UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA DESIGUALDADE E IDENTIDADE NO SERVIÇO DOMÉSTICO: INTERSECÇÕES ENTRE CLASSE, RAÇA E GÊNERO NEVILLE JULIO DE VILASBOAS E SANTOS GOIÂNIA, MARÇO DE 2010 1 NEVILLE JULIO DE VILASBOAS E SANTOS DESIGUALDADE E IDENTIDADE NO SERVIÇO DOMÉSTICO: INTERSECÇÕES ENTRE CLASSE, RAÇA E GÊNERO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais, da Universidade Federal de Goiás, como um dos requisitos para a obtenção do título de mestre em sociologia. ORIENTADOR: Prof Dr. Joaze Bernardino Costa GOIÂNIA, MARÇO DE 2010 2 NEVILLE JULIO DE VILASBOAS E SANTOS DESIGUALDADE E IDENTIDADE SERVIÇO DOMÉSTICO: INTERSECÇÕES ENTRE CLASSE, RAÇA E GÊNERO Dissertação defendida e aprovada em _____ de ____________ de 2010, pela banca examinadora constituída pelos professores: ______________________________________________ Profº Dr. Joaze Bernardino Costa / UFG (Presidente) ______________________________________________ Profª Dra. Eliane Gonçalves / UFG ______________________________________________ Profª Dra. Ângela Lucia Silva Figueiredo / UFRB ______________________________________________ Profº Dr. Dijaci David de Oliveira / UFG (Suplente) 3 À Valdeci e Ana, pai e mãe, por todo o amor, carinho e dedicação ao longo da vida. . 4 AGRADECIMENTOS A Deus, pelo dom da ciência e pelo prazer de conhecer. À minha família, pai mãe, e irmão, sem os quais eu não existiria. À minha esposa, Jaqueline, por tudo que representa na minha vida, por seu amor, amizade, carinho, respeito, e por acreditar sempre em mim. Estendo este agradecimento ao meu sogro, sogra e cunhados, pelo apoio recebido. Ao meu orientador, Joaze Bernardino Costa, pelo apoio, pelo aprendizado e por ter se colocado sempre à disposição quando foi necessário. Agradeço por ter aberto sua biblioteca pessoal a mim e por não tolher, mas direcionar o tortuoso caminho que leva à conclusão de um trabalho. Aos membros da banca avaliadora, professora Eliane Gonçalves e professor Dijaci David de Oliveira, por suas valiosas contribuições na ocasião da qualificação e em nossas sempre boas conversas informais. Agradeço especialmente a professora Ângela Figueiredo, por atender nosso convite e se colocar a disposição para contribuir com meu trabalho. A todos os professores, professoras e funcionários da Faculdade de Ciências Sociais, pelos mais de seis anos de convivência e aprendizado. Ao programa de Pós-Graduação em Sociologia, seus coordenadores e funcionários, que se esforçam para que tenhamos condições de desenvolver nossos estudos. A Universidade Federal de Goiás, pelas oportunidades que me deu de crescer profissionalmente. À CAPES, pela concessão da bolsa que permitiu minha dedicação ao curso e à pesquisa. Ao contribuinte brasileiro, que financia nossa formação. Que nós possamos gerar o devido retorno colocando nossos conhecimentos a serviço da sociedade. A todos os familiares e amigos, da academia e de fora dela, que sempre me incentivaram e torceram por mim nesses anos de estudo. Por fim, quero registrar um agradecimento mais que especial às mulheres que aceitaram participar da pesquisa, trabalhadoras domésticas e patroas, personagens da vida real com as quais eu certamente aprendi muito. 5 RESUMO Este estudo tem o objetivo de analisar as identidades construídas nas relações entre trabalhadoras domésticas e patroas a partir de um estudo empírico realizado na cidade de Goiânia. A pesquisa se justifica pela importância histórica que o trabalho doméstico assume no Brasil e pelo peso dessa ocupação na força de trabalho feminina. A perspectiva utilizada foi a da interseccionalidade, numa tentativa de articulação dos estudos sobre identidade a partir das perspectivas do interacionismo simbólico, dos estudos culturais e do feminismo negro. Tal objetivo se pautou pela hipótese de que o serviço doméstico se baseia em relações que envolvem uma conexão complexa entre diferenças e desigualdades de classe, raça e gênero, que, de acordo com o contexto, forjam identidades mais ou menos estáveis. Foi fundamental para esse trabalho o uso do conceito de diferença, enquanto categoria analítica, o que reforçou o aspecto relacional e não-essencialista das identidades, permitindo entrever não apenas a opressão e a subalternidade, mas também possibilidades de mudanças, ainda que entre as nuvens das desigualdades. Foram entrevistadas 14 mulheres, sete trabalhadoras domésticas e sete patroas, com o auxílio de um roteiro semi-esturuturado. Os resultados revelaram a conexão entre classe, raça e gênero no trabalho doméstico, com especial ênfase na enorme desigualdade de classe 6 ABSTRACT This study aims to examine the identities constructed in the relations between domestic workers and employers from an empirical study in the city of Goiania. The research is justified by the historical importance that domestic work takes in Brazil and the weight of this occupation in the female labor force. The perspective used was that of intersectionality in an attempt to articulate the identity studies from the perspectives of symbolic interactionism, cultural studies and black feminism theory. This goal is guided by the assumption that domestic service is based on relationships that involve a complex connection between differences and inequalities of class, race and gender, which, according to the context, forge identities more or less stable. It was fundamental for this work using the concept of difference, as an analytical category, which increased the relational aspect and nonessentialism of the identities, allowing a glimpse not only the oppression and subordination, but also possibilities for changes, even between the clouds of inequalities. We interviewed 14 women, seven domestic workers and seven mistresses, with the aid of a semi-structured guide. The results revealed the connection between class, race and gender in domestic work, with particular emphasis on large class inequality. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.........................................................................................................................9 I O tema da pesquisa.......................................................................................................9 II O problema de pesquisa.............................................................................................12 III O método..................................................................................................................13 IV Plano da dissertação.................................................................................................17 CAPÍTULO – 1 O SERVIÇO DOMÉSTICO NO BRASIL, ONTEM E HOJE........................................................................................................................................19 1.1 O legado da escravidão...........................................................................................19 1.2 O trabalho doméstico antes e depois da Abolição...................................................34 1.3 Os estudos atuais sobre o tema................................................................................47 1.4 O trabalho doméstico do ponto de vista jurídico.....................................................61 1.5 Trabalho feminino e subalternidade........................................................................64 CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTAÇÃO IDENTIDADE, DIFERENÇA E DESIGUALDADE: TEÓRICA E CONCEITUAL................................................................................................72 2.1 Pensando a identidade no serviço doméstico..........................................................72 2.2 Perspectivas teóricas para o estudo da identidade...................................................73 2.3 Perspectivas essencialistas e não-essencialistas da identidade...............................77 2.4 A concepção dos estudos culturais: identidade e diferença, representação e discurso...............................................................................................79 2.5 Uma concepção interacionista e relacional da identidade: linguagem e socialização...............................................................................................83 2.6 Identidade e desigualdade.......................................................................................90 CAPÍTULO 3 – CLASSE, RAÇA E GÊNERO ENTRE TRABALHADORAS DOMÉSTICAS E PATROAS: INTERSECÇÕES .............................................................94 3.1 Por que falar em interseccionalidade?.....................................................................94 3.2 Classe, raça e gênero: independência, complementaridade 8 ou inter-determinação?..................................................................................................96 3.3 Perfis das personagens da pesquisa: trabalhadoras domésticas e patroas.......................................................................................................................108 3.4 Ser trabalhadora doméstica...................................................................................111 3.5 Ser patroa...............................................................................................................120 3.6 A dinâmica da relação...........................................................................................127 3.7 Interseccionalidade e desigualdade.......................................................................137 CONCLUSÕES.....................................................................................................................140 REFERÊNCIAS....................................................................................................................144 APÊNDICES..........................................................................................................................150 9 INTRODUÇÃO I. O tema da pesquisa A identidade tem se destacado, desde meados do século XX, como uma das questões mais importantes nas discussões contemporâneas das ciências sociais. Seja nas relações pessoais, nos debates sobre Estado-Nação e nacionalidade, na emergência dos novos movimentos sociais, nas reconstruções globais de identidades nacionais e étnicas, o debate sobre identidade coloca em questão uma série de certezas tradicionais, em certa medida dando força ao argumento corrente de que existe uma “crise das identidades” nas sociedades contemporâneas. O tema das identidades tem passado, nos últimos tempos, por uma desconstrução sistemática no interior de diferentes disciplinas, todas com uma característica em comum, que é a crítica à idéia de uma identidade integral, unificada, essencializada em indivíduos ou grupos sociais. As “políticas de identidade” se multiplicaram na segunda metade do século XX, tanto nos movimentos sociais e no debate político quanto nos círculos acadêmicos. A discussão da extensão na qual as identidades são defendidas ou contestadas na atualidade leva à análise da importância da diferença e das diferentes “políticas da diferença”, que complementam, ressignificam e desafiam as identidades. A diferença, enquanto elemento central nos sistemas de classificação por meio dos quais são construídas identidades, têm sido foco de vários esforços de pesquisa recentes nas ciências sociais. Cabe destacar os campos de estudo sobre gênero e sobre relações étnicas e raciais. Entretanto, se os estudos sobre desigualdade de raça e de gênero têm crescido cada vez mais nos últimos anos, a desigualdade de classes não deixou de ser estudada. Partindo de um referencial que não é mais fundado apenas nos aspectos ortodoxos da teoria marxista, a noção de classe tem sido reformulada há algum tempo, incorporando também as idéias de Max Weber e Pierre Bourdieu. De toda forma, houve uma ampliação do conceito, mas que não deixou de considerar a posição de indivíduos e grupos na divisão social do trabalho. Nesse sentido, classe, raça e gênero são campos de pesquisa recorrentes quando se fala em diferença, identidade, desigualdade e cidadania. Nos últimos 30 anos vem se tornando cada vez mais presente a preocupação teórica e política de se considerar em conjunto as causas e efeitos das desigualdades de classe, raça e 10 gênero. Tal preocupação deriva da diversificação ocorrida tanto entre os movimentos feministas quanto entre os movimentos anti-racistas. Pensadoras negras, tanto da academia quanto da militância, manifestaram sua insatisfação diante de sua exclusão sistemática dos discursos tanto dos primeiros movimentos feministas, constituídos predominantemente por mulheres brancas de classe média e alta, quanto dos movimentos negros, conduzidos predominantemente com base nos ideais de homens negros. Surgiu, então, a necessidade de procurar desenvolver ferramentas teóricas e metodológicas que possibilitassem uma postura crítica que congregasse tanto o ponto de vista feminista quanto o ponto de vista anti-racista, sem se reduzir à cada um deles. Daí a proposta de um “feminismo negro”, diferente do feminismo branco e do anti-racismo masculinista, mas não indiferente às suas principais contribuições. O serviço doméstico remunerado se constituiu, então, como um objeto fundamentalmente importante para essa perspectiva. Suas características tradicionais, de trabalho feminino executado predominantemente por negras e pobres, o fez um dos objetos centrais das preocupações do feminismo negro. Um olhar atento sobre as estatísticas oficiais e uma breve revisão da bibliografia existente já é capaz de levar-nos a presumir que interações entre os aspectos de classe social, raça/cor e gênero estão, em maior ou menor intensidade, presentes nas relações entre trabalhadoras domésticas e patroas. As pesquisas feitas no Brasil e no mundo sobre o trabalho doméstico apontam essa relação como uma das mais complexas do ponto de vista sociológico. Em praticamente todas essas pesquisas, os autores sublinham a singular presença das clivagens de classe, raça e gênero, ainda que não abordem as três dimensões do ponto de vista que se pretende fazer aqui. As contingências históricas que levaram à construção dos Estados-Nação europeus e, concomitantemente, das colônias que lhes deram sustento e riqueza durante séculos, hoje integrantes do chamado “Terceiro Mundo”, não conduziram apenas a uma conformação das relações entre países e continentes, mas também a estruturas de interação internas em cada um deles. Os países do Terceiro Mundo, ou países subdesenvolvidos, ainda convivem com padrões de desigualdades que estão ligados não somente à ordem global atual, mas também às consequências das configurações das relações internacionais e das formas de organização social internas a cada país ou colônia nos últimos 500 anos. A modernidade, marco para o pensamento sociológico, desde seus primórdios se constitui sobre um conjunto de relações desiguais entre grupos humanos. A história do mundo foi marcada pelo imperialismo e pelo colonialismo. A política econômica imperialista criou uma ideologia racial e sexual que, ao longo dos séculos, transformou diferenças em 11 desigualdades, por meio da naturalização de um discurso discriminatório. Pessoas negras e indígenas foram escravizadas sob relações paternalistas, e as próprias mulheres brancas não escaparam à opressão masculina. A modernidade, assim, foi um projeto instituído pelo homem branco europeu, e todo o “resto” foi lançado às margens da ordem social. O modo de produção e de relações capitalistas instaurou um novo padrão de dominação em escala mundial, fundando ao mesmo tempo a modernidade e a colonialidade (QUIJANO, 2007, p.94). As transformações mundiais impostas pela modernidade imprimiram divisões e diferenciações sociais cujas consequências são ressignificadas e recriadas no dia-a-dia, respeitadas as especificidades históricas de cada país e região. Em toda a América foi implementado um sistema de produção escravista que não apenas subordinou africanos e indígenas, mas criou novas identidades raciais, transformando diferenças em desigualdades. Independente das diferenças entre a colonização inglesa, espanhola, portuguesa e francesa, esse sistema implicou certo número de relações de trabalho, organizadas em relação às clivagens raciais e de gênero. Ideologias racistas e sexistas alimentaram por muito tempo o discurso que legitimava a perpetuação das desigualdades no plano material, ao passo que essa desigualdade material cotidiana reforçava as desigualdades raciais e de gênero, num movimento espiral poderoso. A conquista da independência e o fim dos regimes escravistas concederam a liberdade legal, mas não a liberdade cultural e moral aos estratos mais subordinados da sociedade colonial. Atividades desvalorizadas praticadas antes por escravos e escravas africanos ainda hoje são associadas aos negros e às mulheres. O trabalho doméstico figura como uma dessas atividades e tem a peculiaridade de reunir em si a herança simbólica da escravidão negra e da desvalorização histórica do trabalho feminino. Após a Abolição e o advento da República, essa atividade antes exercida por escravos continuou sendo associada, no nível das representações sociais, às pessoas de cor e pobres, confundindo classe e raça. Embora o trabalho doméstico executado dentro da casagrande incorporasse uma grande quantidade de homens negros, suas funções mais significativas àquela época, assim como hoje, eram desempenhadas por escravas, como cozinhar, lavar roupa, limpar as dependências internas e cuidar de crianças. Essas atividades, tidas como reprodutivas dentro do contexto do trabalho capitalista, desde períodos imemoriais são vinculadas à mulher. No período escravocrata e no subseqüente período republicano não foi diferente. Portanto, além das marcas de classe e de raça, o trabalho doméstico possui uma marca profunda de gênero, e é a tematização discursiva dessas marcas na relação entre trabalhadora doméstica e patroa que interessa aos objetivos dessa pesquisa. 12 A proposta de um estudo interseccional da relação entre trabalhadoras domésticas e patroas na atualidade não prescinde da consideração da trajetória histórica do trabalho doméstico no Brasil, que é, sem dúvida, marcada por significativas transformações, mas também por sólidas continuidades. Interseccionalidade, do ponto de vista aqui abordado, se refere não apenas à intersecção sincrônica de características sociais individuais, mas à interseção entre o passado e o presente, entre relações e identidades individuais e grupais. Consiste em um olhar ao mesmo tempo sincrônico e diacrônico sobre um determinado contexto, já que o contexto é construído historicamente. Partindo da metáfora da interseccionalidade como cruzamento, conexão, combinação, o presente trabalho visa analisar sob esse enfoque as diferentes formas pelas quais diferenças e desigualdades de classe, raça e gênero podem se encontrar em um determinado contexto, conformando dinamicamente identidades individuais e grupais. II. O problema de pesquisa O problema da pesquisa é saber como trabalhadoras domésticas e patroas, nas suas relações e interações, percebem e vivenciam as diferenças e desigualdades de classe, de raça e de gênero. Importa saber o que determina essa percepção e quais são as conseqüências disso para a relação. Em outras palavras, o objetivo é responder as seguintes perguntas: Como se configuram as relações entre trabalhadoras domésticas e patroas? Diferenças de classe, raça e gênero interferem nessa relação? Como? Em que medida? A pesquisa elege os conceitos de “identidade” e “diferença” como categorias analíticas centrais, e elege as categorias de classe, raça e gênero como marcadores das diferenças que perpassam essa relação, oferecendo as bases para a construção de identidades. Tanto as diferenças como as identidades são construídas pelo e atuam através do discurso. Por isso, a intenção desta pesquisa é, por meio da interpretação e da análise do discurso de trabalhadoras domésticas e patroas, compreender como elas se relacionam e interagem tendo em vista suas diferenças. Para isso, será preciso compreender como elas interpretam suas diferenças e como agem no dia-a-dia levando essas diferenças em consideração. O esforço de pesquisa vai no sentido de interpretar a interpretação dos sujeitos acerca de suas próprias relações, analisando os modos como esses sujeitos constroem a realidade com suas práticas e ações e a reconstroem em seu discurso. 13 Nessa direção, algumas perguntas fundamentais precisam ser respondidas. Como trabalhadoras domésticas e patroas interpretam suas diferenças? Como as identidades das trabalhadoras domésticas e das patroas são construídas nessa relação? As diferenças são sempre equacionadas como desigualdades? Quais as estratégias de trabalhadoras domésticas e patroas diante das diferenças e das (presumidas) desigualdades? Qual é o peso das diferenças de raça, classe e gênero nessas relações? De que forma essas diferenças se conectam entre si, resultando em desigualdade e opressão? E para responder a essas perguntas, é preciso passar por algumas etapas fundamentais, não apenas na pesquisa empírica, mas também no levantamento bibliográfico de fontes teóricas e históricas importantes, para: a) definir e situar o trabalho doméstico e seu papel na sociedade brasileira atual, considerando sua posição na divisão trabalho; b) investigar as formas pelas quais se dão as relações entre trabalhadoras domésticas e suas patroas; c) analisar as formas pelas quais trabalhadoras domésticas e patroas constroem uma imagem de si mesma e da “outra” no contexto de interação face-a-face, considerando noções como classe, raça e gênero; d) investigar como, quando e por quê trabalhadoras domésticas acionam identidades de classe, de raça e de gênero; e) descortinar os contextos sociais onde essa relação se insere, considerando-os na sua diversidade e complexidade. III. O método Tendo como objeto de análise o discurso de trabalhadoras domésticas e patroas sobre as relações do trabalho doméstico, buscou-se técnicas mais abertas de coleta de dados qualitativos que dessem conta de contemplar o objetivo proposto. Elas, se não garantem uma representatividade estatística em grande escala, permitem a investigação em profundidade de histórias de vida, estratégias individuais e coletivas, casos singulares em contextos particulares. Há que se reconhecer que tais técnicas não permitem generalizar seus resultados para grandes contingentes populacionais. As teorias da identidade que serão discutidas ao longo deste trabalho e aplicadas na análise do material empírico coletado sugerem que tal abordagem implica uma “teoria do ponto de vista”, uma abordagem contextual, que possa vir a ser articulada e comparada com outros estudos, em outros contextos, ou mesmo com estudos estatisticamente representativos de um contexto mais amplo 14 Os objetivos da pesquisa conduzem à necessidade de analisar o discurso de trabalhadoras domésticas e patroas a respeito de suas relações em torno do serviço doméstico. A abordagem do discurso feita por Foucault (1996) será a base da abordagem teóricometodológica para a interpretação do material da pesquisa empírica. Segundo este autor, um sujeito social se constitui por meio do discurso, entendido aqui como a construção e representação lingüística do mundo social imposta por um indivíduo ou grupo na relação com outros dentro de um contexto de significação. Nessa abordagem, discurso e sujeito se constroem simultânea e mutuamente. Assim, a compreensão da construção do discurso nos levará à constituição do próprio sujeito social. Todo sujeito produz um discurso a partir de um lugar na sociedade, de uma determinada posição na estrutura social. A entrevista semi-estruturada foi a principal técnica utilizada. Essa técnica tem como característica permitir uma interação entre pesquisador e pesquisado tal que este se sinta mais à vontade para falar sobre o que é solicitado, sem a interferência freqüente do pesquisador. A intenção da utilização deste instrumento é criar estímulos para que as respostas sejam dadas em forma narrativa, abrindo espaço para a reflexão, elaboração, e ordenação própria do sujeito respondente. O recurso à memória e ao raciocínio são características desse tipo de técnica de pesquisa, o que permitirá analisar, dentro das falas dos entrevistados, as vinculações e relações efetuadas por eles sobre as experiências de vida em torno do trabalho doméstico. Assim como Rollins (1985), partilho da opinião de que aqueles que vivenciam a experiência do trabalho doméstico tem muito o que dizer, e essa fala, perpassada pela experiência, é material rico para o sociólogo. Portanto, o método qualitativo e a técnica aqui empregada buscam contemplar a dimensão da experiência na vida social. Foram executadas 14 entrevistas semi-estruturadas, sendo 7 com trabalhadoras domésticas e 7 com patroas, tomando as duplas – trabalhadora doméstica e patroa – da mesma residência. A opção de entrevistar trabalhadora doméstica e patroa da mesma residência foi muito útil para a compreensão da interação entre elas, visto que se pôde interpretar a relação de ambos os ângulos, o que enriqueceu os resultados e forneceu alternativas às abordagens anteriores que se preocuparam em investigar o serviço doméstico a partir de apenas uma das personagens que dele fazem parte. O método de amostragem utilizado foi a amostragem teórica. Segundo Flick (2004), a amostragem teórica tem por princípio básico selecionar casos ou grupos de casos de acordo com critérios concretos que digam respeito ao seu conteúdo, em vez de utilizar critérios metodológicos abstratos. A continuidade da amostragem se dá de acordo com a relevância dos casos, e não com sua representatividade. Essa técnica não se baseia nos princípios usuais de 15 amostragem estatística. A representação de uma amostra não é garantida nem pela amostragem aleatória nem pela estratificação. Ao invés disso, grupos ou indivíduos são selecionados de acordo com seu nível “esperado” de novos insights para a teoria em desenvolvimento em relação à situação da elaboração da teoria até o momento. A escolha de uma amostra, na realidade, assume possibilidades infinitas. Nessa técnica de amostragem teórica, em particular, devem ser escolhidos grupos de acordo com critérios teóricos. A limitação da amostra é dada por critérios definidos em relação à teoria, considerando o quanto o caso seguinte será promissor e qual a sua relevância para o desenvolvimento da pesquisa. O critério utilizado, de acordo com a teoria, para interromper a coleta de dados é a “saturação teórica” da categoria. O ponto de saturação é alcançado quando não mais se encontra nenhum dado adicional através do qual o pesquisador possa desenvolver propriedades da categoria, ou seja, quando não se encontra nada de novo nos dados coletados. De acordo com Flick (2004), a amostragem teórica é a forma genuína e típica da seleção de material na pesquisa qualitativa. A pesquisa foi realizada apenas com mulheres devido ao fato de aproximadamente 95% (DUTRA & MORI, 2008; BERNARDINO-COSTA, 2007; BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000; IPEA, 2008), das pessoas inseridas no trabalho doméstico remunerado serem do sexo feminino. Ou seja, é uma ocupação predominantemente feminina e feminizada. Os poucos homens integrantes da categoria ocupacional ocupam posições bem específicas como jardineiro, motorista e mordomo. Como a pesquisa visa compreender as interações mais especificamente dentro do ambiente doméstico, essas posições puderam ser excluídas sem prejuízo. Escolheu-se entrevistar, do outro lado, as patroas, porque são elas, de acordo com os estudos anteriores, quem estabelecem um contato mais direto com as trabalhadoras domésticas, que supervisionam, que dão as ordens, que observam, enfim, que se relacionam mais diretamente com as contratadas. Daí a delimitação dos sujeitos da pesquisa. O recrutamento das pessoas participantes seguiu diferentes estratégias. Desde o recurso à rede de contatos pessoais, cujos integrantes indicaram possíveis participantes, até o método “bola de neve”, no qual uma entrevistada indicou outra a ser entrevistada, e essa indicou outra, e assim por diante. As estratégias variaram e o controle de atributos como cor e ocupação das patroas foi flexibilizado justamente para captar a diversidade espontânea do contexto pesquisado. O contato inicial foi feito em certos casos com a patroa, e em outros com a trabalhadora doméstica. A primeira contactada indicava sua parceira de interação. Com o aceite de ambas, as entrevistas eram agendadas em datas, lugares e horários específicos para 16 cada uma, de forma a evitar qualquer tipo de interferência de uma no andamento e no resultado da entrevista da outra. Fizeram parte da amostra recrutada apenas aquelas trabalhadoras domésticas mensalistas que trabalhavam no mínimo cinco dias na semana. Dessa forma, a categoria chamada diarista, que presta serviços descontínuos e esporádicos, não fez parte do universo pesquisado, visto que o objetivo da pesquisa é o de compreender as relações estabelecidas continuamente no cotidiano doméstico entre as partes contratante e contratada. As entrevistas foram executadas na cidade de Goiânia, Goiás, estendendo-se também para Aparecida de Goiânia, cidade vizinha, onde moravam duas das trabalhadoras domésticas entrevistadas. A extrapolação da cidade alvo da pesquisa já era um fato esperado, haja vista que, como ocorre em todas as capitais, em geral as patroas residem nos bairros centrais ou nobres da cidade, enquanto as trabalhadoras domésticas ocupam geralmente as periferias da cidade e cidades vizinhas na região metropolitana, como foi o caso. A pesquisa apresentou algumas dificuldades, sobretudo na seleção das entrevistadas. Várias trabalhadoras domésticas e patroas ficaram com receio de conceder entrevistas, já que a metodologia previa a participação de ambas, falando sobre a mesma relação. Os temores decorreram da desconfiança de que pudesse haver algum fluxo de informações mais íntimas de trabalhadora doméstica para patroa, e vice-versa, via pesquisador, o que poderia prejudicar a relação de trabalho que, em alguns casos, já parecia ser conflituosa. É claro que o fato de o pesquisador ser do sexo masculino intimidou algumas mulheres, que preferiram não participar. Desse modo, algumas entrevistas chegaram a ser feitas, ou com a trabalhadora doméstica, ou com a patroa, porém, como a outra parte não aceitou ou desistiu de participar, a entrevista isolada não entrou diretamente na análise mais específica, ainda que tenha sido muito útil para as análises gerais das condições de vida e da relações de trabalho de patroas e de trabalhadoras domésticas. Outra questão que também se coloca são as dificuldades, já esperadas, que decorreram da execução de uma pesquisa sobre a relação entre mulheres no espaço doméstico, considerando aspectos de classe, raça e gênero, conduzida por um pesquisador do sexo masculino e negro. Certamente, a minha condição como pesquisador limitou as possibilidades de uma observação continuada da relação no espaço doméstico onde ela se desenvolve. Tentei buscar compensações para estes limites na entrevista, cobrando o máximo possível de detalhes do cotidiano da interação. Não obstante essa limitação, informações muito reveladoras puderam ser coletadas, permitindo realizar interpretações sem prejuízos significativos. A pesquisa, assim, pôde avançar sobre os aspectos da interseccionalidade que 17 fazem parte da estruturação e recriação cotidiana das relações entre patroas e trabalhadoras domésticas. IV. Plano da dissertação O estudo das relações entre trabalhadoras domésticas e patroas se inicia com o resgate das características principais do trabalho doméstico nos moldes escravocratas, presentes na historiografia que cobre principalmente o século XIX, e da integração do negro à sociedade capitalista e republicana na primeira metade do século XX. Em seguida, o trabalho do negro depois da Abolição, sobretudo o trabalho doméstico, será analisado considerando as contribuições das teses de Gilberto Freyre, Florestan Fernandes. Na seção seguinte, será desenvolvida uma revisão dos resultados dos estudos mais recentes sobre o trabalho doméstico, seus sujeitos e relações. Na quarta seção terão lugar os direitos das trabalhadoras domésticas até agora conquistados, e os que ainda faltam para que ela alcance o status de cidadão dos demais trabalhadores. A quinta e última seção busca uma síntese sobre a relação entre trabalho e subalternidade. No segundo capítulo, o objetivo é discutir a relação entre as noções de identidade, diferença e desigualdade a partir do ponto de vista de diferentes abordagens teóricas. Essa discussão enriquecerá o quadro teórico-conceitual da interseccionalidade e articulação entre gênero, raça e classe, que será apresentado no capítulo seguinte. A primeira seção visa justificar a importância da compreensão da identidade na relação em foco. A segunda sessão considera a importância da identidade para a resolução de problemas fundamentais da sociologia, como a cisão entre individuo e sociedade na maioria das análises. Na seção seguinte, o objetivo é abraçar uma noção não-essencialista das identidades, tomando partido dela no presente trabalho. Na quarta seção apresentamos a noção de identidade e diferença dos estudos culturais, na quinta seção apresentamos a versão relacional da identidade no interacionismo simbólico para, então, na última parte, proceder a uma síntese das duas abordagens, com o objetivo de fundamentar metodologicamente o estudo qualitativo dos processos de diferenciação e identificação que se busca compreender. O terceiro capítulo se inicia com a discussão do conceito de interseccionalidade e sua utilidade para pensar a relação entre trabalhadoras domésticas e patroas. A segunda parte esclarece a noção de intersecção nas suas determinações de classe, raça e gênero. As seções 18 seguintes se dedicam à análise dos dados qualitativos coletados, primeiro sobre as trabalhadoras domésticas, depois sobe as patroas, depois sobre a dinâmica complexa dessa interação. Para fechar o terceiro capítulo, retoma-se a vinculação entre interseccionalidade e desigualdade. A partir da problematização dos conceitos de raça, classe e gênero, noções centrais para a teoria social na atualidade. A conclusão não traz respostas definitivas, mas sim algumas constatações que podem apontar para questões novas que dizem respeito tanto às estruturas da nossa sociedade quanto às situações de interação mais próximas. CAPÍTULO 1 – O SERVIÇO DOMÉSTICO, ONTEM E HOJE, NO BRASIL 19 1.1 O legado da escravidão O sistema escravista de organização da sociedade sob o qual o Brasil se desenvolveu durante séculos inevitavelmente deixou marcas para além de seus limites históricos. O seu legado seguiu, no período pós-abolição, influenciando mais ou menos diversas configurações relacionais, dentre elas as relações de prestação de serviço doméstico. Até hoje, no domínio das representações, o trabalho doméstico remunerado é relacionado ao trabalho escravo, desempenhado pela escrava negra, cujo ícone é a figura da mucama, da preta velha e gorda, habilidosa na cozinha e carinhosa no cuidado com as crianças e com a casa. Essa figura é recorrente na literatura sobre escravidão no Brasil. Embora não seja objetivo deste trabalho fazer uma revisão da literatura sobre a escravidão no Brasil, considero importante contextualizar o trabalho doméstico executado no contexto escravocrata para esclarecer continuidades e rupturas que hoje se encontram presentes na relação abordada. Espera-se, assim, compreender algumas das características dessa atividade no atual contexto, que ainda hoje influenciam a compreensão e interpretação das relações entre trabalhadoras domésticas e seus empregadores. O trabalho doméstico é uma ocupação bastante antiga no Brasil e as relações sociais e situações que envolviam seus agentes ao longo do período de escravidão são intrinsecamente relacionadas à estrutura da sociedade escravocrata e à condição dos negros nessa sociedade. Por isso, esse capítulo começa com a reconstrução das condições do elemento negro na sociedade brasileira no período que vai do início do século XIX, cobrindo o período PósAbolição, até a metade do século XX para tentar compreender as continuidades e rupturas nas relações de trabalho, sobretudo no trabalho doméstico, após a conquista do status “livre” por parte dos negros. De acordo com Costa (1998), o regime de escravidão deixou heranças culturais e sociais. Após a abolição, restou o problema da integração do negro na nova ordem social e a conquista do status de homem livre. O fim do escravismo exigia a reelaboração da autoconcepção de status por parte dos negros e mestiços, a formação de novos ideais e padrões de comportamentos, além de uma mudança de comportamento do homem branco diante do negro livre. Entretanto, a mudança legal não implicou uma mudança automática de valores. Os negros permaneceram em uma situação de dependência econômica e as representações racistas só muito lentamente vêm mudando. Sobreviveram representações e estereótipos 20 associados à cor e às diferenças raciais forjadas no tempo da escravidão, como a afirmação da inferioridade mental, moral e social do negro. Assim, os significados que a cor e a diferença racial tinham no regime escravista continuaram oferecendo as bases para padrões de ajustamento inter-racial. Tipos de controle social que só tinham sentido na escravidão continuaram a vigorar mesmo após a abolição, ainda que em um contexto econômico diferente. Como mostra Mattoso (1982), o negro africano trazido à força para o Brasil durante a colonização passava por uma profunda despersonalização. Tratado como um animal de carga, era capturado, vendido, alugado, usado como uma ferramenta, enfim, tratado como um objeto ou animal qualquer, sem alma ou espírito, sem cultura ou saber. Inserido forçosamente na colônia, reconquistava aos poucos parte da personalidade perdida, se adaptando de forma muito precária diante das mais variadas e rígidas limitações que a sociedade colonial impunha. A ruptura de personalidade e a “dessocialização” a que era submetido o escravo implicava a interdição a qualquer personalidade jurídica ou pública. Ele não adentrava uma função definida no modo de produção, mas ocupava as mais variadas posições das quais dependiam a própria existência do senhor e de sua família. O senhor precisava mais do escravo do que o escravo do senhor, mas, ainda assim, era este quem ditava as regras dessa relação. A abissal inferioridade do escravo em relação ao seu senhor era juridicamente sacramentada. O escravo não podia dispor sobre si mesmo. Por isso, sua sobrevivência dependia da aceitação de seu papel, ainda que de maneira aparente e superficial, e da sua obediência e lealdade ao senhor. Desse modo, o negro se inseriu de forma completamente subalterna no mundo dos brancos e as tensões dessa integração contraditória o levaram a aceitar seu papel subordinado. Apesar do caráter desumano dessa forma de organização da vida social, os senhores, mais cedo ou mais tarde, reconheciam que os escravos também eram seres humanos com os quais eles inevitavelmente iriam construir relações de intimidade. Assim, a inserção do escravo e sua aceitação no mundo dos homens livres dependiam dos resultados que seu trabalho rendesse em termos não só de produtividade, mas também de lealdade, fidelidade e obediência. Esses fatores eram os constituintes da identidade do “bom escravo”, que poderia ser formada de maneira suave ou violenta (MATTOSO, 1982; GRAHAN, 1992). Para o escravo recém chegado da África, havia uma dupla exigência de adaptação, tanto em relação à sociedade dominante, quanto em relação aos semelhantes escravos. De ambas dependia sua identidade, e a segunda adaptação era tão difícil quanto a primeira. Primeiro, pela barreira da diferença de idioma e religião. Segundo, porque o casamento entre 21 escravos era mal visto ou mesmo proibido em alguns lugares. Considerando-se o número muito superior de homens escravos em relação ao de mulheres escravas, a família não se constituiu como uma unidade de integração e construção da identidade do negro. Essa relação de proximidade, afetividade e amizade era mais procurada – e frequentemente mais bem sucedida – nas relações de vizinhança, nas confrarias, no grupo de trabalho, na religião e no lazer. Os crioulos1, criados na família do senhor, eram fortemente marcados pelos valores dos brancos. Eles tinham maiores problemas de integração e adaptação: por um lado, não eram brancos, pois eram filhos de escravos negros ou mestiços; por outro lado, eram socializados nos valores e na moral dos brancos. Assim, os crioulos eram objeto de contradição, porque os brancos esperavam muito mais deles do que do negro importado da África, e, por isso, exigiam e pressionavam-no muito mais do que qualquer branco. De outro lado, mesmo sendo negros ou mestiços, tinham dificuldade de se integrar aos demais escravos, em decorrência de seus valores e formas de pensar e agir aprendidos a partir da ótica do senhor. Dessa forma, o crioulo, mais ainda do que o negro, era forçado a uma dupla adaptação. Ainda de acordo com Mattoso (1982), a obediência, no contexto do trabalho escravo, se mostrava não como uma alternativa, mas como uma necessidade. Contudo, essa necessidade surgia de maneira diferente conforme o contexto, se no campo ou na cidade. A obediência dependia do trabalho que era executado. Os escravos foram trazidos à força primeiramente para o trabalho ao redor da cana-de-açúcar no ambiente rural. A estrutura produtiva do engenho exigia uma organização racional, mas reduzida a poucas posições na cadeia produtiva. Assim, o escravo estava cercado de perto por um forte sistema de dominação e controle adaptado às necessidades de exploração. Nesse sistema, o proprietário tinha o controle quase total e o escravo não passava de uma ferramenta, sobrando uma margem de mobilidade social muito próxima de zero. Já nas minas, as relações entre senhores e escravos, brancos e negros, eram menos rígidas, permitindo confraternizações. Fortuna feita ou esgotados os recursos e o solo, o explorador vendia seus escravos ou vendia a eles a liberdade. Nesse contexto, muitos escravos se tornaram libertos, chegando às vezes a se associarem livremente aos brancos. Havia uma maior possibilidade de mobilidade, podendo o negro ascender em uma estrutura social mais fluida. Nas cidades grandes, a sociabilidade urbana era menos dicotomizada. Nela se concentravam as atividades comerciais, os serviços produtivos e pessoais e a administração 1 O termo crioulo assume dois sentidos na bibliografia sobre a escravidão nas Américas. Quando referido ao colonizador, sobretudo espanhol, o termo designa o branco nascido na colônia. Aqui, emprega-se o segundo sentido, mais popular no Brasil, que designa os escravos nascidos no Brasil, mestiços ou não, que falavam português e eram criados na família do senhor e educados segundo os valores da família branca. 22 pública. Os escravos eram destinados às atividades mais vis, sujas, rejeitadas pelos homens brancos que não queriam se “sujar” ou “rebaixar” executando serviços manuais. Mas ainda assim havia possibilidades – pequenas – de mobilidade. Na cidade vivia um grande contingente de pessoas que não eram nem escravos, nem proprietários, nem funcionários públicos, nem comerciantes, constituindo uma camada intermediária bastante heterogênea, o que facilitava a mobilidade social. O escravo urbano era mais independente que o escravo rural. Não era raro os senhores alugarem seus escravos e estes passarem longo tempo trabalhando bem longe, o que permitia uma maior circulação pela cidade e o estabelecimento de vínculos com seus semelhantes (COSTA, 1998; MATTOSO, 1982). Os privilégios recebidos pelos escravos urbanos “da rua” se aproximavam dos recebidos pelos escravos domésticos, o que não os eximia da necessidade de obediência. A literatura mostra que os escravos domésticos eram, dentre todos os escravos – na zona rural, urbana, nas minas, etc. – os “mais bem tratados”. Eram escolhidos a dedo pelos seus senhores, que buscavam neles características que os assemelhassem o quanto possível aos brancos, já que era com eles que os senhores, e principalmente as senhoras e os filhos, passariam a maior parte do tempo. Contudo, as exigências impostas a esses escravos e escravas não eram menores. Suas jornadas de trabalho costumavam ser maiores que as dos demais escravos – apesar de seu trabalho ser menos árduo –, executavam jornada dupla na residência e nas ruas comercializando quitutes e artesanatos, e a intimidade e a proximidade com a família do senhor supunha inevitavelmente um maior controle e vigilância do trabalho e exigia maior obediência e fidelidade. Falou-se muito que os senhores escolhiam para seu serviço pessoal os escravos próximos do modelo branco, os nascidos no Brasil, por vezes na própria família do proprietário, nela nascidos e educados, os criados, vale dizer, literalmente „criados‟ e moldados na casa grande. Quando se trata de vendê-los, os senhores não economizam elogios às suas qualidades e os periódicos os descrevem em seus anúncios como indivíduos estimáveis e capazes. Além disso, os escravos domésticos tornam-se facilmente indispensáveis aos seus senhores, aos quais se devotam cotidianamente ou lhes proporcionam o fruto do trabalho que executa fora, além das tarefas da casa. Grande número de escravos domésticos saem com seus tabuleiros de doces e rendas que vendem nas ruas para o senhor, proporcionando-lhe lucros suplementares não-desprezíveis. Mas nem tudo é idílico na vida do escravo, sempre debaixo do olho do senhor, sempre controlado e vigiado. Para que possa esperar subir na escala social e finalmente obter sua liberdade, o escravo doméstico, mais que qualquer outro, deve praticar a obediência, a humildade e a fidelidade, virtudes cardeais do “bom escravo” nos termos em que o senhor o modela (MATTOSO, 1982, p. 111). Como mostra a autora nessa passagem, a obediência e fidelidade do escravo não se deviam apenas à vigilância e à ameaça da violência, como um instinto de sobrevivência. A obediência, além de necessária, era vista também como uma possibilidade de ascensão social. 23 Diante da inferioridade legitimada pela lei e pelos costumes, tanto no campo quanto na cidade, ao escravo negro restava como única possibilidade de subir na escala social a adoção de valores da sociedade branca. Oferecendo obediência, lealdade e disciplina ao seu senhor, ele alimentava a possibilidade de receber em troca privilégios que o permitisse alcançar uma posição melhor, ainda que minimamente superior a que ele se encontrava. A obediência, assim como a dedicação ao trabalho e a aceitação da religião do branco, era uma moeda de troca. Os escravos domésticos, vivendo mais perto do seu senhor, tinham mais chance de aprender a língua e adquirir outras possibilidades que facilitariam a sua alforria. Entretanto, para merecer um falacioso privilégio de viver na intimidade do senhor, o escravo deveria estar à disposição dia e noite. Teria que ficar longe da vida comunitária do “mundo negro” para evitar o trânsito de informações e dificultar rebeliões ou revoltas. Em compensação, era mais bem vestido, morava melhor, tinha oportunidade de aprender a língua e desempenhava um trabalho menos pesado que o escravo da cidade ou do campo. Ou seja, tornava-se quase um branco, uma legítima cria, daí a nomenclatura criado (MATTOSO, 1982). Mas, ainda que não pudesse participar da vida comunitária com seus irmãos negros, o escravo doméstico nutria um forte sentimento de pertença à sua “raça”, trafegando – com dificuldade – pelos dois mundos. Eram discriminados por seus semelhantes em função de seus valores brancos. Mas com freqüência usavam a astúcia e a mentira para tentar agradar ao senhor e se integrar no grupo negro ao mesmo tempo. A literatura não é consensual a respeito dos castigos corporais aplicados aos escravos, principalmente os escravos domésticos. Mas, ao que parece, as flagelações corporais não eram usuais ou freqüentes. Freyre (2000) reitera a personalidade sádica dos senhores, mas ao mesmo tempo defende que a convivência entre negros escravos e brancos eram marcadas também pela afetividade. Outros autores negam completamente a existência de afetividade e respeito entre senhores e escravos, enquanto outros ainda defendem que as agressões eram raras. Tudo indica que os senhores preferiam conquistar primeiro a afetividade e a anuência de seus escravos, já que a utilização da violência de modo freqüente tendia a gerar revolta entre os agredidos. Com certeza houve muitos senhores sádicos, mas o primeiro recurso era a persuasão, ficando o castigo físico para o último caso. A sociedade escravista brasileira, por mais rígida que fosse, sempre deixava brechas para a insubordinação pontual. As regras que moviam as relações entre senhores e escravos, em dados momentos, poderiam ser parcialmente recusadas pelos escravos. Os cativos não poderiam, claro, recusá-las por inteiro, pois lhes restaria o castigo físico ou a morte. Mas eles frequentemente adaptavam as regras (MATTOSO, 1992; COSTA, 1998; KARASCH, 2000). 