O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A CONCRETIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL: UM DESAFIO À SUA GARANTIA E ACESSIBILIDADE. Adailson Lima e Silva1 Maria das Graças M. do Amaral Garcia2 RESUMO O modelo econômico estruturou relações sociais fundadas em diferentes classes sociais. Toda a produção passa a se estruturar sobre a expropriação do trabalho humano e acúmulo de riqueza nunca visto ou experimentado pelo homem. Esta exploração faz surgir o debate sobre o tema do bem-estar, questionando-se o que fazer com uma população pobre e destituída de condições materiais de existência que precisa ter acesso a uma vida digna e ter os seus direitos reconhecidos. Na outra ponta, a negação desses direitos pela estrutura econômica enseja a elaboração de uma legislação protetora na qual figura um Estado mediador, com legitimidade para intervir na sociedade através de um conjunto de medidas sociojurídicas e econômicas que trouxesse equilíbrio nas relações sociais e de poder. Nesse contexto, a estruturação de uma Política Pública responde aos anseios de um mínimo social e possibilita uma distribuição de riquezas através da concessão de benefícios e serviços por um Estado legitimado e garantidor das condições e dos meios de vida considerados como sendo direitos individuais, sociais e políticos. Emerge, assim, uma dinâmica interna estatal cujos pressupostos se fundam em reconhecer a matéria das Políticas Públicas à luz dos direitos fundamentais, abrindo a possibilidade de diálogo no ordenamento jurídico, considerando a interface que estas políticas estabelecem com a Constituição Federal, em especial, da íntima relação entre os princípios que norteiam a aplicação da norma jurídica. Neste sentido, a importância de se apresentar uma reflexão sobre as bases constitucionais que orientam a implantação de Políticas Públicas e a utilização do Mandado de Segurança e da Ação Declaratória Incidental de Inconstitucionalidade para a sua acessibilidade. 1 Professor doutor do Curso de Pós Graduação em Direito Processual pela Fundação de Ensino Superior de Ituiutaba - FEIT/ Universidade Estadual de Minas Gerais - UEMG. Advogado. 2 Especializanda em Direito Processual pela Fundação de Ensino Superior de Ituiutaba - FEIT / Universidade Estadual de Minas Gerais – UEMG. Palavras – chave: Estado. Políticas Públicas. Mandado de Segurança. Ação Declaratória Incidental de Inconstitucionalidade. 1. A MUDANÇA NO PARADIGMA DE CONCEPÇÃO DO ESTADO: DO ESTADO DE DIREITO AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: UMA INTERPRETAÇÃO DO SISTEMA GARANTISTA BRASILEIRO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS. 1.1 A visão de Estado no Liberalismo Econômico e o tratamento às questões sociais. A sociedade ocidental, na forma como se encontra hoje é o resultado de uma construção civilizatória, a qual deu origem ao atual sistema de valores e organização política, jurídica, social e econômica, estabelecendo uma permanente tensão entre o indivíduo e a coletividade, concorrendo para o surgimento de interesses variados como o político, o cultural e o ideológico, os quais põem em risco as estruturas sociais existentes. Para regular este conflito de interesses, específicos em cada conjuntura histórica, procurou-se uma ordem jurídico político que consolidasse a gestão e a regulação da vida em sociedade, emergindo o Estado. Pensar a dinâmica da estruturação do Estado e, em especial, a mudança paradigmática de sua concepção é abrir espaço para um debate mais aberto e flexível sobre esta complexa problemática acerca da sua existência e sua finalidade precípua, ainda mais quando a sua criação foi eminentemente humana. Em sociedades menos complexas, a exemplo dos bandos nômades, a ideia de política e Estado não encontravam amparo. A autoridade se dava por uma pessoa ou grupo de pessoas que exerciam a liderança e eram responsáveis pela tomada de decisões, cujos efeitos repercutiam para todos daquele núcleo social. Era uma forma de manter o grupo coeso e obediente às normas. A noção de Estado e política como sendo a participação dos cidadãos nas discussões sobre os destinos das cidades foi uma contribuição das Sociedades Antigas, em especial, Grécia e Roma que trouxeram a “noção de sociedade organizada e governada por instituições de poder, de mediação das relações dos cidadãos entre si e com o Estado por meio de leis escritas.” (MOURA, p.104). Percebe-se que o Estado já se afigura como um “ente” que traz a função de exercer as atividades políticas, administrativas e mediadoras das cidades já com ideais de liberdade e democracia, mas mesmo assim ainda é um Estado autoritário, visto que a liberdade e a estrutura de classe e poder pertenciam a poucos. Como todo processo social e histórico possui sua dinâmica, no bojo destas sociedades surgiram os pressupostos para a construção de um novo modelo de sociedade – a Sociedade Feudal, cuja base territorial e política se consolidavam nos feudos, os quais criavam suas próprias leis, uma espécie de direitos locais e aplicavam-nas a todos os casos e a todas as pessoas. Apesar de serem independentes em relação aos aspectos das regras de convivência os feudos deviam obediência a uma lei geral emanada de um poder central a que estavam política e juridicamente ligados, no caso, a Monarquia e a Igreja. Neste período, muitos abusos foram cometidos em nome de um Estado Absolutista e Monárquico; verdadeiros atentados à pessoa humana através de práticas sacrificialistas que submetiam as pessoas e seus familiares às mais variadas torturas, expropriação de bens e condenação sem processo. Não menos diferente, a transição do pensamento absolutista para o pensamento liberal também se iniciou no seio do feudalismo. O inconformismo com a utilização de leis divinas para explicar os fenômenos sociais e políticos, a exploração, os impedimentos de ascensão de classe social, o desenvolvimento e a expansão comércio e as diversas guerras levaram a novos questionamentos e críticas ao Estado existente bem como em relação à interferência da Igreja em assuntos que seriam da competência deste. Colocando-se na vanguarda do movimento intelectual que iniciaria o pensamento político moderno, Nicolau Maquiavel explicita e denuncia esta interferência religiosa em assuntos que seriam exclusivos da determinação estatal. Em sua análise explica que a doutrina católica, no afã de exercer um poder paralelo ao do Rei ao mesmo tempo em que desejava torná-lo uma instituição, delimitou o seu poder, cabendo a ela a autoridade do Papa em decidir e julgar sobre questões da moral e religiosa. Para Maquiavel, que estudava sobre a Política, a atuação do Estado deveria ser desvinculada da doutrina política que se apoiasse em explicações teológicas, ou seja, da Igreja e “defendia a ideia de que as liberdades civis eram a chave para a constituição de uma forma republicana de governo”. (MOURA, p.11 8). A presença atuante de movimentos sociais, intelectuais e políticos levou a um novo pensar e fazer humano, como forma de reação ao absolutismo e tudo o que o acompanhava. Exemplos destes movimentos foram o Iluminismo ou Época das Luzes ou Ilustração, o Renascimento e as Revoluções Francesa e Industrial. O Iluminismo afirmava uma confiança no desenvolvimento, propugnou pelo livre pensamento; acentuou as discussões em torno da teoria dos direitos humanos e defendeu a cidadania centrada na liberdade e na defesa burguesa da propriedade. O Renascimento floresce na Europa em reação à ideologia cristã que subordina o homem a todo tipo de dominação, submetendo-o a uma condição de sofrimento, determinismo e estratificação social, sem qualquer possibilidade de mobilidade social. Ele contraria a esta condição de status quo e reivindica o lugar do homem no centro do universo. Agora, o homem é sujeito da sua história com todo o direito de aspirar por outra condição social e política, pela aquisição de conhecimentos e respeito por sua condição humana. Também reagindo ao absolutismo monárquico, a Revolução Francesa significou uma mudança política qualitativa na História com o referencial principiológico de igualdade, liberdade e fraternidade que conferiu a passagem do paradigma de um regime de Estado Absoluto para o surgimento do ideário de um Estado que primasse pela preservação da dignidade