconhecimento de uma identidade que possa galvanizar adesões
entre todas as pessoas do sexo feminino. Para ela, a identidade “mulher” é perpassada por
outros condicionamentos e contingências sociais e, sob o efeito de desigualdades, muitas
vezes nem é colocada em cena ou, quando é colocada, não é capaz de abarcar todas as
mulheres da mesma forma. Assim, a noção de diferença de gênero emergiria entre
trabalhadoras domésticas e patroas mesmo sem a figura masculina. A desigualdade coloca em
xeque a possível identidade entre mulheres e, mais do que isso, nesta relação haveria a
negação da trabalhadora doméstica como mulher, afirmando-se como tal apenas a patroa.
A autora aplica de forma pioneira a noção de gênero para explicar uma relação entre
mulheres, em um momento no qual a noção era utilizada quase sempre para tratar das relações
desiguais de poder entre homens e mulheres. Isto lhe permite constatar que quase nunca, na
relação entre trabalhadoras domésticas e patroas, as pessoas se identificavam por meio de um
“nós”, mas havia sempre a expressão “elas” designando a “outra” da relação. A produção da
diferença entre patroa e trabalhadora doméstica pode ser observada em diferentes contextos:
nas representações sociais, em instituições públicas, na literatura e no discurso das
trabalhadoras e das patroas. Para as patroas, percebe-se que há a representação de um
universo comum a trabalhadoras e patroas, o doméstico. Contudo, é nesse espaço comum que
as desigualdades se reproduzem. O trabalho de Kofes conduz o leitor a perceber o abismo de
classe existente entre mulheres de diferentes estratos sociais, de diferentes níveis de
escolaridade, enfim, de diferentes classes sociais, mas deixa de perceber as diferenças raciais
entre elas. Assim é revelada a distância social entre patroa e trabalhadora doméstica. Há uma
distância de classe que separa quem oferece o serviço de quem o contrata. Contudo, o trabalho
51
se realiza na esfera doméstica onde a família se reproduz e onde se concretizam as atividades
estruturalmente comuns atribuídas às mulheres. A interação é constituída sob contradições e
ambigüidades mais ou menos controladas, e transparecem na desconfiança, na acusação de
roubo, nas ritualizações da limpeza, etc
Segundo Brites (2000), Na realização das tarefas de cuidado e manutenção das
famílias de camadas médias no Brasil – desempenhada, na maioria das vezes, por mulheres
pobres – assim como nas formas de remuneração e de relacionamento que se desenvolvem
entre patrões e trabalhadoras domésticas, reproduz-se um sistema altamente estratificado de
gênero, classe e cor. A manutenção desse sistema hierárquico que o serviço doméstico desvela
tem sido reforçada, em particular, por uma ambigüidade afetiva entre os empregadores –
sobretudo as mulheres e as crianças – e as trabalhadoras domésticas. Ao analisar exemplos
tirados de uma pesquisa etnográfica em Vitória (Espírito Santo), essa ambigüidade se revela
como instrumento fundamental de uma didática da distância social. Como diz Donna
Goldstein (GOLDSTEIN, 2003, apud BRITES, 2005), manter uma trabalhadora doméstica é
um sinal diacrítico na sociedade brasileira, que sinaliza a distância da pobreza.
Conforme demonstra Brites (2000), baseada em Goldstein (2000), a afetividade não
impede uma relação hierárquica, com clara demarcação entre chefe e subalterno, isto é, entre
aqueles que podem comprar os serviços domésticos e aqueles que encontram, na oferta de
seus serviços, uma das alternativas menos duras de sobrevivência no Brasil. Trata-se,
portanto, de um processo amplo de reprodução da desigualdade. Porém, a dimensão desse
processo que nos interessa é centrada especificamente num tipo de atividade ligada à esfera
doméstica – o “trabalho reprodutivo”. Este trabalho é definido pela antropóloga Shellee Colen
(1995:78) como o trabalho “físico, mental e emocional necessário para a geração, criação e
socialização de crianças, assim como a manutenção de casas [households] e pessoas (da
infância até a velhice)”. Consedera-se a doméstica dentro de certas famílias de classe média
como uma mulher que, no convívio diário com outra mulher (a dona-de-casa), constrói, troca
e remodela saberes domésticos, num ambiente onde cumplicidade e antagonismo andam
sempre de mãos dadas e onde a desigualdade subentendida nessas trocas informa um exemplo
típico de “reprodução estratificada”. A questão colocada por Brites é: se existe tanta
intimidade e afeto entre as crianças e suas domésticas, como se reproduzem patroas adultas
com um sentido tão forte de hierarquia? Como se separam esses mundos?
Há um consenso sobre a complexidade que envolve as relações entre patrões e
empregados doméstico. O que une os principais trabalhos é a afirmação de que essa relação
em geral é pouco profissional. Ou seja, o trabalho doméstico remunerado é, pelo menos no
52
Brasil, reconhecido legalmente como uma profissão, ainda que não tenha alcançado o estatuto
de proteção social das demais profissões. Contudo, os patrões quase sempre não consolidam
contratos modernos e relações legais de trabalho. Entretanto, Brites desenvolve em sua
pesquisa o argumento de que as mulheres, trabalhadoras domésticas por ela investigadas,
vêem nessa deficiência legal das relações de trabalho elementos que tornam o serviço
doméstico mais interessante e vantajoso que outros trabalhos. E, além disso, as vantagens
vistas por elas coincidem justamente com o que os estudiosos da condição feminina apontam
como raízes da desigualdade, do clientelismo, da opressão e do paternalismo. Possibilidades
de adiantamento salarial, negociação de faltas, recebimento de presentes, agrados e mesmo
sobras de comida são identificados pelas domésticas como vantagens existentes somente no
serviço doméstico. A partir disso, a autora dialoga com outros estudiosos do tema,
problematizando algumas de suas análises e conclusões, conferindo uma importância central
para o ponto de vista das mulheres pesquisadas (BRITES, 2000).
De fato, como pontua Brites (2000), o serviço doméstico proporciona o encontro de
classes desiguais numa sociedade cada vez mais marcada pela segregação e o medo do
“outro” e, além disso, tende a pautar-se em relações de trabalho clientelistas numa época
marcada pela cidadania. Uma análise mais detalhada sobre o tema permite a autora esclarecer
que: 1) o serviço doméstico não é apenas um resquício de arcaísmo remanescente na
sociedade brasileira, pois as desigualdades vivenciadas por patrões e trabalhadoras domésticas
terminam por gerar uma “complementariedade estratificada”, que justifica a permanência do
serviço doméstico em nossa sociedade; 2) os grupos populares possuem dinâmicas familiares
próprias nas quais o serviço doméstico acaba por mostrar-se mais compatível do que outras
formas de trabalho; 3) mesmo ficando evidente a subalternidade que essas mulheres
enfrentam na esfera do trabalho e na família, elas desenvolvem formas específicas de
participação que extrapolam aquelas descritas na literatura sobre cidadania. Seguindo a
tradição dos estudos antropológicos de grupos populares, com base principalmente em James
Scott (1885), propõe a análise das formas cotidianas de resistência, como atividades
desordenadas, pouco planejadas, e que evitam o confronto direto com a autoridade dominante.
Seriam estas as “armas dos fracos”, com as quais buscam reverter a condição subordinada.
Entre as trabalhadoras domésticas, essa resistência se daria por meio do desleixo, da lentidão,
da mentira, do furto, enfim, formas de subversão passiva, desenvolvidas de maneira
encoberta, sem provocar conflitos abertos. A manifestação de tais práticas revela uma
continuidade importante entre as trabalhadoras domésticas atuais e as escravas domésticas,
como vimos no início do capítulo.
53
Bernardino-Costa (2007) analisa a narrativa produzida pelos sindicatos das
trabalhadoras domésticas no Brasil. Esse trabalho constitui um esforço de falar com e a partir
das trabalhadoras domésticas, refletindo sobre algumas narrativas sobre a nação. Apesar de as
pesquisas mostrarem que as relações entre trabalhadoras domésticas e patroas são conflitivas,
há uma interpretação das relações sociais brasileiras que insiste na complementariedade e
harmonia entre ricos e pobres, entre negros e brancos. Nessa argumentação, o trabalho
doméstico é usado como exemplo deste caráter singular das relações sociais brasileiras. É essa
interpretação que a tese questiona. Essa interpretação hegemônica do Brasil se articula à
construção do estado-nação brasileiro. Ela se produziu tomando as narrativas discordantes
como inexistentes. Tentar recuperar as narrativas das trabalhadoras domésticas a partir de seus
sindicatos permite colocar a realidade excluída no centro das atenções. Categorias como
democracia, cidadania, igualdade, justiça são vistas como incompletas quando são pensadas e
articuladas politicamente sem considerar os sujeitos que foram e estão submetidos à complexa
hierarquia de poder, o que Quijano (2007) chama de “colonialidade do poder”.
O autor recupera a história dos sindicatos das trabalhadoras domésticas no Brasil,
existentes desde a década de 1930. Seu objetivo é caracterizar o ativismo político das
trabalhadoras domésticas como um movimento de resistência contra a exclusão sócioeconômica e jurídica da categoria, assim como caracterizá-lo enquanto um movimento de reexistência individual e coletiva das trabalhadoras domésticas. Além disso, objetiva também
entender como aquelas que estão numa posição subalterna percebem as relações sociais
hierárquicas das quais participam. O estudo do sindicato foi escolhido porque 1) no sindicato
as trabalhadoras estão entre iguais rompendo o isolamento da casa da patroa; 2) os sindicatos
são espaços de reelaboração pública da relação entre trabalhadoras domésticas e patroas, por
meio da classe, da raça e do gênero; 3) o aprendizado nos sindicatos repudia a tentativa de
reduzir as relação entre trabalhadoras domésticas e patroas a uma relação puramente afetiva.
O autor demonstra que, ao longo dos anos, as trabalhadoras domésticas elaboram
plataformas políticas e conhecimentos que articulam as categorias de classe, gênero e raça.
Importante para esta interpretação foram as contribuições dos teóricos da descolonização,
especialmente Aníbal Quijano e Walter Mignolo, que se propõem a pensar as sobrevivências
da experiência colonial nos tempos modernos. Segundo Bernardino-Costa (2007), o potencial
epistemológico da articulação de classe, raça e gênero implica também um repensar das
categorias e valores da teoria política do Estado moderno, tais como democracia, cidadania,
igualdade, justiça. Além disso, esta articulação permite que as trabalhadoras domésticas
54
elaborem uma proposta político-intelectual de um feminismo negro a partir do ponto de vista
daqueles sujeitos mais destituídos de poder econômico, político e simbólico.
Dentre os trabalhos mais importantes sobre o tema, o mais recente é o de Roncador
(2008), que voltou sua atenção para a construção literária da trabalhadora doméstica no Brasil,
de 1889 a 1999. Segundo ela, no Brasil, onde a trabalhadora doméstica constitui a categoria
feminina profissional mais numerosa, a sua representação remonta ao período romântico, na
figura da mucama. A doméstica se tornou símbolo de alteridade em relação à aristocracia e à
burguesia pela sua composição de gênero, étnica e social – majoritariamente mulheres negras
e pobres. O objetivo da autora é analisar o fluxo de representações da doméstica na literatura
brasileira e, sobretudo, seus usos estratégicos. Este trabalho estuda como as representações
formam um determinado contexto cultural no qual predominam determinados usos
estratégicos das representações. Por isso, as imagens da doméstica variam ao longo da
história, produzindo humor, medo, denúncia, dependendo dos discursos que atuam na
mediação literária.
Roncador (2008) mostra que a inclusão da doméstica na literatura brasileira esteve
mais a serviço do discurso que as apropriou – na auto-construção do autor como educador,
redentor e solidário – que a favor da luta política da doméstica e da alteração das hierarquias
de valores e poder, nas quais ela ainda ocupa uma das posições politicamente mais frágeis e
estigmatizadas da sociedade brasileira. Na passagem do século XIX para o século XX – o
período pós-Abolição – a doméstica figura ambivalentemente na literatura brasileira. Sua
presença é necessária, porém, é signo de contaminação física e moral. A doméstica marca
forte presença no discurso da domesticidade. Sua imagem como signo de perigo e
contaminação foi usada em sentido pedagógico de estímulo para que a mulher burguesa
assumisse a total responsabilidade pela administração do lar.
A apropriação modernista da representação da “mulata” e da negra não logrou superar
o estereótipo negativo de tendência ao servilismo (mãe-preta) e à sexualidade e
promiscuidade (mulata). A invenção da doméstica na imprensa feminina teve a intenção de
inibir as transgressões de gênero, de raça e de classe, que a modernização dos costumes
colocava em risco. O culto da beleza (signo da feminilidade) é incompatível com o serviço
doméstico braçal (responsabilidade da “empregada”). A ênfase nessa representação,
encontrada sobretudo na literatura de Clarice Lispector, revela que, ainda no pós-guerra, a
doméstica era usada como contraponto da patroa burguesa na construção da identidade
feminina.
55
Mais recentemente, surgiram com mais freqüência os depoimentos e testemunhos de
representantes da categoria das trabalhadoras domésticas. Os discursos de domésticas, nos
testemunhos, desafiam os discursos de construção da nação. Mas se constroem em uma
ambigüidade: para serem publicados e alcançarem um número de leitores considerável, os
testemunhos são obrigados a se submeterem a um pacto de colaboração com um intelectual ou
editor, que nem sempre fala “com e a partir da trabalhadora doméstica”3, tentando, às vezes,
“representá-la”. De toda forma, esses testemunhos suprem uma lacuna da intelectualidade de
esquerda pós-revolucionária (RONCADOR, 2008).
O presente estudo se valerá das contribuições dadas pelos autores e autoras acima
citados, estabelecendo, quando possível, diálogo com eles ao longo do trabalho. Parto da
idéia, expressa em diversos trabalhos, de que classe, raça e gênero não são fatores estanques.
As desigualdades produzidas em torno desses elementos não dizem respeito à “natureza das
coisas”, não há nada de biológico, físico, natural ou objetivo nas diferenças e desigualdades
construídas em torno dessas três formas de classificação social. Antes disso, são as próprias
relações intersubjetivas que constroem pontes ou abismos relacionados à classe social, à
diferença racial e à diferença de gênero. E essas diferenças, onde existem relações de poder,
são sempre hierarquizadas e naturalizadas, fazendo-se passar por fixas e imutáveis, quando
são, na verdade, contingentes. Além disso, classe, raça e gênero não são formas de
classificação social totalmente separadas e desvinculadas. Ao contrário, influenciam-se
mutuamente, interpenetram-se e geram posições e papéis sociais os mais variados. Façamos
agora uma breve síntese das condições das trabalhadoras domésticas remuneradas no Brasil
atual.
Chaney & Garcia Castro (1989) sintetizam, em cinco itens, os aspectos mais
importantes e, segundo elas, universais, do trabalho doméstico remunerado:
a) O trabalho doméstico remunerado é, em todo lugar, uma atividade
desvalorizada e depreciada. Esse trabalho feminino aparentemente não demanda
qualquer formação ou habilidade específica, além das que já nascem com as
mulheres. Mesmo se o serviço é parcialmente dividido com a patroa, esta realiza
as tarefas mais leves e mais suaves, passando o serviço sujo e desagradável para
a trabalhadora, o que denigre ainda mais o trabalho doméstico.
b) Trabalhadoras domésticas são recrutadas em geral entre mulheres pobres, com
baixíssimos níveis de escolaridade, que migram de cidades ou províncias
menores para os grandes centros. São de origem étnica discriminadas e sua
cultura, linguagem, costumes, vestimentas e raças são consideradas inferiores.
3
Ver Bernardino-Costa (2007).
56
c) Trabalhadoras domésticas geralmente trabalham sozinhas ou com no máximo
um ou dois trabalhadores domésticos. Por isso, dificilmente ocupam praças,
lugares públicos, espaços e tempos comuns. Terminam por se isolar, tornandose invisíveis como grupo tanto para elas mesmas quanto para a sociedade. Sob
essas condições, torna-se difícil fomentar uma consciência coletiva que possa
motivar a busca por mais direitos.
d) A trabalhadora doméstica não é coberta inteiramente pela legislação básica
válida para qualquer outro trabalhador manual, e o pretexto para essa falta é o
fato de não terem um lugar de trabalho determinado, não produzirem um
produto tangível, ou seja, uma mercadoria, e serem pagas, às vezes, de outra
forma que não monetária.
e) As líderes das organizações de trabalhadoras domésticas são vistas com
desconfiança até mesmo por aquelas que deveriam ser suas maiores aliadas:
mulheres inseridas em grupos profissionais e feministas. As primeiras estão
preocupadas ainda em conseguir boas “empregadas” domésticas, enquanto as
segundas apresentam comportamento dúbio por, de um lado, recearem mudar a
ordem estabelecida nas relações entre domésticas e patroas e, de outro,
perderem sua liberdade conquistadas em detrimento da liberdade de quem as
serve. Alguns grupos feministas, como exceções, tentam elevar as trabalhadoras
domésticas (CHANEY & GARCIA CASTRO, 1989).
Motta (1977) afirma que as trabalhadoras domésticas no Brasil constituem uma classe
de pessoas marginalizadas, pobres, sem grandes expectativas de futuro. Além do preconceito
de classe, enfrentam o preconceito de cor, já que são, na sua maioria, mulheres negras. A
vinculação do trabalho doméstico ao trabalho escravo, que permanece em nossa cultura,
contribui para aumentar o preconceito racial. As trabalhadoras domésticas, de acordo com a
tradição brasileira, confundem raça e classe.
O trabalho doméstico remunerado é uma categoria ocupacional maciçamente integrada
por mulheres. A presença de homens é rara. Apenas 0.9% do total de homens ocupados
desempenha serviço doméstico, enquanto que, entre as mulheres, a porcentagem atingiu
16.5% (IPEA, 2008). Inclusive, a configuração social dessa atividade é diferente dependendo
do sexo do ocupante. Em relação à mulher, que exerce as funções de faxineira, cozinheira,
lavadeira, babá, entre outras, a ocupação é tida como “natural” e, por isso, duradoura. Em
relação aos homens, que tradicionalmente ocupam os postos de jardineiro, motorista, caseiro,
vigia, ela é vista como uma atividade transitória e marginal, realizada em momentos em que
não existe uma expectativa imediata de outra ocupação (MOTTA, 1977).
Via de regra, as trabalhadoras domésticas iniciam sua carreira cedo. Em geral,
começam trabalhando na sua própria cidade ou em cidades vizinhas à sua no interior para,
57
depois, chegarem até as capitais. Mesmo jovens, quase sempre passam por diversas
residências, comprovando a alta rotatividade da ocupação. Na maioria dos casos, a iniciação
na atividade se dá por contatos primários: uma amiga que já está na cidade grande ou um
empregador originário da mesma cidade da jovem que visita sempre essa cidade, acabam
sendo uma espécie de intermediários, criando redes de contatos (MOTTA, 1977).
As trabalhadoras domésticas não revelaram grandes expectativas em relação à sua
ocupação. Parcela considerável declarou achar “boa sua profissão, mas um percentual
pequeno afirma querer continuar nela. Algumas pretendem continuar porque já se acham
“velhas de mais” para buscar qualificação e outra colocação no mercado de trabalho. Em
geral, as trabalhadoras domésticas consideraram que o trabalho doméstico é menos pesado do
que o desenvolvido na roça e menos “sujo” e desvalorizado que o trabalho de gari; em
contrapartida, é inferior ao trabalho da operária. Por outro lado, acharam o trabalho chato,
cansativo, e algumas dizem que é o “pior emprego que existe”. A grande maioria delas
gostaria de ter outro trabalho, pois, no trabalho doméstico, são “apenas as empregadas”
(MOTTA, 1977).
É necessário considerar que as trabalhadoras domésticas possuem direitos trabalhistas
diferenciados de todos os outros trabalhadores do país. Isto explica porque o trabalho
doméstico é apresentado como uma categoria específica, distinta dos outros assalariados. Ao
desenvolver o trabalho doméstico no domicilio do empregador, a própria convivência no
espaço privado do patrão e da patroa gera condições de ambigüidade nas relações de trabalho
e emprego: se confundem os papéis profissional e familiar. Esta situação se agrava quando o
trabalhador ou a trabalhadora é uma criança ou um adolescente, pois as garantias devidas
geralmente ficam à mercê da boa vontade do empregador. É neste sentido que a estruturação
de uma agenda de trabalho decente para as trabalhadoras domésticas se impõe como uma
necessidade real e imediata (OIT, 2005). Entretanto, já é possível detectar uma diminuição
considerável no trabalho doméstico infantil. Em 1996, havia 14,2% de trabalhadoras
domésticas com idade entre 10 e 17 anos; já em 2006 a porcentagem diminuiu para 6,1%. Se
se desagrega tais dados por cor/raça, tem-se 12,8% em 1996 e 4,9 % em 2006 para brancas na
mesma faixa etária e 15,3% em 1996 e 6,9% em 2006 para negras (IPEA, 2008).
Para Nunes (1993), o emprego doméstico tem sido considerado a porta de entrada no
mercado de trabalho para muitas jovens, migrantes das zonas rurais ou de regiões mais pobres
do país, que procuram os centros urbanos mais desenvolvidos, nos quais as famílias das
camadas médias dispõem de recursos para remunerar esse tipo de ajuda nas tarefas
58
domésticas. Para essas jovens, o emprego doméstico, principalmente quando associado à
moradia e à alimentação, é uma estratégia de sobrevivência conveniente logo que chegam à
cidade grande, mas, na medida do possível, é provisória.
Uma das características do emprego doméstico é o baixo nível dos rendimentos
auferidos. No Brasil, em 1991, a grande maioria da categoria recebia até um salário mínimo
por seu trabalho. Repete-se, no interior da categoria, a já conhecida desigualdade de gênero.
Mesmo sendo minoria, os trabalhadores domésticos ganham mais do que as trabalhadoras
domésticas. Embora mantendo níveis salariais bastante baixos, os rendimentos das
trabalhadoras domésticas, ao longo da década, vêm tendo um relativo aumento,
principalmente se levarmos em conta a redução do percentual das que ganham menos do que
o mínimo legal (BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000). É inegável que esse aumento está
relacionado à ampliação do registro em carteira, pois, segundo a Constituição de 1988, o
registro é atrelado ao pagamento de um salário mínimo. Apesar da prática usual, em geral
acordada entre ambas as partes, de pagar à empregada doméstica, por fora, um salário
superior ao registrado na carteira, a categoria vem tendo maior acesso a direitos trabalhistas e
sociais, sobretudo nos centros urbanos mais desenvolvidos, por meio de maior índice de
registro em carteira, e significativos aumentos salariais, parecendo caminhar para maior
profissionalização (BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000).
As trabalhadoras domésticas tendem a não ver no seu trabalho propriamente uma
profissão da qual se pode usufruir das conseqüências de uma atividade reconhecida. Diz-se
que o caráter paternalista das relações ente patroas e trabalhadoras domésticas concorre
sempre para o beneficio das primeiras. Por outro lado, é importante notar que as domésticas
retiram desse sistema muito mais do que ele legitimamente oferece. Materialmente desfrutam
do trânsito de patrimônio, seja através dos presentes recebidos, seja através dos furtos,
lançando mão do mesmo referencial ideológico dos patrões: retiram o melhor proveito da
situação. Em troca devolvem às patroas servilidade, prestígio e amizade, completando o
círculo de trocas sociais no qual ambos os lados se vêem obrigados a se mover num “mesmo
campo de forças”. Quase sempre, “atrás dos bastidores”, expressam atitudes bem menos
reverentes em relação a seus superiores. Se, na grande maioria das vezes, os mais fracos não
usam o enfrentamento direto ou práticas organizadas de reação à dominação, não é por
concordarem passivamente com o sistema. É, pelo contrário, justamente porque tais
estratégias seriam relativamente ineficazes, senão inúteis ou até suicidas. A maneira dos
subalternos agirem sabiamente, minimizando seus prejuízos, é operando nas brechas, usando
astúcia para burlar, antes do que derrubar, o sistema. Trata-se de uma forma de participação
59
política que, na maior parte da literatura, é colocada como oposta à representação hegemônica
da cidadania. (BRITES, 2003).
O julgamento da trabalhadora doméstica sobre o que é um bom emprego de doméstica
é permeado mais por elementos afetivos do que racionais. Considerações de ordem salarial, na
maioria das vezes, são secundárias. Aparece na própria fala delas sobre seu emprego a
ideologia que inferioriza a mulher. Grande parte delas concorda que é uma ocupação
adequada para as mulheres, mesmo sendo socialmente desvalorizada. Consideram como
natural o desempenho dessas funções. Isso tem relação com a precariedade da infra-estrutura
de serviços orientados para auxiliar a mulher que trabalha fora do lar. A própria estrutura
social e do mercado de trabalho ainda impõem barreiras que impedem ou tornam difícil que a
mulher desenvolva requisitos de personalidade necessários ao bom desempenho profissional.
Assim, há uma adesão generalizada - inclusive pelas próprias trabalhadoras domésticas - à
idéia de que a mulher foi feita para cuidar do lar e dos filhos e de que essa atividade deve ser
exercida fora de seu próprio lar apenas quando houver necessidade (SAFFIOTTI, 1978).
O salário feminino ainda é visto como renda complementar à renda do homem, pois os
homens ainda são mais absorvidos pelo mercado de trabalho. O trabalho doméstico
remunerado contribui para a reprodução de uma mercadoria especial – a força de trabalho –
mas essa produção não se faz em moldes capitalistas, ainda que estreitamente vinculada ao
capitalismo. Nesses termos, a trabalhadora doméstica serve ao sistema capitalista, nele
integrando-se na medida em que cria condições para sua reprodução. Por outro lado, o
trabalho doméstico não é um trabalho improdutivo. Ao contrário, é funcional ao sistema
capitalista, sendo uma das poucas formas de trabalho não-capitalista que não foram
suprimidas com o advento deste modo de produção (SAFFIOTTI, 1978).
Cabe notar também que, em geral, as patroas com menor grau de escolaridade tendem
a obter um melhor ajustamento com as trabalhadoras domésticas do que as patroas com maior
grau de escolaridade. Isso porque, para as primeiras, é mais fácil se comunicar em nível de
igualdade com as trabalhadoras domésticas, pois existem muitas temáticas sobre as quais
podem conversar sobre o mesmo enfoque. Por outro lado, as mulheres mais instruídas tendem
a compensar a distância que as separa da doméstica pagando melhores salários. De qualquer
forma, o diálogo, neste caso, é mais “artificial”. (SAFFIOTTI, 1978).
O trabalho doméstico é caracteristicamente informal. Avaliando o número de
trabalhadoras domésticas com carteira de trabalho assinada, desagregadas por raça,
verificamos que entre as negras a cifra é de 23.9%, enquanto entre as brancas chega a 30,2%
evidenciando a discriminação racial também nesse campo (IBGE, 2008).
60
De um ponto de vista geral, é cada vez maior o número de pessoas inseridas em
trabalhos alheios aos mecanismos de regulação estatal. A informalidade é, nesse sentido,
vinculada à violência, pois está à mercê das “intempéries sociais”. No caso do trabalho
doméstico, essa violência se expressa no âmbito da própria relação “patrão-empregado”, ou
“patroa-empregada”, no que tange aos valores e representações que fazem da trabalhadora
doméstica uma posição sócio-ocupacional negativa (BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000).
Ao analisar as relações do trabalho doméstico, percebe-se a pouca ou nenhuma
proteção do Estado para as trabalhadoras domésticas e seus filhos, que são deixados aos
cuidados de outros ou mesmo sozinhos em casa. Os baixos salários, o início precoce na
atividade (entre 8 e 14 anos, na maioria dos casos), as longas jornadas de trabalho e o
preconceito são formas de violência exercidas contra as domésticas. Considere-se, ainda, que
grande parte das mulheres que prestam serviços domésticos na residência de famílias de
classe média e alta, em troca de uma parca remuneração, são chefes de suas famílias e, por
isso, submetem-se às mais difíceis condições de trabalho. Pela necessidade de trabalhar,
menos da metade delas negociam as condições de trabalho com seus patrões, o que reforça o
privilégio dos patrões e abre margem pra a exploração, humilhação, maus-tratos, acusações de
desonestidade, etc., causas mais comuns do abandono do emprego por parte da trabalhadora.
Além disso, o emprego doméstico nunca foi considerado como partícipe da produção coletiva.
Por isso, o Estado não se acha na obrigação de proteger o trabalho doméstico. Some-se a isso
o fato das relações que constituem essa atividade se darem em um ambiente privado, regulado
pelo bom senso e boa vontade das partes que o constitui. Por tudo isso, as trabalhadoras
domésticas frequentemente demonstram vergonha de sua profissão. Assim, a violência está
em “ter vergonha do que se é” (THEODORO & NUNES, 2001).
Do ponto de vista da raça/cor, há um relativo equilíbrio da participação de negras e
não-negras na indústria e no comércio, enquanto no setor dos serviços a presença de mulheres
não-negras é majoritária. Apenas nos serviços em que os rendimentos são mais baixos e as
garantias de direitos trabalhistas menores, como o trabalho doméstico, existe clara sobrerepresentação de mulheres negras. Entre elas, 75,3% são mensalistas (41,0% negras e 34,4%
não-negras) e 24,7% diaristas (12,6% negras e 12,1% não-negras). Em todos os casos o peso
do emprego doméstico na ocupação total das mulheres negras é pelo menos o dobro que o seu
peso no total da ocupação das mulheres não-negras (MULHER E TRABALHO, 2007; IPEA,
2008).
Independente da configuração populacional ou do mercado de trabalho, as negras
estão em maior proporção nas situações de maior precariedade. A maior parcela de
61
trabalhadoras domésticas possui entre 25 e 39 anos tanto entre as trabalhadoras domésticas
negras como entre as não negras. No entanto, há mais prevalência das jovens entre 18 e 24
anos entre as negras. Também, as regiões metropolitanas mostram a persistência do trabalho
infantil doméstico, particularmente entre as meninas negras: as informações apontam que
cerca de 3% das meninas negras de 10 a 17 anos são trabalhadoras domésticas em Belo
Horizonte, Recife e São Paulo; em Salvador essa proporção é de quase 4% (OIT, 2005).
Vários são os fatores que influenciam essa relação: a condição social da família
empregadora, o ciclo de vida da unidade doméstica, a presença maior ou menor da dona-decasa nesta unidade, etc. A relação aqui estudada não tem nada de biológico, mas constitui-se
de significados. A definição do “feminino” passa pela atribuição de um lugar onde estão
colocados atributos que compõem e expressam esse lugar: o “doméstico”. Ser mulher seria,
portanto, constituir-se do mundo doméstico e ser constitutiva dele, espaço desenhado pela
divisão social e sexual do trabalho. “Mas, local definidor da feminilidade”, o doméstico seria
ele próprio feminino” (KOFES, 1982, p.186). É no universo doméstico que se desenrola a
relação entre patroa e trabalhadora doméstica.
1.4 - O trabalho doméstico do ponto de vista jurídico
Diversos autores da área do Direito e das Ciências Sociais se preocuparam em
pesquisar os avanços e recuos jurídicos no que diz respeito aos direitos de cidadania da
trabalhadora doméstica ao longo do século XX, principalmente os que regulamentam a
proteção social oferecida a essas trabalhadoras por parte do Estado. Percebe-se, de maneira
geral, que as conquistas jurídicas das trabalhadoras domésticas até os dias atuais são
relacionadas às políticas públicas voltadas para as relações de gênero no mercado de trabalho.
Não é intenção deste trabalho discutir em detalhe a evolução jurídica do estatuto de
trabalhador doméstico, mas é importante compreender, em resumo, o percurso que levou até a
definição atual de “trabalhador doméstico remunerado”.
Como já foi dito, o emprego doméstico é uma das ocupações mais precárias que
existem no mercado de trabalho. Alguns indicadores, como a jornada de trabalho, a posse de
carteira assinada e o nível de rendimentos comprovam a má qualidade dessa ocupação. As
trabalhadoras domésticas executam uma longa jornada, superior àquela que é prevista na
legislação para os demais trabalhadores. Os primeiros movimentos de regulação da profissão
62
se deram nas três primeiras décadas do século XX, ainda no início dos processos de
urbanização, industrialização, marcados pela ideologia da reforma sanitarista. Excluída da
CLT em 1943, a profissão, décadas mais tarde, foi regulamentada pela Lei n. 5.859, de
11/12/1972, sendo considerado como empregado doméstico aquele que presta serviços de
natureza contínua e de finalidade não-lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial
desta, definição que já excluía os que trabalhavam em caráter eventual, como as diaristas.
Essa lei foi regulamentada pelo Decreto n. 71.885, de 9/3/73, e garantia aos
empregados domésticos: férias remuneradas (20 dias) após 12 meses ininterruptos de
prestação de serviços a um mesmo empregador; qualidade de segurado obrigatório da
previdência social, garantindo-lhe, portanto, os benefícios da Previdência. Além disso,
tornava obrigatório o registro na carteira de trabalho. Anos mais tarde, a Constituição de
1988, como consta em seu artigo 7º, parágrafo único, passa a assegurar às trabalhadoras
domésticas os seguintes direitos: salário mínimo; não redução do salário; 13º salário; repouso
semanal remunerado, de preferência aos domingos; férias anuais remuneradas com, pelo
menos, um terço a mais do que o salário normal; licença-gestante, com duração de 120 dias,
paga diretamente pelo INSS; aviso prévio; vale-transporte; inscrição na Previdência Social.
Entretanto, não são assegurados, a essa categoria, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
e a delimitação da jornada de trabalho (BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000).