24 A criança negra escravizada ocupava a parte inferior da pirâmide social. Sua socialização e aprendizado no trabalho doméstico eram tão cruéis quanto o trabalho no campo ou na cidade. Além do senhor e da senhora, submetia-se a todos os escravos encarregados de sua formação. Era-lhe inculcada a ideologia da obediência e disciplina para que pudesse, quem sabe, ascender socialmente e talvez comprar sua liberdade ou ganhá-la em troca dos bons serviços prestados. Se não, seria relegada à multidão de trabalhadores braçais, levando uma vida extremamente dura e sem esperança. De maneira bastante detalhada, Mattoso (1982) mostra como as relações entre senhor e escravo eram fundamentadas em uma desconfiança recíproca, mas esse embate era sempre desigual. Se, de um lado, o senhor tinha a seu favor a lei e o poder de vida e morte sobre o escravo, este por sua vez tinha suas armas que se mostravam frequentemente eficazes, como a possibilidade de minar lentamente a autoridade do senhor, de sabotar suas ordens, de prejudicar sutilmente a organização da produção, furtando alimentos, roupas, dinheiro, mercadorias, ou o próprio desmazelo, lentidão proposital, trapaças, fugas, suicídio. Essas formas de resistência, na sua maioria, coexistiam com a humildade e a obediência do escravo, ou pelo menos não faziam alarde maior. O escravo não era um simples elemento passivo da ordem social. Exercia cotidianamente a resistência que lhe parecia possível, tentando não colocar sua vida diante de um risco maior do que o que a própria condição de escravo já lhe impunha. Essa resistência sutil, muda e contínua era recorrente entre os escravos domésticos. O trabalho, se realizado de forma eficaz, criava um espaço de liberdade, relaxando relativamente a vigilância do senhor. Mas a vida do trabalho geralmente não era suficiente para suprir as necessidades psíquicas dos escravos, que buscavam outros refúgios como as confrarias e irmandades, que derrubavam as fronteiras étnicas entre os escravos das mais diversas origens e permitiam a contestação ao sistema. Dentre as formas de resistência, as mais expressivas e temidas eram as fugas em massa e rebeliões. Não havia apenas senhores brancos e ricos. Eles estavam distribuídos em diversas classes sociais e podiam ser “mulatos”, mestiços e mesmo negros. Ao contrário do que se poderia esperar, o fato de um negro ou mulato se assenhorear de outro negro ou mulato para seus serviços pessoais não garantia nenhum tipo de solidariedade. Independente de sua condição de classe e cor, para o escravo o senhor era sempre branco, pois “ser branco” na sociedade brasileira era adotar certas atitudes de dominação e exercer certo poder. Parecia pouco provável uma relação de solidariedade entre senhor e escravo. Ainda que não se negue o fato, há certamente uma polêmica a respeito da tese sobre os “senhores negros”. Tal tese gera dúvidas sobre qual sistema teve proeminência no Brasil, se o sistema social ou racial. 25 Mas, de qualquer forma, o “ser negro” não garantia por si só a solidariedade entre os escravos. Mattoso (1982) transcreve essa estrofe cantada com raiva pelos escravos: Branco diz que preto furta, Preto furta com razão, Sinhô branco também furta, Quando faz a escravidão. A vida do escravo era marcada por uma hierarquia ambígua e por uma dupla moral. Mas, mesmo diante da ambigüidade, o escravo não tinha escolha. Por outro lado, não poderia acomodar-se se pretendia ascender socialmente. Somente através da alforria o escravo experimentava a liberdade. Por isso, dedicava-se com astúcia a ser obediente e humilde para conseguir se libertar. Na verdade, poucos escravos conseguiam se tornar livres, porque a libertação dependia da vontade do senhor. Os que eram mais comumente libertados eram os que já haviam remunerado com sobras o capital investido em si e demonstravam merecimento pelos serviços prestados, também aqueles que apresentavam perigo para a organização do grupo e a integridade do senhor e aqueles que já não tinham saúde para trabalhar. Alguns senhores alforriavam os escravos com a condição de que continuassem trabalhando para eles. Isso era especialmente freqüente entre os escravos domésticos. Os escravos domésticos, os da cidade e os da mina tinham mais chance de conseguir a alforria, mas em troca disso continuavam devendo obediência ao senhor. Assim, a alforria quase sempre era uma armadilha. Aproximadamente 70% das concessões de liberdade dependiam de pagamento ou eram submetidas a cláusulas restritivas. A carta de alforria, assim, era um ato mais comercial do que caridoso (MATTOSO, 1982; COSTA, 1998). Os escravos domésticos tinham, sem dúvida, mais oportunidades de conseguir a alforria porque eram os que mais se dedicavam ao senhor e os que tinham mais oportunidades de aprender as regras dos brancos. Essas alforrias dizem muito sobre o paternalismo moralizador, mais interesseiro do que generoso, que parece persistir até hoje como marca singular da relação entre trabalhadoras domésticas e patroas. Os escravos domésticos que conseguiam comprar sua alforria mais rapidamente eram aqueles que desempenhavam serviços nas ruas, como “escravos de ganho”, cuja remuneração era dividida com o senhor. Entretanto, o escravo não tinha o direito de dispor livremente do que ganhava, salvo heranças. Isto demonstra a forma do paternalismo e da tutela à qual eram submetidos os escravos. Sua alforria nunca era um empreendimento solitário, mas o resultado do estabelecimento bem sucedido de uma rede de solidariedade e troca de favores e conveniências. As cartas de 26 alforria eram um reflexo das mentalidades dos senhores. Não resultavam automaticamente em liberdade, já que um alforriado quase nunca era tratado como igual na sociedade. Ser libertado sob condições era ser escravo de certa forma. Mas a liberdade prometida se tornava uma possibilidade real pelo menos para os filhos do liberto. Eram recorrentes os casos em que o liberto pagava sua liberdade com prestação de serviços domésticos por longos anos a outro empregador, credor de seu senhor, ou a seu próprio ex-senhor. O negro escravo, principalmente o escravo doméstico, nunca foi um personagem simplesmente passivo da história da escravidão. Aceitação e submissão eram táticas que faziam parte de uma dialética na qual o cativo encontrava respostas para os problemas de sua vida dupla, de sua dupla consciência (MATTOSO, 1982; FERNANDES, 1965). Na sociedade escravocrata brasileira, de um modo geral, a ideologia do embranquecimento ganhou uma força surpreendente. Por um lado, buscava-se “purificar o sangue” e, por outro, apropriar-se do “novo branco” – o mestiço – fazendo-o romper os laços com seus semelhantes e com sua cultura africana. As escravas domésticas, já escolhidas entre todas as escravas por sua semelhança e proximidade com a raça branca, eram as que estavam mais expostas ao ímpeto da homogeneização racial. Essa ideologia conduziu a profundas contradições mesmo no interior dos grupos negros e mestiços. Como pobreza e negritude passaram a ser sinônimos, o embranquecimento tornou-se o único meio de ascensão social, e tornar-se branco era, antes de tudo, aderir aos valores brancos. Daí a animosidade entre negros e mestiços, entre escravos e forros. Freyre (2000) defende a tese de que a miscigenação existente no Brasil colonial contribuiu para diminuir a distância social entre o negro e o branco que, de outro modo, teria dificultado ainda mais ou impossibilitado a convivência “pacífica”. As condições que levaram a essa miscigenação, segundo o autor, foram o sistema de produção baseado na monocultura latifundiária – que exigia o modo escravista de organização da sociedade – e a escassez de mulheres brancas entre os conquistadores. A miscigenação se deu sem impedir que se construíssem hierarquias entre os brancos e os negros, atuando apenas no sentido de “amolecê-la”. Os senhores, demonstrando forte inclinação ao sadismo, viram na escrava passiva – tanto a indígena quanto a africana – a possibilidade de aumentar a sua prole e consolidar a dominação. Além desses fatores condicionantes, Freyre afirma que a miscigenação foi possibilitada ainda pelo fato de que as desigualdades se baseavam mais no exclusivismo religioso do português do que em uma “consciência da raça”, o que se reforçaria pela inclinação histórica do português decorrente de seu passado étnico e cultural de povo intermediário entre a África e a Europa. Daí a “plasticidade” e a “flexibilidade” do 27 colonizador português que, segundo Holanda (1995), estariam presentes nas “raízes do Brasil”. Tal interpretação, equivocada sob o ponto de vista aqui defendido, levou à crença tanto numa “democracia racial” quanto no mito do “bom senhor”, como veremos mais adiante. Freyre (2000) destaca que no Brasil funcionou o ditado “Branca pra casar, mulata pra f..., preta pra trabalhar” (p.87). Para o autor, isto revela a superioridade da mulher branca face à preta, mas também a preferência sexual pela “mulata” que, aliás, foi sempre exaltada como símbolo de beleza. Além da atração pela mulher “mulata”, o autor deixa de perceber (ou de mencionar) sua desvalorização moral e social presente nessa preferência, já que o homem branco via na “mulata” não somente as curvas de seu corpo, mas também a imagem da mulher “fácil”, com a qual o intercurso sexual estaria sempre facilmente disponível. No interior de uma seleção racial, as “mulatas” eram as mais frequentemente escolhidas para o trabalho doméstico, ficando mais expostas às investidas libidinosas dos senhores. As relações entre brancos e negros, especialmente entre senhores e escravos domésticos, segundo Freyre (2000), seriam marcadas pelo sadismo do senhor e pelo masoquismo do escravo. Esse sadismo de conquistador sobre conquistado, de senhor contra escravo, se ligava à circunstância econômica e social de nossa formação patriarcal, que fazia da mulher uma vítima do domínio e abuso do homem, reprimida sexual e socialmente pelo pai, pelo marido e pela sociedade como um todo. Era freqüente o sadismo da mulher branca para com os escravos, sobretudo com a escrava doméstica negra, quase sempre por ciúme ou inveja sexual. Esse sadismo do senhor e o masoquismo do escravo iriam além da vida doméstica, fazendo-se sentir nos planos social e político, em forma de comportamento político autoritário e mandonismo. Entretanto, se do ponto de vista descritivo Freyre avança, mostrando detalhes empíricos importantes, deixa a desejar na interpretação. O masoquismo do escravo, que aparece em seu argumento como uma “inclinação volitiva” no comportamento do negro, não é senão a consciência – ainda que fragmentada – do negro de que sua integridade física dependia da sua obediência, inclusive às ordens que colocavam sua própria vida em risco, ainda que totalmente contra a sua vontade (MATTOSO, 1982; GRAHAN, 1992). A interpretação enviesada de Freyre (2000) alcança a sua mais forte expressão na afirmação de que a intercomunicação e a fusão racial no Brasil se deram de maneira harmoniosa. Mesmo admitindo a enorme desigualdade, o autor insiste que não se pode acusar a sociedade brasileira de rígida ou fechada no que diz respeito à mobilidade social vertical, sendo este país “um dos mais democráticos, flexíveis e plásticos” (p.123). Tal afirmação 28 reforçou a idéia da existência de uma “democracia racial no Brasil”, sustentada por outra idéia correlata, a idéia que funda o mito do “bom senhor”, de que as relações entre senhor e escravo no Brasil, diferentemente de outros países, seriam pautadas mais por uma inclinação solidária e amistosa do que pela oposição hierárquica e violenta (BERNARDINO-COSTA, 2007, 2002). Tais mitos mascararam o ideal de “embranquecimento” inerente à miscigenação no Brasil. A interpretação de Freyre (2000) se tornou a interpretação hegemônica do Brasil, que teve vigência durante muito tempo e até hoje manifesta seus resquícios. Tal interpretação cria uma representação do Brasil a partir da casa-grande e da senzala – que, segundo ele, seria a unidade de entendimento do Brasil – que permite visualizar de forma mítica as trabalhadoras domésticas e a divisão sexual e racial do trabalho. Freyre, como sabemos, sintetizou tais idéias sob o comprometimento com a construção de um projeto de nação. Segundo a sua teoria, brancos e negros estavam hierarquicamente integrados na casa-grande e senzala, complementando-se. Essa integração revelaria o caráter democrático do sistema social, tanto do ponto de vista econômico quanto racial, que garantiria a possibilidade de mobilidade social dos negros e pobres. A ascensão se daria pela miscigenação, pelo “branqueamento”, cujo produto é o “mulato”, filho bastardo do encontro entre o senhor de engenho e a mucama. Nesse sistema social, a escrava doméstica seria superior à escrava da senzala. Assim, misturadas as raças, se construiria a narrativa da “democracia racial”, onde a raça deixaria de ser o elemento significativo para a ascensão social das pessoas, dando lugar ao mérito. A intimidade entre elementos opostos implicaria as relações sociais no Brasil colonial. Também o equilíbrio de antagonismos e a harmonia de culturas marcariam o período “pós-escravidão”. O resultado disso tudo, segundo Freyre, seria a formação de uma sociedade plástica, flexível e democrática, caracterizada pela afetividade e comunicação entre raças e culturas, sendo uma sociedade onde as relações raciais seriam singulares se comparadas com as de outros países, como Estados Unidos ou África do Sul. Isso não significa que a desigualdade e o conflito estariam fora das relações. Certo sado-masoquismo, segundo o autor, seria marca das relações possíveis. Contudo, nesse argumento, o conflito, a exploração, a violência simbólica e o próprio sado-masoquismo são camuflados em prol de uma interpretação que harmoniza os pólos discordantes e condena toda interpretação baseada na violência, o que mancharia o nacionalismo que se queria criar à época (BERNARDINO-COSTA, 2007, 2002). O mito da “democracia racial” e o “ideal de embranquecimento” deram origem a uma realidade social na qual a discussão sobre a realidade da população negra foi considerada desnecessária, indesejável e mesmo condenável, sob a acusação de ser também racista. A 29 recusa em reconhecer essa realidade racial fez do Brasil uma das sociedades mais preconceituosas do mundo (Bernardino-Costa, 2002). Diversos leitores de Freyre creditam essa interpretação ao compromisso do autor com a construção de uma identidade nacional mais homogênea e integradora, necessária à difusão da ideologia política do Estado Novo. Diversos autores também concordam com as conseqüências negativas da disseminação desses mitos raciais e das conseqüências práticas que eles adquiriram na vida cotidiana da população brasileira, até mesmo entre a população negra (FERNANDES, 1965; SKIDMORE, 1976; MATTOSO, 1982; COSTA, 1998; BERNARDINO-COSTA, 2002). No argumento de Fernandes (1965), a homologia entre a estrutura social e a estrutura racial deixava claras as possibilidades disponíveis para cada raça. Mas ainda assim, não foi obstruída a representação ilusória que conferiu à relação entre brancos e negros o caráter de uma democracia racial, que permitia atribuir a incapacidade do negro aos dramas humanos da população de cor da cidade, isentando o branco de qualquer responsabilidade pela espoliação e deterioração progressiva da condição do negro após a Abolição, formando uma falsa consciência da realidade racial brasileira. Como consequência dessa idéia, fortaleceram-se as idéias de que o negro não tem problemas no Brasil, de que não existem distinções de raças entre nós, que as oportunidades de acumulação de riqueza, prestígio e poder foram as mesmas para todos, que o povo preto estava satisfeito com a vida que leva. Assim, o mito da democracia racial contribuiu para a inércia social, perpetuando os esquemas de ordenação das relações sociais do passado e os privilégios dos grupos sociais dominantes, que mantinham sua distância para com os demais grupos da sociedade. Em vez de ser um elemento de dinamização, foi um elemento de estancamento, de estagnação. A democracia racial fez parecer que a desigualdade entre negros e brancos era uma desigualdade apenas de classe e não de raça. Porém, se os negros não puderam nem adentrar de imediato na estrutura de classes que então se desenvolvia no Brasil no início do século XX, a desigualdade não poderia ser vista apenas em termos classistas (FERNANDES, 2000). Para Freyre (1968) o sistema casa-grande/senzala alcançou, em alguns pontos, um nível avançado de acomodação do escravo ao senhor, do preto ao branco, do filho ao pai, da mulher ao marido. Quando a paisagem começou a se alterar, no sentido das casas grandes se urbanizarem em sobrados mais sofisticados e as senzalas se reduzirem a mucambos ou a quartos de empregada, aquela acomodação quebrou-se e novas relações de subordinação e novas distâncias sociais começaram a desenvolver-se entre ricos e pobres, brancos e pretos, entre as casas grandes e as menores. Uma relação de poder que, apesar de diferente, continuava a ser dominada pelos homens ricos e brancos, em detrimentos das mulheres, dos 30 pobres e dos negros. As trabalhadoras domésticas, ou as “criadas de servir” – nomenclatura típica da época – seriam o elo principal que ainda vincularia o elemento negro ao branco, agora separados em centro e periferia pelos processos de urbanização. De acordo com Fernandes (1965), em seu estudo sobre a integração do negro na sociedade de classes em São Paulo, a desagregação do regime senhorial e escravista operouse, na sociedade Brasileira, sem que se cercassem os antigos agentes do trabalho escravo de garantias e assistência que os protegessem e integrassem na transição para o trabalho livre. Os antigos senhores de escravos se eximiram da proteção sobre os libertos, e nem o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumiram responsabilidades sobre a preparação dos negros para o novo regime de trabalho. O liberto viu-se convertido em senhor de si mesmo, responsável por sua família, embora não dispusesse de meios materiais para isso. A Abolição, portanto, transformou-se em uma cruel espoliação. A preocupação do senhor com o escravo sempre esteve ligada ao controle e organização do trabalho. Com a Abolição, a atenção dos senhores volta-se para a proteção de seus próprios interesses face à ameaça da nova condição dos negros. No conjunto, as próprias condições psicossociais e econômicas que fundaram a ordem social competitiva tornaram-se impróprias e perigosas para a massa de libertos. De outro lado, as limitações introduzidas em suas personalidades pela escravidão impediam seu ajustamento à nova vida urbana. Para Fernandes (1965), sem garantias e reparações materiais e morais, a Abolição equivalia à condenação e à eliminação do negro do mercado competitivo do trabalho, ou, no mínimo, ao aviltamento de sua condição, como agente potencial do trabalho livre, e o desajustamento ocupacional e social. As condições em que se processou a Abolição não permitiram que os negros fomentassem uma consciência coletiva que os possibilitasse se posicionar racionalmente na direção da consolidação de um lugar decente na sociedade de classes. Além disso, em todos os lugares, tinham de enfrentar a concorrência com o branco imigrante e com o branco nacional, mais preparados psicossocialmente para o trabalho assalariado nos moldes do novo regime. Tudo contribuía para aumentar a insegurança e a ansiedade do elemento negro. As oportunidades de engajamento no trabalho agrícola ou urbano representavam, para o negro, uma nova degradação. O regime escravista não preparou o negro para agir como um trabalhador livre. Preparou-o apenas para cumprir uma rede de ocupações e serviços os quais os agentes brancos recusavam. A escravidão deformou o seu agente de trabalho, impedindo que o negro e o mestiço tivessem plenas possibilidades de colher os frutos da universalização do trabalho livre em condições de competição com os brancos. Deformou também o próprio trabalho 31 manual, tido cada vez mais como sujo e indigno. O colono branco, por sua vez, foi o agente do trabalho livre assalariado, da transplantação de novas atitudes e mentalidade econômica, da acumulação e poupança capitalistas. Ao perderem a posição de principal agente do trabalho mecânico, o negro e o mestiço perderam as oportunidades de participar de forma vantajosa das relações de produção e da distribuição de renda. Entre os negros, a mulher encontrou maior facilidade de ajustamento no trabalho livre. De um lado, no regime escravocrata, os serviços domésticos – sobretudo nas zonas urbanas – não envolviam a mesma degradação física do seu agente do eito, na zona rural. O serviço doméstico forçava um maior contato permanente com os brancos e facilitava as relações paternalistas tradicionais. Assim, várias condições favoreciam a estabilidade da mulher negra, enquanto serviçal doméstica. De outro lado, a concorrência com o estrangeiro não assumiu proporções tão dramáticas nessa área. Por sua integração à rede de serviços urbanos, é a mulher negra – e não o homem negro – que vai ocupar uma posição privilegiada no trabalho, não pela sua recompensa, mas por sua estabilidade, exercendo essa atividade como um meio de vida. Mas essa “vantagem” do trabalho doméstico não se estendeu para outras ocupações. A participação marginal nos papéis socioeconômicos de real importância estratégica excluía o negro como agente do crescimento urbano. Essa exclusão, por sua vez, acentuou o isolamento econômico, social e cultural do negro, aumentando sua dependência e o seu apego à uma herança cultural desvantajosa (FERNANDES, 1965). Dentre os trabalhos mais executados pelos negros no meio urbano pós-Abolição estavam: ajudante de pedreiro, pedreiro, biscateiro, criadas domésticas, camareiras, vendedores ambulantes, carpinteiros, marceneiros, pintores. Mesmo os serviços menores, mas que oferecessem perspectivas lucrativas, como peixeiro, jornaleiro, sapateiro, eram feitos pelos imigrantes. Com freqüência, negros eram obrigados a trabalhar para italianos em condições precárias. As vantagens de se trabalhar como criada doméstica no meio urbano, para além das destacadas acima, estavam na possibilidade de receber roupas, utensílios e objetos usados de seus patrões, além da possível indicação e recomendação para um emprego melhor. Os escravos que saíram do eito sofreram muito com a Abolição e a fixação na cidade, em função da pauperização e do abandono. Os negros vindos da casa-grande frequentemente desprezavam os negros que viviam em piores condições e que não possuíam seus ideais. Sentiam-se chocados com o modo “largado” de viver de seus semelhantes. E esse distanciamento cultural gerava certos atritos entre negros. Apenas uma pequena parcela apresentava comportamento inconformista, tentando forjar uma consciência que se inclinasse 32 para os interesses econômicos, sociais e políticos do negro. Os trabalhadores domésticos, pelo contato que mantinham com os patrões brancos, preferiam não bater de frente com eles. A cidade em si, segundo Fernandes (1965), não foi especialmente desumana e hostil ao negro. Ela repeliu o escravo e o liberto, por não possuírem os atributos psicossociais requeridos para a organização social do comportamento livre. Dessa forma, a questão não é simplesmente racial, mas também se liga intrinsecamente à classe e ao contexto histórico de transição do modo de produção. O isolamento econômico, social, e cultural do negro, com suas consequências, foi o produto natural de sua incapacidade relativa de agir como homem livre. As condições de anomia social não só preservaram o nível de pobreza inicial da população negra, como agravaram-na, transformando o pauperismo em um estilo de vida na cidade e na constante de seu ajustamento ao mundo urbano. Daí falar-se na “cadeia de ferro”, que aprisionou negros e “mulatos” no círculo vicioso gerado pela miséria e em níveis de existência que se aviltava e se degradava progressivamente, independente da sua disposição ou esforço em sentido contrário. A tese defendida por Florestan Fernandes foi, portanto, a de que a raça era um mero epifenômeno das relações sociais frente as questões de classe. Em outras palavras, a sobrevivência da raça (ou fatores raciais) na sociedade brasileira resultaria de uma transição incompleta da ordem escravocrata pra a ordem livre. Porém, com o desenvolvimento da modernização e industrialização das sociedades, o peso da raça desapareceria. Esta tese foi contestada anos depois por Hasenbalg (1979), que demonstrou estatisticamente que a desigualdade e a discriminação racial no Brasil não eram um mero efeito do ajustamento de uma sociedade colonial aos moldes da sociedade de classe capitalista, mas que sua reprodução se dava em escala institucional no seio das próprias instituições da chamada sociedade de classes. Ou seja, a nova sociedade de classes da qual falou Fernandes manteve os padrões de discriminação racial não apenas como um arcaísmo do passado, destinado a desaparecer, mas como princípios que estruturaram as próprias instituições sociais, fazendo com que os negros sofressem impactos sucessivos de tal discriminação ao longo de seus ciclos de vida. Mas indica Fernandes (1965), de forma bastante pertinente, que as consequências resultantes dos arranjos estruturais inerentes aos diversos tipos de famílias negras que se formaram indicam que a mulher – e não o homem – era a figura dominante onde persistia alguma desintegração nos laços familiares e conjugais. A mulher negra nesse período figura como a artífice da sobrevivência dos filhos e até dos maridos ou compenheiros. Merece destaque a citação de Fernandes (1965) ao considerar o papel heróico da doméstica negra: 33 “Sem a sua cooperação e suas possibilidades de ganho, fornecidas pelos empregos domésticos, boa parte da „população de cor‟ teria sucumbido ou refluído para outras áreas. Heroína muda e paciente, mais não podia fazer senão resguardar os frutos de suas entranhas: manter com vida aqueles a quem dera a vida! Desamparada, imcompreendida e detratada, travou quase sozinha a dura batalha pelo direito de ser mãe e pagou mais que os outros, verdadeiramente „com sangue, suor e lágrimas!‟, o preço pela desorganização da „família negra‟. Nos piores contratempos, ela era o „pão‟ e o „espírito‟, consolava, fornecia o calor do carinho e a luz da esperança. Ninguém pode olhar para essa fase do nosso passado, sem enternecer-se diante da imensa grandeza humana das humildes „domésticas de cor‟, agentes a um tempo da propagação e da salvação do seu povo” (FERNANDES, 1965, p.162). A pauperização decorreu da degradação que sofreram com a perda do monopólio de certos serviço que eram fontes regulares de ganho e de sustento e com a adaptação inevitável à ocupações flutuantes, descontínuas e mal remuneradas. Assim, compreende-se que a pauperização foi fator sócio-dinâmico fundamental. A desorganização social permanente atuou como um fator de apatia compelindo o negro e o “mulato” a aceitarem como normais as condições anômicas operantes no meio negro. Com a dificuldade em integrar os ex-escravos aos imperativos da nova ordem social, o negro e o mulato foram enclausurados na situação estamental do “liberto” e nela permaneceram mesmo depois da Abolição, ocupando uma posição ambígua na sociedade. O impulso de modernização foi intercalado e combinado com fases de compromisso com o passado, de resistência a inovações sócio-econômicas imperiosas. Reminiscências de estruturas arcaicas reconstruíram o “antigo regime” em várias dimensões da convivência social, inclusive no serviço doméstico. Na raiz do fenômeno da desigualdade entre negros e brancos após 1888, afirma Fernandes (1965), não há nenhuma intolerância ou ódio raciais explícitos. Os brancos nunca colocaram uma barreira objetiva que impedisse a ascensão dos negros após a Abolição, mesmo porque o negro nunca opôs resistência aberta, consciente e organizada à dominação que sofria. Foi a omissão do branco, e não a ação, que redundou na perpetuação do status quo dominante. Não havendo conflito direto, predominava a aceitação de antigos padrões de acomodação racial. 1.2 O serviço doméstico antes e depois da Abolição 34 Considerava-se como doméstica, durante o século XIX, as mucamas, as amas-de-leite, as carregadoras de água, as lavadeiras, costureiras, copeiras, cozinheiras e arrumadeiras. O que as distinguia era apenas a especialização e o grau de supervisão. As mucamas, encarregadas de adentrar os lugares mais íntimos da casa para servir seus senhores e seus filhos, eram as mais vigiadas de todas. O trabalho da cozinha e os trabalhos de limpeza geral da casa tinham um nível de vigilância intermediário. Já as carregadoras de água, as lavadeiras e as costureiras trabalhavam quase sempre fora da circunscrição da casa e dos olhos da patroa, podendo trabalhar para diversas famílias e ter uma vida independente no seu lar. Homens negros estavam também presentes no serviço doméstico, mas não adentravam todas as especialidades. Alguns inseriam-se nos trabalhos da cozinha. Os demais ocupavam funções como a de criado pessoal, carregador de água e outros objetos pesados, além de cuidarem das tarefas de manutenção das áreas externas das casas dos senhores e fazer demais serviços “de rua” (GRAHAN, 1992). As negras que executavam o serviço doméstico na casa dos grandes senhores na primeira metade do século XIX, além de cozinhar, limpar e lavar, frequentemente eram mandadas para as ruas a fim de vender quitutes ou obter um emprego externo. Os escravos de famílias de renda média ou baixa, além dos cuidados com a casa, via de regra, trabalhavam fora. As jovens “mulatas” que os donos anunciavam nos jornais para trabalhar alugadas nas casas de cavalheiros solteiros quase sempre serviam também de amantes. A prostituição era uma atividade quase exclusiva das negras escravas, seja para seu próprio ganho, seja para o ganho de seu dono (GRAHAN, 1992; KARASCH, 2000; COSTA, 1998). O sentido hierárquico não existia somente entre negros e brancos. Entre os escravos domésticos também existia uma hierarquia, baseada na especialização de atividades, chefiada pela mucama, criada pessoal geralmente bem vestida e digna de agrados e vantagens, de ancestralidade mista, que, em vários casos, mantinha algum parentesco com a família senhorial ou uma relação de amante com o senhor. Ela servia de governanta, supervisora dos demais escravos, às vezes era ama-de-leite e ajudava na criação dos filhos do senhor. Na hierarquia, depois da mucama, vinham os filhos bastardos reconhecidos do senhor, que possuíam ocupações de maior importância social, cresciam com os outros filhos brancos, sendo as meninas treinadas para serem mucamas e os meninos para serem pajens ou criados pessoais (KARASCH, 2000). Segundo Karasch (2000), o serviço doméstico era executado por homens e mulheres negras. Os escravos pessoais de famílias ricas geralmente se distinguiam dos outros pelas suas vestes. Eram, na sua maioria, “mestiços”. Outros escravos especializados de ambos os sexos 35 eram os cozinheiros e compradores. Havia também uma demanda especial pelas criadas que faziam e lavavam roupas. No pólo mais inferior da hierarquia estavam os escravos que desempenhavam as tarefas mais subalternas, como limpar, carregar água, servir à mesa, auxiliar na cozinha e cuidar do lixo. Essas eram as tarefas dos africanos recém chegados, das crianças, idosos e enfermos, que não tinham uma relação próxima com o senhor. A situação dos escravos domésticos, mesmo daqueles ocupados em tarefas menos subalternas, geralmente era melhor do que a de outros escravos, tanto urbanos quanto rurais. Contudo, ser um escravo doméstico não garantia por si só melhores condições de vida e tratamento. A proximidade podia tanto significar maus-tratos quanto boas oportunidades. De acordo com Freyre (2000), dentre os escravos, os “Congo”, os “Sombrenses” e os “Angola” eram considerados os melhores para o trabalho no eito. Os da Guiné, Cabo e Serra Leoa, eram considerados maus escravos, mas possuíam uma beleza de corpo singular. Por isso, eram os preferidos para o trabalho doméstico nas casas-grandes. As negras dessa descendência eram as preferidas dos senhores de engenho para o concubinato. Para servirem de amantes dos brancos, as negras Minas e Fulas, de pele mais clara e “pré-dispostas” para o trabalho doméstico, eram as preferidas. Essa “seleção racial” de determinados escravos para o contato próximo com o senhor deixa claro o ideal de “branqueamento” presente na estruturação das relações sociais. Algumas chegavam da África como escravas e eram elevadas à condição de donas-de-casa, exercendo, às vezes, certos poderes que as distanciavam relativamente da condição de escrava. As chamadas mães-pretas ocupavam lugar de honra na família. Escravas alforriadas em gratificação aos serviços prestados, tinham o respeito das crianças, brancas e negras, e os escravos tratavam-nas de senhoras. Essa promoção de indivíduos da senzala à casa-grande não se fazia à revelia, mas por um processo de seleção, atendendo a qualidades físicas e morais. Dentre as melhores escravas da senzala eram escolhidas as “mulatas” amas-de-leite, que cuidavam não só da alimentação como da higiene das crianças. Escolhiam-se as mais bonitas, fortes, menos “boçais”, mais abrasileiradas e mais propícias ao cristianismo, escolha feita com a finalidade de diminuir o risco de “contágio” das crianças pelas “pestes” negras. Era freqüente o senhor conceder alforria ou contemplar em sua herança o escravo ou escrava que saciava sua gula com iguarias. Mas isso não encobre o fato de que ao escravo negro eram impostos os trabalhos mais imundos na higiene doméstica e pública dos tempos coloniais. Um deles era o de carregar da casa para a praia ou aterros sanitários, na cabeça, os “tigres”, barris de excremento que ficavam longos dias enchendo nas casas-grandes (FREYRE, 2000). 36 Grahan (1992), na sua pesquisa sobre o trabalho doméstico no Rio de Janeiro, referente ao período entre 1860 e 1910, afirma que as relações entre domésticas e seus patrões se davam em termos de proteção e obediência. “As criadas atendiam às exigências de trabalho e obediência e, em troca, recebiam proteção. De sua parte, os senhores as proviam nas necessidades diárias, cuidando delas quando estavam doentes e proporcionando uma infinidade de favores arbitrários que tornava concreto seu papel de patrões. O poder exercido pelos senhores sobre os dependentes no domínio da família e dos agregados da casa era privado e pessoal. Os dependentes não podiam apelar para nenhuma instituição pública em sua defesa para contrabalançar o peso do poder privado ou temperar as decisões pessoais do senhor. Ao contrário, o exercício de seu poder individual era corroborado pelas tradições da lei portuguesa e eclesiástica, reforçadas pelas práticas locais de escravidão” (GRAHAN, 1992, p. 15). De acordo com esta autora, apesar das desigualdades bem marcadas, uma vida doméstica compartilhada impunha inevitáveis intimidades. Essa intimidade, por vezes, ameaçava as diferenças que definiam as relações. As imagens contrastantes da casa e da rua marcavam os contextos do trabalho doméstico. De forma geral, a casa significava um domínio seguro e estável, enquanto a rua representava o incerto, o imprevisível, o sujo, o perigoso. Mas esses significados poderiam se tornar ambíguos para as domésticas: para elas, a casa poderia ser o lugar de injustiça, punição, exploração, e a rua o lugar de liberdade. Embora dependentes dos criados, os patrões os encaravam com a mesma suspeição que julgavam negros e pobres em geral. Manter a criadagem implicava um risco, mas, dentre os criados da casa, as mulheres representavam maior risco, na visão dos patrões, pois normalmente desempenhavam as funções mais pessoais no serviço doméstico. As amas-deleite eram consideradas perigosas porque poderiam contaminar os filhos dos senhores com doenças assustadoras. Elas eram vistas como o exemplo do dilema que todo criado representava: um mal necessário. Segundo a pesquisa de Grahan, realizada no Rio de Janeiro (1992), já na entrada do século XX a maioria das mulheres trabalhavam, não apenas as escravas, mas as livres também. Em 1906, a metade das mulheres que trabalhavam eram domésticas. Antes da virada do século, eram a maioria, atingindo 70%. O serviço doméstico já era a maior ocupação feminina e a presença das domésticas na vida urbana do Rio de Janeiro era maciça. As outras ocupações desempenhadas pelas mulheres eram, na sua grande maioria, ocupações subalternas. O trabalho doméstico não era exercido somente por escravas. Escravas e livres, negras e brancas poderiam ocupar as mesmas tarefas. O trabalho doméstico perpassava as diferenças de cor, esbarrando, em termos práticos, apenas na fronteira de classe. O estudo das criadas brasileiras demonstra que a situação de mulheres específicas confunde as categorias simplistas 37 de escrava e livre. Por diversas vezes, mulheres nas duas condições trabalhavam lado a lado. Uma escrava podia, inclusive, viver fora da jurisdição de seu dono. Tendo sido muito tempo fiel a uma família, podia gozar de alta estima e ser recompensada com a liberdade, enquanto uma branca livre poderia ser vista com desconfiança e receber pouca estima. As criadas, negras ou brancas, escravas ou livres, viviam em condições muito semelhantes (GRAHAN, 1992; MATTOSO, 1982). A reforma sanitarista do final do século XIX e início do século XX incidiu sobre os trabalhadores negros e pobres, principalmente sobre as trabalhadoras domésticas. A reação do Estado foi a de pôr fim aos cortiços que cresciam nos centros das cidades, construir redes de água e esgoto encanadas e mandar as populações pobres que ocupavam esses cortiços para as periferias da cidade. Na década de 1860, os primeiros bondes possibilitaram a cidade do Rio de Janeiro expandir-se em novos subúrbios residenciais. Todas essas mudanças alteraram os tipos e locais de trabalho das domésticas e levaram à perda das relações de vizinhança nos cortiços, onde elas conviviam com outros trabalhadores pobres (GRAHAN, 1992). A distinção entre os ambientes da casa e da rua exigiam das mulheres um comportamento público apropriado, em intensidade e significado diferente das expectativas de comportamento dos homens. Estes, podiam desfrutar do trânsito fácil pelas rua para “fazer negócios”, cultivar amizades, mas as mulheres de boa posição social que saíssem às ruas, mesmo durante o dia, se não acompanhadas por suas criadas ou sem finalidade específica, eram mal vistas. Tal situação não apenas reproduzia hábitos de distinção de classe entre as senhoras como também identificava hierarquias entre criadas de condição variada, as criadas portas adentro e as portas afora. Certas criadas conheciam as ruas, já outras eram proibidas de sair de casa. Para as criadas acompanhantes, que saíam à rua para fazer compras ou passear com suas patroas, a vida nas ruas era normal. Estas geralmente eram mais velhas e experientes, conheciam os perigos e as artimanhas das ruas. Outras, como as cozinheiras e as criadas alugadas para servirem dentro de casa, por exemplo, só podiam trabalhar portas adentro (GRAHAN, 1992). Já começavam a se disseminar agências de criados domésticos. Contudo, para os proprietários, empregar criados indicados por agências apenas trazia mais problemas, pois elas não lidavam com criados confiáveis. Entretanto, apesar da má fama das agências, proprietários frequentemente recorriam a elas. Tais agências cresceram após a década de 1860, passando a indicar também os serviços de mulheres livres, brancas e imigrantes. A abolição, em 1888, pouco afetou a forma de contratação de criados e criadas domésticas. 38 Muito da reprodução da desigualdade residia nos mecanismos de escolha de criadas por parte dos senhores. Seus critérios iam além do custo e da disponibilidade, baseando-se primeiro na condição legal – escrava ou livre – e na cor. Os termos “branca”, “preta”, “parda” ou “mulata” eram utilizados correntemente para descrever a cor de uma mulher. “Preta” designava quase única e exclusivamente a mulher escrava. Já quando se falava em uma “senhora de cor”, designava-se uma mulher “preta” ou “mulata” livre. “Branca” era a designação para a mulher que nunca havia sido escrava. Tudo isso indicava que a cor e o status eram vistos como coincidentes. Dessa forma, patrões compartilhavam uma preferência declarada por mulheres brancas, eram ambivalentes em relação às “mulheres de cor livres”, mas quase sempre terminavam por se apropriar dos serviços das jovens escravas porque, além do baixo custo, apresentavam mais resistência diante condições de trabalho, o que, na visão dos patrões, compensava o “risco” que se imaginava assumir ao colocar uma criada “preta” dentro de casa (GRAHAN, 1992). Embora o emprego de mulheres negras fosse maior, as mulheres brancas livres cada vez mais adentravam o serviço doméstico ao passo que o século XIX foi chegando ao fim. Tal situação gerou apreensão e desconforto nos patrões. Se a escravidão havia permitido aos senhores reterem o poder de conceder favores e punir escravos de acordo com suas próprias regras pessoais, e ao escravo não sobrava alternativa senão obedecer, a partir do final da década de 1870, as mulheres livres, principalmente brancas, inseridas no serviço doméstico, não podiam ser sujeitas aos mesmos controles. Mulheres de cor e crianças que trabalhavam diretamente sob a supervisão do senhor ofereciam menor ameaça à ordem tradicional da relação entre senhor e criada. Assim, na virada do século, era clara a inversão da situação anterior, ficando manifesta a preferência dos patrões por criadas de cor (GRAHAN, 1992; MATTOSO, 1982). Cada vez mais a empregada doméstica foi se distanciando do controle em tempo integral da família empregadora. Nem pertencendo à família, nem sendo totalmente desconhecidas, as criadas ocupavam espaço ambíguo e suspeito entre esses dois extremos. A criadagem era, portanto, o elo que ligava classes e raças diferentes. E o dilema estava colocado: para fazer funcionar uma casa, era necessário expô-la aos perigos da “rua”. De acordo com Grahan (1992), a diversidade de tipos e lugares de trabalho doméstico derivava do fato de que os lares, para funcionarem, necessitavam de serviços que somente mais tarde começaram a ser fornecidos pelo Estado, via companhias de serviços urbanos. Fato fundamental era o de que não havia sistema de água encanada e esgoto. Não havia geladeiras e os moradores não produziam nem estocavam os alimentos que consumiam. Eram as criadas 39 que carregavam água, lavavam roupas nos chafarizes públicos e faziam compras diárias. Daí surgirem distinções entre as criadas externas, que compartilhavam dos imprevisíveis e grosseiros espaços públicos, e as criadas internas. Supunha-se que as primeiras eram mais velhas, mais traquejadas e principalmente sexualmente experientes, enquanto as últimas eram as protegidas, favoritas, porém, ingênuas e vulneráveis. Entretanto, para as criadas, os locais de trabalho poderiam assumir sentidos opostos, invertendo os sentidos da casa e da rua, do limpo e do sujo, do valorizado e do depreciado, do seguro e do perigoso. A vida da doméstica revelava um mundo de significados ambivalentes. Das criadas internas – ou portas adentro, na linguagem da época - esperava-se que possuíssem habilidades de manusear utensílios domésticos de cozinha, além de dominar forno e fogão e saber cuidar das roupas. Além dessas ocupações, amas-de-leite e mucamas prestavam serviços no interior da casa dos patrões. As famílias selecionavam, preferencialmente, uma criada da casa que tivesse dado à luz recentemente para amamentar seus filhos. Ou então, alugava-se uma ama-de-leite, também chamada jocosamente de “mercenária”, para morar na casa. A mucama era a que, de todas as criadas, se aproximava mais intimamente da patroa. Uma mucama negra tinha a função de acompanhar de forma confiável suas senhoras nas suas saídas, ajudá-las com as roupas íntimas, pentear seus cabelos, abanar sua patroa na hora do almoço para espantar as moscas, ouvir pacientemente suas memórias, comprar objetos importantes, carregar dinheiro e etc. As costureiras, antes da chegada das máquinas de costura no Brasil, também trabalhavam muito próximas às suas patroas, situação que se transformou apenas a partir da década de 1870. As criadas empregadas nessas funções testemunhavam e participavam da vida diária de seus senhores (GRAHAN, 1992). Já em 1860 haviam desaparecido os famosos “tigres”, barris de excrementos que os escravos eram obrigados a carregar na cabeça para despejá-los no mar ou em fossas. Entretanto, as criadas domésticas ainda eram responsáveis por limpar urinóis e privadas, conduzindo os excrementos até fossas públicas. Daí a força da vinculação do serviço doméstico à sujeira, à imundície (FREYRE. 