humana. A Revolução Industrial, ainda em meados do século XIX, promove uma ruptura com o modelo tradicional de produção arcaica, introduzindo novas tecnologias, inovando na forma de produzir e provocando mudanças no mercado e na concepção de homem. Todos esses movimentos se constituíram em uma ideologia de contestação ao Estado Absolutista levando a um conjunto de reflexões sobre a atividade estatal e a reestruturação do Estado nação como sendo um estado mediador civilizador (Carnoy, 1987 apud Bhering, p.22), pois tendo o homem uma liberdade absoluta queira exercer o poder ilimitadamente e queira obter bens e vantagens indefinidamente. Somente o Estado poderia dirimir este conflito e proteger os homens da condição de lobo do próprio homem, impondo normas de controle social. Para a superação deste Estado absolutista, há a orientação de John Locke, o qual reconhece que é preciso uma sociedade política diversa dos moldes de uma monarquia absoluta. Defende uma autêntica esfera de um poder político que vise o interesse da coletividade, assentando suas bases por um consentimento de vonta- des plurais, defendendo valores fundamentais e consagrados pela sociedade como a liberdade, a vida e a propriedade, base de uma sociedade justa – uma sociedade civil. Nesta linha de pensamento, Jean-Jacques Rousseau, no Contrato Social, constata que é imprescindível um pacto social que reconheça a figura de um Estado que se funde em bases políticas e que o poder exercido por ele seja a representação de uma vontade geral, no seu povo e promova cidadania. Este Estado, “um Estado de Direito, fundado em leis definidas por esta vontade geral, que se denomina lei [...] vê-se imediatamente, que não é mais necessário perguntar a quem compete fazer leis, pois elas são ato da vontade geral [...]” (p. 60). Lançam-se, assim, as bases para o ideário liberal ainda no contexto da sociedade medieval. O pensamento liberal, resultante dos ideais iluministas de igualdade, fraternidade e solidariedade, se estrutura em ideais morais, políticas e econômicas, em cujos princípios está a defesa dos direitos individuais e civis, à propriedade privada, à vida, à liberdade, garantidos por meio de um conjunto de direitos definidos em lei, bem como a livre iniciativa e a livre concorrência econômica. Neste sentido, há a emergência de uma sociedade civil com vistas a uma expansão mercadológica e lucratividade, deixando-se conduzir pelo mercado o qual possui leis próprias e o papel do Estado deve ser apenas, o de fornecer a ordem legal para que o mercado possa se estruturar livremente. Não desaparece o poder do governante no sentido de exercer o imperium, o poder de polícia e a edição de atos de governo. Neste modelo de Estado, para garantir a governabilidade, toda a atividade administrativa, considerados inclusive os três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), deve estar em conformidade com a lei, mesmo que esta promova arbitrariedades. O poder da autoridade está limitado ao que é permitido pela lei. O Estado Liberal se funda, assim, no que se reconhece como Estado de Direito (Rechtsstaat), o qual limita-se à defesa da ordem e segurança públicas, remetendo-se os domínios econômicos e sociais para os mecanismos da liberdade individual e da liberdade de concorrência. Neste contexto, os direitos fundamentais liberais decorriam não tanto de uma declaração revolucionária de direitos mas do respeito de uma esfera de liberdade individual. Compreende-se, por isso, que os dois direitos fundamentais – a liberdade e propriedade (Freiheit und Eigentum) – só pudessem sofrer intervenções autoritárias por parte da administração quando tal fosse permitido por uma lei aprovada pela representação popular (doutrina da lei protectora dos direitos de liberdade e de propriedade e doutrina da reserva de lei). (Canotilho, p. 97) O ponto central do pensamento liberal é o de que a ordem social está fundada em indivíduos livres, não necessitando de um comando estatal como garantia para que estes respeitem a ordem pública, as liberdades, o equilíbrio social e político. Em relação à produção de melhor qualidade de vida, uma vez determinada a autonomia do mercado com todas as suas garantias, cabe à ele atuar na maximização dos benefícios humanos, desde que não implique custos demasiados, pois as pessoas devem ser capazes de se auto proverem e não depender de uma ação estatal que vá suprir a sua existência. Assim, o papel do Estado deve ser mínimo, visando apenas à proteção contra inimigos externos; a proteção de ofensas por outros indivíduos e o provimento de obras públicas. O Estado Liberal é entendido como um poder separado da sociedade e da economia, que tem por fundamento a defesa dos direitos privados, inclusive contra a intervenção do próprio Estado. Sob a proteção deste Estado, todos os indivíduos membros da nação encontram-se liberados para usufruir e dispor privadamente de suas capacidades pessoais e de seus bens, inclusive para negociá-los no mercado (ABREU, p. 35 e 36). Em função do desenvolvimento em curso o feudalismo já não mais respondia aos interesses de uma classe emergente e, se a sociedade Feudal já trazia uma desigualdade social, política, econômica e jurídica, a sociedade que a sucede, a Capitalista, a intensifica. Este é um fenômeno em que se pode afirmar que procedeu a uma transição paradigmática visto que confrontaram um paradigma dominante em crise e um emergente, culminando com uma mudança qualitativa de uma sociedade para outra e de uma concepção de Estado para outro que, segundo Santos (2011), A transição paradigmática é um objetivo de muito longo prazo. Acontece que as lutas sociais, políticas e culturais, para serem credíveis e eficazes, têm de ser travadas a curto prazo, no prazo de cada uma das gerações com capacidade e vontade para as travar. Por esta razão, as lutas paradigmáticas tendem a ser travadas, em cada geração, como se fossem subparadigmáticas, ou seja, como se ainda se admitisse, por hipótese, que o paradigma dominante pudesse dar resposta adequada aos problemas para que eles chamam a atenção. (p.19) Isto significa que todos os movimentos sociais que culminaram em mudanças de certo modo de produção para outro sempre se originaram no próprio bojo da sociedade precedente, pois é nela e, a partir dela, que os valores, estrutura, poder e as normas são questionados. Desta crise paradigmática resulta uma nova concepção de Estado e de sociedade moderna – a capitalista, que se inicia a partir de meados do século XIX e redesenha um cenário de exploração, agora numa sociedade que vem desigualmente divida pela propriedade privada; as riquezas socialmente produzidas são consideradas bens privados dos proprietários dos meios de produção em detrimento de uma classe contratada para produzir estes bens, mas que não tem acesso aos mesmos. Este modelo de sociedade é um modelo totalmente excludente de direitos. Neste sentido, a emergência da sociedade moderna importa no reconhecimento de se aceitar que as novas configurações do Estado são diferentes das concepções anteriores, assim como a própria noção de sociedade, até porque a opção por um modelo de desenvolvimento fundado em bases capitalistas exige a adequação de paradigma diferente. Santos (2011), afirma que, A passagem entre paradigmas – a transição paradigmática – é, assim, semicega e semi-invisível. Só pode ser percorrida por um pensamento construído, ele próprio, com economia de pilares e habituado a transformar silêncios, sussurros e ressaltos significantes em preciosos sinais de orientação. (p.15) Estar-se-á, efetivamente, diante de um novo modelo de produção – o capitalismo, apoiado no pensamento liberal que se pauta no pensamento do Darwinismo Social – sobrevivem sociedades e os indivíduos que melhor se adaptarem aos novos padrões exigidos e a melhoria de suas condições de vida dependerá desta capacidade de adaptação. Para garantí-lo, o Estado prima pela não interferência nas relações de produção e, ainda, pela necessidade de um conjunto de medidas que permitam a subordinação, especialmente pela elaboração de um direito compatível com os ideais do Estado vigente. Para Chakhnazárov, a vontade da classe dominante expressa-se no direito, que é um conjunto das leis e de outras normas jurídicas (regaras de comportamento) que regulamentam todos