Com base na definição mais atual do Ministério do Trabalho e Emprego (2007),
considera-se empregado(a) doméstico(a) aquele(a) maior de 16 anos que presta serviços de
natureza contínua (freqüente, constante) e de finalidade não-lucrativa à pessoa ou à família,
no âmbito residencial destas. Assim, o traço diferenciador do emprego doméstico é o caráter
não-econômico da atividade exercida no âmbito da residência. Nesses termos, integram a
categoria os(as) seguintes trabalhadores(as): cozinheiro(a),
governanta, babá, lavadeira,
faxineiro(a), vigia, motorista particular, jardineiro(a), acompanhante de idosos(as), entre
outras. O(a) caseiro(a) também é considerado(a) empregado(a) doméstico(a), quando o sítio
ou local onde exerce a sua atividade não possui finalidade lucrativa. As trabalhadoras
domésticas diaristas não entram nessa definição legal, mas estão presentes nas definições
feitas pelos órgãos de pesquisa a respeito do que é o trabalho doméstico. Contudo, como o
foco aqui é a relação, as diaristas – caracterizadas pelo pouco contato com as pessoas para as
quais presta serviço – não se enquadram em nossos objetivos, pois a sua forma de trabalho
não permite uma relação duradoura com a patroa.
São direitos do trabalhador(a) doméstico(a): 1) Carteira de Trabalho e Previdência
Social, devidamente anotada; 2) salário mínimo fixado em lei; 3) irredutibilidade salarial; 4)
63
13º (décimo terceiro) salário; 5) repouso semanal remunerado, preferencialmente aos
domingos. 6) feriados civis e religiosos; 7) férias de 30 (trinta) dias remuneradas; 8) férias
proporcionais, no término do contrato de trabalho; 9) estabilidade no emprego em razão da
gravidez; 10) licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário; 11) licençapaternidade de 5 dias corridos; 12) auxílio-doença pago pelo INSS; 13) aviso prévio de, no
mínimo, 30 dias; 14) aposentadoria; 15) integração à Previdência Social; 16) vale-transporte.
17) Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), benefício opcional; 18) SeguroDesemprego concedido, exclusivamente, ao (à) empregado(a) incluído(a) no FGTS (MTE,
2007).
São deveres do(a) trabalhador(a) doméstico(a): 1) Portar carteira de trabalho,
comprovante de inscrição no INSS e atestado de saúde, caso necessário; 2) ser assíduo no
cumprimento de suas tarefas, 3) assinar recibo de quitação do salário, 4) comunicar pedido de
dispensa com 30 dias de antecedência (MTE, 2007).
São obrigações do(a) empregador(a): 1) assinar a carteira de trabalho e devolvê-la ao
trabalhador(a) em até 48 horas; 2) efetuar o pagamento do salário em dia útil no local de
trabalho (em dinheiro) ou mediante conta corrente aberta para esse fim, com o consentimento
do(a) trabalhador(a); 3) Preencher devidamente os recibos dos salários, 13º e férias, em duas
vias; 4) fornecer ao empregado(a) a via do recolhimento mensal do INSS; 5) É proibido ao
empregador(a) fazer constar na carteira do(a) empregado(a) qualquer informação
desabonadora de sua conduta (MTE, 2007).
O(a) empregado(a) doméstico(a), por falta de expressa previsão legal, ainda não tem
acesso aos seguintes benefícios: 1) recebimento do abono salarial e rendimentos relativos ao
Programa de Integração Social (PIS), em virtude de não ser o(a) empregador(a) contribuinte
desse programa; 2) salário-família; 3) benefícios por acidente de trabalho (ocorrendo acidente
e necessitando de afastamento, o benefício será auxílio-doença); 4) adicional de
periculosidade e insalubridade; 5) horas extras; 6) jornada de trabalho fixada em lei; 7)
adicional noturno; 8) Fundo de Garantia por Tempo de Serviço obrigatório (MTE, 2007).
Argumenta-se que as diferenças nas leis que regem o trabalho doméstico se devem ao
fato de que ele não configura uma relação capital-trabalho típica: não gera lucro para a família
na qual ela trabalha e esta, por sua vez, não é uma microempresa. Quanto à jornada, os
afazeres domésticos, tanto para a trabalhadora doméstica quanto para a dona-de-casa, não
estão sujeitos, como em uma fábrica ou escritório, a ritmos ou tempos delimitados. O registro
em carteira é o instrumento legal de que dispõe a trabalhadora doméstica, assim como os
demais trabalhadores do país, para ter acesso aos direitos trabalhistas e constitucionais. Mas é
64
também um incentivo para a maior permanência no emprego (BRUSCHINI & LOMBARDI,
2000).
1.5 Trabalho feminino e subalternidade
O trabalho, em seu sentido amplo, guarda sérias contradições. Pode parecer estranha
essa afirmação, considerando que quando se fala em trabalho, a primeira coisa que vêm à
cabeça é que quase tudo o que temos, o que vemos à nossa volta e boa parte do que somos,
para nós mesmos e para os outros, vem do trabalho humano. Seja o trabalho direto ou
indireto, a sociedade não passa sem ele, na verdade não é demais afirmar que não haveria vida
humana sem trabalho. É esse esforço humano racional, intencional e dirigido que cria tudo de
que precisamos, e até o que não precisamos. Por outro lado, justamente pela sua importância
fundamental na produção da vida, individual e coletiva, o trabalho, quando se torna fonte de
sofrimento, de adoecimento e mesmo de morte, atinge profundamente aquele que o executa,
da mesma forma que atinge positivamente quando demonstra sua face criadora.
O trabalho ordena boa parte da vida das pessoas, impõe demandas, limites,
dificuldades, cria impasses e restringe ou alarga possibilidades. É o trabalho que coloca o
sujeito em movimento e, dependendo das suas exigências e das condições de sua organização
e execução, pode ser motivo tanto de realização e prazer, quando de sofrimento e dor. Cada
modalidade, tipo ou relação de trabalho tem sua lógica própria, sua maneira de ser executado
com maior êxito, dependendo do produto ou serviço a que se destine. Conhecer o processo de
trabalho, sua razão e seu resultado, é a condição mínima para que o trabalhador não seja
alienado de sua condição de produtor e para que não experimente um cotidiano de isolamento,
reificação, não-reconhecimento. Mas, ao que parece, conhecer o processo de trabalho e seus
resultados não é o suficiente para impedir o isolamento, a reificação e o não-reconhecimento
no trabalho doméstico, marcado pela rotina, pela repetição de tarefas. O prazer e o sofrimento
estão na forma socialmente e contextualmente elaborada segundo a qual as relações de
trabalho são executadas.
Cada sociedade recorre aos seus sistemas de classificação para definir a “natureza”, as
propriedades e atribuições de cada sexo. Homens e mulheres sempre foram classificados e
sempre receberam determinadas funções sociais. A primeira e mais importante dimensão que
as formas de classificação social atuam é a esfera do trabalho, da produção da vida material.
65
Em todas as sociedades conhecidas, homens e mulheres possuem funções particulares na
execução das atividades laborais. O que chama atenção, na realidade, não é a distinção
tradicional dos papéis sexuais na esfera do trabalho, mas o fato de que as funções sociais
atribuídas às mulheres no âmbito do trabalho sempre foram funções subordinadas. A divisão
social do trabalho sempre produziu e refletiu a desigualdade não somente entre os sexos, ou
seja, entre homens e mulheres, mas entre o que é socialmente classificado como masculino e
feminino.
O termo “divisão sexual do trabalho” se refere à distribuição diferencial de homens e
mulheres no mercado de trabalho, nos ofícios e nas profissões, no trabalho doméstico, e as
variações no tempo e no espaço dessa distribuição. Mas, falar em termos de divisão sexual do
trabalho também significa mostrar que essas desigualdades são sistemáticas e que se deve
buscar articular essa descrição do real como uma reflexão sobre os processos mediante os
quais a sociedade utiliza essa diferenciação para hierarquizar as atividades e, portanto, os
sexos, em suma, para criar um sistema de sexo-gênero, que nada tem de natural (HIRATA,
1998).
As relações entre os sexos se modificam histórica e socialmente. Tem como
características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera
reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor
social agregado. Essa forma particular da divisão social do trabalho tem dois princípios
organizadores: o primeiro é o princípio de separação (existem trabalhos de homens e trabalhos
de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem “vale” mais que um trabalho
de mulher). Esses princípios gozam de uma rara generalidade no tempo e no espaço e podem
ser aplicados mediante um processo específico de legitimação, a “ideologia naturalista”. Esta
ideologia reduz o gênero ao sexo biológico e reduz as práticas sociais a “papéis sociais”
sexuados que remetem ao destino natural da espécie (HIRATA & KERGOAT, 2007).
O Brasil, assim como todo o mundo ocidental, passou por transformações
consideráveis na segunda metade do século XX, criando o que Hirata & Kergoat chamam de a
“Nova divisão sexual do trabalho”. De forma breve, é possível dizer que os pontos fortes das
novas modalidades da divisão sexual do trabalho são os seguintes: 1) a relativa reorganização
simultânea do trabalho no campo assalariado e no campo doméstico e 2) o duplo movimento
de encobrimento ou atenuação das tensões nos casais burgueses, de um lado, e a acentuação
das clivagens objetivas entre mulheres, de outro: ao mesmo tempo em que aumenta o número
de mulheres em profissões de nível superior, cresce o de mulheres em situação precária
66
(desemprego, flexibilidade, feminização das correntes migratórias) (HIRATA & KERGOAT,
2007).
As mudanças acima referidas permitiram a algumas classes de mulheres passar da
conciliação de tarefas domésticas com profissionais para a delegação dos afazeres domésticos
para terceiros. Essa possibilidade de delegar à outra a execução dos afazeres do lar se deve à
polarização do emprego das mulheres (algumas em carreiras bem sucedidas, outras em
ocupações precarizadas) e ao crescimento da categoria de profissões de nível superior e de
executivas. Essas mulheres têm não apenas a necessidade, mas também os meios de delegar a
outras mulheres as tarefas domésticas e familiares. Esse modelo de relação, de resto, tornouse possível graças ao aumento acelerado dos empregos no setor de serviços. É essa expansão
dos empregos em serviços nos países capitalistas ocidentais, tanto industrializados como
semi-industrializados e em vias de desenvolvimento, como o Brasil, que oferecem novas
“soluções” para o antagonismo entre responsabilidades familiares e profissionais.
As razões da permanência da atribuição do trabalho doméstico às mulheres, mesmo no
contexto da reconfiguração das relações sociais de sexo a que se assiste hoje, continuam
sendo um dos problemas mais importantes na análise das relações sociais de sexo/ gênero. E o
que é mais surpreendente é a maneira como as mulheres continuam a se incumbir do essencial
desse trabalho doméstico, inclusive as militantes feministas, sindicalistas, políticas,
plenamente conscientes dessa desigualdade, da opressão e da divisão do trabalho doméstico
(HIRATA & KERGOAT, 2007).
O problema da desigualdade social se apresenta não apenas na divisão sexual do
trabalho em uma sociedade, mas também na divisão internacional do trabalho. Sem dúvida, as
desigualdades sexuais se iniciam na esfera do trabalho, e é nela que encontram suas maiores
expressões. O trabalho feminino é sempre tido como um trabalho de natureza diferente,
porque inferior. Por isso, a história e a sociologia do trabalho masculino e a história e a
sociologia do trabalho feminino são quase sempre distintas.
A inserção laboral das brasileiras é marcada por progressos e atrasos. De um lado, é
clara a intensidade e a constância do aumento da participação feminina no mercado de
trabalho, que tem ocorrido desde a metade dos anos 1970; de outro, o elevado desemprego das
mulheres e a má qualidade do trabalho feminino. De um lado a conquista de bons empregos, o
acesso a carreiras e profissões de prestígio e a cargos de gerência e mesmo diretoria, por parte
de mulheres escolarizadas; de outro, o predomínio do trabalho feminino em atividades
precárias e informais.
67
Apesar do considerável avanço, no entanto, as mulheres ainda estão longe de atingir as
taxas masculinas de atividade, superiores a 70% (BRUSCHINI, 2007). Além dessas
transformações, mudanças nos padrões culturais e nos valores relativos ao papel social da
mulher alteraram a identidade feminina, cada vez mais voltada para o trabalho remunerado.
Ao mesmo tempo, a expansão da escolaridade e o ingresso nas universidades viabilizaram o
acesso delas às novas oportunidades de trabalho. Todos esses fatores explicam não apenas o
crescimento da atividade feminina, mas também as suas transformações no perfil da força de
trabalho (BRUSCHINI, 2007).
Entretanto, apesar de todas essas mudanças, muita coisa não mudou: as mulheres
permanecem como as principais responsáveis pelas atividades domésticas e cuidados com os
filhos e demais familiares, o que representa uma sobrecarga para aquelas que também
realizam atividades econômicas. A primeira geração de estudos sobre trabalho feminino, no
Brasil, focalizou exclusivamente a ótica da produção, sem levar em conta o fato de que o
lugar que a mulher ocupa na sociedade também está determinado por seu papel na família. O
debate teórico e as pesquisas sobre o trabalho feminino tomaram um novo rumo quando
passaram a focalizar a articulação entre o espaço produtivo e a família, ou espaço reprodutivo.
Pois, para as mulheres, a vivência do trabalho implica sempre a combinação dessas duas
esferas, seja pela articulação, seja pela superposição, tanto no meio urbano quanto no rural.
A expansão da escolaridade, à qual as brasileiras têm tido cada vez mais acesso, é um
dos fatores de maior impacto sobre o ingresso das mulheres no mercado de trabalho. A
escolaridade das trabalhadoras é muito superior à dos trabalhadores, diferencial de gênero que
se verifica também na população em geral. No ensino profissional, os percentuais femininos
de conclusão são bastante elevados, sobretudo no ensino técnico, na área de serviços, em
várias de suas especialidades. Não obstante a isso, os salários masculinos continuam maiores.
Contudo, as escolhas das mulheres continuam a recair preferencialmente sobre áreas do
conhecimento tradicionalmente “femininas”, como educação (81% de mulheres), saúde e
bem-estar social (74%), humanidades e artes (65%), que preparam as mulheres para os
chamados “guetos” ocupacionais femininos (BRUSCHINI, 2007). Em 2005, quase 40% das
mulheres estavam concentradas em três subsetores da área de serviços, a saber, “educação,
saúde e serviços sociais”, “serviços domésticos” e “outros serviços coletivos, pessoais e
sociais” (BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000).
O trabalho doméstico remunerado é o nicho ocupacional feminino por excelência, no
qual mais de 90% dos trabalhadores são mulheres. Ele se mantém como importante fonte de
ocupação, absorvendo cerca de 18% da força de trabalho feminina atualmente. Esse
68
percentual tem diminuído no tempo, em números relativos, uma vez que em 1970, absorvia
mais de 1/4 da mão-de-obra feminina. Contudo, em números absolutos, a quantidade de
trabalhadoras domésticas triplicou-se. A ocupação de trabalhadora doméstica representa
atualmente oportunidade de colocação para mais de 7 milhões de mulheres no mercado de
trabalho brasileiro e é considerada precária em razão das longas jornadas de trabalho
desenvolvidas pela maioria das trabalhadoras, pelo baixo índice de posse de carteira de
trabalho (apenas 27% delas) e pelos baixos rendimentos auferidos (96% ganham menos de
dois salários mínimos) (BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000).
À medida que a mulher é levada a inserir-se no mercado de trabalho, enfrenta o
preconceito por ser mulher. No caso da trabalhadora doméstica, o preconceito é duplo, por ser
mulher e por pertencer a uma classe inferior, dominada, com menos chances de mobilidade
social. Além disso, a trabalhadora doméstica enfrenta sempre uma dupla jornada: se não mora
no serviço, enfrenta a jornada de trabalho doméstico na casa da patroa e na sua casa; se mora
no serviço, enfrenta uma jornada que quase sempre extrapola muito a média de oito horas de
trabalho diário. Ademais, as mulheres, trabalhadoras domésticas ou não, recebem salários
inferiores aos dos homens e dispõem de menos oportunidades de trabalho, porque ficam
restritas às profissões tipicamente femininas. Todas essas condições conduzem a uma visão
distorcida da contribuição do trabalho feminino para a manutenção das famílias.
Há uma forte ideologia por trás do trabalho feminino. O trabalho doméstico é visto e
celebrado como o trabalho genuinamente feminino, a mulher é vista como alguém que já
nasce sabendo as artimanhas do serviço doméstico. O apelo ao “instinto materno”, à
sensibilidade, à habilidade nata de administrar um lar, tudo isso contribui para que a maioria
das mulheres pobres veja no trabalho doméstico a sua única alternativa de sobrevivência.
Voltado para o consumo da família, o trabalho doméstico implica a provisão de um serviço
pessoal, e a mulher tem internalizado a ideologia do “servir o outro” como condição natural
de seu papel social. Uma dona de casa trabalha para a família, desempenhando uma atividade
sem salário, considerado um não-trabalho, acarretando a freqüente desvalorização do lugar
que a mulher ocupa, tornando-o uma posição subordinada nas relações de poder na família,
comunidade e demais esferas sociais.
O trabalho doméstico se torna um trabalho pago quando a dona de casa delega parte da
ou toda a responsabilidade da casa para outra pessoa, a qual, dentro da mesma ideologia de
“servir o outro”, desempenha o mesmo trabalho em troca de um salário, reproduzindo a força
de trabalho, mas em outra casa, para outra família, para outra mulher. A recorrência à essa
ideologia impede (ou dificulta) que a mulher assuma plenamente sua participação na
69
sociedade, na política, na esfera pública. O trabalho doméstico remunerado exercido pela
trabalhadora doméstica é objeto da mesma desvalorização social carregada pelo trabalho da
dona-de-casa. Seu papel inferior se deve à ideologia que considera o “servir ao outro” como
algo natural da mulher, envolvendo a identidade da patroa e da trabalhadora doméstica. Por
ser o trabalho doméstico remunerado desenvolvido por mulheres das classes populares e
envolver uma relação de poder vertical e assimétrica com os empregadores, a desvalorização
social é acentuada e contradições são geradas entre mulheres de diferentes classes. A relação
de trabalho entre trabalhadoras domésticas e patroas é encoberta com os efeitos das
contradições de classe e identificação de gênero estabelecida entre as mulheres. De um lado, é
possível falar em subordinação social das mulheres, e de outro, de exploração de classe 4
(LEÓN, 1989).
Além disso, quando o local de trabalho é, ao mesmo tempo, a casa e o lugar de
consumo, é praticamente impossível que a relação seja totalmente impessoal. Relações de
trabalho nas quais o antagonismo de classe é mais óbvio se entrelaçam com e obscurecem a
mútua identidade da trabalhadora doméstica e da patroa que mantém a aceitação da identidade
feminina designada ao trabalho doméstico. Essa identidade mútua é experimentada como uma
relação afetiva no nível pessoal que é limitada pelas assimetrias de poder que definem a
posição de classe de cada mulher. A posição defendida por León (1989) é contrária ao
argumento de que o serviço doméstico é essencial e indispensável. Essa posição mantém
intocada a vinculação da mulher à esfera doméstica e as relações nas quais a trabalhadora
doméstica provê esse serviço. Essa perspectiva gera mais desigualdade e encobre o papel do
Estado em assumir os custos da reprodução da força de trabalho.
Contudo, ressalta a autora, um dos processos cruciais e mais difíceis é estimular a
consciência política das trabalhadoras domésticas. Em função de seu isolamento, da
transitoriedade com que encaram seu trabalho, do tempo escasso que têm e do sentimento de
subordinação aos patrões, torna-se difícil criar uma consciência política.
Soma-se a isso a frustração que abate as agentes desse setor tradicionalmente
subordinado de relações de trabalho. Torna-se, assim, mais complicado mostrar para as
trabalhadoras domésticas que elas são portadoras de direitos. Mas isso é possível e desejável,
é necessário que as trabalhadoras domésticas se organizem coletivamente, para criar melhores
4
É importante mencionar que a exploração é um fenômeno mais complexo do que uma simples polarização
entre classes dominantes e classes dominadas. Dentro de cada classe existem subsetores que requerem análises
mais detalhadas, que reflitam uma estruturação social das diferenças mais detalhada. Esse aspecto é
particularmente importante para o estudo das relações entre trabalhadoras domésticas e empregadoras, pois
envolve o contrato entre diferentes setores sociais.
70
condições de trabalho e de vida. Com relação à ideologia patronal, o que se precisa fazer
primeiro é desmistificar a ligação da mulher ao doméstico e estimular a consciência de que a
atual divisão sexual do trabalho deve ser combatida (LEÓN, 1989).
Embora a relação “trabalhadora doméstica-patroa” seja visivelmente assimétrica, ela
precisa ser examinada na sua complexidade, não apenas como um reflexo de antagonismos de
classe. Frequentemente, os antagonismos de classe são encobertos pela identificação mútua
entre trabalhadora doméstica e patroa. As mulheres não escolhem simplesmente e livremente
entrar no serviço doméstico. Elas têm alternativas limitadas, ou nenhuma alternativa. Essa
restrição de alternativas tem a ver com a situação de pobreza dessas mulheres. Outra razão
impõe o serviço doméstico para as mulheres pobres: além de trabalho, o serviço doméstico é
um abrigo, um refúgio, que pode readaptar a personalidade feminina em um contexto de
migração, por exemplo.
Garcia Castro (1989) ressalta um ponto: quando a trabalhadora doméstica se identifica
como membro de uma classe trabalhadora, ela escolhe uma identidade específica como
pessoa, como ser social dotado de um potencial transformador das relações de trabalho. Ela
escolhe uma identidade pessoal como ser social capaz de uma participação, com outras
pessoas oprimidas, na luta pela transformação da sociedade em uma sociedade sem patrões e
sem “empregadas”. O que é vendido e comprado no serviço doméstico feito pela trabalhadora
doméstica não é simplesmente trabalho e energia, mas também a identidade da trabalhadora
doméstica como pessoa. Essa é a característica específica do serviço doméstico. As
trabalhadoras domésticas buscam o reconhecimento como trabalhadoras, não como criadas,
serventes ou empregadas. Elas lutam pelo reconhecimento do seu trabalho, pelo seu papel no
trabalho de reprodução no dia-a-dia da unidade familiar (CHANEY & GARCIA CASTRO,
1989).
A evolução dos direitos de cidadania ao longo do século XX contribuiu para
transformar a “criada” para todo o serviço, característica do final do século XIX, na
trabalhadora doméstica remunerada, tanto na denominação quanto no status e na obtenção de
direitos sociais coletivos. Ou seja, tentou tornar as trabalhadoras domésticas “trabalhadores
como os outros”. Essa reivindicação é recorrente por parte das trabalhadoras domésticas
organizadas na Europa e nas Américas, e diz muito sobre a definição existencial de estatuto
profissional e também sobre questões práticas dos direitos e deveres implicados nos contratos
individuais estabelecidos no espaço privado. O século XX repensou o trabalho doméstico
assalariado, e transformou de um “estado de serviço” em um “emprego de serviço”, uma
profissão definida. Essa transformação se deu em duas direções: em relação às trabalhadoras
71
domésticas, tentou-se aproximar a quantidade e a qualidade do trabalho doméstico ao
efetuado em um emprego clássico, emprego que não obriga mais à servidão como destino; em
relação ao trabalho em si, o empregador foi progressivamente obrigado a reconhecer outras
normas para além da aparência social, como a regulação do comportamento em relação à
dignidade humana. “O objetivo desse duplo movimento foi efetivamente suprimir a
contradição entre a antiga noção de serviço (vinculada à escravidão) e a democracia, entre
uma situação de dependência extra-econômica e a autonomia social do trabalhador cidadão”
(FRAISSE, 2003, p. 180).
Ora, a emancipação não é uma qualidade intrínseca de nenhuma relação de trabalho,
assim como a subordinação também não o é. Além disso, o desenvolvimento tecnológico e a
profissionalização das mulheres podem ser processos simultâneos à manutenção da população
feminina nos serviços domésticos. Por isso, é preciso reafirmar o caráter de “construção
social” do serviço doméstico como trabalho subalterno, e não reiterar o trabalho doméstico
como um trabalho “naturalmente” inferior. Feito isso, fica clara a necessidade de pensar
maneiras de intervir socialmente e transformar a representação negativa da profissão.
72
CAPÍTULO 2 – IDENTIDADE, DIFERENÇA E DESIGUALDADE:
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E CONCEITUAL
2.1 Pensando a identidade no serviço doméstico
Podemos começar este capítulo com a pergunta: por que é importante pesquisar a
construção de identidades nas relações de trabalho doméstico remunerado? A identidade, nos
estudos mais expressivos sobre o tema, tanto na sociologia quanto na psicologia social, é o elo
simbólico que liga o indivíduo à sociedade. Ou seja, é a ponte que estabelece conexão entre os
indivíduos e conecta, ao mesmo tempo, cada indivíduo ao grupo social mais amplo. O mesmo
processo de construção e manutenção da identidade que faz o indivíduo se sentir pertencente a
um grupo ou comunidade faz também com que a comunidade ou grupo veja aquele indivíduo
como um integrante, um participante, um membro. A identidade, assim, é o substrato social
do qual os indivíduos são construídos por meio dos processos de socialização.
O trabalho doméstico remunerado, como mencionado no primeiro capítulo, é uma
atividade profissional que coloca em interação a pessoa que presta o serviço e a pessoa ou
família que o contrata. Como uma relação de serviço, supõe o contato direto entre as pessoas
nele envolvidas, mobilizando uma linguagem – verbal e não-verbal – necessária à
comunicação entre os seus agentes. A socialização, processo pelo qual se constrói a
identidade, como veremos adiante, supõe justamente uma relação direta ou indireta entre
pessoas por meio do uso de uma linguagem pela qual um indivíduo se reconhece como
ocupante de uma posição social e executor de um papel social relativamente aos outros
indivíduos que compõe a mesma “cena” social. Considerando que o processo de socialização
e construção de identidades se dá, de acordo com o referencial teórico que veremos,
principalmente nos âmbitos da família, da escola e do trabalho, a compreensão da relação
entre trabalhadora doméstica e patroa passa necessariamente pela análise da identidade.
O presente trabalho assume a hipótese de que a desigualdade entre trabalhadoras
domésticas e patroas se constrói pelo mesmo processo que as identidades de ambas são
construídas. Consequentemente, considerando que as identidades não são naturais, essenciais
ou definitivas, considera-se que a desigualdade também não faz parte da “natureza das
coisas”, mas é construída e reconstruída na relação em foco, atravessando as posições de
ambas as agentes nos grupos que se encontram inseridas, sendo definidas de acordo com o
73
contexto que envolve desde as características particulares da composição da unidade familiar
até representações culturais construídas ao longo da história. Daí a importância de investigar a
construção cotidiana das identidades de trabalhadoras domésticas e patroas para compreender
suas diferenças e descortinar as desigualdades que se configuram em cada contexto. Essa
empreitada exige o esclarecimento de um referencial teórico-metodológico, que constitui o
objetivo desta seção.
A questão da identidade coloca em jogo diversos problemas teóricos, entre os quais a
relação entre indivíduo e sociedade, a oposição binária entre essencialismo e nãoessencialismo, a constituição de discursos nos quais as identidades se fundam e são
negociadas nos processos de interação. Todas essas questões serão consideradas aqui, dando
prioridade às idéias dos autores que buscaram uma mediação entre indivíduo e sociedade por
meio de uma teorização que desessencializa e desnaturaliza a identidade, bem como todos os
demais processos sociais.
2.2 Perspectivas teóricas para o estudo da identidade
Colocar a identidade em questão supõe considerar a relação entre indivíduo e
sociedade, problemática muito cara às ciências sociais. Um dos principais objetivos dos
autores do que se convencionou chamar de sociologia contemporânea é justamente o de
encontrar uma mediação para a problemática indivíduo-sociedade, que nos clássicos da
sociologia parece ter ficado mal resolvida. Elegemos aqui duas abordagens distintas, a de
Bourdeu e a de Goffman, úteis para a conceituação de identidade e desigualdade que sucederá
a sua discussão.
Bourdieu (1996) encara o problema da mediação entre indivíduo e sociedade por meio
dos conceitos de conhecimento praxiológico, habitus e campo. Para ele, os métodos oscilam
entre o objetivismo e a fenomenologia. O positivismo e o estruturalismo seriam os métodos
objetivistas, de um lado, e o interacionismo simbólico e a etnometodologia os métodos
subjetivistas, de outro. Em termos de sociologia clássica, Bourdieu considera a oposição entre
Durkheim e Weber. Como alternativa a esses dois métodos, Bourdieu propõe o conhecimento
praxiológico, que procura articular dialeticamente ator social e estrutura social. Seu objeto são
as relações dialéticas entre as estruturas objetivas e as disposições estruturadas nas quais ela
74
se atualiza e que tendem a reproduzi-la. Assim, a questão que se coloca é a da interiorização
da exterioridade e a exteriorização da interioridade.
O que Bourdieu pretende não é tomar partido nessa dicotomia, mas ultrapassar tanto o
objetivismo quanto o subjetivismo. Para este autor, a comunicação se dá enquanto interação
socialmente estruturada. Os agentes que falam se encontram em posições socialmente
estruturadas por uma relação de poder que reproduz a distribuição desigual de poderes da
sociedade. Nessa perspectiva, não há a consideração da apreensão do mundo como
intersubjetividade. Assim como para Marx, para Bourdieu os homens fazem a história sem
saber que a fazem. O conhecimento praxiológico conserva, de certo modo, o objetivismo, mas
tenta encontrar uma mediação entre o indivíduo e a sociedade.
Para estabelecer a mediação entre indivíduo e sociedade, Bourdieu recorre à
escolástica e reconstrói a noção de habitus. Este, para a escolástica, funciona como um modus
operandi, ou seja, como disposição estável para se operar numa determinada direção.
Bourdieu reinterpreta a noção da seguinte forma:
Sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem
como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas
e as representações que podem ser objetivamente „regulamentadas‟ e „reguladas‟
sem que por isso sejam o produto de obediência a regras, objetivamente adaptadas a
um fim, sem que se tenha necessidade da projeção consciente deste fim ou do
domínio das operações para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente
orquestradas sem serem o produto da ação organizadora de um maestro
(BOURDIEU, 1996, p.61).
A interiorização das normas e princípios pelos atores assegura a adequação entre a
ação individual e a realidade objetiva. O habitus não se aplica somente à interiorização das
normas, mas inclui os sistemas de classificação que preexistem às representações sociais, às
escolhas e mesmo às ações individuais. Bourdieu afirma que as categorias hierarquizadas de
classificação reproduzem as relações sociais historicamente determinadas. Assim, a
dominação se dá tanto no discurso ideológico quanto nas categorias que orientam a
representações sociais. Se os sistemas de classificação são engendrados pelas condições
sociais, e se as condições objetivas de distribuição de bens materiais e simbólicos são
desiguais, então toda escolha tende a reproduzir as relações de dominação.
O habitus é social e individual ao mesmo tempo, e refere-se a uma classe e ao
indivíduo em particular. O processo de internalização da objetividade se dá de forma
subjetiva, mas não pertence ao domínio do controle do indivíduo. A socialização gera um
habitus primário característico de uma classe, formando as disposições futuras para a
75
renovação e ampliação desse habitus de classe. A formação deste se dá primeiro, na família,
depois na escola, depois na sociedade em geral.
O habitus individual é uma variante do habitus do grupo. Bourdieu considera o agente
social em função das relações objetivas que regem a estruturação da sociedade. Assim, a
prática consiste no produto da relação dialética entre uma situação e um habitus. Bourdieu
define como “campo” o espaço onde as posições dos agentes encontram-se fixadas a priori,
segundo uma estrutura interna de estratificação do poder. É no campo que se trava uma luta
concorrencial em torno de interesses específicos. Nele prevalece o que Bourdieu (2003)
chama de poder simbólico, que é exercido silenciosamente por meio de símbolos e
significados, e é definido numa relação determinada entre os que exercem o poder e os que
lhe são sujeitos. O que constitui o poder simbólico é a crença na sua legitimidade e na
legitimidade de quem o exerce (BOURDIEU, 2003). Todo ator age em um campo, mas esse
independe da ação individual. Assim, o campo transcende a relação entre atores, não cabendo
a estes a capacidade de definir a situação em que se dá a interação com os outros.
Assim definido, o habitus parece não permitir a mudança social. Mas, Dubar (2005) se
pergunta: será isso mesmo o que Bourdieu quer dizer? Dubar afirma que, em várias obras,
Bourdieu reitera que o habitus tende a reproduzir as estruturas de que é produto apenas na
medida em que as estruturas nas quais ele funciona sejam idênticas ou homólogas às
estruturas objetivas de que ele é produto. A distinção entre condições de produção e condições
de funcionamento introduziria um elemento de incerteza e dinâmica na teoria do habitus.
Entretanto, não parece muito visível essa abertura à mudança. O conceito de habitus termina
por supor que sempre há uma adequação entre a ação individual e a realidade objetiva, e que
esta última ultrapassa as ações individuais. Dessa forma, o autor, mesmo buscando uma
mediação entre objetivismo e subjetivismo, pende para o primeiro, conferindo privilégio à
sociedade frente ao indivíduo.
Se Bourdieu a procura uma mediação teórica nas relações entre indivíduos previstas
pela estrutura de poder da sociedade, Goffman (1998) busca a compreensão da identidade
analisando as relações microssociais de interação face-a-face. Ao contrário de Bourdieu, o
autor acredita que é nas interações cotidianas que se constrói e reconstrói aquilo que é
chamado de “objetividade do mundo social” e, por isso, os atores são capazes de definir a
situação para suas ações, no sentido de examinar e deliberar dentro de um contexto
linguístico, afim de que todos possam saber o que esperar de cada um.
Segundo Goffman (1998), cada sociedade estabelece formas de categorizar as pessoas
e os atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas
76
categorias. Cada ambiente social estabelece uma categoria de pessoas que tem probabilidade
de ser nele encontradas. Mas é na interação face-a-face que os indivíduos colocam em prática
essas
expectativas
normativas,
em
um
contexto
histórico-social,
influenciando-se
mutuamente. As expectativas normativas, confrontadas com o comportamento concreto,
podem gerar reações imprevisíveis do ponto de vista estrutural, levando a pequenas rupturas
com a ordem estabelecida e, consequentemente, mudanças na própria estrutura social e nas
expectativas normativas sustentadas pelos indivíduos. A identidade, de outro modo, pode
desempenhar – e frequentemente desempenha – um papel estruturado, rotineiro e padronizado
na organização social, e isto se dá justamente devido à sua unicidade, à sua característica
individualizadora que distingue uns indivíduos dos outros e ao mesmo tempo os coloca em
relação. Utiliza-se um conjunto de marcas para diferenciar a pessoa assim marcada de todos
os outros indivíduos.