2000). Reforça essa idéia a avaliação moral das criadas que executavam serviços fora da casa de seus senhores. Estar na rua sem uma companhia adequada era o suficiente para que a criada fosse confundida com uma prostituta. O ambiente da rua, no qual predominava uma linguagem predominantemente racial e sexual, era considerado imoral. Para os patrões, era um favor que concediam para as criadas portas adentro o fato de empregá-las no interior da casa, longe da contaminação moral das ruas. Os 40 patrões consideravam que o trabalho dentro de casa exigia mais habilidade e sensibilidade e, por isso, as criadas encontravam maior satisfação em executá-lo. As criadas pessoais, como as mucamas e amas-de-leite, podiam esperar ser recompensadas com afeição e confiança. A proximidade gerava o contato direto e a afinidade que a criada conquistava pela atenção dada aos patrões frequentemente lhe rendia recompensas tangíveis. Tal intimidade as fazia ter contato com os hábitos de uma classe à qual elas jamais pertenceriam, mas com a qual se identificavam. Em retribuição aos serviços prestados, podiam receber roupas, jóias que as distinguiam de outras criadas com funções inferiores, melhor alimentação, viagens junto com seus patrões, casamentos com os escravos preferidos e, talvez, a alforria. Mesmo com a diminuição do número de escravos ao longo do século XIX, as criadas pessoais foram as que se mantiveram por mais tempo ligadas aos seus patrões por laços de lealdade e privilégio. Mesmo livres, muitas permaneceram até o fim da vida trabalhando na casa onde cresceram (MATTOSO, 1982; GRAHAN, 1992). A jornada de trabalho de uma criada era longa e rigorosa. Começava antes de amanhecer e ia até a hora em que todos da família se recolhiam. Tinham trânsito restrito à área de serviço, à despensa, à cozinha e ao quintal. Os recintos confortáveis, como salas e quartos, eram proibidos para elas, a menos que estivessem executando determinado serviço ou função que obrigasse a entrada nesses cômodos. Daí hoje em dia a vinculação dos negros, principalmente das mulheres, à “cozinha” (nascer negro é “nascer na cozinha”). Apesar de ser o lugar por excelência da criada na casa, os referidos cômodos também eram visitados livremente pelas pessoas da família. Seu trabalho era sempre supervisionado de perto. Aprendiam, com isso, a escapar das reprimendas ou punições aflitivas. Mesmo guardando uma proximidade com os senhores, as criadas não podiam nem sonhar em discordar, sob pena de ser alvo da raiva da patroa ou do abuso sexual do patrão. Estavam o tempo todo sujeitas às acusações de furto de utensílios da casa, roupas e jóias. Ao invés da proteção, a reclusão poderia representar o isolamento e o aviltamento das criadas (GRAHAN, 1992). Assim como os significados da casa poderiam mudar, poderiam mudar também os significados da rua. No interior da casa, os criados desenvolviam formas de resistência. Uma delas era negar-se a fazer serviços que iam além de sua especialidade. Segundo notas de escritores da época, sintetizadas por Grahan (1992), os escravos nunca resistiam abertamente nem contestavam uma ordem de maneira explícita, mas recorriam a outros subterfúgios. As patroas sabiam que quando pedissem a uma cozinheira para lavar as dependências da casa não iam encontrar um serviço bem feito. Quando a casa possuía apenas uma criada, ela não tinha esse pretexto. Porém, poderia executar seus serviços de maneira lenta e displicente. Se os criados 41 livres podiam ser despedidos se flagrados nesse tipo de comportamento, os criados escravos não se preocupavam com isso, pois não podiam ser simplesmente despedidos. A água encanada, a construção do sistema de esgoto subterrâneo e a rede de transportes públicos alteraram gradualmente a natureza do serviço doméstico. Tal tecnologia obrigou a diminuição do número de criadas empregadas no serviço de limpeza. Apesar da falta de água constante e os problemas nos encanamentos, as criadas gradualmente foram deixando de ir até os chafarizes públicos lavar roupas, o que trouxe conseqüências sociais como o estreitamento da sua vida social, com o fim dos pretextos para escapar da vigilância dos patrões e encontrar com os amigos nas praças e chafarizes da cidade. Tal mudança contribuiu para o isolamento paulatino das criadas. Mesmo antes da abolição, as escravas começaram gradativamente a conseguir horários e locais para conduzir sua vida privada. Se grande parte das criadas livres já possuía sua casa, ficando na casa dos patrões apenas durante o dia, as criadas escravas também começaram a forçar o estreitamento dos limites de seu tempo de trabalho. Conseguiram êxito a ponto de os patrões começarem a se organizar para tentar regular legalmente a permanência da criada na residência em tempo total. Tais tentativas de regulação começaram a ser rebatidas pelas criadas por meio de resistência passiva, expressa na lentidão, no desleixo e na mentira. As relações de serviço doméstico eram incomodamente pessoais. As trocas diárias dentro dos estreitos limites da casa acentuavam as tensões e tornavam difícil saber quem era e quem não era da família. Tendo que confiar em mulheres que, por serem estranhas, não obtinham sua confiança total, os patrões se tornavam vulneráveis. Tanto a criada experiente como a muito jovem, aos olhos das patroas, apresentavam perigos. Se a criada era experiente, apesar de apresentar maior traquejo e habilidade no serviço doméstico, poderia tentar impor, pela própria experiência adquirida, sua maneira própria de fazer o serviço, fazendo valer sua voz nos assuntos do lar. Aí então a dona de casa, para defender seu espaço, teria que reforçar o seu comando e executar ela mesma alguma tarefa doméstica. Se a criada fosse inexperiente e jovem, apesar de ser mais fácil de moldar que a criada experiente, não apresentava habilidades muito desenvolvidas, demorava mais nas tarefas do lar, e apresentava o risco de atrair para si os olhares cobiçosos dos patrões e de seus filhos (GRAHAN, 1992; MATTOSO, 1982). As patroas demonstravam desconfiança ao vigiarem o tempo todo o trabalho das criadas. Contudo, sabiam que a vigilância também deveria obedecer certos limites. Se exagerada, provocava antipatia nas criadas, que buscavam saídas para tal opressão burlando o trabalho. Se condescendente, a patroa sabia que era grande a possibilidade de desrespeito. No 42 equilibrar e desequilibrar da relação, ambas – patroa e criada – eram forçadas a algum tipo de acomodação a fim de contrabalançar suas diferenças. O objetivo das patroas era manter as criadas em disciplina e ordem, trocando proteção por obediência. Gestos benevolentes, na presença de outras pessoas, confirmavam a autoridade conjugada ao poder de conceder ou negar favores. Dessa forma, a benevolência expressa em público encobria um gesto que de bondade não tinha nada, ao contrário, confirmava a desigualdade entre patrões e criados (MATTOSO, 1982). Uma criada branca e livre não necessariamente recebia o pagamento por seu trabalho em dinheiro. Foi justamente a combinação entre as proteções tradicionais, o pagamento em gêneros e os salários que proporcionaram uma continuidade que suavizou a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, influenciando, inclusive, a permanência das criadas nas casas dos patrões em tempo parcial. Grahan (1992) mostra que a administração disciplinada da ordem doméstica dependia da manutenção da postura correta e distanciada dos senhores em relação às suas criadas. Contudo, as ligações sexuais entre eles eram toleradas com facilidade, desde que sua notoriedade não prejudicasse o poder dos senhores para impor respeito e que a propriedade não fosse parar em “mãos erradas”. Se a conduta irresponsável e inadequada do senhor expressasse um abuso da autoridade, pondo em risco todo o sistema, podia haver ingerência dos demais membros de sua classe no domínio do seu lar. Para perdurar, a autoridade precisava de limites. Isso era especialmente importante dado a ambigüidade da relação. A proximidade entre criadas e patrões gerava tensões, pois os laços que os uniam eram extremamente instáveis. Os patrões desconfiavam sempre de suas criadas, e essa desconfiança gerava uma ambivalência. Isso era mais significativo quando as criadas moravam na casa de seus patrões. Se morassem em casas separadas, os laços se tornavam mais frágeis, os patrões não poderiam esperar a mesma lealdade e devoção, bem como as criadas não poderiam esperar a mesma proteção. Mas ainda assim, havia obrigações recíprocas que deveriam ser cumpridas e atualizadas no cotidiano. Com a proximidade do fim da escravidão, o número de criados caiu muito em diferentes cidades brasileiras, causando um desequilíbrio na oferta desse tipo de mão-de-obra, balanceada pelo início do movimento migratório de europeus para o Brasil. Contudo, embora os mecanismos legais que garantiam a escravidão tivessem em vias de serem extintos, a condição escrava e sua moralidade e valores permeava e corroíam todas as relações sociais, atingindo também as pessoas livres. A escravidão, combinada com o paternalismo, estabelecera o paradigma para todas as relações entre senhores e criados, e a pressão para o 43 fim da escravidão parecia não causar nenhum impacto no plano dos valores (GRAHAN, 1992; FERNANDES, 1965). Matos (1994) demonstra que, na virada do século XIX para o século XX, nos períodos das crises do café, a população urbana dava saltos, crescia o número de trabalhadores que ultrapassavam a necessidade do mercado de trabalho e se inseriam em diversas ocupações precárias, temporárias, atividades domiciliares, eventuais e incertas. Nessa conjuntura de rotatividade de mão-de-obra, o serviço doméstico era uma atividade que absorvia grandes quantidades de trabalhadores, na sua maioria mulheres, fossem solteiras ou casadas, brancas ou negras, nacionais ou migrantes, que em grande número moravam na casa dos patrões. O movimento de ampliação da presença do imigrante no trabalho doméstico se insere em um quadro de transformações do mercado de trabalho. O processo migratório foi acompanhado da construção de um discurso que valorizava o imigrante branco, homem, civilizado, ordeiro, pacífico – um perfil ideal para os serviços domésticos – em face do negro, que encarnaria as características opostas. Particularmente na década de 1920, os afazeres domésticos se alteraram em relação estreita com o processo de expansão urbana e industrial. Se, por um lado, a água encanada, os fogões a gás e a nova ordenação do comércio de víveres pouparam trabalho doméstico, os surtos de febres e epidemias – que resultaram na ampliação do campo da medicina e elevaram a importância da difusão de novas normas de higiene que, dirigidas quase sempre para o interior das casas, elevou a importância da limpeza na vida das pessoas – ampliaram a responsabilidades da dona-de-casa e das empregadas. Além disso, as exigências por uma regulamentação do trabalho doméstico ficavam cada vez mais rigorosas, o que exigia também certa produtividade das criadas aliada a uma maior racionalidade do trabalho doméstico (MATOS, 1994). O caráter invisível do trabalho da doméstica estava na repetição rotineira e no fato de ser desnecessária a formação profissional para executar tal função. Todavia, a rotina se diferenciava de casa para casa, de acordo com as exigências e com o estilo de vida dos patrões. É certo que a introdução da água encanada, do fogão à gás e das novas normas higiênicas modificaram um pouco a rotina do serviço doméstico, mas tal modificação foi lenta, inconstante e experimentou resistências por parte das domésticas. Com o estímulo da migração, também houve uma diversificação dos gostos e formas de preparar os alimentos, o que gerou uma carga de trabalho maior para as domésticas (MATOS, 1994). A introdução da água encanada teve como consequência a perda gradativa – não sem resistência – do caráter público e externo da atividade da lavadeira nas margens dos rios e nos chafarizes. Essa função 44 passou a ser executada prioritariamente, embora não de forma exclusiva, no interior dos domicílios dos patrões, onde as lavadeiras começaram a trabalhar como mensalistas ou diaristas (FREYRE, 2000). Uma das funções domésticas que possibilitavam melhores salários era a função da ama-de-leite. Esse ganho mais elevado se deve à responsabilidade que essas domésticas tinham com o cuidado dos filhos dos patrões, à paciência e a dedicação que ofereciam a eles. A versão atual da ama-de-leite, a babá, continua sendo uma das ocupações domésticas melhor remuneradas, dado que hoje, pelo menos entre as famílias mais abastadas, já se exige um preparo técnico e um treinamento especializado para o cuidado de crianças. O aleitamento remunerado era uma questão que preocupava pais e governos, sobretudo na conhecida época da reforma sanitarista, período no qual se reforçou a imagem da ama-de-leite enquanto principal agente de transmissão de doenças, como a tuberculose e a sífilis, para os patrões e especialmente para seus filhos através do leite. Houve várias tentativas de regulamentar essa ocupação, mas o que influenciou na gradativa diminuição das amas-de-leite foram as questões de saúde pública e as alterações nas relações familiares. A busca frenética pela higiene modificou a família ao adaptá-la à ordem urbana, redefinindo as noções de mulher, lar, educação e higiene. Disseminava-se uma noção de família orientada hermeticamente para o interior do lar, o que conduziu a mulher totalmente ao ambiente doméstico, considerado o lócus privilegiado da realização de seus talentos. A noção de que a responsabilidade por cuidar do lar e protegêlo das ameaças das doenças, da subversão moral e da criminalidade conduzida pelas criadas domésticas seria toda da mulher, da dona-de-casa, introjetou nelas a importância da missão de mãe. Dessa forma, a designação das mulheres ao espaço doméstico foi correlativa a uma transformação na visão sobre o trabalho doméstico executado pelas criadas. Nessa atmosfera, todo comportamento desviante, ameaçador, impuro, anti-higiênico, deveria ser combatido. Entretanto, a utilização do serviço de amas-de-leite continuou até 1930 (RONCADOR, 2008; MATOS, 1994). Um dos principais elementos de continuidade presente no trabalho doméstico atual em relação ao trabalho doméstico na escravidão ou no período pós-Abolição é a representação do serviço doméstico como uma atividade que poderia ser realizada por qualquer um, sem a necessidade de uma aprendizagem técnica. Desde muito cedo, escravas ou mulheres livres e pobres se iniciavam nos trabalhos domésticos, cuidando inclusive de seus irmãos menores. Essa necessidade treinava as meninas ainda na infância para executar esse serviço na vida adulta. 45 As “criadas de servir” não exerciam as mesmas ocupações nem recebiam os mesmo salários que os homens. Os serviços executados por elas eram desprestigiados, desvalorizados monetária e socialmente. Os homens inseridos nos postos domésticos mais tradicionalmente masculinos, como jardineiro e cocheiro, ou ainda como cozinheiro, criados e lavadores de casa, ganhavam mais que as mulheres, com exceção da ama-de-leite (MATOS, 1994). Os serviços domésticos sempre foram vistos como funções “femininas” que exigiam menor esforço físico, eram monótonos e invisíveis aos olhos da sociedade, e isso era interiorizado pelas próprias mulheres, que viam sua atividade como uma “ajuda” financeira aos maridos, mesmo quando recebiam o mesmo ou mais que eles. Matos (1994) destaca também os perigos que envolviam a execução do trabalho doméstico no início do século XX, pouco mencionados em função da própria invisibilidade que envolvia e ainda envolve a atividade. Os acidentes sofridos pelos criados chegavam às vezes a deixá-los incapacitados. As lavadeiras eram atingidas por ferimentos nas mãos, além de frequentemente sofrerem afogamentos nos rios, tanques e poços. As passadeiras eram correntemente acometidas por queimaduras. As cozinheiras, além de queimaduras com água ou óleo ferventes, sofriam picadas de cobras e escorpiões ao apanhar lenha. Os criados sofriam acidentes com faca e machado, queimaduras no fogão e ao abastecer lâmpadas com álcool ou querosene. Também sofriam quedas, fraturas e contusões. Muitas criadas sofriam de varizes. Além da tuberculose, o reumatismo era uma doença freqüente entre os domésticos, devido às deficiências na alimentação. Eram numerosas também as crises nervosas e tentativas de suicídio. A antiga estabilidade dos criados domésticos mantida pela escravidão foi substituída por uma grande rotatividade no período pós-Abolição, que passou a preocupar patrões e instituições públicas, levantando a discussão acerca da necessidade de regulamentação da profissão. Esse imenso contingente de pessoas pobres era considerado um foco de criminalidade que, dizia-se, precisava ser controlado. As preocupações não giravam em torno apenas de garantir os bens materiais dos senhores, mas também de prevenir a contaminação física e moral, baseado na crença de que a doença estava vinculada à pobreza e à sujeira e de que os pobres, vivendo no espaço público, traziam para dentro dos lares a imundície e a promiscuidade (GRAHAN,1992; MATOS, 1994). Nas relações de trabalho no domicílio, tentava-se articular dispositivos estratégicos capazes de, ao mesmo tempo, estreitar os vínculos e manter a hierarquia entre empregados e patrões. Mesmo envolvidos numa teia de dominação, os criados aproveitavam as brechas abertas, gozando de privilégios e chegando, às vezes, a estabelecer vínculos de amizade, 46 solidariedade e cumplicidade, em meio à tensão característica dessa relação. Por vezes os criados preferiam bom tratamento que salários altos. Apesar da árdua rotina, às vezes tinham roupa e comida. Quando a casa era farta, a condição dos empregados superava a de muitos operários. A maternidade alterava a participação da mulher no serviço doméstico. Em geral, passavam a preferir o trabalho como diarista que morar na casa dos patrões. Às que moravam fora, era permitido levar sobras de comida, roupas, utensílios domésticos e móveis velhos, o que caracterizava uma espécie de “sobre-salário”. Além disso, frequentemente lhe sobrava tempo para serviços ocasionais como lavar ou costurar “para fora”, ou fazer doces e quitutes para vender. Todavia, como mostra Matos (1994), era o autoritarismo e a violência que caracterizavam as relações no cotidiano dos domicílios. Os criados eram explorados, malremunerados, tinham péssimas condições de moradia e alimentação, além de sofrer maus tratos, agressões e abusos e de enfrentar uma extensa jornada de trabalho. Os noticiários mostravam fugas de criadas, principalmente crianças, escapando de tais condições. Era costume trazer menores para dentro de casa para executar os serviços domésticos em troca de moradia, vestuário e alimentação. Algumas meninas enfrentavam um cotidiano de dominação, humilhação, sendo usadas até para a iniciação sexual dos filhos do patrão. Eram constantes os casos em que a patroa, enciumada, perseguia, expulsava ou agredia uma criada doméstica. O medo marcava essa relação. Todavia não se podia esperar apenas passividade das criadas. A resistência, embora baseada numa consciência fragmentada, era constante, através do furto, do desmazelo, da lentidão. Oscilando entre a repressão direta e a atitude paternalista, os patrões buscavam controlar a execução dos serviços sem causar revoltas explícitas. Para isso, estabeleciam-se relações bastante sutis onde o conflito era negado e camuflado sob imagens de harmonia e serenidade. O patrão era identificado como pai e protetor, reforçando a autoridade sem estimular a rebelião. “Era a ambivalência da relação de “controle-repressão-concessão” que caracterizava o cotidiano dos domicílios, onde as práticas patronais constituíam estratégias de um processo de dominação” (MATOS, 1994, p.211). Apenas a partir da década de 1930, com a entrada de novas leis em vigor, o trabalho doméstico começa, muito lentamente, a sofrer algumas modificações que, na verdade, serão sentidas apenas na década de 1960. 1.3 Os estudos atuais sobre o tema no Brasil 47 O objetivo desta seção é dialogar com os trabalhos cuja análise se volta para contextos mais atuais em relação ao tema da pesquisa. Portanto, recuperaremos contribuições que remetem ao contexto da década de 1960 até os dias atuais. O diálogo com essas contribuições tem a intenção de perceber e reiterar as continuidades e rupturas em relação ao trabalho doméstico, suas interações e sua composição de classe, raça e gênero. Além disso, será útil o aproveitamento de avanços que tais trabalhos alcançaram para os argumentos que aqui serão defendidos mais adiante. Não são muitos os trabalhos desenvolvidos sobre o serviço doméstico no Brasil. A maioria deles, feitos a partir de 1960, foi efetuada pelas perspectivas feministas. Salientam que a “liberação” de muitas mulheres se deu à custa da subordinação de outras. Antes de começarmos a discutir algumas das contribuições mais importantes, cabe uma ressalva. Até agora, usou-se os termos “trabalhadora doméstica”, “empregada doméstica”, “criada”, ao fazer referência aos trabalhos desenvolvidos sobre o tema no século XIX e na primeira metade do século XX. Entretanto, como salienta Bernardino-Costa (2007), o desenvolvimento de associações e sindicatos de trabalhadoras e trabalhadores domésticos, apesar de congregar um número muito pequeno de agentes dessa ocupação (menos de 2%), têm enfatizado a necessidade de combater todas quantas forem as manifestações que tenham como consequência a degradação do trabalho e da imagem da trabalhadora doméstica. Na sua luta, há décadas, pela regulamentação e formalização das relações de trabalho doméstico, um dos pontos ao qual se tem chamado a atenção é o do sentido pejorativo que alguns termos assumem, dentre eles o termo “empregada”, conotando a servidão paternalista típica do contexto escravocrata. Na luta pelo reconhecimento da categoria, os sindicatos defendem que o termo “trabalhadoras domésticas”, ao invés de “empregadas domésticas” é mais adequado para se referir às agentes do serviço doméstico remunerado, afastando a visão pejorativa da profissão. Por isso, se o termo “empregada” foi usado até aqui, foi porque o contexto analisado antecedeu essa demanda, e porque o termo fazia mais sentido nas situações históricas expostas. Daqui em diante, emprega-se o termo “trabalhadora doméstica” para designar a agente do serviço doméstico remunerado, mas usa-se também o termo “empregada” quando fizer referência a alguma consideração pejorativa. Saffioti (1978) analisa a questão a partir de dois referenciais: o exército industrial de reserva e a articulação do modo de produção capitalista com formas de trabalho não capitalistas. Segundo sua perspectiva, os trabalhadores não inseridos nas formas capitalistas de trabalho se inserem em trabalhos não-capitalistas. Na sua visão, a trabalhadora doméstica 48 não executaria tarefas capitalistas porque realizadas dentro do espaço doméstico da família. Mas, embora não capitalistas, as tarefas da trabalhadora doméstica tornariam possível a reprodução da força de trabalho. O trabalho doméstico remunerado, segundo esse argumento, nasce com o capitalismo, mas não constitui uma forma capitalista de trabalho, pois é remunerada com renda pessoal e não com capital, e não produz o que se chama de “mercadoria”, no sentido marxiano, não produzindo, assim, mais-valia. Apesar disso, o próprio capitalismo não pode passar sem esse tipo de trabalho, pois ele permite sua reprodução. Assim, a relação entre empregador e trabalhadora doméstica não seria racional ou impessoalmente capitalista, mas afetiva e paternalista. A autora, entretanto, fica devendo uma análise mais detida das relações sociais estabelecidas entre trabalhadoras domésticas e patroas. Em torno dessa tese se desenvolveram outras, como a de que, se o serviço doméstico contribui com a organização produtiva, é também um trabalho produtivo. Ou ainda a de que o serviço doméstico é marginal no Brasil, mas é tanto maior quanto maior for o centro urbano considerado, o que revelaria que o trabalho doméstico expressa a especificidade do desenvolvimento capitalista no Brasil, que desencoraja a mobilidade social de uma parcela importante da população. Várias são as classificações para o serviço doméstico no Brasil: trabalho produtivo não capitalista, trabalho capitalista improdutivo, trabalho marginal, etc. A relação de trabalho doméstico pode ainda ser considerada como uma relação de dominaçãosubordinação de tipo tradicional. Ou ainda, do ponto de vista da invisibilidade, o serviço doméstico dependeria mais da qualidade da relação entre patroa e trabalhadora doméstica do que do próprio conteúdo do emprego2 Para Saffioti (1978), Embora a independência financeira da mulher não seja condição suficiente para colocar homens e mulheres em pé de igualdade, a atividade ocupacional representa condição indispensável para a participação da mulher em outras esferas da vida social. Por essa razão, a atividade profissional fora do lar é muitas vezes tomada como progresso da condição da mulher em direção à igualdade perante o homem. Contudo, para algumas mulheres, dependendo da atividade profissional, sua inserção no mercado de trabalho torna-se um avanço apenas relativo. Algumas mudanças na sociedade brasileira a partir da década de 1960, como a elevação da renda dos que alcançaram algum nível de instrução, incremento dos membros da PEA que apresentaram educação de nível superior e acentuação do grau de concentração de renda, dentre outros, levaram ao aparecimento de uma nova classe 2 Teses discutidas em Kofes (2001). 49 média de assalariados de rendas elevadas. Juntamente com o aumento da procura por bens duráveis de consumo, aumentou também a demanda por serviços pessoais, principalmente o serviço doméstico. Dessa forma, uma grande parte da força de trabalho que não foi absorvida pela grande empresa, acabou se colocando a serviço da nova classe média. Neste processo de marginalização de parte da força de trabalho, a mulher foi a mais prejudicada. A modernização da economia não levou ao aumento significativo da participação das mulheres na economia nacional. Ao contrário, impeliu-as a aceitar, para sobreviver, o desempenho de atividades mal remuneradas e pouco prestigiadas do ponto de vista social (SAFFIOTI, 1978). Nunes (1993) perseguiu o objetivo de, a partir do conceito de identidade, investigar a elaboração da cidadania das trabalhadoras doméstica em Brasília. A autora analisou trajetórias profissionais no sentido de apreender identidades e representações sociais sobre o trabalho doméstico. Com foco nas relações em que as trabalhadoras domésticas estão inseridas, a autora reconstruiu um caminho que começa na relação, passa pela identidade e produz representações sociais a respeito da realidade. É na interação social que a identidade é construída, é nela que os atores aprendem a orientar seus comportamentos. Destaca também a invisibilidade das trabalhadoras domésticas para aqueles que usufruem da força de trabalho delas. Além disso, nas entrevistas que efetuou, mostra como a imigração está relacionada com o trabalho doméstico. Primeiro emprego para muitas jovens pobres, o trabalho doméstico se afigura para essas pessoas como algo transitório, sem segurança do ponto de vista dos direitos trabalhistas, além de se concretizar como exploração em muitos casos. De acordo com Nunes (1993), houve uma transformação na imagem da doméstica ao longo dos últimos cem anos: escrava, criada, cria, empregada, secretária, entre outras. A partir dessa constatação, ela questiona quais transformações de identidade significam essas mudanças de nome e se haveria uma real mudança quanto à mentalidade ou o resvalamento semântico significaria somente uma busca de eufemismos para mascarar o conflito. Tais questões ainda não encontraram resposta satisfatória. E a dificuldade em encontrar respostas para essas questões está no fato de que, quando se fala da atividade da trabalhadora doméstica, não se trata apenas de competências técnicas: o saber da doméstica é colocado como “dever” das mulheres. Mas essa afirmação exige cuidado, pois pode-se aceitar que uma intelectual não saiba fazer os trabalhos domésticos com competência, mas de uma mulher pobre espera-se que possa ser trabalhadora doméstica. Isto, claramente, tem um sentido cultural. Assim, critérios de valorização como mulher são diferentes segundo o poder aquisitivo, mas o espelho é sempre o das mulheres ricas, valorizadas não porque sabem fazer, mas porque sabem dar ordens. 50 Um trabalho de grande destaque no que diz respeito propriamente à relação entre trabalhadoras domésticas e suas patroas é o de Kofes (2001). A questão que motiva a autora é: o que a relação social (em suas múltiplas dimensões, incluindo a interação face a face) entre trabalhadoras domésticas e patroas afirma sobre a combinação entre os termos identidade, diferença, igualdade e desigualdade? A identidade aqui é entendida como se referindo a um campo de reconhecimento sociocultural estruturalmente disponível para o auto- reconhecimento dos atores sociais. O conceito de identidade, segundo a autora, pode tornar-se frágil se não for articulado com as noções de diferença, igualdade e desigualdade. Outra consideração importante é a de que a relação focalizada está sob o jogo simultâneo de dois modelos de relações, o familiar e o de trabalho, nenhum impondo-se completamente sobre o outro, mas enfrentando-se. A autora desenvolve uma perspectiva de gênero por meio da qual questiona a categoria mulher como um lugar de reconhecimento de uma identidade que possa galvanizar adesões entre todas as pessoas do sexo feminino. Para ela, a identidade “mulher” é perpassada por outros condicionamentos e contingências sociais e, sob o efeito de desigualdades, muitas vezes nem é colocada em cena ou, quando é colocada, não é capaz de abarcar todas as mulheres da mesma forma. Assim, a noção de diferença de gênero emergiria entre trabalhadoras domésticas e patroas mesmo sem a figura masculina. A desigualdade coloca em xeque a possível identidade entre mulheres e, mais do que isso, nesta relação haveria a negação da trabalhadora doméstica como mulher, afirmando-se como tal apenas a patroa. A autora aplica de forma pioneira a noção de gênero para explicar uma relação entre mulheres, em um momento no qual a noção era utilizada quase sempre para tratar das relações desiguais de poder entre homens e mulheres. Isto lhe permite constatar que quase nunca, na relação entre trabalhadoras domésticas e patroas, as pessoas se identificavam por meio de um “nós”, mas havia sempre a expressão “elas” designando a “outra” da relação. A produção da diferença entre patroa e trabalhadora doméstica pode ser observada em diferentes contextos: nas representações sociais, em instituições públicas, na literatura e no discurso das trabalhadoras e das patroas. Para as patroas, percebe-se que há a representação de um universo comum a trabalhadoras e patroas, o doméstico. Contudo, é nesse espaço comum que as desigualdades se reproduzem. O trabalho de Kofes conduz o leitor a perceber o abismo de classe existente entre mulheres de diferentes estratos sociais, de diferentes níveis de escolaridade, enfim, de diferentes classes sociais, mas deixa de perceber as diferenças raciais entre elas. Assim é revelada a distância social entre patroa e trabalhadora doméstica. Há uma distância de classe que separa quem oferece o serviço de quem o contrata. Contudo, o trabalho 51 se realiza na esfera doméstica onde a família se reproduz e onde se concretizam as atividades estruturalmente comuns atribuídas às mulheres. A interação é constituída sob contradições e ambigüidades mais ou menos controladas, e transparecem na desconfiança, na acusação de roubo, nas ritualizações da limpeza, etc Segundo Brites (2000), Na realização das tarefas de cuidado e manutenção das famílias de camadas médias no Brasil – desempenhada, na maioria das vezes, por mulheres pobres – assim como nas formas de remuneração e de relacionamento que se desenvolvem entre patrões e trabalhadoras domésticas, reproduz-se um sistema altamente estratificado de gênero, classe e cor. A manutenção desse sistema hierárquico que o serviço doméstico desvela tem sido reforçada, em particular, por uma ambigüidade afetiva entre os empregadores – sobretudo as mulheres e as crianças – e as trabalhadoras domésticas. Ao analisar exemplos tirados de uma pesquisa etnográfica em Vitória (Espírito Santo), essa ambigüidade se revela como instrumento fundamental de uma didática da distância social. Como diz Donna Goldstein (GOLDSTEIN, 2003, apud BRITES, 2005), manter uma trabalhadora doméstica é um sinal diacrítico na sociedade brasileira, que sinaliza a distância da pobreza. Conforme demonstra Brites (2000), baseada em Goldstein (2000), a afetividade não impede uma relação hierárquica, com clara demarcação entre chefe e subalterno, isto é, entre aqueles que podem comprar os serviços domésticos e aqueles que encontram, na oferta de seus serviços, uma das alternativas menos duras de sobrevivência no Brasil. Trata-se, portanto, de um processo amplo de reprodução da desigualdade. Porém, a dimensão desse processo que nos interessa é centrada especificamente num tipo de atividade ligada à esfera doméstica – o “trabalho reprodutivo”. Este trabalho é definido pela antropóloga Shellee Colen (1995:78) como o trabalho “físico, mental e emocional necessário para a geração, criação e socialização de crianças, assim como a manutenção de casas [households] e pessoas (da infância até a velhice)”. Consedera-se a doméstica dentro de certas famílias de classe média como uma mulher que, no convívio diário com outra mulher (a dona-de-casa), constrói, troca e remodela saberes domésticos, num ambiente onde cumplicidade e antagonismo andam sempre de mãos dadas e onde a desigualdade subentendida nessas trocas informa um exemplo típico de “reprodução estratificada”. A questão colocada por Brites é: se existe tanta intimidade e afeto entre as crianças e suas domésticas, como se reproduzem patroas adultas com um sentido tão forte de hierarquia? Como se separam esses mundos? Há um consenso sobre a complexidade que envolve as relações entre patrões e empregados doméstico. O que une os principais trabalhos é a afirmação de que essa relação em geral é pouco profissional. Ou seja, o trabalho doméstico remunerado é, pelo menos no 52 Brasil, reconhecido legalmente como uma profissão, ainda que não tenha alcançado o estatuto de proteção social das demais profissões. Contudo, os patrões quase sempre não consolidam contratos modernos e relações legais de trabalho. Entretanto, Brites desenvolve em sua pesquisa o argumento de que as mulheres, trabalhadoras domésticas por ela investigadas, vêem nessa deficiência legal das relações de trabalho elementos que tornam o serviço doméstico mais interessante e vantajoso que outros trabalhos. E, além disso, as vantagens vistas por elas coincidem justamente com o que os estudiosos da condição feminina apontam como raízes da desigualdade, do clientelismo, da opressão e do paternalismo. Possibilidades de adiantamento salarial, negociação de faltas, recebimento de presentes, agrados e mesmo sobras de comida são identificados pelas domésticas como vantagens existentes somente no serviço doméstico. A partir disso, a autora dialoga com outros estudiosos do tema, problematizando algumas de suas análises e conclusões, conferindo uma importância central para o ponto de vista das mulheres pesquisadas (BRITES, 2000). De fato, como pontua Brites (2000), o serviço doméstico proporciona o encontro de classes desiguais numa sociedade cada vez mais marcada pela segregação e o medo do “outro” e, além disso, tende a pautar-se em relações de trabalho clientelistas numa época marcada pela cidadania. Uma análise mais detalhada sobre o tema permite a autora esclarecer que: 1) o serviço doméstico não é apenas um resquício de arcaísmo remanescente na sociedade brasileira, pois as desigualdades vivenciadas por patrões e trabalhadoras domésticas terminam por gerar uma “complementariedade estratificada”, que justifica a permanência do serviço doméstico em nossa sociedade; 2) os grupos populares possuem dinâmicas familiares próprias nas quais o serviço doméstico acaba por mostrar-se mais compatível do que outras formas de trabalho; 3) mesmo ficando evidente a subalternidade que essas mulheres enfrentam na esfera do trabalho e na família, elas desenvolvem formas específicas de participação que extrapolam aquelas descritas na literatura sobre cidadania. Seguindo a tradição dos estudos antropológicos de grupos populares, com base principalmente em James Scott (1885), propõe a análise das formas cotidianas de resistência, como atividades desordenadas, pouco planejadas, e que evitam o confronto direto com a autoridade dominante. Seriam estas as “armas dos fracos”, com as quais buscam reverter a condição subordinada. Entre as trabalhadoras domésticas, essa resistência se daria por meio do desleixo, da lentidão, da mentira, do furto, enfim, formas de subversão passiva, desenvolvidas de maneira encoberta, sem provocar conflitos abertos. A manifestação de tais práticas revela uma continuidade importante entre as trabalhadoras domésticas atuais e as escravas domésticas, como vimos no início do capítulo. 53 Bernardino-Costa (2007) analisa a narrativa produzida pelos sindicatos das trabalhadoras domésticas no Brasil. Esse trabalho constitui um esforço de falar com e a partir das trabalhadoras domésticas, refletindo sobre algumas narrativas sobre a nação. Apesar de as pesquisas mostrarem que as relações entre trabalhadoras domésticas e patroas são conflitivas, há uma interpretação das relações sociais brasileiras que insiste na complementariedade e harmonia entre ricos e pobres, entre negros e brancos. Nessa argumentação, o trabalho doméstico é usado como exemplo deste caráter singular das relações sociais brasileiras. É essa interpretação que a tese questiona. Essa interpretação hegemônica do Brasil se articula à construção do estado-nação brasileiro. Ela se produziu tomando as narrativas discordantes como inexistentes. Tentar recuperar as narrativas das trabalhadoras domésticas a partir de seus sindicatos permite colocar a realidade excluída no centro das atenções. Categorias como democracia, cidadania, igualdade, justiça são vistas como incompletas quando são pensadas e articuladas politicamente sem considerar os sujeitos que foram e estão submetidos à complexa hierarquia de poder, o que Quijano (2007) chama de “colonialidade do poder”. O autor recupera a história dos sindicatos das trabalhadoras domésticas no Brasil, existentes desde a década de 1930. Seu objetivo é caracterizar o ativismo político das trabalhadoras domésticas como um movimento de resistência contra a exclusão sócioeconômica e jurídica da categoria, assim como caracterizá-lo enquanto um movimento de reexistência individual e coletiva das trabalhadoras domésticas. Além disso, objetiva também entender como aquelas que estão numa posição subalterna percebem as relações sociais hierárquicas das quais participam. O estudo do sindicato foi escolhido porque 1) no sindicato as trabalhadoras estão entre iguais rompendo o isolamento da casa da patroa; 2) os sindicatos são espaços de reelaboração pública da relação entre trabalhadoras domésticas e patroas, por meio da classe, da raça e do gênero; 3) o aprendizado nos sindicatos repudia a tentativa de reduzir as relação entre trabalhadoras domésticas e patroas a uma relação puramente afetiva. O autor demonstra que, ao longo dos anos, as trabalhadoras domésticas elaboram plataformas políticas e conhecimentos que articulam as categorias de classe, gênero e raça. Importante para esta interpretação foram as contribuições dos teóricos da descolonização, especialmente Aníbal Quijano e Walter Mignolo, que se propõem a pensar as sobrevivências da experiência colonial nos tempos modernos. Segundo Bernardino-Costa (2007), o potencial epistemológico da articulação de classe, raça e gênero implica também um repensar das categorias e valores da teoria política do Estado moderno, tais como democracia, cidadania, igualdade, justiça. Além disso, esta articulação permite que as trabalhadoras domésticas 54 elaborem uma proposta político-intelectual de um feminismo negro a partir do ponto de vista daqueles sujeitos mais destituídos de poder econômico, político e simbólico. Dentre os trabalhos mais importantes sobre o tema, o mais recente é o de Roncador (2008), que voltou sua atenção para a construção literária da trabalhadora doméstica no Brasil, de 1889 a 1999. Segundo ela, no Brasil, onde a trabalhadora doméstica constitui a categoria feminina profissional mais numerosa, a sua representação remonta ao período romântico, na figura da mucama. A doméstica se tornou símbolo de alteridade em relação à aristocracia e à burguesia pela sua composição de gênero, étnica e social – majoritariamente mulheres negras e pobres. O objetivo da autora é analisar o fluxo de representações da doméstica na literatura brasileira e, sobretudo, seus usos estratégicos. Este trabalho estuda como as representações formam um determinado contexto cultural no qual predominam determinados usos estratégicos das representações. Por isso, as imagens da doméstica variam ao longo da história, produzindo humor, medo, denúncia, dependendo dos discursos que atuam na mediação literária. Roncador (2008) mostra que a inclusão da doméstica na literatura brasileira esteve mais a serviço do discurso que as apropriou – na auto-construção do autor como educador, redentor e solidário – que a favor da luta política da doméstica e da alteração das hierarquias de valores e poder, nas quais ela ainda ocupa uma das posições politicamente mais frágeis e estigmatizadas da sociedade brasileira. Na passagem do século XIX para o século XX – o período pós-Abolição – a doméstica figura ambivalentemente na literatura brasileira. Sua presença é necessária, porém, é signo de contaminação física e moral. A doméstica marca forte presença no discurso da domesticidade. Sua imagem como signo de perigo e contaminação foi usada em sentido pedagógico de estímulo para que a mulher burguesa assumisse a total responsabilidade pela administração do lar. A apropriação modernista da representação da “mulata” e da negra não logrou superar o estereótipo negativo de tendência ao servilismo (mãe-preta) e à sexualidade e promiscuidade (mulata). A invenção da doméstica na imprensa feminina teve a intenção de inibir as transgressões de gênero, de raça e de classe, que a modernização dos costumes colocava em risco. O culto da beleza (signo da feminilidade) é incompatível com o serviço doméstico braçal (responsabilidade da “empregada”). A ênfase nessa representação, encontrada sobretudo na literatura de Clarice Lispector, revela que, ainda no pós-guerra, a doméstica era usada como contraponto da patroa burguesa na construção da identidade feminina. 55 Mais recentemente, surgiram com mais freqüência os depoimentos e testemunhos de representantes da categoria das trabalhadoras domésticas. Os discursos de domésticas, nos testemunhos, desafiam os discursos de construção da nação. Mas se constroem em uma ambigüidade: para serem publicados e alcançarem um número de leitores considerável, os testemunhos são obrigados a se submeterem a um pacto de colaboração com um intelectual ou editor, que nem sempre fala “com e a partir da trabalhadora doméstica”3, tentando, às vezes, “representá-la”. De toda forma, esses testemunhos suprem uma lacuna da intelectualidade de esquerda pós-revolucionária (RONCADOR, 2008). O presente estudo se valerá das contribuições dadas pelos autores e autoras acima citados, estabelecendo, quando possível, diálogo com eles ao longo do trabalho. Parto da idéia, expressa em diversos trabalhos, de que classe, raça e gênero não são fatores estanques. As desigualdades produzidas em torno desses elementos não dizem respeito à “natureza das coisas”, não há nada de biológico, físico, natural ou objetivo nas diferenças e desigualdades construídas em torno dessas três formas de classificação social. Antes disso, são as próprias relações intersubjetivas que constroem pontes ou abismos relacionados à classe social, à diferença racial e à diferença de gênero. E essas diferenças, onde existem relações de poder, são sempre hierarquizadas e naturalizadas, fazendo-se passar por fixas e imutáveis, quando são, na verdade, contingentes. Além disso, classe, raça e gênero não são formas de classificação social totalmente separadas e desvinculadas. Ao contrário, influenciam-se mutuamente, interpenetram-se e geram posições e papéis sociais os mais variados. Façamos agora uma breve síntese das condições das trabalhadoras domésticas remuneradas no Brasil atual. Chaney & Garcia Castro (1989) sintetizam, em cinco itens, os aspectos mais importantes e, segundo elas, universais, do trabalho doméstico remunerado: a) O trabalho doméstico remunerado é, em todo lugar, uma atividade desvalorizada e depreciada. Esse trabalho feminino aparentemente não demanda qualquer formação ou habilidade específica, além das que já nascem com as mulheres. Mesmo se o serviço é parcialmente dividido com a patroa, esta realiza as tarefas mais leves e mais suaves, passando o serviço sujo e desagradável para a trabalhadora, o que denigre ainda mais o trabalho doméstico. b) Trabalhadoras domésticas são recrutadas em geral entre mulheres pobres, com baixíssimos níveis de escolaridade, que migram de cidades ou províncias menores para os grandes centros. São de origem étnica discriminadas e sua cultura, linguagem, costumes, vestimentas e raças são consideradas inferiores. 3 Ver Bernardino-Costa (2007). 56 c) Trabalhadoras domésticas geralmente trabalham sozinhas ou com no máximo um ou dois trabalhadores domésticos. Por isso, dificilmente ocupam praças, lugares públicos, espaços e tempos comuns. Terminam por se isolar, tornandose invisíveis como grupo tanto para elas mesmas quanto para a sociedade. Sob essas condições, torna-se difícil fomentar uma consciência coletiva que possa motivar a busca por mais direitos. d) A trabalhadora doméstica não é coberta inteiramente pela legislação básica válida para qualquer outro trabalhador manual, e o pretexto para essa falta é o fato de não terem um lugar de trabalho determinado, não produzirem um produto tangível, ou seja, uma mercadoria, e serem pagas, às vezes, de outra forma que não monetária. e) As líderes das organizações de trabalhadoras domésticas são vistas com desconfiança até mesmo por aquelas que deveriam ser suas maiores aliadas: mulheres inseridas em grupos profissionais e feministas. As primeiras estão preocupadas ainda em conseguir boas “empregadas” domésticas, enquanto as segundas apresentam comportamento dúbio por, de um lado, recearem mudar a ordem estabelecida nas relações entre domésticas e patroas e, de outro, perderem sua liberdade conquistadas em detrimento da liberdade de quem as serve. Alguns grupos feministas, como exceções, tentam elevar as trabalhadoras domésticas (CHANEY & GARCIA CASTRO, 1989). Motta (1977) afirma que as trabalhadoras domésticas no Brasil constituem uma classe de pessoas marginalizadas, pobres, sem grandes expectativas de futuro. Além do preconceito de classe, enfrentam o preconceito de cor, já que são, na sua maioria, mulheres negras. A vinculação do trabalho doméstico ao trabalho escravo, que permanece em nossa cultura, contribui para aumentar o preconceito racial. As trabalhadoras domésticas, de acordo com a tradição brasileira, confundem raça e classe. O trabalho doméstico remunerado é uma categoria ocupacional maciçamente integrada por mulheres. A presença de homens é rara. Apenas 0.9% do total de homens ocupados desempenha serviço doméstico, enquanto que, entre as mulheres, a porcentagem atingiu 16.5% (IPEA, 2008). Inclusive, a configuração social dessa atividade é diferente dependendo do sexo do ocupante. Em relação à mulher, que exerce as funções de faxineira, cozinheira, lavadeira, babá, entre outras, a ocupação é tida como “natural” e, por isso, duradoura. Em relação aos homens, que tradicionalmente ocupam os postos de jardineiro, motorista, caseiro, vigia, ela é vista como uma atividade transitória e marginal, realizada em momentos em que não existe uma expectativa imediata de outra ocupação (MOTTA, 1977). Via de regra, as trabalhadoras domésticas iniciam sua carreira cedo. Em geral, começam trabalhando na sua própria cidade ou em cidades vizinhas à sua no interior para, 57 depois, chegarem até as capitais. Mesmo jovens, quase sempre passam por diversas residências, comprovando a alta rotatividade da ocupação. Na maioria dos casos, a iniciação na atividade se dá por contatos primários: uma amiga que já está na cidade grande ou um empregador originário da mesma cidade da jovem que visita sempre essa cidade, acabam sendo uma espécie de intermediários, criando redes de contatos (MOTTA, 1977). As trabalhadoras domésticas não revelaram grandes expectativas em relação à sua ocupação. Parcela considerável declarou achar “boa sua profissão, mas um percentual pequeno afirma querer continuar nela. Algumas pretendem continuar porque já se acham “velhas de mais” para buscar qualificação e outra colocação no mercado de trabalho. Em geral, as trabalhadoras domésticas consideraram que o trabalho doméstico é menos pesado do que o desenvolvido na roça e menos “sujo” e desvalorizado que o trabalho de gari; em contrapartida, é inferior ao trabalho da operária. Por outro lado, acharam o trabalho chato, cansativo, e algumas dizem que é o “pior emprego que existe”. A grande maioria delas gostaria de ter outro trabalho, pois, no trabalho doméstico, são “apenas as empregadas” (MOTTA, 1977). É necessário considerar que as trabalhadoras domésticas possuem direitos trabalhistas diferenciados de todos os outros trabalhadores do país. Isto explica porque o trabalho doméstico é apresentado como uma categoria específica, distinta dos outros assalariados. Ao desenvolver o trabalho doméstico no domicilio do empregador, a própria convivência no espaço privado do patrão e da patroa gera condições de ambigüidade nas relações de trabalho e emprego: se confundem os papéis profissional e familiar. Esta situação se agrava quando o trabalhador ou a trabalhadora é uma criança ou um adolescente, pois as garantias devidas geralmente ficam à mercê da boa vontade do empregador. É neste sentido que a estruturação de uma agenda de trabalho decente para as trabalhadoras domésticas se impõe como uma necessidade real e imediata (OIT, 2005). Entretanto, já é possível detectar uma diminuição considerável no trabalho doméstico infantil. Em 1996, havia 14,2% de trabalhadoras domésticas com idade entre 10 e 17 anos; já em 2006 a porcentagem diminuiu para 6,1%. Se se desagrega tais dados por cor/raça, tem-se 12,8% em 1996 e 4,9 % em 2006 para brancas na mesma faixa etária e 15,3% em 1996 e 6,9% em 2006 para negras (IPEA, 2008). Para Nunes (1993), o emprego doméstico tem sido considerado a porta de entrada no mercado de trabalho para muitas jovens, migrantes das zonas rurais ou de regiões mais pobres do país, que procuram os centros urbanos mais desenvolvidos, nos quais as famílias das camadas médias dispõem de recursos para remunerar esse tipo de ajuda nas tarefas 58 domésticas. Para essas jovens, o emprego doméstico, principalmente quando associado à moradia e à alimentação, é uma estratégia de sobrevivência conveniente logo que chegam à cidade grande, mas, na medida do possível, é provisória. Uma das características do emprego doméstico é o baixo nível dos rendimentos auferidos. No Brasil, em 1991, a grande maioria da categoria recebia até um salário mínimo por seu trabalho. Repete-se, no interior da categoria, a já conhecida desigualdade de gênero. Mesmo sendo minoria, os trabalhadores domésticos ganham mais do que as trabalhadoras domésticas. Embora mantendo níveis salariais bastante baixos, os rendimentos das trabalhadoras domésticas, ao longo da década, vêm tendo um relativo aumento, principalmente se levarmos em conta a redução do percentual das que ganham menos do que o mínimo legal (BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000). É inegável que esse aumento está relacionado à ampliação do registro em carteira, pois, segundo a Constituição de 1988, o registro é atrelado ao pagamento de um salário mínimo. Apesar da prática usual, em geral acordada entre ambas as partes, de pagar à empregada doméstica, por fora, um salário superior ao registrado na carteira, a categoria vem tendo maior acesso a direitos trabalhistas e sociais, sobretudo nos centros urbanos mais desenvolvidos, por meio de maior índice de registro em carteira, e significativos aumentos salariais, parecendo caminhar para maior profissionalização (BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000). As trabalhadoras domésticas tendem a não ver no seu trabalho propriamente uma profissão da qual se pode usufruir das conseqüências de uma atividade reconhecida. Diz-se que o caráter paternalista das relações ente patroas e trabalhadoras domésticas concorre sempre para o beneficio das primeiras. Por outro lado, é importante notar que as domésticas retiram desse sistema muito mais do que ele legitimamente oferece. Materialmente desfrutam do trânsito de patrimônio, seja através dos presentes recebidos, seja através dos furtos, lançando mão do mesmo referencial ideológico dos patrões: retiram o melhor proveito da situação. Em troca devolvem às patroas servilidade, prestígio e amizade, completando o círculo de trocas sociais no qual ambos os lados se vêem obrigados a se mover num “mesmo campo de forças”. Quase sempre, “atrás dos bastidores”, expressam atitudes bem menos reverentes em relação a seus superiores. Se, na grande maioria das vezes, os mais fracos não usam o enfrentamento direto ou práticas organizadas de reação à dominação, não é por concordarem passivamente com o sistema. É, pelo contrário, justamente porque tais estratégias seriam relativamente ineficazes, senão inúteis ou até suicidas. A maneira dos subalternos agirem sabiamente, minimizando seus prejuízos, é operando nas brechas, usando astúcia para burlar, antes do que derrubar, o sistema. Trata-se de uma forma de participação 59 política que, na maior parte da literatura, é colocada como oposta à representação hegemônica da cidadania. (BRITES, 2003). O julgamento da trabalhadora doméstica sobre o que é um bom emprego de doméstica é permeado mais por elementos afetivos do que racionais. Considerações de ordem salarial, na maioria das vezes, são secundárias. Aparece na própria fala delas sobre seu emprego a ideologia que inferioriza a mulher. Grande parte delas concorda que é uma ocupação adequada para as mulheres, mesmo sendo socialmente desvalorizada. Consideram como natural o desempenho dessas funções. Isso tem relação com a precariedade da infra-estrutura de serviços orientados para auxiliar a mulher que trabalha fora do lar. A própria estrutura social e do mercado de trabalho ainda impõem barreiras que impedem ou tornam difícil que a mulher desenvolva requisitos de personalidade necessários ao bom desempenho profissional. Assim, há uma adesão generalizada - inclusive pelas próprias trabalhadoras domésticas - à idéia de que a mulher foi feita para cuidar do lar e dos filhos e de que essa atividade deve ser exercida fora de seu próprio lar apenas quando houver necessidade (SAFFIOTTI, 1978). O salário feminino ainda é visto como renda complementar à renda do homem, pois os homens ainda são mais absorvidos pelo mercado de trabalho. O trabalho doméstico remunerado contribui para a reprodução de uma mercadoria especial – a força de trabalho – mas essa produção não se faz em moldes capitalistas, ainda que estreitamente vinculada ao capitalismo. Nesses termos, a trabalhadora doméstica serve ao sistema capitalista, nele integrando-se na medida em que cria condições para sua reprodução. Por outro lado, o trabalho doméstico não é um trabalho improdutivo. Ao contrário, é funcional ao sistema capitalista, sendo uma das poucas formas de trabalho não-capitalista que não foram suprimidas com o advento deste modo de produção (SAFFIOTTI, 1978). Cabe notar também que, em geral, as patroas com menor grau de escolaridade tendem a obter um melhor ajustamento com as trabalhadoras domésticas do que as patroas com maior grau de escolaridade. Isso porque, para as primeiras, é mais fácil se comunicar em nível de igualdade com as trabalhadoras domésticas, pois existem muitas temáticas sobre as quais podem conversar sobre o mesmo enfoque. Por outro lado, as mulheres mais instruídas tendem a compensar a distância que as separa da doméstica pagando melhores salários. De qualquer forma, o diálogo, neste caso, é mais “artificial”. (SAFFIOTTI, 1978). O trabalho doméstico é caracteristicamente informal. Avaliando o número de trabalhadoras domésticas com carteira de trabalho assinada, desagregadas por raça, verificamos que entre as negras a cifra é de 23.9%, enquanto entre as brancas chega a 30,2% evidenciando a discriminação racial também nesse campo (IBGE, 2008). 