os aspectos principais da vida social. Mas o direito por si só nada significa sem um aparelho capaz de garantir a observância das suas prescrições, incluindo pela força nos casos em que isso for necessário. Este é desempenhado pelo Estado, o qual é uma organização do poder político que dispõe de órgãos como a polícia, o exército, os tribunais, as prisões. Em todas as formações econômico-sociais baseadas na propriedade privada e na exploração, o Estado é o instrumento de dominação de classe dos exploradores sobre os explorados. (p.79) O Estado é, assim, por sua natureza, um instrumento de dominação que a exerce por meio de uma democracia, ainda que limitada e formal, suficiente para manter os interesses e defender a ordem estabelecida pelas classes dirigentes. Por outro lado, ainda que o sistema não reconheça, a democracia é uma conquista dos povos e não um presente da ordem dominante. Com um modelo extremamente excludente e com um crescente domínio no processo econômico e político, o capitalismo trouxe conseqüências graves no âmbito social, ou seja, criando o que se conhece por questão social - pela miserabilidade em que vivem as pessoas destituídas dos meios de produção e pelo perigo que representa à estabilidade da ordem social, jurídica, política e econômica. Este estado de pobreza é perturbador para o capitalismo e o seu ideário liberal, ensejando medidas assistencialistas que a minimizem, as quais, existem desde tempos anteriores. Assim, A história da proteção social informa que, desde o século XIV, existiam intervenções públicas que iam da assistência aos indigentes até a repressão à vagabundagem, passando pela regulação estatal da organização do trabalho e da mobilidade espacial s os trabalhadores (PEREIRA, p. 51). Porém, este processo intervencionista não muda em nada a realidade social, pois não confere cidadania; apenas reproduz e mantém o status quo vigente, atuando no extremo da pauperização. Por óbvio que, um sistema que gera desigualdades, será suscetível de crises freqüentes que levam, inclusive, a questionar a própria legitimidade do Estado, já que o Estado Liberal tem dificuldades de obter o consentimento e a obediência dos seus cidadãos às condições socioeconômicas e jurídicas estabelecidas. É preciso, ainda, esclarecer que a questão social, no período atual, se apresenta sob um caráter excludente, já que ela não se define pela condição de pobreza, mas pelas formas de flexibilização do trabalho, especialmente no desemprego, porque a pessoa está privada de um mínimo de condições para viver, inclusive pela ruptura dos laços afetivos e das relações de convívio. Cria-se um contingente de pessoas que são consideradas sobrantes, ou seja, pessoas que, apesar de qualificadas, não encontram mais lugar no mercado de trabalho porque não são mais úteis e, por isso, se tornam descartáveis. A exclusão social é, assim, analisada como sendo [...] a impossibilidade de poder partilhar, o que leva à vivência da privação, da recusa, do abandono e da expulsão, inclusive com violência, de um conjunto significativo da população. Por isso, é uma exclusão social e não pessoal. [...] é uma situação de privação coletiva que inclui pobreza, discriminação, subalternidade, a não equidade, a não acessibilidade, a não representação pública como situações multiformes [...]. A grande questão da exclusão reside no fato de que o outro se torna um dessemelhante. (SPOSATI, p. 67 e 69). Isto significa que há uma perda significativa de um padrão de sociedade civilizatória fundada na ética e na promoção da pessoa que vislumbra a condição de dignidade como sendo essencial para todos e para a consolidação de uma sociedade mais justa. Significa, também, que há uma necessidade de se redefinir o paradigma do Estado Liberal. Então, que Estado é este que surge? Na acepção moderna, “o Estado é aquele que surge como exigência histórica de se constituir um poder central, supremo e soberano para gerir os conflitos sociais e econômicos”. (SILVA, p.57). Um Estado que é responsável pela gestão das questões sociais e, para tanto, deve criar estratégias para reduzir os impactos que as profundas desigualdades causam aos Estados nacionais. O Estado que surge deve enfrentar os desafios decorrentes do modelo de desenvolvimento, tentando equacionar as diferenças de interesses de classe, ao mesmo tempo que permita a continuidade de um desenvolvimento excludente. Tarefa difícil, mas que tem sido levada a efeito como projeto político de um Estado que tem por finalidade e função o desenvolvimento capitalista de uma determinada nação, ao mesmo tempo em que intervém nas desigualdades sociais para evitar que estas se traduzam em lutas políticas desestabilizadoras da ordem social e política. Para cumprir esta finalidade, os atores com acesso ao poder político constituem instituições públicas que regulam a aplicação dos recursos econômicos da nação (renda, propriedade, salário etc) e os interesses das classes e grupos sociais, redistribuindo os primeiros sob a forma de custos e benefícios e reordenando os últimos sob a forma de direitos e deveres da cidadania. (ABREU, p.35). Em síntese, neste processo de reestruturação, o que se percebe é que o Estado tem buscado novas estratégias de controle através de políticas de benefícios e incentivos que neutralizam qualquer movimento de insatisfação por parte de uma classe social desfavorecida e, ainda, levam a um consentimento da gestão estatal por parte da sociedade sem ferir, contudo, os interesses do capital. 1.2 O Estado Constitucional Democrático de Direito e a adoção de regras e princípios no sistema jurídico A construção de um Estado Democrático de Direito faz parte das transformações históricas que compõem o tecido da sociedade, além de ser um novo referencial para a sua reestruturação, para a redefinição do ordenamento jurídico e, em especial, para o reconhecimento dos direitos dos cidadãos. Não se trata somente de elaborar uma constituição, pois o Estado de Direito a possui. O que se objetiva é a reafirmação das conquistas civilizatórias de direitos do homem, possível com o paradigma de um Estado Democrático de Direito, contrariando o modelo conservador de negação de direitos. Toda essa aclamação por um novo Estado é porque as sociedades humanas nem sempre viveram sob a égide de um Estado Democrático de Direito que garantisse a universalidade de direitos a todos os seus cidadãos. Na história, a luta pelo poder e riquezas levaram os homens a estabelecer as mais diversas formas de arbitrariedade em face da vida humana, a exemplo das penas draconianas, da escravidão, das torturas e perseguições sofridas por povos no período moderno e contemporâneo. A existência de um Estado Constitucional Democrático de Direito é recente e representa uma conquista da Humanidade em face de governos arbitrários, tirânicos e usurpadores de direitos. Trata-se de uma construção histórica de consolidação enquanto forma de organização jurídica de poder que agrega outras competências como a soberania, a participação e a cidadania e que se põe como paradigma a ser aperfeiçoado e instrumento de defesa todas a vezes que insurgir ameaças à sua existência. Neste Estado, as regras jurídicas continuam tendo a sua validade; o que trouxe de diferente é a inclusão de valores e princípios que modificam a interpretação axiológica, pois a este novo Estado cabe a função de proteger e garantir direitos sociais. No confronto com a lei, os princípios devem ter supremacia. Reconhecida a importância desta Lei Fundamental, de onde deve emanar o restante da legislação, importa refletir como esta Constituição precisa ser aplicada, de forma que tenha eficácia e efetividade na garantia dos direitos e da democracia, tanto do ponto de vista formal quanto do ponto de vista material, pois Estes amparam a legitimidade do ordenamento constitucional, cujo fim já não é, apenas, aquela segurança, de todo formal, senão também a justiça substantiva, a justiça material, a justiça que se distribui na sociedade, a justiça em sua dimensão igualitária; portanto, a justiça incorporadora de todas as gerações de direitos fundamentais [...], até alcançar, com a democracia participativa, onde têm sede os direitos da quarta geração – sobretudo o direito à democracia – um paradigma de juridicidade compendiado na dignidade da pessoa