Os contatos aparentemente casuais da vida quotidiana podem constituir algum tipo de
estrutura que prende o indivíduo a uma biografia, e isso a despeito da multiplicidade de "EUs"
que os papéis sociais lhe permitem. Além da biografia, os indivíduos encontram-se
inevitavelmente ligados aos seus grupos, no sentido amplo de pessoas situadas numa posição
semelhante. O que um indivíduo é, ou poderia ser, deriva do lugar que ocupam os seus iguais
na estrutura social. A “natureza” de uma pessoa é gerada pela “natureza” de suas filiações
grupais. Esses termos da interação podem ser relacionados com outros termos estruturais
convencionais, já que a perspectiva interacionista supõe uma teoria da estrutura social. Não
obstante, essa teoria assume que os indivíduos têm a capacidade de “definir a situação”,
identificando as motivações dos outros atores e gerando expectativas quanto às suas ações
numa situação de interação.
Desse modo, Goffman (2005) revela muito do que é chamado de interacionismo
simbólico, uma perspectiva que leva em consideração a construção e reconstrução constante
da realidade social pelos atores nas interações sociais. De fato, o interacionismo pressupõe
que as interações ocorrem dentro de uma estrutura social, mas que essa é construída
intersubjetivamente a partir de contextos sociais cotidianos, por meio das ações que os atores
desempenham quando estão na presença de outros. Portanto, nessa perspectiva, a estrutura
social não é objetiva, não existe fora dos indivíduos. Ao contrário, são eles que a constroem
nas relações sociais. O mesmo ocorre com as instituições sociais. As regras e normas são
criadas socialmente e a força de coerção que adquirem vem da intersubjetividade que as
sustentam.
77
Essa abordagem da relação entre indivíduo e sociedade é a que mais se alinha aos
objetivos desta pesquisa, como será esclarecido mais adiante. Uma abordagem interacionista
da identidade se revela frutífera para apreender as diferenças e desigualdades construídas nas
relações entre trabalhadoras domésticas e patroas sem que se caia na armadilha do
objetivismo, ou seja, sem naturalizar, do ponto de vista teórico mesmo, as condições nas quais
essa relação transcorre em seus mais diversos contextos. Por outro lado, essa abordagem não
prescinde da consideração dos elementos estruturantes da sociedade. Por isso, essa
perspectiva será privilegiada ao longo do trabalho, em conexão com a perspectiva dos
chamados estudos culturais.
2.3 Perspectivas essencialistas e não-essencialistas da identidade
A perspectiva essencialista da identidade, onde quer que ela apareça, defende que um
conjunto de características cristalizadas determina certa identidade, conferindo-a um caráter
fixo e imutável, presente na própria natureza do indivíduo que a desempenha. Essa idéia pode
apoiar-se em elementos históricos (fatos anteriores vistos como comuns a todos que partilham
da vida de um grupo), biológicos (características físicas partilhadas pelos elementos do grupo)
ou mesmo culturais (sistemas simbólicos nos quais se fundam as crenças e inclinações mais
gerais). Essa visão essencialista da identidade, por conceber que cada indivíduo ou grupo
possui uma identidade que lhe é inerente, presente no interior de sua própria constituição e da
qual não se pode escapar, não leva em consideração a característica relacional da identidade.
Parte do indivíduo ou grupo que a manifesta, sem se preocupar com a influencia recíproca que
é constitutiva do social.
Por outro lado, a perspectiva não-essencialista defende que a identidade é contingente,
produto da intersecção de diferentes componentes, de discursos políticos e culturais e histórias
particulares (WOODWARD, 2007). Hall (2005) ilustra essa contingência do ponto de vista
histórico, diacrônico, tipificando três concepções gerais de identidade que são passíveis de
identificação no curso da história: o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito
pós-moderno. O sujeito do Ilumisnismo era baseado numa concepção de pessoa humana como
um indivíduo totalmente centrado, dotado de razão, de consciência e de ação, cujo centro
consistia num núcleo interior que emergia no seu nascimento e se desenvolvia, permanecendo
78
o mesmo. Esse sujeito caracterizou-se por ser indivisível, singular, único. Foi esse sujeito,
com essa identidade, que colocou em marcha a modernidade.
O sujeito sociológico, por sua vez, está mergulhado nas complexidades crescentes do
mundo moderno. Dessa complexidade surgiu o pressuposto de que ele não era totalmente
auto-suficiente, como o sujeito do Iluminismo, mas se constituía a partir da relação com
outras pessoas que eram importantes para ele, portadoras de valores, sentidos e símbolos. Os
sentimentos subjetivos desse indivíduo se interligam com os lugares objetivos da realidade,
representando uma ponte entre o interior e o exterior. Suas filiações grupais passam a ser
muito mais importantes. O desenvolvimento do mesmo processo de complexificação da
sociedade levou ao que é chamado de modernidade tardia, ou pós-modernidade, que modifica
a noção de sujeito.
O sujeito pós-moderno é um sujeito descentrado, totalmente contrário ao sujeito do
Iluminismo. A identidade, que havia passado de unificada e estável para complexa e mutável,
agora se tornara fragmentada e instável. Um sujeito passa a poder ser construído a partir de
várias identidades e não mais de uma única e exclusiva determinação. Por isso, as identidades
se tornaram intercambiáveis, provisórias e variáveis. A essa perda de um “sentido de si”
estável Hall chama de “descentramento do sujeito”. Esse descentramento se constitui de um
duplo deslocamento, o do indivíduo em relação à posição que ocupa no mundo social e do
indivíduo em relação a si mesmo, o que leva à uma “crise de identidade” (HALL, 2005).
De acordo com Woodward (2007) as crises globais da identidade derivam de um
“deslocamento”. As sociedades modernas atuais não têm qualquer núcleo ou centro
determinado que produza identidades fixas, mas, em vez disso, desenvolvem uma pluralidade
de centros. O deslocamento dos centros levou a um contexto no qual a identidade é vista
como contingente e não-determinável a priori. Mesmo considerando, com Dubar (2005), que
a família, a escola e o trabalho continuam sendo as principais esferas em torno das quais as
identidades se constroem, não se pode negar que essas esferas estão cada vez mais se
complexificando e outras esferas estão emergindo como dimensões importantes tanto para
definir quanto desestabilizar as identidades, tornando-as mais imprevisíveis.
A dinâmica de identidades evidencia que, do ponto de vista da teoria social, nenhuma
identidade pode constituir uma essência, e nenhuma pode ser entendida fora de seu contexto
histórico. Uma questão diversa, ainda não respondida satisfatoriamente, mas extremamente
importante, diz respeito aos benefícios gerados por parte de cada identidade para as pessoas
que a incorporam.
79
2.4
A
concepção
dos
estudos
culturais:
identidade e
diferença,
representação e discurso
Castells (2002) entende a identidade como uma fonte de significado e experiência de
um povo. Em relação aos atores sociais, consiste em um processo de construção relacional de
significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais
inter-relacionados, os quais prevalecem sobre outras fontes de significado. “Significado” aqui
é entendido como a identificação simbólica, por parte de um ator social, da finalidade da ação
praticada por tal ator. Para um indivíduo ou grupo social, pode haver múltiplas identidades e
essa pluralidade é fonte de contradição tanto na auto-representação quanto na ação social.
Para Castells (2002), no momento atual não se pode mais duvidar que as identidades
são socialmente construídas. Resta saber como, a partir de quê, por quem e para quê. A
construção de identidades vale-se das mais diversas matérias-primas, a história, a geografia, a
biologia, as instituições, a memória coletiva, os aparatos de poder, as fantasias pessoais, as
revelações religiosas, etc. Porém, esses materiais são processados pelos indivíduos e grupos
que reorganizam seus significados em função de tendências e projetos culturais enraizados em
uma estrutura social, em um dado momento da história. As políticas de identidade, assim
como as políticas da diferença, devem ser situadas historicamente.
Segundo Silva (2007), existe uma relação de dependência estreita entre identidade e
diferença, mas a forma afirmativa como expressamos a identidade tende a esconder essa
relação. As afirmações sobre diferença, da mesma forma, só fazem sentido se tiverem relação
com a identidade. Identidade e diferença são, portanto, inseparáveis. Em geral se considera a
diferença como produto da identidade. Nesse ponto de vista, a identidade é o ponto do qual se
define a diferença. Isto reflete a tendência a tomar aquilo que somos como base para
classificarmos os outros, o que não somos. Na origem da identidade e da diferença está o
processo de diferenciação. É essa noção que está no centro da conceituação lingüística da
diferença.
Tanto a identidade quanto a diferença são resultados de atos de criação lingüística. É
por meio desses atos que as identidades e diferenças são nomeadas como tais. Como atos
lingüísticos, ambas estão sujeitas a certas propriedades que caracterizam a linguagem. Assim
como os signos não tem qualquer valor em si, mas assumem um significado em relação a
outro signo ou a um objeto concreto, a identidade não faz sentido senão em referência ao
80
diferente. Se a própria linguagem é instável, sendo a identidade e a diferença uma criação a
partir de atos lingüísticos, também estas são indeterminadas, instáveis e mutáveis (SILVA,
2007; HALL, 2007).
Tanto a identidade como a diferença constituem uma relação social, o que significa
que sua definição discursiva e linguística está sujeita a relações de poder. Ambas são não
somente definidas, mas impostas e disputadas. A disputa pela identidade envolve a disputa
por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade. A identidade e a diferença estão
estreitamente ligadas às formas de classificação social. Se as relações sociais envolvem poder,
então dividir e classificar também significa hierarquizar (SILVA, 2007).
A identidade é um significado culturalmente atribuído. A teoria da cultura expressa
essa idéia por meio do conceito de representação. Identidade e diferença estão estreitamente
associadas aos sistemas de representação. Representação aqui é entendida como um sistema
de significação social. A representação, nessa concepção é sempre marca visível exterior. É
uma forma de atribuição de sentido. É por meio da representação que a identidade e a
diferença adquirem sentido e se ligam a sistemas de poder. Quem tem o poder de representar
tem o poder de definir identidades. Portanto, a identidade está ligada a estruturas discursivas e
narrativas, a sistemas de representação, guardando estreitas conexões com relações de poder.
De acordo com Hall (2007), a identidade, elemento central para a compreensão da
agência e da política, é a relação entre sujeitos e práticas discursivas. Essa abordagem
discursiva da identificação vê a identidade como uma construção, um processo nunca
completado ou determinado. “A identificação é, pois, um processo de articulação, uma
suturação que envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras
simbólicas, a produção de “efeitos de fronteiras”. Para consolidar o processo, ela requer
aquilo que é deixado de fora – o exterior que ela constitui.
O conceito de identidade aqui desenvolvido por essa abordagem não é, portanto, um
conceito essencialista, mas um conceito estratégico e posicional. Não assinala um núcleo
estável do “Eu”, imutável através da história. As identidades nunca são unificadas, mas cada
vez mais fragmentadas, não são nunca singulares, mas múltiplas, construídas ao longo do
discurso, de práticas ou posições que podem inclusive ser antagônicas. As identidades
indicam não aquilo que nós somos, mas aquilo no qual nós nos tornamos, como somos
representados e como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós
próprios.
“É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do
discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e
institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas,
81
por estratégias e iniciativas específicas. Além disso, elas emergem no interior do
jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o produto da marcação
da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, naturalmente
constituída, de uma identidade em seu significado tradicional – isto é, uma
„mesmidade‟ que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem
diferenciação interna. [...] Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador
de que é apenas por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que tem
sido chamado de seu exterior constitutivo, que o significado 'positivo' de qualquer
termo – e, assim, sua 'identidade' – pode ser construído” (HALL, 2007, p.109).
Todas as práticas ou representações culturais implicam posições das quais nós falamos
ou escrevemos, posições de enunciação. O que a teoria da enunciação sugere é que, quando
falamos, falamos em nosso nome, em nome de nossas experiências. Identidades são nomes
que nós damos para os diferentes modos pelos quais nós nos posicionamos dentro de
narrativas do passado. Elas sempre se constituem dentro, e não fora, da representação (HALL,
1994).
Para Woodward (2007), a identidade é marcada pela diferença, mas algumas
diferenças, em determinados contextos, são colocadas em primeiro plano e tidas como mais
importantes que outras, e essa é uma questão política. A identidade se vincula às condições
sociais e materiais, assim como tem conseqüências sociais e materiais. Os sistemas simbólicos
são utilizados para dar sentido às relações e marcar quem faz parte do “nós” e quem faz parte
dos “outros”. É por meio da diferenciação social que as classificações sociais são vivenciadas
nas relações.
Os sistemas de representação que estão na base da identidade guardam estreita ligação
com a cultura. Só através da cultura e do conhecimento das “posições-de-sujeito” que ela
produz é possível compreender os significados envolvidos nos sistemas simbólicos. A cultura
molda as identidades ao dar sentido à experiência e ao tornar possível o desenvolvimento de
subjetividades diferentes. A identidade, desse ponto de vista, é a intersecção da vida cotidiana
com as relações econômicas e políticas de subordinação e dominação (WOODWARD, 2007).
São os sistemas simbólicos que fornecem os sentidos das experiências das divisões e
desigualdades sociais. Também por meio deles a identidade é contestada.
Considerando-se a vida social como uma realidade simbolicamente constituída, o
discurso figura como o ato constituidor das relações sociais e, conseqüentemente, da
identidade e da diferença. Embora de caráter simbólico, o discurso possui uma realidade
material de coisa pronunciada ou escrita e, por causa dessa realidade material, possui efeitos
materiais. O discurso é constituído pelo ato de “pronunciar” ou “enunciar”, que se dá
principalmente por meio da fala, da escrita, da expressão corporal. A produção do discurso é
uma atividade cotidiana e, por isso, quase nunca questionada. E porque não é questionado,
82
esconde poderes e perigos desconhecidos. Pode estimular, guardar, camuflar e dirimir lutas,
relações de dominação e servidão, “vitórias” e “derrotas” através de palavras e gestos,
inscrições e símbolos. O discurso tem uma existência transitória, e sua duração não está sob
controle dos atores sociais (FOUCAULT, 1996).
Em toda sociedade, o discurso é controlado, organizado, distribuído por certo número
de procedimentos que têm a função de dominar seu acontecimento aleatório e controlar suas
conseqüências materiais e simbólicas, afastando seus perigos. O discurso não apenas
manifesta o desejo, mas é também aquilo que constitui o objeto do desejo. Não apenas traduz
as lutas e os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo que se luta, o poder do qual se quer
apoderar. O discurso se constitui como um jogo de escritura, de leitura e de troca, que se
funda na ordem dos signos e dos significados, e não na ordem do significante. Deve-se
conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes
impomos, e é nessa prática que os acontecimentos do discurso encontram sua regularidade.
Não se pode passar do discurso para seu suposto núcleo interno e escondido, para uma
essência que se manifestaria nele, mas, analisando as condições de sua aparição e de sua
regularidade, passar às condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à série
aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras (FOUCAULT, 1996).
Para Brah (1996), seguindo esse raciocínio, a questão chave não diz respeito à
"diferença", mas a quem define a diferença, como diferentes categorias de pessoas são
representadas dentro dos discursos da "diferença" e se a "diferença" diferencia lateral ou
hierarquicamente. O conceito de diferença está associado a uma variedade de significados em
diferentes discursos. A articulação entre discurso e prática se inscreve nas relações sociais,
posições sociais e subjetividades. Dessa forma, a diferença pode ser entendida como
experiência, como relação social, como subjetividade e como identidade.
A experiência é um processo de significação, de atribuição de sentido, que é a
condição mesma para a constituição daquilo que chamamos "realidade". A experiência é o
lugar da formação do sujeito, e é também um lugar de contestação. Deve-se distinguir entre a
diferença como marcador de distintividade de nossas "histórias" coletivas e a diferença como
experiência pessoal inscrevendo a biografia individual. Inscrição e atribuição são processos
simultâneos. Como uma pessoa percebe ou concebe um evento varia segundo como "ela" é
culturalmente construída. Mas um mesmo contexto cultural pode produzir histórias diferentes.
O conceito de "diferença como relação social" se refere à maneira como a diferença é
constituída e organizada em relações sistemáticas através de discursos econômicos, culturais e
políticos e práticas institucionais. O conceito de "diferença como relação social" sublinha a
83
articulação historicamente variável de micro e macro regimes de poder, dentro dos quais
modos de diferenciação tais como gênero, classe ou racismo são instituídos em termos de
formações estruturadas. Pode ser entendido como as trajetórias históricas e contemporâneas
das circunstâncias materiais e práticas culturais que produzem as condições para a construção
das identidades de grupo (BRAH, 2006).
A subjetividade, por sua vez, não é nem unificada e nem fixada, mas fragmentada e
descontínua. Ao mesmo tempo, o "sujeito-em-processo" é marcado por um senso de coerência
e continuidade, que pode ser chamado de "eu". Os elementos constitutivos da mente surgem
como conceitos relacionais que revelam os processos de diferenciação e são constituídos em e
através de experiência "interior" e "exterior", donde o sujeito é entendido como descentrado e
heterogêneo em suas qualidades e dinâmica.
A identidade está intimamente ligada à experiência, à subjetividade e às relações
sociais. A identidade é uma multiplicidade relacional em constante mudança. Pode ser
entendida mesmo como "o próprio processo pelo qual a multiplicidade, contradição e
instabilidade da subjetividade é significado como tendo coerência, continuidade, estabilidade;
como tendo um núcleo - um núcleo em constante mudança, mas de qualquer maneira um
núcleo - que a qualquer momento é enunciado como um 'eu'", diferente do “outro” (BRAH,
2006, p.374).
A formação discursiva é um lugar de poder e não há nenhum lugar de poder onde a
dominação, a subordinação, a solidariedade, sejam dadas e asseguradas de uma vez por todas
(HALL, 2007). Pois o poder é constituído de forma performativa em práticas econômicas,
políticas e culturais. A subjetividade de dominantes e dominados é produzida nos interstícios
dessas práticas. Mas, de acordo com Foucault (1996), se o discurso é prática e produz poder, a
prática do discurso também é um meio de enfrentar a opressão. Portanto, é uma questão
empírica saber se a diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão ou em
igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política. O imperativo para o
momento não é compartimentalizar opressões, mas formular estratégias para enfrentar todas
elas na base de um entendimento de como se interconectam e se articulam (BRAH, 1996).
2.5 Uma concepção interacionista e relacional da identidade: linguagem e
socialização
84
Goffman (2005), o mais conhecido autor da perspectiva denominada de
“interacionismo simbólico” busca os verdadeiros sentidos dos processos macrossociais nas
situações de co-presença, de interação face-a-face. O autor defende que os atores são capazes
de “definir a situação” para suas ações, no sentido de examinar e deliberar dentro de um
contexto lingüístico, afim de que todos possam saber o que esperar de cada um. Segundo
Goffman (1998), independentemente do objetivo, é do interesse de um indivíduo regular a
conduta dos outros, principalmente para regular a maneira como o tratam e para saber qual a
melhor maneira de agir para obter a resposta desejada. A interação face-a-face pode ser
definida, em linhas gerais, como a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos
outros, quando em presença física imediata. As impressões resultantes desse contato são
inconscientemente transformadas em expectativas normativas, que se tornam problemáticas
quando surge uma situação em que elas são postas à prova. Se as expectativas normativas não
são preenchidas, os atores desenvolvem estratégias para acomodar a identidade expressada, o
que permite uma reconfiguração da situação social (GOFFMAN, 1998).
Assim, os indivíduos demandam uns dos outros determinado tipo de comportamento e
imputam uns aos outros uma imagem, que pode ser chamada de “identidade social virtual”.
Os atributos que a pessoa demonstra ter na realidade podem ser chamados de “identidade
social real”. Se houver uma discrepância conhecida ou manifesta entre a identidade social
virtual e a identidade social real, a identidade é questionada e desestabilizada, abrindo
margem para a mudança nas relações sociais. O que interessa nessa abordagem não é uma
linguagem de atributos, mas uma linguagem de relações. Um atributo que estigmatiza alguém
em uma relação pode confirmar a normalidade ou mesmo a “superioridade” de outrem em
uma relação diferente.
O que Goffman chama de "identidade pessoal" se refere às marcas positivas ou apoio
de identidade e a combinação única de itens da história de vida que são incorporados ao
indivíduo com o auxílio desses apoios para a sua identidade. Está relacionada com a
pressuposição de que um indivíduo pode ser diferençado de todos os outros e que pode se
apegar à essa diferença, criando uma história contínua e única de fatos sociais que se torna a
substância à qual vêm se agregar outros fatos biográficos. Já a “identidade social” refere-se
aos tipos de repertórios de papéis ou perfis que consideramos que qualquer indivíduo pode
sustentar – sua "personalidade social". O padrão de ação estabelecido pelos papéis pode ser
chamado de “prática”. Ambos os tipos de identidade podem ser mais bem compreendidos se
considerados em conjunto e contrastados com o que o autor denomina identidade do "Eu", ou
85
seja, o sentido subjetivo de sua própria situação e sua própria continuidade e caráter que um
indivíduo vem a obter como resultado de suas várias experiências sociais.
As identidades social e pessoal são parte, antes de mais nada, dos interesses e
definições de outras pessoas em relação ao indivíduo cuja identidade está em questão. Por
outro lado, a identidade do eu é, sobretudo, uma questão subjetiva e reflexiva que deve
necessariamente ser experimentada pelo indivíduo cuja identidade está em jogo. É claro que o
indivíduo constrói a imagem que tem de si próprio a partir do mesmo material do qual as
outras pessoas já construíram a sua identificação pessoal e social, mas ele tem uma
considerável liberdade em relação àquilo que elabora (GOFFMAN, 1998). A identidade,
dessa forma, é construída na relação, na interação, na combinação entre o que o autor
distingue como identidade social, identidade pessoal e identidade do Eu. As conceituações
construídas por Goffman se mostram fundamentais para o propósito de construção de um
quadro conceitual para o estudo da identidade, fundamentado na relação, na interação e na
intersubjetividade.
Um dos mais expressivos representantes da tradição de pesquisa da Escola de
Chicago, Strauss (1999) enfatiza a socialização na vida adulta, revisando e complementando a
teoria freudiana da socialização. Rejeita uma visão estática da identidade, estabelecendo
relações relevantes entre biografias e processos sociais. Confere importância à análise das
carreiras e ocupações na busca pelas formas de socialização e transformação da identidade.
Elabora uma noção de identidade dinâmica associada ao desempenho de diferentes papéis.
A realidade social, portanto, tem o caráter de processo, através das relações dinâmicas
entre indivíduos desempenhando papéis em permanente mudança. A negociação da vida
social, com suas redes de negociação, pressupõe a possibilidade de conflito a partir das
diferenças de posição, interesse e valores. Todas as ordens sociais são precárias e provisórias.
A identidade, para Strauss (1999), supõe a ligação entre os indivíduos e a coletividade.
E o elo mais importante dessa ligação é a linguagem. Assim como a identidade individual está
ligada à identidade coletiva, a interação está ligada à estrutura social. Uma afeta a outra
reciprocamente no tempo. A estrutura é moldada pelos atores por meio da interação face-aface, processo complexo, fluido, móvel, corrido, no qual os participantes tomam sucessivas
atitudes com relação ao centro. O encontro entre pessoas que desempenham, cada uma, o seu
papel e ocupam uma posição de status, não define completamente a interação, mas sugere
apenas o quadro geral dentro do qual a interação ocorre. Daí se poder falar em “interação
estruturada”. Os seres humanos moldam o mundo, até certo ponto, pressionados por coerções
estruturais. Aí reside uma tensão entre liberdade e coerção.
86
Identidade, para Strauss (1999), está associada às avaliações decisivas feitas de nós
mesmos, por nós mesmos ou pelos outros. Cada pessoa se apresenta aos outros e a si, mesmo,
e se vê nos espelhos dos julgamentos que eles fazem dela.
Qualquer discussão da identidade deve passar pela linguagem. Um “nome” é uma
denominação distinta pela qual se conhece uma pessoa ou objeto. O ato de nomear, próprio da
linguagem, revela muita coisa, tanto de quem nomeia quanto de quem é nomeado. Nomear é
conhecer, e a medida do conhecer depende da medida do nomear. Nomear não é apenas
indicar, é identificar um objeto com algum tipo de objeto, com uma categoria. Qualquer
objeto (considerando inclusive pessoas) é um membro de uma classe mais geral. Definir uma
classe significa relacioná-la com outras classes associadas em termos de sistema. Definir ou
determinar, ou classificar uma coisa é marcar suas fronteiras. A natureza de um objeto não
reside em uma essência interior, mas no modo pelo qual ele é definido por quem nomeia.
Quem nomeia, nomeia de algum ponto de vista. O resultado da nomeação se deve à
perspectiva e não às coisas nomeadas.
A direção da atividade depende das maneiras particulares pelas quais os objetos são
classificados. A renomeação de um objeto ou pessoa equivale a uma reavaliação de nossa
relação com ele, e o nosso comportamento muda ao longo da reavaliação. É a definição do
que o objeto é que define a direção da ação. Um ato de classificação não apenas dirige uma
ação, mas desperta expectativas com relação ao objeto classificado. A classificação envolve o
passado e o futuro. Classificação, conhecimento e valor são ,portanto, coisas inseparáveis.
Entretanto, as classificações não são imutáveis. Enquanto perdurar o aprendizado, persistirá a
revisão dos conceitos e enquanto os conceitos forem revisados, haverá a reorganização do
comportamento. É a necessidade constante de reavaliação que permite que a vida humana
mude e se inove. Do contrário, a ação seria ritualística e estática. A inovação repousa
justamente nas situações ambíguas. A classificação e avaliação são questões políticas que
envolvem poder. Continuidades de experiência pessoal estão relacionadas sistematicamente
com as fornecidas pela estrutura social, mas não são asseguradas pela estrutura social. A
descontinuidade tem possibilidades criativas e contingentes (STRAUSS, 1999).
A nomeação, enquanto ato de classificação e avaliação do mundo, está no cerne do
processo de construção de identidades, tanto para os outros quanto para si mesmo. Ao avaliar
seus próprios atos o self se torna um objeto para si mesmo. O self, como qualquer outro
objeto, é passivo de um reexame pelo próprio sujeito, pode ser visto pelo próprio sujeito a
partir de novas perspectivas. A ratificação ou recusa de outras pessoas importantes acarreta
87
inevitavelmente reinterpretações da nossa própria atividade e, conseqüentemente, da nossa
identidade.
A indeterminação da vida social acarreta perigo de o sujeito perder seu mundo e suas
posses (incluindo a identidade). O auto-respeito está associado ao que é possuído, ao que é
próprio. As posses de um homem – simbólicas e materiais – são um índice razoável do que
ele é. Os homens marcam seus movimentos – em direção a uma classe, por exemplo – pela
aquisição ou descarte de posses. O envolvimento de um indivíduo com suas posses pode ser
tal que elas passem a dominá-lo. Um mundo problemático implica perigo de perder o domínio
de objetos nos quais fizemos muitos investimentos. Se as identidades estiverem em mudança,
a avaliação das posses também pode mudar. E a mudança é um constante na vida social. Por
isso, não é a mudança que precisa ser explicada, e sim suas direções e os impactos dela sobre
as identidades.
Dubar (2005) elabora uma concepção de identidade em consonância com a postura
relacional e com a perspectiva interacionista privilegiada até aqui. Segundo ele, pode-se
definir identidade social como a dupla articulação problemática de uma orientação estratégica
e de uma posição relacional, resultado da interação entre uma trajetória social e um sistema de
ação. Nessa perspectiva, não existe uma concordância contínua entre a identidade para si e a
identidade para o outro.
Essa visão ampliada permite ver a socialização como um processo biográfico de
incorporação das disposições sociais oriundas não somente da família e da classe de origem,
mas também do conjunto de sistemas de ação perpassado pelo indivíduo ao longo da vida. Ela
implica uma relação de causa entre o passado e o presente, mas essa causalidade é
probabilista, exclui toda determinação mecânica. Quanto mais os pertencimentos se tornem
múltiplos, mais possibilidades haverá para a identidade. A identidade é produto e produtora da
história. A socialização humana permanece, de fato, majoritariamente reprodutora das
posições relativas, mas elas não são as únicas.
Para Dubar (2005), a identidade para si e a identidade para o outro são ao mesmo
tempo, e de maneira problemática, ligadas e inseparáveis. Uma vez que a identidade para si é
correlata ao outro e ao seu reconhecimento, nunca se sabe o que se é a não ser no olhar do
outro. E a experiência do outro nunca é vivida pelo Eu de forma direta, de forma que
contamos com a comunicação para nos informar sobre a identidade que o outro nos atribui
para, então, forjarmos uma identidade para nós mesmos. A identidade, assim, é marcada pela
incerteza, pois não se sabe ao certo o que os outros pensam do Eu. O grau de incerteza que
envolve a identidade varia de acordo com a situação. Desse ponto de vista, a identidade nada
88
mais é que “o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e
objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente,
constroem os indivíduos e definem as instituições” (DUBAR, 2005. p. 136). Esse conceito
tenta introduzir a dimensão subjetiva no cerne da análise sociológica.
Dubar chama de “atribuição” o mecanismo que visa definir o tipo de pessoa que você
é do ponto de vista do outro; e de “pertencimento” o que exprimem que tipo de pessoa você
quer ser, a identidade para si. Não há uma correspondência direta entre a identidade de si e a
identidade atribuída pelo outro. Mas a identidade de si é a condição para que um indivíduo
possa ser identificado genericamente pelos outros. É na atividade com os outros que um
indivíduo é identificado e levado a endossar ou a recusar as identificações que recebe dos
outros e das instituições, dependendo da margem de liberdade que a situação social permitir.
A identidade, portanto, é fruto da articulação entre dois processos heterogêneos: o
primeiro concerne à atribuição da identidade pelas instituições e pelos agentes que estão em
interação direta com os indivíduos, que resulta, como Goffman havia mostrado, na
“identidade virtual”; e o segundo concerne à interiorização ativa, à incorporação da identidade
pelos próprios indivíduos, que pode ser analisada no interior de trajetórias sociais, que resulta
na “identidade real”. Quando os resultados da atribuição e da incorporação diferem, entram
em cena estratégias destinadas a reduzir as distâncias entre essas duas identidades. Elas
podem assumir a forma de “transações externas” entre o indivíduo e os outros significativos,
visando acomodar a identidade para si à identidade para o outro, ou “transações internas” ao
indivíduo, com vistas a tentar assimilar a identidade para o outro à identidade para si. A
identidade, portanto, é negociada na interação, constitui um processo comunicativo complexo,
irredutível a uma “rotulagem autoritária” de identidades predefinidas com base em trajetórias
individuais (DUBAR, 2005).
Para este autor, a identidade guarda relações cada vez mais diretas com a esfera do
trabalho. Segundo seu argumento, as esferas do trabalho e emprego, e também da formação,
constituem áreas pertinentes das identificações sociais dos próprios indivíduos. O emprego,
portanto, é cada vez mais importante para as identidades sociais, embora se deva evitar o risco
de reduzir as identidades sociais a status de emprego e a níveis de formação. Mas, sem
dúvida, dentre os acontecimentos mais importantes para a construção da identidade, estão a
saída do sistema escolar e o ingresso no mercado de trabalho.
A identidade relacionada ao trabalho não se reduz a uma identidade no trabalho ou a
uma trajetória de emprego, mas uma “identidade ocupacional”, que designa a identificação a
toda uma carreira, a implicação em um tipo de atividade e a experiência da estratificação
89
social, das discriminações étnicas e sexuais, das desigualdades de acesso às diferentes
carreiras profissionais. Não se trata apenas da escolha de uma profissão ou obtenção de um
diploma, mas de construção pessoal de uma estratégia identitária que mobilize a imagem de
si, a avaliação de suas capacidades e a realização de seus desejos. A identidade profissional
remete à maneira como os indivíduos se identificam com os pares, com os chefes e com os
outros grupos. Essa definição ancora a identidade na experiência relacional do poder e,
portanto, faz das relações de trabalho o lugar em que se experimenta o enfrentamento dos
desejos de reconhecimento em um contexto de acesso desigual, movediço e complexo.
Berger & Luckmann (2003) também reforçam a importância da socialização na idade
adulta por meio do trabalho para a construção das identidades. Os autores introduzem uma
distinção entre socialização primária e socialização secundária. Para eles, a socialização se
define pela imersão dos indivíduos no que eles chamam de “mundo vivido”, um universo ao
mesmo tempo simbólico e cultural que constitui um saber sobre o mundo. Na socialização
primária, a criança absorve o mundo social em que vive não como um universo possível
dentre outros, mas como o único mundo existente e concebível. Ela faz isso a partir de um
saber básico que é pré-reflexivo e pré-determinado, e que funciona como uma evidência e
serve de base para ela programar esquemas de ação, se apropriar de uma linguagem, organizar
os objetos apreendidos da realidade. O aprendizado desse saber básico por meio da linguagem
constitui o processo fundamental da socialização primária, já que assegura simultaneamente a
posse objetiva de um Eu e de um mundo e, consequentemente, a consolidação de papéis
sociais definidos como tipificação de condutas socialmente objetivadas, baseadas em códigos
que permitem a definição do social e das situações sociais comuns. A socialização primária,
assim, depende das relações que se estabelecem entre o mundo social da família e o universo
institucional da escola, com base nos diversos saberes possuídos pelos adultos socializadores
e transmitidos na sua relação com os socializados.