60 De um ponto de vista geral, é cada vez maior o número de pessoas inseridas em trabalhos alheios aos mecanismos de regulação estatal. A informalidade é, nesse sentido, vinculada à violência, pois está à mercê das “intempéries sociais”. No caso do trabalho doméstico, essa violência se expressa no âmbito da própria relação “patrão-empregado”, ou “patroa-empregada”, no que tange aos valores e representações que fazem da trabalhadora doméstica uma posição sócio-ocupacional negativa (BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000). Ao analisar as relações do trabalho doméstico, percebe-se a pouca ou nenhuma proteção do Estado para as trabalhadoras domésticas e seus filhos, que são deixados aos cuidados de outros ou mesmo sozinhos em casa. Os baixos salários, o início precoce na atividade (entre 8 e 14 anos, na maioria dos casos), as longas jornadas de trabalho e o preconceito são formas de violência exercidas contra as domésticas. Considere-se, ainda, que grande parte das mulheres que prestam serviços domésticos na residência de famílias de classe média e alta, em troca de uma parca remuneração, são chefes de suas famílias e, por isso, submetem-se às mais difíceis condições de trabalho. Pela necessidade de trabalhar, menos da metade delas negociam as condições de trabalho com seus patrões, o que reforça o privilégio dos patrões e abre margem pra a exploração, humilhação, maus-tratos, acusações de desonestidade, etc., causas mais comuns do abandono do emprego por parte da trabalhadora. Além disso, o emprego doméstico nunca foi considerado como partícipe da produção coletiva. Por isso, o Estado não se acha na obrigação de proteger o trabalho doméstico. Some-se a isso o fato das relações que constituem essa atividade se darem em um ambiente privado, regulado pelo bom senso e boa vontade das partes que o constitui. Por tudo isso, as trabalhadoras domésticas frequentemente demonstram vergonha de sua profissão. Assim, a violência está em “ter vergonha do que se é” (THEODORO & NUNES, 2001). Do ponto de vista da raça/cor, há um relativo equilíbrio da participação de negras e não-negras na indústria e no comércio, enquanto no setor dos serviços a presença de mulheres não-negras é majoritária. Apenas nos serviços em que os rendimentos são mais baixos e as garantias de direitos trabalhistas menores, como o trabalho doméstico, existe clara sobrerepresentação de mulheres negras. Entre elas, 75,3% são mensalistas (41,0% negras e 34,4% não-negras) e 24,7% diaristas (12,6% negras e 12,1% não-negras). Em todos os casos o peso do emprego doméstico na ocupação total das mulheres negras é pelo menos o dobro que o seu peso no total da ocupação das mulheres não-negras (MULHER E TRABALHO, 2007; IPEA, 2008). Independente da configuração populacional ou do mercado de trabalho, as negras estão em maior proporção nas situações de maior precariedade. A maior parcela de 61 trabalhadoras domésticas possui entre 25 e 39 anos tanto entre as trabalhadoras domésticas negras como entre as não negras. No entanto, há mais prevalência das jovens entre 18 e 24 anos entre as negras. Também, as regiões metropolitanas mostram a persistência do trabalho infantil doméstico, particularmente entre as meninas negras: as informações apontam que cerca de 3% das meninas negras de 10 a 17 anos são trabalhadoras domésticas em Belo Horizonte, Recife e São Paulo; em Salvador essa proporção é de quase 4% (OIT, 2005). Vários são os fatores que influenciam essa relação: a condição social da família empregadora, o ciclo de vida da unidade doméstica, a presença maior ou menor da dona-decasa nesta unidade, etc. A relação aqui estudada não tem nada de biológico, mas constitui-se de significados. A definição do “feminino” passa pela atribuição de um lugar onde estão colocados atributos que compõem e expressam esse lugar: o “doméstico”. Ser mulher seria, portanto, constituir-se do mundo doméstico e ser constitutiva dele, espaço desenhado pela divisão social e sexual do trabalho. “Mas, local definidor da feminilidade”, o doméstico seria ele próprio feminino” (KOFES, 1982, p.186). É no universo doméstico que se desenrola a relação entre patroa e trabalhadora doméstica. 1.4 - O trabalho doméstico do ponto de vista jurídico Diversos autores da área do Direito e das Ciências Sociais se preocuparam em pesquisar os avanços e recuos jurídicos no que diz respeito aos direitos de cidadania da trabalhadora doméstica ao longo do século XX, principalmente os que regulamentam a proteção social oferecida a essas trabalhadoras por parte do Estado. Percebe-se, de maneira geral, que as conquistas jurídicas das trabalhadoras domésticas até os dias atuais são relacionadas às políticas públicas voltadas para as relações de gênero no mercado de trabalho. Não é intenção deste trabalho discutir em detalhe a evolução jurídica do estatuto de trabalhador doméstico, mas é importante compreender, em resumo, o percurso que levou até a definição atual de “trabalhador doméstico remunerado”. Como já foi dito, o emprego doméstico é uma das ocupações mais precárias que existem no mercado de trabalho. Alguns indicadores, como a jornada de trabalho, a posse de carteira assinada e o nível de rendimentos comprovam a má qualidade dessa ocupação. As trabalhadoras domésticas executam uma longa jornada, superior àquela que é prevista na legislação para os demais trabalhadores. Os primeiros movimentos de regulação da profissão 62 se deram nas três primeiras décadas do século XX, ainda no início dos processos de urbanização, industrialização, marcados pela ideologia da reforma sanitarista. Excluída da CLT em 1943, a profissão, décadas mais tarde, foi regulamentada pela Lei n. 5.859, de 11/12/1972, sendo considerado como empregado doméstico aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não-lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial desta, definição que já excluía os que trabalhavam em caráter eventual, como as diaristas. Essa lei foi regulamentada pelo Decreto n. 71.885, de 9/3/73, e garantia aos empregados domésticos: férias remuneradas (20 dias) após 12 meses ininterruptos de prestação de serviços a um mesmo empregador; qualidade de segurado obrigatório da previdência social, garantindo-lhe, portanto, os benefícios da Previdência. Além disso, tornava obrigatório o registro na carteira de trabalho. Anos mais tarde, a Constituição de 1988, como consta em seu artigo 7º, parágrafo único, passa a assegurar às trabalhadoras domésticas os seguintes direitos: salário mínimo; não redução do salário; 13º salário; repouso semanal remunerado, de preferência aos domingos; férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; licença-gestante, com duração de 120 dias, paga diretamente pelo INSS; aviso prévio; vale-transporte; inscrição na Previdência Social. Entretanto, não são assegurados, a essa categoria, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e a delimitação da jornada de trabalho (BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000). Com base na definição mais atual do Ministério do Trabalho e Emprego (2007), considera-se empregado(a) doméstico(a) aquele(a) maior de 16 anos que presta serviços de natureza contínua (freqüente, constante) e de finalidade não-lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas. Assim, o traço diferenciador do emprego doméstico é o caráter não-econômico da atividade exercida no âmbito da residência. Nesses termos, integram a categoria os(as) seguintes trabalhadores(as): cozinheiro(a), governanta, babá, lavadeira, faxineiro(a), vigia, motorista particular, jardineiro(a), acompanhante de idosos(as), entre outras. O(a) caseiro(a) também é considerado(a) empregado(a) doméstico(a), quando o sítio ou local onde exerce a sua atividade não possui finalidade lucrativa. As trabalhadoras domésticas diaristas não entram nessa definição legal, mas estão presentes nas definições feitas pelos órgãos de pesquisa a respeito do que é o trabalho doméstico. Contudo, como o foco aqui é a relação, as diaristas – caracterizadas pelo pouco contato com as pessoas para as quais presta serviço – não se enquadram em nossos objetivos, pois a sua forma de trabalho não permite uma relação duradoura com a patroa. São direitos do trabalhador(a) doméstico(a): 1) Carteira de Trabalho e Previdência Social, devidamente anotada; 2) salário mínimo fixado em lei; 3) irredutibilidade salarial; 4) 63 13º (décimo terceiro) salário; 5) repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos. 6) feriados civis e religiosos; 7) férias de 30 (trinta) dias remuneradas; 8) férias proporcionais, no término do contrato de trabalho; 9) estabilidade no emprego em razão da gravidez; 10) licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário; 11) licençapaternidade de 5 dias corridos; 12) auxílio-doença pago pelo INSS; 13) aviso prévio de, no mínimo, 30 dias; 14) aposentadoria; 15) integração à Previdência Social; 16) vale-transporte. 17) Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), benefício opcional; 18) SeguroDesemprego concedido, exclusivamente, ao (à) empregado(a) incluído(a) no FGTS (MTE, 2007). São deveres do(a) trabalhador(a) doméstico(a): 1) Portar carteira de trabalho, comprovante de inscrição no INSS e atestado de saúde, caso necessário; 2) ser assíduo no cumprimento de suas tarefas, 3) assinar recibo de quitação do salário, 4) comunicar pedido de dispensa com 30 dias de antecedência (MTE, 2007). São obrigações do(a) empregador(a): 1) assinar a carteira de trabalho e devolvê-la ao trabalhador(a) em até 48 horas; 2) efetuar o pagamento do salário em dia útil no local de trabalho (em dinheiro) ou mediante conta corrente aberta para esse fim, com o consentimento do(a) trabalhador(a); 3) Preencher devidamente os recibos dos salários, 13º e férias, em duas vias; 4) fornecer ao empregado(a) a via do recolhimento mensal do INSS; 5) É proibido ao empregador(a) fazer constar na carteira do(a) empregado(a) qualquer informação desabonadora de sua conduta (MTE, 2007). O(a) empregado(a) doméstico(a), por falta de expressa previsão legal, ainda não tem acesso aos seguintes benefícios: 1) recebimento do abono salarial e rendimentos relativos ao Programa de Integração Social (PIS), em virtude de não ser o(a) empregador(a) contribuinte desse programa; 2) salário-família; 3) benefícios por acidente de trabalho (ocorrendo acidente e necessitando de afastamento, o benefício será auxílio-doença); 4) adicional de periculosidade e insalubridade; 5) horas extras; 6) jornada de trabalho fixada em lei; 7) adicional noturno; 8) Fundo de Garantia por Tempo de Serviço obrigatório (MTE, 2007). Argumenta-se que as diferenças nas leis que regem o trabalho doméstico se devem ao fato de que ele não configura uma relação capital-trabalho típica: não gera lucro para a família na qual ela trabalha e esta, por sua vez, não é uma microempresa. Quanto à jornada, os afazeres domésticos, tanto para a trabalhadora doméstica quanto para a dona-de-casa, não estão sujeitos, como em uma fábrica ou escritório, a ritmos ou tempos delimitados. O registro em carteira é o instrumento legal de que dispõe a trabalhadora doméstica, assim como os demais trabalhadores do país, para ter acesso aos direitos trabalhistas e constitucionais. Mas é 64 também um incentivo para a maior permanência no emprego (BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000). 1.5 Trabalho feminino e subalternidade O trabalho, em seu sentido amplo, guarda sérias contradições. Pode parecer estranha essa afirmação, considerando que quando se fala em trabalho, a primeira coisa que vêm à cabeça é que quase tudo o que temos, o que vemos à nossa volta e boa parte do que somos, para nós mesmos e para os outros, vem do trabalho humano. Seja o trabalho direto ou indireto, a sociedade não passa sem ele, na verdade não é demais afirmar que não haveria vida humana sem trabalho. É esse esforço humano racional, intencional e dirigido que cria tudo de que precisamos, e até o que não precisamos. Por outro lado, justamente pela sua importância fundamental na produção da vida, individual e coletiva, o trabalho, quando se torna fonte de sofrimento, de adoecimento e mesmo de morte, atinge profundamente aquele que o executa, da mesma forma que atinge positivamente quando demonstra sua face criadora. O trabalho ordena boa parte da vida das pessoas, impõe demandas, limites, dificuldades, cria impasses e restringe ou alarga possibilidades. É o trabalho que coloca o sujeito em movimento e, dependendo das suas exigências e das condições de sua organização e execução, pode ser motivo tanto de realização e prazer, quando de sofrimento e dor. Cada modalidade, tipo ou relação de trabalho tem sua lógica própria, sua maneira de ser executado com maior êxito, dependendo do produto ou serviço a que se destine. Conhecer o processo de trabalho, sua razão e seu resultado, é a condição mínima para que o trabalhador não seja alienado de sua condição de produtor e para que não experimente um cotidiano de isolamento, reificação, não-reconhecimento. Mas, ao que parece, conhecer o processo de trabalho e seus resultados não é o suficiente para impedir o isolamento, a reificação e o não-reconhecimento no trabalho doméstico, marcado pela rotina, pela repetição de tarefas. O prazer e o sofrimento estão na forma socialmente e contextualmente elaborada segundo a qual as relações de trabalho são executadas. Cada sociedade recorre aos seus sistemas de classificação para definir a “natureza”, as propriedades e atribuições de cada sexo. Homens e mulheres sempre foram classificados e sempre receberam determinadas funções sociais. A primeira e mais importante dimensão que as formas de classificação social atuam é a esfera do trabalho, da produção da vida material. 65 Em todas as sociedades conhecidas, homens e mulheres possuem funções particulares na execução das atividades laborais. O que chama atenção, na realidade, não é a distinção tradicional dos papéis sexuais na esfera do trabalho, mas o fato de que as funções sociais atribuídas às mulheres no âmbito do trabalho sempre foram funções subordinadas. A divisão social do trabalho sempre produziu e refletiu a desigualdade não somente entre os sexos, ou seja, entre homens e mulheres, mas entre o que é socialmente classificado como masculino e feminino. O termo “divisão sexual do trabalho” se refere à distribuição diferencial de homens e mulheres no mercado de trabalho, nos ofícios e nas profissões, no trabalho doméstico, e as variações no tempo e no espaço dessa distribuição. Mas, falar em termos de divisão sexual do trabalho também significa mostrar que essas desigualdades são sistemáticas e que se deve buscar articular essa descrição do real como uma reflexão sobre os processos mediante os quais a sociedade utiliza essa diferenciação para hierarquizar as atividades e, portanto, os sexos, em suma, para criar um sistema de sexo-gênero, que nada tem de natural (HIRATA, 1998). As relações entre os sexos se modificam histórica e socialmente. Tem como características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social agregado. Essa forma particular da divisão social do trabalho tem dois princípios organizadores: o primeiro é o princípio de separação (existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem “vale” mais que um trabalho de mulher). Esses princípios gozam de uma rara generalidade no tempo e no espaço e podem ser aplicados mediante um processo específico de legitimação, a “ideologia naturalista”. Esta ideologia reduz o gênero ao sexo biológico e reduz as práticas sociais a “papéis sociais” sexuados que remetem ao destino natural da espécie (HIRATA & KERGOAT, 2007). O Brasil, assim como todo o mundo ocidental, passou por transformações consideráveis na segunda metade do século XX, criando o que Hirata & Kergoat chamam de a “Nova divisão sexual do trabalho”. De forma breve, é possível dizer que os pontos fortes das novas modalidades da divisão sexual do trabalho são os seguintes: 1) a relativa reorganização simultânea do trabalho no campo assalariado e no campo doméstico e 2) o duplo movimento de encobrimento ou atenuação das tensões nos casais burgueses, de um lado, e a acentuação das clivagens objetivas entre mulheres, de outro: ao mesmo tempo em que aumenta o número de mulheres em profissões de nível superior, cresce o de mulheres em situação precária 66 (desemprego, flexibilidade, feminização das correntes migratórias) (HIRATA & KERGOAT, 2007). As mudanças acima referidas permitiram a algumas classes de mulheres passar da conciliação de tarefas domésticas com profissionais para a delegação dos afazeres domésticos para terceiros. Essa possibilidade de delegar à outra a execução dos afazeres do lar se deve à polarização do emprego das mulheres (algumas em carreiras bem sucedidas, outras em ocupações precarizadas) e ao crescimento da categoria de profissões de nível superior e de executivas. Essas mulheres têm não apenas a necessidade, mas também os meios de delegar a outras mulheres as tarefas domésticas e familiares. Esse modelo de relação, de resto, tornouse possível graças ao aumento acelerado dos empregos no setor de serviços. É essa expansão dos empregos em serviços nos países capitalistas ocidentais, tanto industrializados como semi-industrializados e em vias de desenvolvimento, como o Brasil, que oferecem novas “soluções” para o antagonismo entre responsabilidades familiares e profissionais. As razões da permanência da atribuição do trabalho doméstico às mulheres, mesmo no contexto da reconfiguração das relações sociais de sexo a que se assiste hoje, continuam sendo um dos problemas mais importantes na análise das relações sociais de sexo/ gênero. E o que é mais surpreendente é a maneira como as mulheres continuam a se incumbir do essencial desse trabalho doméstico, inclusive as militantes feministas, sindicalistas, políticas, plenamente conscientes dessa desigualdade, da opressão e da divisão do trabalho doméstico (HIRATA & KERGOAT, 2007). O problema da desigualdade social se apresenta não apenas na divisão sexual do trabalho em uma sociedade, mas também na divisão internacional do trabalho. Sem dúvida, as desigualdades sexuais se iniciam na esfera do trabalho, e é nela que encontram suas maiores expressões. O trabalho feminino é sempre tido como um trabalho de natureza diferente, porque inferior. Por isso, a história e a sociologia do trabalho masculino e a história e a sociologia do trabalho feminino são quase sempre distintas. A inserção laboral das brasileiras é marcada por progressos e atrasos. De um lado, é clara a intensidade e a constância do aumento da participação feminina no mercado de trabalho, que tem ocorrido desde a metade dos anos 1970; de outro, o elevado desemprego das mulheres e a má qualidade do trabalho feminino. De um lado a conquista de bons empregos, o acesso a carreiras e profissões de prestígio e a cargos de gerência e mesmo diretoria, por parte de mulheres escolarizadas; de outro, o predomínio do trabalho feminino em atividades precárias e informais. 67 Apesar do considerável avanço, no entanto, as mulheres ainda estão longe de atingir as taxas masculinas de atividade, superiores a 70% (BRUSCHINI, 2007). Além dessas transformações, mudanças nos padrões culturais e nos valores relativos ao papel social da mulher alteraram a identidade feminina, cada vez mais voltada para o trabalho remunerado. Ao mesmo tempo, a expansão da escolaridade e o ingresso nas universidades viabilizaram o acesso delas às novas oportunidades de trabalho. Todos esses fatores explicam não apenas o crescimento da atividade feminina, mas também as suas transformações no perfil da força de trabalho (BRUSCHINI, 2007). Entretanto, apesar de todas essas mudanças, muita coisa não mudou: as mulheres permanecem como as principais responsáveis pelas atividades domésticas e cuidados com os filhos e demais familiares, o que representa uma sobrecarga para aquelas que também realizam atividades econômicas. A primeira geração de estudos sobre trabalho feminino, no Brasil, focalizou exclusivamente a ótica da produção, sem levar em conta o fato de que o lugar que a mulher ocupa na sociedade também está determinado por seu papel na família. O debate teórico e as pesquisas sobre o trabalho feminino tomaram um novo rumo quando passaram a focalizar a articulação entre o espaço produtivo e a família, ou espaço reprodutivo. Pois, para as mulheres, a vivência do trabalho implica sempre a combinação dessas duas esferas, seja pela articulação, seja pela superposição, tanto no meio urbano quanto no rural. A expansão da escolaridade, à qual as brasileiras têm tido cada vez mais acesso, é um dos fatores de maior impacto sobre o ingresso das mulheres no mercado de trabalho. A escolaridade das trabalhadoras é muito superior à dos trabalhadores, diferencial de gênero que se verifica também na população em geral. No ensino profissional, os percentuais femininos de conclusão são bastante elevados, sobretudo no ensino técnico, na área de serviços, em várias de suas especialidades. Não obstante a isso, os salários masculinos continuam maiores. Contudo, as escolhas das mulheres continuam a recair preferencialmente sobre áreas do conhecimento tradicionalmente “femininas”, como educação (81% de mulheres), saúde e bem-estar social (74%), humanidades e artes (65%), que preparam as mulheres para os chamados “guetos” ocupacionais femininos (BRUSCHINI, 2007). Em 2005, quase 40% das mulheres estavam concentradas em três subsetores da área de serviços, a saber, “educação, saúde e serviços sociais”, “serviços domésticos” e “outros serviços coletivos, pessoais e sociais” (BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000). O trabalho doméstico remunerado é o nicho ocupacional feminino por excelência, no qual mais de 90% dos trabalhadores são mulheres. Ele se mantém como importante fonte de ocupação, absorvendo cerca de 18% da força de trabalho feminina atualmente. Esse 68 percentual tem diminuído no tempo, em números relativos, uma vez que em 1970, absorvia mais de 1/4 da mão-de-obra feminina. Contudo, em números absolutos, a quantidade de trabalhadoras domésticas triplicou-se. A ocupação de trabalhadora doméstica representa atualmente oportunidade de colocação para mais de 7 milhões de mulheres no mercado de trabalho brasileiro e é considerada precária em razão das longas jornadas de trabalho desenvolvidas pela maioria das trabalhadoras, pelo baixo índice de posse de carteira de trabalho (apenas 27% delas) e pelos baixos rendimentos auferidos (96% ganham menos de dois salários mínimos) (BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000). À medida que a mulher é levada a inserir-se no mercado de trabalho, enfrenta o preconceito por ser mulher. No caso da trabalhadora doméstica, o preconceito é duplo, por ser mulher e por pertencer a uma classe inferior, dominada, com menos chances de mobilidade social. Além disso, a trabalhadora doméstica enfrenta sempre uma dupla jornada: se não mora no serviço, enfrenta a jornada de trabalho doméstico na casa da patroa e na sua casa; se mora no serviço, enfrenta uma jornada que quase sempre extrapola muito a média de oito horas de trabalho diário. Ademais, as mulheres, trabalhadoras domésticas ou não, recebem salários inferiores aos dos homens e dispõem de menos oportunidades de trabalho, porque ficam restritas às profissões tipicamente femininas. Todas essas condições conduzem a uma visão distorcida da contribuição do trabalho feminino para a manutenção das famílias. Há uma forte ideologia por trás do trabalho feminino. O trabalho doméstico é visto e celebrado como o trabalho genuinamente feminino, a mulher é vista como alguém que já nasce sabendo as artimanhas do serviço doméstico. O apelo ao “instinto materno”, à sensibilidade, à habilidade nata de administrar um lar, tudo isso contribui para que a maioria das mulheres pobres veja no trabalho doméstico a sua única alternativa de sobrevivência. Voltado para o consumo da família, o trabalho doméstico implica a provisão de um serviço pessoal, e a mulher tem internalizado a ideologia do “servir o outro” como condição natural de seu papel social. Uma dona de casa trabalha para a família, desempenhando uma atividade sem salário, considerado um não-trabalho, acarretando a freqüente desvalorização do lugar que a mulher ocupa, tornando-o uma posição subordinada nas relações de poder na família, comunidade e demais esferas sociais. O trabalho doméstico se torna um trabalho pago quando a dona de casa delega parte da ou toda a responsabilidade da casa para outra pessoa, a qual, dentro da mesma ideologia de “servir o outro”, desempenha o mesmo trabalho em troca de um salário, reproduzindo a força de trabalho, mas em outra casa, para outra família, para outra mulher. A recorrência à essa ideologia impede (ou dificulta) que a mulher assuma plenamente sua participação na 69 sociedade, na política, na esfera pública. O trabalho doméstico remunerado exercido pela trabalhadora doméstica é objeto da mesma desvalorização social carregada pelo trabalho da dona-de-casa. Seu papel inferior se deve à ideologia que considera o “servir ao outro” como algo natural da mulher, envolvendo a identidade da patroa e da trabalhadora doméstica. Por ser o trabalho doméstico remunerado desenvolvido por mulheres das classes populares e envolver uma relação de poder vertical e assimétrica com os empregadores, a desvalorização social é acentuada e contradições são geradas entre mulheres de diferentes classes. A relação de trabalho entre trabalhadoras domésticas e patroas é encoberta com os efeitos das contradições de classe e identificação de gênero estabelecida entre as mulheres. De um lado, é possível falar em subordinação social das mulheres, e de outro, de exploração de classe 4 (LEÓN, 1989). Além disso, quando o local de trabalho é, ao mesmo tempo, a casa e o lugar de consumo, é praticamente impossível que a relação seja totalmente impessoal. Relações de trabalho nas quais o antagonismo de classe é mais óbvio se entrelaçam com e obscurecem a mútua identidade da trabalhadora doméstica e da patroa que mantém a aceitação da identidade feminina designada ao trabalho doméstico. Essa identidade mútua é experimentada como uma relação afetiva no nível pessoal que é limitada pelas assimetrias de poder que definem a posição de classe de cada mulher. A posição defendida por León (1989) é contrária ao argumento de que o serviço doméstico é essencial e indispensável. Essa posição mantém intocada a vinculação da mulher à esfera doméstica e as relações nas quais a trabalhadora doméstica provê esse serviço. Essa perspectiva gera mais desigualdade e encobre o papel do Estado em assumir os custos da reprodução da força de trabalho. Contudo, ressalta a autora, um dos processos cruciais e mais difíceis é estimular a consciência política das trabalhadoras domésticas. Em função de seu isolamento, da transitoriedade com que encaram seu trabalho, do tempo escasso que têm e do sentimento de subordinação aos patrões, torna-se difícil criar uma consciência política. Soma-se a isso a frustração que abate as agentes desse setor tradicionalmente subordinado de relações de trabalho. Torna-se, assim, mais complicado mostrar para as trabalhadoras domésticas que elas são portadoras de direitos. Mas isso é possível e desejável, é necessário que as trabalhadoras domésticas se organizem coletivamente, para criar melhores 4 É importante mencionar que a exploração é um fenômeno mais complexo do que uma simples polarização entre classes dominantes e classes dominadas. Dentro de cada classe existem subsetores que requerem análises mais detalhadas, que reflitam uma estruturação social das diferenças mais detalhada. Esse aspecto é particularmente importante para o estudo das relações entre trabalhadoras domésticas e empregadoras, pois envolve o contrato entre diferentes setores sociais. 70 condições de trabalho e de vida. Com relação à ideologia patronal, o que se precisa fazer primeiro é desmistificar a ligação da mulher ao doméstico e estimular a consciência de que a atual divisão sexual do trabalho deve ser combatida (LEÓN, 1989). Embora a relação “trabalhadora doméstica-patroa” seja visivelmente assimétrica, ela precisa ser examinada na sua complexidade, não apenas como um reflexo de antagonismos de classe. Frequentemente, os antagonismos de classe são encobertos pela identificação mútua entre trabalhadora doméstica e patroa. As mulheres não escolhem simplesmente e livremente entrar no serviço doméstico. Elas têm alternativas limitadas, ou nenhuma alternativa. Essa restrição de alternativas tem a ver com a situação de pobreza dessas mulheres. Outra razão impõe o serviço doméstico para as mulheres pobres: além de trabalho, o serviço doméstico é um abrigo, um refúgio, que pode readaptar a personalidade feminina em um contexto de migração, por exemplo. Garcia Castro (1989) ressalta um ponto: quando a trabalhadora doméstica se identifica como membro de uma classe trabalhadora, ela escolhe uma identidade específica como pessoa, como ser social dotado de um potencial transformador das relações de trabalho. Ela escolhe uma identidade pessoal como ser social capaz de uma participação, com outras pessoas oprimidas, na luta pela transformação da sociedade em uma sociedade sem patrões e sem “empregadas”. O que é vendido e comprado no serviço doméstico feito pela trabalhadora doméstica não é simplesmente trabalho e energia, mas também a identidade da trabalhadora doméstica como pessoa. Essa é a característica específica do serviço doméstico. As trabalhadoras domésticas buscam o reconhecimento como trabalhadoras, não como criadas, serventes ou empregadas. Elas lutam pelo reconhecimento do seu trabalho, pelo seu papel no trabalho de reprodução no dia-a-dia da unidade familiar (CHANEY & GARCIA CASTRO, 1989). A evolução dos direitos de cidadania ao longo do século XX contribuiu para transformar a “criada” para todo o serviço, característica do final do século XIX, na trabalhadora doméstica remunerada, tanto na denominação quanto no status e na obtenção de direitos sociais coletivos. Ou seja, tentou tornar as trabalhadoras domésticas “trabalhadores como os outros”. Essa reivindicação é recorrente por parte das trabalhadoras domésticas organizadas na Europa e nas Américas, e diz muito sobre a definição existencial de estatuto profissional e também sobre questões práticas dos direitos e deveres implicados nos contratos individuais estabelecidos no espaço privado. O século XX repensou o trabalho doméstico assalariado, e transformou de um “estado de serviço” em um “emprego de serviço”, uma profissão definida. Essa transformação se deu em duas direções: em relação às trabalhadoras 71 domésticas, tentou-se aproximar a quantidade e a qualidade do trabalho doméstico ao efetuado em um emprego clássico, emprego que não obriga mais à servidão como destino; em relação ao trabalho em si, o empregador foi progressivamente obrigado a reconhecer outras normas para além da aparência social, como a regulação do comportamento em relação à dignidade humana. “O objetivo desse duplo movimento foi efetivamente suprimir a contradição entre a antiga noção de serviço (vinculada à escravidão) e a democracia, entre uma situação de dependência extra-econômica e a autonomia social do trabalhador cidadão” (FRAISSE, 2003, p. 180). Ora, a emancipação não é uma qualidade intrínseca de nenhuma relação de trabalho, assim como a subordinação também não o é. Além disso, o desenvolvimento tecnológico e a profissionalização das mulheres podem ser processos simultâneos à manutenção da população feminina nos serviços domésticos. Por isso, é preciso reafirmar o caráter de “construção social” do serviço doméstico como trabalho subalterno, e não reiterar o trabalho doméstico como um trabalho “naturalmente” inferior. Feito isso, fica clara a necessidade de pensar maneiras de intervir socialmente e transformar a representação negativa da profissão. 72 CAPÍTULO 2 – IDENTIDADE, DIFERENÇA E DESIGUALDADE: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E CONCEITUAL 2.1 Pensando a identidade no serviço doméstico Podemos começar este capítulo com a pergunta: por que é importante pesquisar a construção de identidades nas relações de trabalho doméstico remunerado? A identidade, nos estudos mais expressivos sobre o tema, tanto na sociologia quanto na psicologia social, é o elo simbólico que liga o indivíduo à sociedade. Ou seja, é a ponte que estabelece conexão entre os indivíduos e conecta, ao mesmo tempo, cada indivíduo ao grupo social mais amplo. O mesmo processo de construção e manutenção da identidade que faz o indivíduo se sentir pertencente a um grupo ou comunidade faz também com que a comunidade ou grupo veja aquele indivíduo como um integrante, um participante, um membro. A identidade, assim, é o substrato social do qual os indivíduos são construídos por meio dos processos de socialização. O trabalho doméstico remunerado, como mencionado no primeiro capítulo, é uma atividade profissional que coloca em interação a pessoa que presta o serviço e a pessoa ou família que o contrata. Como uma relação de serviço, supõe o contato direto entre as pessoas nele envolvidas, mobilizando uma linguagem – verbal e não-verbal – necessária à comunicação entre os seus agentes. A socialização, processo pelo qual se constrói a identidade, como veremos adiante, supõe justamente uma relação direta ou indireta entre pessoas por meio do uso de uma linguagem pela qual um indivíduo se reconhece como ocupante de uma posição social e executor de um papel social relativamente aos outros indivíduos que compõe a mesma “cena” social. Considerando que o processo de socialização e construção de identidades se dá, de acordo com o referencial teórico que veremos, principalmente nos âmbitos da família, da escola e do trabalho, a compreensão da relação entre trabalhadora doméstica e patroa passa necessariamente pela análise da identidade. O presente trabalho assume a hipótese de que a desigualdade entre trabalhadoras domésticas e patroas se constrói pelo mesmo processo que as identidades de ambas são construídas. Consequentemente, considerando que as identidades não são naturais, essenciais ou definitivas, considera-se que a desigualdade também não faz parte da “natureza das coisas”, mas é construída e reconstruída na relação em foco, atravessando as posições de ambas as agentes nos grupos que se encontram inseridas, sendo definidas de acordo com o 73 contexto que envolve desde as características particulares da composição da unidade familiar até representações culturais construídas ao longo da história. Daí a importância de investigar a construção cotidiana das identidades de trabalhadoras domésticas e patroas para compreender suas diferenças e descortinar as desigualdades que se configuram em cada contexto. Essa empreitada exige o esclarecimento de um referencial teórico-metodológico, que constitui o objetivo desta seção. A questão da identidade coloca em jogo diversos problemas teóricos, entre os quais a relação entre indivíduo e sociedade, a oposição binária entre essencialismo e nãoessencialismo, a constituição de discursos nos quais as identidades se fundam e são negociadas nos processos de interação. Todas essas questões serão consideradas aqui, dando prioridade às idéias dos autores que buscaram uma mediação entre indivíduo e sociedade por meio de uma teorização que desessencializa e desnaturaliza a identidade, bem como todos os demais processos sociais. 2.2 Perspectivas teóricas para o estudo da identidade Colocar a identidade em questão supõe considerar a relação entre indivíduo e sociedade, problemática muito cara às ciências sociais. Um dos principais objetivos dos autores do que se convencionou chamar de sociologia contemporânea é justamente o de encontrar uma mediação para a problemática indivíduo-sociedade, que nos clássicos da sociologia parece ter ficado mal resolvida. Elegemos aqui duas abordagens distintas, a de Bourdeu e a de Goffman, úteis para a conceituação de identidade e desigualdade que sucederá a sua discussão. Bourdieu (1996) encara o problema da mediação entre indivíduo e sociedade por meio dos conceitos de conhecimento praxiológico, habitus e campo. Para ele, os métodos oscilam entre o objetivismo e a fenomenologia. O positivismo e o estruturalismo seriam os métodos objetivistas, de um lado, e o interacionismo simbólico e a etnometodologia os métodos subjetivistas, de outro. Em termos de sociologia clássica, Bourdieu considera a oposição entre Durkheim e Weber. Como alternativa a esses dois métodos, Bourdieu propõe o conhecimento praxiológico, que procura articular dialeticamente ator social e estrutura social. Seu objeto são as relações dialéticas entre as estruturas objetivas e as disposições estruturadas nas quais ela 74 se atualiza e que tendem a reproduzi-la. Assim, a questão que se coloca é a da interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade. O que Bourdieu pretende não é tomar partido nessa dicotomia, mas ultrapassar tanto o objetivismo quanto o subjetivismo. Para este autor, a comunicação se dá enquanto interação socialmente estruturada. Os agentes que falam se encontram em posições socialmente estruturadas por uma relação de poder que reproduz a distribuição desigual de poderes da sociedade. Nessa perspectiva, não há a consideração da apreensão do mundo como intersubjetividade. Assim como para Marx, para Bourdieu os homens fazem a história sem saber que a fazem. O conhecimento praxiológico conserva, de certo modo, o objetivismo, mas tenta encontrar uma mediação entre o indivíduo e a sociedade. Para estabelecer a mediação entre indivíduo e sociedade, Bourdieu recorre à escolástica e reconstrói a noção de habitus. Este, para a escolástica, funciona como um modus operandi, ou seja, como disposição estável para se operar numa determinada direção. Bourdieu reinterpreta a noção da seguinte forma: Sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente „regulamentadas‟ e „reguladas‟ sem que por isso sejam o produto de obediência a regras, objetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha necessidade da projeção consciente deste fim ou do domínio das operações para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação organizadora de um maestro (BOURDIEU, 1996, p.61). A interiorização das normas e princípios pelos atores assegura a adequação entre a ação individual e a realidade objetiva. O habitus não se aplica somente à interiorização das normas, mas inclui os sistemas de classificação que preexistem às representações sociais, às escolhas e mesmo às ações individuais. Bourdieu afirma que as categorias hierarquizadas de classificação reproduzem as relações sociais historicamente determinadas. Assim, a dominação se dá tanto no discurso ideológico quanto nas categorias que orientam a representações sociais. Se os sistemas de classificação são engendrados pelas condições sociais, e se as condições objetivas de distribuição de bens materiais e simbólicos são desiguais, então toda escolha tende a reproduzir as relações de dominação. O habitus é social e individual ao mesmo tempo, e refere-se a uma classe e ao indivíduo em particular. O processo de internalização da objetividade se dá de forma subjetiva, mas não pertence ao domínio do controle do indivíduo. A socialização gera um habitus primário característico de uma classe, formando as disposições futuras para a 75 renovação e ampliação desse habitus de classe. A formação deste se dá primeiro, na família, depois na escola, depois na sociedade em geral. O habitus individual é uma variante do habitus do grupo. Bourdieu considera o agente social em função das relações objetivas que regem a estruturação da sociedade. Assim, a prática consiste no produto da relação dialética entre uma situação e um habitus. Bourdieu define como “campo” o espaço onde as posições dos agentes encontram-se fixadas a priori, segundo uma estrutura interna de estratificação do poder. É no campo que se trava uma luta concorrencial em torno de interesses específicos. Nele prevalece o que Bourdieu (2003) chama de poder simbólico, que é exercido silenciosamente por meio de símbolos e significados, e é definido numa relação determinada entre os que exercem o poder e os que lhe são sujeitos. O que constitui o poder simbólico é a crença na sua legitimidade e na legitimidade de quem o exerce (BOURDIEU, 2003). Todo ator age em um campo, mas esse independe da ação individual. Assim, o campo transcende a relação entre atores, não cabendo a estes a capacidade de definir a situação em que se dá a interação com os outros. Assim definido, o habitus parece não permitir a mudança social. Mas, Dubar (2005) se pergunta: será isso mesmo o que Bourdieu quer dizer? Dubar afirma que, em várias obras, Bourdieu reitera que o habitus tende a reproduzir as estruturas de que é produto apenas na medida em que as estruturas nas quais ele funciona sejam idênticas ou homólogas às estruturas objetivas de que ele é produto. A distinção entre condições de produção e condições de funcionamento introduziria um elemento de incerteza e dinâmica na teoria do habitus. Entretanto, não parece muito visível essa abertura à mudança. O conceito de habitus termina por supor que sempre há uma adequação entre a ação individual e a realidade objetiva, e que esta última ultrapassa as ações individuais. Dessa forma, o autor, mesmo buscando uma mediação entre objetivismo e subjetivismo, pende para o primeiro, conferindo privilégio à sociedade frente ao indivíduo. Se Bourdieu a procura uma mediação teórica nas relações entre indivíduos previstas pela estrutura de poder da sociedade, Goffman (1998) busca a compreensão da identidade analisando as relações microssociais de interação face-a-face. Ao contrário de Bourdieu, o autor acredita que é nas interações cotidianas que se constrói e reconstrói aquilo que é chamado de “objetividade do mundo social” e, por isso, os atores são capazes de definir a situação para suas ações, no sentido de examinar e deliberar dentro de um contexto linguístico, afim de que todos possam saber o que esperar de cada um. Segundo Goffman (1998), cada sociedade estabelece formas de categorizar as pessoas e os atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas 76 categorias. Cada ambiente social estabelece uma categoria de pessoas que tem probabilidade de ser nele encontradas. Mas é na interação face-a-face que os indivíduos colocam em prática essas expectativas normativas, em um contexto histórico-social, influenciando-se mutuamente. As expectativas normativas, confrontadas com o comportamento concreto, podem gerar reações imprevisíveis do ponto de vista estrutural, levando a pequenas rupturas com a ordem estabelecida e, consequentemente, mudanças na própria estrutura social e nas expectativas normativas sustentadas pelos indivíduos. A identidade, de outro modo, pode desempenhar – e frequentemente desempenha – um papel estruturado, rotineiro e padronizado na organização social, e isto se dá justamente devido à sua unicidade, à sua característica individualizadora que distingue uns indivíduos dos outros e ao mesmo tempo os coloca em relação. Utiliza-se um conjunto de marcas para diferenciar a pessoa assim marcada de todos os outros indivíduos. Os contatos aparentemente casuais da vida quotidiana podem constituir algum tipo de estrutura que prende o indivíduo a uma biografia, e isso a despeito da multiplicidade de "EUs" que os papéis sociais lhe permitem. Além da biografia, os indivíduos encontram-se inevitavelmente ligados aos seus grupos, no sentido amplo de pessoas situadas numa posição semelhante. O que um indivíduo é, ou poderia ser, deriva do lugar que ocupam os seus iguais na estrutura social. A “natureza” de uma pessoa é gerada pela “natureza” de suas filiações grupais. Esses termos da interação podem ser relacionados com outros termos estruturais convencionais, já que a perspectiva interacionista supõe uma teoria da estrutura social. Não obstante, essa teoria assume que os indivíduos têm a capacidade de “definir a situação”, identificando as motivações dos outros atores e gerando expectativas quanto às suas ações numa situação de interação. Desse modo, Goffman (2005) revela muito do que é chamado de interacionismo simbólico, uma perspectiva que leva em consideração a construção e reconstrução constante da realidade social pelos atores nas interações sociais. De fato, o interacionismo pressupõe que as interações ocorrem dentro de uma estrutura social, mas que essa é construída intersubjetivamente a partir de contextos sociais cotidianos, por meio das ações que os atores desempenham quando estão na presença de outros. Portanto, nessa perspectiva, a estrutura social não é objetiva, não existe fora dos indivíduos. Ao contrário, são eles que a constroem nas relações sociais. O mesmo ocorre com as instituições sociais. As regras e normas são criadas socialmente e a força de coerção que adquirem vem da intersubjetividade que as sustentam. 