humana [...]; é o supremo valor onde jaz o espírito da Constituição. (BONAVIDES, p. 28). É tão significativa uma Constituição para a existência da sociedade e de uma relação social democrática que a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (artigo 16) confirma que o referencial de uma Constituição é a própria sociedade “Toute société dans laquelle la garantie des droits nest pás assurée, ni la separation des pouvoirs déterminée na point de Constituition” (CANOTILHO, p.88). É pela via da sociedade que se defendem e constrõem os valores, suas normas, seus direitos os quais são insculpidos em uma norma que seja hierarquicamente superior às demais sem que deixe de direcionar os caminhos de seus cidadãos. Dessa forma, uma sociedade que não garanta os direitos fundamentais e tampouco assegure a separação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário como sistema de freios e contrapesos para evitar os excessos destes, não possui Constituição. Quer-se, aqui, que a Constituição seja uma ordem jurídica a ser aplicada à sociedade, mas que seja fundada em princípios, em uma democracia participativa e garantista de direitos e que o Estado reafirme o seu papel de proteger e garantir direitos sociais e manter o equilíbrio do exercício dos poderes. Para Canotilho (2011), Qualquer que seja o conceito e a justificação do Estado – e existem vários conceitos e várias justificações – o Estado só se concebe hoje como Estado constitucional [...]. O Estado Constitucional, para ser um estado com as qualidades identificadas pelo constitucionalismo moderno, deve ser um Estado de direito democrático. Eis aqui as duas grandes qualidades do Estado constitucional: Estado de direito e Estado democrático. Estas duas qualidades surgem muitas vezes separadas. Fala-se em Estado de direito, omitindo-se a dimensão democrática, e alude-se a Estado democrático silenciando a dimensão de Estado de direito. Esta dissociação corresponde, por vezes, à realidade das coisas: existem formas de domínio político onde este domínio não está domesticado em termos de Estado de direito e existem Estados de direito sem qualquer legitimação em temos democráticos. O Estado constitucional democrático de direito procura estabelecer uma conexão interna entre democracia e Estado de direito. (p. 92 e 93). Com esta nova concepção há uma limitação ao exercício do poder pelo Estado que se submete ao império do Direito bem como uma democracia que autoriza o exercício da vontade popular e legitima este poder através de técnicas legislativas como, por exemplo, o referendum, o plebiscito e o voto, por meio dos quais os cidadãos, ao reconhecer a ordem estatuída e obedecer ao seu conjunto normativo, legitimam-na. É a caracterização do Estado Democrático de Direito, consolidado com a premissa de garantista. O Estado comparece como exigência histórica de se constituir um poder central, supremo e soberano para gerir os conflitos sociais e econômicos. Para evitar a “guerra de todos contra todos” (Hobbes, 1651). Abolindo a soberania e a “guerra do déspota contra os súditos” ao dividir os poderes em Legislativo e Executivo e, posteriormente, Judiciário, de modo que um possa controlar o outro (Locke,1690). Expressando a “vontade geral” por força de um “contrato social” em que o homem abre mão de sua liberdade natural e de seu estado de natureza selvagem em favor da liberdade civil (Rousseaus, 1762). Acabando com os privilégios e as instituições oligárquicas e assegurando, através de uma Constituição, o ideal de justiça sobre os fundamentos da propriedade privada e do livre desenvolvimento capitalista, as instituições representativas como expressão dos anseios nacionais, os direitos do homem e o interesse comum. (SILVA, P.57 e 58). O novo Estado exerce a sua soberania por meio de princípios e pela vontade popular, agora com a concepção de cidadão e de cidadania participativa e, por isso, a questão humana é colocada em primeiro plano não podendo admitir que seres humanos sejam tratados como objetos e sejam eliminados os seus direitos de cidadania, buscando-se a aplicação da máxima da dignidade da pessoa humana. Segundo Norberto Bobbio, O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem estão na base das constituições democráticas modernas. A paz, por sua vez, é o pressuposto necessário para o reconhecimento e a efetiva proteção dos direitos do homem em cada Estado [...] Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos quando lhe são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável [...] somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo. (p.1) É a partir desse paradigma pós-positivista que os princípios passam a ser importantes na solução de conflitos quando a regra não consegue ser precisa e adequada, auxiliando os juristas a decidirem a partir dos mesmos. Para Pereira (2006),“a presença dos princípios no Direito impede que o fenômeno jurídico seja analisado por meio de raciocínios puramente formais e alheios a valorações substantivas, de modo que se torna inviável acolher a tese positivista de separação entre Direito e Moral”. (p.) No Estado Constitucional Democrático de Direito são os Direitos Fundamentais compreendidos como norma principiológica que agora se apresenta como sendo finalidade a ser alcançada, seja porque deve protegê-los, seja porque deve torná-los efetivos. 1.2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana: ícone no Estado Democrático de Direito. Corolário do ideal democrático para a concretização dos direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana contempla todas as dimensões do ser humano, desde as garantias de uma vida material até ao respeito e a promoção das aspirações da alma. Neste sentido, é inerente do homem manifestar-se e designarse conforme a sua consciência individual e social, visto que está inserido em um universo de relações sociais que demanda atitudes e decisões, desde que não ultrapasse o que se convencional, no ideário da ética e da moral. A concepção de que a pessoa humana é dotada de valor que lhe é inerente possui uma longa caminhada ao longo da História. Desde antes de Cristo, o Antigo Testamento já fazia alusão a este valor que também foi registrado no Novo Testamento, podendo encontrar “referências no sentido de que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus” (SARLET, p.30). Também foi verificada, na sociedade antiga clássica, que, segundo o pensamento da época, a dignidade era quantificada, pois vista a partir de seu aspecto material – posição social e propriedade. Diferentemente do pensamento estoico, que afirmava ser a dignidade, uma qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção esta que se encontra intimamente ligada à noção de liberdade pessoal de cada indivíduo (o Homem como ser livre e responsável por todos os seus atos e seu destino) bem como à ideia de que todos os seres humanos, no que diz com a sua natureza, são iguais em dignidade. (COMPARATO apud SARLET, p.31). Nessa perspectiva, não se pode conceber a existência do Homem, um ser essencialmente social, que não tenha as suas ações livres e desembaraçadas das ideologias de cada período histórico. Há que se reconhecer sua autonomia e capacidade civilizatória como condições específicas da sua própria essência de humanidade. Adiante, mesmo no período que se refere à Idade Média, por ter sido esta vinculada aos ideais do cristianismo, dando destaque à figura de Santo Tomás de Aquino que cunhou a expressão dignitas humana, esta noção de dignidade também é consagrada como qualidade e condição dada ao homem para que determine a sua existência e a sua história. Durante a colonização da América, no século XVI, observando a exploração e o aniquilamento de uma raça, a ideia de dignidade foi ressaltada pelo espanhol Francisco de Vitória “que os indígenas, em função do direito natural e de sua natureza humana [...] eram em princípio livres e iguais, devendo ser respeitados como sujeitos de direitos, proprietários [...] ”. (SARLET, p32). O pensamento jusnaturalista, que predominou no período entre os séculos XVII e XVIII, mesmo tendo passado por um processo de laicização e pela racionalidade, manteve a ideia da existência de uma igualdade que é conferida a todos os homens em dignidade e liberdade. Agir conforme deliberação própria e se designar conforme a sua consciência e liberdade parece ter sido a síntese da concepção da dignidade e que encontrou ressonância significativa no pensamento de Kant, no qual prevalece a questão da autonomia ética do ser humano. A partir deste entendimento, ao homem estaria proibida a atribuição de objeto, pois este traz a noção de mercadoria e preço e, quem se determina, só pode ser sujeito, a quem se atribui uma qualidade insubstituível. Segundo Kant, no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade [...] Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-se infinitamente acima de todo o preço. (apud SARLET, p.33e 34). Nas relações interpessoais, que são recíprocas, dialéticas e se pretendem ser autônomas, não há espaço para uma concepção mercadológica ou coisificada do ser humano, na qual a vida e a liberdade são negociáveis e descartáveis, ainda que se viva em uma sociedade de consumo. Por isso, a dignidade é um valor intrínseco, principiológico em sua essência e, por apresentar – se desta forma, não admite barganhas ou mesmo a sua invisibilidade, cabendo ao ordenamento jurídico a sua legitimação e concretização. Isto significa que a dignidade da pessoa humana implica em uma juridicidade de sua referência conceitual. A sua projeção no ordenamento jurídico foi com a eficácia de um princípio constitucional fundamental que também possui uma função disciplinadora às atividades do Estado, pois que ele obstaculiza qualquer atividade que vá de encontro à desvalorização deste princípio. Importa (re) afirmar que a essência da dignidade encontra as suas raízes na razão humana e que as dimensões essenciais de sociabilidade e unicidade faz da pessoa humana um ser único, livre, sujeito de sua própria construção pessoal e social, capaz de ações inteligentes e responsáveis, justamente porque é livre e, essa liberdade é própria de seu acontecer existencial. A pessoa é, assim, um sujeito inteligente, responsável e livre, é algo que se constitui a partir de dois eixos essenciais: o da sua sociabilidade e o da sua unicidade que a definem como um ser aberto, sociável, comunicativo, dialogante, falante, único, por conseguinte, distinto de todos os outros e idêntico a si próprio. Neste sentido, a pessoalidade constitui o rasgo estruturante e fundador do humano [...], capaz de desenvolver relações sociais sem desligar-se da sua individualidade. (TAVARES, p.54). Situar a dignidade neste contexto significa respeitar o Homem na sua essência enquanto pessoa, no mundo e na sua realidade concreta, possuidor de uma liberdade que o faz ser e querer ir até o limite de suas possibilidades e reconhecer que associa outras dimensões fundamentais como a inteligência, a vontade, a afetividade, a capacidade de intervir e criar, dentre outras. No século XX, esta referência conceitual de pessoa e dignidade humana enquanto princípio só foi adotada pelas constituições, a exemplo da Constituição Brasileira de 1988, a partir da segunda metade do século, quando o mundo presenciou os horrores das guerras e o imperativo de uma construção de normas internacionais para a proteção dos direitos da humanidade frente aos abusos e aniquilamento destes por governos anti -democráticos. Por isso, a sua supremacia é presente no Estado Constitucional. Alguns documentos jurídicos são importantes nesta fase que emerge a ideologia internacional protecionista dos direitos humanos: a Convenção de Genebra, de 1864; a Organização Internacional do Trabalho, de 1919; a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em 1948; a Carta das nações Unidas, em 1945; a Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, em 2000, documento recente que prevê a dignidade como sendo “inviolável. Deve ser respeitada e protegida”. (BREUS, p. 164). No Brasil, a Constituição Federal de 1988, recepcionou e consagrou este princípio como fundamental, em seu artigo 1º, inciso III atendendo a tendência de uma sociedade mundial que transforma profundamente seus valores. Esta sociedade se adapta e se desenvolve de diferentes maneiras, na qual emerge um verdadeiro mosaico cultural, linguístico e racial; uma sociedade que se constrói com pessoas vivas, dinâmicas, inteligentes, solidárias, livres, tolerantes e mais humanas e na qual o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana continua, talvez mais do que nunca, a ocupar um lugar central no pensamento filosófico, político e jurídico, do que dá conta a sua já referida qualificação como valor fundamental da ordem jurídica, para expressivo número de ordens constitucionais, pelo menos para as que nutrem a pretensão de constituírem um Estado democrático de Direito. (SARLET, p.37). A experiência ensina que essa evolução no campo da ordem jurídica, nacional e internacional, de proteção da dignidade da pessoa humana demonstra uma maturidade do legislador em se comprometer com as demandas e os desafios que se colocam face à manutenção de uma democracia e direitos que equalizem as desigualdades e as injustiças. Também se apresenta como uma conquista dos povos e uma direção onde devem se assentar as bases de um Estado Constitucional e democrático e de direito. Toda essa reflexão não pode ser levada a efeito se não considerar que, no campo dos direitos humanos, o princípio da dignidade da pessoa humana vem informado por outros princípios jurídicos, como o da Igualdade, Liberdade e Solidariedade, todos com previsão constitucional e em Tratados e Declarações internacionais, com a finalidade de limitar o poder político do Estado. Segundo Eduardo Carlos Bianca Bittar, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 deu o primeiro passo nesse sentido: [...] Artigo II.1. Toda pessoa tem capacidade ara gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie seja de ração, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra nature- za, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição [...] Art. VII. Todos são iguais perante a lei e têm direitos, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. (p.519). Por esta assertiva, afigura-se que todos, indistintamente, têm o direito de receber igual tratamento quando for cumprida a lei, não lhe sendo dado o direito de discriminar; pelo contrário, cabe a ela, garantir uma coexistência pacífica, orientando a ordenação das ações humanas, as diferenças e semelhanças de cada grupo social e dos indivíduos, pois “a lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguição, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos”. (MELLO, p. 10). Para evitar que haja injustiças, há a necessidade de providenciar uma equivalência de meios para que cada pessoa possa desenvolver as suas potencialidades. Neste sentido, Humberto Gouveia (2008), faz a seguinte reflexão: O primado da igualdade, por esse novo enfoque, pode ser utilizado como um instrumento para o objetivo de aproximar as pessoas da igualdade efetiva, ou seja, um meio para a busca da igualdade social. Por esse motivo, o princípio da igualdade, nesse sentido material, estabelece que os iguais devem ser tratados de forma igual e os desiguais, de forma desigual na medida em que se desigualam. Para J.J.Canotilho, a igualdade na aplicação do Direito vai além da mera igualdade da aplicação da lei, agora o intuito é atingira a igualdade por meio da lei. (p.69). Dessa forma, na tentativa de manter a igualdade, a lei buscou na realidade social, elementos que julgou serem possíveis de criar desequiparações odiosas entre as pessoas, e explicitou a impossibilidade das mesmas em utilizá-las para benefício próprio. Num Estado que se quer constitucional e democrático, é preciso que haja, além da igualdade formal, uma igualdade material a fim de que se respeite as diferenças de cada segmento social, de suas peculiaridades, através de intervenções sociais de prevenção e apoio. O princípio da liberdade, considerado como de primeira dimensão, é oriundo da concepção liberal e pressupõe uma abstenção do Estado em intervir nas relações individuais e privadas e “se consubstancia, presentemente, em um espectro que compreende inúmeras perspectivas que vão desde a privacidade, a intimidade, até o livre exercício da vida privada [...]