Partindo da socialização primária, Berger e Luckmann (2003) buscam construir uma
teoria operacional da socialização secundária que não seja apenas uma reprodução dos
mecanismos da primeira. Para os autores, a socialização nunca é totalmente bem-sucedida e
terminada. Portanto, é preciso conceder atenção à socialização secundária, definida como
interiorização de subdivisões de mundos institucionais especializados e aquisição de saberes
específicos e de papéis direta ou indiretamente arraigados na divisão do trabalho. Trata-se,
portanto, da incorporação de saberes profissionais especializados que constituem um novo
gênero de saberes, que colocam um problema de consistência entre as interiorizações
primárias e as novas. Esse ajustamento pode se dar de várias formas, resultando mais ou
90
menos na acomodação à situação anterior. Entretanto, a socialização secundária pode
constituir uma ruptura em relação à socialização primária, desde que haja um distanciamento
de papéis, que permita desvincular a identidade real da identidade virtual, permitindo que o
sujeito olhe seu passado de modo a desestruturar e reestruturar sua identidade, e desde que
haja também instituições, códigos e técnicas especiais que permitam ao sujeito adquirir e
manter novos papéis a partir de uma ruptura biográfica.
A realização de uma socialização secundária em ruptura com a socialização primária,
segundo os autores, se liga a dois tipos de situações diferentes: a primeira é o fracasso da
socialização primária, diante da qual a socialização secundária acaba construindo uma
identidade mais satisfatória; a segunda circunstância é aquela em que as identidades anteriores
se tornam problemáticas, as identificações aos outros significativos se tornam fracas, abrindo
margem para outras identificações. Dessa forma, a problemática da construção social da
realidade permite abordar a questão da socialização da perspectiva da transformação social e
não somente a reprodução da ordem social. Essa teoria abre a possibilidade de transformação
do real a partir da interação dos aparelhos de socialização primária (famílias, escolas) com os
aparelhos de socialização secundária (empresas, profissões, trabalho), que provoca crise de
legitimidade dos diversos saberes e a transformação possível dos mundos legítimos.
Subjetivamente, a transformação social é inseparável da transformação das identidades. Por
isso, todo processo de transformação ou de inovação esbarra na questão da aprendizagem
coletiva de capacidades para inventar novas maneiras de agir, novos modelos relacionais.
Nessa abordagem, portanto, a reprodução social aparece como um resultado entre outros, e
não como uma determinação mecânica (Berger & Luckmann, 2003).
2. 6 Identidade e desigualdade
Como se pôde perceber nas contribuições dos autores acima citados, o problema da
relação entre indivíduo e sociedade está diretamente ligado às dicotomias problemáticas,
como objetividade-subjetividade, estrutura-agência, microanálise-macroanálise, fundamentais
para o entendimento da identidade, da diferença e da desigualdade. Interessa agora sintetizar
alguns conceitos e idéias de alguns dos autores apresentados na tentativa de esboçar um
quadro conceitual para o estudo da identidade, a partir de uma perspectiva relacional e
interacionista. É importante, ainda, acrescentar à posição teórica e metodológica apresentada a
91
ênfase na importância da intersubjetividade na vida social. Definida como um elo invisível
construído pela teia de relações sociais estabelecida entre indivíduos capazes de agir
intencionalmente (HABERMAS, 1997), ultrapassa as consciências individuais sem estar fora
dos indivíduos. Diz respeito ao processo de construção dos laços sociais que, consolidados em
um nível mais elevado, dão origem às instituições sociais. Está entre a subjetividade e a
objetividade, entre o indivíduo e a sociedade, justamente na mediação entre o alter e o ego.
A intersubjetividade se refere às expectativas recíprocas dos sujeitos em relação aos
seus semelhantes e só é possível por meio da comunicação mediada simbolicamente pela
linguagem (HABERMAS, 1997). A linguagem é fundamental na construção da identidade,
pois é apenas dentro de uma comunidade lingüística que é possível a intersubjetividade, ou
seja, somente onde há um significado compartilhado em relação aos signos e símbolos é
possível a comunicação, a aprendizagem, a socialização, a construção de um “Eu”. Porque os
indivíduos partilham significados, podem atribuir sentido às suas ações, contemplando ou não
suas expectativas em relação aos outros e as expectativas dos outros em relação a si próprio
(STRAUSS, 1999). Pela capacidade de interpretação da situação, os agentes podem definir a
situação em que agem, levando em consideração os comportamentos dos outros agentes
(GOFFMAN, 1985; 1998). Daí a necessidade de se compreender as ações e interações dos
indivíduos em relação ao contexto no qual elas ganham sentido (GOFFMAN, 1998).
Vista por esse ângulo, a análise da identidade deve se ancorar em uma perspectiva que
considera a construção constante da realidade social. Inevitavelmente, deve-se levar em conta
que, para serem inteligíveis, coerentes e minimamente duradouras, as interações devem
ocorrer dentro de um contexto com claras propriedades estruturais. Contudo, essa “estrutura”
é construída intersubjetivamente a partir de contextos sociais cotidianos, por meio das ações
que os atores desempenham quando se colocam diante uns dos outros. Portanto, a estrutura
social não é objetiva, não existe fora dos indivíduos. Ao contrário, são eles que a constroem
nas relações sociais, na suas atividades práticas sem as quais não existiriam as instituições
(GOFFMAN, 1985). Dessa forma, a interação, o momento em que os agentes desempenham
suas ações na presença de outros através de comportamentos ou atos de fala carregados de
sentido, constitui a “cena” fundamental da sociologia. É nela que o caráter relacional da vida
social se deixa perceber mais claramente. É na interação que o Eu percebe que só pode ser Eu
em relação a um Outro, numa relação especular. Dessa forma, as identidades necessitam de
referências que estejam fora do Eu que as transporta (HALL, 2007; WOODWARD, 2007).
“Fora” não no sentido objetivante, mas no Outro, no parceiro de interação. O reconhecer-se –
92
ou o negar-se – no outro é a pré-condição para a existência da intersubjetividade. A vida
social é, em todos os aspectos, relacional.
Deste modo, a identidade de um indivíduo ou mesmo de um grupo se constitui ao
longo de um processo de construção social de um contexto ou configuração social. Não é fixa,
mas também não é tão fluida como supõem algumas teorias sociais mais recentes sobre a
“pós-modernidade”. A identidade é construída na relação, na interação, e dela depende para se
efetivar enquanto realidade social. Possui várias facetas ou dimensões que são dissociáveis
apenas analiticamente. Essas dimensões da identidade combinam aquilo que Bourdieu
chamou de interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade. A identidade, por
esta via, constitui-se enquanto sentido, por meio de um processo de comunicação e
interpretação criado e recriado nas interações sociais (HABERMAS, 1997).
As perspectivas interacionistas e dos estudos culturais, privilegiadas neste estudo, se
aproximam muito e se complementam. Ambas concordam com o caráter relacional da vida
social, defendem uma perspectiva construcionista da sociedade e enfatizam a dimensão
simbólica das relações sociais. São complementares, no sentido de que os estudos culturais
acrescentam à riqueza das análises interacionistas a importância da consideração do papel do
discurso, do poder e da representação nas interações cotidianas. E é a partir do discurso, do
poder e da representação que é possível chegar à relação da identidade e da diferença com a
desigualdade, esta entendida tanto como o motor quanto como resultado de relações
assimétricas de poder segundo eixos de diferenciação.
A interseccionalidade é uma forma de abordar o processo pelo qual se constrói a
identidade, levando em consideração aspectos fundamentais ligados ao processo de
socialização dos indivíduos, com foco nas configurações e situações em que diferentes eixos
de diferenciação – tais como classe, raça e gênero – se cruzam em relações assimétricas de
poder. A própria identidade é uma intersecção entre a socialização familiar, a socialização
escolar, a cor, a classe, o sexo, o gênero, a inserção no mundo do trabalho. Refere-se à
construção e ao desempenho simultâneo e combinado de diferentes papéis sociais no interior
de um dado contexto, bem como suas conseqüências e resultados. O desempenho desses
papéis, e o reconhecimento do outro que esse desempenho acarreta, pode variar mais ou
menos de acordo com a força e a rigidez das coerções da estrutura composta pelas instituições
sociais. Isto quer dizer que os indivíduos têm maior ou menor liberdade e autonomia
dependendo do contexto no qual agem. Portanto, a questão de saber se as identidades são mais
permanentes, permitindo a reprodução das estruturas objetivas da sociedade, ou se são mais
abertas à mudança, dependentes da “definição da situação” por parte dos indivíduos em
93
relação, é uma questão inteiramente empírica, que varia de acordo com a combinação entre
configuração social mais ampla – de caráter diacrônico – e o contexto mais específico –
recortado sincronicamente, mas em relação com o fluxo que constrói incessantemente o
passado.
Uma abordagem interseccional considera o agente social levando em conta suas
características provenientes tanto da subjetividade quanto do “espírito” do grupo.
Logicamente, o escopo deste trabalho não permite abarcar todas as características possíveis da
identidade. Por isso, concentra-se nos aspectos referentes à classe, à raça e ao gênero
diacronicamente vinculados à figura da trabalhadora doméstica, mas em face da posição da
trabalhadora doméstica no presente, no interior da relação com a patroa. Do ponto de vista
interseccional, considerando a situação que se quer analisar, essas características são, em
conjunto, irredutíveis. Só fazem sentido porque se constroem uma em relação à outra,
exercendo uma influência mútua.
A identidade se constitui pela diferença, e ambas são definidas pela linguagem, por
meio do ato de “nomear”. O ato de nomear necessariamente classifica, ordena, distribui
objetos, pessoas e atributos sociais em classes. Pode-se falar em desigualdade quando esse
processo de nomeação e classificação, além de diferenciar uma pessoa ou categoria de
pessoas das demais, o faz de forma vertical, hierarquizando tais pessoas ou categorias de
pessoas em escalas nas quais são vistas como melhores ou piores, desenvolvidas ou subdesenvolvidas, ricas ou pobres, etc. A perspectiva interseccional referida será desenvolvida
com mais detalhes no próximo capítulo, no bojo das análises e interpretações dos resultados
empíricos da pesquisa.
94
CAPÍTULO
3
-
CLASSE,
RAÇA
E
GÊNERO
ENTRE
TRABALHADORAS DOMÉSTICAS E PATROAS: INTERSECÇÕES
3.1 Por que falar em interseccionalidade?
Desde a década de 1970 as feministas afro-americanas e afro-européias vêm tentando
estabelecer conexões entre as diferenciações e hierarquizações que são construídas na
intersecção de raça, gênero e classe. O principal intuito desses esforços era o de denunciar a
negligência dos primeiros movimentos feministas com os problemas característicos e as
especificidades das mulheres negras tanto nas relações com homens negros e brancos, quanto
nas relações com as próprias mulheres brancas, considerando aí também questões acerca da
sexualidade. O termo “interseccionalidade” foi usado por essas pesquisadoras negras, mas, de
início, não exatamente como um conceito, um construto teórico-metodológico, mas como
uma idéia mais geral que fazia alusão à conexão entre sistemas de diferenciação baseados no
gênero, na raça e na classe. Essa noção ganhou ares de conceito, de ferramenta teórica, no
bojo dos impactos que as contribuições do feminismo negro começaram a ter na discussão das
relações de gênero, bastante ligados ao aquecimento da arena política na qual se
desenvolveram novas estratégias de combate tanto ao racismo quanto à desigualdade de
gênero, nas décadas de 1980 e, principalmente, 1990 (BAIRROS, 1995).
A abordagem interseccional não consiste apenas em considerar mais de um eixo de
diferenciação e poder, mas de considerar dois ou mais eixos de diferenciação e poder como
inter-determinados, inter-dependentes, combinados de forma que sua configuração e suas
conseqüências não sejam as mesmas que teria cada eixo isoladamente.
O ponto de vista da interseccionalidade defendido aqui se apóia na contribuição do
feminismo negro. Esta perspectiva, que, segundo Bairros (1995), pioneiramente chama
atenção para a impossibilidade de separar a opressão de gênero da opressão racial e de classe,
é a que mais oferece elementos conceituais para pensar como se pode abordar
satisfatoriamente a relação entre trabalhadoras domésticas e patroas do ponto de vista da
identidade. As primeiras manifestações teóricas dessa vertente do feminismo surgiram nos
Estados Unidos, na década de 1980, em meio a uma configuração das relações raciais diversa
da do Brasil. Aqui, as primeiras produções características de um feminismo negro se
iniciaram na década de 1980.
95
Se no primeiro país há uma polarização racial entre negros e brancos, considerando a
ascendência – e não apenas o fenótipo – no Brasil – onde o fenótipo é o recurso mais
importante para a classificação racial5 -- a mestiçagem se torna a característica mais
expressiva, colocando sérios problemas para a pesquisa e reflexão teórica. Isto pode ser
demonstrado pelo elevado número de pessoas que têm se auto-declarado “pardo(a)” nas
últimas edições da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio6, superando tanto o número
de brancos quanto de negros. Essa categoria racial é ambígua e guarda muitas
indeterminações que precisam ainda ser exploradas pela pesquisa sociológica. Por isso, ainda
que a polarização continue sendo a referência para a classificação racial, não é possível falar
apenas em brancos e negros no Brasil, o que torna a questão da interseccionalidade entre raça,
gênero e classe ainda mais complexa. Enquanto nos Estados Unidos há uma consciência mais
ou menos clara do que é ser branco ou ser negro, no Brasil mesmo o que é ser branco ou
negro é questionado pelo que é “ser pardo”, algo indefinido, flutuante, sujeito às condições
situacionais, já que a (auto) atribuição de cor é feita de maneira relacional. Logicamente, essa
especificidade racial não inviabiliza uma abordagem do ponto do feminismo negro, mas, ao
contrário, coloca mais desafios para ela.
O feminismo negro, como bem mostra Bairros (1995), se fundamenta em uma
standpoint theory, ou uma teoria do ponto de vista, que concebe a experiência de diferentes
posições de classe, gênero e raça, nas suas intersecções, como uma experiência situada
histórica e socialmente, impassível de generalizações e livre da necessidade da existência de
uma identidade unitária. Essa postura teórica está plenamente de acordo com os fundamentos
apresentados no segundo capítulo, baseados na teoria interacionista da identidade e da
diferença, complementada pelas noções de discurso, poder, representação e desigualdade
fornecidas pela perspectiva dos estudos culturais. Também tem a capacidade de permitir uma
compreensão mais clara sobre as influências históricas que se exercem sobre os processos de
construção identitária, como é o caso da influência do racismo, do sexismo e da subordinação
de classe que marcam os primórdios da constituição da figura da trabalhadora doméstica no
Brasil colonial e pós-Independência, como demonstrado no primeiro capítulo.
Com base no referencial teórico até aqui apresentado, é possível conceber a identidade
constantemente formulada por patroas e trabalhadoras domésticas como uma mediação entre a
subjetividade individual e as estruturas sociais que envolvem a relação, construída
cotidianamente por meio da interação entre ambas, levando em conta suas diferenças
5
6
NOGUEIRA (2006).
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). www.ibge.com.br.
96
discursivamente representadas na esfera doméstica, lugar “por excelência” do serviço tido
como reprodutivo. É justamente nas “diferenças” que entram em cena as características de
raça, classe e as formas de desempenho de gênero, conformando cada contexto específico.
Para o entendimento dos mecanismos de produção das desigualdades raciais, o
pensamento feminista que considera relevante a abordagem interseccional de gênero e raça
assevera a importância de se pesquisar a construção da identidade “branca” na mesma
intensidade e dedicação com que se busca compreender a identidade “negra”. O branco
também é perpassado pela raça. Se não sofre conseqüências negativas, como o negro, tira
proveito das conseqüências positivas, tendendo a se portar de modo a reproduzir esta
condição.
A perspectiva da interseccionalidade chama atenção para os aspectos mais complexos
que envolvem a construção da identidade social na relação com o diferente, complexidade
esta que se refere tanto aos movimentos quanto à estagnação temporária das pessoas no
interior das “estruturas sociais. Ou seja, interseccionalidade é, de acordo com Crenshaw
(2002), uma ferramenta teórico-metodológica – ainda provisória, dada sua utilização recente –
para compreender a construção de identidades tanto em contextos onde a diferença é
transformada em desigualdade quanto onde há a subversão dessa lógica, ou seja, contextos
onde aqueles inferiorizados e subalternizados ao longo do processo contínuo de produção da
identidade desenvolvem estratégias interseccionais para alcançar posições socialmente mais
favoráveis e o devido reconhecimento, por si mesmo e pelos outros, enquanto ser humano
digno de respeito.
3.2 Classe, raça e gênero do ponto de vista da interseccionalidade
Diante da escolha feita para a abordagem desenvolvida no presente trabalho, é
fundamental que passemos pelos conceitos de raça, classe e gênero para, em seguida,
compreendermos sua intersecção.
De acordo com Guimarães (1999), raça é um conceito que não corresponde a nenhuma
realidade natural. Ao contrário, denota apenas uma classificação social, relacionada a uma
atitude negativa frente alguns grupos sociais baseada em uma noção de “natureza”. Para o
autor, mesmo não tendo uma base biológica, o conceito de “raça” tem uma realidade plena no
mundo social, e o combate ao comportamento negativo que ele produz é impossível de ser
97
travado sem que se reconheça a sua realidade social, fundamentada no ato de “nomear”. O
racismo é, assim, uma forma de naturalizar a vida social, buscando explicações naturais para
diferenças pessoais, sociais ou culturais. Se as noções de raça e racismo são construções
simbólicas, cada racismo só pode ser compreendido a partir de sua história particular.
Seguindo esse caminho, Costa (2006) afirma que o racismo remete à suposição de uma
hierarquia qualitativa que classifica os seres humanos em diferentes grupos imaginários em
função de marcas corporais arbitrariamente selecionadas. Essa hierarquização apresenta dois
tipos de conseqüências: a) as socioeconômicas, que implicam o desenvolvimento de estruturas
de oportunidades desiguais para pessoas de diferentes raças, de forma que os que ocupam uma
posição inferior são sistematicamente desfavorecidos na competição social, tanto pela
ocupação de postos de trabalhos menos valorizados e mal-remunerados, quanto pelas
dificuldades de acesso ao sistema de formação educacional e profissional; b) as políticoculturais, expressas na vida cotidiana através de formas discriminatórias de comportamento,
escolhas, tratamento, rituais, bem como através da marginalização e segregação social e
espacial.
No Brasil, se verifica uma permanência histórica da ordem hierárquica sobre a qual se
construiu a sociedade escravocrata. Essa ordem se pauta em uma homologia entre uma
hierarquia de status e uma hierarquia racial. É a força dessa homologia que permite
compreender a persistência do racismo tanto na estrutura social quanto no comportamento
cotidiano dos brasileiros. A atribuição de “cor” aos indivíduos, prática comum na vida social,
dentro e fora da academia, não prescinde da noção de “raça”, mas pressupõe uma ideologia
racial, uma “taxonomia racial”, um sistema de marcações físicas ao qual se associam valores
morais, intelectuais e culturais (GUIMARÃES, 1999). Dessa forma, o conceito de “raça” não
faz sentido senão no âmbito de uma ideologia ou teoria taxonômica das raças (GUIMARÃES,
1999).
Cabe falar em preconceito e discriminação racial apenas em relações em que a
hierarquia social não poderia manter um padrão discriminatório sem as diferenças raciais. A
“cor” representa, dessa forma, como uma imagem figurada, um índice da “raça”. Isto porque a
cor da pele e os traços fenotípicos em si não dizem nada. Eles só tem significado no interior
de uma ideologia racista e por isso podem funcionar como marcas classificatórias. “Raças”
são, portanto, construtos sociais, formas identitárias ancoradas em uma base biológica falsa,
mas eficaz na construção, manutenção e reprodução de privilégios e posições sociais. Se não
existem raças no mundo físico, elas existem no mundo social e são produtos de formas de
classificação que orientam ações humanas. Identidades raciais, como outras formas de
98
identidade, não são apenas escolhidas pelos sujeitos, mas impostas, e assumidas de modo
mais ou menos completo (GUIMARÃES, 1999).
Para Guimarães (1999), a discriminação racial no Brasil é invisibilizada porque é
atribuída à classe a capacidade de explicar a destituição material em que se encontram os
negros. Quando se fala em classes no Brasil, deve-se atentar para as desigualdades na
distribuição de bens materiais e culturais e sua ligação com a distribuição desigual de bens
simbólicos, na qual a escravidão, a inferiorização e a discriminação dos negros se
constituíram como mecanismos de segregação. Se a raça não tem nada de biológico, ainda
deve ser utilizada para analisar as relações sociais.
Bernardino-Costa (2002) mostra que, mesmo com o fim de teorias biológicas e
crenças que contribuíram para constituir a raça humana, a noção de raça continua
fundamentando hierarquias e discriminações entre indivíduos. Se a raça não encontra amparo
biológico, isso não impede que ela tenha eficácia social, atuando como critério significativo
na distribuição de oportunidades sociais e recursos econômicos.
Diante das hipóteses de que o racismo teria diminuído no Brasil nos últimos anos,
Venturi & Bokani (2004) mostraram, por meio de pesquisa quantitativa, que 90% dos
brasileiros reconhecem a existência do racismo no Brasil, mas 96% dizem não ter preconceito
de cor. A conclusão a que chegaram os autores é a de que a disseminação das críticas e dos
debates sobre as formas de discriminação racial fortaleceu uma retórica do “politicamente
correto”, que ao invés de acabar com o preconceito, tornou-o mais velado. As pessoas
parecem ter cada vez mais receio de exprimir suas concepções preconceituosas, porque o
preconceito também gera um estigma para aquele que o revela. Assim, a maioria das pessoas
projeta o preconceito para o conjunto da sociedade, negando sua manifestação pessoal. O
brasileiro parece ter “preconceito de ter preconceito” (FERNANDES, 1965).
Se, de um lado, há o argumento de que a diminuição das manifestações de preconceito
explícito indica que a sociedade está atenta para estas questões e avança no sentido da sua
superação, há também o argumento de que é justamente o preconceito camuflado que impede
medidas eficazes para seu combate. O racismo mascarado, por essa via, encobre a
desigualdade, a discriminação e a violência que existe entre negros e brancos no país. O
racismo no Brasil tira sua eficácia do modo peculiar pelo qual é, ao mesmo tempo, produzido
e negado. A hegemonia racial dos brancos é naturalizada de tal maneira que estrutura a
desigualdade racial negando sua existência por meio da ideologia da democracia racial e da
criação e reprodução de mecanismos que garantam sua perpetuação através das instituições
sociais. As desigualdades raciais se combinam com a estrutura de classes da sociedade,
99
produzindo conseqüências materiais e simbólicas para aqueles que sofrem o preconceito e a
discriminação. Essa atuação conjunta é constante na vida social.
Para definir o que são classes, Bourdieu recorre a uma metáfora espacial. A sociologia,
ao invés de um espaço físico, vê um espaço social que é multidimensional e construído por
um conjunto de campos de forças, relações de forças que se impõem aos que ocupam esse
campo, extrapolando as intenções individuais e a interação direta entre indivíduos. As
propriedades tidas como princípios de construção do espaço social são as diferentes espécies
de poder ou “capital” que compõem os diferentes campos – capital econômico, cultural, social
e simbólico. Dentro de um “campo”, os indivíduos ocupam posições distintas conforme o
capital de que dispõem. As espécies de capital são poderes que definem a probabilidade de
ganho em um determinado campo, e a cada subcampo corresponde uma espécie de capital
particular, que figura como poder e como objeto em jogo. Um mesmo indivíduo se insere em
diferentes campos simultaneamente e os capitais de um campo podem ser aproveitados em
outros. Assim, as classes sociais não são definidas em um só campo. A posição de um agente
é definida pela posição que ele ocupa nos diferentes campos, ou seja, pelo lugar que ele ocupa
na distribuição de poderes que atua em cada um dos campos dos quais ele participa.
A forma como se reveste, em cada momento e em cada campo social, o conjunto das
distribuições das diferentes espécies de capital, define a conformação das relações de força
entre agentes definidos objetivamente pela sua posição nessas relações. Partindo dessa teoria
do espaço social,
“[...] podemos recortar classe no sentido lógico do termo, quer dizer, conjuntos de
agentes que ocupam posições semelhantes e sujeitas a condicionamentos
semelhantes, têm, com toda a probabilidade, atitudes e interesses semelhantes, logo,
práticas e tomadas de posição semelhantes [...] enquanto produto de uma
classificação explicativa, perfeitamente semelhante à dos zoólogos ou botânicos, ela
permite explicar e prever as práticas e as propriedades das coisas classificadas – e,
entre outras, as das condutas de reunião em grupo [...] poder-se-ia dizer, em rigor,
que é uma classe provável, enquanto conjunto de agentes que oporá menos
obstáculos objetivos às ações de mobilização do que qualquer outro conjunto de
agentes (Bourdieu, 2000).
Para Bourdieu (2000), as classes que podem ser recortadas no espaço social não
existem como grupos reais, mas apenas como probabilidade de se constituírem em grupos na
prática. Não existem classes na realidade, mas apenas “no papel”. É a proximidade dos
agentes no espaço social que permite a definição de classes. Os agentes não constroem o
mundo social de forma totalmente consciente. As categorias de percepção do mundo social
são, em essência, resultado da incorporação prática das estruturas do espaço social. Em
conseqüência, isto leva os agentes a aceitarem o mundo social mais do que questioná-lo. A
posição social dá o sentido do que se pode ou não se pode fazer, implica um sentido dos
100
limites da ação e um sentido das distâncias entre as pessoas e grupos, o que não quer dizer que
solidariedades não possam ser estabelecidas entre indivíduos ocupando campos diferentes.
O mundo social é constituído simbolicamente e se organiza segundo a lógica da
diferença, constituída, assim, em distinção significante. O espaço social e as diferenças que
nele se desenham enquanto diferenças de “classes” tendem a funcionar simbolicamente como
espaço dos estilos de vida ou como conjunto de grupos caracterizados por estilos de vida
diferentes. A distinção é a diferença inscrita na própria estrutura do espaço social quando
percebida segundo as taxonomias próprias dessa estrutura. A distinção é praticada pelo ato de
nomear e, como essa nomeação supõe uma distribuição desigual de poder, ela sempre supõe
hierarquias. Dessa forma, a distinção não se refere apenas à diferença, mas também à
hierarquização desta, ou seja, à desigualdade entre as classes. Os títulos profissionais,
educacionais e de nobreza são o maior exemplo do poder de nomeação (BOURDIEU, 2000).
Bourdieu (2000) também pontua que, apesar do caráter naturalizante da construção
discursiva da distinção, na base das homologias entre as posições no interior de campos
diferentes podem se instaurar alianças mais ou menos duradouras fundamentadas num malentendido mais ou menos consciente. Portanto, as classes não são naturais, dadas de uma vez
por todas. É preciso reconstruir em cada contexto o trabalho histórico de que são produtos as
divisões sociais em classes. As classes, criadas por uma construção histórica e social, tanto no
âmbito da teoria quanto na prática, produzem e reproduzem a crença na sua existência, mas
não existem na realidade a não ser como um grupo provável.
Mais do que a renda, o critério “ocupação” é central para pensar “classe social”. O
exercício de uma ocupação aponta várias características pelas quais um indivíduo pode ser
classificado e situado do ponto de vista da estrutura de classe de uma sociedade capitalista.
Aponta, em primeiro lugar, um nível de renda esperado, que possibilitará usufruir
determinados bens, recursos e oportunidades econômicas, sociais e culturais. Aponta um
determinado nível de escolaridade, exigido, em geral, como requisito mínimo para a execução
de tal ocupação, o que supõe um determinado nível de esclarecimento e consciência política,
bem como acesso a determinados tipos de informação. Daí o conceito de classe ser central
para pensar as relações de identidade e diferença entre trabalhadoras domésticas e patroas.
“Classe”, assim, não se refere apenas aos aspectos econômicos que envolvem as
condições materiais, mas também às relações sociais, interesses políticos, subjetividade,
sofrendo influência de e influenciando outros fatores como diferenças raciais, de gênero e
sexuais, definidas de forma inteiramente qualitativa.
101
Classe e raça se interconectam às construções de gênero, influenciando as relações
sociais nas quais os indivíduos se inserem. Se utilizarmos a referência da teoria dos campos
de Bourdieu (2000), veremos que tanto o gênero como a raça e a classe constituem campos
onde se travam lutas pelo poder de nomeação e pelos privilégios que dele advém. Esses
campos têm estruturas hierárquicas homólogas nas quais os indivíduos são posicionados. Tais
estruturas mudam em função das mudanças nas relações de força e de acordo com os
movimentos dos sujeitos nessas estruturas. Esses “espaços sociais” se entrelaçam, se cruzam,
se tornam interconectados e interdependentes, produzindo posições-de-sujeito conforme a
composição das relações em um determinado contexto histórico. É justamente a intersecção
entre esses diferentes campos que constitui o interesse de uma abordagem interseccional.
Foi Simone de Beauvoir, na obra “O segundo sexo”, na década de 1940, quem
apontou de forma bastante original os mitos em torno da afirmação de que as diferenças
cognitivas e comportamentais entre mulheres e homens eram definidas pela anatomia e pela
fisiologia. Segundo a posição dessa autora, a opressão da mulher se deve não a fatores
biológicos, psicológicos ou econômicos, mas à construção histórica da mulher como a
alteridade do homem, a “outra”, o “segundo sexo” (Beauvoir, 2002). Essa obra causou
comoção no meio acadêmico e nos movimentos sociais, tirando sua força justamente da
desnaturalização da categoria “mulher”. A partir de Beauvoir, diversos estudos passaram a
criticar os argumentos alinhados ao determinismo biológico presentes na ciência à respeito do
corpo e do “ser social”. A distinção entre o sexo e o gênero foi o recurso utilizado pelos
estudos de gênero para criticar os essencialismos dos argumentos biologizantes que
desqualificavam a mulher.
O termo “gênero” se tornou útil para designar o processo de construção social, política
e cultural – não biológico – das diferenças e, principalmente, das desigualdades entre homens
e mulheres. Esse conceito contribui para compreender que a desigualdade e a opressão não
são inevitáveis, mas constituem o produto de relações sociais específicas, no interior de
contextos históricos e culturais localizados. Dessa forma, passa-se, como diz Goffman (1989),
de uma linguagem de atributos para uma linguagem de relações, na medida em que se percebe
que não são as características sexuais em si que geram desigualdades, mas a forma como
essas características são valorizadas e representadas. É isso que vai definir o que é masculino
e o que é feminino em um determinado momento da história.
O termo “gênero”, enquanto construto teórico, visa enfatizar o caráter relacional e
político das definições normativas de feminilidade e masculinidade. Constitui, ao mesmo
tempo, uma dimensão simbólica de sistema de classificação e distinção, que se configura de
102
maneira particular em contextos culturais particulares (STOLKE, 2004). Butler (2003), nessa
mesma linha, afirma que é errônea a concepção de que o sexo seria natural, ao passo que o
gênero seria social. O sexo, para a autora, assim como o gênero, seria uma construção
discursiva que produz um efeito simbólico. Pensa-se que o discurso que constrói o sexo
apenas o nomeia, mas na verdade ele o constrói. Desse modo, seguindo também a concepção
de “discurso” de Foucault (1996), Butler (2003) defende que não existem sujeitos anteriores
ao discurso, mas apenas no interior dele. Os discursos, construídos socialmente, criam e
impõem formas de agir aos sujeitos, forçando-os a se adequar a eles. As ações dos sujeitos, ao
buscarem reconhecimento, reiteram as normas, produzindo subjetividades fundamentalmente
ligadas a distinções e desigualdades. Há, portanto, um modelo hegemônico do gênero que
tende a produzir mulheres com características reconhecidamente femininas. Tais mulheres
estão posicionadas na ordem do gênero e aquelas que não compartilham dos mesmos
parâmetros são vistas como negativamente diferentes, como o “outro” do discurso,
condenadas a viver como diferença essecializada, cristalizada.
A visão essencialista que surge daí tende a fazer do sexo uma matéria fixa, que
ganharia forma e significado pelo gênero. Mas isso não é feito por um poder que está fora dos
indivíduos, e sim pela atuação continuada que se torna poder na medida em que apresenta
uma considerável estabilidade. Dessa forma, para Butler (2003), é o atuar como mulher que
produz o gênero feminino. Tornar-se mulher é seguir a ordem do discurso de gênero, numa
relação de alteridade. Se os sujeitos, para atuar, interpretam as normas, é possível procurar
espaços onde o discurso normativo pode ser ressignificado e subvertido. Nesses espaços, pode
ocorrer uma confusão classificatória e uma ambigüidade que desestabilizam os gêneros,
contestando a imutabilidade das ordens de gênero. São os atos corporais que fazem o gênero.
A tarefa do feminismo é a de formular uma crítica às categorias de identidade que a
estrutura sexista engendra, naturaliza e imobiliza. “Se o sexo é, ele próprio, uma categoria
tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como uma interpretação cultural do
sexo” (BUTLER, 2003, p.25). O gênero não é uma mera inscrição cultural de significado em
um sexo previamente dado, mas designa o próprio mecanismo de reprodução por meio do
qual os próprios sexos são estabelecidos. “Resulta que o gênero não está para a cultura como
o sexo está para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual a „natureza
sexuada‟ ou „um sexo natural‟ é produzido e estabelecido como pré-discursivo, anterior à
cultura” (BUTLER, 2003, p.25). Naturalizar o gênero, assim, é retirá-lo do plano discursivo.
E colocar a dualidade do sexo em um domínio fora do discurso é a maneira mais eficaz de
manter a estrutura binária do sexo. Essa produção do sexo como pré-discursivo é um efeito do
103
gênero. As relações de poder produzem o efeito de um sexo pré-discursivo e ocultam, dessa
forma, a própria operação da produção discursiva (BUTLER, 2003).