77 Essa abordagem da relação entre indivíduo e sociedade é a que mais se alinha aos objetivos desta pesquisa, como será esclarecido mais adiante. Uma abordagem interacionista da identidade se revela frutífera para apreender as diferenças e desigualdades construídas nas relações entre trabalhadoras domésticas e patroas sem que se caia na armadilha do objetivismo, ou seja, sem naturalizar, do ponto de vista teórico mesmo, as condições nas quais essa relação transcorre em seus mais diversos contextos. Por outro lado, essa abordagem não prescinde da consideração dos elementos estruturantes da sociedade. Por isso, essa perspectiva será privilegiada ao longo do trabalho, em conexão com a perspectiva dos chamados estudos culturais. 2.3 Perspectivas essencialistas e não-essencialistas da identidade A perspectiva essencialista da identidade, onde quer que ela apareça, defende que um conjunto de características cristalizadas determina certa identidade, conferindo-a um caráter fixo e imutável, presente na própria natureza do indivíduo que a desempenha. Essa idéia pode apoiar-se em elementos históricos (fatos anteriores vistos como comuns a todos que partilham da vida de um grupo), biológicos (características físicas partilhadas pelos elementos do grupo) ou mesmo culturais (sistemas simbólicos nos quais se fundam as crenças e inclinações mais gerais). Essa visão essencialista da identidade, por conceber que cada indivíduo ou grupo possui uma identidade que lhe é inerente, presente no interior de sua própria constituição e da qual não se pode escapar, não leva em consideração a característica relacional da identidade. Parte do indivíduo ou grupo que a manifesta, sem se preocupar com a influencia recíproca que é constitutiva do social. Por outro lado, a perspectiva não-essencialista defende que a identidade é contingente, produto da intersecção de diferentes componentes, de discursos políticos e culturais e histórias particulares (WOODWARD, 2007). Hall (2005) ilustra essa contingência do ponto de vista histórico, diacrônico, tipificando três concepções gerais de identidade que são passíveis de identificação no curso da história: o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. O sujeito do Ilumisnismo era baseado numa concepção de pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, dotado de razão, de consciência e de ação, cujo centro consistia num núcleo interior que emergia no seu nascimento e se desenvolvia, permanecendo 78 o mesmo. Esse sujeito caracterizou-se por ser indivisível, singular, único. Foi esse sujeito, com essa identidade, que colocou em marcha a modernidade. O sujeito sociológico, por sua vez, está mergulhado nas complexidades crescentes do mundo moderno. Dessa complexidade surgiu o pressuposto de que ele não era totalmente auto-suficiente, como o sujeito do Iluminismo, mas se constituía a partir da relação com outras pessoas que eram importantes para ele, portadoras de valores, sentidos e símbolos. Os sentimentos subjetivos desse indivíduo se interligam com os lugares objetivos da realidade, representando uma ponte entre o interior e o exterior. Suas filiações grupais passam a ser muito mais importantes. O desenvolvimento do mesmo processo de complexificação da sociedade levou ao que é chamado de modernidade tardia, ou pós-modernidade, que modifica a noção de sujeito. O sujeito pós-moderno é um sujeito descentrado, totalmente contrário ao sujeito do Iluminismo. A identidade, que havia passado de unificada e estável para complexa e mutável, agora se tornara fragmentada e instável. Um sujeito passa a poder ser construído a partir de várias identidades e não mais de uma única e exclusiva determinação. Por isso, as identidades se tornaram intercambiáveis, provisórias e variáveis. A essa perda de um “sentido de si” estável Hall chama de “descentramento do sujeito”. Esse descentramento se constitui de um duplo deslocamento, o do indivíduo em relação à posição que ocupa no mundo social e do indivíduo em relação a si mesmo, o que leva à uma “crise de identidade” (HALL, 2005). De acordo com Woodward (2007) as crises globais da identidade derivam de um “deslocamento”. As sociedades modernas atuais não têm qualquer núcleo ou centro determinado que produza identidades fixas, mas, em vez disso, desenvolvem uma pluralidade de centros. O deslocamento dos centros levou a um contexto no qual a identidade é vista como contingente e não-determinável a priori. Mesmo considerando, com Dubar (2005), que a família, a escola e o trabalho continuam sendo as principais esferas em torno das quais as identidades se constroem, não se pode negar que essas esferas estão cada vez mais se complexificando e outras esferas estão emergindo como dimensões importantes tanto para definir quanto desestabilizar as identidades, tornando-as mais imprevisíveis. A dinâmica de identidades evidencia que, do ponto de vista da teoria social, nenhuma identidade pode constituir uma essência, e nenhuma pode ser entendida fora de seu contexto histórico. Uma questão diversa, ainda não respondida satisfatoriamente, mas extremamente importante, diz respeito aos benefícios gerados por parte de cada identidade para as pessoas que a incorporam. 79 2.4 A concepção dos estudos culturais: identidade e diferença, representação e discurso Castells (2002) entende a identidade como uma fonte de significado e experiência de um povo. Em relação aos atores sociais, consiste em um processo de construção relacional de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, os quais prevalecem sobre outras fontes de significado. “Significado” aqui é entendido como a identificação simbólica, por parte de um ator social, da finalidade da ação praticada por tal ator. Para um indivíduo ou grupo social, pode haver múltiplas identidades e essa pluralidade é fonte de contradição tanto na auto-representação quanto na ação social. Para Castells (2002), no momento atual não se pode mais duvidar que as identidades são socialmente construídas. Resta saber como, a partir de quê, por quem e para quê. A construção de identidades vale-se das mais diversas matérias-primas, a história, a geografia, a biologia, as instituições, a memória coletiva, os aparatos de poder, as fantasias pessoais, as revelações religiosas, etc. Porém, esses materiais são processados pelos indivíduos e grupos que reorganizam seus significados em função de tendências e projetos culturais enraizados em uma estrutura social, em um dado momento da história. As políticas de identidade, assim como as políticas da diferença, devem ser situadas historicamente. Segundo Silva (2007), existe uma relação de dependência estreita entre identidade e diferença, mas a forma afirmativa como expressamos a identidade tende a esconder essa relação. As afirmações sobre diferença, da mesma forma, só fazem sentido se tiverem relação com a identidade. Identidade e diferença são, portanto, inseparáveis. Em geral se considera a diferença como produto da identidade. Nesse ponto de vista, a identidade é o ponto do qual se define a diferença. Isto reflete a tendência a tomar aquilo que somos como base para classificarmos os outros, o que não somos. Na origem da identidade e da diferença está o processo de diferenciação. É essa noção que está no centro da conceituação lingüística da diferença. Tanto a identidade quanto a diferença são resultados de atos de criação lingüística. É por meio desses atos que as identidades e diferenças são nomeadas como tais. Como atos lingüísticos, ambas estão sujeitas a certas propriedades que caracterizam a linguagem. Assim como os signos não tem qualquer valor em si, mas assumem um significado em relação a outro signo ou a um objeto concreto, a identidade não faz sentido senão em referência ao 80 diferente. Se a própria linguagem é instável, sendo a identidade e a diferença uma criação a partir de atos lingüísticos, também estas são indeterminadas, instáveis e mutáveis (SILVA, 2007; HALL, 2007). Tanto a identidade como a diferença constituem uma relação social, o que significa que sua definição discursiva e linguística está sujeita a relações de poder. Ambas são não somente definidas, mas impostas e disputadas. A disputa pela identidade envolve a disputa por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade. A identidade e a diferença estão estreitamente ligadas às formas de classificação social. Se as relações sociais envolvem poder, então dividir e classificar também significa hierarquizar (SILVA, 2007). A identidade é um significado culturalmente atribuído. A teoria da cultura expressa essa idéia por meio do conceito de representação. Identidade e diferença estão estreitamente associadas aos sistemas de representação. Representação aqui é entendida como um sistema de significação social. A representação, nessa concepção é sempre marca visível exterior. É uma forma de atribuição de sentido. É por meio da representação que a identidade e a diferença adquirem sentido e se ligam a sistemas de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir identidades. Portanto, a identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas, a sistemas de representação, guardando estreitas conexões com relações de poder. De acordo com Hall (2007), a identidade, elemento central para a compreensão da agência e da política, é a relação entre sujeitos e práticas discursivas. Essa abordagem discursiva da identificação vê a identidade como uma construção, um processo nunca completado ou determinado. “A identificação é, pois, um processo de articulação, uma suturação que envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção de “efeitos de fronteiras”. Para consolidar o processo, ela requer aquilo que é deixado de fora – o exterior que ela constitui. O conceito de identidade aqui desenvolvido por essa abordagem não é, portanto, um conceito essencialista, mas um conceito estratégico e posicional. Não assinala um núcleo estável do “Eu”, imutável através da história. As identidades nunca são unificadas, mas cada vez mais fragmentadas, não são nunca singulares, mas múltiplas, construídas ao longo do discurso, de práticas ou posições que podem inclusive ser antagônicas. As identidades indicam não aquilo que nós somos, mas aquilo no qual nós nos tornamos, como somos representados e como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios. “É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, 81 por estratégias e iniciativas específicas. Além disso, elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, naturalmente constituída, de uma identidade em seu significado tradicional – isto é, uma „mesmidade‟ que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem diferenciação interna. [...] Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que tem sido chamado de seu exterior constitutivo, que o significado 'positivo' de qualquer termo – e, assim, sua 'identidade' – pode ser construído” (HALL, 2007, p.109). Todas as práticas ou representações culturais implicam posições das quais nós falamos ou escrevemos, posições de enunciação. O que a teoria da enunciação sugere é que, quando falamos, falamos em nosso nome, em nome de nossas experiências. Identidades são nomes que nós damos para os diferentes modos pelos quais nós nos posicionamos dentro de narrativas do passado. Elas sempre se constituem dentro, e não fora, da representação (HALL, 1994). Para Woodward (2007), a identidade é marcada pela diferença, mas algumas diferenças, em determinados contextos, são colocadas em primeiro plano e tidas como mais importantes que outras, e essa é uma questão política. A identidade se vincula às condições sociais e materiais, assim como tem conseqüências sociais e materiais. Os sistemas simbólicos são utilizados para dar sentido às relações e marcar quem faz parte do “nós” e quem faz parte dos “outros”. É por meio da diferenciação social que as classificações sociais são vivenciadas nas relações. Os sistemas de representação que estão na base da identidade guardam estreita ligação com a cultura. Só através da cultura e do conhecimento das “posições-de-sujeito” que ela produz é possível compreender os significados envolvidos nos sistemas simbólicos. A cultura molda as identidades ao dar sentido à experiência e ao tornar possível o desenvolvimento de subjetividades diferentes. A identidade, desse ponto de vista, é a intersecção da vida cotidiana com as relações econômicas e políticas de subordinação e dominação (WOODWARD, 2007). São os sistemas simbólicos que fornecem os sentidos das experiências das divisões e desigualdades sociais. Também por meio deles a identidade é contestada. Considerando-se a vida social como uma realidade simbolicamente constituída, o discurso figura como o ato constituidor das relações sociais e, conseqüentemente, da identidade e da diferença. Embora de caráter simbólico, o discurso possui uma realidade material de coisa pronunciada ou escrita e, por causa dessa realidade material, possui efeitos materiais. O discurso é constituído pelo ato de “pronunciar” ou “enunciar”, que se dá principalmente por meio da fala, da escrita, da expressão corporal. A produção do discurso é uma atividade cotidiana e, por isso, quase nunca questionada. E porque não é questionado, 82 esconde poderes e perigos desconhecidos. Pode estimular, guardar, camuflar e dirimir lutas, relações de dominação e servidão, “vitórias” e “derrotas” através de palavras e gestos, inscrições e símbolos. O discurso tem uma existência transitória, e sua duração não está sob controle dos atores sociais (FOUCAULT, 1996). Em toda sociedade, o discurso é controlado, organizado, distribuído por certo número de procedimentos que têm a função de dominar seu acontecimento aleatório e controlar suas conseqüências materiais e simbólicas, afastando seus perigos. O discurso não apenas manifesta o desejo, mas é também aquilo que constitui o objeto do desejo. Não apenas traduz as lutas e os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo que se luta, o poder do qual se quer apoderar. O discurso se constitui como um jogo de escritura, de leitura e de troca, que se funda na ordem dos signos e dos significados, e não na ordem do significante. Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos, e é nessa prática que os acontecimentos do discurso encontram sua regularidade. Não se pode passar do discurso para seu suposto núcleo interno e escondido, para uma essência que se manifestaria nele, mas, analisando as condições de sua aparição e de sua regularidade, passar às condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras (FOUCAULT, 1996). Para Brah (1996), seguindo esse raciocínio, a questão chave não diz respeito à "diferença", mas a quem define a diferença, como diferentes categorias de pessoas são representadas dentro dos discursos da "diferença" e se a "diferença" diferencia lateral ou hierarquicamente. O conceito de diferença está associado a uma variedade de significados em diferentes discursos. A articulação entre discurso e prática se inscreve nas relações sociais, posições sociais e subjetividades. Dessa forma, a diferença pode ser entendida como experiência, como relação social, como subjetividade e como identidade. A experiência é um processo de significação, de atribuição de sentido, que é a condição mesma para a constituição daquilo que chamamos "realidade". A experiência é o lugar da formação do sujeito, e é também um lugar de contestação. Deve-se distinguir entre a diferença como marcador de distintividade de nossas "histórias" coletivas e a diferença como experiência pessoal inscrevendo a biografia individual. Inscrição e atribuição são processos simultâneos. Como uma pessoa percebe ou concebe um evento varia segundo como "ela" é culturalmente construída. Mas um mesmo contexto cultural pode produzir histórias diferentes. O conceito de "diferença como relação social" se refere à maneira como a diferença é constituída e organizada em relações sistemáticas através de discursos econômicos, culturais e políticos e práticas institucionais. O conceito de "diferença como relação social" sublinha a 83 articulação historicamente variável de micro e macro regimes de poder, dentro dos quais modos de diferenciação tais como gênero, classe ou racismo são instituídos em termos de formações estruturadas. Pode ser entendido como as trajetórias históricas e contemporâneas das circunstâncias materiais e práticas culturais que produzem as condições para a construção das identidades de grupo (BRAH, 2006). A subjetividade, por sua vez, não é nem unificada e nem fixada, mas fragmentada e descontínua. Ao mesmo tempo, o "sujeito-em-processo" é marcado por um senso de coerência e continuidade, que pode ser chamado de "eu". Os elementos constitutivos da mente surgem como conceitos relacionais que revelam os processos de diferenciação e são constituídos em e através de experiência "interior" e "exterior", donde o sujeito é entendido como descentrado e heterogêneo em suas qualidades e dinâmica. A identidade está intimamente ligada à experiência, à subjetividade e às relações sociais. A identidade é uma multiplicidade relacional em constante mudança. Pode ser entendida mesmo como "o próprio processo pelo qual a multiplicidade, contradição e instabilidade da subjetividade é significado como tendo coerência, continuidade, estabilidade; como tendo um núcleo - um núcleo em constante mudança, mas de qualquer maneira um núcleo - que a qualquer momento é enunciado como um 'eu'", diferente do “outro” (BRAH, 2006, p.374). A formação discursiva é um lugar de poder e não há nenhum lugar de poder onde a dominação, a subordinação, a solidariedade, sejam dadas e asseguradas de uma vez por todas (HALL, 2007). Pois o poder é constituído de forma performativa em práticas econômicas, políticas e culturais. A subjetividade de dominantes e dominados é produzida nos interstícios dessas práticas. Mas, de acordo com Foucault (1996), se o discurso é prática e produz poder, a prática do discurso também é um meio de enfrentar a opressão. Portanto, é uma questão empírica saber se a diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão ou em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política. O imperativo para o momento não é compartimentalizar opressões, mas formular estratégias para enfrentar todas elas na base de um entendimento de como se interconectam e se articulam (BRAH, 1996). 2.5 Uma concepção interacionista e relacional da identidade: linguagem e socialização 84 Goffman (2005), o mais conhecido autor da perspectiva denominada de “interacionismo simbólico” busca os verdadeiros sentidos dos processos macrossociais nas situações de co-presença, de interação face-a-face. O autor defende que os atores são capazes de “definir a situação” para suas ações, no sentido de examinar e deliberar dentro de um contexto lingüístico, afim de que todos possam saber o que esperar de cada um. Segundo Goffman (1998), independentemente do objetivo, é do interesse de um indivíduo regular a conduta dos outros, principalmente para regular a maneira como o tratam e para saber qual a melhor maneira de agir para obter a resposta desejada. A interação face-a-face pode ser definida, em linhas gerais, como a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, quando em presença física imediata. As impressões resultantes desse contato são inconscientemente transformadas em expectativas normativas, que se tornam problemáticas quando surge uma situação em que elas são postas à prova. Se as expectativas normativas não são preenchidas, os atores desenvolvem estratégias para acomodar a identidade expressada, o que permite uma reconfiguração da situação social (GOFFMAN, 1998). Assim, os indivíduos demandam uns dos outros determinado tipo de comportamento e imputam uns aos outros uma imagem, que pode ser chamada de “identidade social virtual”. Os atributos que a pessoa demonstra ter na realidade podem ser chamados de “identidade social real”. Se houver uma discrepância conhecida ou manifesta entre a identidade social virtual e a identidade social real, a identidade é questionada e desestabilizada, abrindo margem para a mudança nas relações sociais. O que interessa nessa abordagem não é uma linguagem de atributos, mas uma linguagem de relações. Um atributo que estigmatiza alguém em uma relação pode confirmar a normalidade ou mesmo a “superioridade” de outrem em uma relação diferente. O que Goffman chama de "identidade pessoal" se refere às marcas positivas ou apoio de identidade e a combinação única de itens da história de vida que são incorporados ao indivíduo com o auxílio desses apoios para a sua identidade. Está relacionada com a pressuposição de que um indivíduo pode ser diferençado de todos os outros e que pode se apegar à essa diferença, criando uma história contínua e única de fatos sociais que se torna a substância à qual vêm se agregar outros fatos biográficos. Já a “identidade social” refere-se aos tipos de repertórios de papéis ou perfis que consideramos que qualquer indivíduo pode sustentar – sua "personalidade social". O padrão de ação estabelecido pelos papéis pode ser chamado de “prática”. Ambos os tipos de identidade podem ser mais bem compreendidos se considerados em conjunto e contrastados com o que o autor denomina identidade do "Eu", ou 85 seja, o sentido subjetivo de sua própria situação e sua própria continuidade e caráter que um indivíduo vem a obter como resultado de suas várias experiências sociais. As identidades social e pessoal são parte, antes de mais nada, dos interesses e definições de outras pessoas em relação ao indivíduo cuja identidade está em questão. Por outro lado, a identidade do eu é, sobretudo, uma questão subjetiva e reflexiva que deve necessariamente ser experimentada pelo indivíduo cuja identidade está em jogo. É claro que o indivíduo constrói a imagem que tem de si próprio a partir do mesmo material do qual as outras pessoas já construíram a sua identificação pessoal e social, mas ele tem uma considerável liberdade em relação àquilo que elabora (GOFFMAN, 1998). A identidade, dessa forma, é construída na relação, na interação, na combinação entre o que o autor distingue como identidade social, identidade pessoal e identidade do Eu. As conceituações construídas por Goffman se mostram fundamentais para o propósito de construção de um quadro conceitual para o estudo da identidade, fundamentado na relação, na interação e na intersubjetividade. Um dos mais expressivos representantes da tradição de pesquisa da Escola de Chicago, Strauss (1999) enfatiza a socialização na vida adulta, revisando e complementando a teoria freudiana da socialização. Rejeita uma visão estática da identidade, estabelecendo relações relevantes entre biografias e processos sociais. Confere importância à análise das carreiras e ocupações na busca pelas formas de socialização e transformação da identidade. Elabora uma noção de identidade dinâmica associada ao desempenho de diferentes papéis. A realidade social, portanto, tem o caráter de processo, através das relações dinâmicas entre indivíduos desempenhando papéis em permanente mudança. A negociação da vida social, com suas redes de negociação, pressupõe a possibilidade de conflito a partir das diferenças de posição, interesse e valores. Todas as ordens sociais são precárias e provisórias. A identidade, para Strauss (1999), supõe a ligação entre os indivíduos e a coletividade. E o elo mais importante dessa ligação é a linguagem. Assim como a identidade individual está ligada à identidade coletiva, a interação está ligada à estrutura social. Uma afeta a outra reciprocamente no tempo. A estrutura é moldada pelos atores por meio da interação face-aface, processo complexo, fluido, móvel, corrido, no qual os participantes tomam sucessivas atitudes com relação ao centro. O encontro entre pessoas que desempenham, cada uma, o seu papel e ocupam uma posição de status, não define completamente a interação, mas sugere apenas o quadro geral dentro do qual a interação ocorre. Daí se poder falar em “interação estruturada”. Os seres humanos moldam o mundo, até certo ponto, pressionados por coerções estruturais. Aí reside uma tensão entre liberdade e coerção. 86 Identidade, para Strauss (1999), está associada às avaliações decisivas feitas de nós mesmos, por nós mesmos ou pelos outros. Cada pessoa se apresenta aos outros e a si, mesmo, e se vê nos espelhos dos julgamentos que eles fazem dela. Qualquer discussão da identidade deve passar pela linguagem. Um “nome” é uma denominação distinta pela qual se conhece uma pessoa ou objeto. O ato de nomear, próprio da linguagem, revela muita coisa, tanto de quem nomeia quanto de quem é nomeado. Nomear é conhecer, e a medida do conhecer depende da medida do nomear. Nomear não é apenas indicar, é identificar um objeto com algum tipo de objeto, com uma categoria. Qualquer objeto (considerando inclusive pessoas) é um membro de uma classe mais geral. Definir uma classe significa relacioná-la com outras classes associadas em termos de sistema. Definir ou determinar, ou classificar uma coisa é marcar suas fronteiras. A natureza de um objeto não reside em uma essência interior, mas no modo pelo qual ele é definido por quem nomeia. Quem nomeia, nomeia de algum ponto de vista. O resultado da nomeação se deve à perspectiva e não às coisas nomeadas. A direção da atividade depende das maneiras particulares pelas quais os objetos são classificados. A renomeação de um objeto ou pessoa equivale a uma reavaliação de nossa relação com ele, e o nosso comportamento muda ao longo da reavaliação. É a definição do que o objeto é que define a direção da ação. Um ato de classificação não apenas dirige uma ação, mas desperta expectativas com relação ao objeto classificado. A classificação envolve o passado e o futuro. Classificação, conhecimento e valor são ,portanto, coisas inseparáveis. Entretanto, as classificações não são imutáveis. Enquanto perdurar o aprendizado, persistirá a revisão dos conceitos e enquanto os conceitos forem revisados, haverá a reorganização do comportamento. É a necessidade constante de reavaliação que permite que a vida humana mude e se inove. Do contrário, a ação seria ritualística e estática. A inovação repousa justamente nas situações ambíguas. A classificação e avaliação são questões políticas que envolvem poder. Continuidades de experiência pessoal estão relacionadas sistematicamente com as fornecidas pela estrutura social, mas não são asseguradas pela estrutura social. A descontinuidade tem possibilidades criativas e contingentes (STRAUSS, 1999). A nomeação, enquanto ato de classificação e avaliação do mundo, está no cerne do processo de construção de identidades, tanto para os outros quanto para si mesmo. Ao avaliar seus próprios atos o self se torna um objeto para si mesmo. O self, como qualquer outro objeto, é passivo de um reexame pelo próprio sujeito, pode ser visto pelo próprio sujeito a partir de novas perspectivas. A ratificação ou recusa de outras pessoas importantes acarreta 87 inevitavelmente reinterpretações da nossa própria atividade e, conseqüentemente, da nossa identidade. A indeterminação da vida social acarreta perigo de o sujeito perder seu mundo e suas posses (incluindo a identidade). O auto-respeito está associado ao que é possuído, ao que é próprio. As posses de um homem – simbólicas e materiais – são um índice razoável do que ele é. Os homens marcam seus movimentos – em direção a uma classe, por exemplo – pela aquisição ou descarte de posses. O envolvimento de um indivíduo com suas posses pode ser tal que elas passem a dominá-lo. Um mundo problemático implica perigo de perder o domínio de objetos nos quais fizemos muitos investimentos. Se as identidades estiverem em mudança, a avaliação das posses também pode mudar. E a mudança é um constante na vida social. Por isso, não é a mudança que precisa ser explicada, e sim suas direções e os impactos dela sobre as identidades. Dubar (2005) elabora uma concepção de identidade em consonância com a postura relacional e com a perspectiva interacionista privilegiada até aqui. Segundo ele, pode-se definir identidade social como a dupla articulação problemática de uma orientação estratégica e de uma posição relacional, resultado da interação entre uma trajetória social e um sistema de ação. Nessa perspectiva, não existe uma concordância contínua entre a identidade para si e a identidade para o outro. Essa visão ampliada permite ver a socialização como um processo biográfico de incorporação das disposições sociais oriundas não somente da família e da classe de origem, mas também do conjunto de sistemas de ação perpassado pelo indivíduo ao longo da vida. Ela implica uma relação de causa entre o passado e o presente, mas essa causalidade é probabilista, exclui toda determinação mecânica. Quanto mais os pertencimentos se tornem múltiplos, mais possibilidades haverá para a identidade. A identidade é produto e produtora da história. A socialização humana permanece, de fato, majoritariamente reprodutora das posições relativas, mas elas não são as únicas. Para Dubar (2005), a identidade para si e a identidade para o outro são ao mesmo tempo, e de maneira problemática, ligadas e inseparáveis. Uma vez que a identidade para si é correlata ao outro e ao seu reconhecimento, nunca se sabe o que se é a não ser no olhar do outro. E a experiência do outro nunca é vivida pelo Eu de forma direta, de forma que contamos com a comunicação para nos informar sobre a identidade que o outro nos atribui para, então, forjarmos uma identidade para nós mesmos. A identidade, assim, é marcada pela incerteza, pois não se sabe ao certo o que os outros pensam do Eu. O grau de incerteza que envolve a identidade varia de acordo com a situação. Desse ponto de vista, a identidade nada 88 mais é que “o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições” (DUBAR, 2005. p. 136). Esse conceito tenta introduzir a dimensão subjetiva no cerne da análise sociológica. Dubar chama de “atribuição” o mecanismo que visa definir o tipo de pessoa que você é do ponto de vista do outro; e de “pertencimento” o que exprimem que tipo de pessoa você quer ser, a identidade para si. Não há uma correspondência direta entre a identidade de si e a identidade atribuída pelo outro. Mas a identidade de si é a condição para que um indivíduo possa ser identificado genericamente pelos outros. É na atividade com os outros que um indivíduo é identificado e levado a endossar ou a recusar as identificações que recebe dos outros e das instituições, dependendo da margem de liberdade que a situação social permitir. A identidade, portanto, é fruto da articulação entre dois processos heterogêneos: o primeiro concerne à atribuição da identidade pelas instituições e pelos agentes que estão em interação direta com os indivíduos, que resulta, como Goffman havia mostrado, na “identidade virtual”; e o segundo concerne à interiorização ativa, à incorporação da identidade pelos próprios indivíduos, que pode ser analisada no interior de trajetórias sociais, que resulta na “identidade real”. Quando os resultados da atribuição e da incorporação diferem, entram em cena estratégias destinadas a reduzir as distâncias entre essas duas identidades. Elas podem assumir a forma de “transações externas” entre o indivíduo e os outros significativos, visando acomodar a identidade para si à identidade para o outro, ou “transações internas” ao indivíduo, com vistas a tentar assimilar a identidade para o outro à identidade para si. A identidade, portanto, é negociada na interação, constitui um processo comunicativo complexo, irredutível a uma “rotulagem autoritária” de identidades predefinidas com base em trajetórias individuais (DUBAR, 2005). Para este autor, a identidade guarda relações cada vez mais diretas com a esfera do trabalho. Segundo seu argumento, as esferas do trabalho e emprego, e também da formação, constituem áreas pertinentes das identificações sociais dos próprios indivíduos. O emprego, portanto, é cada vez mais importante para as identidades sociais, embora se deva evitar o risco de reduzir as identidades sociais a status de emprego e a níveis de formação. Mas, sem dúvida, dentre os acontecimentos mais importantes para a construção da identidade, estão a saída do sistema escolar e o ingresso no mercado de trabalho. A identidade relacionada ao trabalho não se reduz a uma identidade no trabalho ou a uma trajetória de emprego, mas uma “identidade ocupacional”, que designa a identificação a toda uma carreira, a implicação em um tipo de atividade e a experiência da estratificação 89 social, das discriminações étnicas e sexuais, das desigualdades de acesso às diferentes carreiras profissionais. Não se trata apenas da escolha de uma profissão ou obtenção de um diploma, mas de construção pessoal de uma estratégia identitária que mobilize a imagem de si, a avaliação de suas capacidades e a realização de seus desejos. A identidade profissional remete à maneira como os indivíduos se identificam com os pares, com os chefes e com os outros grupos. Essa definição ancora a identidade na experiência relacional do poder e, portanto, faz das relações de trabalho o lugar em que se experimenta o enfrentamento dos desejos de reconhecimento em um contexto de acesso desigual, movediço e complexo. Berger & Luckmann (2003) também reforçam a importância da socialização na idade adulta por meio do trabalho para a construção das identidades. Os autores introduzem uma distinção entre socialização primária e socialização secundária. Para eles, a socialização se define pela imersão dos indivíduos no que eles chamam de “mundo vivido”, um universo ao mesmo tempo simbólico e cultural que constitui um saber sobre o mundo. Na socialização primária, a criança absorve o mundo social em que vive não como um universo possível dentre outros, mas como o único mundo existente e concebível. Ela faz isso a partir de um saber básico que é pré-reflexivo e pré-determinado, e que funciona como uma evidência e serve de base para ela programar esquemas de ação, se apropriar de uma linguagem, organizar os objetos apreendidos da realidade. O aprendizado desse saber básico por meio da linguagem constitui o processo fundamental da socialização primária, já que assegura simultaneamente a posse objetiva de um Eu e de um mundo e, consequentemente, a consolidação de papéis sociais definidos como tipificação de condutas socialmente objetivadas, baseadas em códigos que permitem a definição do social e das situações sociais comuns. A socialização primária, assim, depende das relações que se estabelecem entre o mundo social da família e o universo institucional da escola, com base nos diversos saberes possuídos pelos adultos socializadores e transmitidos na sua relação com os socializados. Partindo da socialização primária, Berger e Luckmann (2003) buscam construir uma teoria operacional da socialização secundária que não seja apenas uma reprodução dos mecanismos da primeira. Para os autores, a socialização nunca é totalmente bem-sucedida e terminada. Portanto, é preciso conceder atenção à socialização secundária, definida como interiorização de subdivisões de mundos institucionais especializados e aquisição de saberes específicos e de papéis direta ou indiretamente arraigados na divisão do trabalho. Trata-se, portanto, da incorporação de saberes profissionais especializados que constituem um novo gênero de saberes, que colocam um problema de consistência entre as interiorizações primárias e as novas. Esse ajustamento pode se dar de várias formas, resultando mais ou 90 menos na acomodação à situação anterior. Entretanto, a socialização secundária pode constituir uma ruptura em relação à socialização primária, desde que haja um distanciamento de papéis, que permita desvincular a identidade real da identidade virtual, permitindo que o sujeito olhe seu passado de modo a desestruturar e reestruturar sua identidade, e desde que haja também instituições, códigos e técnicas especiais que permitam ao sujeito adquirir e manter novos papéis a partir de uma ruptura biográfica. A realização de uma socialização secundária em ruptura com a socialização primária, segundo os autores, se liga a dois tipos de situações diferentes: a primeira é o fracasso da socialização primária, diante da qual a socialização secundária acaba construindo uma identidade mais satisfatória; a segunda circunstância é aquela em que as identidades anteriores se tornam problemáticas, as identificações aos outros significativos se tornam fracas, abrindo margem para outras identificações. Dessa forma, a problemática da construção social da realidade permite abordar a questão da socialização da perspectiva da transformação social e não somente a reprodução da ordem social. Essa teoria abre a possibilidade de transformação do real a partir da interação dos aparelhos de socialização primária (famílias, escolas) com os aparelhos de socialização secundária (empresas, profissões, trabalho), que provoca crise de legitimidade dos diversos saberes e a transformação possível dos mundos legítimos. Subjetivamente, a transformação social é inseparável da transformação das identidades. Por isso, todo processo de transformação ou de inovação esbarra na questão da aprendizagem coletiva de capacidades para inventar novas maneiras de agir, novos modelos relacionais. Nessa abordagem, portanto, a reprodução social aparece como um resultado entre outros, e não como uma determinação mecânica (Berger & Luckmann, 2003). 2. 6 Identidade e desigualdade Como se pôde perceber nas contribuições dos autores acima citados, o problema da relação entre indivíduo e sociedade está diretamente ligado às dicotomias problemáticas, como objetividade-subjetividade, estrutura-agência, microanálise-macroanálise, fundamentais para o entendimento da identidade, da diferença e da desigualdade. Interessa agora sintetizar alguns conceitos e idéias de alguns dos autores apresentados na tentativa de esboçar um quadro conceitual para o estudo da identidade, a partir de uma perspectiva relacional e interacionista. É importante, ainda, acrescentar à posição teórica e metodológica apresentada a 91 ênfase na importância da intersubjetividade na vida social. Definida como um elo invisível construído pela teia de relações sociais estabelecida entre indivíduos capazes de agir intencionalmente (HABERMAS, 1997), ultrapassa as consciências individuais sem estar fora dos indivíduos. Diz respeito ao processo de construção dos laços sociais que, consolidados em um nível mais elevado, dão origem às instituições sociais. Está entre a subjetividade e a objetividade, entre o indivíduo e a sociedade, justamente na mediação entre o alter e o ego. A intersubjetividade se refere às expectativas recíprocas dos sujeitos em relação aos seus semelhantes e só é possível por meio da comunicação mediada simbolicamente pela linguagem (HABERMAS, 1997). A linguagem é fundamental na construção da identidade, pois é apenas dentro de uma comunidade lingüística que é possível a intersubjetividade, ou seja, somente onde há um significado compartilhado em relação aos signos e símbolos é possível a comunicação, a aprendizagem, a socialização, a construção de um “Eu”. Porque os indivíduos partilham significados, podem atribuir sentido às suas ações, contemplando ou não suas expectativas em relação aos outros e as expectativas dos outros em relação a si próprio (STRAUSS, 1999). Pela capacidade de interpretação da situação, os agentes podem definir a situação em que agem, levando em consideração os comportamentos dos outros agentes (GOFFMAN, 1985; 1998). Daí a necessidade de se compreender as ações e interações dos indivíduos em relação ao contexto no qual elas ganham sentido (GOFFMAN, 1998). Vista por esse ângulo, a análise da identidade deve se ancorar em uma perspectiva que considera a construção constante da realidade social. Inevitavelmente, deve-se levar em conta que, para serem inteligíveis, coerentes e minimamente duradouras, as interações devem ocorrer dentro de um contexto com claras propriedades estruturais. Contudo, essa “estrutura” é construída intersubjetivamente a partir de contextos sociais cotidianos, por meio das ações que os atores desempenham quando se colocam diante uns dos outros. Portanto, a estrutura social não é objetiva, não existe fora dos indivíduos. Ao contrário, são eles que a constroem nas relações sociais, na suas atividades práticas sem as quais não existiriam as instituições (GOFFMAN, 1985). Dessa forma, a interação, o momento em que os agentes desempenham suas ações na presença de outros através de comportamentos ou atos de fala carregados de sentido, constitui a “cena” fundamental da sociologia. É nela que o caráter relacional da vida social se deixa perceber mais claramente. É na interação que o Eu percebe que só pode ser Eu em relação a um Outro, numa relação especular. Dessa forma, as identidades necessitam de referências que estejam fora do Eu que as transporta (HALL, 2007; WOODWARD, 2007). “Fora” não no sentido objetivante, mas no Outro, no parceiro de interação. O reconhecer-se – 92 ou o negar-se – no outro é a pré-condição para a existência da intersubjetividade. A vida social é, em todos os aspectos, relacional. Deste modo, a identidade de um indivíduo ou mesmo de um grupo se constitui ao longo de um processo de construção social de um contexto ou configuração social. Não é fixa, mas também não é tão fluida como supõem algumas teorias sociais mais recentes sobre a “pós-modernidade”. A identidade é construída na relação, na interação, e dela depende para se efetivar enquanto realidade social. Possui várias facetas ou dimensões que são dissociáveis apenas analiticamente. Essas dimensões da identidade combinam aquilo que Bourdieu chamou de interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade. A identidade, por esta via, constitui-se enquanto sentido, por meio de um processo de comunicação e interpretação criado e recriado nas interações sociais (HABERMAS, 1997). As perspectivas interacionistas e dos estudos culturais, privilegiadas neste estudo, se aproximam muito e se complementam. Ambas concordam com o caráter relacional da vida social, defendem uma perspectiva construcionista da sociedade e enfatizam a dimensão simbólica das relações sociais. São complementares, no sentido de que os estudos culturais acrescentam à riqueza das análises interacionistas a importância da consideração do papel do discurso, do poder e da representação nas interações cotidianas. E é a partir do discurso, do poder e da representação que é possível chegar à relação da identidade e da diferença com a desigualdade, esta entendida tanto como o motor quanto como resultado de relações assimétricas de poder segundo eixos de diferenciação. A interseccionalidade é uma forma de abordar o processo pelo qual se constrói a identidade, levando em consideração aspectos fundamentais ligados ao processo de socialização dos indivíduos, com foco nas configurações e situações em que diferentes eixos de diferenciação – tais como classe, raça e gênero – se cruzam em relações assimétricas de poder. A própria identidade é uma intersecção entre a socialização familiar, a socialização escolar, a cor, a classe, o sexo, o gênero, a inserção no mundo do trabalho. Refere-se à construção e ao desempenho simultâneo e combinado de diferentes papéis sociais no interior de um dado contexto, bem como suas conseqüências e resultados. O desempenho desses papéis, e o reconhecimento do outro que esse desempenho acarreta, pode variar mais ou menos de acordo com a força e a rigidez das coerções da estrutura composta pelas instituições sociais. Isto quer dizer que os indivíduos têm maior ou menor liberdade e autonomia dependendo do contexto no qual agem. Portanto, a questão de saber se as identidades são mais permanentes, permitindo a reprodução das estruturas objetivas da sociedade, ou se são mais abertas à mudança, dependentes da “definição da situação” por parte dos indivíduos em 93 relação, é uma questão inteiramente empírica, que varia de acordo com a combinação entre configuração social mais ampla – de caráter diacrônico – e o contexto mais específico – recortado sincronicamente, mas em relação com o fluxo que constrói incessantemente o passado. Uma abordagem interseccional considera o agente social levando em conta suas características provenientes tanto da subjetividade quanto do “espírito” do grupo. Logicamente, o escopo deste trabalho não permite abarcar todas as características possíveis da identidade. Por isso, concentra-se nos aspectos referentes à classe, à raça e ao gênero diacronicamente vinculados à figura da trabalhadora doméstica, mas em face da posição da trabalhadora doméstica no presente, no interior da relação com a patroa. Do ponto de vista interseccional, considerando a situação que se quer analisar, essas características são, em conjunto, irredutíveis. Só fazem sentido porque se constroem uma em relação à outra, exercendo uma influência mútua. A identidade se constitui pela diferença, e ambas são definidas pela linguagem, por meio do ato de “nomear”. O ato de nomear necessariamente classifica, ordena, distribui objetos, pessoas e atributos sociais em classes. Pode-se falar em desigualdade quando esse processo de nomeação e classificação, além de diferenciar uma pessoa ou categoria de pessoas das demais, o faz de forma vertical, hierarquizando tais pessoas ou categorias de pessoas em escalas nas quais são vistas como melhores ou piores, desenvolvidas ou subdesenvolvidas, ricas ou pobres, etc. A perspectiva interseccional referida será desenvolvida com mais detalhes no próximo capítulo, no bojo das análises e interpretações dos resultados empíricos da pesquisa. 94 CAPÍTULO 3 - CLASSE, RAÇA E GÊNERO ENTRE TRABALHADORAS DOMÉSTICAS E PATROAS: INTERSECÇÕES 3.1 Por que falar em interseccionalidade? Desde a década de 1970 as feministas afro-americanas e afro-européias vêm tentando estabelecer conexões entre as diferenciações e hierarquizações que são construídas na intersecção de raça, gênero e classe. O principal intuito desses esforços era o de denunciar a negligência dos primeiros movimentos feministas com os problemas característicos e as especificidades das mulheres negras tanto nas relações com homens negros e brancos, quanto nas relações com as próprias mulheres brancas, considerando aí também questões acerca da sexualidade. O termo “interseccionalidade” foi usado por essas pesquisadoras negras, mas, de início, não exatamente como um conceito, um construto teórico-metodológico, mas como uma idéia mais geral que fazia alusão à conexão entre sistemas de diferenciação baseados no gênero, na raça e na classe. Essa noção ganhou ares de conceito, de ferramenta teórica, no bojo dos impactos que as contribuições do feminismo negro começaram a ter na discussão das relações de gênero, bastante ligados ao aquecimento da arena política na qual se desenvolveram novas estratégias de combate tanto ao racismo quanto à desigualdade de gênero, nas décadas de 1980 e, principalmente, 1990 (BAIRROS, 1995). A abordagem interseccional não consiste apenas em considerar mais de um eixo de diferenciação e poder, mas de considerar dois ou mais eixos de diferenciação e poder como inter-determinados, inter-dependentes, combinados de forma que sua configuração e suas conseqüências não sejam as mesmas que teria cada eixo isoladamente. O ponto de vista da interseccionalidade defendido aqui se apóia na contribuição do feminismo negro. Esta perspectiva, que, segundo Bairros (1995), pioneiramente chama atenção para a impossibilidade de separar a opressão de gênero da opressão racial e de classe, é a que mais oferece elementos conceituais para pensar como se pode abordar satisfatoriamente a relação entre trabalhadoras domésticas e patroas do ponto de vista da identidade. As primeiras manifestações teóricas dessa vertente do feminismo surgiram nos Estados Unidos, na década de 1980, em meio a uma configuração das relações raciais diversa da do Brasil. Aqui, as primeiras produções características de um feminismo negro se iniciaram na década de 1980. 