. (BREUSS, p. 179) Somente com este pensamento e visto apenas pelo viés de seu substrato, este princípio se torna incipiente, pois as pessoas estão em relação e se situam em um meio social organizado, sendo articulado a ele, o princípio da solidariedade e todos os demais, como sendo atributos da cidadania, princípio fundamental da Constituição, atributo inerente ao ser humano na sua forma de autodeterminação e que só pode ser compreendido no seu espaço público (político e social). O contrário de cidadania é a condição de abandonado, de excluído, de marginalizado. II. AS POLÍTICAS SOCIAIS PÚBLICAS COMO PRIMAZIA DO ESTADO BRASILEIRO. Política Pública é um tema bastante complexo e discutido em diversas áreas do conhecimento a exemplo das ciências sociais, da ciência política e economia política, justamente por ser um importante instrumento de controle e promoção da atuação do Estado. Nesta ótica, o porquê e o para quê das coisas, quais os sujeitos e em que circunstâncias elas ocorrem terão que fazer parte integrante de um mesmo processo. Por Política Pública entende-se uma orientação à atividade ou à passividade de alguém; as atividades ou passividades decorrentes dessa orientação também fazem parte da política pública; uma política pública possui dois elementos fundamentais: intencionalidade pública e resposta a um problema público: em outras palavras, a razão para o estabelecimento de um problema público; em outras palavras, a razão para o estabelecimento de uma política pública é o tratamento ou a resolução de um problema entendido como coletivamente relevante. (SECCHI, 2010, p. 2). Diante deste conceito, algumas questões devem ser suscitadas na tentativa de se refletir sobre uma investigação mais comprometida sobre esta ação estatal, pois seria somente o Estado responsável pela sua implantação ou mesmo implementação? O primeiro questionamento se refere aos atores das Políticas Públicas: estes são somente os agentes estatais ou podem ser agentes não estatais? Há uma discussão na literatura sobre quem seria o responsável pela efetivação destas políticas tendo uma corrente que defendem uma abordagem estatista e outra corrente que defende a abordagem multicêntrica. Segundo Leonardo Secchi (2010), a abordagem estatista (state-centered policy-making) considera as políticas públicas, analiticamente, monopólio de atores estatais. Segundo essa concepção, o que determina se uma política é ou não pública é a personalidade jurídica do ator protagonista. Em outras palavras, é política pública somente quando emanada de ator estatal. A abordagem multicêntrica, contrariamente, considera organizações privadas, organizações não governamentais, organismos multilaterais, redes de políticas públicas (policy networks), juntamente com atores estatais, protagonistas no estabelecimento das políticas públicas. (p. 2). Neste contexto tem-se que as políticas públicas, pela abordagem estatal, admitem apenas a competência do Estado para estabelecer e comandar um processo de política pública – enfoque positivista; o agente não estatal pode até auxiliar, mas não cabe a ele o processo decisório. Já a multicêntrica, vislumbra que este privilégio pode pertencer a agentes não estatais, que podem atuar na busca por soluções a problemas que são públicos e por imprimirem uma visão mais interpretativa da realidade social. O segundo questionamento a ser visitado é se as políticas públicas podem se referir à omissão ou negligência. A resposta a este questionamento só pode ser negativa, pois uma política pública deve resultar em uma diretriz intencional, seja ela uma lei, uma nova rotina administrativa, uma decisão judicial etc. Se um ator governamental ou não governamental decide não agir diante de um problema público, isto não constitui em uma política pública. (SECCHI, 2010, p.4). O terceiro questionamento diz respeito se uma política pública se situa apenas como diretriz estruturante – a nível estratégico ou se situa a nível operacional. Caso a interpretação seja favorável a de uma diretriz estratégica, temse, então, uma Política Pública Educacional, Agrária, Ambiental etc., dirigidas a setores. Por outro lado, caso se considere que elas se situam ao nível operacional, há uma grande probabilidade em se excluir os problemas públicos municipais, estaduais, regionais ou mesmo aqueles considerados intra-organizacionais. Esta análise passa por outra, a de verificar quando um problema é público. Este só o será quando a situação for inadequada e as conseqüências forem para uma quantidade significativa de pessoas, ou seja, uma coletividade. Feitas estas reflexões, importa estabelecer que, para o Direito, a política será pública quando a ação do agente for estatal, ou seja, quando o Estado decidir, diante das condições sociais e econômicas qual a melhor estratégia para se promover o equilíbrio entre as camadas sociais. Assim, segundo Thiago Lima Breus (2007), citando Cristiane Derani, as políticas são chamadas de públicas, quando estas ações são comandadas pelos agentes estatais e destinadas a alterar as relações sociais existentes. São políticas públicas porque são manifestações das relações de forças sociais refletidas nas instituições estatais e atuam sobre campos institucionais diversos, para produzir efeitos modificadores na vida social. São políticas públicas porque empreendidas pelos agentes públicos competentes, destinadas a alterar as relações sociais estabelecidas. (p.210). Neste quadro, importa refletir a tese sobre a função do Estado em sendo aquela de estabelecer as ações que são definidas como importantes para a sociedade e são, resultantes dos movimentos sociais cujas forças atuam na configuração de diferentes modelos de políticas públicas e, para os quais, constatase que a sua efetivação atende tanto às necessidades do capital quanto às do trabalho, pois quando se trata de políticas públicas, se está em um campo de sobrevivência. Neste sentido, o papel do Estado é o de enfrentar a questão social, ampliando as medidas de política social como estratégia de conter a crise do capitalismo que, seguramente, demanda investimentos para o aquecimento do mercado, do emprego e do consumo. A contribuição de John Maynard Keynes, neste sentido, foi inconteste com sua teoria Geral, em 1936. Segundo ele, a concorrência feroz entre os empresários levariam a crise do próprio sistema, afirmando que o capitalismo não é auto - regulável. Por isso, o Estado deveria intervir através de um conjunto de medidas econômicas e sociais, tendo em vista gerar demanda efetiva, ou seja, disponibilizar meios de pagamento e dar garantias ao investimento, inclusive contraindo déficit público, tendo em vista controlar as flutuações da economia. Nessa intervenção global, cabe também o incremento das políticas sociais. (BEHRING, p.26) Tal intervenção traria o que se conhece como Estado do Bem Estar Social que orientou as ações dos governos no pós-guerra, pois partia do princípio de que os governos são responsáveis por garantir aos cidadãos um mínimo de existência e padrão de vida, o que não significava o abandono do ideário do liberalismo econômico, mas acrescentou a necessidade de uma ampla intervenção do Estado na economia. O reconhecimento deste Estado importa no reconhecimento da legitimidade do sistema de proteção, pois rompe com o liberalismo tradicional ao denunciar que o capitalismo não produz um equilíbrio no mercado e nem igualdade, seja entre as pessoas, seja entre produção e demanda. Por isso, a necessidade da regulação do Estado. Para Rodrigues (2010), O Estado de Bem - Estar Social é um sistema de proteção social que emergiu nos países de capitalismo desenvolvido no período do pós-guerra. Configura-se como um campo de escolhas e de solução de conflitos para decidir sobre a distribuição dos frutos do trabalho social e o acesso de camadas expressivas da população à proteção contra os riscos inerentes à vida em sociedade. A provisão dos serviços e de medidas de política social e econômica que propiciam, entre outras coisas, segurança no mercado de trabalho (garantia de salários, de postos e condições de trabalho e representação dos interesses do trabalho), garantia de renda (seguro desemprego; auxílio -família; auxílio-doença), proteção contra riscos da vida social (saúde, habitação e educação) e pleno emprego tornam-se, nesse contexto, direitos sociais, assegurados pelo Estado [...]