De acordo com Sarti (2004), um conjunto de fatores contribuiu para a eclosão do
feminismo brasileiro na década de 1970: o reconhecimento pela Organização das Nações
Unidas (ONU) da questão da mulher como problema social, criando condições para o
surgimento de um movimento social em torno da discussão da condição feminina; a
modernização ocorrida no período da ditadura militar, que ampliou os parques industriais e
expandiu o mercado de trabalho e o sistema educacional, aumentando, ainda que vagarosa e
desigualmente, as oportunidades para as mulheres; as transformações culturais ocorridas a
partir do final da década de 1960, que impactaram nos comportamentos afetivos e sexuais,
questionando o padrão tradicional de valores predominante nas relações familiares em uma
atmosfera autoritária e patriarcal. Mas há de se destacar que esse movimento feminista surgiu
com características específicas, formados por mulheres brancas de classe média, com
formação universitária e profissional e em condições mais favoráveis ao fortalecimento de
uma consciência política.
Desde o início da década de 1970, segundo Sarti (2004), predominaram duas correntes
dentro do feminismo: uma mais preocupada com a ação política coletiva, com a organização
das mulheres em torno da denúncia das desigualdades entre homens e mulheres no trabalho,
na saúde, na distribuição de renda e na prática de direitos de cidadania; e outra voltada para a
compreensão das relações interpessoais, concentrando na esfera privada do lar e da família, no
ambiente doméstico, o foco da atenção às desigualdades entre os sexos, com destaque para a
divisão sexual do trabalho doméstico. Mesmo que tenha nascido como um movimento de uma
parcela específica das mulheres, não se pode negar o impacto que o movimento feminista
alcançou nos valores e práticas sociais, a partir do questionamento dos significados
vinculados à mulher. Ao dar voz à mulher, esta pôde se auto-definir e se conscientizar da
necessidade de lutar contra as disparidades entre os sexos, vendo sujeitos sexuados onde antes
apenas se viam sujeitos. A partir daí, buscou-se a transformação dos significados atribuídos ao
masculino e ao feminino, questionando os argumentos biologizantes que explicavam as
diferenças como naturais.
Entretanto, as diferenças e as relações desiguais de poder entre as mulheres deram
origem a um leque de feminismos que passaram a chamar atenção para o caráter heterogêneo
e plural das mulheres e dos movimentos de mulheres. Feminismo negro, feminismo lésbico,
feminismo popular, ecofeminismo, feminismo cristão, foram algumas das vertentes que
surgiram nos últimos 30 anos, diferindo significativamente do primeiro movimento feminista
104
pela ênfase nos modos pelos quais a raça, a classe, a sexualidade, a religião interferiam e nas
identidades de gênero e nas práticas políticas e culturais. Essas dissensões foram resultado das
contestações de mulheres que não se sentiam contempladas pelos discursos e agendas
políticas feministas e resolveram buscar em outras formas de feminismos soluções para
transformar sua realidade social, política, econômica e cultural (ALVAREZ, 2000). Pode-se
argumentar que as intersecções não foram percebidas ou foram sufocadas pelos primeiros
movimentos feministas para manter a coesão política e ocultar a existência de subgrupos
marginalizados dentro do movimento, o que acabou acarretando a invisibilidade desses
subgrupos e a sua exclusão de políticas públicas específicas.
Parte dessa negligência decorreu do poder da ideologia da democracia racial, que
implicou uma confusão entre a mistura racial no plano biológico e as interações raciais no
sentido sociológico. A mistura de raças no plano biológico é, sem dúvida, constitutiva da
sociedade brasileira. Entretanto, essa mistura no plano da biologia não implica
automaticamente interação harmoniosa entre
as
raças
socialmente construídas
e
sociologicamente consideradas. As relações sociais entre diferentes grupos de cor não se dão
sem conflito. Mas no Brasil, segundo Hasenbalg (1996), há uma interdição, uma etiqueta que
sugere que se evite falar sobre o racismo, o que já referimos como o “preconceito de ter
preconceito”, que se contrapõe à harmonia idealizada. A negação das desigualdades raciais é
estrategicamente acionada quando se propõe a concessão de benefícios àqueles identificados
como pretos ou pardos, pois a igualdade racial pressupõe o questionamento das vantagens
adquiridas pelos brancos por meio das hierarquias raciais. Dessa forma, o mito da democracia
racial camufla o racismo e promove uma interpretação das desigualdades com base nas
relações de classe, em torno do mérito (BERNARDINO-COSTA, 2002). Ao contrário, a
história do Brasil mostra que a pauperização das populações negras foi uma consequência do
racismo que pautou sua inserção no trabalho escravo. O mito da democracia racial revela seu
preconceito quando valoriza a miscigenação apenas quando ela leva em direção à brancura.
Mesmo existindo um contínuo de cor que marca a população brasileira, percebe-se que as
possibilidades intermediárias ganham sentido em relação aos pólos negro e branco.
Oliveira (2006), em sua pesquisa, afirma que a negra de pele clara, ou o que se chama
de parda, não tem um lugar definido nas posições raciais dicotômicas no interior de um país
miscigenado como o Brasil. As classificações sociais nas quais ela é enquadrada variam de
acordo com o contexto. Em um meio “branco”, ela pode ser considerada negra, ao passo que
entre negras sua pertença negra pode ser contestada. Os pardos são aqueles que, no imaginário
hegemônico, apesar de não partilhar as conseqüências negativas da negritude, também não
105
podem alcançar os privilégios da branquitude. Sua condição, ao invés de revelar harmonia
entre as raças, explicita a tensão e a discriminação.
Se o mito da democracia racial e o ideal de branqueamento tornaram indesejável o
debate sobre o preconceito racial, o discurso contestatório das mulheres somou-se ao discurso
contestatório dos negros em geral para fundamentar o feminismo negro, que transcende tanto
o espaço específico do anti-racismo quanto o espaço particular do feminismo. Dessa forma, as
feministas negras contestam duplamente as expectativas de submissão e abnegação dos
sujeitos posicionados como subalternos nas relações de poder (OLIVEIRA, 2006). O
feminismo negro coloca, assim, a interseccionalidade no centro da análise. Foram as mulheres
negras as primeiras a discutir as conseqüências do cruzamento de diferentes eixos de
subordinações e suas relações com as estruturas de poder. Segundo Carneiro (2002), a
consideração combinada de raça, gênero e classe promove a síntese dos problemas contra os
quais os movimentos negros e de mulheres lutam, enegrecendo o feminismo e feminizando as
reivindicações do movimento negro. Assim como o racismo estabelece a inferioridade dos
negros em geral, e das mulheres negras em particular, ele divide as mulheres entre si, com
prejuízo para as negras. A denúncia dessa desigualdade intra-gênero exige uma postura crítica
frente às denuncias que tomam apenas o gênero como referência. As análises dos efeitos
conjuntos de gênero, raça e classe permitiram às feministas negras denunciar a tripla opressão,
ao mesmo tempo em que garantiram o reconhecimento de sua especificidade em face dos
movimentos já consolidados.
Como mostra Caldwell (2002), os primeiros paradigmas de gênero foram desafiados
pelas feministas negras, que focalizaram mais a importância das diferenças entre as mulheres
do que as supostas similaridades. Elas evidenciaram que, se as mulheres não nascem
mulheres, mas “se tornam” mulheres, esse “tornar-se” se define em relação às mulheres de
outras raças, classes, culturas, regiões e não somente em relação aos homens.
De acordo com Crenshaw (2002), a conexão entre os percursos de construção de
diferentes aspectos identitários concorre para o desempoderamento de alguns sujeitos. E isso
tem sido negligenciado pelas teorias de gênero mais correntes. Os aspectos de gênero da
discriminação racial e os aspectos raciais da discriminação de gênero não recebem a devida
atenção no discurso do feminismo e dos Direitos Humanos. Daí a necessidade de perceber
como o gênero se intersecta com um conjunto de outras instâncias da identidade, como a raça
e a classe, contribuindo para o desempoderamento e a vulnerabilidade de diferentes grupos de
mulheres. O conceito de interseccionalidade oferece a possibilidade de captar os aspectos
106
estruturais e dinâmicos da interconexão entre dois ou mais eixos de subordinação, que criam
desigualdades posicionando social e politicamente os grupos sociais.
Uma abordagem como essa em um país como o Brasil é fundamental, visto que, como
mostra Carneiro (2002), o racismo, que poderia ser considerado como parte de uma história
longínqua ou, no máximo, uma reminiscência do passado colonial, permanece vivo e atuante
no imaginário social e adquire novos contornos em face de uma ordem que se quer
democrática, mas mantém intacta as relações de gênero segundo as raças instituídas no
período escravocrata. O discurso clássico do feminismo sobre a opressão da mulher não
reconhece a especificidade histórica da experiência das mulheres negras e, por isso, não é
capaz de compreender o efeito da opressão que ainda se exerce sobre as identidades dessas
mulheres. Pela história da mulher negra, ela não pode se reconhecer nos mitos sobre a
fragilidade feminina, pois trabalharam de sol a sol nas lavouras como escravas, sendo
obrigadas a se colocar sempre a serviço das sinhás e dos senhores, como criadas e prostitutas.
Ainda hoje, grande parte delas trabalha como doméstica para mulheres “liberadas”, ou como
“mulatas” tipo exportação. A mulher negra continua sendo a “outra” da mulher branca,
continua sendo retratada como um anti-exemplo daquilo que o mercado de trabalho exige
como “boa aparência”. Excluídas, assim, da parte mais rentável e reconhecida do mercado de
trabalho por sua aparência, são também relegadas a uma subclasse de consumidoras de
terceira categoria.
Mas é necessário considerar também que a experiência de “ser negra” não é unívoca,
não é mesma para todas as mulheres negras em todos os lugares. Brah (2006), analisando o
caso europeu, mais especificamente o caso inglês, mostra como o termo negro(a) foi
ressignificado pelo movimento negro e pelo feminismo negro no sentido de tirar-lhe o sentido
pejorativo e promover uma articulação política na luta contra o racismo. No entanto, o termo
não dá conta da diversidade de experiência de mulheres e homens negros(as) em relação à
classe, à etnicidade, regionalismos, etc. Dessa forma, Butler (2003) tem razão em afirmar que
as identidades podem tanto denunciar opressões quanto reproduzir normatizações e
diferenciações. Por isso, devem ser sujeitas à crítica dos sujeitos políticos que se sintam
excluídos por elas.
A abordagem feita pelas feministas negras denuncia a opressão racial, sexual,
heterossexual e de classe que vivenciam as mulheres negras. Seu mérito está em mostrar que
os movimentos pelos direitos civis, o nacionalismo negro e o próprio feminismo de
“vanguarda” excluíram as mulheres negras de suas conquistas. Assim, as mulheres negras
reconhecem a necessidade de desenvolver um movimento político anti-racista, diferente do
107
das mulheres brancas, dos homens brancos e dos homens negros (hooks, 1995). A partir disso,
as feministas negras mostraram que a condição de subordinação das mulheres não passa
apenas pelo “ser mulher”, mas também pela raça e pela classe. Diz Carneiro (2004) que ser
mulher negra no Brasil opera uma síntese que agrega as contradições de raça, classe e gênero,
Assim, raça, classe e gênero se atravessam mutuamente. As desigualdades, nessa perspectiva,
não são apenas fruto de uma fusão ou convergência, mas de uma intersecção dinâmica entre o
gênero, a raça e a classe em estruturas de dominação históricas, o que suscita questões
complexas em torno da relação entre ideologias biológico-raciais que legitimam estruturas de
desigualdades econômico-políticas e a organização da reprodução social (STOLKE, 2004,
p.93).
Essa postura teórico-metodológica não busca as origens do gênero na “essência” do
feminino, da “mulher”, mas investiga as apostas políticas, designando como origem e causa
do gênero as categorias de identidade que resultam de efeitos de discursos, práticas e
dinâmicas institucionais que possuem pontos de origem múltiplos e difusos. As
representações política e lingüística definem os critérios segundo os quais os próprios sujeitos
são formados, de forma que a representação só é possível a quem pode ser reconhecido como
sujeito.
Ao invés de sugerir um ajustamento à diversidade, “mulheres” – mesmo no plural –
tornou-se um termo problemático. O termo não é exaustivo porque o gênero não se constitui
de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos em que se manifesta.
Além disso, estabelece intersecções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e
regionais de identidades discursivamente constituídas. Daí se torna impossível separar a
noção de “gênero” das intersecções políticas e culturais em que invariavelmente ela é
produzida e mantida (BUTLER, 2003). A noção de patriarcado universal, a idéia de que as
mulheres, em todos os lugares vivenciam a opressão masculina da mesma forma, tem sido
francamente criticada no seu fracasso em explicar os mecanismos de opressão de gênero em
diferentes contextos culturais concretos. A constituição da classe, da raça e da etnia, como
eixos de relações de poder, tanto constituem a “identidade” quanto tornam equívoca a noção
singular de identidade.
Tanto gênero, quanto a classe e a raça, enquanto marcadores da diferença no interior
de sistemas de opressão, se constroem por um ato de violência simbólica, por uma imposição
de um significado que busca transformar em atributo natural aquilo que é nada mais que o
resultado de um jogo relacional de poder. Mas seria errôneo considerar sistemas de opressão
como contextos de ações em que um grupo ou individuo é inteira e continuamente submetido
108
a outro indivíduo ou grupo. Gênero, classe e raça, como afirma Brah (1996) e Butler (2003),
em interação com condições econômicas, sociais, políticas e culturais, geram condições de
possibilidade para transformações mediante uma subversão da identidade. Não se pode supor
que as relações entre trabalhadoras domésticas e patroas são definidas sempre pela opressão e
exploração vertical e direta das primeiras pelas segundas. As contingências do cotidiano
podem gerar condições de possibilidade tanto para um acirramento da opressão e
discriminação, quanto para um relacionamento mais igualitário e horizontal. E, no primeiro
caso, situações contingentes podem gerar condições de possibilidade para ações e
performances de resistência velada ou conflito. É verdade que uma análise histórica do
trabalho doméstico no Brasil mostra a prevalência de uma relação assimétrica de opressão e
exploração da trabalhadora doméstica. Mas a configuração dessa relação em um dado
contexto só pode ser afirmada pela pesquisa empírica.
3.3 – Perfis das personagens da pesquisa: trabalhadoras domésticas e
patroas
Antes de ingressar nas análises do material coletado nas entrevistas, é importante
conferir atenção ao perfil comparativo das trabalhadoras domésticas e patroas que
participaram da pesquisa. Considerando-se variáveis sócio-econômicas básicas, é possível
perceber detalhes importantes que influenciam as relações de trabalho e pessoais, bem como
configuram parte de suas consequências. Comecemos pelo perfil das trabalhadoras domésticas
que foram entrevistadas.
109
Perfil individual das trabalhadoras domésticas entrevistadas
Nome
Idade
Cor/raça7
Escolaridade
fictício
Rendimento
Possui
Número de
Possui
mensal (R$)
carteira
filhos
cônjuge /
assinada
Fátima
31
Parda
Fundamental
companheiro
427,00
Sim
2
sim
450,00
Não
2
sim
incompleto
Ivanete
29
Preta
Fundamental
incompleto
Jurema
42
Parda
Fundamental
500,00
Não
3
Não
Marina
28
Parda
Ensino médio
625,00
Sim
3
Não
Marilda
44
Branca
Fundamental
510,00
Sim
2
Sim
Rosa
31
Parda
Ensino médio
450,00
Não
1
Sim
Rosenilde
35
Parda
Fundamental
480,00
Sim
2
Sim
incompleto
Fonte: Entrevistas
No quadro acima podemos perceber que as trabalhadoras domésticas entrevistadas têm
entre 28 e 44 anos, são predominantemente pardas e a maioria delas não ultrapassou o ensino
fundamental. O salário gira em torno de um salário mínimo, ficando abaixo dele na maioria
dos casos, o que demonstra que mesmo os direitos que as trabalhadoras domésticas já
conquistaram ainda continuam sendo desrespeitados. Isso é igualmente perceptível quando se
considera a formalização do serviço doméstico. Na presente pesquisa, o número de relações
formais ainda ficou quase o dobro acima da média nacional, que é de 27% (IBGE-PNAD,
2008). A maioria das trabalhadoras domésticas é casada ou vive com um companheiro. Todas
elas têm filhos, em média dois, sendo que as que têm mais filhos (três) vivem sozinhas com
eles após ter se separado do marido ou companheiro. Esse quadro revela-se mais interessante
para os propósitos deste trabalho quando comparado ao quadro seguinte.
7
Classificação derivada da auto-atribuição pelas entrevistadas, utilizando-se o padrão de classificação do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
110
Perfil individual das patroas entrevistadas
Nome
Idade
Cor/raça
Escolaridade
Ocupação
fictício
Renda
Assina
Nº de
Possui
mensal
a
filhos
cônjuge/
(R$)
carteira
companheiro
Beatriz
54
Branca
Superior
Fotógrafa
2.000,00
Sim
2
Sim
Claudia
35
Branca
superior
Professora
7.000,00
sim
2
Sim
universitária
Daniela
47
Branca
Ensino médio
Artista plástica
4.000,00
Sim
2
Sim
Ivete
34
Parda
Ensino médio
Comerciante
3.500,00
Não
2
Sim
Judith
45
Amarela
Superior
Odontóloga
5.000,00
Não
2
Sim
Júlia
45
Branca
Superior
Administradora
3.000,00
Não
3
sim
Margaret
55
Branca
Superior
Comerciante
10.000,00
Sim
3
Sim
Fonte: Entrevistas
A idade das patroas entrevistadas varia de 34 a 55 anos, são predominantemente
brancas e a maioria concluiu o ensino superior. Todas as entrevistadas executam atividades
profissionais fora do lar, seja como profissional liberal, comerciante, professora ou
empresária. Seus rendimentos mensais vão de R$2.000,00 a R$10.000,00. A média de filhos
entre elas se aproxima muito da média de filhos entre as trabalhadoras domésticas. Todas elas
são casadas ou vivem com um companheiro. Como as entrevistas foram feitas com
trabalhadoras domésticas e patroas da mesma residência, o índice de relação formal com as
domésticas é o mesmo apontado na tabela anterior.
Perfil geral das trabalhadoras domésticas e patroas entrevistadas
Trabalhadoras
Idade
Cor/raça
Escolaridade
Rendimento
Possui
Assina a carteira
média
predominante
predominante
mensal médio
carteira
(%)
(R$)
assinada (%)
34
Parda
Fundamental
492,00
incompleto
domésticas
57%
-
(4 das 7
domésticas)
Patroas
45
Branca
Superior
4.929,00
-
57%
(4 das 7patroas)
Fonte: Entrevistas
111
Comparando os aspectos principais das duas tabelas, podemos perceber a dimensão
das diferenças nas características apresentadas por trabalhadoras domésticas e patroas. As
patroas são, em média, 10 anos mais velhas que as trabalhadoras domésticas. São
majoritariamente brancas, enquanto que as domésticas são majoritariamente pretas e pardas.
Em termos de escolaridade, a disparidade é muito grande: enquanto as trabalhadoras
domésticas, na sua maioria, não estudaram além da 8ª série do ensino fundamental, quase
todas as patroas cursaram o ensino superior, o que quer dizer que estas possuem, no mínimo,
de 7 a 8 anos a mais de estudo que as primeiras. Quanto à renda mensal, talvez tenhamos o
dado mais alarmante. A renda mensal média dentre as patroas entrevistadas é de R$4.929,00,
enquanto que a das trabalhadoras domésticas é de R$492,00. Isto significa que, em média,
patroas ganham 10 vezes mais que aquelas pessoas que elas contratam para trabalhar em suas
residências. Esse dado, juntamente com a diferença acentuada no nível de escolaridade,
aponta a profunda desigualdade de classe existente entre essas mulheres e sugere que tal
aspecto merece atenção especial. Em conjunto com as diferenças raciais, tais disparidades se
colocam como desafio para o entendimento da relação entre trabalhadoras domésticas e
patroas.
3.4 - Ser trabalhadora doméstica
Os dados coletados sobre a trajetória de vida das trabalhadoras domésticas confirmam
em grande medida os achados de pesquisas anteriores. Muitas são migrantes, uma delas
proveniente do nordeste do país, as outras com origem no interior do estado de Goiás, tendo
passado por várias cidades até chegar à Goiânia. Apenas uma exceção, uma mulher que
nasceu em Goiânia e aqui permaneceu ao longo de toda a vida.
A migração é quase sempre motivada pela necessidade de encontrar colocação em um
mercado de trabalho mais desenvolvido e aumentar a renda, primeiro para suprir
satisfatoriamente as necessidades materiais mais elementares, e secundariamente para
aumentar o padrão de consumo. Em algumas falas é possível perceber, como também mostrou
Nunes (1997), certo desejo, ainda que não revelado explicitamente, de conduzir a própria vida
com mais liberdade, de forma mais autônoma, longe das pressões comunitárias que a vida em
uma cidade pequena do interior às vezes impõe.
112
Algumas das entrevistadas chegaram a trabalhar na sua cidade de origem, como
trabalhadoras domésticas. Mas os relatos revelam que quase sempre o trabalho doméstico no
interior é revestido por um caráter informal mais forte do que o presente no trabalho
doméstico em uma cidade grande, como Goiânia. Além disso, segundo os relatos das
trabalhadoras domésticas, no interior a subordinação das trabalhadoras domésticas ao
indivíduo ou grupo familiar empregador parece ser maior, com conseqüências mais nocivas
para quem executa o trabalho, já que em vários casos a doméstica reside onde trabalha. Nas
grandes cidades, isto tende a não ocorrer, porque os próprios patrões preferem contratar
trabalhadoras domésticas que tenham a sua própria casa e apresentem uma conduta mais
“profissional”, de modo a interferir o mínimo possível na privacidade da família na
residência.
A análise das trajetórias de vida de trabalhadoras domésticas revela o quanto a
sociedade brasileira, apesar das transformações pelas quais passou, ainda é uma sociedade
rígida no que diz respeito à mobilidade social. Quase todas as mães das trabalhadoras
domésticas entrevistadas já prestaram serviços domésticos em alguma época da vida, ou ainda
continuam a fazê-lo. As que não adentraram o serviço doméstico remunerado viviam como
donas-de-casa, executando exatamente o mesmo trabalho, mas sem remuneração alguma. Nas
falas das entrevistadas, o fato de seguirem a mesma profissão da mãe, ou fazer
profissionalmente o que a mãe fazia em sua própria casa não é atribuído diretamente à
influência das mães no processo de socialização, mas às condições “estruturais” que não
permitem que elas tenham recursos e tempo para se engajar nos estudos e desempenhar outras
atividades. À propósito, foi unânime a afirmação de que o trabalho doméstico surgiu como
ocupação possível devido à falta de estudo e a impossibilidade de ter uma “profissão” – leiase profissão de “carreira”, como as dos profissionais da academia, os profissionais liberais, os
funcionários públicos e mesmos os empresários. Isso mostra claramente que o serviço
doméstico não é encarado como uma profissão por aquelas que o executam, porque não exige
conhecimentos especializados, nem escolarização, nem habilidades “especiais”. A decisão de
engajar-se na atividade está ligada, em várias falas, aos constrangimentos materiais
característicos da infância pobre na zona rural do interior do estado. Ao chegarem à capital,
com a necessidade de desempenhar uma ocupação, acabam adentrando o serviço doméstico, o
que, segundo elas, é mais fácil de conseguir, pois necessita apenas de uma indicação.
As trabalhadoras domésticas também revelaram que, na família, já eram incumbidas
do trabalho doméstico, no interior de uma organização familiar que reproduzia a divisão
sexual do trabalho em termos de trabalho produtivo, para os homens, e trabalho reprodutivo,
113
para as mulheres. Pela necessidade de trabalhar, as trabalhadoras domésticas entrevistadas, na
sua maioria, abandonaram a escola ainda no ensino fundamental. As conseqüências da evasão
escolar foram, então, decisivas para o ingresso na ocupação.
A despeito da opinião, disseminada em diversos âmbitos da sociedade, de que o
serviço doméstico é a pior ocupação do mercado de trabalho, e que as mulheres que estão nele
inseridas o fazem por falta de escolha, algumas trabalhadoras domésticas entrevistadas
enfatizam que escolheram sua ocupação, dentro, logicamente, de um leque de opções um
tanto quanto reduzido de ocupações também desvalorizadas, em diferentes medidas. Como já
havia mostrado Brites (2000), o serviço doméstico é visto como vantajoso pelas trabalhadoras
domésticas em face de outros empregos que são menos desvalorizados. Várias das
trabalhadoras entrevistadas afirmam que já executaram outros trabalhos, como os de
secretária, vendedora (de roupas, calçados, brinquedos), de auxiliar de cozinha em
restaurantes, de auxiliar de limpeza em empresas privadas. Mas escolheram o serviço
doméstico por ser o salário sempre maior ou igual ao que ganhavam nessas outras ocupações,
por ter um horário mais flexível, permitindo cuidar dos filhos e da própria casa, e por não
trabalhar nos finais de semana e feriados, sobrando tempo para descansar e ficar com a
família. Todos esses argumentos, usados positivamente pelas trabalhadoras domésticas,
conforme assevera Brites (2000), são justamente os que os primeiros movimentos feministas
condenavam como sendo os grilhões que aprisionavam as mulheres na “domesticidade”. A
fala desta trabalhadora doméstica exemplifica o que foi dito.
Trabalhei em loja também, antes de trabalhar em casa de família, mas ganhava
muito pouco. Só que trabalhava demais, das sete da manhã às nove da noite. Aí eu
fui trabalhar de doméstica e estou fazendo uns cursos de informática, porque eu não
pretendo ficar nas casas dos outros pro resto da vida. Mas como doméstica meu
salário passou a ser muito maior do que na loja, e o horário ficou mais tranqüilo, não
trabalho feriado. Trabalho só de segunda a sexta, entro às 10h, saio às 18h. E nas
lojas não, trabalhava todo dia e ainda um domingo sim, um domingo não. E ganhava
muito pouco. Assim, não vou dizer que eu gosto, porque a gente não gosta de fazer
serviço doméstico, né. Mas é um serviço que ganha mais, pelo menos pra mim que
não tenho uma profissão, um currículo, um diploma pra entrar no mercado de
trabalho (MARINA, trabalhadora doméstica, 28 anos, parda).
A maioria delas começou a trabalhar muito cedo, entre os 10 e os 14 anos de idade.
Isso reflete a precoce iniciação das meninas no trabalho doméstico dentro de seus próprios
lares, trabalho esse que inclui a limpeza da casa, a preparação de alimentos e o cuidado com
irmãos menores.
Ao indagar como as entrevistadas “se tornaram” trabalhadoras domésticas,
descobrimos que grande parte delas adentrou essa ocupação por falta de formação profissional
que permitisse executar uma “profissão” melhor remunerada e mais bem reconhecida. A
114
entrada no mercado de trabalho sempre se dá por meio dos contatos com familiares e amigos.
Por trás do serviço doméstico, há sempre uma rede de pessoas conectadas umas às outras por
meio das quais é possível mobilizar uma indicação de emprego caso seja necessário. Essa rede
liga, inclusive, as cidades do interior à capital. Muitas mulheres jovens conseguem um
emprego doméstico na capital antes mesmo de sair de sua cidade, através dessa rede de
contatos, que envolve tanto trabalhadoras domésticas quanto patrões. Essas redes de contatos,
além de facilitar a colocação da trabalhadora doméstica no mercado de trabalho doméstico,
são funcionais também aos patrões, que geralmente se sentem mais seguros quando contratam
alguém que foi indicado por familiares ou amigos, que têm referências e um “atestado de
honestidade”.
Para a maioria das entrevistadas, o serviço doméstico foi o primeiro emprego, a porta
de entrada no mercado de trabalho. Quase sempre, esse primeiro emprego é sucedido por
outro, e por outro, e por outro. Nas falas de várias das entrevistadas, é freqüente o desejo de
terminar o segundo grau, de fazer um curso profissionalizante, de ingressar em outra
ocupação, como uma forma de “ascender” socialmente. O serviço doméstico é quase sempre
visto como algo transitório, mas a “transição” para outra ocupação ocorre em poucos casos.
Na visão de uma das trabalhadoras domésticas, isso ocorre por que as opções para
quem tem pouca escolaridade são muito escassas. Quando perguntei a uma das trabalhadoras
domésticas entrevistadas por que tinha escolhido o serviço doméstico, ela respondeu:
Ah, primeiro, porque quase não tem opção. Eu estudei pouco. Eu parei meus
estudos, não cheguei a fazer um curso pra me especializar noutra área, né. E hoje
sem estudo você não faz nada. Até em anúncio pedindo diarista eles estão pedindo
oitava série, primeiro ano. Então, foi mais por falta de opção. Não tinha estudo pra
entrar noutra área, então, vai “doméstica mesmo”, né. É o que a gente sabe fazer
mesmo, no dia-a-dia (FÁTIMA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda).
Como se pode ver, se algumas trabalhadoras afirmam haver opções, outras enfatizam
que elas são muito restritas, praticamente inexistentes, e o trabalho doméstico se torna uma
opção recorrente porque as mulheres são socializadas para fazê-lo, principalmente nas classes
mais pobres, e, por isso, consideram que é o que fazem de melhor. Pode-se concluir, então,
que, se não há nenhuma determinação mecânica que leva invariavelmente mulheres pobres
para o trabalho doméstico, não há também muitas escolhas a serem feitas, já que as profissões
mais reconhecidas e melhor remuneradas do mercado de trabalho exigem um nível de
formação escolar e técnica relativamente elevado. As condições econômicas e a organização
da família também interferem na inserção das mulheres no serviço doméstico.
O trabalho doméstico foi meu primeiro emprego. Quando eu era adolescente eu não
fiz curso nenhum. Eu morava longe, onde eu morava não tinha nem energia. Então
eu dormia cedo pra acordar cedo e ir pra escola. Meu pai era ausente, minha mãe era
115
diarista, então a gente ficou cuidando um do outro, nunca saí pra trabalhar fora. Eu
aprendi a cozinhar cedo, a lavar roupa. Então eu nunca me preocupei em fazer um
curso. Quando eu resolvi casar, aí eu comecei a trabalhar de doméstica. Aí dei certo
no primeiro emprego, fiquei uns quatro anos. Depois disso, não fiquei parada
(ROSA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda).
A iniciação das jovens no trabalho doméstico não é apenas influenciada pela mãe,
como também, às vezes, é articulada por ela, como nesse caso.
Eu cheguei nesse emprego através da minha mãe. Minha mãe trabalha para a mãe da
[minha patroa]. Aí já tem um bom tempo que minha mãe trabalha pra ela. Trabalha
um tempo, sai, depois volta. Aí minha mãe ficou sabendo que tinha vaga aqui, e eu
tinha falado pra ela que queria trabalhar. Porque é difícil você viver só com o que o
marido ganha. As filhas vão crescendo, vão pedindo as coisas, aí fica difícil só pra
um. Aí ela foi e falou para a [minha patroa] que, se ela quisesse, eu vinha. Falou que
eu fazia de tudo, sabia cozinhar. Falou que eu nunca tinha trabalhado fora, isso ela
falou, mas falou que eu sabia fazer tudo, que tendo a receita em mãos eu fazia tudo.
Aí eu vim, a [patroa] gostou, e deu certo (FÁTIMA, trabalhadora doméstica, 31
anos, parda).
É fundamental apreender o sentido do trabalho doméstico para as mulheres que o
executam diariamente na casa da família empregadora. A partir das informações, é possível
entrever os elementos que estão na base do “senso de identidade” dessas trabalhadoras, tanto
no que se refere à identidade pessoal – a consideração de si mesmo – e social – a consideração
dos outros sobre si mesmo – quanto os aspectos ligados ao que Dubar (2005) chamou de
“identidade ocupacional”. Nesses elementos, cruzam-se características que marcam a posição
ocupada pela trabalhadora doméstica e ao mesmo tempo expressam-se as experiências
subjetivas de cada uma frente ao seu trabalho e à relação com a família empregadora,
sobretudo a patroa.
A identidade, como visto no capítulo 2, é construída no cotidiano pela “nomeação”,
pelo ato de nomear. Acionar um nome é acionar uma classe de objetos ou pessoas no interior
de um sistema de classificação. Pelo nome que é acionado, já se sabe que tipo de pessoa ou
objeto tem maior probabilidade de se encontrar na classe de objetos ou pessoas que o nome
indica. Sabe-se que o termo “empregada” é carregado de um sentido negativo, pejorativo,
herdado das formas de execução e das relações de trabalho doméstico no Brasil colonial. Esse
termo tem sido utilizado, com freqüência, para designar uma pessoa que possui um trabalho,
que está ligada ao mercado de trabalho, ou seja, que não está desempregada. Quando assume
o sentido da frase “fulano está empregado”, ou seja, fulano está trabalhando, figura com um
sentido positivo. Já quando se muda a palavra “está” para a palavra “é”, principalmente no
serviço doméstico, o termo ganha uma carga depreciativa: “fulana é empregada doméstica”. O
“é” assume um sentido naturalizante, como se a ocupação da doméstica fosse um modo de
vida permanente, totalmente correspondente com a subjetividade e a posição que ela ocupa na
116
estrutura social. Daí as representantes do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos
reivindicarem o uso do termo “trabalhadora doméstica” ao invés de “empregada doméstica” 8.
O primeiro termo mostra essa trabalhadora como outro trabalhador qualquer, portadora de
direitos de cidadania comuns a todos, enquanto o segundo deprecia a imagem da categoria,
negando-lhe reconhecimento enquanto grupo que executa um trabalho digno. Vejamos
opiniões divergentes das entrevistadas quando indagadas sobre se é importante ou não o ato
de nomear a trabalhadora doméstica como “empregada”.
Eu preferiria ser chamada de secretária né. Porque o pessoal tem muito preconceito.
Eu mesmo tenho. Eu gostaria de trabalhar de outra coisa. Mas, como eu não tive
oportunidade de ter uma formação e trabalhar em outra coisa, trabalho de doméstica.
Mas até a palavra é feia, não é? “Doméstica” (MARINA, trabalhadora doméstica, 28
anos, parda).
Minha patroa não fala “empregada”, ela fala “minha ajudante”. Eu acho
“empregada” uma palavra muito...desconfortável. Dá pra gente usar outro termo, né?