95 Se no primeiro país há uma polarização racial entre negros e brancos, considerando a ascendência – e não apenas o fenótipo – no Brasil – onde o fenótipo é o recurso mais importante para a classificação racial5 -- a mestiçagem se torna a característica mais expressiva, colocando sérios problemas para a pesquisa e reflexão teórica. Isto pode ser demonstrado pelo elevado número de pessoas que têm se auto-declarado “pardo(a)” nas últimas edições da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio6, superando tanto o número de brancos quanto de negros. Essa categoria racial é ambígua e guarda muitas indeterminações que precisam ainda ser exploradas pela pesquisa sociológica. Por isso, ainda que a polarização continue sendo a referência para a classificação racial, não é possível falar apenas em brancos e negros no Brasil, o que torna a questão da interseccionalidade entre raça, gênero e classe ainda mais complexa. Enquanto nos Estados Unidos há uma consciência mais ou menos clara do que é ser branco ou ser negro, no Brasil mesmo o que é ser branco ou negro é questionado pelo que é “ser pardo”, algo indefinido, flutuante, sujeito às condições situacionais, já que a (auto) atribuição de cor é feita de maneira relacional. Logicamente, essa especificidade racial não inviabiliza uma abordagem do ponto do feminismo negro, mas, ao contrário, coloca mais desafios para ela. O feminismo negro, como bem mostra Bairros (1995), se fundamenta em uma standpoint theory, ou uma teoria do ponto de vista, que concebe a experiência de diferentes posições de classe, gênero e raça, nas suas intersecções, como uma experiência situada histórica e socialmente, impassível de generalizações e livre da necessidade da existência de uma identidade unitária. Essa postura teórica está plenamente de acordo com os fundamentos apresentados no segundo capítulo, baseados na teoria interacionista da identidade e da diferença, complementada pelas noções de discurso, poder, representação e desigualdade fornecidas pela perspectiva dos estudos culturais. Também tem a capacidade de permitir uma compreensão mais clara sobre as influências históricas que se exercem sobre os processos de construção identitária, como é o caso da influência do racismo, do sexismo e da subordinação de classe que marcam os primórdios da constituição da figura da trabalhadora doméstica no Brasil colonial e pós-Independência, como demonstrado no primeiro capítulo. Com base no referencial teórico até aqui apresentado, é possível conceber a identidade constantemente formulada por patroas e trabalhadoras domésticas como uma mediação entre a subjetividade individual e as estruturas sociais que envolvem a relação, construída cotidianamente por meio da interação entre ambas, levando em conta suas diferenças 5 6 NOGUEIRA (2006). Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). www.ibge.com.br. 96 discursivamente representadas na esfera doméstica, lugar “por excelência” do serviço tido como reprodutivo. É justamente nas “diferenças” que entram em cena as características de raça, classe e as formas de desempenho de gênero, conformando cada contexto específico. Para o entendimento dos mecanismos de produção das desigualdades raciais, o pensamento feminista que considera relevante a abordagem interseccional de gênero e raça assevera a importância de se pesquisar a construção da identidade “branca” na mesma intensidade e dedicação com que se busca compreender a identidade “negra”. O branco também é perpassado pela raça. Se não sofre conseqüências negativas, como o negro, tira proveito das conseqüências positivas, tendendo a se portar de modo a reproduzir esta condição. A perspectiva da interseccionalidade chama atenção para os aspectos mais complexos que envolvem a construção da identidade social na relação com o diferente, complexidade esta que se refere tanto aos movimentos quanto à estagnação temporária das pessoas no interior das “estruturas sociais. Ou seja, interseccionalidade é, de acordo com Crenshaw (2002), uma ferramenta teórico-metodológica – ainda provisória, dada sua utilização recente – para compreender a construção de identidades tanto em contextos onde a diferença é transformada em desigualdade quanto onde há a subversão dessa lógica, ou seja, contextos onde aqueles inferiorizados e subalternizados ao longo do processo contínuo de produção da identidade desenvolvem estratégias interseccionais para alcançar posições socialmente mais favoráveis e o devido reconhecimento, por si mesmo e pelos outros, enquanto ser humano digno de respeito. 3.2 Classe, raça e gênero do ponto de vista da interseccionalidade Diante da escolha feita para a abordagem desenvolvida no presente trabalho, é fundamental que passemos pelos conceitos de raça, classe e gênero para, em seguida, compreendermos sua intersecção. De acordo com Guimarães (1999), raça é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural. Ao contrário, denota apenas uma classificação social, relacionada a uma atitude negativa frente alguns grupos sociais baseada em uma noção de “natureza”. Para o autor, mesmo não tendo uma base biológica, o conceito de “raça” tem uma realidade plena no mundo social, e o combate ao comportamento negativo que ele produz é impossível de ser 97 travado sem que se reconheça a sua realidade social, fundamentada no ato de “nomear”. O racismo é, assim, uma forma de naturalizar a vida social, buscando explicações naturais para diferenças pessoais, sociais ou culturais. Se as noções de raça e racismo são construções simbólicas, cada racismo só pode ser compreendido a partir de sua história particular. Seguindo esse caminho, Costa (2006) afirma que o racismo remete à suposição de uma hierarquia qualitativa que classifica os seres humanos em diferentes grupos imaginários em função de marcas corporais arbitrariamente selecionadas. Essa hierarquização apresenta dois tipos de conseqüências: a) as socioeconômicas, que implicam o desenvolvimento de estruturas de oportunidades desiguais para pessoas de diferentes raças, de forma que os que ocupam uma posição inferior são sistematicamente desfavorecidos na competição social, tanto pela ocupação de postos de trabalhos menos valorizados e mal-remunerados, quanto pelas dificuldades de acesso ao sistema de formação educacional e profissional; b) as políticoculturais, expressas na vida cotidiana através de formas discriminatórias de comportamento, escolhas, tratamento, rituais, bem como através da marginalização e segregação social e espacial. No Brasil, se verifica uma permanência histórica da ordem hierárquica sobre a qual se construiu a sociedade escravocrata. Essa ordem se pauta em uma homologia entre uma hierarquia de status e uma hierarquia racial. É a força dessa homologia que permite compreender a persistência do racismo tanto na estrutura social quanto no comportamento cotidiano dos brasileiros. A atribuição de “cor” aos indivíduos, prática comum na vida social, dentro e fora da academia, não prescinde da noção de “raça”, mas pressupõe uma ideologia racial, uma “taxonomia racial”, um sistema de marcações físicas ao qual se associam valores morais, intelectuais e culturais (GUIMARÃES, 1999). Dessa forma, o conceito de “raça” não faz sentido senão no âmbito de uma ideologia ou teoria taxonômica das raças (GUIMARÃES, 1999). Cabe falar em preconceito e discriminação racial apenas em relações em que a hierarquia social não poderia manter um padrão discriminatório sem as diferenças raciais. A “cor” representa, dessa forma, como uma imagem figurada, um índice da “raça”. Isto porque a cor da pele e os traços fenotípicos em si não dizem nada. Eles só tem significado no interior de uma ideologia racista e por isso podem funcionar como marcas classificatórias. “Raças” são, portanto, construtos sociais, formas identitárias ancoradas em uma base biológica falsa, mas eficaz na construção, manutenção e reprodução de privilégios e posições sociais. Se não existem raças no mundo físico, elas existem no mundo social e são produtos de formas de classificação que orientam ações humanas. Identidades raciais, como outras formas de 98 identidade, não são apenas escolhidas pelos sujeitos, mas impostas, e assumidas de modo mais ou menos completo (GUIMARÃES, 1999). Para Guimarães (1999), a discriminação racial no Brasil é invisibilizada porque é atribuída à classe a capacidade de explicar a destituição material em que se encontram os negros. Quando se fala em classes no Brasil, deve-se atentar para as desigualdades na distribuição de bens materiais e culturais e sua ligação com a distribuição desigual de bens simbólicos, na qual a escravidão, a inferiorização e a discriminação dos negros se constituíram como mecanismos de segregação. Se a raça não tem nada de biológico, ainda deve ser utilizada para analisar as relações sociais. Bernardino-Costa (2002) mostra que, mesmo com o fim de teorias biológicas e crenças que contribuíram para constituir a raça humana, a noção de raça continua fundamentando hierarquias e discriminações entre indivíduos. Se a raça não encontra amparo biológico, isso não impede que ela tenha eficácia social, atuando como critério significativo na distribuição de oportunidades sociais e recursos econômicos. Diante das hipóteses de que o racismo teria diminuído no Brasil nos últimos anos, Venturi & Bokani (2004) mostraram, por meio de pesquisa quantitativa, que 90% dos brasileiros reconhecem a existência do racismo no Brasil, mas 96% dizem não ter preconceito de cor. A conclusão a que chegaram os autores é a de que a disseminação das críticas e dos debates sobre as formas de discriminação racial fortaleceu uma retórica do “politicamente correto”, que ao invés de acabar com o preconceito, tornou-o mais velado. As pessoas parecem ter cada vez mais receio de exprimir suas concepções preconceituosas, porque o preconceito também gera um estigma para aquele que o revela. Assim, a maioria das pessoas projeta o preconceito para o conjunto da sociedade, negando sua manifestação pessoal. O brasileiro parece ter “preconceito de ter preconceito” (FERNANDES, 1965). Se, de um lado, há o argumento de que a diminuição das manifestações de preconceito explícito indica que a sociedade está atenta para estas questões e avança no sentido da sua superação, há também o argumento de que é justamente o preconceito camuflado que impede medidas eficazes para seu combate. O racismo mascarado, por essa via, encobre a desigualdade, a discriminação e a violência que existe entre negros e brancos no país. O racismo no Brasil tira sua eficácia do modo peculiar pelo qual é, ao mesmo tempo, produzido e negado. A hegemonia racial dos brancos é naturalizada de tal maneira que estrutura a desigualdade racial negando sua existência por meio da ideologia da democracia racial e da criação e reprodução de mecanismos que garantam sua perpetuação através das instituições sociais. As desigualdades raciais se combinam com a estrutura de classes da sociedade, 99 produzindo conseqüências materiais e simbólicas para aqueles que sofrem o preconceito e a discriminação. Essa atuação conjunta é constante na vida social. Para definir o que são classes, Bourdieu recorre a uma metáfora espacial. A sociologia, ao invés de um espaço físico, vê um espaço social que é multidimensional e construído por um conjunto de campos de forças, relações de forças que se impõem aos que ocupam esse campo, extrapolando as intenções individuais e a interação direta entre indivíduos. As propriedades tidas como princípios de construção do espaço social são as diferentes espécies de poder ou “capital” que compõem os diferentes campos – capital econômico, cultural, social e simbólico. Dentro de um “campo”, os indivíduos ocupam posições distintas conforme o capital de que dispõem. As espécies de capital são poderes que definem a probabilidade de ganho em um determinado campo, e a cada subcampo corresponde uma espécie de capital particular, que figura como poder e como objeto em jogo. Um mesmo indivíduo se insere em diferentes campos simultaneamente e os capitais de um campo podem ser aproveitados em outros. Assim, as classes sociais não são definidas em um só campo. A posição de um agente é definida pela posição que ele ocupa nos diferentes campos, ou seja, pelo lugar que ele ocupa na distribuição de poderes que atua em cada um dos campos dos quais ele participa. A forma como se reveste, em cada momento e em cada campo social, o conjunto das distribuições das diferentes espécies de capital, define a conformação das relações de força entre agentes definidos objetivamente pela sua posição nessas relações. Partindo dessa teoria do espaço social, “[...] podemos recortar classe no sentido lógico do termo, quer dizer, conjuntos de agentes que ocupam posições semelhantes e sujeitas a condicionamentos semelhantes, têm, com toda a probabilidade, atitudes e interesses semelhantes, logo, práticas e tomadas de posição semelhantes [...] enquanto produto de uma classificação explicativa, perfeitamente semelhante à dos zoólogos ou botânicos, ela permite explicar e prever as práticas e as propriedades das coisas classificadas – e, entre outras, as das condutas de reunião em grupo [...] poder-se-ia dizer, em rigor, que é uma classe provável, enquanto conjunto de agentes que oporá menos obstáculos objetivos às ações de mobilização do que qualquer outro conjunto de agentes (Bourdieu, 2000). Para Bourdieu (2000), as classes que podem ser recortadas no espaço social não existem como grupos reais, mas apenas como probabilidade de se constituírem em grupos na prática. Não existem classes na realidade, mas apenas “no papel”. É a proximidade dos agentes no espaço social que permite a definição de classes. Os agentes não constroem o mundo social de forma totalmente consciente. As categorias de percepção do mundo social são, em essência, resultado da incorporação prática das estruturas do espaço social. Em conseqüência, isto leva os agentes a aceitarem o mundo social mais do que questioná-lo. A posição social dá o sentido do que se pode ou não se pode fazer, implica um sentido dos 100 limites da ação e um sentido das distâncias entre as pessoas e grupos, o que não quer dizer que solidariedades não possam ser estabelecidas entre indivíduos ocupando campos diferentes. O mundo social é constituído simbolicamente e se organiza segundo a lógica da diferença, constituída, assim, em distinção significante. O espaço social e as diferenças que nele se desenham enquanto diferenças de “classes” tendem a funcionar simbolicamente como espaço dos estilos de vida ou como conjunto de grupos caracterizados por estilos de vida diferentes. A distinção é a diferença inscrita na própria estrutura do espaço social quando percebida segundo as taxonomias próprias dessa estrutura. A distinção é praticada pelo ato de nomear e, como essa nomeação supõe uma distribuição desigual de poder, ela sempre supõe hierarquias. Dessa forma, a distinção não se refere apenas à diferença, mas também à hierarquização desta, ou seja, à desigualdade entre as classes. Os títulos profissionais, educacionais e de nobreza são o maior exemplo do poder de nomeação (BOURDIEU, 2000). Bourdieu (2000) também pontua que, apesar do caráter naturalizante da construção discursiva da distinção, na base das homologias entre as posições no interior de campos diferentes podem se instaurar alianças mais ou menos duradouras fundamentadas num malentendido mais ou menos consciente. Portanto, as classes não são naturais, dadas de uma vez por todas. É preciso reconstruir em cada contexto o trabalho histórico de que são produtos as divisões sociais em classes. As classes, criadas por uma construção histórica e social, tanto no âmbito da teoria quanto na prática, produzem e reproduzem a crença na sua existência, mas não existem na realidade a não ser como um grupo provável. Mais do que a renda, o critério “ocupação” é central para pensar “classe social”. O exercício de uma ocupação aponta várias características pelas quais um indivíduo pode ser classificado e situado do ponto de vista da estrutura de classe de uma sociedade capitalista. Aponta, em primeiro lugar, um nível de renda esperado, que possibilitará usufruir determinados bens, recursos e oportunidades econômicas, sociais e culturais. Aponta um determinado nível de escolaridade, exigido, em geral, como requisito mínimo para a execução de tal ocupação, o que supõe um determinado nível de esclarecimento e consciência política, bem como acesso a determinados tipos de informação. Daí o conceito de classe ser central para pensar as relações de identidade e diferença entre trabalhadoras domésticas e patroas. “Classe”, assim, não se refere apenas aos aspectos econômicos que envolvem as condições materiais, mas também às relações sociais, interesses políticos, subjetividade, sofrendo influência de e influenciando outros fatores como diferenças raciais, de gênero e sexuais, definidas de forma inteiramente qualitativa. 101 Classe e raça se interconectam às construções de gênero, influenciando as relações sociais nas quais os indivíduos se inserem. Se utilizarmos a referência da teoria dos campos de Bourdieu (2000), veremos que tanto o gênero como a raça e a classe constituem campos onde se travam lutas pelo poder de nomeação e pelos privilégios que dele advém. Esses campos têm estruturas hierárquicas homólogas nas quais os indivíduos são posicionados. Tais estruturas mudam em função das mudanças nas relações de força e de acordo com os movimentos dos sujeitos nessas estruturas. Esses “espaços sociais” se entrelaçam, se cruzam, se tornam interconectados e interdependentes, produzindo posições-de-sujeito conforme a composição das relações em um determinado contexto histórico. É justamente a intersecção entre esses diferentes campos que constitui o interesse de uma abordagem interseccional. Foi Simone de Beauvoir, na obra “O segundo sexo”, na década de 1940, quem apontou de forma bastante original os mitos em torno da afirmação de que as diferenças cognitivas e comportamentais entre mulheres e homens eram definidas pela anatomia e pela fisiologia. Segundo a posição dessa autora, a opressão da mulher se deve não a fatores biológicos, psicológicos ou econômicos, mas à construção histórica da mulher como a alteridade do homem, a “outra”, o “segundo sexo” (Beauvoir, 2002). Essa obra causou comoção no meio acadêmico e nos movimentos sociais, tirando sua força justamente da desnaturalização da categoria “mulher”. A partir de Beauvoir, diversos estudos passaram a criticar os argumentos alinhados ao determinismo biológico presentes na ciência à respeito do corpo e do “ser social”. A distinção entre o sexo e o gênero foi o recurso utilizado pelos estudos de gênero para criticar os essencialismos dos argumentos biologizantes que desqualificavam a mulher. O termo “gênero” se tornou útil para designar o processo de construção social, política e cultural – não biológico – das diferenças e, principalmente, das desigualdades entre homens e mulheres. Esse conceito contribui para compreender que a desigualdade e a opressão não são inevitáveis, mas constituem o produto de relações sociais específicas, no interior de contextos históricos e culturais localizados. Dessa forma, passa-se, como diz Goffman (1989), de uma linguagem de atributos para uma linguagem de relações, na medida em que se percebe que não são as características sexuais em si que geram desigualdades, mas a forma como essas características são valorizadas e representadas. É isso que vai definir o que é masculino e o que é feminino em um determinado momento da história. O termo “gênero”, enquanto construto teórico, visa enfatizar o caráter relacional e político das definições normativas de feminilidade e masculinidade. Constitui, ao mesmo tempo, uma dimensão simbólica de sistema de classificação e distinção, que se configura de 102 maneira particular em contextos culturais particulares (STOLKE, 2004). Butler (2003), nessa mesma linha, afirma que é errônea a concepção de que o sexo seria natural, ao passo que o gênero seria social. O sexo, para a autora, assim como o gênero, seria uma construção discursiva que produz um efeito simbólico. Pensa-se que o discurso que constrói o sexo apenas o nomeia, mas na verdade ele o constrói. Desse modo, seguindo também a concepção de “discurso” de Foucault (1996), Butler (2003) defende que não existem sujeitos anteriores ao discurso, mas apenas no interior dele. Os discursos, construídos socialmente, criam e impõem formas de agir aos sujeitos, forçando-os a se adequar a eles. As ações dos sujeitos, ao buscarem reconhecimento, reiteram as normas, produzindo subjetividades fundamentalmente ligadas a distinções e desigualdades. Há, portanto, um modelo hegemônico do gênero que tende a produzir mulheres com características reconhecidamente femininas. Tais mulheres estão posicionadas na ordem do gênero e aquelas que não compartilham dos mesmos parâmetros são vistas como negativamente diferentes, como o “outro” do discurso, condenadas a viver como diferença essecializada, cristalizada. A visão essencialista que surge daí tende a fazer do sexo uma matéria fixa, que ganharia forma e significado pelo gênero. Mas isso não é feito por um poder que está fora dos indivíduos, e sim pela atuação continuada que se torna poder na medida em que apresenta uma considerável estabilidade. Dessa forma, para Butler (2003), é o atuar como mulher que produz o gênero feminino. Tornar-se mulher é seguir a ordem do discurso de gênero, numa relação de alteridade. Se os sujeitos, para atuar, interpretam as normas, é possível procurar espaços onde o discurso normativo pode ser ressignificado e subvertido. Nesses espaços, pode ocorrer uma confusão classificatória e uma ambigüidade que desestabilizam os gêneros, contestando a imutabilidade das ordens de gênero. São os atos corporais que fazem o gênero. A tarefa do feminismo é a de formular uma crítica às categorias de identidade que a estrutura sexista engendra, naturaliza e imobiliza. “Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como uma interpretação cultural do sexo” (BUTLER, 2003, p.25). O gênero não é uma mera inscrição cultural de significado em um sexo previamente dado, mas designa o próprio mecanismo de reprodução por meio do qual os próprios sexos são estabelecidos. “Resulta que o gênero não está para a cultura como o sexo está para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual a „natureza sexuada‟ ou „um sexo natural‟ é produzido e estabelecido como pré-discursivo, anterior à cultura” (BUTLER, 2003, p.25). Naturalizar o gênero, assim, é retirá-lo do plano discursivo. E colocar a dualidade do sexo em um domínio fora do discurso é a maneira mais eficaz de manter a estrutura binária do sexo. Essa produção do sexo como pré-discursivo é um efeito do 103 gênero. As relações de poder produzem o efeito de um sexo pré-discursivo e ocultam, dessa forma, a própria operação da produção discursiva (BUTLER, 2003). De acordo com Sarti (2004), um conjunto de fatores contribuiu para a eclosão do feminismo brasileiro na década de 1970: o reconhecimento pela Organização das Nações Unidas (ONU) da questão da mulher como problema social, criando condições para o surgimento de um movimento social em torno da discussão da condição feminina; a modernização ocorrida no período da ditadura militar, que ampliou os parques industriais e expandiu o mercado de trabalho e o sistema educacional, aumentando, ainda que vagarosa e desigualmente, as oportunidades para as mulheres; as transformações culturais ocorridas a partir do final da década de 1960, que impactaram nos comportamentos afetivos e sexuais, questionando o padrão tradicional de valores predominante nas relações familiares em uma atmosfera autoritária e patriarcal. Mas há de se destacar que esse movimento feminista surgiu com características específicas, formados por mulheres brancas de classe média, com formação universitária e profissional e em condições mais favoráveis ao fortalecimento de uma consciência política. Desde o início da década de 1970, segundo Sarti (2004), predominaram duas correntes dentro do feminismo: uma mais preocupada com a ação política coletiva, com a organização das mulheres em torno da denúncia das desigualdades entre homens e mulheres no trabalho, na saúde, na distribuição de renda e na prática de direitos de cidadania; e outra voltada para a compreensão das relações interpessoais, concentrando na esfera privada do lar e da família, no ambiente doméstico, o foco da atenção às desigualdades entre os sexos, com destaque para a divisão sexual do trabalho doméstico. Mesmo que tenha nascido como um movimento de uma parcela específica das mulheres, não se pode negar o impacto que o movimento feminista alcançou nos valores e práticas sociais, a partir do questionamento dos significados vinculados à mulher. Ao dar voz à mulher, esta pôde se auto-definir e se conscientizar da necessidade de lutar contra as disparidades entre os sexos, vendo sujeitos sexuados onde antes apenas se viam sujeitos. A partir daí, buscou-se a transformação dos significados atribuídos ao masculino e ao feminino, questionando os argumentos biologizantes que explicavam as diferenças como naturais. Entretanto, as diferenças e as relações desiguais de poder entre as mulheres deram origem a um leque de feminismos que passaram a chamar atenção para o caráter heterogêneo e plural das mulheres e dos movimentos de mulheres. Feminismo negro, feminismo lésbico, feminismo popular, ecofeminismo, feminismo cristão, foram algumas das vertentes que surgiram nos últimos 30 anos, diferindo significativamente do primeiro movimento feminista 104 pela ênfase nos modos pelos quais a raça, a classe, a sexualidade, a religião interferiam e nas identidades de gênero e nas práticas políticas e culturais. Essas dissensões foram resultado das contestações de mulheres que não se sentiam contempladas pelos discursos e agendas políticas feministas e resolveram buscar em outras formas de feminismos soluções para transformar sua realidade social, política, econômica e cultural (ALVAREZ, 2000). Pode-se argumentar que as intersecções não foram percebidas ou foram sufocadas pelos primeiros movimentos feministas para manter a coesão política e ocultar a existência de subgrupos marginalizados dentro do movimento, o que acabou acarretando a invisibilidade desses subgrupos e a sua exclusão de políticas públicas específicas. Parte dessa negligência decorreu do poder da ideologia da democracia racial, que implicou uma confusão entre a mistura racial no plano biológico e as interações raciais no sentido sociológico. A mistura de raças no plano biológico é, sem dúvida, constitutiva da sociedade brasileira. Entretanto, essa mistura no plano da biologia não implica automaticamente interação harmoniosa entre as raças socialmente construídas e sociologicamente consideradas. As relações sociais entre diferentes grupos de cor não se dão sem conflito. Mas no Brasil, segundo Hasenbalg (1996), há uma interdição, uma etiqueta que sugere que se evite falar sobre o racismo, o que já referimos como o “preconceito de ter preconceito”, que se contrapõe à harmonia idealizada. A negação das desigualdades raciais é estrategicamente acionada quando se propõe a concessão de benefícios àqueles identificados como pretos ou pardos, pois a igualdade racial pressupõe o questionamento das vantagens adquiridas pelos brancos por meio das hierarquias raciais. Dessa forma, o mito da democracia racial camufla o racismo e promove uma interpretação das desigualdades com base nas relações de classe, em torno do mérito (BERNARDINO-COSTA, 2002). Ao contrário, a história do Brasil mostra que a pauperização das populações negras foi uma consequência do racismo que pautou sua inserção no trabalho escravo. O mito da democracia racial revela seu preconceito quando valoriza a miscigenação apenas quando ela leva em direção à brancura. Mesmo existindo um contínuo de cor que marca a população brasileira, percebe-se que as possibilidades intermediárias ganham sentido em relação aos pólos negro e branco. Oliveira (2006), em sua pesquisa, afirma que a negra de pele clara, ou o que se chama de parda, não tem um lugar definido nas posições raciais dicotômicas no interior de um país miscigenado como o Brasil. As classificações sociais nas quais ela é enquadrada variam de acordo com o contexto. Em um meio “branco”, ela pode ser considerada negra, ao passo que entre negras sua pertença negra pode ser contestada. Os pardos são aqueles que, no imaginário hegemônico, apesar de não partilhar as conseqüências negativas da negritude, também não 105 podem alcançar os privilégios da branquitude. Sua condição, ao invés de revelar harmonia entre as raças, explicita a tensão e a discriminação. Se o mito da democracia racial e o ideal de branqueamento tornaram indesejável o debate sobre o preconceito racial, o discurso contestatório das mulheres somou-se ao discurso contestatório dos negros em geral para fundamentar o feminismo negro, que transcende tanto o espaço específico do anti-racismo quanto o espaço particular do feminismo. Dessa forma, as feministas negras contestam duplamente as expectativas de submissão e abnegação dos sujeitos posicionados como subalternos nas relações de poder (OLIVEIRA, 2006). O feminismo negro coloca, assim, a interseccionalidade no centro da análise. Foram as mulheres negras as primeiras a discutir as conseqüências do cruzamento de diferentes eixos de subordinações e suas relações com as estruturas de poder. Segundo Carneiro (2002), a consideração combinada de raça, gênero e classe promove a síntese dos problemas contra os quais os movimentos negros e de mulheres lutam, enegrecendo o feminismo e feminizando as reivindicações do movimento negro. Assim como o racismo estabelece a inferioridade dos negros em geral, e das mulheres negras em particular, ele divide as mulheres entre si, com prejuízo para as negras. A denúncia dessa desigualdade intra-gênero exige uma postura crítica frente às denuncias que tomam apenas o gênero como referência. As análises dos efeitos conjuntos de gênero, raça e classe permitiram às feministas negras denunciar a tripla opressão, ao mesmo tempo em que garantiram o reconhecimento de sua especificidade em face dos movimentos já consolidados. Como mostra Caldwell (2002), os primeiros paradigmas de gênero foram desafiados pelas feministas negras, que focalizaram mais a importância das diferenças entre as mulheres do que as supostas similaridades. Elas evidenciaram que, se as mulheres não nascem mulheres, mas “se tornam” mulheres, esse “tornar-se” se define em relação às mulheres de outras raças, classes, culturas, regiões e não somente em relação aos homens. De acordo com Crenshaw (2002), a conexão entre os percursos de construção de diferentes aspectos identitários concorre para o desempoderamento de alguns sujeitos. E isso tem sido negligenciado pelas teorias de gênero mais correntes. Os aspectos de gênero da discriminação racial e os aspectos raciais da discriminação de gênero não recebem a devida atenção no discurso do feminismo e dos Direitos Humanos. Daí a necessidade de perceber como o gênero se intersecta com um conjunto de outras instâncias da identidade, como a raça e a classe, contribuindo para o desempoderamento e a vulnerabilidade de diferentes grupos de mulheres. O conceito de interseccionalidade oferece a possibilidade de captar os aspectos 106 estruturais e dinâmicos da interconexão entre dois ou mais eixos de subordinação, que criam desigualdades posicionando social e politicamente os grupos sociais. Uma abordagem como essa em um país como o Brasil é fundamental, visto que, como mostra Carneiro (2002), o racismo, que poderia ser considerado como parte de uma história longínqua ou, no máximo, uma reminiscência do passado colonial, permanece vivo e atuante no imaginário social e adquire novos contornos em face de uma ordem que se quer democrática, mas mantém intacta as relações de gênero segundo as raças instituídas no período escravocrata. O discurso clássico do feminismo sobre a opressão da mulher não reconhece a especificidade histórica da experiência das mulheres negras e, por isso, não é capaz de compreender o efeito da opressão que ainda se exerce sobre as identidades dessas mulheres. Pela história da mulher negra, ela não pode se reconhecer nos mitos sobre a fragilidade feminina, pois trabalharam de sol a sol nas lavouras como escravas, sendo obrigadas a se colocar sempre a serviço das sinhás e dos senhores, como criadas e prostitutas. Ainda hoje, grande parte delas trabalha como doméstica para mulheres “liberadas”, ou como “mulatas” tipo exportação. A mulher negra continua sendo a “outra” da mulher branca, continua sendo retratada como um anti-exemplo daquilo que o mercado de trabalho exige como “boa aparência”. Excluídas, assim, da parte mais rentável e reconhecida do mercado de trabalho por sua aparência, são também relegadas a uma subclasse de consumidoras de terceira categoria. Mas é necessário considerar também que a experiência de “ser negra” não é unívoca, não é mesma para todas as mulheres negras em todos os lugares. Brah (2006), analisando o caso europeu, mais especificamente o caso inglês, mostra como o termo negro(a) foi ressignificado pelo movimento negro e pelo feminismo negro no sentido de tirar-lhe o sentido pejorativo e promover uma articulação política na luta contra o racismo. No entanto, o termo não dá conta da diversidade de experiência de mulheres e homens negros(as) em relação à classe, à etnicidade, regionalismos, etc. Dessa forma, Butler (2003) tem razão em afirmar que as identidades podem tanto denunciar opressões quanto reproduzir normatizações e diferenciações. Por isso, devem ser sujeitas à crítica dos sujeitos políticos que se sintam excluídos por elas. A abordagem feita pelas feministas negras denuncia a opressão racial, sexual, heterossexual e de classe que vivenciam as mulheres negras. Seu mérito está em mostrar que os movimentos pelos direitos civis, o nacionalismo negro e o próprio feminismo de “vanguarda” excluíram as mulheres negras de suas conquistas. Assim, as mulheres negras reconhecem a necessidade de desenvolver um movimento político anti-racista, diferente do 107 das mulheres brancas, dos homens brancos e dos homens negros (hooks, 1995). A partir disso, as feministas negras mostraram que a condição de subordinação das mulheres não passa apenas pelo “ser mulher”, mas também pela raça e pela classe. Diz Carneiro (2004) que ser mulher negra no Brasil opera uma síntese que agrega as contradições de raça, classe e gênero, Assim, raça, classe e gênero se atravessam mutuamente. As desigualdades, nessa perspectiva, não são apenas fruto de uma fusão ou convergência, mas de uma intersecção dinâmica entre o gênero, a raça e a classe em estruturas de dominação históricas, o que suscita questões complexas em torno da relação entre ideologias biológico-raciais que legitimam estruturas de desigualdades econômico-políticas e a organização da reprodução social (STOLKE, 2004, p.93). Essa postura teórico-metodológica não busca as origens do gênero na “essência” do feminino, da “mulher”, mas investiga as apostas políticas, designando como origem e causa do gênero as categorias de identidade que resultam de efeitos de discursos, práticas e dinâmicas institucionais que possuem pontos de origem múltiplos e difusos. As representações política e lingüística definem os critérios segundo os quais os próprios sujeitos são formados, de forma que a representação só é possível a quem pode ser reconhecido como sujeito. Ao invés de sugerir um ajustamento à diversidade, “mulheres” – mesmo no plural – tornou-se um termo problemático. O termo não é exaustivo porque o gênero não se constitui de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos em que se manifesta. Além disso, estabelece intersecções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. Daí se torna impossível separar a noção de “gênero” das intersecções políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida (BUTLER, 2003). A noção de patriarcado universal, a idéia de que as mulheres, em todos os lugares vivenciam a opressão masculina da mesma forma, tem sido francamente criticada no seu fracasso em explicar os mecanismos de opressão de gênero em diferentes contextos culturais concretos. A constituição da classe, da raça e da etnia, como eixos de relações de poder, tanto constituem a “identidade” quanto tornam equívoca a noção singular de identidade. Tanto gênero, quanto a classe e a raça, enquanto marcadores da diferença no interior de sistemas de opressão, se constroem por um ato de violência simbólica, por uma imposição de um significado que busca transformar em atributo natural aquilo que é nada mais que o resultado de um jogo relacional de poder. Mas seria errôneo considerar sistemas de opressão como contextos de ações em que um grupo ou individuo é inteira e continuamente submetido 108 a outro indivíduo ou grupo. Gênero, classe e raça, como afirma Brah (1996) e Butler (2003), em interação com condições econômicas, sociais, políticas e culturais, geram condições de possibilidade para transformações mediante uma subversão da identidade. Não se pode supor que as relações entre trabalhadoras domésticas e patroas são definidas sempre pela opressão e exploração vertical e direta das primeiras pelas segundas. As contingências do cotidiano podem gerar condições de possibilidade tanto para um acirramento da opressão e discriminação, quanto para um relacionamento mais igualitário e horizontal. E, no primeiro caso, situações contingentes podem gerar condições de possibilidade para ações e performances de resistência velada ou conflito. É verdade que uma análise histórica do trabalho doméstico no Brasil mostra a prevalência de uma relação assimétrica de opressão e exploração da trabalhadora doméstica. Mas a configuração dessa relação em um dado contexto só pode ser afirmada pela pesquisa empírica. 3.3 – Perfis das personagens da pesquisa: trabalhadoras domésticas e patroas Antes de ingressar nas análises do material coletado nas entrevistas, é importante conferir atenção ao perfil comparativo das trabalhadoras domésticas e patroas que participaram da pesquisa. Considerando-se variáveis sócio-econômicas básicas, é possível perceber detalhes importantes que influenciam as relações de trabalho e pessoais, bem como configuram parte de suas consequências. Comecemos pelo perfil das trabalhadoras domésticas que foram entrevistadas. 109 Perfil individual das trabalhadoras domésticas entrevistadas Nome Idade Cor/raça7 Escolaridade fictício Rendimento Possui Número de Possui mensal (R$) carteira filhos cônjuge / assinada Fátima 31 Parda Fundamental companheiro 427,00 Sim 2 sim 450,00 Não 2 sim incompleto Ivanete 29 Preta Fundamental incompleto Jurema 42 Parda Fundamental 500,00 Não 3 Não Marina 28 Parda Ensino médio 625,00 Sim 3 Não Marilda 44 Branca Fundamental 510,00 Sim 2 Sim Rosa 31 Parda Ensino médio 450,00 Não 1 Sim Rosenilde 35 Parda Fundamental 480,00 Sim 2 Sim incompleto Fonte: Entrevistas No quadro acima podemos perceber que as trabalhadoras domésticas entrevistadas têm entre 28 e 44 anos, são predominantemente pardas e a maioria delas não ultrapassou o ensino fundamental. O salário gira em torno de um salário mínimo, ficando abaixo dele na maioria dos casos, o que demonstra que mesmo os direitos que as trabalhadoras domésticas já conquistaram ainda continuam sendo desrespeitados. Isso é igualmente perceptível quando se considera a formalização do serviço doméstico. Na presente pesquisa, o número de relações formais ainda ficou quase o dobro acima da média nacional, que é de 27% (IBGE-PNAD, 2008). A maioria das trabalhadoras domésticas é casada ou vive com um companheiro. Todas elas têm filhos, em média dois, sendo que as que têm mais filhos (três) vivem sozinhas com eles após ter se separado do marido ou companheiro. Esse quadro revela-se mais interessante para os propósitos deste trabalho quando comparado ao quadro seguinte. 7 Classificação derivada da auto-atribuição pelas entrevistadas, utilizando-se o padrão de classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 110 Perfil individual das patroas entrevistadas Nome Idade Cor/raça Escolaridade Ocupação fictício Renda Assina Nº de Possui mensal a filhos cônjuge/ (R$) carteira companheiro Beatriz 54 Branca Superior Fotógrafa 2.000,00 Sim 2 Sim Claudia 35 Branca superior Professora 7.000,00 sim 2 Sim universitária Daniela 47 Branca Ensino médio Artista plástica 4.000,00 Sim 2 Sim Ivete 34 Parda Ensino médio Comerciante 3.500,00 Não 2 Sim Judith 45 Amarela Superior Odontóloga 5.000,00 Não 2 Sim Júlia 45 Branca Superior Administradora 3.000,00 Não 3 sim Margaret 55 Branca Superior Comerciante 10.000,00 Sim 3 Sim Fonte: Entrevistas A idade das patroas entrevistadas varia de 34 a 55 anos, são predominantemente brancas e a maioria concluiu o ensino superior. Todas as entrevistadas executam atividades profissionais fora do lar, seja como profissional liberal, comerciante, professora ou empresária. Seus rendimentos mensais vão de R$2.000,00 a R$10.000,00. A média de filhos entre elas se aproxima muito da média de filhos entre as trabalhadoras domésticas. Todas elas são casadas ou vivem com um companheiro. Como as entrevistas foram feitas com trabalhadoras domésticas e patroas da mesma residência, o índice de relação formal com as domésticas é o mesmo apontado na tabela anterior. Perfil geral das trabalhadoras domésticas e patroas entrevistadas Trabalhadoras Idade Cor/raça Escolaridade Rendimento Possui Assina a carteira média predominante predominante mensal médio carteira (%) (R$) assinada (%) 34 Parda Fundamental 492,00 incompleto domésticas 57% - (4 das 7 domésticas) Patroas 45 Branca Superior 4.929,00 - 57% (4 das 7patroas) Fonte: Entrevistas 111 Comparando os aspectos principais das duas tabelas, podemos perceber a dimensão das diferenças nas características apresentadas por trabalhadoras domésticas e patroas. As patroas são, em média, 10 anos mais velhas que as trabalhadoras domésticas. São majoritariamente brancas, enquanto que as domésticas são majoritariamente pretas e pardas. Em termos de escolaridade, a disparidade é muito grande: enquanto as trabalhadoras domésticas, na sua maioria, não estudaram além da 8ª série do ensino fundamental, quase todas as patroas cursaram o ensino superior, o que quer dizer que estas possuem, no mínimo, de 7 a 8 anos a mais de estudo que as primeiras. Quanto à renda mensal, talvez tenhamos o dado mais alarmante. A renda mensal média dentre as patroas entrevistadas é de R$4.929,00, enquanto que a das trabalhadoras domésticas é de R$492,00. Isto significa que, em média, patroas ganham 10 vezes mais que aquelas pessoas que elas contratam para trabalhar em suas residências. Esse dado, juntamente com a diferença acentuada no nível de escolaridade, aponta a profunda desigualdade de classe existente entre essas mulheres e sugere que tal aspecto merece atenção especial. Em conjunto com as diferenças raciais, tais disparidades se colocam como desafio para o entendimento da relação entre trabalhadoras domésticas e patroas. 3.4 - Ser trabalhadora doméstica Os dados coletados sobre a trajetória de vida das trabalhadoras domésticas confirmam em grande medida os achados de pesquisas anteriores. Muitas são migrantes, uma delas proveniente do nordeste do país, as outras com origem no interior do estado de Goiás, tendo passado por várias cidades até chegar à Goiânia. Apenas uma exceção, uma mulher que nasceu em Goiânia e aqui permaneceu ao longo de toda a vida. A migração é quase sempre motivada pela necessidade de encontrar colocação em um mercado de trabalho mais desenvolvido e aumentar a renda, primeiro para suprir satisfatoriamente as necessidades materiais mais elementares, e secundariamente para aumentar o padrão de consumo. Em algumas falas é possível perceber, como também mostrou Nunes (1997), certo desejo, ainda que não revelado explicitamente, de conduzir a própria vida com mais liberdade, de forma mais autônoma, longe das pressões comunitárias que a vida em uma cidade pequena do interior às vezes impõe. 