. (p.63) A partir deste conceito, percebe-se a preocupação que se tem com a dinâmica social, pois o seu desequilíbrio coloca em risco a estrutura do sistema e da organização social. Assim, melhor cuidar para que a população não seja sacrificada diante das crises, pois a sua ruína significa a ruína do sistema capitalista como um todo e, esta, constitui a sua lógica. De uma forma geral, há o reconhecimento da existência das políticas públicas a partir da construção da sociedade burguesa, resultante da consolidação do sistema capitalista de produção que trouxe consigo uma forma de produzir e reproduzir-se muito especificamente. A sua exploração foi tão intensa que promoveu movimentos de trabalhadores que reivindicavam direitos de forma que existe um consenso em torno do final do século XIX como período de criação das primeiras legislações e medidas de proteção social, com destaque para a Alemanha e a Inglaterra, após um intenso e polêmico debate entre liberais e reformadores sociais humanistas. A generalização de medidas de seguridade social no capitalismo, no entanto, se dará no período posterior à Segunda Guerra Mundial, com a construção do welfare state em alguns países da Europa Ocidental. (BHERING, 200, P.21). Havia uma preocupação em melhorar as condições de vida dos trabalhadores para que estes pudessem responder às necessidades do capital; só assim, haveria meios de se manipular o trabalhador e evitar crises estruturais que colocassem em risco a organização sociopolítica e econômica vigente. Nada melhor que utilizar o Direito para organizar as normas jurídicas que passariam a ter controle sobre a ação do trabalhador e do próprio Estado. No Brasil, o modo de produção capitalista acirrou as contradições existentes entre diferentes classes sociais, aumentou o nível de exploração de uma classe sobre a outra e promoveu a exclusão social, com a reorganização das reformas estatais, pela flexibilização e desregulamentação das normas dos contratos sociais com direitos trabalhistas limitados. Além destes aspectos, o governo brasileiro ainda buscou atender às metas de ajuste da economia brasileira determinadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), cujas conseqüências, dentre outras, foi o arrocho salarial resultando em péssimas condições de vida para a população brasileira. Por conseguinte, as forças políticas do movimento constituinte originário trataram de garantir que os direitos de cidadania fossem respeitados e garantidos enquanto mandamento constitucional. A resposta a este conflito social foi a elaboração e promulgação da Constituição Federal de 1988, que consolidou as conquistas dos movimentos sociais, ampliando seus direitos no sentido de garantir um modelo democrático de seguridade social: imprimiu os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos; reafirmou uma gestão pública e o seu financiamento através das contribuições sociais; estabeleceu uma ordem econômica, tributária e financeira que viesse dar condições de promover o bem-estar da sociedade e, finalmente, o estabelecimento de uma ordem social que “tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. (artigo 193, CF). Não é mais uma sociedade que serve ao Estado, mas o seu inverso – um Estado que deve servir à sociedade, realizando e efetivando todos os direitos fundamentais elencados na Constituição Federal. Neste contexto, que prima pelos direitos, as Políticas Públicas emergem como novo modelo de atendimento e alcance de uma vida digna e de justiça social ao mesmo tempo que servem de instrumento de controle e regulação pelo Estado e o Direito. Por esta dinâmica, passa-se a verificar a atuação de uma mão visível, estatal, a qual passa a ser o principal agente de mediação e de influência dentre os atore da sociedade civil. Para que o Estado possa influenciar a atuação da sociedade civil, é elaborada uma série de mecanismos jurídicos para que sua atuação ocorra a contento. Neste contexto, o instrumento utilizado para a promoção dessa participação perante as relações sociais são as políticas públicas. (BREUS, 2007, P.214). Nesta relação dinâmica, o Estado assume papel fundamental na implantação/implementação das políticas públicas: de uma bandeira liberal, que assegurava uma intervenção mínima do Estado e confirmava uma omissão do Estado na garantia dos direitos individuais, à transposição para um Estado contemporâneo, o Democrático Constitucional e de Direitos, que prima por um poder jurídico estatal comprometido a superar as graves condições sociais e econômicas em que vive uma parcela significativa da sociedade, a qual não possui condições de exercer a sua cidadania. No Brasil, as políticas públicas tiveram um desenvolvimento lento, pois as questões sociais que emergiam e geravam crises ao sistema eram tratadas como caso de polícia III A ACESSIBILIDADE ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS PELA VIA DO MANDADO DE SEGURANÇA E DA AÇÃO DECLARATÓRIA INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE. No Brasil, as reivindicações feitas pelos movimentos sociais originaram no conjunto de ações e estratégias que estão dispostas na Constituição da República e que servem de modelo para a implantação / implementação de políticas públicas como necessárias para a igualdade e a participação da população enquanto acesso a direitos, sem discriminação. Ter a possibilidade de utilizar este conjunto de ações e estratégias para a efetivação dos direitos é o que se designa por acessibilidade. Segundo SCHNEIDER (2009), O conceito de acessibilidade é usado no sentido de identificar uma situação de uso pleno, seguro e independente do espaço construído. Assim, será acessível o espaço ou o equipamento urbano que propiciar tais condições para toda a população, independentemente de características físicas, idade, sexo etc [...]. Há a necessidade de se compreender o acesso, não só nas estruturas físicas, mas também em toda e qualquer forma de comunicação e de observância no que se refere aso direitos e deveres, tanto dos indivíduos, quanto da sociedade e das concepções políticas desenvolvidas por parte dos governos e das empresas. Ter acesso é oferecer ao indivíduo a possibilidade de independência e autonomia. (p. 111 e 112). Neste caso, as políticas públicas devem dar acesso e plena utilização dos direitos sociais, atendendo as demandas individuais e sociais na medida de suas necessidades, atendendo a todos os indivíduos, independentemente de sua condição financeira. E, se não puder se voltar para todos, que pelo menos seja para uma maioria da população, em especial, a que se encontra em situação de vulnerabilidade. Por outro lado, para se acessar as Políticas Públicas, muitas vezes os sujeitos necessitam ter acesso à Justiça. Para Cândido Rangel Dinamarco (2005), o acesso à Justiça é, mais do que ingresso no processo e aos meios que ele oferece, modo de buscar eficientemente, na medida da razão de cada um, situações e bens da vida que por outro caminho não se poderiam obter. Seja porque a lei veda a satisfação voluntária de dadas pretensões, seja porque a pessoa de quem se poderia esperar a satisfação não satisfez e, quem não vier a juízo ou não puder fazê-lo renunciará àquilo a que aspira. (p.347). Justamente por terem sido reconhecidos enquanto conquista da Humanidade, afinal, não há direito que tenha surgido do acaso, inegável que os direitos humanos fundamentais, uma vez positivados na Constituição, adquiriram um status de norma fundamental e sejam efetivos, promovendo a satisfação da população. Trata-se, aqui, de direito substancial de superação das desigualdades sociais, cujo reconhecimento e efetividade deveriam ser naturais. Entretanto, esta prática não é usual e sem os instrumentos processuais adequados, não há como conferir eficácia aos mesmos. Sob o paradigma de Estado Constitucional Democrático de Direito, criou-se um modelo processual fundado na Constituição que assegurem direitos e garantias fundamentais e, assim, acessibilidade aos mesmos. Sampaio Dória explica que “os direitos são garantias e as garantias são direitos” (apud TAVARES, p. 764). Com esta concepção, pode – se dizer que são direitos – garantias, sob a ótica da dialeticidade, num sistema totalmente integrativo. Neste sentido, o modelo processual se funda em dois importantes princípios: o da jurisdicionalidade e da legalidade, a fim de promover a segurança do processo e o respeito à ordem constitucional. O