Secretária do lar, uma coisa assim, sei lá... igual ela fala, minha ajudante
(ROSENILDE, trabalhadora doméstica, 35 anos, parda).
Eu acho que doméstica, secretária, não faz diferença não. Porque quem vem aqui,
sabe que eu sou empregada mesmo, que eu trabalho como doméstica, então, eu não
faço muita questão assim não, não vejo muita diferença não (FÁTIMA, trabalhadora
doméstica, 31 anos, parda).
É possível perceber que, nas duas primeiras falas, há o desejo de ser designada por um
nome, ou classificação, menos pesada, menos pejorativa, que não lembre o tempo todo a
sujeição e a subordinação à qual a maioria das trabalhadoras domésticas estão sujeitas. Esse
desejo de não ser chamada de “empregada” vem da vontade de superar o sentimento profundo
de subordinação e desigualdade que várias trabalhadoras domésticas sentem. Vem também de
uma ânsia por reconhecimento do trabalho executado por elas, pela dignidade e pelo respeito
à atividade. Contudo, a terceira entrevistada citada acima discordou das duas primeiras. Para
ela, uma nomenclatura diferente parece não resistir à interação face-a-face. Segundo ela, isso
não tem a menor importância, já que as pessoas que a vêm trabalhar na casa dos patrões
sabem que ela é uma “empregada”. Assim, a mudança de nome não acarretaria uma mudança
nos valores pelos quais se classificam o conteúdo da prestação de serviço doméstico. Mas, ao
que tudo indica, a mudança na forma de nomear contribui para mudar o comportamento das
pessoas em relação ao que é renomeado. De qualquer forma, essa exceção mostra também que
as posições em relação ao trabalho doméstico e suas conseqüências podem ser heterogêneas.
Contudo, há, sem dúvida, um estigma em torno dessa ocupação que é partilhado por várias
trabalhadoras. Isto pode ser ilustrado com um exemplo, que destaca conseqüências pessoais
desta desvalorização.
8
Ver Bernardino-Costa (2007).
117
Eu não vou mentir, eu fico com vergonha de falar que eu trabalho no serviço
doméstico. Às vezes eu não falo, às vezes alguém pergunta e eu falo que eu trabalho
em outra coisa. As pessoas têm muito preconceito, quando sabem do nosso serviço
tratam a gente diferente. Não sei explicar, só sei que eu me sinto assim. Tem gente
que não se importa, mas tem gente que se importa. Principalmente pra homem, né.
Às vezes você tá interessada em uma pessoa, aí ela pergunta o que você faz, se você
fala que é doméstica às vezes a pessoa fica meio assim, né...Eu acho que os homens
têm vergonha de se relacionar com pessoas que trabalham em casa de família
(MARINA, trabalhadora doméstica, 28 anos, parda).
Em outro exemplo, uma trabalhadora revela já ter sofrido preconceito, embora fora das
relações de serviço doméstico.
Porque você sabe que tem discriminação, por ser empregada, por causa da cor...Já
sofri discriminação, de chegar em um restaurante procurando emprego e dizer que a
vaga já tinha sido preenchida, sendo que eu sabia que não tinha sido. Em casa de
família nunca aconteceu isso. Até que eu tive sorte. Fui discriminada quando eu
tentei arrumar outro tipo de emprego, das pessoas me olharem de cima até em baixo,
essas coisas...As pessoas preferem pessoas loiras para trabalhar nesses lugares
(ROSENILDE, trabalhadora doméstica, 35 anos, parda).
Isto não quer dizer que não haja esse tipo de discriminação no trabalho doméstico. De
fato, nenhuma das entrevistadas disse já ter sofrido discriminação racial no ambiente de
trabalho doméstico, embora relatem, quase todas, que conheciam trabalhadoras domésticas
que já haviam passado por essa situação. Podemos pensar que a ausência de discriminação
racial explícita entre as trabalhadoras domésticas se deve, em parte, à criminalização do
insulto racial, e, em parte, ao fato de que, se a figura da trabalhadora doméstica que povoa o
imaginário social é aquela muito próxima à da “mãe preta”, ou à “mucama”, então a mulher
negra se encaixa dentro daquilo que é esperado dela, ou seja, a execução das tarefas da casa.
Daí a ausência da discriminação explícita, o que não atesta a ausência de preconceito.
Mesmo não havendo discriminação aberta no ambiente de trabalho das entrevistadas, é
muito claro o senso de hierarquia com o qual interpretam o mundo e suas relações de trabalho.
E, nessa hierarquia, têm consciência de que ocupam os lugares mais baixos. Entretanto, apesar
da consciência do lugar que ocupam na relação de trabalho e na relação com seus patrões em
termos de estratificação social, parece sobrar muito poucas alternativas às trabalhadoras
domésticas para tentar subverter esse quadro.
Em todas as áreas, sempre vai ter alguém pra fazer o trabalho mais baixo. Se eu
estou aqui limpando a casa da [patroa] e estou me sentindo bem, para mim é a
mesma coisa de estar limpando o centro administrativo. Você está ali para manter
limpo. Uma pessoa que é estudada não tem tempo de trabalhar e cuidar da casa ao
mesmo tempo. Enquanto tiverem as classes mais altas, vai existir a classe mais
baixa. Em qualquer lugar a limpeza é importante. Não acho que um professor seja
melhor do que eu. Como eu, ele está ali para fazer o trabalho dele e eu estou aqui
fazendo o meu. Se não tivesse ninguém para limpar, como ia ficar uma sala de aula?
(ROSA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda).
118
Diante da consciência da hierarquia presente nas relações, e da impossibilidade de
modificá-las drástica e rapidamente, as trabalhadoras domésticas apóiam sua identidade
profissional na importância do seu trabalho para quem o contrata e dele usufrui. Entretanto, a
hierarquia figura nas representações das trabalhadoras domésticas como uma ordem natural,
sem a qual a vida social seria ininteligível. A relação de trabalho e as relações pessoais delas
são vistas a partir de um olhar que não enxerga possibilidades de mudança.
O que seria do mundo se fosse todo mundo rico, ou todo mundo pobre? Então as
pessoas de baixa renda vão fazer esse tipo de trabalho. Eu penso assim, né. Ficaria
até chato, já pensou? Se todo mundo fosse rico... É, mas seria bom se todo mundo
fosse igual, mas desde o começo do mundo é assim, tem patrão e empregado
(IVANETE, trabalhadora doméstica, 29 anos, preta).
O trabalho doméstico é tido como uma profissão que prescinde de formação
educacional e técnica para ser executado. Desse modo, a escolarização não teria impacto
sobre a execução do trabalho. Entretanto, as trabalhadoras domésticas reconhecem que,
mesmo no serviço doméstico, a formação educacional, e às vezes uma formação técnica,
fazem falta. Uma delas cita um exemplo.
A falta de estudo interfere, se eu dissesse que não, estaria mentido. Não deixa de
interferir. [...] Porque, por exemplo, o que aconteceu: um dia ele [patrão] ligou
precisando de um documento que estava no computador. Aí ele ligou e perguntou
pra mim: “Você sabe mexer no computador?”. Aí eu disse “sei não, na verdade eu
não sei nem como liga”. Não sou de estar freqüentando “lan house”, e essas coisas,
né. Aí eu falei “eu não sei”. Aí, como se diz, interfere né, porque se eu soubesse
mexer, se tivesse um curso de informática, poderia ligar e procurar o que ele queria
naquela hora. Mas, não deixa de interferir, né...Nos demais serviços não, porque eu
sei ler bem. Ela [patroa] sempre deixa um bilhete escrito com o que ela quer que eu
faça para o almoço. Pra escrever, às vezes eu tenho uns erros de português, mas eu
acho que não, para outros serviços não interfere não...(FÁTIMA, trabalhadora
doméstica, 31 anos, parda).
Quando indagadas sobre a importância do trabalho doméstico para a família que o
contrata e para a sociedade como um todo, é unânime entre as trabalhadoras domésticas – e
também entre as patroas, como veremos adiante – a opinião de que este é um trabalho
fundamental para que as condições de vida da família empregadora sejam reproduzidas e para
que as pessoas tenham seus lares organizados de forma que permita tanto o repouso dos que
trabalham quanto a socialização dos que ainda estão em fase de crescimento. Para a própria
trabalhadora doméstica o serviço é importante pelo valor do trabalho em si, porque gera
renda, mantém as pessoas vinculas ao mercado de trabalho e, nos casos das trabalhadoras que
têm carteira assinada, permitem o usufruto de direitos de cidadania vinculados ao trabalho –
ainda que os direitos dessa categoria profissional sejam restritos.
Pra família dela é importante, porque eles precisam da gente. Eles não têm tempo
pra fazer o serviço doméstico, a vida deles é muito corrida. Como vão ficar sem
comer, sem vestir? Pra mim é importante porque eu preciso trabalhar. A gente que é
119
pobre não pode ficar sem trabalhar (JUREMA, trabalhadora doméstica, 42 anos,
parda).
Pra quem precisa trabalhar, eu acho que é importante, porque se a pessoa precisa é
porque não tem como correr para outro lado. Pra quem contrata é melhor ainda.
Principalmente se for uma pessoa boa, de confiança. Eles não podem ficar sem
(MARILDA, trabalhadora doméstica, 44 anos, branca).
Por fim, quando indagadas se gostam do serviço doméstico, como elas se vêem no
trabalho e como as outras pessoas as vêem enquanto trabalhadoras domésticas, as respostas
não encontraram um consenso. Vejamos esses diferentes exemplos.
Pra falar a verdade, eu trabalho porque tem que trabalhar, porque não tem opção,
mas eu não acho bom trabalhar assim de doméstica não. Se eu pudesse escolher, ao
invés de estar trabalhando, eu preferia estar na minha casa, cuidando das minhas
filhas. Mas, quando você encontra pessoas boas, como eles [patrão e patroa], aí não
tem do que reclamar. Mas, eu faço o possível, né. Tem que gostar do trabalho. Tem
dia que você tá estressada. Tem dia que você recebe um elogio, tem que dia que
você recebe uma crítica, e assim vai (FÁTIMA, trabalhadora doméstica, 31 anos,
parda).
Por mais que aqui esteja bom, eu ainda acho um serviço pesado. Mas, se eu gosto do
trabalho? Gosto, e o pior é que eu gosto! Não sei porque... Eu gosto do que eu faço,
gosto de limpar casa, gosto de lavar roupa. Minha casa é arrumadinha, eu chego e já
vou limpando tudo. Eu gosto do que eu faço. Mas, eu penso em ter meu negócio
próprio e não precisar mais trabalhar em casa de família, por causa do preconceito
que eu te falei (ROSENILDE, trabalhadora doméstica, 35 anos, parda).
A maioria pega no meu pé. “Você é jovem, bonita, vai procurar outra coisa, caça um
ramo melhor, larga isso aí”. Às vezes eu penso nisso. Mas o meu objetivo sempre foi
casar, ter filhos, ter minha família e estudar. Porque ou você estuda ou cuida da
família. Eu não dou conta de fazer os dois juntos. Se fosse pra eu estudar e ter um
emprego legal, eu queria. Mas eu penso em fazer um curso mais na frente e sair
desse ramo. Tem muita discriminação contra doméstica, como se não fosse
importante. Tem até piadinha sem graça dentro do ônibus. Até uma simples
secretária, que às vezes ganha menos, olha a empregada de cima para baixo. Eu não
trocaria um emprego de doméstica por um de secretária. De maneira alguma. Desde
que você ganhe seu salário dignamente, goste do que você faz, vai em frente. Eu não
olho uniforme, eu olho o trabalhador, seja no que for. Eu acho legal ser doméstica.
As pessoas falam “larga de cozinhar para os outros, larga de lavar banheiro, e não
sei mais o que”. Mas não é isso que eu quero pra mim nesse momento. Estudar,
pegar um serviço aí e depois ficar me matando, chegar e ainda ter que cuidar de
casa, ficar brigando com o marido, com os filhos, eu não (ROSA, trabalhadora
doméstica, 31 anos, parda).
Como se pode ver nas falas, as avaliações a respeito do serviço doméstico diferem
muito. Se a primeira reafirma o fato de não gostar do que faz, de executar o serviço doméstico
por falta de escolha e pela necessidade de trabalhar, a segunda afirma gostar do que, faz,
apesar da carga pesada que o trabalho impõe. Entretanto, mesmo a que diz gostar do que faz,
tem planos de ingressar em outra atividade, com um negócio próprio, onde não precise
enfrentar o preconceito ligado à sua ocupação de “empregada”. A terceira trabalhadora
expressa também o preconceito por parte das pessoas para com sua ocupação. Apesar de levar
em consideração tais opiniões, assevera que as condições em que executa o serviço doméstico
120
se encaixam perfeitamente com seus planos pessoais com relação à sua família, ainda que haja
preconceito e discriminação. Ressalta a dignidade presente na ocupação e se apóia nela para
reforçar as qualidades dos serviços domésticos diante de outras profissões tidas como menos
degradantes ou mesmo “superiores”.
3.5 Ser patroa
É interessante perceber que as trajetórias de vida de patroas e trabalhadoras domésticas
guardam algumas aproximações. Por outro lado, há também diferenças abissais. Em geral, a
dedicação aos estudos e à carreira profissional marcam a distinção nas trajetórias das patroas
em relação às trajetórias das trabalhadoras domésticas. Mais do que entre as trabalhadoras
domésticas, entre as patroas existe uma heterogeneidade muito grande no que diz respeito às
trajetórias de vida. Por outro lado, observa-se também que quase todas as patroas
entrevistadas semelhantemente nasceram no interior do estado de Goiás, algumas na zona
rural, passando por várias cidades até chegar à capital. Algumas delas tiveram uma infância
muito pobre, com dificuldades materiais inclusive, como é o caso do exemplo abaixo.
Minha história é igual a de muitos brasileiros. Nasci numa família pobre, com muita
dificuldade, no interior, aí fui crescendo e aprendendo me estruturar na vida. Nasci
em Anicuns, vivi em Nazário, Itapuranga, depois vim para Goiânia. Criamos raízes e
fomos vivendo, estudando, todo mundo foi para o caminho certo. Quando eu era
criança, tive uma infância pobre, com muitas necessidades, dificuldades, mas
superamos. Meu pai trabalhava na via ferroviária. Minha mãe era dona-de-casa,
nunca trabalhou fora, sempre cuidou de um monte de meninos (IVETE, patroa, 34
anos, comerciante, parda).
Essa mesma patroa chegou a trabalhar como doméstica ainda na infância.
Já trabalhei de várias coisas, de doméstica, de vendedora, várias coisas. Trabalhei de
doméstica já aqui em Goiânia, era menor de idade ainda. Com 10 anos eu trabalhava
olhando criança para os outros em troca de comida e roupa, ficava morando na casa
das pessoas e olhando as crianças deles. Trabalhei em várias casas, umas melhores,
umas piores. Depois eu fiquei 5 anos trabalhando numa loja. Depois comecei a
vender roupa por contra própria, aí nunca mais trabalhei para os outros, graças a
Deus (IVETE, patroa, 34 anos, comerciante, parda).
A maioria das patroas teve uma infância diferente da que foi relatada acima, com mais
recursos. Duas das patroas entrevistadas eram filhas de professoras, o que facilitou muito o
acesso à educação formal. Desde cedo, cresceram em meio à rotina da mãe, lidando com o
conhecimento escolar. A migração em direção à capital, para a maioria delas, se deu mais
com o objetivo de crescer profissionalmente do que de suprir necessidades materiais. Alguns
problemas familiares constituíram obstáculos para algumas das entrevistadas que, ainda
121
assim, conseguiram construir uma estrutura minimamente estável para criar seus filhos. É
importante destacar que, se várias das trabalhadoras domésticas são filhas de trabalhadoras
domésticas, várias das patroas entrevistadas são filhas de patroas, ou seja, suas famílias
contavam com os serviços domésticos de outra mulher, com a qual aprenderam a conviver
desde cedo. Isto corrobora ainda mais o argumento de que a mobilidade social no Brasil é
baixa, reproduzindo, por meio dos processos de socialização, as posições de classe. As patroas
entrevistadas, com exceção de duas, completaram o ensino superior, o que demarca uma
diferença muito clara em relação à trabalhadoras domésticas, que, em média, possuem a
oitava série do ensino fundamental. Uma delas, professora universitária, teve uma trajetória de
vida que parece ser o extremo oposto das trajetórias narradas pelas trabalhadoras domésticas.
Meus pais eram médicos e militantes políticos. Vieram do Rio de Janeiro para o
interior de Goiás. Tive uma infância em meio “letrado”, habituada com um ambiente
de muito estudo, muita leitura, e por isso acabei seguindo o mesmo caminho, indo
trabalhar na universidade. Eu acho que eu tive uma vida muito fácil, essa é a
verdade. Algumas pessoas podem achar que isso não tem graça, mas eu sou feliz. Eu
fui criada dentro das expectativas da escola tradicional, então eu estou dentro dessas
expectativas, por causa da exposição à leitura. Eu sempre tive uma fonte de renda na
universidade. Quando eu entrei, eu fui convidada para a iniciação científica, depois
entrei no mestrado com bolsa, depois fiz o doutorado com bolsa, no percurso
“padrão”. Então a universidade foi sempre uma fonte de renda pra mim (CLAUDIA,
patroa, 35 anos, professora universitária, branca).
De modo geral, as trajetórias das patroas revelam um caminho de distanciamento
progressivo das necessidades materiais, o que, para Bourdieu (2008) é a primeira e mais
expressiva marca de distinção em relação às classes mais baixas. O conforto de possuir uma
ocupação reconhecida, receber um salário razoável e dispor de um mínimo de recursos
simbólicos, ou capital cultural, como diria o referido autor, demonstram a posição que estas
mulheres ocupam na sociedade e demarcam diferenças profundas de classe entre elas e as
trabalhadoras domésticas.
Os dados da pesquisa mostraram que o “tornar-se patroa” está quase sempre ligado à
necessidade de conciliação da atuação profissional com a experiência da maternidade. Quase
todas as entrevistadas afirmaram que contrataram pela primeira vez uma trabalhadora
doméstica quando se viram na necessidade de conduzir a vida profissional e cuidar dos filhos
simultaneamente. Os exemplos são numerosos.
Eu senti necessidade de contratar alguém para o serviço doméstico quando eu
comecei a trabalhar, eu tinha filhos pequenos, e saía muito, ficava muito fora, aí eu
precisei de alguém. De lá pra cá eu sempre tive ajudante. Precisei contratar não tanto
pelos filhos, mas mais pelo trabalho e pelo tamanho da casa. Antes eu até tinha
necessidade, mas passava bem sem. Quando veio esse trabalho, junto com os filhos,
aí eu precisei (DANIELA, patroa, 47 anos, artista plástica, braca).
122
Eu tive a primeira empregada, um pouco antes da minha primeira filha nascer,
porque eu tive risco de parto prematuro. Antes disso, a gente teve eventuais faxinas.
Em outra época, anterior, a gente pagava uma lavadeira, dependendo da época e do
dinheiro que a gente tinha. Mas quando eu fiquei grávida, aí eu tive uma pessoa
mais regular, duas vezes por semana. Mas logo que o neném nasceu, eu mudei para
Goiânia de novo e precisei de uma pessoa que trabalhasse todo dia. Então, a
maternidade foi determinante. Era um limitador. Mas a contratação dessa pessoa
decorreu também dos problemas da minha relação. Porque se eu tivesse confiança
nele [o companheiro] e se ele dividisse as tarefas comigo, eu acho que a gente
conseguiria fazer as tarefas da casa. Mas como não era assim, eu tive que arrumar
uma pessoa, porque senão eu ia ficar sozinha com a criança e com a casa e ia acabar
perdendo o meu doutorado, e isso não estava nos meus planos. E se eu não fizesse
isso, eu ia colocar a própria relação em risco, porque a gente ia brigar muito
(CLAUDIA, patroa, 35 anos, professora universitária, branca).
A primeira pessoa que trabalhou na minha casa foi quando meu segundo filho
nasceu. Eu fazia faculdade ainda, e eu vi que eu não ia dar conta da casa, dos dois
filhos e do marido sozinha. Daí pra frente, eu sempre tive uma pessoa que cuidava
da casa, às vezes até duas, às vezes vinha uma passadeira (JÚLIA, patroa, 45 anos,
Administradora, branca).
Quando eu tive o meu primeiro filho, eu senti a necessidade de ter alguém pra me
ajudar. Quando eu era solteira e morava sozinha, não me lembro de ter sentido que
precisava de alguém. Eu desenvolvia tudo sozinha no meu apartamento. Claro que
às vezes tomava refeições na casa da minha mãe. Quando eu mudei, casei e tive
filhos, eu tive uma babá para cuidar inicialmente do meu filho. À medida que ele foi
crescendo, no meu caso, ela foi assumindo outras atividades. Claro que é um caso
muito particular. Ela ficou comigo mais de dez anos. Aí ela começou a cuidar da
casa. Então, foi a partir do nascimento do primeiro filho que eu tive a necessidade de
contratar alguém para me ajudar (BEATRIZ, patroa, 54 anos, fotógrafa, branca).
Desde que me casei eu sempre precisei de alguém. Quando eu casei, eu fui morar em
um apartamento pequeno. Logo em seguida, eu fui para uma casa e essa casa era
grande e eu estava grávida, então já veio daí a necessidade de contratar alguém e de
lá para cá não teve jeito de ficar sem mais. Não, antes não. Porque em casa nós
éramos três mulheres e um homem e a gente dividia as tarefas e a gente mesmo fazia
(MARGARET, patroa, 55 anos, comerciante, branca).
Parece claro, então, o fato de que a contratação da trabalhadora doméstica decorre da
sobrecarga sobre a patroa resultante do acúmulo de tarefas domésticas e profissionais. O
estabelecimento desse contrato tem relação direta com a divisão sexual do trabalho produtivo
e do trabalho doméstico, como fica explícito no segundo depoimento citado. De acordo com
as representações sociais dominantes, aos homens geralmente cabe o trabalho provedor do
sustento da família, fora do lar, e às mulheres o trabalho de reprodução das condições
necessárias para a vida da família no ambiente doméstico. A necessidade de contratar uma
trabalhadora doméstica deriva do fato de que, quando se têm filhos, é atribuído às mulheres o
papel de conciliar o cuidado com eles e a manutenção dos cuidados com a casa,
responsabilidade que já era total ou majoritariamente atribuída à ela. Isto inclui a limpeza das
dependências, das roupas e o preparo dos alimentos. Diante da sobrecarga, as mulheres que
123
possuem condições financeiras para tal delegam às trabalhadoras domésticas a
responsabilidade “da mulher”, o que permite que dêem continuidade em suas vidas
profissionais. A atuação da trabalhadora doméstica promove a “liberação” – pelo menos
relativa – das mulheres que as contratam. Mas é preciso enfatizar que esse privilégio é restrito
apenas àquelas mulheres que ocupam uma posição nas classes médias e altas de nossa
sociedade, caracterizadas pela distância relativa da pobreza. Essas classes incluem posições de
comando nas relações de trabalho, e o desempenho desse papel muda de acordo com o
contexto.
Ser patroa...Eu tenho dificuldade em dar ordem. Acho que porque eu já fui muito
mandada, eu não gosto nem de ser mandada nem de ficar mandado as pessoas fazer
as coisas. Então ela vai fazendo do jeito que dá. Isso em casa né, porque no
escritório eu trabalho com homens, então eu tenho que ter pulso firme (IVETE,
patroa, 34 anos, comerciante, parda).
Neste caso em especial, destaca-se a diferença de gênero nas relações de trabalho. Esta
última patroa citada revelou ser mais fácil se relacionar com mulheres do que com homens em
ambientes de trabalho. Isto porque, segundo elas, os homens têm resistência a ser comandados
por mulheres. Tal situação, de fato, contraria as representações hegemônicas das relações de
gênero, segundo as quais os homens sempre estão em uma posição superior de poder em
relação às mulheres. Quando são obrigados a sustentar uma posição diversa, parecem ter o
sentido de sua masculinidade ameaçado. Daí a entrevistada afirmar que exerce um papel
duplo de patroa: uma flexível e negociadora, na relação com a trabalhadora doméstica, e outra
“linha dura” na relação com homens em ambiente empresarial e administrativo.
Quando indagadas sobre como é ser patroa, as entrevistadas revelam que não é fácil
exercer a função de “dar ordens”. Identificam parte dessa dificuldade principalmente na falta
de correspondência por parte das trabalhadoras domésticas às ordens dadas, descompasso
simbolizado, na visão das patroas, pela falta de cooperação, compromisso, e “boa vontade”.
Ser patroa é difícil, mandar, a pessoa saber o que a gente quer. É difícil mas não é
impossível. Sempre sabendo que a gente não pode exigir aquilo que a gente não
daria conta de fazer, entender o outro lado. Mas é difícil porque nem sempre o outro
lado tem consciência. Então a gente tem que estar puxando, cobrando (DANIELA,
patroa, 47 anos, artista plástica, braca).
Nossa! Desempenhar esse papel de patroa é horrível, porque se fosse aquela pessoa
que você fala “é isso, isso e isso”, e todos os dias ela vai fazer aquilo, seria ótimo,
mas com não funciona desse jeito, você pode fazer um manual, um livrinho para ela,
que ela não vai olhar para ele; ela ouve o que ela quer. Então ser patroa no meu
entender não é muito bom, porque você vai cobrar as coisas, mas seria bom se ela
fizesse o que você pede. Tem algumas que não gosta que você fica falando, então
elas fazem o que você pede, mas a minha secretaria não é assim, ela é bem atípica
(JUDITH, patroa, 45 anos, odontóloga, amarela).
124
Em outros casos, as dificuldades em ser patroa derivam do engajamento pessoal e
emocional na relação com a trabalhadora doméstica, que termina por confundir relação
profissional e amizade.
Eu tenho um pouco de dificuldade de ser patroa, porque às vezes eu acabo entrando
muito na vida da pessoa. Eu prefiro ser mais amiga do que exigente. Agora, ser
patroa não é fácil. Mas eu não sou muito rígida não, e às vezes eu me prejudico com
isso. Eu não exploro, mas também não gosto de ser explorada. Eu tenho um bom
relcionamento, às vezes até demais, porque a pessoa acaba virando um membro da
família. Às vezes a amizade atrapalha. Eu sou muito mão-aberta (MARGARET,
patroa, 55 anos, comerciante, branca).
Quanto ao ato de “nomear”, se para a maioria das trabalhadoras domésticas o termo
“empregada” soa pejorativo, a maioria das patroas também considera que o sentido da palavra
é negativo, degradante, e procura mudar a forma de designar a trabalhadora doméstica no diaa-dia.
Quando eu to no trabalho, por exemplo, eu falo “a minha empregada”, ou “a minha
doméstica”. Eu evito falar “empregada”. Há um tempo atrás eu falava mais
“empregada”. Hoje eu tento me corrigir. Porque é um trabalho doméstico. Então, eu
estou procurando me corrigir na hora que eu falo. Mas “o empregador doméstico” e
“o trabalhador doméstico”, eu acho mais simpático (BEATRIZ, patroa, 54 anos,
fotógrafa, branca).
Entretanto, o termo retorna em diversas ocasiões, quando as conversas se tornam mais
informais. Na verdade, o termo marca um lugar subalterno para a trabalhadora doméstica,
tanto nas relações profissionais quanto pessoais. Para uma das patroas, se o termo é
empregado pela lei para distinguir uma forma de trabalho de outra, não há muito sentido em
substituí-lo.
Nesse ponto, eu sou muito legalista. O sindicato chama de “empregada”, então eu
chamo de empregada. Não é secretária, porque se fosse elas fariam outras coisas, e
teriam horários diferentes. Mas elas nunca reclamaram. Ah não, tinha uma que
queria ser chamada de babá. Não sei porque, babá parece que tem mais status. Mas
ela olhava a criança apenas como mais um serviço da casa, não era a principal tarefa.
Porque eu vejo que são trabalhos diferentes, o da babá e o da empregada
(CLAUDIA, patroa, 35 anos, professora universitária, branca).
Quando indagadas sobre a importância do trabalho doméstico para a sua família e para
a sociedade como um todo, é unânime entre as patroas a consideração de que esse trabalho é
fundamental e sem ele seria impossível manter uma vida profissional. Além da
funcionalidade, as patroas ressaltam o conforto que o serviço doméstico traz para a família
que contrata, tirando dela, principalmente da mulher, o fardo pesado da execução de tarefas
rotineiras, cansativas e entediantes, como a limpeza e o preparo de alimentos.
Esse trabalho é muito importante. É muito digno. É importante para gerar renda para
quem não tem. É importante pra quem contrata, porque você pode desenvolver
outras atividades, fazer outras coisas, como eu. Se eu não tivesse uma pessoa
trabalhando, a vida ia ser muito corrida. Já está corrida agora, mas se não tivesse
estaria mais complicado. É necessário (IVETE, patroa, 34 anos, comerciante, parda).
125
Esse trabalho é importante pra minha família porque traz um conforto,
principalmente pros meus filhos e pra mim. Pra sociedade é importante porque
permite que as mulheres arrumem emprego, trabalhem fora, desenvolvem outras
atividades. Eu não conseguiria viver sem esse trabalho, porque eu sou muito
perfeccionista, gosto muito de ver tudo arrumado. Sozinha, eu ficaria esgotada, não
daria conta de tudo (BEATRIZ, 54 anos, fotógrafa, branca).
Uma das patroas demonstra uma preocupação, não explicitada pelas outras, acerca da
transformação da divisão do trabalho doméstico. Ao mesmo tempo em que ressalta a
importância das tarefas desenvolvidas pela doméstica, revela o desejo de um dia poder contar
com uma distribuição do trabalho doméstico entre os membros da família que permita
dispensar os serviços da trabalhadora doméstica.
É um trabalho fundamental. Mas eu espero um dia não precisar mais. Meu sonho é
ver minhas filhas crescerem e a gente poder fazer as coisas sem precisar da
empregada. Porque se esse serviço é bem distribuído entre as pessoas da casa, ele
funciona bem. Mas tem que ser bem distribuído. Uma pessoa uma vez me disse que
empregada doméstica no Brasil é resquício de escravidão. Eu falei “pode até
funcionar como tal, agora, vai você fazer o serviço”. E era uma pessoa que inclusive
morava sozinha. Aí é muito fácil, ela mora sozinha, ela mesma arruma. Agora, vai
morar com três crianças e um marido, aí eu quero ver. Então eu acho que se esse
serviço fosse bem distribuído, não precisaria da empregada. Mas é um serviço muito
importante, ele precisa ser mantido, sem ele eu não consigo viver. Eu não consigo
viver sem esse trabalho. Eu não consigo viver no caos, mas também não consigo
lavar roupa todo dia. Eu acho que é um serviço fundamental. Ou então você distribui
o serviço por igual entre os membros da casa, o que é muito difícil (CLAUDIA,
patroa 35 nos, professora universitária, branca).
Algumas opiniões feministas ressaltam, desde o início dos movimentos de luta pela
“liberação” das mulheres, que um dos principais obstáculos para se alcançar a igualdade entre
homens e mulheres seria a transformação da divisão do trabalho doméstico (SARTI, 2004). A
partir desse argumento, surgiram outros defendendo que essa divisão poderia até mesmo
extinguir o serviço doméstico remunerado, o que empiricamente parece pouco provável.
Contudo, essa é uma preocupação compartilhada por poucas patroas e, ainda assim, figura não
como uma ação concreta, mas mais como um desejo projetado para o futuro. E o serviço
doméstico, pela importância que lhe é atribuído, não dá nenhum indício de que será extinto,
mas, pelo contrário, torna-se uma ocupação cada vez mais estável na estrutura ocupacional
brasileira. Paradoxalmente, tem a sua importância reconhecida, mas o seu valor e prestígio
continuam muito baixos.
Pois é, muita gente não dá valor na empregada doméstica. Eu dou valor porque eu
preciso. É um trabalho super cansativo, todos os dias você ter que fazer a mesma
coisa. Tanto que eu vejo que em outros países as pessoas não têm esse privilégio. A
gente ainda tem porque sai em conta, não é tão caro assim. Mas eu vejo que em
outros países e até mesmo nas grandes cidades as pessoas não têm condição. Aqui
no Brasil é difícil porque tem que ser uma pessoa de confiança, que não está
achando, é difícil você encontrar uma pessoa. Por outro lado, é complicado porque
tira muito a sua intimidade na casa, então eu acho que são dois motivos que pesam
bastante. E o terceiro, eu acho que a pessoa não contrataria pelo salário. Então
assim, aqui no condomínio é super valorizado, babá, porque as pessoas são
126
profissionais liberais, precisam trabalhar e tem que deixar as crianças. A maioria tem
uma cozinheira, uma passadeira, uma arrumadeira e acaba tendo um monte de
empregada. No inicio eu estava assim, mas depois eu fui percebendo que ter muita
gente em casa tira muito a sua liberdade, claro que isso também pesa
financeiramente. Aqui se ela fizesse um trabalho bem feito ela merecia ganhar muito
bem, mas como ela faz do jeito dela, eu pago do jeito dela também (JUDITH,
patroa, 45 anos, odontóloga, amarela).
O trabalho doméstico devia ser até mais valorizado pela sociedade, porque é uma
pessoa que está ali, ela faz tudo, ela é muito importante. Eu não me vejo sem esse
trabalho. Pra começar, eu não gosto de fazer comida. Eu faço, mas eu não gosto. Eu
não me vejo fazendo comida todo dia. Elas deviam ser mais valorizadas, porque às
vezes elas trabalham em uma casa com cinco pessoas, as cinco ganhando mais do
que ela. Então é difícil, você encontrar uma pessoa boa, com uma carinha boa, que
faz uma comida boa... tem que ser valorizada. Mas a sociedade brasileira não está
preparada pra viver sem elas (MARGARET, patroa, 55 anos, comerciante, branca.)