112 Algumas das entrevistadas chegaram a trabalhar na sua cidade de origem, como trabalhadoras domésticas. Mas os relatos revelam que quase sempre o trabalho doméstico no interior é revestido por um caráter informal mais forte do que o presente no trabalho doméstico em uma cidade grande, como Goiânia. Além disso, segundo os relatos das trabalhadoras domésticas, no interior a subordinação das trabalhadoras domésticas ao indivíduo ou grupo familiar empregador parece ser maior, com conseqüências mais nocivas para quem executa o trabalho, já que em vários casos a doméstica reside onde trabalha. Nas grandes cidades, isto tende a não ocorrer, porque os próprios patrões preferem contratar trabalhadoras domésticas que tenham a sua própria casa e apresentem uma conduta mais “profissional”, de modo a interferir o mínimo possível na privacidade da família na residência. A análise das trajetórias de vida de trabalhadoras domésticas revela o quanto a sociedade brasileira, apesar das transformações pelas quais passou, ainda é uma sociedade rígida no que diz respeito à mobilidade social. Quase todas as mães das trabalhadoras domésticas entrevistadas já prestaram serviços domésticos em alguma época da vida, ou ainda continuam a fazê-lo. As que não adentraram o serviço doméstico remunerado viviam como donas-de-casa, executando exatamente o mesmo trabalho, mas sem remuneração alguma. Nas falas das entrevistadas, o fato de seguirem a mesma profissão da mãe, ou fazer profissionalmente o que a mãe fazia em sua própria casa não é atribuído diretamente à influência das mães no processo de socialização, mas às condições “estruturais” que não permitem que elas tenham recursos e tempo para se engajar nos estudos e desempenhar outras atividades. À propósito, foi unânime a afirmação de que o trabalho doméstico surgiu como ocupação possível devido à falta de estudo e a impossibilidade de ter uma “profissão” – leiase profissão de “carreira”, como as dos profissionais da academia, os profissionais liberais, os funcionários públicos e mesmos os empresários. Isso mostra claramente que o serviço doméstico não é encarado como uma profissão por aquelas que o executam, porque não exige conhecimentos especializados, nem escolarização, nem habilidades “especiais”. A decisão de engajar-se na atividade está ligada, em várias falas, aos constrangimentos materiais característicos da infância pobre na zona rural do interior do estado. Ao chegarem à capital, com a necessidade de desempenhar uma ocupação, acabam adentrando o serviço doméstico, o que, segundo elas, é mais fácil de conseguir, pois necessita apenas de uma indicação. As trabalhadoras domésticas também revelaram que, na família, já eram incumbidas do trabalho doméstico, no interior de uma organização familiar que reproduzia a divisão sexual do trabalho em termos de trabalho produtivo, para os homens, e trabalho reprodutivo, 113 para as mulheres. Pela necessidade de trabalhar, as trabalhadoras domésticas entrevistadas, na sua maioria, abandonaram a escola ainda no ensino fundamental. As conseqüências da evasão escolar foram, então, decisivas para o ingresso na ocupação. A despeito da opinião, disseminada em diversos âmbitos da sociedade, de que o serviço doméstico é a pior ocupação do mercado de trabalho, e que as mulheres que estão nele inseridas o fazem por falta de escolha, algumas trabalhadoras domésticas entrevistadas enfatizam que escolheram sua ocupação, dentro, logicamente, de um leque de opções um tanto quanto reduzido de ocupações também desvalorizadas, em diferentes medidas. Como já havia mostrado Brites (2000), o serviço doméstico é visto como vantajoso pelas trabalhadoras domésticas em face de outros empregos que são menos desvalorizados. Várias das trabalhadoras entrevistadas afirmam que já executaram outros trabalhos, como os de secretária, vendedora (de roupas, calçados, brinquedos), de auxiliar de cozinha em restaurantes, de auxiliar de limpeza em empresas privadas. Mas escolheram o serviço doméstico por ser o salário sempre maior ou igual ao que ganhavam nessas outras ocupações, por ter um horário mais flexível, permitindo cuidar dos filhos e da própria casa, e por não trabalhar nos finais de semana e feriados, sobrando tempo para descansar e ficar com a família. Todos esses argumentos, usados positivamente pelas trabalhadoras domésticas, conforme assevera Brites (2000), são justamente os que os primeiros movimentos feministas condenavam como sendo os grilhões que aprisionavam as mulheres na “domesticidade”. A fala desta trabalhadora doméstica exemplifica o que foi dito. Trabalhei em loja também, antes de trabalhar em casa de família, mas ganhava muito pouco. Só que trabalhava demais, das sete da manhã às nove da noite. Aí eu fui trabalhar de doméstica e estou fazendo uns cursos de informática, porque eu não pretendo ficar nas casas dos outros pro resto da vida. Mas como doméstica meu salário passou a ser muito maior do que na loja, e o horário ficou mais tranqüilo, não trabalho feriado. Trabalho só de segunda a sexta, entro às 10h, saio às 18h. E nas lojas não, trabalhava todo dia e ainda um domingo sim, um domingo não. E ganhava muito pouco. Assim, não vou dizer que eu gosto, porque a gente não gosta de fazer serviço doméstico, né. Mas é um serviço que ganha mais, pelo menos pra mim que não tenho uma profissão, um currículo, um diploma pra entrar no mercado de trabalho (MARINA, trabalhadora doméstica, 28 anos, parda). A maioria delas começou a trabalhar muito cedo, entre os 10 e os 14 anos de idade. Isso reflete a precoce iniciação das meninas no trabalho doméstico dentro de seus próprios lares, trabalho esse que inclui a limpeza da casa, a preparação de alimentos e o cuidado com irmãos menores. Ao indagar como as entrevistadas “se tornaram” trabalhadoras domésticas, descobrimos que grande parte delas adentrou essa ocupação por falta de formação profissional que permitisse executar uma “profissão” melhor remunerada e mais bem reconhecida. A 114 entrada no mercado de trabalho sempre se dá por meio dos contatos com familiares e amigos. Por trás do serviço doméstico, há sempre uma rede de pessoas conectadas umas às outras por meio das quais é possível mobilizar uma indicação de emprego caso seja necessário. Essa rede liga, inclusive, as cidades do interior à capital. Muitas mulheres jovens conseguem um emprego doméstico na capital antes mesmo de sair de sua cidade, através dessa rede de contatos, que envolve tanto trabalhadoras domésticas quanto patrões. Essas redes de contatos, além de facilitar a colocação da trabalhadora doméstica no mercado de trabalho doméstico, são funcionais também aos patrões, que geralmente se sentem mais seguros quando contratam alguém que foi indicado por familiares ou amigos, que têm referências e um “atestado de honestidade”. Para a maioria das entrevistadas, o serviço doméstico foi o primeiro emprego, a porta de entrada no mercado de trabalho. Quase sempre, esse primeiro emprego é sucedido por outro, e por outro, e por outro. Nas falas de várias das entrevistadas, é freqüente o desejo de terminar o segundo grau, de fazer um curso profissionalizante, de ingressar em outra ocupação, como uma forma de “ascender” socialmente. O serviço doméstico é quase sempre visto como algo transitório, mas a “transição” para outra ocupação ocorre em poucos casos. Na visão de uma das trabalhadoras domésticas, isso ocorre por que as opções para quem tem pouca escolaridade são muito escassas. Quando perguntei a uma das trabalhadoras domésticas entrevistadas por que tinha escolhido o serviço doméstico, ela respondeu: Ah, primeiro, porque quase não tem opção. Eu estudei pouco. Eu parei meus estudos, não cheguei a fazer um curso pra me especializar noutra área, né. E hoje sem estudo você não faz nada. Até em anúncio pedindo diarista eles estão pedindo oitava série, primeiro ano. Então, foi mais por falta de opção. Não tinha estudo pra entrar noutra área, então, vai “doméstica mesmo”, né. É o que a gente sabe fazer mesmo, no dia-a-dia (FÁTIMA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda). Como se pode ver, se algumas trabalhadoras afirmam haver opções, outras enfatizam que elas são muito restritas, praticamente inexistentes, e o trabalho doméstico se torna uma opção recorrente porque as mulheres são socializadas para fazê-lo, principalmente nas classes mais pobres, e, por isso, consideram que é o que fazem de melhor. Pode-se concluir, então, que, se não há nenhuma determinação mecânica que leva invariavelmente mulheres pobres para o trabalho doméstico, não há também muitas escolhas a serem feitas, já que as profissões mais reconhecidas e melhor remuneradas do mercado de trabalho exigem um nível de formação escolar e técnica relativamente elevado. As condições econômicas e a organização da família também interferem na inserção das mulheres no serviço doméstico. O trabalho doméstico foi meu primeiro emprego. Quando eu era adolescente eu não fiz curso nenhum. Eu morava longe, onde eu morava não tinha nem energia. Então eu dormia cedo pra acordar cedo e ir pra escola. Meu pai era ausente, minha mãe era 115 diarista, então a gente ficou cuidando um do outro, nunca saí pra trabalhar fora. Eu aprendi a cozinhar cedo, a lavar roupa. Então eu nunca me preocupei em fazer um curso. Quando eu resolvi casar, aí eu comecei a trabalhar de doméstica. Aí dei certo no primeiro emprego, fiquei uns quatro anos. Depois disso, não fiquei parada (ROSA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda). A iniciação das jovens no trabalho doméstico não é apenas influenciada pela mãe, como também, às vezes, é articulada por ela, como nesse caso. Eu cheguei nesse emprego através da minha mãe. Minha mãe trabalha para a mãe da [minha patroa]. Aí já tem um bom tempo que minha mãe trabalha pra ela. Trabalha um tempo, sai, depois volta. Aí minha mãe ficou sabendo que tinha vaga aqui, e eu tinha falado pra ela que queria trabalhar. Porque é difícil você viver só com o que o marido ganha. As filhas vão crescendo, vão pedindo as coisas, aí fica difícil só pra um. Aí ela foi e falou para a [minha patroa] que, se ela quisesse, eu vinha. Falou que eu fazia de tudo, sabia cozinhar. Falou que eu nunca tinha trabalhado fora, isso ela falou, mas falou que eu sabia fazer tudo, que tendo a receita em mãos eu fazia tudo. Aí eu vim, a [patroa] gostou, e deu certo (FÁTIMA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda). É fundamental apreender o sentido do trabalho doméstico para as mulheres que o executam diariamente na casa da família empregadora. A partir das informações, é possível entrever os elementos que estão na base do “senso de identidade” dessas trabalhadoras, tanto no que se refere à identidade pessoal – a consideração de si mesmo – e social – a consideração dos outros sobre si mesmo – quanto os aspectos ligados ao que Dubar (2005) chamou de “identidade ocupacional”. Nesses elementos, cruzam-se características que marcam a posição ocupada pela trabalhadora doméstica e ao mesmo tempo expressam-se as experiências subjetivas de cada uma frente ao seu trabalho e à relação com a família empregadora, sobretudo a patroa. A identidade, como visto no capítulo 2, é construída no cotidiano pela “nomeação”, pelo ato de nomear. Acionar um nome é acionar uma classe de objetos ou pessoas no interior de um sistema de classificação. Pelo nome que é acionado, já se sabe que tipo de pessoa ou objeto tem maior probabilidade de se encontrar na classe de objetos ou pessoas que o nome indica. Sabe-se que o termo “empregada” é carregado de um sentido negativo, pejorativo, herdado das formas de execução e das relações de trabalho doméstico no Brasil colonial. Esse termo tem sido utilizado, com freqüência, para designar uma pessoa que possui um trabalho, que está ligada ao mercado de trabalho, ou seja, que não está desempregada. Quando assume o sentido da frase “fulano está empregado”, ou seja, fulano está trabalhando, figura com um sentido positivo. Já quando se muda a palavra “está” para a palavra “é”, principalmente no serviço doméstico, o termo ganha uma carga depreciativa: “fulana é empregada doméstica”. O “é” assume um sentido naturalizante, como se a ocupação da doméstica fosse um modo de vida permanente, totalmente correspondente com a subjetividade e a posição que ela ocupa na 116 estrutura social. Daí as representantes do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos reivindicarem o uso do termo “trabalhadora doméstica” ao invés de “empregada doméstica” 8. O primeiro termo mostra essa trabalhadora como outro trabalhador qualquer, portadora de direitos de cidadania comuns a todos, enquanto o segundo deprecia a imagem da categoria, negando-lhe reconhecimento enquanto grupo que executa um trabalho digno. Vejamos opiniões divergentes das entrevistadas quando indagadas sobre se é importante ou não o ato de nomear a trabalhadora doméstica como “empregada”. Eu preferiria ser chamada de secretária né. Porque o pessoal tem muito preconceito. Eu mesmo tenho. Eu gostaria de trabalhar de outra coisa. Mas, como eu não tive oportunidade de ter uma formação e trabalhar em outra coisa, trabalho de doméstica. Mas até a palavra é feia, não é? “Doméstica” (MARINA, trabalhadora doméstica, 28 anos, parda). Minha patroa não fala “empregada”, ela fala “minha ajudante”. Eu acho “empregada” uma palavra muito...desconfortável. Dá pra gente usar outro termo, né? Secretária do lar, uma coisa assim, sei lá... igual ela fala, minha ajudante (ROSENILDE, trabalhadora doméstica, 35 anos, parda). Eu acho que doméstica, secretária, não faz diferença não. Porque quem vem aqui, sabe que eu sou empregada mesmo, que eu trabalho como doméstica, então, eu não faço muita questão assim não, não vejo muita diferença não (FÁTIMA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda). É possível perceber que, nas duas primeiras falas, há o desejo de ser designada por um nome, ou classificação, menos pesada, menos pejorativa, que não lembre o tempo todo a sujeição e a subordinação à qual a maioria das trabalhadoras domésticas estão sujeitas. Esse desejo de não ser chamada de “empregada” vem da vontade de superar o sentimento profundo de subordinação e desigualdade que várias trabalhadoras domésticas sentem. Vem também de uma ânsia por reconhecimento do trabalho executado por elas, pela dignidade e pelo respeito à atividade. Contudo, a terceira entrevistada citada acima discordou das duas primeiras. Para ela, uma nomenclatura diferente parece não resistir à interação face-a-face. Segundo ela, isso não tem a menor importância, já que as pessoas que a vêm trabalhar na casa dos patrões sabem que ela é uma “empregada”. Assim, a mudança de nome não acarretaria uma mudança nos valores pelos quais se classificam o conteúdo da prestação de serviço doméstico. Mas, ao que tudo indica, a mudança na forma de nomear contribui para mudar o comportamento das pessoas em relação ao que é renomeado. De qualquer forma, essa exceção mostra também que as posições em relação ao trabalho doméstico e suas conseqüências podem ser heterogêneas. Contudo, há, sem dúvida, um estigma em torno dessa ocupação que é partilhado por várias trabalhadoras. Isto pode ser ilustrado com um exemplo, que destaca conseqüências pessoais desta desvalorização. 8 Ver Bernardino-Costa (2007). 117 Eu não vou mentir, eu fico com vergonha de falar que eu trabalho no serviço doméstico. Às vezes eu não falo, às vezes alguém pergunta e eu falo que eu trabalho em outra coisa. As pessoas têm muito preconceito, quando sabem do nosso serviço tratam a gente diferente. Não sei explicar, só sei que eu me sinto assim. Tem gente que não se importa, mas tem gente que se importa. Principalmente pra homem, né. Às vezes você tá interessada em uma pessoa, aí ela pergunta o que você faz, se você fala que é doméstica às vezes a pessoa fica meio assim, né...Eu acho que os homens têm vergonha de se relacionar com pessoas que trabalham em casa de família (MARINA, trabalhadora doméstica, 28 anos, parda). Em outro exemplo, uma trabalhadora revela já ter sofrido preconceito, embora fora das relações de serviço doméstico. Porque você sabe que tem discriminação, por ser empregada, por causa da cor...Já sofri discriminação, de chegar em um restaurante procurando emprego e dizer que a vaga já tinha sido preenchida, sendo que eu sabia que não tinha sido. Em casa de família nunca aconteceu isso. Até que eu tive sorte. Fui discriminada quando eu tentei arrumar outro tipo de emprego, das pessoas me olharem de cima até em baixo, essas coisas...As pessoas preferem pessoas loiras para trabalhar nesses lugares (ROSENILDE, trabalhadora doméstica, 35 anos, parda). Isto não quer dizer que não haja esse tipo de discriminação no trabalho doméstico. De fato, nenhuma das entrevistadas disse já ter sofrido discriminação racial no ambiente de trabalho doméstico, embora relatem, quase todas, que conheciam trabalhadoras domésticas que já haviam passado por essa situação. Podemos pensar que a ausência de discriminação racial explícita entre as trabalhadoras domésticas se deve, em parte, à criminalização do insulto racial, e, em parte, ao fato de que, se a figura da trabalhadora doméstica que povoa o imaginário social é aquela muito próxima à da “mãe preta”, ou à “mucama”, então a mulher negra se encaixa dentro daquilo que é esperado dela, ou seja, a execução das tarefas da casa. Daí a ausência da discriminação explícita, o que não atesta a ausência de preconceito. Mesmo não havendo discriminação aberta no ambiente de trabalho das entrevistadas, é muito claro o senso de hierarquia com o qual interpretam o mundo e suas relações de trabalho. E, nessa hierarquia, têm consciência de que ocupam os lugares mais baixos. Entretanto, apesar da consciência do lugar que ocupam na relação de trabalho e na relação com seus patrões em termos de estratificação social, parece sobrar muito poucas alternativas às trabalhadoras domésticas para tentar subverter esse quadro. Em todas as áreas, sempre vai ter alguém pra fazer o trabalho mais baixo. Se eu estou aqui limpando a casa da [patroa] e estou me sentindo bem, para mim é a mesma coisa de estar limpando o centro administrativo. Você está ali para manter limpo. Uma pessoa que é estudada não tem tempo de trabalhar e cuidar da casa ao mesmo tempo. Enquanto tiverem as classes mais altas, vai existir a classe mais baixa. Em qualquer lugar a limpeza é importante. Não acho que um professor seja melhor do que eu. Como eu, ele está ali para fazer o trabalho dele e eu estou aqui fazendo o meu. Se não tivesse ninguém para limpar, como ia ficar uma sala de aula? (ROSA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda). 118 Diante da consciência da hierarquia presente nas relações, e da impossibilidade de modificá-las drástica e rapidamente, as trabalhadoras domésticas apóiam sua identidade profissional na importância do seu trabalho para quem o contrata e dele usufrui. Entretanto, a hierarquia figura nas representações das trabalhadoras domésticas como uma ordem natural, sem a qual a vida social seria ininteligível. A relação de trabalho e as relações pessoais delas são vistas a partir de um olhar que não enxerga possibilidades de mudança. O que seria do mundo se fosse todo mundo rico, ou todo mundo pobre? Então as pessoas de baixa renda vão fazer esse tipo de trabalho. Eu penso assim, né. Ficaria até chato, já pensou? Se todo mundo fosse rico... É, mas seria bom se todo mundo fosse igual, mas desde o começo do mundo é assim, tem patrão e empregado (IVANETE, trabalhadora doméstica, 29 anos, preta). O trabalho doméstico é tido como uma profissão que prescinde de formação educacional e técnica para ser executado. Desse modo, a escolarização não teria impacto sobre a execução do trabalho. Entretanto, as trabalhadoras domésticas reconhecem que, mesmo no serviço doméstico, a formação educacional, e às vezes uma formação técnica, fazem falta. Uma delas cita um exemplo. A falta de estudo interfere, se eu dissesse que não, estaria mentido. Não deixa de interferir. [...] Porque, por exemplo, o que aconteceu: um dia ele [patrão] ligou precisando de um documento que estava no computador. Aí ele ligou e perguntou pra mim: “Você sabe mexer no computador?”. Aí eu disse “sei não, na verdade eu não sei nem como liga”. Não sou de estar freqüentando “lan house”, e essas coisas, né. Aí eu falei “eu não sei”. Aí, como se diz, interfere né, porque se eu soubesse mexer, se tivesse um curso de informática, poderia ligar e procurar o que ele queria naquela hora. Mas, não deixa de interferir, né...Nos demais serviços não, porque eu sei ler bem. Ela [patroa] sempre deixa um bilhete escrito com o que ela quer que eu faça para o almoço. Pra escrever, às vezes eu tenho uns erros de português, mas eu acho que não, para outros serviços não interfere não...(FÁTIMA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda). Quando indagadas sobre a importância do trabalho doméstico para a família que o contrata e para a sociedade como um todo, é unânime entre as trabalhadoras domésticas – e também entre as patroas, como veremos adiante – a opinião de que este é um trabalho fundamental para que as condições de vida da família empregadora sejam reproduzidas e para que as pessoas tenham seus lares organizados de forma que permita tanto o repouso dos que trabalham quanto a socialização dos que ainda estão em fase de crescimento. Para a própria trabalhadora doméstica o serviço é importante pelo valor do trabalho em si, porque gera renda, mantém as pessoas vinculas ao mercado de trabalho e, nos casos das trabalhadoras que têm carteira assinada, permitem o usufruto de direitos de cidadania vinculados ao trabalho – ainda que os direitos dessa categoria profissional sejam restritos. Pra família dela é importante, porque eles precisam da gente. Eles não têm tempo pra fazer o serviço doméstico, a vida deles é muito corrida. Como vão ficar sem comer, sem vestir? Pra mim é importante porque eu preciso trabalhar. A gente que é 119 pobre não pode ficar sem trabalhar (JUREMA, trabalhadora doméstica, 42 anos, parda). Pra quem precisa trabalhar, eu acho que é importante, porque se a pessoa precisa é porque não tem como correr para outro lado. Pra quem contrata é melhor ainda. Principalmente se for uma pessoa boa, de confiança. Eles não podem ficar sem (MARILDA, trabalhadora doméstica, 44 anos, branca). Por fim, quando indagadas se gostam do serviço doméstico, como elas se vêem no trabalho e como as outras pessoas as vêem enquanto trabalhadoras domésticas, as respostas não encontraram um consenso. Vejamos esses diferentes exemplos. Pra falar a verdade, eu trabalho porque tem que trabalhar, porque não tem opção, mas eu não acho bom trabalhar assim de doméstica não. Se eu pudesse escolher, ao invés de estar trabalhando, eu preferia estar na minha casa, cuidando das minhas filhas. Mas, quando você encontra pessoas boas, como eles [patrão e patroa], aí não tem do que reclamar. Mas, eu faço o possível, né. Tem que gostar do trabalho. Tem dia que você tá estressada. Tem dia que você recebe um elogio, tem que dia que você recebe uma crítica, e assim vai (FÁTIMA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda). Por mais que aqui esteja bom, eu ainda acho um serviço pesado. Mas, se eu gosto do trabalho? Gosto, e o pior é que eu gosto! Não sei porque... Eu gosto do que eu faço, gosto de limpar casa, gosto de lavar roupa. Minha casa é arrumadinha, eu chego e já vou limpando tudo. Eu gosto do que eu faço. Mas, eu penso em ter meu negócio próprio e não precisar mais trabalhar em casa de família, por causa do preconceito que eu te falei (ROSENILDE, trabalhadora doméstica, 35 anos, parda). A maioria pega no meu pé. “Você é jovem, bonita, vai procurar outra coisa, caça um ramo melhor, larga isso aí”. Às vezes eu penso nisso. Mas o meu objetivo sempre foi casar, ter filhos, ter minha família e estudar. Porque ou você estuda ou cuida da família. Eu não dou conta de fazer os dois juntos. Se fosse pra eu estudar e ter um emprego legal, eu queria. Mas eu penso em fazer um curso mais na frente e sair desse ramo. Tem muita discriminação contra doméstica, como se não fosse importante. Tem até piadinha sem graça dentro do ônibus. Até uma simples secretária, que às vezes ganha menos, olha a empregada de cima para baixo. Eu não trocaria um emprego de doméstica por um de secretária. De maneira alguma. Desde que você ganhe seu salário dignamente, goste do que você faz, vai em frente. Eu não olho uniforme, eu olho o trabalhador, seja no que for. Eu acho legal ser doméstica. As pessoas falam “larga de cozinhar para os outros, larga de lavar banheiro, e não sei mais o que”. Mas não é isso que eu quero pra mim nesse momento. Estudar, pegar um serviço aí e depois ficar me matando, chegar e ainda ter que cuidar de casa, ficar brigando com o marido, com os filhos, eu não (ROSA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda). Como se pode ver nas falas, as avaliações a respeito do serviço doméstico diferem muito. Se a primeira reafirma o fato de não gostar do que faz, de executar o serviço doméstico por falta de escolha e pela necessidade de trabalhar, a segunda afirma gostar do que, faz, apesar da carga pesada que o trabalho impõe. Entretanto, mesmo a que diz gostar do que faz, tem planos de ingressar em outra atividade, com um negócio próprio, onde não precise enfrentar o preconceito ligado à sua ocupação de “empregada”. A terceira trabalhadora expressa também o preconceito por parte das pessoas para com sua ocupação. Apesar de levar em consideração tais opiniões, assevera que as condições em que executa o serviço doméstico 120 se encaixam perfeitamente com seus planos pessoais com relação à sua família, ainda que haja preconceito e discriminação. Ressalta a dignidade presente na ocupação e se apóia nela para reforçar as qualidades dos serviços domésticos diante de outras profissões tidas como menos degradantes ou mesmo “superiores”. 3.5 Ser patroa É interessante perceber que as trajetórias de vida de patroas e trabalhadoras domésticas guardam algumas aproximações. Por outro lado, há também diferenças abissais. Em geral, a dedicação aos estudos e à carreira profissional marcam a distinção nas trajetórias das patroas em relação às trajetórias das trabalhadoras domésticas. Mais do que entre as trabalhadoras domésticas, entre as patroas existe uma heterogeneidade muito grande no que diz respeito às trajetórias de vida. Por outro lado, observa-se também que quase todas as patroas entrevistadas semelhantemente nasceram no interior do estado de Goiás, algumas na zona rural, passando por várias cidades até chegar à capital. Algumas delas tiveram uma infância muito pobre, com dificuldades materiais inclusive, como é o caso do exemplo abaixo. Minha história é igual a de muitos brasileiros. Nasci numa família pobre, com muita dificuldade, no interior, aí fui crescendo e aprendendo me estruturar na vida. Nasci em Anicuns, vivi em Nazário, Itapuranga, depois vim para Goiânia. Criamos raízes e fomos vivendo, estudando, todo mundo foi para o caminho certo. Quando eu era criança, tive uma infância pobre, com muitas necessidades, dificuldades, mas superamos. Meu pai trabalhava na via ferroviária. Minha mãe era dona-de-casa, nunca trabalhou fora, sempre cuidou de um monte de meninos (IVETE, patroa, 34 anos, comerciante, parda). Essa mesma patroa chegou a trabalhar como doméstica ainda na infância. Já trabalhei de várias coisas, de doméstica, de vendedora, várias coisas. Trabalhei de doméstica já aqui em Goiânia, era menor de idade ainda. Com 10 anos eu trabalhava olhando criança para os outros em troca de comida e roupa, ficava morando na casa das pessoas e olhando as crianças deles. Trabalhei em várias casas, umas melhores, umas piores. Depois eu fiquei 5 anos trabalhando numa loja. Depois comecei a vender roupa por contra própria, aí nunca mais trabalhei para os outros, graças a Deus (IVETE, patroa, 34 anos, comerciante, parda). A maioria das patroas teve uma infância diferente da que foi relatada acima, com mais recursos. Duas das patroas entrevistadas eram filhas de professoras, o que facilitou muito o acesso à educação formal. Desde cedo, cresceram em meio à rotina da mãe, lidando com o conhecimento escolar. A migração em direção à capital, para a maioria delas, se deu mais com o objetivo de crescer profissionalmente do que de suprir necessidades materiais. Alguns problemas familiares constituíram obstáculos para algumas das entrevistadas que, ainda 121 assim, conseguiram construir uma estrutura minimamente estável para criar seus filhos. É importante destacar que, se várias das trabalhadoras domésticas são filhas de trabalhadoras domésticas, várias das patroas entrevistadas são filhas de patroas, ou seja, suas famílias contavam com os serviços domésticos de outra mulher, com a qual aprenderam a conviver desde cedo. Isto corrobora ainda mais o argumento de que a mobilidade social no Brasil é baixa, reproduzindo, por meio dos processos de socialização, as posições de classe. As patroas entrevistadas, com exceção de duas, completaram o ensino superior, o que demarca uma diferença muito clara em relação à trabalhadoras domésticas, que, em média, possuem a oitava série do ensino fundamental. Uma delas, professora universitária, teve uma trajetória de vida que parece ser o extremo oposto das trajetórias narradas pelas trabalhadoras domésticas. Meus pais eram médicos e militantes políticos. Vieram do Rio de Janeiro para o interior de Goiás. Tive uma infância em meio “letrado”, habituada com um ambiente de muito estudo, muita leitura, e por isso acabei seguindo o mesmo caminho, indo trabalhar na universidade. Eu acho que eu tive uma vida muito fácil, essa é a verdade. Algumas pessoas podem achar que isso não tem graça, mas eu sou feliz. Eu fui criada dentro das expectativas da escola tradicional, então eu estou dentro dessas expectativas, por causa da exposição à leitura. Eu sempre tive uma fonte de renda na universidade. Quando eu entrei, eu fui convidada para a iniciação científica, depois entrei no mestrado com bolsa, depois fiz o doutorado com bolsa, no percurso “padrão”. Então a universidade foi sempre uma fonte de renda pra mim (CLAUDIA, patroa, 35 anos, professora universitária, branca). De modo geral, as trajetórias das patroas revelam um caminho de distanciamento progressivo das necessidades materiais, o que, para Bourdieu (2008) é a primeira e mais expressiva marca de distinção em relação às classes mais baixas. O conforto de possuir uma ocupação reconhecida, receber um salário razoável e dispor de um mínimo de recursos simbólicos, ou capital cultural, como diria o referido autor, demonstram a posição que estas mulheres ocupam na sociedade e demarcam diferenças profundas de classe entre elas e as trabalhadoras domésticas. Os dados da pesquisa mostraram que o “tornar-se patroa” está quase sempre ligado à necessidade de conciliação da atuação profissional com a experiência da maternidade. Quase todas as entrevistadas afirmaram que contrataram pela primeira vez uma trabalhadora doméstica quando se viram na necessidade de conduzir a vida profissional e cuidar dos filhos simultaneamente. Os exemplos são numerosos. Eu senti necessidade de contratar alguém para o serviço doméstico quando eu comecei a trabalhar, eu tinha filhos pequenos, e saía muito, ficava muito fora, aí eu precisei de alguém. De lá pra cá eu sempre tive ajudante. Precisei contratar não tanto pelos filhos, mas mais pelo trabalho e pelo tamanho da casa. Antes eu até tinha necessidade, mas passava bem sem. Quando veio esse trabalho, junto com os filhos, aí eu precisei (DANIELA, patroa, 47 anos, artista plástica, braca). 122 Eu tive a primeira empregada, um pouco antes da minha primeira filha nascer, porque eu tive risco de parto prematuro. Antes disso, a gente teve eventuais faxinas. Em outra época, anterior, a gente pagava uma lavadeira, dependendo da época e do dinheiro que a gente tinha. Mas quando eu fiquei grávida, aí eu tive uma pessoa mais regular, duas vezes por semana. Mas logo que o neném nasceu, eu mudei para Goiânia de novo e precisei de uma pessoa que trabalhasse todo dia. Então, a maternidade foi determinante. Era um limitador. Mas a contratação dessa pessoa decorreu também dos problemas da minha relação. Porque se eu tivesse confiança nele [o companheiro] e se ele dividisse as tarefas comigo, eu acho que a gente conseguiria fazer as tarefas da casa. Mas como não era assim, eu tive que arrumar uma pessoa, porque senão eu ia ficar sozinha com a criança e com a casa e ia acabar perdendo o meu doutorado, e isso não estava nos meus planos. E se eu não fizesse isso, eu ia colocar a própria relação em risco, porque a gente ia brigar muito (CLAUDIA, patroa, 35 anos, professora universitária, branca). A primeira pessoa que trabalhou na minha casa foi quando meu segundo filho nasceu. Eu fazia faculdade ainda, e eu vi que eu não ia dar conta da casa, dos dois filhos e do marido sozinha. Daí pra frente, eu sempre tive uma pessoa que cuidava da casa, às vezes até duas, às vezes vinha uma passadeira (JÚLIA, patroa, 45 anos, Administradora, branca). Quando eu tive o meu primeiro filho, eu senti a necessidade de ter alguém pra me ajudar. Quando eu era solteira e morava sozinha, não me lembro de ter sentido que precisava de alguém. Eu desenvolvia tudo sozinha no meu apartamento. Claro que às vezes tomava refeições na casa da minha mãe. Quando eu mudei, casei e tive filhos, eu tive uma babá para cuidar inicialmente do meu filho. À medida que ele foi crescendo, no meu caso, ela foi assumindo outras atividades. Claro que é um caso muito particular. Ela ficou comigo mais de dez anos. Aí ela começou a cuidar da casa. Então, foi a partir do nascimento do primeiro filho que eu tive a necessidade de contratar alguém para me ajudar (BEATRIZ, patroa, 54 anos, fotógrafa, branca). Desde que me casei eu sempre precisei de alguém. Quando eu casei, eu fui morar em um apartamento pequeno. Logo em seguida, eu fui para uma casa e essa casa era grande e eu estava grávida, então já veio daí a necessidade de contratar alguém e de lá para cá não teve jeito de ficar sem mais. Não, antes não. Porque em casa nós éramos três mulheres e um homem e a gente dividia as tarefas e a gente mesmo fazia (MARGARET, patroa, 55 anos, comerciante, branca). Parece claro, então, o fato de que a contratação da trabalhadora doméstica decorre da sobrecarga sobre a patroa resultante do acúmulo de tarefas domésticas e profissionais. O estabelecimento desse contrato tem relação direta com a divisão sexual do trabalho produtivo e do trabalho doméstico, como fica explícito no segundo depoimento citado. De acordo com as representações sociais dominantes, aos homens geralmente cabe o trabalho provedor do sustento da família, fora do lar, e às mulheres o trabalho de reprodução das condições necessárias para a vida da família no ambiente doméstico. A necessidade de contratar uma trabalhadora doméstica deriva do fato de que, quando se têm filhos, é atribuído às mulheres o papel de conciliar o cuidado com eles e a manutenção dos cuidados com a casa, responsabilidade que já era total ou majoritariamente atribuída à ela. Isto inclui a limpeza das dependências, das roupas e o preparo dos alimentos. Diante da sobrecarga, as mulheres que 123 possuem condições financeiras para tal delegam às trabalhadoras domésticas a responsabilidade “da mulher”, o que permite que dêem continuidade em suas vidas profissionais. A atuação da trabalhadora doméstica promove a “liberação” – pelo menos relativa – das mulheres que as contratam. Mas é preciso enfatizar que esse privilégio é restrito apenas àquelas mulheres que ocupam uma posição nas classes médias e altas de nossa sociedade, caracterizadas pela distância relativa da pobreza. Essas classes incluem posições de comando nas relações de trabalho, e o desempenho desse papel muda de acordo com o contexto. Ser patroa...Eu tenho dificuldade em dar ordem. Acho que porque eu já fui muito mandada, eu não gosto nem de ser mandada nem de ficar mandado as pessoas fazer as coisas. Então ela vai fazendo do jeito que dá. Isso em casa né, porque no escritório eu trabalho com homens, então eu tenho que ter pulso firme (IVETE, patroa, 34 anos, comerciante, parda). Neste caso em especial, destaca-se a diferença de gênero nas relações de trabalho. Esta última patroa citada revelou ser mais fácil se relacionar com mulheres do que com homens em ambientes de trabalho. Isto porque, segundo elas, os homens têm resistência a ser comandados por mulheres. Tal situação, de fato, contraria as representações hegemônicas das relações de gênero, segundo as quais os homens sempre estão em uma posição superior de poder em relação às mulheres. Quando são obrigados a sustentar uma posição diversa, parecem ter o sentido de sua masculinidade ameaçado. Daí a entrevistada afirmar que exerce um papel duplo de patroa: uma flexível e negociadora, na relação com a trabalhadora doméstica, e outra “linha dura” na relação com homens em ambiente empresarial e administrativo. Quando indagadas sobre como é ser patroa, as entrevistadas revelam que não é fácil exercer a função de “dar ordens”. Identificam parte dessa dificuldade principalmente na falta de correspondência por parte das trabalhadoras domésticas às ordens dadas, descompasso simbolizado, na visão das patroas, pela falta de cooperação, compromisso, e “boa vontade”. Ser patroa é difícil, mandar, a pessoa saber o que a gente quer. É difícil mas não é impossível. Sempre sabendo que a gente não pode exigir aquilo que a gente não daria conta de fazer, entender o outro lado. Mas é difícil porque nem sempre o outro lado tem consciência. Então a gente tem que estar puxando, cobrando (DANIELA, patroa, 47 anos, artista plástica, braca). Nossa! Desempenhar esse papel de patroa é horrível, porque se fosse aquela pessoa que você fala “é isso, isso e isso”, e todos os dias ela vai fazer aquilo, seria ótimo, mas com não funciona desse jeito, você pode fazer um manual, um livrinho para ela, que ela não vai olhar para ele; ela ouve o que ela quer. Então ser patroa no meu entender não é muito bom, porque você vai cobrar as coisas, mas seria bom se ela fizesse o que você pede. Tem algumas que não gosta que você fica falando, então elas fazem o que você pede, mas a minha secretaria não é assim, ela é bem atípica (JUDITH, patroa, 45 anos, odontóloga, amarela). 124 Em outros casos, as dificuldades em ser patroa derivam do engajamento pessoal e emocional na relação com a trabalhadora doméstica, que termina por confundir relação profissional e amizade. Eu tenho um pouco de dificuldade de ser patroa, porque às vezes eu acabo entrando muito na vida da pessoa. Eu prefiro ser mais amiga do que exigente. Agora, ser patroa não é fácil. Mas eu não sou muito rígida não, e às vezes eu me prejudico com isso. Eu não exploro, mas também não gosto de ser explorada. Eu tenho um bom relcionamento, às vezes até demais, porque a pessoa acaba virando um membro da família. Às vezes a amizade atrapalha. Eu sou muito mão-aberta (MARGARET, patroa, 55 anos, comerciante, branca). Quanto ao ato de “nomear”, se para a maioria das trabalhadoras domésticas o termo “empregada” soa pejorativo, a maioria das patroas também considera que o sentido da palavra é negativo, degradante, e procura mudar a forma de designar a trabalhadora doméstica no diaa-dia. Quando eu to no trabalho, por exemplo, eu falo “a minha empregada”, ou “a minha doméstica”. Eu evito falar “empregada”. Há um tempo atrás eu falava mais “empregada”. Hoje eu tento me corrigir. Porque é um trabalho doméstico. Então, eu estou procurando me corrigir na hora que eu falo. Mas “o empregador doméstico” e “o trabalhador doméstico”, eu acho mais simpático (BEATRIZ, patroa, 54 anos, fotógrafa, branca). Entretanto, o termo retorna em diversas ocasiões, quando as conversas se tornam mais informais. Na verdade, o termo marca um lugar subalterno para a trabalhadora doméstica, tanto nas relações profissionais quanto pessoais. Para uma das patroas, se o termo é empregado pela lei para distinguir uma forma de trabalho de outra, não há muito sentido em substituí-lo. Nesse ponto, eu sou muito legalista. O sindicato chama de “empregada”, então eu chamo de empregada. Não é secretária, porque se fosse elas fariam outras coisas, e teriam horários diferentes. Mas elas nunca reclamaram. Ah não, tinha uma que queria ser chamada de babá. Não sei porque, babá parece que tem mais status. Mas ela olhava a criança apenas como mais um serviço da casa, não era a principal tarefa. Porque eu vejo que são trabalhos diferentes, o da babá e o da empregada (CLAUDIA, patroa, 35 anos, professora universitária, branca). Quando indagadas sobre a importância do trabalho doméstico para a sua família e para a sociedade como um todo, é unânime entre as patroas a consideração de que esse trabalho é fundamental e sem ele seria impossível manter uma vida profissional. Além da funcionalidade, as patroas ressaltam o conforto que o serviço doméstico traz para a família que contrata, tirando dela, principalmente da mulher, o fardo pesado da execução de tarefas rotineiras, cansativas e entediantes, como a limpeza e o preparo de alimentos. Esse trabalho é muito importante. É muito digno. É importante para gerar renda para quem não tem. É importante pra quem contrata, porque você pode desenvolver outras atividades, fazer outras coisas, como eu. Se eu não tivesse uma pessoa trabalhando, a vida ia ser muito corrida. Já está corrida agora, mas se não tivesse estaria mais complicado. É necessário (IVETE, patroa, 34 anos, comerciante, parda). 125 Esse trabalho é importante pra minha família porque traz um conforto, principalmente pros meus filhos e pra mim. Pra sociedade é importante porque permite que as mulheres arrumem emprego, trabalhem fora, desenvolvem outras atividades. Eu não conseguiria viver sem esse trabalho, porque eu sou muito perfeccionista, gosto muito de ver tudo arrumado. Sozinha, eu ficaria esgotada, não daria conta de tudo (BEATRIZ, 54 anos, fotógrafa, branca). Uma das patroas demonstra uma preocupação, não explicitada pelas outras, acerca da transformação da divisão do trabalho doméstico. Ao mesmo tempo em que ressalta a importância das tarefas desenvolvidas pela doméstica, revela o desejo de um dia poder contar com uma distribuição do trabalho doméstico entre os membros da família que permita dispensar os serviços da trabalhadora doméstica. É um trabalho fundamental. Mas eu espero um dia não precisar mais. Meu sonho é ver minhas filhas crescerem e a gente poder fazer as coisas sem precisar da empregada. Porque se esse serviço é bem distribuído entre as pessoas da casa, ele funciona bem. Mas tem que ser bem distribuído. Uma pessoa uma vez me disse que empregada doméstica no Brasil é resquício de escravidão. Eu falei “pode até funcionar como tal, agora, vai você fazer o serviço”. E era uma pessoa que inclusive morava sozinha. Aí é muito fácil, ela mora sozinha, ela mesma arruma. Agora, vai morar com três crianças e um marido, aí eu quero ver. Então eu acho que se esse serviço fosse bem distribuído, não precisaria da empregada. Mas é um serviço muito importante, ele precisa ser mantido, sem ele eu não consigo viver. Eu não consigo viver sem esse trabalho. Eu não consigo viver no caos, mas também não consigo lavar roupa todo dia. Eu acho que é um serviço fundamental. Ou então você distribui o serviço por igual entre os membros da casa, o que é muito difícil (CLAUDIA, patroa 35 nos, professora universitária, branca). Algumas opiniões feministas ressaltam, desde o início dos movimentos de luta pela “liberação” das mulheres, que um dos principais obstáculos para se alcançar a igualdade entre homens e mulheres seria a transformação da divisão do trabalho doméstico (SARTI, 2004). A partir desse argumento, surgiram outros defendendo que essa divisão poderia até mesmo extinguir o serviço doméstico remunerado, o que empiricamente parece pouco provável. Contudo, essa é uma preocupação compartilhada por poucas patroas e, ainda assim, figura não como uma ação concreta, mas mais como um desejo projetado para o futuro. E o serviço doméstico, pela importância que lhe é atribuído, não dá nenhum indício de que será extinto, mas, pelo contrário, torna-se uma ocupação cada vez mais estável na estrutura ocupacional brasileira. Paradoxalmente, tem a sua importância reconhecida, mas o seu valor e prestígio continuam muito baixos. Pois é, muita gente não dá valor na empregada doméstica. Eu dou valor porque eu preciso. É um trabalho super cansativo, todos os dias você ter que fazer a mesma coisa. Tanto que eu vejo que em outros países as pessoas não têm esse privilégio. A gente ainda tem porque sai em conta, não é tão caro assim. Mas eu vejo que em outros países e até mesmo nas grandes cidades as pessoas não têm condição. Aqui no Brasil é difícil porque tem que ser uma pessoa de confiança, que não está achando, é difícil você encontrar uma pessoa. Por outro lado, é complicado porque tira muito a sua intimidade na casa, então eu acho que são dois motivos que pesam bastante. E o terceiro, eu acho que a pessoa não contrataria pelo salário. Então assim, aqui no condomínio é super valorizado, babá, porque as pessoas são 126 profissionais liberais, precisam trabalhar e tem que deixar as crianças. A maioria tem uma cozinheira, uma passadeira, uma arrumadeira e acaba tendo um monte de empregada. No inicio eu estava assim, mas depois eu fui percebendo que ter muita gente em casa tira muito a sua liberdade, claro que isso também pesa financeiramente. Aqui se ela fizesse um trabalho bem feito ela merecia ganhar muito bem, mas como ela faz do jeito dela, eu pago do jeito dela também (JUDITH, patroa, 45 anos, odontóloga, amarela). O trabalho doméstico devia ser até mais valorizado pela sociedade, porque é uma pessoa que está ali, ela faz tudo, ela é muito importante. Eu não me vejo sem esse trabalho. Pra começar, eu não gosto de fazer comida. Eu faço, mas eu não gosto. Eu não me vejo fazendo comida todo dia. Elas deviam ser mais valorizadas, porque às vezes elas trabalham em uma casa com cinco pessoas, as cinco ganhando mais do que ela. Então é difícil, você encontrar uma pessoa boa, com uma carinha boa, que faz uma comida boa... tem que ser valorizada. Mas a sociedade brasileira não está preparada pra viver sem elas (MARGARET, patroa, 55 anos, comerciante, branca.) Considerando esses dois depoimentos, percebe-se que continua vigorando entre as patroas a consideração das trabalhadoras domésticas como “um mal necessário”, e o reconhecimento da importância de sua atividade não é convertido em melhores salários, prestígio profissional e tratamento igualitário. No entanto, isso não quer dizer que não existam efetivamente solidariedades entre patroas e trabalhadoras domésticas. O estabelecimento de uma relação igualitária depende muito do contexto no qual a relação se desenrola, da confiança que se desenvolve, do respeito mútuo que se adquire. A fala seguinte é de uma patroa, que parece ver a igualdade no correto reconhecimento e valorização da trabalhadora doméstica. Eu gostaria de dizer às pessoas que conscientizassem de que precisam respeitar quem trabalha dentro da casa da gente. Dentro do seu comércio é uma coisa, mas dentro da sua casa é outra. É uma pessoa que tem que ser tão valorizada quanto um professor. Você saboreia o que ela faz com carinho. Então eu dou muito valor. Infelizmente eu hoje não posso pagar mais, mas eu tento fazer alguma coisa por fora. O sonho dela era fazer um curso de cabeleireira, eu to ajudando pagar. Então as pessoas tem que valorizar muito porque nós precisamos delas. De qualquer forma, ela saiu da casa dela, deixou a casa dela, os filhos e o marido dela, chega na sua casa debaixo de chuva, de ônibus. Pra mim ela é mais que uma doméstica, é uma irmã que eu tenho (MARGARET, patroa, 55 anos, comerciante, branca). Essa fala, apesar de demonstrar engajamento no que diz respeito à tentativa de reconhecimento do outro, ainda traz desconfianças sobre se a afetividade demonstrada pela patroa em relação à trabalhadora doméstica se traduz em direitos trabalhistas, em cidadania, em igualdade de fato. No caso específico dessa entrevistada, trata-se de uma relação de trabalho formal, cabendo todos os direitos previstos pela lei para a trabalhadora doméstica. Se tais considerações aproximam as mulheres umas das outras, de outro lado há o abismo de classe e a própria situação profissional entre “superior” e “inferior” que interferem na relação, tornando mulheres aparentemente parecidas em sujeitos sociais desiguais. A fala citada acima também confirmou um achado de Nunes (1997), de que torna-se difícil estabelecer uma 127 identidade profissional e uma consciência política porque as trabalhadoras domésticas estão sempre buscando mudar de atividade, de profissão. Isto impede a consciência política em torno identidade profissional. Além disso, o sindicato da categoria, com a baixa participação, não consegue se fortalecer o bastante para atuar e conseguir congregar reivindicações importantes. 3.6 A dinâmica da relação De maneira geral, patroas e trabalhadoras domésticas afirmam estabelecer boas relações em torno do serviço doméstico. Poucas se queixaram de desentendimentos e conflitos. Igualmente boas, segundo elas, são as relações das domésticas com os demais membros da família. De acordo com o esperado, em todos os casos é a patroa quem tem contato direto com a doméstica, é ela quem passa as ordens e estipula o planejamento das atividades. A concentração dessa relação em torno das mulheres se deve à representação que atribui à mulher a responsabilidade pelas tarefas da casa. Mesmo as que podem delegar o trabalho para outras permanecem com a responsabilidade de planejá-lo, fiscalizá-lo e, se preciso, executá-lo em parte. Como afirmou Kofes (2001), enquanto a trabalhadora doméstica precisa saber fazer o trabalho doméstico para executá-lo, a patroa precisa saber fazer para “mandar”. A boa relação é enfatizada abaixo, primeiro pela patroa, depois pela trabalhadora doméstica que convivem juntas na mesma residência. A nossa relação sempre foi boa. Nunca tive nenhum desentendimento com ela. Ela é confiável, nunca mexeu em nada. A relação com ela é até de amizade, conheço a família dela... A relação dela com as outras pessoas da família é boa, todo mundo se dá bem com ela (DANIELA, patroa, 47 anos, artista plástica, branca). Nossa relação é muito boa, nunca tive nenhum conflito. Eu já sei do que ela gosta, do que eles gostam de comer. Já sei também que ela não gosta que eu venha trabalhar com calça de malha, então eu nunca mais vim. Acho que já existe uma confiança da parte dela. Eu acho isso muito importante, mais importante do que um salário altíssimo. Eu gosto quando as pessoas confiam em mim. Eu sempre fui muito correta, é de família né. Fui criada no interior, num sistema totalmente diferente do da cidade. Minha mãe sempre ensinou o que era certo (ROSENILDE, trabalhadora doméstica, 35 anos, parda). Ambas concordam que há uma relação de amizade, para além das relações de trabalho, no ambiente doméstico. Essa amizade é possibilitada pelo fato de o serviço doméstico ser executado no âmbito privado do lar, em contato direto com a família empregadora, implicando uma dimensão afetiva maior do que a quer existe em outras relações de trabalho. 128 Houve apenas uma exceção, uma patroa que afirmou que a relação envolve muito respeito e consideração, mas trata-se de trabalho e a amizade não é a palavra certa para designar o sentimento manifestado por ela. Ainda que a amizade não esteja presente em todos os casos, as patroas demonstram confiar nas trabalhadoras domésticas atualmente em serviço. A confiança é, sem dúvida, fundamental nessa relação de trabalho, já que ela se dá no interior do lar, lugar de manifestação da intimidade. Ter uma pessoa “estranha” circulando por todos os cômodos da casa, limpando e organizando móveis e objetos, tende a gerar certa insegurança. Entretanto, é a confiança que permite manter uma relação duradoura. Algumas patroas revelam que, na verdade, confiam desconfiando, pois já foram lesadas em seu patrimônio por trabalhadoras domésticas anteriores. Mesmo quando não puderam provar a culpa da doméstica, o desaparecimento de qualquer objeto foi quase sempre vinculado à figura da trabalhadora doméstica, alguém de “fora-dentro”, uma ladra em potencial, principalmente se a relação de trabalho estiver nos primeiros dias ou se ela estiver cumprindo aviso prévio. Eu tive um problema uma vez, com uma menina que veio do interior e por indicação ela veio trabalhar aqui. Aí eu vi que começou sumir dinheiro e percebi que era ela, mas não podia provar. Mas aí eu só mandei ela embora, paguei ela direitinho e dei umas indiretas pra ela ver que eu tinha percebido o que ela estava fazendo. Ela não tinha carteira assinada. Quase todas não querem ter carteira assinada como empregada doméstica. Mas foi só essa vez, de resto não tive problemas. Eu demorei um pouco pra pegar confiança, depois disso que aconteceu. Mas eu continuo sendo meio ingênua (MARGARET, patroa, 55 anos, comerciante, branca). Já fui roubada. Foram coisas pequenas, mas já aconteceu. Eu vi que tinha sido roubada, mas ela já tinha sido dispensada, aí ela levou no último dia. Eu vi que ela saiu levando uma sacola, mas ela nunca tinha trazido nada pra cá e nesse dia ela não tinha chegado com sacola. Aí eu perguntei se eu podia ver a sacola. Aí eu vi, ela estava levando algumas coisinhas pequenas. Tinha comida, bolacha, eu fiquei até com dó. Mas tinha shampoo, outras coisas, aí eu fiquei com raiva. Mas já levaram calça jeans, outras roupas. Agora eu não aviso mais quando eu vou dispensar. Porque ela estava de aviso, por isso que ela levou, aí eu não tinha prova, aí ficou por isso mesmo. Agora eu dispenso no dia já. Isso já aconteceu várias vezes. Antes, quando eu ia contratar alguém, eu colocava a que ia sair para treinar a que estava chegado. Mas isso não era bom, porque ela falava mal de mim e fazia a cabeça da que estava entrando, aí ela já chegava com raiva de mim (DANIELA, patroa, 47 anos, artista plástica, branca). Já levaram muita coisa de casa, mas eu nunca fui parar na delegacia. Eu acho muito desgastante. Inclusive no ano passado, a [trabalhadora doméstica] estava trabalhando comigo no consultório, e eu arrumei uma senhora casada e com filhos. Aí minha menina vestiu uma calça de manhã e à tarde não achávamos a calça. Aí reviramos a casa e não achamos a calça, mas como que era possível que de manhã ela estava usando a calça e a tarde não. Quando foi na segunda-feira a calça apareceu. Eu dispensei, mas nem toquei no assunto da calça, porque é muito desgastante esse tipo de coisa. Já aconteceram muitos casos em que as meninas pegavam minha roupa, usavam e nem lavavam (JUDITH, patroa, 45 anos, odontóloga, amarela). 