Considerando esses dois depoimentos, percebe-se que continua vigorando entre as
patroas a consideração das trabalhadoras domésticas como “um mal necessário”, e o
reconhecimento da importância de sua atividade não é convertido em melhores salários,
prestígio profissional e tratamento igualitário. No entanto, isso não quer dizer que não existam
efetivamente solidariedades entre patroas e trabalhadoras domésticas. O estabelecimento de
uma relação igualitária depende muito do contexto no qual a relação se desenrola, da
confiança que se desenvolve, do respeito mútuo que se adquire. A fala seguinte é de uma
patroa, que parece ver a igualdade no correto reconhecimento e valorização da trabalhadora
doméstica.
Eu gostaria de dizer às pessoas que conscientizassem de que precisam respeitar
quem trabalha dentro da casa da gente. Dentro do seu comércio é uma coisa, mas
dentro da sua casa é outra. É uma pessoa que tem que ser tão valorizada quanto um
professor. Você saboreia o que ela faz com carinho. Então eu dou muito valor.
Infelizmente eu hoje não posso pagar mais, mas eu tento fazer alguma coisa por
fora. O sonho dela era fazer um curso de cabeleireira, eu to ajudando pagar. Então as
pessoas tem que valorizar muito porque nós precisamos delas. De qualquer forma,
ela saiu da casa dela, deixou a casa dela, os filhos e o marido dela, chega na sua casa
debaixo de chuva, de ônibus. Pra mim ela é mais que uma doméstica, é uma irmã
que eu tenho (MARGARET, patroa, 55 anos, comerciante, branca).
Essa fala, apesar de demonstrar engajamento no que diz respeito à tentativa de
reconhecimento do outro, ainda traz desconfianças sobre se a afetividade demonstrada pela
patroa em relação à trabalhadora doméstica se traduz em direitos trabalhistas, em cidadania,
em igualdade de fato. No caso específico dessa entrevistada, trata-se de uma relação de
trabalho formal, cabendo todos os direitos previstos pela lei para a trabalhadora doméstica. Se
tais considerações aproximam as mulheres umas das outras, de outro lado há o abismo de
classe e a própria situação profissional entre “superior” e “inferior” que interferem na relação,
tornando mulheres aparentemente parecidas em sujeitos sociais desiguais. A fala citada acima
também confirmou um achado de Nunes (1997), de que torna-se difícil estabelecer uma
127
identidade profissional e uma consciência política porque as trabalhadoras domésticas estão
sempre buscando mudar de atividade, de profissão. Isto impede a consciência política em
torno identidade profissional. Além disso, o sindicato da categoria, com a baixa participação,
não consegue se fortalecer o bastante para atuar e conseguir congregar reivindicações
importantes.
3.6 A dinâmica da relação
De maneira geral, patroas e trabalhadoras domésticas afirmam estabelecer boas
relações em torno do serviço doméstico. Poucas se queixaram de desentendimentos e
conflitos. Igualmente boas, segundo elas, são as relações das domésticas com os demais
membros da família. De acordo com o esperado, em todos os casos é a patroa quem tem
contato direto com a doméstica, é ela quem passa as ordens e estipula o planejamento das
atividades. A concentração dessa relação em torno das mulheres se deve à representação que
atribui à mulher a responsabilidade pelas tarefas da casa. Mesmo as que podem delegar o
trabalho para outras permanecem com a responsabilidade de planejá-lo, fiscalizá-lo e, se
preciso, executá-lo em parte. Como afirmou Kofes (2001), enquanto a trabalhadora doméstica
precisa saber fazer o trabalho doméstico para executá-lo, a patroa precisa saber fazer para
“mandar”. A boa relação é enfatizada abaixo, primeiro pela patroa, depois pela trabalhadora
doméstica que convivem juntas na mesma residência.
A nossa relação sempre foi boa. Nunca tive nenhum desentendimento com ela. Ela é
confiável, nunca mexeu em nada. A relação com ela é até de amizade, conheço a
família dela... A relação dela com as outras pessoas da família é boa, todo mundo se
dá bem com ela (DANIELA, patroa, 47 anos, artista plástica, branca).
Nossa relação é muito boa, nunca tive nenhum conflito. Eu já sei do que ela gosta,
do que eles gostam de comer. Já sei também que ela não gosta que eu venha
trabalhar com calça de malha, então eu nunca mais vim. Acho que já existe uma
confiança da parte dela. Eu acho isso muito importante, mais importante do que um
salário altíssimo. Eu gosto quando as pessoas confiam em mim. Eu sempre fui muito
correta, é de família né. Fui criada no interior, num sistema totalmente diferente do
da cidade. Minha mãe sempre ensinou o que era certo (ROSENILDE, trabalhadora
doméstica, 35 anos, parda).
Ambas concordam que há uma relação de amizade, para além das relações de trabalho,
no ambiente doméstico. Essa amizade é possibilitada pelo fato de o serviço doméstico ser
executado no âmbito privado do lar, em contato direto com a família empregadora,
implicando uma dimensão afetiva maior do que a quer existe em outras relações de trabalho.
128
Houve apenas uma exceção, uma patroa que afirmou que a relação envolve muito respeito e
consideração, mas trata-se de trabalho e a amizade não é a palavra certa para designar o
sentimento manifestado por ela.
Ainda que a amizade não esteja presente em todos os casos, as patroas demonstram
confiar nas trabalhadoras domésticas atualmente em serviço. A confiança é, sem dúvida,
fundamental nessa relação de trabalho, já que ela se dá no interior do lar, lugar de
manifestação da intimidade. Ter uma pessoa “estranha” circulando por todos os cômodos da
casa, limpando e organizando móveis e objetos, tende a gerar certa insegurança. Entretanto, é
a confiança que permite manter uma relação duradoura. Algumas patroas revelam que, na
verdade, confiam desconfiando, pois já foram lesadas em seu patrimônio por trabalhadoras
domésticas anteriores. Mesmo quando não puderam provar a culpa da doméstica, o
desaparecimento de qualquer objeto foi quase sempre vinculado à figura da trabalhadora
doméstica, alguém de “fora-dentro”, uma ladra em potencial, principalmente se a relação de
trabalho estiver nos primeiros dias ou se ela estiver cumprindo aviso prévio.
Eu tive um problema uma vez, com uma menina que veio do interior e por indicação
ela veio trabalhar aqui. Aí eu vi que começou sumir dinheiro e percebi que era ela,
mas não podia provar. Mas aí eu só mandei ela embora, paguei ela direitinho e dei
umas indiretas pra ela ver que eu tinha percebido o que ela estava fazendo. Ela não
tinha carteira assinada. Quase todas não querem ter carteira assinada como
empregada doméstica. Mas foi só essa vez, de resto não tive problemas. Eu demorei
um pouco pra pegar confiança, depois disso que aconteceu. Mas eu continuo sendo
meio ingênua (MARGARET, patroa, 55 anos, comerciante, branca).
Já fui roubada. Foram coisas pequenas, mas já aconteceu. Eu vi que tinha sido
roubada, mas ela já tinha sido dispensada, aí ela levou no último dia. Eu vi que ela
saiu levando uma sacola, mas ela nunca tinha trazido nada pra cá e nesse dia ela não
tinha chegado com sacola. Aí eu perguntei se eu podia ver a sacola. Aí eu vi, ela
estava levando algumas coisinhas pequenas. Tinha comida, bolacha, eu fiquei até
com dó. Mas tinha shampoo, outras coisas, aí eu fiquei com raiva. Mas já levaram
calça jeans, outras roupas. Agora eu não aviso mais quando eu vou dispensar.
Porque ela estava de aviso, por isso que ela levou, aí eu não tinha prova, aí ficou por
isso mesmo. Agora eu dispenso no dia já. Isso já aconteceu várias vezes. Antes,
quando eu ia contratar alguém, eu colocava a que ia sair para treinar a que estava
chegado. Mas isso não era bom, porque ela falava mal de mim e fazia a cabeça da
que estava entrando, aí ela já chegava com raiva de mim (DANIELA, patroa, 47
anos, artista plástica, branca).
Já levaram muita coisa de casa, mas eu nunca fui parar na delegacia. Eu acho muito
desgastante. Inclusive no ano passado, a [trabalhadora doméstica] estava trabalhando
comigo no consultório, e eu arrumei uma senhora casada e com filhos. Aí minha
menina vestiu uma calça de manhã e à tarde não achávamos a calça. Aí reviramos a
casa e não achamos a calça, mas como que era possível que de manhã ela estava
usando a calça e a tarde não. Quando foi na segunda-feira a calça apareceu. Eu
dispensei, mas nem toquei no assunto da calça, porque é muito desgastante esse tipo
de coisa. Já aconteceram muitos casos em que as meninas pegavam minha roupa,
usavam e nem lavavam (JUDITH, patroa, 45 anos, odontóloga, amarela).
129
A trabalhadora é, portanto, alvo de desconfiança, ainda que prove cotidianamente ter
um bom caráter. É quase sempre a primeira suspeita. Além de ser uma pessoa “estranha”
dentro de um ambiente particular, as representações da trabalhadora doméstica como pobre e
negra, vinculadas à história da marginalização do povo negro e da vinculação imaginária que
vincula pobreza, violência e criminalidade, reforçam os estereótipos e colocam a doméstica
no primeiro lugar da fila de suspeitos. A permanência dessa desconfiança torna a doméstica
vulnerável à acusações injustas, à violência e à discriminação. Apesar disso, mesmo quando
se prova que a doméstica é a culpada pelo furto, dificilmente a questão é levada à justiça. Às
vezes por medo de represália, às vezes por falta de provas concretas, às vezes pelo próprio
caráter informal da relação e pele presença de “amizade”.
Quando solicitadas a comentar sobre suas diferenças e semelhanças, tanto patroas
quanto trabalhadoras domésticas acionaram detalhes que remetem às categorias “mulher”,
“mãe” e “dona-de-casa”. Ou seja, recorreram às características sociais que fazem das
mulheres “mulheres”, aquelas reconhecidamente femininas em torno das quais já se tentou
construir uma identidade universal vinculada a determinados tipos de comportamento e
capacidades específicas. As semelhanças apontadas, assim como as diferenças, se concentram
em torno da relação com a família, com os filhos, com a organização da casa. Eventualmente,
abrangem considerações sobre diferenças de classe social, englobando renda e ocupação. Uma
das patroas avaliou desta maneira as diferenças e semelhanças com a doméstica que trabalha
na sua residência:
De semelhante? Ela é muito organizada, como eu, mas ao mesmo tempo não é
neurótica. Acho que a gente é muito parecida na organização da casa. Ela é uma
pessoa programada com o tempo, como eu. Ela, como eu, já está no terceiro
casamento, tem duas filhas do primeiro e uma do segundo. É uma pessoa que vai
atrás das coisas dela. Ela sabe dividir as coisas, nisso ela é muito parecida comigo.
Agora, as diferenças. Ela está muito mais vulnerável, desprotegida do que eu. Para
essas mulheres, o marido é uma coisa muito importante. Não é só uma questão de
afetividade. O casamento dela era tradicional, até o momento que ele tentou agredir
ela. Ela criou uma dependência, então ficou mais vulnerável. É uma mulher pobre,
estudou pouco. Então a situação dela é sempre meio incerta, até porque ela não é
daqui, não tem uma rede social na qual ela possa se apoiar (CLAUDIA, patroa, 35
anos, professora universitária, branca).
A trabalhadora doméstica contratada por esta patroa, por sua vez, avalia:
Eu acho que a gente é muito parecida. Nas coisas da casa. A gente é um pouco
diferente, assim, ela tem mais educação do que eu, mais dinheiro, a gente pensa
diferente em relação a algumas coisas de família e tal. Mas nas coisas da casa a
gente é parecida (MARINA, trabalhadora doméstica, 44 anos, branca).
A partir desses comentários, torna-se muito claro a importância de se analisar as
diferenças intragênero. Outro exemplo é ainda mais expressivo.
130
Bom, a gente se parece muito, eu sou humilde, ela também; eu sou trabalhadora, ela
também; eu sou esposa, sou mulher, e sou mãe, e ela também; eu sou pobre, ela
também. A única diferença é que ela é a empregada e eu sou a patroa (JÚLIA,
patroa, 45 anos, administradora, branca).
Mesmo onde parece haver mais semelhanças do que diferenças, as diferenças podem
ter um peso fundamental na construção das identidades, na consideração do que se é em
relação ao outro, e na consideração do outro em relação a si mesmo. A construção cotidiana
de identidades a partir dessas semelhanças e diferenças se dá de forma a conservar a tendência
de manutenção das posições sociais que estruturam condições desiguais para patroas e
trabalhadoras domésticas. Na fala da patroa, citada acima, se todas as características
semelhantes levam a imaginar uma identidade uniforme, criada em torno do papel da mulher
na sociedade, e se tal identidade teria o potencial de criar um espaço de igualdade e
solidariedade entre elas, a consideração de que uma é a patroa e a outra a “empregada” coloca
essa possibilidade de igualdade por terra, marcando posições diferentes na relação de trabalho
que extrapolam seus limites para afirmar desigualdades intragênero.
Quando indagadas sobre o que faz do trabalho doméstico um trabalho feminino, as
respostas de trabalhadoras domésticas e patroas revelaram quatro interpretações sobre os
determinantes da constituição das relações desiguais entre homens e mulheres, ligadas ao
trabalho doméstico, todas elas interligadas.
A primeira interpretação presente nas falas defende que o trabalho doméstico é
culturalmente vinculado à mulher, por meio da reprodução dos costumes. Desse ponto de
vista, é a cultura, por meio dos costumes, que conduz, como uma mão invisível, as mulheres
para o trabalho “reprodutivo” e os homens para o trabalho “produtivo”. Dessa forma, se
perpetua a divisão sexual do trabalho, segundo uma das patroas entrevistadas:
Enfim, eu acho que isso é cultural, vem de muito tempo atrás. A mãe é a dona-decasa, é a doméstica. Eu estou tentando ver na minha família lá atrás. Geralmente, nas
fazendas, o homem mais novo que se encarrega de lavar o jardim, pegar fruta no
pomar, recolher o lixo, mas não cozinha, lava, passa. Realmente eu acho que é uma
tarefa culturalmente feminina. Então ela estende esse trabalho que ela é
naturalmente capaz de fazer para outra (BEATRIZ, patroa, 54 anos, forotro).
Essa primeira interpretação seria reforçado pela segunda, que confere ao sexismo, ao
“machismo”, a força da separação entre atividades femininas e masculinas. De acordo com
esse ponto de vista, o machismo forçaria o status da mulher a se acomodar ao doméstico, à
domesticidade, ao privado, ao feminino. Isto pode ser exemplificado na opinião dessa patroa
e, em seguida, da trabalhadora doméstica:
A mulher sempre tomou conta de casa e o homem saiu para trabalhar. Aí nisso todo
mundo acomodou, e as mulheres foram mais para o serviço doméstico. Mas é lógico
que poderia ser diferente. Por que homem não pode fazer o serviço doméstico? O
131
homem tem que deixar de ser machista e começar fazer o serviço da mulher
também. A igualdade entre homens e mulheres piorou muito para o lado das
mulheres também, porque os homens hoje se acomodaram em todos os sentidos: não
faz o serviço doméstico e também não cumpre com sua obrigação financeira
(IVETE, patroa, 34 anos, comerciante, parda).
Eu acho que os homens tem muito preconceito contra esse serviço. Eu acho que eles
pensam que se fizer alguma coisa em casa deixa de ser homem. Mexe com a
masculinidade deles. Ainda mais se alguém de fora vê. Aí eles acham que eles vão
deixar de ser homens. Mas eu acho isso um absurdo. Por que a mulher às vezes faz
serviço de homem? Por que o homem não pode ajudar dentro de casa? Eu acho que
é normal, ele não vai deixar de ser homem não (MARINA, trabalhadora doméstica,
44 anos, parda).
A terceira forma de interpretação consideraria que a raiz da atribuição do trabalho
doméstico às mulheres estaria na socialização, na forma como os pais ensinam os filhos a
executar tais ou quais tarefas na infância, de acordo com o sexo. Como afirma essa
trabalhadora doméstica:
Eu acho que isso aí é uma coisa de berço, sei lá. Os filhos em casa já crescem com
aquilo. Se você tem uma filha mulher, o homem já não faz nada. Tem mãe que
coloca o filho pra fazer. Eu lembro que meu irmão mais velho arrumava a casa,
lavava vasilha, ajudava. Mas na maioria das vezes você vê um filho homem dentro
de casa que não faz nada, não pode lavar uma vasilha que todo mundo já fala “isso
não é serviço de homem, é serviço de mulher”. Desde que eu me entendo por gente,
o serviço de casa é da mulher e o serviço pesado é do homem. Aí desde pequeno é
só a mulher que faz, aí a gente acha que o homem não dá conta, sei lá. Se fosse
diferente ia ser melhor (FÁTIMA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda).
A quarta interpretação leva as três primeiras ao extremo ao considerar que o serviço
doméstico é naturalmente um serviço de mulher, e que é inconcebível que um homem o
execute com a mesma habilidade. Essa forma de ver a divisão sexual do trabalho, presente na
fala dessa trabalhadora doméstica e dessa patroa, sustenta um argumento biológico,
naturalizante, o qual o feminismo vem combatendo há décadas:
O trabalho doméstico é feito pelas mulheres porque o homem não tem muita
vocação pra essas coisas, pra casa, pra cuidar de detalhes. Mulher já nasce pra ser
dona-de-casa, esposa, mãe. Já o homem não, é o provedor, sai pra rua, então esse
papel não combina com ele, não é natural. O homem pode até ser um bom
profissional na cozinha, mas não é muito a dele. Essa coisa de cuidar de várias
tarefas ao mesmo tempo, limpar a casa, fazer comida, cuidar de criança, é mais da
mulher mesmo. Então, é uma coisa natural da mulher (MARILDA, trabalhadora
doméstica, 44 anos, branca).
Eu acho que serviço de doméstica é coisa de mulher mesmo. Eu acho isso. Não, eu
tenho certeza. Não tem como, é coisa de mulher. Não dá pra imaginar um homem
fazendo isso bem. Por mais que exista homem esforçado, acho que ele nunca vai dar
conta de fazer igual a mulher. A gente que é mulher, faz duas ou três quatro coisas
ao mesmo tempo: põe a panela no fogo, vai ali tirar roupa do arame, limpa alguma
coisa ali, e o homem não consegue de jeito nenhum. Por isso que eu falo, que esse
serviço é da mulher mesmo. O homem pode até ajudar, mas não tem jogo de cintura.
É um trabalho feminino mesmo (ROSENILDE, trabalhadora doméstica, 35 anos,
parda).
132
É importante notar que, se considerarmos as opiniões de trabalhadoras e patroas sobre
esse assunto, veremos que, quanto maior o capital econômico e cultural, maior a capacidade
de perceber as relações de gênero como contingentes. Inversamente, quanto menor o capital
econômico e cultural, mais naturalizadas essas relações parecem. Isto sugere que as diferenças
de classe têm um impacto na percepção da realidade e no conhecimento acumulado das
pessoas, direcionando seus posicionamentos.
Se nos ativéssemos apenas à essas falas e considerássemos que ela dá conta da
realidade como um todo, poderíamos supor que o trabalho doméstico seria a mais expressiva
marca do lugar da mulher na divisão sexual do trabalho e na sociedade como um todo, e que
essa divisão as colocaria em uma mesma posição à mesma distância dos homens. Todavia, as
diferenças de classe e raciais se intersectam com as diferenças de gênero. Resulta daí uma
complexidade de posições e papéis sociais que tem impacto sobre a identidade e a
subjetividade dos sujeitos, criando diferenças internas ao próprio gênero. Dessa forma, classe
e raça determinam diferenças intragênero. Tais diferenças não são estáticas, muito menos
universais, mas dependem de um contexto histórico-social. O serviço doméstico remunerado
é, ao mesmo tempo, uma ocupação e uma relação de trabalho que comporta no seu interior
diferenças de classe, raça e gênero entre as mulheres que nele se envolvem, como
trabalhadoras domésticas e patroas. Os diversos percursos da socialização pelos quais ambas
atoras passam ao longo de suas vidas, que se insere em um contexto histórico e social
específico, influenciam as identidades que são construídas mutuamente no interior da relação
entre elas, dando origem a sujeitos posicionados diferencialmente naquilo que se pode chamar
de estruturas sociais. Os processos complexos pelos quais tais identidades se constroem por
meio e através das diferenças, passam pelas características de classe e de raça de cada uma
delas. Para compreender essa relação, portanto, uma perspectiva interseccional é
imprescindível.
Entre as patroas, é unânime o reconhecimento de que sua realização profissional e, por
consequência, parte da realização pessoal, se deve ao trabalho diário da trabalhadora
doméstica na realização das tarefas da casa e do cuidado com os membros da família,
principalmente dos filhos. A dependência que as crianças manifestam seriam um empecilho
fundamental para a vida profissional de muitas mulheres se não fosse o trabalho doméstico.
Esse trabalho me ajuda a me realizar. Sim, é fundamental. Pensando mais na minha
vida profissional. Se eu não tivesse ela, eu teria que ficar com a minha filha depois
do almoço, não teria como conciliar com o emprego, enfim... Então ela é
fundamental para a minha carreira (CLAUDIA, patroa, 35 anos, professora
universitária, branca).
133
Me sinto uma pessoa realizada. O trabalho da doméstica é fundamental para a gente
se realizar como mulher. Para mim é muito importante. Porque eu sou muito
ansiosa, gosto de ver as coisas arrumadas, aí eu tento fazer tudo e não dou conta
(DANIELA, patroa, 47 anos, artista plástica, branca).
Atualmente seria impossível eu ficar sem uma doméstica. Trabalho oito horas por
dia, eu fico mais tranqüila em saber que estou lá trabalhando e tem uma pessoa aqui
já adiantando o almoço, fazendo tudo da casa. Acho que dificilmente eu não teria
uma auxiliar doméstica hoje em dia. Pelo menos enquanto o meu filho mais novo
não crescer mais um pouco. Talvez quando ele for mais velho eu possa adotar uma
marmita, chamar uma faxineira, comer fora, enfim...mas eu acho que ainda não.
Atualmente me tranqüiliza e me ajuda a desempenhar minhas atividades fora da
casa. Eu sei que as atividades da casa serão feitas por outra pessoa (BEATRIZ,
patroa, 54 anos, fotógrafa, branca).
Porque se eu não tivesse uma funcionária eu ia estressar demais. Ter uma jornada
integral, chegar em casa e fazer tudo o que tem pra fazer; comida, arrumar... seria
muito estressante e cansativo. Eu conseguiria fazer alguns meses, mas depois eu
acho que eu não ia dar conta (JUDITH, patroa, 45 anos, odontóloga, amarela)).
Isto mais uma vez corrobora o argumento de que a inserção das mulheres no mercado
de trabalho se deu por meio do usufruto do trabalho desgastante e degradante da trabalhadora
doméstica. A contribuição do feminismo negro a esse argumento seria a de chamar atenção
para o fato de que aquelas mulheres que conquistaram postos de trabalho valorizados
socialmente e bem remunerados não representavam adequadamente todas as mulheres, mas
apenas a parcela branca e abastada. As suas conquistas se consolidaram e adquiriram
visibilidade porque as funções das quais foram liberadas foram assumidas por mulheres
predominantemente pobres e negras, que mal puderam compreender e reagir instantaneamente
a esse processo, dadas as condições desiguais nas quais ele ocorreu. A constatação dessa
diferença no interior do feminino questionou não só o termo “mulher”, no singular, mas
também o termo “mulheres”, no plural, enquanto categoria que se queria capaz de abarcar a
diversidade e ao mesmo tempo a especifidade de suas experiências. A interseccionalidade,
enquanto categoria que permite captar a articulação entre diversos eixos de identidade e
diferença, tornou-se a ferramenta mais adequada para compreender os processos pelos quais
determinados sujeitos são atingidos por diferentes tipos de opressão e desigualdades, e
também os privilégios alcançados por aqueles que tiraram proveito de tais assimetrias sociais.
As distinções de classe, da forma como concebe Bourdieu (2008), estabelecem
diferenças muito acentuadas entre trabalhadoras domésticas e patroas. Tais diferenças são,
pelo menos em parte, visíveis à elas. Isto fica claro quando elas respondem à indagação sobre
a qual classe social pertencem e à qual acham que a outra (dependendo de quem responde, se
trabalhadora doméstica ou patroa) pertence. Mesmo sem se basear em nenhum parâmetro
teórico, as entrevistadas formularam uma noção de classe que espontaneamente considerou a
134
ocupação, a escolaridade, a renda e as condições materiais de moradia, algo bem próximo dos
elementos utilizados por Bourdieu (2008) para definir o que são classes sociais. Entre as
patroas obtivemos as seguintes respostas, que servem de exemplo:
Eu me considero de classe média. Tenho minha casa, meu carro, então eu me
considero minha classe média. A Rita eu considero de classe pobre, porque ela não
tem uma casa pra morar, não tem nada, então é classe pobre (IVETE, patroa, 34
anos, comerciante, parda).
Acredito que classe média...classe média, eu acho. Acho que assim, pelo salário do
meu marido, pelo meu salário, cada um tem um carro, temos um apartamento, pelos
bens materiais que a gente tem. As relações de amizade, sociais, o trabalho. Acho
que é a classe média. Porque eu também me relaciono com pessoas da classe alta,
então eu sei também como é (BEATRIZ, patroa, 54 anos, fotógrafo).
A rápida resposta fornecida à pergunta mostrou que trabalhadoras domésticas e
patroas possuem um senso bastante claro das hierarquias socialmente construídas, ainda que
suas noções de posicionamento de classe possam divergir do que os famosos institutos de
pesquisa consideram como definições corretas. Todas as patroas se classificaram como
pertencentes à classe média, apontando trabalhadoras domésticas como pertencendo à classe
baixa ou à faixa que se situa entre esta e a classe média. Já as trabalhadoras domésticas se
dividiram quanto à sua pertença de classe. Algumas afirmaram pertencer à classe baixa, por
não possuir uma casa própria, um emprego reconhecido, um salário alto, uma condição
econômica estável. Outras se consideraram de classe média, distinguindo-se das patroas por
um lado, e, por outro, de pessoas que se encontram relativamente em condições materiais
inferiores às delas. Foi unânime a opinião de que a patroa pertence à classe mais alta, pelo seu
emprego, pelo seu salário, pela estabilidade financeira e por suas posses materiais. Dois
exemplos mostram a complexidade da identidade na dimensão da classe.
Eu me acho naquela classe...acho que na média. Porque classe alta seria o povo
daqui [a família empregadora]. Eu não me acho de uma classe tão baixa pelo fato de
que meu esposo trabalha, e tudo. Só de não faltar nada em casa, de ter o alimento, a
mistura, de ter condição de pagar suas contas em dia. Acho que seria uma classe
boa, não tão baixa assim, né. Nem tão baixa nem tão alta (FÁTIMA, trabalhadora
doméstica, 31 anos, parda).
Eu me considero de classe baixa. Não tenho estudo, um trabalho melhor,
dinheiro...Não tenho casa própria ainda. Ela [patroa] eu considero de classe alta.
Porque ela tem condições boas, uma vida boa, uma casa boa (ROSENILDE,
trabalhadora doméstica, 35 anos, parda).
Dessa forma, trabalhadoras domésticas e patroas se reconhecem em posições
diferentes de um mesmo contexto relacional no qual as primeiras sofrem algumas
conseqüências negativas das quais as segundas se distanciam, ainda que boa parte dessas
conseqüências se dêem em função da pertença ao gênero feminino. Por exemplo, ambas
partilham a carga da responsabilidade pelo trabalho doméstico devido ao fato de serem do
135
sexo feminino, mas apenas a trabalhadora doméstica executa esse trabalho concretamente, na
forma de serviço doméstico, ao passo que a patroa, por possuir condições materiais e
simbólicas para delegá-lo a outra mulher, se liberta pelo menos em parte dessa carga. A
distância das necessidades materiais, que marca a posição da patroa, se traduz na ausência de
discriminação em função da classe a que pertence. Já entre as trabalhadoras domésticas, há a
queixa a respeito do preconceito relacionado às suas limitações materiais vinculadas à
condição de doméstica, que no Brasil e em todo o mundo ocidental, constitui um signo de
pobreza, como aparece na fala desta patroa:
Acho que é o serviço mais desvalorizado que existe, e é o mais desvalorizado
porque é um “serviço de mulher”. Na escala dos serviços de mulheres, esse está lá
no fundo do poço, é desempenhado pelas mulheres mais pobres. Pior do que ser gari
é ser empregado doméstico. Pode apostar no que eu to te falando, pode perguntar
por aí. Mesmo trabalhando na limpeza, um serviço meio ligado ao serviço
doméstico, o gari é funcionário da prefeitura. Não é a limpeza em si que é ruim, mas
o lugar que é feito e por ser um trabalho de mulher (IVETE, patroa, 34 anos,
comerciante, parda).
Quando indagadas sobre o que achavam do racismo, ou se a cor fazia diferença na
vida das pessoas, tanto patroas quanto trabalhadoras domésticas afirmaram a existência de
preconceito racial no Brasil como algo arraigado nas práticas e instituições raciais. Entretanto,
todas elas negaram compartilhar de qualquer juízo preconceituoso e também negaram ter
sofrido preconceito racial, com exceção de uma trabalhadora doméstica que revelou ter
vivenciado uma experiência de discriminação racial no trabalho, mas em outro ambiente que
não o doméstico. Confirmando os achados da pesquisa de Venturi & Bokani (2004), já
mencionados anteriormente, a sociedade brasileira se reconhece como uma sociedade racista,
mas não identifica claramente nem os agentes nem os mecanismos do racismo. Todos
afirmam haver preconceito racial, mas ninguém se assume racista. E é de se esperar que
dificilmente o fariam diante de um pesquisador negro. Todavia, o racismo no Brasil parece
operar segundo mecanismos invisíveis, como se fosse uma força que paira sobre os indivíduos
sem que eles percebem ou controlem.
Na minha vida nunca fez diferença, mas as pessoas discriminam muito pela cor. Não
só a empregada doméstica, mas as pessoas em todos os lugares (IVETE, patroa, 34
anos, comerciante, parda).
Só porque a pessoa é preta já discrimina. Cor da pele não tem nada a ver, todo
mundo é igual. Eu sempre ensino minhas crianças. Tem muita gente que não
contrata a pessoa pra trabalhar de doméstica porque é negra. Tem muita gente que
não quer. Principalmente os mais ricos. Parece que eles têm nojo (MARINA,
trabalhadora doméstica, 28 anos, parda).
136
Apesar do reconhecimento da existência do racismo, nem patroas nem trabalhadoras
domésticas admitiram ter sido vítimas, mas várias delas já presenciaram situações e
discriminação ou conhecem alguém que já sofreu as conseqüências dessa opressão.
Acho que a cor das pessoas ainda faz diferença. Muitas pessoas recriminam, por
exemplo, empregada doméstica negra. Ficam se perguntando “será que vai dar
certo?”. Aí a pessoa tem que mostrar serviço, mostrar que é boa para trabalhar,
senão não consegue ficar. Eu nunca tive nenhum problema relacionado a isso, graças
a Deus. Diretamente comigo não, mas com outras pessoas que eu conheço já. Às
vezes você vai arrumar emprego, e as pessoa te discriminam. Às vezes sabe que
você é boa, que você é competente, mas pela cor da sua pele inventam uma desculpa
qualquer e te manda pastar. Já aconteceu isso com pessoas que eu indiquei. Quando
indico pessoa branca, aí aceitação já é bem melhor. Eu nunca conheci nenhum caso
de preconceito aberto. Mas inventam umas desculpas que você vê que é só
preconceito. Mas eu pessoalmente nunca tive problema com isso (ROSA,
trabalhadora doméstica, 31 anos, parda).
Os mesmo mecanismos que definem quem é negro e qual é o seu lugar na sociedade,
também definem quem é branco e os seus privilégios face aos seus “outros”. Isto é
reconhecido pela patroa que, por ser professora universitária e militante feminista,
desenvolveu a consciência necessária para perceber os liames da desigualdade.
Minha vida em termos escolares foi tediosa. E isso se liga ao fato de ser branca. Por
exemplo, eu não tive que ir atrás de uma bolsa de iniciação científica, ela veio atrás
de mim, porque eu só tirava dez. Mas eu não tirava dez só porque eu sou branca e
letrada, mas as coisas se combinam. Isso pra mim é muito evidente porque eu vejo
minhas alunas e alunos hoje, e é muito marcado. Como professora eu vivencio isso.
Eu tive tantos alunos negros brilhantes, que não são reconhecidos como brilhantes
aqui na universidade. São letrados mas tem uma barreira. É muito triste...agora eu
estou lançando outra política, só oriento mulheres negras...Porque se você não fizer
assim, você não consegue achar essas pessoas, porque elas acham que elas nem
merecem, por causa dessas sutilezas (CLAUDIA, patroa, 35 anos, professora
universitária, branca).
Da mesma maneira que classe e raça se combinam com gênero para delimitar
posições-de-sujeito ligadas à trabalhadora doméstica negra e pobre, elas também se
intersectam para dar sentido à posição dominante da mulher branca de classe média em face
da sua alteridade. Nessa fala ficam marcadas distinções significativas que revelam muito dos
processos interativos pelos quais as identidades se constroem de maneira desigual. Essa
mesma patroa afirma que teve apenas uma doméstica negra, e ela demonstrou um
comportamento subalterno mais acentuado do que o demonstrado pelas demais trabalhadoras,
talvez porque não se julgasse merecedora, por exemplo, de sentar-se à mesa com a patroa para
uma refeição, preferindo esperar ela terminar de se alimentar para, só então, saciar sua fome
sozinha na cozinha. Essas sutilezas revelam que o preconceito racial pode não estar
diretamente presente nas falas e nas experiências das entrevistadas, mas trabalhadoras
domésticas e patroas, por suas características específicas de raça e classe, experimentam
formas diferentes de vivenciar o gênero e as primeiras enfrentam conseqüências da
137
desigualdade e discriminação institucionais que não são enfrentadas por patroas
predominantemente brancas e de classe média. Isto fica ainda mais evidente na afirmação
desta patroa:
Nunca sofri discriminação pela minha cor. Eles até respeitam muito os japoneses
porque acha que somos inteligentes (JUDITH, patroa, 45 anos, odontóloga,
amarela).
Isso demonstra que mulheres negras e de classes baixas sofrem mais as conseqüências
degradantes do sexismo e da divisão sexual do trabalho que as mulheres brancas pertencentes
a classes sociais médias e altas. Quase sempre, essas estão nas posições de controle, enquanto
aquelas estão sendo subjugadas e desvalorizadas cotidianamente. Eis as características da
desigualdade interseccional.
3.7 Desigualdade e interseccionalidade
De acordo com Duffy (2005), as feministas recentemente têm se preocupado muito
com a concentração de mulheres, principalmente mulheres de cor, nos trabalhos mal-pagos,
sobretudo no “trabalho reprodutivo”, que inclui como ocupação central o trabalho doméstico.
Caminhando nessa direção, cria-se não apenas uma classe de trabalhadoras domésticas malpagas, mas uma minoria étnica e racial. Duffy (2005) comenta pesquisas que argumentam de
maneira radical que as mulheres brancas de classe média e média-alta têm obtido êxito
profissional à custa da transferência do trabalho doméstico, que lhes tomava tempo sem lhes
remunerar, para outras mulheres, geralmente pobres, migrantes, e negras. Assim, as relações
de serviço doméstico acentuam a desigualdade de raça e de classe entre mulheres à medida
que privilegiam as mulheres de uma classe que são “liberadas” relativamente de parte da
pressão do sexismo por poder usufruir do trabalho de outras mulheres. Nessa visão, parte do
peso e da invisibilidade da exploração vivida por mulheres de cor em trabalhos mal-pagos
está ligada às conseqüências do fato de que os primeiros movimentos feministas não
atentaram para as diferenças e opressões entre as mulheres. É sob essa constatação que
emerge a consciência da importância de abordar, a partir da perspectiva da
interseccionalidade, as articulações de desigualdades raciais e de classe como parte do projeto
feminista, que tem feito da questão da racialização do trabalho doméstico mal-pago uma
preocupação de pesquisa.
138
O mercado de trabalho brasileiro é estratificado, segmentado em vários setores que
produzem trabalhadores largamente desiguais nos níveis de salário e acesso às oportunidades
de desenvolvimento. Neste contexto, sistemas interconectados de opressão racial e de gênero
agem concentrando as mulheres e pessoas de cor em ocupações mal-pagas e de baixo status,
consideradas como “trabalho sujo” (DUFFY, 2007). A dinâmica da segregação sócioocupacional por raça e por gênero se aplica especialmente sobre a divisão do trabalho
doméstico.
Pesquisadoras negras da teoria feminista e da prática política – com destaque para
hooks (1981), Davis (1981) e Collins (2000) – têm enfatizado o modo como os impactos da
raça, classe e outros aspectos da desigualdade têm sido obscurecidos quando se considera o
gênero como um fenômeno isolado, universalizando as experiências de todas as mulheres no
processo. O entendimento feminista do trabalho reprodutivo ocupa o centro da crítica. Tais
autoras argumentam que as experiências de grupos marginalizados de mulheres não podem
apenas ser inseridas em modelos teóricos já existentes, mas impõem desafios teóricos novos
para compreendê-las. Pois as mulheres, e as mulheres negras em particular, constituem um
grupo historicamente dominado, oprimido e que ainda hoje sobrevive em condições sócioeconômicas desfavoráveis. E o feminismo negro nasce justamente no estudo das diversas
vozes que indagaram, questionaram e expuseram as condições da mulher negra, não apenas na
intenção de analisá-las, mas de contribuir para o seu empoderamento face a precariedade de
suas condições educacionais, ocupacionais e familiares, em parte derivadas da forma como a
escravidão moldou o gênero da mulher negra (COLLINS, 2000) . O conceito de análise
interseccional, nesse sentido, emerge como alternativa adequada a tal objeto. Uma abordagem
interseccional trata raça, classe, gênero e outras formas de opressão como interconectadas,
inter-determinadas em um processo histórico. O movimento em direção à interseccionalidade
tem se tornado central para o projeto de compreensão das desigualdades.
A divisão racial do trabalho reprodutivo é a chave para distinguir a exploração da
mulher de cor, sendo, então, essencial para desenvolver um modelo integrado que trata raça e
gênero como interligados e não como sobrepostos. Uma área na qual tem surgido pesquisas
focando a complexa interação entre raça, gênero e trabalho reprodutivo é na pesquisa sobre o
trabalho doméstico. Segundo Rollins (1985), referindo-se ao caso estado-unidense, o serviço
doméstico remunerado oferece uma oportunidade extraordinária para o entendimento de uma
situação na qual as três maiores estruturas de poder dos Estados Unidos estão presentes – a
estrutura de classes capitalista, a hierarquia sexual patriarcal e a divisão racial do trabalho –
interagindo entre si. O entendimento da segregação ocupacional e da desvalorização do
139
trabalho reprodutivo no mundo globalizado tem exigido modelos teóricos que construam
ligações entre explicações estruturais e culturais e integrem gênero a outros fatores
importantes para a cidadania.
Dada a distribuição do trabalho doméstico no Brasil, segundo as contribuições
apresentadas, verifica-se nessa atividade a intersecção de classe, raça e gênero. O trabalho
doméstico em geral, trabalho socialmente atribuído às mulheres, é repleto de uma carga
simbólica que o vincula socialmente com as funções sociais consideradas femininas. Isto
poderia levar, no caso do trabalho doméstico remunerado, a uma base comum na qual patroa e
trabalhadora doméstica pudessem fundar uma identidade comum. O “doméstico”, lugar
“feminino por excelência”, em oposição aos espaços públicos vinculados com a
masculinidade no imaginário social, poderia ser o lócus de encontro entre duas mulheres com
muitas coisas em comum. Entretanto, não é isto que se dá na realidade. A categoria mulher,
como dito anteriormente, não é capaz, por si só, de fomentar uma identidade comum entre as
mulheres, justamente porque elas estão inseridas em diversos “campos” sociais marcados por
clivagens de raça e classe. O doméstico, portanto, propicia um encontro entre mulheres, mas
mulheres socialmente diferentes e, mais que isso, desiguais (KOFES, 2001).
Para Carneiro (2002), somente quando todas as mulheres brancas e negras
reconhecerem a importância de se discutir o racismo presente no Brasil será possível uma
negociação e a devida consideração à vinculação entre gênero e raça, visando uma ordem
mais igualitária. O problema do racismo, na sociedade brasileira, é que as pessoas atuam de
forma racista inconscientemente e de modo escamoteador, sem mesmo se dar conta disso. O
racismo, assim como o sexismo, se transforma em uma parte da estrutura social, dispensando
elementos subjetivos como o preconceito para sua perpetuação (GONZALEZ, 1979;
AZEREDO, 1994).
A perspectiva da interseccionalidade, portanto, exige um repensar das categorias que
até agora têm sido tomadas como fundamentais. A categoria “mulher”, como mostra Piscitelli
(2002), deve atender à historicidade e servir para pensar em “mulheres” em contextos
específicos. A categoria “mulher” deve ser recriada e reutilizada em um sentido político de
forma a permitir o reconhecimento das diferenças entre mulheres, bem como das
semelhanças, que permitam tanto a crítica e o protesto quanto a coalizão. A perspectiva
interseccional deve favorecer a transformação dos discursos, práticas e relações sociais nas
quais a categoria “mulher” é construída de maneira subordinada, reconstruindo-a mediante
diferentes feminismos (PISCITELLI, 2002).
140
CONCLUSÕES
Esta pesquisa de dissertação teve o objetivo de reconstruir as identidades
historicamente criadas entre trabalhadoras domésticas e patroas no Brasil, a partir de um
estudo empírico realizado na cidade de Goiânia. A perspectiva utilizada foi a da
interseccionalidade, numa tentativa de articulação dos estudos sobre identidade a partir dos
pontos de vista do interacionismo simbólico, dos estudos culturais e do feminismo negro. Tal
objetivo se pautou pela hipótese de que o serviço doméstico se baseia em relações que
envolvem uma conexão complexa entre diferenças e desigualdades de classe, raça e gênero,
que, de acordo com o contexto, forjam identidades mais ou menos estáveis. A partir dessas
identidades, patroas e trabalhadoras domésticas se posicionam na relação e interagem levando
em consideração as diferenças existentes entre elas. Foi fundamental para esse trabalho
investigar não apenas a construção da identidade da trabalhadora doméstica, do elemento
subalterno, mas também a da patroa, elemento dominador, o “Eu” definidor da alteridade, a
raça dominante definidora da raça dominada, e a classe superior em relação à classe menos
privilegiada. A identidade, assim, expressa seu aspecto relacional e não-essencialista,
permitindo entrever também possibilidade de mudanças, ainda que entre as nuvens das
desigualdades.
Trabalhadoras
domésticas
e
patroas
constroem
suas
identidades
relacionalmente.
O trabalho doméstico no Brasil teve início nos primórdios do período escravocrata. A
figura da mucama, criada que era responsável por servir os senhores e por fiscalizar o trabalho
dos demais escravos domésticos, carregou estigmas e representações que se reproduziram em
identidades subalternas, evidenciadas na música, na literatura, na história e no senso comum.
O mito da democracia racial e o ideal de branqueamento não superaram tais estereótipos, mas,
ao contrário, contribuíram para reforçá-lo, acentuando o mecanismo que, ao mesmo tempo em
que produz, camufla a existência de preconceito e a ocorrência da discriminação racial.
A imagem da trabalhadora doméstica brasileira é fortemente marcada pela
miscigenação. Alvo dos abusos e transgressões sexuais de senhores sádicos desde o início da
colonização, a mulher negra escravizada foi tratada como um objeto sexual, uma máquina
141
reprodutora, povoando a colônia de filhos mestiços, frutos da violência perpetrada pelos
homens brancos sob o ideal de “embranquecer a sociedade”, “purificar a raça”, “expurgar
tudo o que fosse avesso à civilização européia”. Essa história de violência sexual contra a
mulher negra é inseparável do contínuo processo de pauperização e marginalização do povo
negro em geral, cujas conseqüências são reproduzidas ainda hoje, em maior ou menor escala,
por meio das relações interpessoais e das instituições sociais.
O trabalho doméstico da escrava negra traz a marca da desvalorização do trabalho
feminino e de todos os aspectos ligados à negritude e à pobreza. A figura da mulher negra e
pobre foi relegada para trás das cortinas da história, e sua contribuição econômica, social e
cultural para a construção desse país continua sendo negligenciada, como se não existisse. O
trabalho doméstico no Brasil se estrutura, desde seu início, sob a intersecção enquanto um
trabalho escravo, um trabalho “de negro”, um trabalho “feminino”.
Nessas considerações finais, não se pode deixar de ressaltar o papel de cada elemento
na relação interseccional entre classe, raça e gênero nas interações entre trabalhadoras
domésticas e patroas. Se considerarmos que o regime de classe na sociedade brasileira tem
uma origem mais recente, podemos afirmar que a raça e o gênero fazem parte da
representação da trabalhadora doméstica desde os primórdios da colonização portuguesa no
Brasil. Conseqüentemente, são eles os mais ressaltados pela bibliografia a respeito da
escravidão. Mas, qual é a influência desses aspectos nas relações entre trabalhadoras
domésticas e patroas atualmente, considerando todas as transformações, incluindo a mudança
no modo de produção e a Abolição do regime escravocrata? Um aspecto curioso a ser
destacado é que todas as patroas e trabalhadoras domésticas afirmaram que o Brasil ainda
hoje é um país racista, preconceituoso com as pessoas negras, mas apenas uma delas se
reconheceu como vítima da discriminação racial. Reconhecem que a sociedade é perpassada
pelo racismo, mas não se confessam racistas. Relatam casos de terceiros que teriam sofrido ou
infligido preconceito contra alguém, mas dificilmente se identificam como alvos. Assim,
atribuem o preconceito e a discriminação racial à sociedade como um todo, à coletividade,
lançando-a para um campo vago e distante, ainda que perceptível.
Considerações raciais muito raramente surgiram espontaneamente nas falas das
patroas, a não ser quando foram estimuladas a manifestarem opinião sobre isto. Parece
mesmo, como ressaltou Hasenbalg (1996), haver uma interdição quanto ao assunto “raça”
entre nós. Apenas quando as pessoas são chamadas a conversar sobre isto, em um ambiente
em que elas percebem que podem se expressar, é que dizem algo a respeito. Ainda assim, com
todo o cuidado que uma postura politicamente correta sugere. A raça está presente nas
142
relações entre trabalhadoras domésticas e patroas, já que vimos que é uma relação de brancas
com não-brancas, mas a raça não entra direta e claramente na discursividade. A raça entra
secundariamente na expressão discursiva, o que não quer dizer que não seja importante, e
mesmo crucial em alguns casos, dependendo do contexto. Entretanto, a diferença e a
desigualdade de classe se mostram fortes.
O trabalho doméstico é socialmente depreciado e desvalorizado, mas o trabalho
doméstico feito pela patroa e aquele feito pelas trabalhadoras domésticas são diferentemente
depreciados, já que uma sabe como fazer para executar, e outra sabe fazer para “mandar”
(KOFES, 2001). Além disso, o trabalho doméstico, para a trabalhadora doméstica, consiste
em um “modo de vida” (MELO, 1998), já que o faz tanto profissionalmente quanto para a
manutenção de sua própria casa. O caráter repetitivo e enfadonho dessa atividade se torna
uma constante na vida da trabalhadora doméstica. A circularidade desse trabalho, que não
permite um “progresso” ou uma promoção vertical, prende a trabalhadora na mesma rotina. A
dupla jornada do trabalho doméstico a conduz a uma percepção negativa de si mesma e parece
aprisioná-la em uma vida sem desafios, sem oportunidades de mostrar seu próprio valor. O
trabalho doméstico que as patroas desempenham eventualmente, no final de semana ou após o
expediente da doméstica, não tem o mesmo significado do trabalho doméstico na vida de uma
trabalhadora doméstica. A patroa, em geral, tem uma ocupação remunerada fora do lar e sua
rede de contatos e oportunidades é muito mais ampla do que a da doméstica. Portanto, as
mulheres experienciam o trabalho doméstico de maneiras diferentes em função da classe a
que pertençam.
Há, certamente, uma interseccionalidade de classe, raça e gênero no trabalho
doméstico. Contudo, as condições de classe são mais proeminentes inclusive na fala e na
sensibilidade das entrevistadas. A desigualdade racial que elas revelaram haver na sociedade
brasileira, se interfere nas relações de outras trabalhadoras domésticas ou patroas, parece não
interferir explicitamente nas relações delas. A diferença de gênero entre mulheres não é
percebida e, se percebida, não é articulada na linguagem comum das entrevistadas, linguagem
na qual fomos buscar o sentido do discurso que elaboram para expressar como vêem sua
relação com sua “outra” no interior do domicílio. Tal diferença pôde ser percebida a partir de
outros aspectos, como a classe e a raça, que interferem na forma como as entrevistadas
demonstram seu “ser mulher”, “ser patroa”, “ser trabalhadora doméstica”. A realização, como
profissional e como mulher, demora muito mais para chegar para as trabalhadoras domésticas.
Seus planos para o futuro são sempre mais restritos, seus horizontes estão cada vez mais
próximos, a limitá-las de alguma forma, impedindo-as que ao menos vislumbre a vida do
143
ponto de vista do qual a patroa desfruta. Ser mulher, para a doméstica, se resume à execução
das tarefas domésticas, ao ser mãe e ao ser esposa, enquanto para as patroas, para além desses
três aspectos, a execução de um trabalho reconhecido, bem remunerado e situado na esfera
pública, abre perspectivas muito mais largas.
Muito mais visível para ambas são as distinções de classe, as distâncias sociais que são
construídas a partir do desempenho de uma ocupação, da renda do trabalho, do poder
aquisitivo, do padrão de consumo, da escolaridade. Quando solicitadas a mencionarem suas
diferenças, patroas e trabalhadoras domésticas não tardam em mencionar os anos de estudo,
os diplomas, a conta bancária e, nos termos de Bourdieu, o habitus de classe. Os abismos
entre as mulheres, denunciados pelos feminismos “dissidentes” nas décadas de 1970 e 1980,
ressaltaram aspectos raciais e de classe como distinções as quais não se podia negligenciar. E
percebemos, hoje, o quanto isso é válido, na análise das relações entre trabalhadoras
domésticas e patroas. Entretanto, a subversão dessa situação é sempre uma possibilidade, a se
concretizar por ocasião de uma coalizão política baseada no que Bourdieu chama de um “mal
entendido” entre as posições ocupadas pelos indivíduo e o seu lugar simbólico na estrutura
hierárquica da sociedade, ou seja, uma confusão na taxonomia da desigualdade social. Tal mal
entendido é sempre uma situação aberta, a depender de um contexto social e político.
144
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVAREZ, Sonia E. A “globalização” dos feminismos latino-americanos – tendências dos
anos 90 e desafios para o novo milênio. In: Cultura e Políticas nos Movimentos Sociais
Latino-Americanos – Novas leituras. Editora UFMG, Belo Horizonte, p. 383 – 426, 2000.
AZEREDO, Sandra. Teorizando sobre gênero e relações raciais. Estudos Feministas, Ano 2,
segundo semestre, 1994, p.203-216.
BAIRROS, Luiza. Nossos feminismos revisitados. Estudos Feministas. Vol. 3, nº 2, 1995,
p.458-463.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 2002.
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis,
Vozes, 2003.
BERNARDINO-COSTA, Joaze. Sindicato das trabalhadoras domésticas no Brasil: teorias
da descolonização e saberes subalternos. (Tese de doutorado), Brasília, UnB, 2007.
BERNARDINO-COSTA, Joaze. Hierarquia a cor entre empregadas domésticas em Goiânia.
In: BARBOSA, L. M. A.; SILVA, P. B. G.; SILVÉRIO, V. R. (Orgs). De preto a afrodescendente: trajetórias de pesquisa sobre relações étnico-raciais no Brasil. São Carlos,
EdUFSCar, 2003, p. 227-242.
BERNARDINO-COSTA, Joaze. Ação Afirmativa e a rediscussão do mito da democracia
racial no Brasil. Estudos Afro-Asiáticos, ano 24, nº2, 2002, p.247-273.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, EdUSP; Porto
Alegre, Zouk, 2008.
BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003.
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, Papirus, 1996.
BRAH, Avtar. Diferença, diversidade e diferenciação. Cadernos Pagu, num. 26, janeirojunho de 2006: pp.329-376.
BRAH, Avtar. Cartographies of diáspora: contesting identities. London, Routleadge, 1996.
BRITES, Jurema. Afeto e desigualdade: gênero, geração e classe entre empregadas
domésticas e seus empregadores. Cadernos Pagu, num. 29, jul-dez, 2007, p. 91-109.
BRITES, Jurema. Afeto, desigualdade e rebeldia: bastidores do serviço doméstico. (Tese de
Doutorado). Porto Alegre, UFRGS, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
2000.
145
BRUSCHINI, Cristina; LOMBARDI, Maria R. A bipolaridade do trabalho feminino no
Brasil contemporâneo. Cadernos de Pesquisa, nº 110, julho/ 2000, p. 67-104.
BRUSCHINI, Cristina; ROSEMBERG, Fúlvia. A mulher e o trabalho. In: ______.
Trabalhadoras do Brasil. São Paulo, Brasiliense, Fundação Carlos Chagas, 1982, p. 9-22.
CALDWELL, Kia Lilli. Fronteiras da diferença: raça e mulher no Brasil. Estudos
Feministas, vol. 8, nº 2. p. 91-108.
CARNEIRO, Sueli. Gênero e raça. In: BRUSCHINI, Cristina; UNBEHAUN, Sandra.
Gênero, democracia e sociedade brasileira. Editora 34, Fundação Carlos Chagas, 2004.
CARNEIRO, Sueli. Gênero, raça e ascensão social. Estudos Feministas, nº2, 1995.
CASTELLS, Manuel. O Poder da identidade. Vol. II A Era da informação: Economia,
Sociedade e Cultura. São Paulo, Paz e Terra, 2002.
CHANEY, Elsa; GARCIA CASTRO, Mary. Introduction: A new Field for research and
action. In: ______. (Orgs) Muchachas no more: household workers in Latin America and the
caribean. Philadelphia, Temple University Press, 1989.
COLLINS, Patrícia Hill. Black Feminism Thought: knowleadge, consciousness and the
politics of empowerment. New York, Routleadge, 2000, p.1-121.
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo, Editora da UNESP, 1998.
COSTA, Sérgio. Dois atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo
Horizonte, Editora UFMG, 2006.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da
discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas. Ano 10, 1º sem, 2002.
DAVIS, Angela. Mujeres, raza y clase. Madrid, Akal, 1981.
DUBAR, Claude. A Socialização: a construção de identidades sociais e profissionais. São
Paulo, Martins Fontes, 2005.
DUFFY, Mignon. Doing the dirty work: gender, race, and reproductive labor in a historical
perspective. Gender & Society, vol. 21, num. 3, jun. 2007, p. 313-336.
DUFFY, Mignon. Reprducing Labor Inequalities: challenges for feminists conceptualizing
care at the intersections of gender, race and class. In: Gender & Society, v.19, n.66, 2005,
p.66-82.
DULTRA, Eneida V.; MORI, Natália (Orgs). Trabalhadoras domésticas em luta: direitos,
igualdade e reconhecimento. Brasília, CFEMEA, 2008.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo,
Dominus, 1965.
146
FLICK, Uwe. Uma introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre, Bookman, 2004.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, Edições Loyola, 1996.
FRAISSE, Geneviève. Domesticidade, empregos de serviço e democracia. In: HIRATA,
Helena; MARUANI, Margaret. As novas fronteiras da desigualdade: homens e mulheres no
mercado de trabalho. São Paulo, Editora SENAC, 2003, p. 179-182.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro, Record, 2000.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro, Editora José Olímpio, 1968.
GARCIA CASTRO, Mary. What is bought and sold in domestic service? The case of Bogotá:
A critical review. In: CHANEY, Elsa; GARCIA CASTRO, Mary; Muchachas no more:
household workers in Latin America and the Caribbean. Philadelphia, Temple University
Press, 1989, p. 105-126
GOFFMAN, Erving. A representação do Eu na vida cotidiana. Petrópolis, Vozes, 2005.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de
Janeiro, LTC, 1988.
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira. In: GONZALEZ, Lélia;
HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1982.
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e Obediência: criadas e seus patrões no Rio de
Janeiro – 1860 –1910. SP: Cia das Letras, 1992.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio A. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo, Editora 34,
1999.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio A. Como trabalhar com raça em sociologia. Educação e
Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 93-107, jan./jun. 2003.
HABERMAS, Jürgen. Lecciones sobre una fundamentación de la sociología em términos de
teoria del lenguaje. In: Teoria de la accíon comunicativa: complementos y estudios prévios.
Madrid, Cátedra, 1997, p.19-38.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.). Identidade
e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro, Vozes, 2007, p. 103-133.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2005.
HALL, Stuart. HALL, Stuart. Cultural identity and Diaspora. In: WILLIANS, Patrick;
CHRISMAN, Laura. Colonial discourse and pos-colonial theory: a reader. New York,
Columbia University Press, 1994, p. 392-404.
HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro,
Graal, 1979.
147
HASENBALG, Carlos. Notas sobre relações de raça no Brasil e na América Latina. In:
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Y nosotras latinoamericanas? Estudos sobre gênero e
raça. São Paulo, Fundação Memorial da América Latina, 1992, p.52-58.
HITARA, Helena. A divisão do trabalho revisitada. In: HIRATA, Helena; MARUANI,
Margaret. As novas fronteiras da desigualdade: homens e mulheres no mercado de trabalho.
São Paulo, Editora Senac, 2003.
HIRATA, Helena. As novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de
Pesquisa, v. 37, n. 132, set./dez. 2007.
hooks, bell. Intelectuais negras. Estudos Feministas, v.3, n.2, p. 464-469.
hooks, bell. Ain’t I a woman?:Black woman and feminism. Boston, MA: South End Press,
1981, p.1-13; 119-196.
IBGE. Síntese dos indicadores sociais. Brasília, 2008.
IPEA. Retrato das desigualdades de gênero e raça. Brasília, 2008.
KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
KOFES, Suely. Mulher Mulheres: identidade, diferença e desigualdade na relação entre
empregadas domésticas e patroas. Campinas: Ed. Unicamp, 2001.
LEÓN, Magdalena. Domestic labor and domestic service in Colombia. In: CHANEY, Elsa;
GARCIA CASTRO, Mary. Muchachas no more: household workers in Latin America and the
Caribbean. Philadelphia, Temple University Press, 1989, p. 323-350.
MATOS, Maria Izilda Santos de. Porta adentro: criados de servir em São Paulo de 1890 a
1930. In: BRUSCHINI, Cristina; SORJ, Bila. Novos Olhares: mulheres e relações de gênero
no Brasil. São Paulo: Carlos Chagas: Editora Marco Zero. 1994, p.193-212.
MATTOSO, Kátia de Queirós M. Ser escravo no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1982.
MELO, Hildete Pereira de. O serviço doméstico remunerado no Brasil: de criadas a
trabalhadoras. Rio de Janeiro: IPEA, texto para discussão nº565, 1998.
MOTTA, Alda Britto da. Visão de mundo da empregada doméstica: um estudo de caso.
(Dissertação de Mestrado). Salvador, Universidade Federal da Bahia, Pós-Graduação em
Ciências Humanas, 1977. (p.1-36).
NUNES, Cristiane Girard F. Identidade e cultura: reflexões sobre uma categoria sócioprofissional. In: NUNES, Brasilmar Ferreira et al. Brasília: a construção do cotidiano.
Brasília, Paralelo 15, 1997, p.179-206.
OIT. Discriminações de Gênero e Raça: elementos estruturantes do padrão de exclusão social
no Brasil. Brasília, 2005.
148
OLIVEIRA. Vanilda M. Um olhar interseccional sobre feminismos, negritudes e
lesbianidades em Goiás. (Dissertação de Mestrado em Sociologia) Faculdade de Ciências
Sociais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2006.
PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de
migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008, p.263-274.
PISCITELLI, Adriana. Re-criando a (categoria) mulher? In: A prática feminista e o conceito
de gênero. Campinas, IFCH/UNICAMP, Textos Didáticos, p.7-38, 2002.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-GÓMEZ,
Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (compiladores). El giro decolonial: reflexiones para uma
diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá, Siglo del Hombre Editores;
Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontifícia Universidad
Javieriana, Instituto Pensa, 2007.
ROLLINS, Judith. Between women: domestics and their employers. Philadelphia, Temple
University Press, 1985.
RONCADOR, Sônia. A doméstica imaginária: literatura, testemunhos e a invenção da
empregada doméstica no Brasil (1889-1999). Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
2008.
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Emprego Doméstico e Capitalismo. Petrópolis: Editora
Vozes, 1978.
SARTI, Cynthia A. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória.
Revista Estudos Feministas, v.12, n.2, Florianópolis, maio/ago 2004.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade.
Vol. 20(2), 1995.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: ______. (Org.).
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro, Vozes, 2007, p.
73-102.
SORJ, Bila. O trabalho doméstico e de cuidados: novos desafios para a igualdade de gênero
no Brasil. In: SILVEIRA, Maria Lucia; TITO, Neuza. Trabalho doméstico e de cuidados: por
outro paradigma da vida humana.São Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2008, p. 7789.
STOLCKE, Verena. La mujer es puro cuento: la cultura del género. Revista Estudos
Feministas, v.12, n.2, Florianópolis, maio/ago 2004.
STRAUSS, Anselm. Espelhos e Máscaras: a busca de identidade. São Paulo, EdUSP, 1999,
p.11-134.
149
THEODORO, Mario; NUNES, Christiane G. F. Violência no informal: o trabalho doméstico
e o comércio de rua. In: SILVA, José F.; LIMA, Ricardo B. de.; DAL ROSSO, Sadi.
Violência e trabalho no Brasil. Goiânai, Editora da UFG; Brasília, MNDH, 2001.
VENTURI, Gustavo e BOKANI, Vilma. Queda do preconceito: real ou retórica? Teoria e
Debate, nº 59, agosto/setembro 2004.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:
Tomaz Tadeu da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de
Janeiro, Vozes, 2007, p.7-72.
150
APÊNDICE: ROTEIROS DE ENTREVISTA
ROTEIRO - TRABALHADORA DOMÉSTICA
Trajetória de vida e laços primários
1) Gostaria que você me falasse sobre sua vida. (origem, profissão da mãe e do pai escola,
família, lugares onde morou, coisas que realizou).
Como se tornou uma trabalhadora doméstica
2) Gostaria que você me falasse sobre sua trajetória profissional (os empregos que teve, onde
trabalhou).
3) Como começou a trabalhar como trabalhadora doméstica? Como chegou ao seu emprego
atual? (via agência, indicação de familiares ou conhecidos, acaso).
4) O que é ser uma trabalhadora doméstica? (se gosta do que faz, planos e expectativas).
5) Como as pessoas se referem a você no seu ambiente de trabalho: como empregada,
secretária, auxiliar? Como é isso pra você?
6) Na sua opinião, qual a importância do trabalho doméstico para a sociedade?
Serviço doméstico – condições e interações
7) Me descreva, com detalhes, como é um dia de trabalho seu.
8) Você mora no emprego? Como é morar (ou não morar) no emprego?
9) E quais são seus direitos e deveres aqui na residência onde você trabalha? E quais são os
direitos e deveres da sua patroa?
10) Possui carteira assinada? Como é trabalhar com (ou sem) carteira assinada?
11) Trabalha quantas horas por dia? O que acha disso (intervalos para descanso/refeição)
12) O que acha do seu salário? (recebe presentes, agrados, etc. ?)
13) Como é, em geral, a relação com a sua patroa? (conflitos, acordos, liberdade, confiança,
amizade).
14) Como é o seu relacionamento com as outras pessoas da família? (recebe ordens delas?).
15) O que existe de semelhante entre você e sua patroa? E de diferente? Vocês fazem coisas
juntas?
16) Como seria a relação ideal entre trabalhadora doméstica e patroa?
Identidade de gênero
17) O trabalho doméstico é um trabalho feito quase sempre por mulheres. Na sua opinião, por
que é assim? O que o trabalho doméstico tem a ver com o feminino? Por que os homens
participam menos?
18) Já se sentiu discriminada alguma vez, no trabalho, por ser mulher?
19) Você se sente realizada como pessoa e como mulher? Do que você precisa pra se sentir
realizada?
Identidade de classe
20) De que “classe social” você se considera? Por que? E sua patroa, pertence a que “classe”?
Por que?
21) Sobre os seus hábitos. Do que você gosta? (comida, música, lazer).
22) Já se sentiu discriminada alguma vez, no trabalho, pela sua classe social? Como foi isso?
Identidade racial
23) Você acha que a cor da pele tem importância na vida das pessoas? A sua cor faz alguma
diferença na sua vida?
24) Qual é a cor dela? Se ela fosse de cor diferente, a relação seria diferente?
25) Já se sentiu discriminada alguma vez, no trabalho, pela sua cor? Como foi isso?
151
ROTEIRO – PATROA
Trajetória de vida e laços primários
1) Gostaria que você me falasse sobre sua vida. (origem, profissão do pai e da mãe, escola,
família, lugares onde morou, coisas que realizou).
Como se tornou uma patroa
2) Gostaria que você me falasse sobre sua trajetória profissional (os empregos que teve, onde
trabalhou).
3) Quando percebeu que era necessário contratar alguém para fazer as tarefas da casa?
4) O que é ser uma patroa? Como é ter uma pessoa para fazer o serviço doméstico?
5) Como você e sua família se referem à ela: como empregada, secretária, auxiliar? Por que?
Como é isso pra você?
6) Na sua opinião, qual a importância do trabalho doméstico para a sociedade?
Serviço doméstico – condições e interações
7) Me descreva, com detalhes, como é a rotina de organização da sua casa.
8) Ela mora na sua casa? Como é isso?
9) E quais são os direitos e deveres dela na sua residência? E quais são os seus direitos e
deveres como patroa?
10) Assina a carteira dela? Por que?
11) Ela trabalha quantas horas por dia? O que acha disso (intervalos para descanso/refeição).
12) Qual é o salário dela? O que acha desse salário? (dá presentes, agrados, alem do salário?)
13) Como é, em geral, a sua relação com ela? (conflitos, acordos, liberdade, confiança,
amizade).
14) Como é a relação das outras pessoas da família com ela? Seu marido e filhos participam
da organização das tarefas domésticas?
15) O que existe de semelhante entre vocês? E de diferente? Você faz coisas junto com ela?
16) Como seria a relação ideal entre trabalhadora doméstica e patroa?
Identidade de gênero
17) O trabalho doméstico é um trabalho feito quase sempre por mulheres. Em sua opinião, por
que é assim? O que o trabalho doméstico tem a ver com o feminino? Por que os homens
participam menos?
18) Já se sentiu discriminada alguma vez, no trabalho, por ser mulher? Como foi essa
experiência?
19) Com o auxílio da trabalhadora doméstica, fica mais fácil você se realizar como pessoa e
como mulher?
Identidade de classe
20) De que classe social você se considera? Por que? E ela, pertence a que classe? Por que?
21) Sobre os seus hábitos. Do que você gosta? (comida, música, lazer).
22) Já foi discriminada alguma vez, no trabalho, pela sua classe social? Como foi isso?
Identidade racial
23) Você acha que a cor da pele tem importância na vida das pessoas? A sua cor faz alguma
diferença na sua vida?
24) Qual é a cor dela? Se ela fosse de uma cor diferente, a relação seria diferente?
25) Já se sentiu discriminada alguma vez, no trabalho, pela sua cor? Como foi isso?
Download