129 A trabalhadora é, portanto, alvo de desconfiança, ainda que prove cotidianamente ter um bom caráter. É quase sempre a primeira suspeita. Além de ser uma pessoa “estranha” dentro de um ambiente particular, as representações da trabalhadora doméstica como pobre e negra, vinculadas à história da marginalização do povo negro e da vinculação imaginária que vincula pobreza, violência e criminalidade, reforçam os estereótipos e colocam a doméstica no primeiro lugar da fila de suspeitos. A permanência dessa desconfiança torna a doméstica vulnerável à acusações injustas, à violência e à discriminação. Apesar disso, mesmo quando se prova que a doméstica é a culpada pelo furto, dificilmente a questão é levada à justiça. Às vezes por medo de represália, às vezes por falta de provas concretas, às vezes pelo próprio caráter informal da relação e pele presença de “amizade”. Quando solicitadas a comentar sobre suas diferenças e semelhanças, tanto patroas quanto trabalhadoras domésticas acionaram detalhes que remetem às categorias “mulher”, “mãe” e “dona-de-casa”. Ou seja, recorreram às características sociais que fazem das mulheres “mulheres”, aquelas reconhecidamente femininas em torno das quais já se tentou construir uma identidade universal vinculada a determinados tipos de comportamento e capacidades específicas. As semelhanças apontadas, assim como as diferenças, se concentram em torno da relação com a família, com os filhos, com a organização da casa. Eventualmente, abrangem considerações sobre diferenças de classe social, englobando renda e ocupação. Uma das patroas avaliou desta maneira as diferenças e semelhanças com a doméstica que trabalha na sua residência: De semelhante? Ela é muito organizada, como eu, mas ao mesmo tempo não é neurótica. Acho que a gente é muito parecida na organização da casa. Ela é uma pessoa programada com o tempo, como eu. Ela, como eu, já está no terceiro casamento, tem duas filhas do primeiro e uma do segundo. É uma pessoa que vai atrás das coisas dela. Ela sabe dividir as coisas, nisso ela é muito parecida comigo. Agora, as diferenças. Ela está muito mais vulnerável, desprotegida do que eu. Para essas mulheres, o marido é uma coisa muito importante. Não é só uma questão de afetividade. O casamento dela era tradicional, até o momento que ele tentou agredir ela. Ela criou uma dependência, então ficou mais vulnerável. É uma mulher pobre, estudou pouco. Então a situação dela é sempre meio incerta, até porque ela não é daqui, não tem uma rede social na qual ela possa se apoiar (CLAUDIA, patroa, 35 anos, professora universitária, branca). A trabalhadora doméstica contratada por esta patroa, por sua vez, avalia: Eu acho que a gente é muito parecida. Nas coisas da casa. A gente é um pouco diferente, assim, ela tem mais educação do que eu, mais dinheiro, a gente pensa diferente em relação a algumas coisas de família e tal. Mas nas coisas da casa a gente é parecida (MARINA, trabalhadora doméstica, 44 anos, branca). A partir desses comentários, torna-se muito claro a importância de se analisar as diferenças intragênero. Outro exemplo é ainda mais expressivo. 130 Bom, a gente se parece muito, eu sou humilde, ela também; eu sou trabalhadora, ela também; eu sou esposa, sou mulher, e sou mãe, e ela também; eu sou pobre, ela também. A única diferença é que ela é a empregada e eu sou a patroa (JÚLIA, patroa, 45 anos, administradora, branca). Mesmo onde parece haver mais semelhanças do que diferenças, as diferenças podem ter um peso fundamental na construção das identidades, na consideração do que se é em relação ao outro, e na consideração do outro em relação a si mesmo. A construção cotidiana de identidades a partir dessas semelhanças e diferenças se dá de forma a conservar a tendência de manutenção das posições sociais que estruturam condições desiguais para patroas e trabalhadoras domésticas. Na fala da patroa, citada acima, se todas as características semelhantes levam a imaginar uma identidade uniforme, criada em torno do papel da mulher na sociedade, e se tal identidade teria o potencial de criar um espaço de igualdade e solidariedade entre elas, a consideração de que uma é a patroa e a outra a “empregada” coloca essa possibilidade de igualdade por terra, marcando posições diferentes na relação de trabalho que extrapolam seus limites para afirmar desigualdades intragênero. Quando indagadas sobre o que faz do trabalho doméstico um trabalho feminino, as respostas de trabalhadoras domésticas e patroas revelaram quatro interpretações sobre os determinantes da constituição das relações desiguais entre homens e mulheres, ligadas ao trabalho doméstico, todas elas interligadas. A primeira interpretação presente nas falas defende que o trabalho doméstico é culturalmente vinculado à mulher, por meio da reprodução dos costumes. Desse ponto de vista, é a cultura, por meio dos costumes, que conduz, como uma mão invisível, as mulheres para o trabalho “reprodutivo” e os homens para o trabalho “produtivo”. Dessa forma, se perpetua a divisão sexual do trabalho, segundo uma das patroas entrevistadas: Enfim, eu acho que isso é cultural, vem de muito tempo atrás. A mãe é a dona-decasa, é a doméstica. Eu estou tentando ver na minha família lá atrás. Geralmente, nas fazendas, o homem mais novo que se encarrega de lavar o jardim, pegar fruta no pomar, recolher o lixo, mas não cozinha, lava, passa. Realmente eu acho que é uma tarefa culturalmente feminina. Então ela estende esse trabalho que ela é naturalmente capaz de fazer para outra (BEATRIZ, patroa, 54 anos, forotro). Essa primeira interpretação seria reforçado pela segunda, que confere ao sexismo, ao “machismo”, a força da separação entre atividades femininas e masculinas. De acordo com esse ponto de vista, o machismo forçaria o status da mulher a se acomodar ao doméstico, à domesticidade, ao privado, ao feminino. Isto pode ser exemplificado na opinião dessa patroa e, em seguida, da trabalhadora doméstica: A mulher sempre tomou conta de casa e o homem saiu para trabalhar. Aí nisso todo mundo acomodou, e as mulheres foram mais para o serviço doméstico. Mas é lógico que poderia ser diferente. Por que homem não pode fazer o serviço doméstico? O 131 homem tem que deixar de ser machista e começar fazer o serviço da mulher também. A igualdade entre homens e mulheres piorou muito para o lado das mulheres também, porque os homens hoje se acomodaram em todos os sentidos: não faz o serviço doméstico e também não cumpre com sua obrigação financeira (IVETE, patroa, 34 anos, comerciante, parda). Eu acho que os homens tem muito preconceito contra esse serviço. Eu acho que eles pensam que se fizer alguma coisa em casa deixa de ser homem. Mexe com a masculinidade deles. Ainda mais se alguém de fora vê. Aí eles acham que eles vão deixar de ser homens. Mas eu acho isso um absurdo. Por que a mulher às vezes faz serviço de homem? Por que o homem não pode ajudar dentro de casa? Eu acho que é normal, ele não vai deixar de ser homem não (MARINA, trabalhadora doméstica, 44 anos, parda). A terceira forma de interpretação consideraria que a raiz da atribuição do trabalho doméstico às mulheres estaria na socialização, na forma como os pais ensinam os filhos a executar tais ou quais tarefas na infância, de acordo com o sexo. Como afirma essa trabalhadora doméstica: Eu acho que isso aí é uma coisa de berço, sei lá. Os filhos em casa já crescem com aquilo. Se você tem uma filha mulher, o homem já não faz nada. Tem mãe que coloca o filho pra fazer. Eu lembro que meu irmão mais velho arrumava a casa, lavava vasilha, ajudava. Mas na maioria das vezes você vê um filho homem dentro de casa que não faz nada, não pode lavar uma vasilha que todo mundo já fala “isso não é serviço de homem, é serviço de mulher”. Desde que eu me entendo por gente, o serviço de casa é da mulher e o serviço pesado é do homem. Aí desde pequeno é só a mulher que faz, aí a gente acha que o homem não dá conta, sei lá. Se fosse diferente ia ser melhor (FÁTIMA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda). A quarta interpretação leva as três primeiras ao extremo ao considerar que o serviço doméstico é naturalmente um serviço de mulher, e que é inconcebível que um homem o execute com a mesma habilidade. Essa forma de ver a divisão sexual do trabalho, presente na fala dessa trabalhadora doméstica e dessa patroa, sustenta um argumento biológico, naturalizante, o qual o feminismo vem combatendo há décadas: O trabalho doméstico é feito pelas mulheres porque o homem não tem muita vocação pra essas coisas, pra casa, pra cuidar de detalhes. Mulher já nasce pra ser dona-de-casa, esposa, mãe. Já o homem não, é o provedor, sai pra rua, então esse papel não combina com ele, não é natural. O homem pode até ser um bom profissional na cozinha, mas não é muito a dele. Essa coisa de cuidar de várias tarefas ao mesmo tempo, limpar a casa, fazer comida, cuidar de criança, é mais da mulher mesmo. Então, é uma coisa natural da mulher (MARILDA, trabalhadora doméstica, 44 anos, branca). Eu acho que serviço de doméstica é coisa de mulher mesmo. Eu acho isso. Não, eu tenho certeza. Não tem como, é coisa de mulher. Não dá pra imaginar um homem fazendo isso bem. Por mais que exista homem esforçado, acho que ele nunca vai dar conta de fazer igual a mulher. A gente que é mulher, faz duas ou três quatro coisas ao mesmo tempo: põe a panela no fogo, vai ali tirar roupa do arame, limpa alguma coisa ali, e o homem não consegue de jeito nenhum. Por isso que eu falo, que esse serviço é da mulher mesmo. O homem pode até ajudar, mas não tem jogo de cintura. É um trabalho feminino mesmo (ROSENILDE, trabalhadora doméstica, 35 anos, parda). 132 É importante notar que, se considerarmos as opiniões de trabalhadoras e patroas sobre esse assunto, veremos que, quanto maior o capital econômico e cultural, maior a capacidade de perceber as relações de gênero como contingentes. Inversamente, quanto menor o capital econômico e cultural, mais naturalizadas essas relações parecem. Isto sugere que as diferenças de classe têm um impacto na percepção da realidade e no conhecimento acumulado das pessoas, direcionando seus posicionamentos. Se nos ativéssemos apenas à essas falas e considerássemos que ela dá conta da realidade como um todo, poderíamos supor que o trabalho doméstico seria a mais expressiva marca do lugar da mulher na divisão sexual do trabalho e na sociedade como um todo, e que essa divisão as colocaria em uma mesma posição à mesma distância dos homens. Todavia, as diferenças de classe e raciais se intersectam com as diferenças de gênero. Resulta daí uma complexidade de posições e papéis sociais que tem impacto sobre a identidade e a subjetividade dos sujeitos, criando diferenças internas ao próprio gênero. Dessa forma, classe e raça determinam diferenças intragênero. Tais diferenças não são estáticas, muito menos universais, mas dependem de um contexto histórico-social. O serviço doméstico remunerado é, ao mesmo tempo, uma ocupação e uma relação de trabalho que comporta no seu interior diferenças de classe, raça e gênero entre as mulheres que nele se envolvem, como trabalhadoras domésticas e patroas. Os diversos percursos da socialização pelos quais ambas atoras passam ao longo de suas vidas, que se insere em um contexto histórico e social específico, influenciam as identidades que são construídas mutuamente no interior da relação entre elas, dando origem a sujeitos posicionados diferencialmente naquilo que se pode chamar de estruturas sociais. Os processos complexos pelos quais tais identidades se constroem por meio e através das diferenças, passam pelas características de classe e de raça de cada uma delas. Para compreender essa relação, portanto, uma perspectiva interseccional é imprescindível. Entre as patroas, é unânime o reconhecimento de que sua realização profissional e, por consequência, parte da realização pessoal, se deve ao trabalho diário da trabalhadora doméstica na realização das tarefas da casa e do cuidado com os membros da família, principalmente dos filhos. A dependência que as crianças manifestam seriam um empecilho fundamental para a vida profissional de muitas mulheres se não fosse o trabalho doméstico. Esse trabalho me ajuda a me realizar. Sim, é fundamental. Pensando mais na minha vida profissional. Se eu não tivesse ela, eu teria que ficar com a minha filha depois do almoço, não teria como conciliar com o emprego, enfim... Então ela é fundamental para a minha carreira (CLAUDIA, patroa, 35 anos, professora universitária, branca). 133 Me sinto uma pessoa realizada. O trabalho da doméstica é fundamental para a gente se realizar como mulher. Para mim é muito importante. Porque eu sou muito ansiosa, gosto de ver as coisas arrumadas, aí eu tento fazer tudo e não dou conta (DANIELA, patroa, 47 anos, artista plástica, branca). Atualmente seria impossível eu ficar sem uma doméstica. Trabalho oito horas por dia, eu fico mais tranqüila em saber que estou lá trabalhando e tem uma pessoa aqui já adiantando o almoço, fazendo tudo da casa. Acho que dificilmente eu não teria uma auxiliar doméstica hoje em dia. Pelo menos enquanto o meu filho mais novo não crescer mais um pouco. Talvez quando ele for mais velho eu possa adotar uma marmita, chamar uma faxineira, comer fora, enfim...mas eu acho que ainda não. Atualmente me tranqüiliza e me ajuda a desempenhar minhas atividades fora da casa. Eu sei que as atividades da casa serão feitas por outra pessoa (BEATRIZ, patroa, 54 anos, fotógrafa, branca). Porque se eu não tivesse uma funcionária eu ia estressar demais. Ter uma jornada integral, chegar em casa e fazer tudo o que tem pra fazer; comida, arrumar... seria muito estressante e cansativo. Eu conseguiria fazer alguns meses, mas depois eu acho que eu não ia dar conta (JUDITH, patroa, 45 anos, odontóloga, amarela)). Isto mais uma vez corrobora o argumento de que a inserção das mulheres no mercado de trabalho se deu por meio do usufruto do trabalho desgastante e degradante da trabalhadora doméstica. A contribuição do feminismo negro a esse argumento seria a de chamar atenção para o fato de que aquelas mulheres que conquistaram postos de trabalho valorizados socialmente e bem remunerados não representavam adequadamente todas as mulheres, mas apenas a parcela branca e abastada. As suas conquistas se consolidaram e adquiriram visibilidade porque as funções das quais foram liberadas foram assumidas por mulheres predominantemente pobres e negras, que mal puderam compreender e reagir instantaneamente a esse processo, dadas as condições desiguais nas quais ele ocorreu. A constatação dessa diferença no interior do feminino questionou não só o termo “mulher”, no singular, mas também o termo “mulheres”, no plural, enquanto categoria que se queria capaz de abarcar a diversidade e ao mesmo tempo a especifidade de suas experiências. A interseccionalidade, enquanto categoria que permite captar a articulação entre diversos eixos de identidade e diferença, tornou-se a ferramenta mais adequada para compreender os processos pelos quais determinados sujeitos são atingidos por diferentes tipos de opressão e desigualdades, e também os privilégios alcançados por aqueles que tiraram proveito de tais assimetrias sociais. As distinções de classe, da forma como concebe Bourdieu (2008), estabelecem diferenças muito acentuadas entre trabalhadoras domésticas e patroas. Tais diferenças são, pelo menos em parte, visíveis à elas. Isto fica claro quando elas respondem à indagação sobre a qual classe social pertencem e à qual acham que a outra (dependendo de quem responde, se trabalhadora doméstica ou patroa) pertence. Mesmo sem se basear em nenhum parâmetro teórico, as entrevistadas formularam uma noção de classe que espontaneamente considerou a 134 ocupação, a escolaridade, a renda e as condições materiais de moradia, algo bem próximo dos elementos utilizados por Bourdieu (2008) para definir o que são classes sociais. Entre as patroas obtivemos as seguintes respostas, que servem de exemplo: Eu me considero de classe média. Tenho minha casa, meu carro, então eu me considero minha classe média. A Rita eu considero de classe pobre, porque ela não tem uma casa pra morar, não tem nada, então é classe pobre (IVETE, patroa, 34 anos, comerciante, parda). Acredito que classe média...classe média, eu acho. Acho que assim, pelo salário do meu marido, pelo meu salário, cada um tem um carro, temos um apartamento, pelos bens materiais que a gente tem. As relações de amizade, sociais, o trabalho. Acho que é a classe média. Porque eu também me relaciono com pessoas da classe alta, então eu sei também como é (BEATRIZ, patroa, 54 anos, fotógrafo). A rápida resposta fornecida à pergunta mostrou que trabalhadoras domésticas e patroas possuem um senso bastante claro das hierarquias socialmente construídas, ainda que suas noções de posicionamento de classe possam divergir do que os famosos institutos de pesquisa consideram como definições corretas. Todas as patroas se classificaram como pertencentes à classe média, apontando trabalhadoras domésticas como pertencendo à classe baixa ou à faixa que se situa entre esta e a classe média. Já as trabalhadoras domésticas se dividiram quanto à sua pertença de classe. Algumas afirmaram pertencer à classe baixa, por não possuir uma casa própria, um emprego reconhecido, um salário alto, uma condição econômica estável. Outras se consideraram de classe média, distinguindo-se das patroas por um lado, e, por outro, de pessoas que se encontram relativamente em condições materiais inferiores às delas. Foi unânime a opinião de que a patroa pertence à classe mais alta, pelo seu emprego, pelo seu salário, pela estabilidade financeira e por suas posses materiais. Dois exemplos mostram a complexidade da identidade na dimensão da classe. Eu me acho naquela classe...acho que na média. Porque classe alta seria o povo daqui [a família empregadora]. Eu não me acho de uma classe tão baixa pelo fato de que meu esposo trabalha, e tudo. Só de não faltar nada em casa, de ter o alimento, a mistura, de ter condição de pagar suas contas em dia. Acho que seria uma classe boa, não tão baixa assim, né. Nem tão baixa nem tão alta (FÁTIMA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda). Eu me considero de classe baixa. Não tenho estudo, um trabalho melhor, dinheiro...Não tenho casa própria ainda. Ela [patroa] eu considero de classe alta. Porque ela tem condições boas, uma vida boa, uma casa boa (ROSENILDE, trabalhadora doméstica, 35 anos, parda). Dessa forma, trabalhadoras domésticas e patroas se reconhecem em posições diferentes de um mesmo contexto relacional no qual as primeiras sofrem algumas conseqüências negativas das quais as segundas se distanciam, ainda que boa parte dessas conseqüências se dêem em função da pertença ao gênero feminino. Por exemplo, ambas partilham a carga da responsabilidade pelo trabalho doméstico devido ao fato de serem do 135 sexo feminino, mas apenas a trabalhadora doméstica executa esse trabalho concretamente, na forma de serviço doméstico, ao passo que a patroa, por possuir condições materiais e simbólicas para delegá-lo a outra mulher, se liberta pelo menos em parte dessa carga. A distância das necessidades materiais, que marca a posição da patroa, se traduz na ausência de discriminação em função da classe a que pertence. Já entre as trabalhadoras domésticas, há a queixa a respeito do preconceito relacionado às suas limitações materiais vinculadas à condição de doméstica, que no Brasil e em todo o mundo ocidental, constitui um signo de pobreza, como aparece na fala desta patroa: Acho que é o serviço mais desvalorizado que existe, e é o mais desvalorizado porque é um “serviço de mulher”. Na escala dos serviços de mulheres, esse está lá no fundo do poço, é desempenhado pelas mulheres mais pobres. Pior do que ser gari é ser empregado doméstico. Pode apostar no que eu to te falando, pode perguntar por aí. Mesmo trabalhando na limpeza, um serviço meio ligado ao serviço doméstico, o gari é funcionário da prefeitura. Não é a limpeza em si que é ruim, mas o lugar que é feito e por ser um trabalho de mulher (IVETE, patroa, 34 anos, comerciante, parda). Quando indagadas sobre o que achavam do racismo, ou se a cor fazia diferença na vida das pessoas, tanto patroas quanto trabalhadoras domésticas afirmaram a existência de preconceito racial no Brasil como algo arraigado nas práticas e instituições raciais. Entretanto, todas elas negaram compartilhar de qualquer juízo preconceituoso e também negaram ter sofrido preconceito racial, com exceção de uma trabalhadora doméstica que revelou ter vivenciado uma experiência de discriminação racial no trabalho, mas em outro ambiente que não o doméstico. Confirmando os achados da pesquisa de Venturi & Bokani (2004), já mencionados anteriormente, a sociedade brasileira se reconhece como uma sociedade racista, mas não identifica claramente nem os agentes nem os mecanismos do racismo. Todos afirmam haver preconceito racial, mas ninguém se assume racista. E é de se esperar que dificilmente o fariam diante de um pesquisador negro. Todavia, o racismo no Brasil parece operar segundo mecanismos invisíveis, como se fosse uma força que paira sobre os indivíduos sem que eles percebem ou controlem. Na minha vida nunca fez diferença, mas as pessoas discriminam muito pela cor. Não só a empregada doméstica, mas as pessoas em todos os lugares (IVETE, patroa, 34 anos, comerciante, parda). Só porque a pessoa é preta já discrimina. Cor da pele não tem nada a ver, todo mundo é igual. Eu sempre ensino minhas crianças. Tem muita gente que não contrata a pessoa pra trabalhar de doméstica porque é negra. Tem muita gente que não quer. Principalmente os mais ricos. Parece que eles têm nojo (MARINA, trabalhadora doméstica, 28 anos, parda). 136 Apesar do reconhecimento da existência do racismo, nem patroas nem trabalhadoras domésticas admitiram ter sido vítimas, mas várias delas já presenciaram situações e discriminação ou conhecem alguém que já sofreu as conseqüências dessa opressão. Acho que a cor das pessoas ainda faz diferença. Muitas pessoas recriminam, por exemplo, empregada doméstica negra. Ficam se perguntando “será que vai dar certo?”. Aí a pessoa tem que mostrar serviço, mostrar que é boa para trabalhar, senão não consegue ficar. Eu nunca tive nenhum problema relacionado a isso, graças a Deus. Diretamente comigo não, mas com outras pessoas que eu conheço já. Às vezes você vai arrumar emprego, e as pessoa te discriminam. Às vezes sabe que você é boa, que você é competente, mas pela cor da sua pele inventam uma desculpa qualquer e te manda pastar. Já aconteceu isso com pessoas que eu indiquei. Quando indico pessoa branca, aí aceitação já é bem melhor. Eu nunca conheci nenhum caso de preconceito aberto. Mas inventam umas desculpas que você vê que é só preconceito. Mas eu pessoalmente nunca tive problema com isso (ROSA, trabalhadora doméstica, 31 anos, parda). Os mesmo mecanismos que definem quem é negro e qual é o seu lugar na sociedade, também definem quem é branco e os seus privilégios face aos seus “outros”. Isto é reconhecido pela patroa que, por ser professora universitária e militante feminista, desenvolveu a consciência necessária para perceber os liames da desigualdade. Minha vida em termos escolares foi tediosa. E isso se liga ao fato de ser branca. Por exemplo, eu não tive que ir atrás de uma bolsa de iniciação científica, ela veio atrás de mim, porque eu só tirava dez. Mas eu não tirava dez só porque eu sou branca e letrada, mas as coisas se combinam. Isso pra mim é muito evidente porque eu vejo minhas alunas e alunos hoje, e é muito marcado. Como professora eu vivencio isso. Eu tive tantos alunos negros brilhantes, que não são reconhecidos como brilhantes aqui na universidade. São letrados mas tem uma barreira. É muito triste...agora eu estou lançando outra política, só oriento mulheres negras...Porque se você não fizer assim, você não consegue achar essas pessoas, porque elas acham que elas nem merecem, por causa dessas sutilezas (CLAUDIA, patroa, 35 anos, professora universitária, branca). Da mesma maneira que classe e raça se combinam com gênero para delimitar posições-de-sujeito ligadas à trabalhadora doméstica negra e pobre, elas também se intersectam para dar sentido à posição dominante da mulher branca de classe média em face da sua alteridade. Nessa fala ficam marcadas distinções significativas que revelam muito dos processos interativos pelos quais as identidades se constroem de maneira desigual. Essa mesma patroa afirma que teve apenas uma doméstica negra, e ela demonstrou um comportamento subalterno mais acentuado do que o demonstrado pelas demais trabalhadoras, talvez porque não se julgasse merecedora, por exemplo, de sentar-se à mesa com a patroa para uma refeição, preferindo esperar ela terminar de se alimentar para, só então, saciar sua fome sozinha na cozinha. Essas sutilezas revelam que o preconceito racial pode não estar diretamente presente nas falas e nas experiências das entrevistadas, mas trabalhadoras domésticas e patroas, por suas características específicas de raça e classe, experimentam formas diferentes de vivenciar o gênero e as primeiras enfrentam conseqüências da 137 desigualdade e discriminação institucionais que não são enfrentadas por patroas predominantemente brancas e de classe média. Isto fica ainda mais evidente na afirmação desta patroa: Nunca sofri discriminação pela minha cor. Eles até respeitam muito os japoneses porque acha que somos inteligentes (JUDITH, patroa, 45 anos, odontóloga, amarela). Isso demonstra que mulheres negras e de classes baixas sofrem mais as conseqüências degradantes do sexismo e da divisão sexual do trabalho que as mulheres brancas pertencentes a classes sociais médias e altas. Quase sempre, essas estão nas posições de controle, enquanto aquelas estão sendo subjugadas e desvalorizadas cotidianamente. Eis as características da desigualdade interseccional. 3.7 Desigualdade e interseccionalidade De acordo com Duffy (2005), as feministas recentemente têm se preocupado muito com a concentração de mulheres, principalmente mulheres de cor, nos trabalhos mal-pagos, sobretudo no “trabalho reprodutivo”, que inclui como ocupação central o trabalho doméstico. Caminhando nessa direção, cria-se não apenas uma classe de trabalhadoras domésticas malpagas, mas uma minoria étnica e racial. Duffy (2005) comenta pesquisas que argumentam de maneira radical que as mulheres brancas de classe média e média-alta têm obtido êxito profissional à custa da transferência do trabalho doméstico, que lhes tomava tempo sem lhes remunerar, para outras mulheres, geralmente pobres, migrantes, e negras. Assim, as relações de serviço doméstico acentuam a desigualdade de raça e de classe entre mulheres à medida que privilegiam as mulheres de uma classe que são “liberadas” relativamente de parte da pressão do sexismo por poder usufruir do trabalho de outras mulheres. Nessa visão, parte do peso e da invisibilidade da exploração vivida por mulheres de cor em trabalhos mal-pagos está ligada às conseqüências do fato de que os primeiros movimentos feministas não atentaram para as diferenças e opressões entre as mulheres. É sob essa constatação que emerge a consciência da importância de abordar, a partir da perspectiva da interseccionalidade, as articulações de desigualdades raciais e de classe como parte do projeto feminista, que tem feito da questão da racialização do trabalho doméstico mal-pago uma preocupação de pesquisa. 138 O mercado de trabalho brasileiro é estratificado, segmentado em vários setores que produzem trabalhadores largamente desiguais nos níveis de salário e acesso às oportunidades de desenvolvimento. Neste contexto, sistemas interconectados de opressão racial e de gênero agem concentrando as mulheres e pessoas de cor em ocupações mal-pagas e de baixo status, consideradas como “trabalho sujo” (DUFFY, 2007). A dinâmica da segregação sócioocupacional por raça e por gênero se aplica especialmente sobre a divisão do trabalho doméstico. Pesquisadoras negras da teoria feminista e da prática política – com destaque para hooks (1981), Davis (1981) e Collins (2000) – têm enfatizado o modo como os impactos da raça, classe e outros aspectos da desigualdade têm sido obscurecidos quando se considera o gênero como um fenômeno isolado, universalizando as experiências de todas as mulheres no processo. O entendimento feminista do trabalho reprodutivo ocupa o centro da crítica. Tais autoras argumentam que as experiências de grupos marginalizados de mulheres não podem apenas ser inseridas em modelos teóricos já existentes, mas impõem desafios teóricos novos para compreendê-las. Pois as mulheres, e as mulheres negras em particular, constituem um grupo historicamente dominado, oprimido e que ainda hoje sobrevive em condições sócioeconômicas desfavoráveis. E o feminismo negro nasce justamente no estudo das diversas vozes que indagaram, questionaram e expuseram as condições da mulher negra, não apenas na intenção de analisá-las, mas de contribuir para o seu empoderamento face a precariedade de suas condições educacionais, ocupacionais e familiares, em parte derivadas da forma como a escravidão moldou o gênero da mulher negra (COLLINS, 2000) . O conceito de análise interseccional, nesse sentido, emerge como alternativa adequada a tal objeto. Uma abordagem interseccional trata raça, classe, gênero e outras formas de opressão como interconectadas, inter-determinadas em um processo histórico. O movimento em direção à interseccionalidade tem se tornado central para o projeto de compreensão das desigualdades. A divisão racial do trabalho reprodutivo é a chave para distinguir a exploração da mulher de cor, sendo, então, essencial para desenvolver um modelo integrado que trata raça e gênero como interligados e não como sobrepostos. Uma área na qual tem surgido pesquisas focando a complexa interação entre raça, gênero e trabalho reprodutivo é na pesquisa sobre o trabalho doméstico. Segundo Rollins (1985), referindo-se ao caso estado-unidense, o serviço doméstico remunerado oferece uma oportunidade extraordinária para o entendimento de uma situação na qual as três maiores estruturas de poder dos Estados Unidos estão presentes – a estrutura de classes capitalista, a hierarquia sexual patriarcal e a divisão racial do trabalho – interagindo entre si. O entendimento da segregação ocupacional e da desvalorização do 139 trabalho reprodutivo no mundo globalizado tem exigido modelos teóricos que construam ligações entre explicações estruturais e culturais e integrem gênero a outros fatores importantes para a cidadania. Dada a distribuição do trabalho doméstico no Brasil, segundo as contribuições apresentadas, verifica-se nessa atividade a intersecção de classe, raça e gênero. O trabalho doméstico em geral, trabalho socialmente atribuído às mulheres, é repleto de uma carga simbólica que o vincula socialmente com as funções sociais consideradas femininas. Isto poderia levar, no caso do trabalho doméstico remunerado, a uma base comum na qual patroa e trabalhadora doméstica pudessem fundar uma identidade comum. O “doméstico”, lugar “feminino por excelência”, em oposição aos espaços públicos vinculados com a masculinidade no imaginário social, poderia ser o lócus de encontro entre duas mulheres com muitas coisas em comum. Entretanto, não é isto que se dá na realidade. A categoria mulher, como dito anteriormente, não é capaz, por si só, de fomentar uma identidade comum entre as mulheres, justamente porque elas estão inseridas em diversos “campos” sociais marcados por clivagens de raça e classe. O doméstico, portanto, propicia um encontro entre mulheres, mas mulheres socialmente diferentes e, mais que isso, desiguais (KOFES, 2001). Para Carneiro (2002), somente quando todas as mulheres brancas e negras reconhecerem a importância de se discutir o racismo presente no Brasil será possível uma negociação e a devida consideração à vinculação entre gênero e raça, visando uma ordem mais igualitária. O problema do racismo, na sociedade brasileira, é que as pessoas atuam de forma racista inconscientemente e de modo escamoteador, sem mesmo se dar conta disso. O racismo, assim como o sexismo, se transforma em uma parte da estrutura social, dispensando elementos subjetivos como o preconceito para sua perpetuação (GONZALEZ, 1979; AZEREDO, 1994). A perspectiva da interseccionalidade, portanto, exige um repensar das categorias que até agora têm sido tomadas como fundamentais. A categoria “mulher”, como mostra Piscitelli (2002), deve atender à historicidade e servir para pensar em “mulheres” em contextos específicos. A categoria “mulher” deve ser recriada e reutilizada em um sentido político de forma a permitir o reconhecimento das diferenças entre mulheres, bem como das semelhanças, que permitam tanto a crítica e o protesto quanto a coalizão. A perspectiva interseccional deve favorecer a transformação dos discursos, práticas e relações sociais nas quais a categoria “mulher” é construída de maneira subordinada, reconstruindo-a mediante diferentes feminismos (PISCITELLI, 2002). 140 CONCLUSÕES Esta pesquisa de dissertação teve o objetivo de reconstruir as identidades historicamente criadas entre trabalhadoras domésticas e patroas no Brasil, a partir de um estudo empírico realizado na cidade de Goiânia. A perspectiva utilizada foi a da interseccionalidade, numa tentativa de articulação dos estudos sobre identidade a partir dos pontos de vista do interacionismo simbólico, dos estudos culturais e do feminismo negro. Tal objetivo se pautou pela hipótese de que o serviço doméstico se baseia em relações que envolvem uma conexão complexa entre diferenças e desigualdades de classe, raça e gênero, que, de acordo com o contexto, forjam identidades mais ou menos estáveis. A partir dessas identidades, patroas e trabalhadoras domésticas se posicionam na relação e interagem levando em consideração as diferenças existentes entre elas. Foi fundamental para esse trabalho investigar não apenas a construção da identidade da trabalhadora doméstica, do elemento subalterno, mas também a da patroa, elemento dominador, o “Eu” definidor da alteridade, a raça dominante definidora da raça dominada, e a classe superior em relação à classe menos privilegiada. A identidade, assim, expressa seu aspecto relacional e não-essencialista, permitindo entrever também possibilidade de mudanças, ainda que entre as nuvens das desigualdades. Trabalhadoras domésticas e patroas constroem suas identidades relacionalmente. O trabalho doméstico no Brasil teve início nos primórdios do período escravocrata. A figura da mucama, criada que era responsável por servir os senhores e por fiscalizar o trabalho dos demais escravos domésticos, carregou estigmas e representações que se reproduziram em identidades subalternas, evidenciadas na música, na literatura, na história e no senso comum. O mito da democracia racial e o ideal de branqueamento não superaram tais estereótipos, mas, ao contrário, contribuíram para reforçá-lo, acentuando o mecanismo que, ao mesmo tempo em que produz, camufla a existência de preconceito e a ocorrência da discriminação racial. A imagem da trabalhadora doméstica brasileira é fortemente marcada pela miscigenação. Alvo dos abusos e transgressões sexuais de senhores sádicos desde o início da colonização, a mulher negra escravizada foi tratada como um objeto sexual, uma máquina 141 reprodutora, povoando a colônia de filhos mestiços, frutos da violência perpetrada pelos homens brancos sob o ideal de “embranquecer a sociedade”, “purificar a raça”, “expurgar tudo o que fosse avesso à civilização européia”. Essa história de violência sexual contra a mulher negra é inseparável do contínuo processo de pauperização e marginalização do povo negro em geral, cujas conseqüências são reproduzidas ainda hoje, em maior ou menor escala, por meio das relações interpessoais e das instituições sociais. O trabalho doméstico da escrava negra traz a marca da desvalorização do trabalho feminino e de todos os aspectos ligados à negritude e à pobreza. A figura da mulher negra e pobre foi relegada para trás das cortinas da história, e sua contribuição econômica, social e cultural para a construção desse país continua sendo negligenciada, como se não existisse. O trabalho doméstico no Brasil se estrutura, desde seu início, sob a intersecção enquanto um trabalho escravo, um trabalho “de negro”, um trabalho “feminino”. Nessas considerações finais, não se pode deixar de ressaltar o papel de cada elemento na relação interseccional entre classe, raça e gênero nas interações entre trabalhadoras domésticas e patroas. Se considerarmos que o regime de classe na sociedade brasileira tem uma origem mais recente, podemos afirmar que a raça e o gênero fazem parte da representação da trabalhadora doméstica desde os primórdios da colonização portuguesa no Brasil. Conseqüentemente, são eles os mais ressaltados pela bibliografia a respeito da escravidão. Mas, qual é a influência desses aspectos nas relações entre trabalhadoras domésticas e patroas atualmente, considerando todas as transformações, incluindo a mudança no modo de produção e a Abolição do regime escravocrata? Um aspecto curioso a ser destacado é que todas as patroas e trabalhadoras domésticas afirmaram que o Brasil ainda hoje é um país racista, preconceituoso com as pessoas negras, mas apenas uma delas se reconheceu como vítima da discriminação racial. Reconhecem que a sociedade é perpassada pelo racismo, mas não se confessam racistas. Relatam casos de terceiros que teriam sofrido ou infligido preconceito contra alguém, mas dificilmente se identificam como alvos. Assim, atribuem o preconceito e a discriminação racial à sociedade como um todo, à coletividade, lançando-a para um campo vago e distante, ainda que perceptível. Considerações raciais muito raramente surgiram espontaneamente nas falas das patroas, a não ser quando foram estimuladas a manifestarem opinião sobre isto. Parece mesmo, como ressaltou Hasenbalg (1996), haver uma interdição quanto ao assunto “raça” entre nós. Apenas quando as pessoas são chamadas a conversar sobre isto, em um ambiente em que elas percebem que podem se expressar, é que dizem algo a respeito. Ainda assim, com todo o cuidado que uma postura politicamente correta sugere. A raça está presente nas 142 relações entre trabalhadoras domésticas e patroas, já que vimos que é uma relação de brancas com não-brancas, mas a raça não entra direta e claramente na discursividade. A raça entra secundariamente na expressão discursiva, o que não quer dizer que não seja importante, e mesmo crucial em alguns casos, dependendo do contexto. Entretanto, a diferença e a desigualdade de classe se mostram fortes. O trabalho doméstico é socialmente depreciado e desvalorizado, mas o trabalho doméstico feito pela patroa e aquele feito pelas trabalhadoras domésticas são diferentemente depreciados, já que uma sabe como fazer para executar, e outra sabe fazer para “mandar” (KOFES, 2001). Além disso, o trabalho doméstico, para a trabalhadora doméstica, consiste em um “modo de vida” (MELO, 1998), já que o faz tanto profissionalmente quanto para a manutenção de sua própria casa. O caráter repetitivo e enfadonho dessa atividade se torna uma constante na vida da trabalhadora doméstica. A circularidade desse trabalho, que não permite um “progresso” ou uma promoção vertical, prende a trabalhadora na mesma rotina. A dupla jornada do trabalho doméstico a conduz a uma percepção negativa de si mesma e parece aprisioná-la em uma vida sem desafios, sem oportunidades de mostrar seu próprio valor. O trabalho doméstico que as patroas desempenham eventualmente, no final de semana ou após o expediente da doméstica, não tem o mesmo significado do trabalho doméstico na vida de uma trabalhadora doméstica. A patroa, em geral, tem uma ocupação remunerada fora do lar e sua rede de contatos e oportunidades é muito mais ampla do que a da doméstica. Portanto, as mulheres experienciam o trabalho doméstico de maneiras diferentes em função da classe a que pertençam. Há, certamente, uma interseccionalidade de classe, raça e gênero no trabalho doméstico. Contudo, as condições de classe são mais proeminentes inclusive na fala e na sensibilidade das entrevistadas. A desigualdade racial que elas revelaram haver na sociedade brasileira, se interfere nas relações de outras trabalhadoras domésticas ou patroas, parece não interferir explicitamente nas relações delas. A diferença de gênero entre mulheres não é percebida e, se percebida, não é articulada na linguagem comum das entrevistadas, linguagem na qual fomos buscar o sentido do discurso que elaboram para expressar como vêem sua relação com sua “outra” no interior do domicílio. Tal diferença pôde ser percebida a partir de outros aspectos, como a classe e a raça, que interferem na forma como as entrevistadas demonstram seu “ser mulher”, “ser patroa”, “ser trabalhadora doméstica”. A realização, como profissional e como mulher, demora muito mais para chegar para as trabalhadoras domésticas. Seus planos para o futuro são sempre mais restritos, seus horizontes estão cada vez mais próximos, a limitá-las de alguma forma, impedindo-as que ao menos vislumbre a vida do 143 ponto de vista do qual a patroa desfruta. Ser mulher, para a doméstica, se resume à execução das tarefas domésticas, ao ser mãe e ao ser esposa, enquanto para as patroas, para além desses três aspectos, a execução de um trabalho reconhecido, bem remunerado e situado na esfera pública, abre perspectivas muito mais largas. Muito mais visível para ambas são as distinções de classe, as distâncias sociais que são construídas a partir do desempenho de uma ocupação, da renda do trabalho, do poder aquisitivo, do padrão de consumo, da escolaridade. Quando solicitadas a mencionarem suas diferenças, patroas e trabalhadoras domésticas não tardam em mencionar os anos de estudo, os diplomas, a conta bancária e, nos termos de Bourdieu, o habitus de classe. Os abismos entre as mulheres, denunciados pelos feminismos “dissidentes” nas décadas de 1970 e 1980, ressaltaram aspectos raciais e de classe como distinções as quais não se podia negligenciar. E percebemos, hoje, o quanto isso é válido, na análise das relações entre trabalhadoras domésticas e patroas. Entretanto, a subversão dessa situação é sempre uma possibilidade, a se concretizar por ocasião de uma coalizão política baseada no que Bourdieu chama de um “mal entendido” entre as posições ocupadas pelos indivíduo e o seu lugar simbólico na estrutura hierárquica da sociedade, ou seja, uma confusão na taxonomia da desigualdade social. Tal mal entendido é sempre uma situação aberta, a depender de um contexto social e político. 144 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVAREZ, Sonia E. A “globalização” dos feminismos latino-americanos – tendências dos anos 90 e desafios para o novo milênio. In: Cultura e Políticas nos Movimentos Sociais Latino-Americanos – Novas leituras. Editora UFMG, Belo Horizonte, p. 383 – 426, 2000. AZEREDO, Sandra. Teorizando sobre gênero e relações raciais. Estudos Feministas, Ano 2, segundo semestre, 1994, p.203-216. BAIRROS, Luiza. Nossos feminismos revisitados. 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(origem, profissão da mãe e do pai escola, família, lugares onde morou, coisas que realizou). Como se tornou uma trabalhadora doméstica 2) Gostaria que você me falasse sobre sua trajetória profissional (os empregos que teve, onde trabalhou). 3) Como começou a trabalhar como trabalhadora doméstica? Como chegou ao seu emprego atual? (via agência, indicação de familiares ou conhecidos, acaso). 4) O que é ser uma trabalhadora doméstica? (se gosta do que faz, planos e expectativas). 5) Como as pessoas se referem a você no seu ambiente de trabalho: como empregada, secretária, auxiliar? Como é isso pra você? 6) Na sua opinião, qual a importância do trabalho doméstico para a sociedade? Serviço doméstico – condições e interações 7) Me descreva, com detalhes, como é um dia de trabalho seu. 8) Você mora no emprego? Como é morar (ou não morar) no emprego? 9) E quais são seus direitos e deveres aqui na residência onde você trabalha? E quais são os direitos e deveres da sua patroa? 10) Possui carteira assinada? Como é trabalhar com (ou sem) carteira assinada? 11) Trabalha quantas horas por dia? O que acha disso (intervalos para descanso/refeição) 12) O que acha do seu salário? (recebe presentes, agrados, etc. ?) 13) Como é, em geral, a relação com a sua patroa? (conflitos, acordos, liberdade, confiança, amizade). 14) Como é o seu relacionamento com as outras pessoas da família? (recebe ordens delas?). 15) O que existe de semelhante entre você e sua patroa? E de diferente? Vocês fazem coisas juntas? 16) Como seria a relação ideal entre trabalhadora doméstica e patroa? Identidade de gênero 17) O trabalho doméstico é um trabalho feito quase sempre por mulheres. Na sua opinião, por que é assim? O que o trabalho doméstico tem a ver com o feminino? Por que os homens participam menos? 18) Já se sentiu discriminada alguma vez, no trabalho, por ser mulher? 19) Você se sente realizada como pessoa e como mulher? Do que você precisa pra se sentir realizada? Identidade de classe 20) De que “classe social” você se considera? Por que? E sua patroa, pertence a que “classe”? Por que? 21) Sobre os seus hábitos. Do que você gosta? (comida, música, lazer). 22) Já se sentiu discriminada alguma vez, no trabalho, pela sua classe social? Como foi isso? Identidade racial 23) Você acha que a cor da pele tem importância na vida das pessoas? A sua cor faz alguma diferença na sua vida? 24) Qual é a cor dela? Se ela fosse de cor diferente, a relação seria diferente? 25) Já se sentiu discriminada alguma vez, no trabalho, pela sua cor? Como foi isso? 151 ROTEIRO – PATROA Trajetória de vida e laços primários 1) Gostaria que você me falasse sobre sua vida. (origem, profissão do pai e da mãe, escola, família, lugares onde morou, coisas que realizou). Como se tornou uma patroa 2) Gostaria que você me falasse sobre sua trajetória profissional (os empregos que teve, onde trabalhou). 3) Quando percebeu que era necessário contratar alguém para fazer as tarefas da casa? 4) O que é ser uma patroa? Como é ter uma pessoa para fazer o serviço doméstico? 5) Como você e sua família se referem à ela: como empregada, secretária, auxiliar? Por que? Como é isso pra você? 6) Na sua opinião, qual a importância do trabalho doméstico para a sociedade? Serviço doméstico – condições e interações 7) Me descreva, com detalhes, como é a rotina de organização da sua casa. 8) Ela mora na sua casa? Como é isso? 9) E quais são os direitos e deveres dela na sua residência? E quais são os seus direitos e deveres como patroa? 10) Assina a carteira dela? Por que? 11) Ela trabalha quantas horas por dia? O que acha disso (intervalos para descanso/refeição). 12) Qual é o salário dela? O que acha desse salário? (dá presentes, agrados, alem do salário?) 13) Como é, em geral, a sua relação com ela? (conflitos, acordos, liberdade, confiança, amizade). 14) Como é a relação das outras pessoas da família com ela? Seu marido e filhos participam da organização das tarefas domésticas? 15) O que existe de semelhante entre vocês? E de diferente? Você faz coisas junto com ela? 16) Como seria a relação ideal entre trabalhadora doméstica e patroa? Identidade de gênero 17) O trabalho doméstico é um trabalho feito quase sempre por mulheres. Em sua opinião, por que é assim? O que o trabalho doméstico tem a ver com o feminino? Por que os homens participam menos? 18) Já se sentiu discriminada alguma vez, no trabalho, por ser mulher? Como foi essa experiência? 19) Com o auxílio da trabalhadora doméstica, fica mais fácil você se realizar como pessoa e como mulher? Identidade de classe 20) De que classe social você se considera? Por que? E ela, pertence a que classe? Por que? 21) Sobre os seus hábitos. Do que você gosta? (comida, música, lazer). 22) Já foi discriminada alguma vez, no trabalho, pela sua classe social? Como foi isso? Identidade racial 23) Você acha que a cor da pele tem importância na vida das pessoas? A sua cor faz alguma diferença na sua vida? 24) Qual é a cor dela? Se ela fosse de uma cor diferente, a relação seria diferente? 25) Já se sentiu discriminada alguma vez, no trabalho, pela sua cor? Como foi isso?