princípio da jurisdicionalidade tem previsão no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988 e impõe a inafastabilidade da jurisdição. Significa a garantia constitucional da tutela jurisdicional dos direitos subjetivos, a qual deve conferir um resultado e a irradiação de efeitos jurídicos ao direito de ação. O princípio da legalidade, consagrado no artigo 5º, incisos II e XXXIX, da Constituição Federal, traz a máxima de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” e “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, também previsto no Código Penal; em relação à atuação da Administração Pública, no artigo 37 da Constituição Federal, e no seu artigo 150, inciso I, limitando o poder de tributar do Estado, com previsão no Código Tributário Nacional. Alerta-se para o fato de que, diferente de outros princípios estes “servem como instrumental à disposição da proteção aos direitos essenciais ao ser humano. Configurar-se-iam, portanto, como ferramentas garantidoras de intervenções jurídicas protetivas e efetivadoras dos direitos humanos. (COELHO, p.139). Para além dos princípios, há ainda os instrumentos jurídicos conhecidos por remédios constitucionais, a exemplo da ação popular, do mandado de segurança, do mandado de injunção, do habeas data e do habeas corpus bem como a ação declaratória incidental de inconstitucionalidade, que têm exercido importante papel na proteção e garantia de direitos dos cidadãos. O processo tem, assim, o escopo de se colocar como instrumento para garantir a paz social, já que por ele prima-se por garantir a participação das partes, que têm direito ao processo, e a uma decisão mais justa a partir do convencimento efetivo do magistrado. No caso do Mandado de Segurança e da Ação Declaratória Incidental de Inconstitucionalidade, estes se constituem em instrumentos processuais constitucionais, podendo ser utilizado por grande parte da população quando esta vê o seu direito violado e se sente impotente diante das dificuldades em acessar serviços que deveriam estar à sua disposição. Afinal, as garantias individuais e sociais estão presentes no ordenamento jurídico como um mínimo a ser disponibilizado aos cidadãos. 3.1 Mandado de Segurança. Dentro do contexto do sistema das garantias – meio de defesa disposto à população para assegurar os seus direitos, o mandado de segurança tem a sua regra inserida no artigo 5º, inciso LXIX, da Constituição Federal, que dispõe: conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. Assim, este instrumento assegura, efetivamente, direitos, desde que sejam incontroversos e não dependa de dilação probatória, visto que a sua natureza jurídica o inclui como ação civil de rito sumário e, portanto direito líquido e certo a ser garantido à pessoa física ou jurídica, desde que o seu direito não esteja amparado por habeas corpus ou habeas data. Também constitui em uma forma de controle jurisdicional, através do qual, o Poder Judiciário intervém quando a autoridade coatora exerça atos de ilegalidade ou abuso de poder; atos comissivos ou omissivos; lesão ou ameaça de lesão a direito líquido e certo e possui caráter subsidiário. Data o seu surgimento em forma de ação constitucional, de natureza civil pela primeira vez, na Constituição de 1934. Nas outras Constituições subseqüentes, também foi recepcionado com a característica de garantia, à exceção da Constituição de 1937. Sua importância é tão grande que recentemente a Lei nº 1.533, de 31/12/51, que rege a matéria, foi revogada pela Lei nº 12.016/09, a qual trouxe inovações. O estatuto anterior – Lei nº1.533 trazia apenas a situação de uso do mandado quando não coubesse o habeas corpus e referia-se a alguém, limitando a sua proposta de aplicabilidade. O novo estatuto legal – Lei nº 12.016/09 acrescentou, em sua redação, a expressão habeas data e ainda ampliou o rol daqueles que podem se utilizar deste instrumento, ou seja, substituindo a palavra alguém por pessoa física ou jurídica, trazendo o sentido de que a coação parte do dirigente e diz respeito a ações ou omissões do Poder Público. Ainda na redação atual, há vedações expressas quanto a utilização desta ação processual, podendo ser observadas no artigo 1º, § 2º e artigo 5º. O primeiro dispositivo se refere à proibição de se impetrar contra atos de gestão comercial praticados pelos administradores de empresas públicas, sociedades de economia mista e de concessionárias de serviços públicos. Ainda no campo das vedações, o artigo 5º, inciso III, não permite impetrar o Mandado de Segurança contra decisão transitada em julgado – artigo proveniente da Súmula 268 do STF. Já o artigo 6º, § 3º da referida lei estabelece o conceito de autoridade coatora como sendo “aquela que tenha praticado o ato impugnado ou da qual emane a ordem para a sua prática”. Importa atentar para um elemento normativo, sem o qual, há total impossibilidade em utilizar a via do Mandado de Segurança, que é a questão do direito líquido e certo ao qual o impetrante deve estar revestido. Por direito líquido e certo se entende o direito que é comprovado de imediato (de plano), apresentado no momento da impetração e não demande comprovação por outros meios de prova, pois em sede do mandamus, não há previsão de dilação probatória. Observando ainda a necessidade de proteger direitos direcionados àqueles considerados coletivos, difusos e individuais homogêneos, o artigo 5º, inciso LXX, da Constituição Federal, trouxe a lume o Mandado de Segurança Coletivo, autorizados a impetrá-lo os partidos políticos com representação no Congresso Nacional; as organizações sindicais, entidade de classe ou associação legalmente constituída, funcionando há pelo menos um ano e o seu objetivo seja o de proteger interesses de seus membros ou associados. 3.2 Ação Declaratória Incidental de Inconstitucionalidade A Constituição Federal trouxe várias matérias assecuratórias de direitos, protetivas a diferentes seguimentos da sociedade porquanto a sua condição de vulnerabilidade. Entretanto, a norma constitucional muitas vezes pode ser ofendida na sua eficácia, negando-a enquanto direito do cidadão. No caso de infração de norma constitucional à norma de direito supralegal positivado na Constituição, ou seja, à norma do direito natural, como as que indicam o Direito à vida, o Direito à liberdade, o Direito à saúde, causando a inconstitucionalidade da norma constitucional alusiva, como seria o caso de uma norma constitucional que proibisse alguém de viver ou de se alimentar ou de respirar. A situação, a nosso ver, tratar-se-ia de inconstitucionalidade da norma constitucional específica por desvio de finalidade em relação aos objetivos reitores da Constituição, que, segundo pensamos, não pode ser a morte dos cidadãos do Estado, mas seu bem comum. (SILVA, 2009, p.81) Neste caso, exercer a cidadania implica em questionar a negativa de direito e requerê-lo como condição de dignidade e, um bom instrumento processual constitucional é a ação declaratória cuja finalidade é a obtenção da declaração da existência ou a inexistência de uma relação jurídica, desde que haja, comprovadamente, a existência de uma lide constitucional. Em se tratando de Políticas Públicas, estas se constituem em um conjunto de ações que o Estado deve implantar e implementar como condição sine qua non para a promoção do homem e de sua existência digna, dirigindo-se a diversos setores, integrados entre si para fazer valer os direitos individuais, sociais e do trabalho, além do direito à paz social. As áreas que incidem estas políticas estão voltadas na garantia a habitação, saúde, transporte público, segurança, seguridade social, saneamento, idoso, criança e adolescente, família, meio ambiente e educação. Uma vez que o cidadão busque acesso a estas políticas e as mesmas são negadas pelo Poder Público, por meio de algum dispositivo administrativo que possibilite à mesma esquivar-se de sua obrigação, há um flagrante desrespeito para com a norma constitucional. Neste caso, qualquer que seja a negativa a estes direitos há uma lesão a norma de direito constitucional, dando origem a uma divergência entre sujeitos a qual remete para o campo processual brasileiro e, assim, cabível ação declaratória incidental de inconstitucionalidade, com previsão nos artigos 5º e 325 do Código de Processo Civil, para que, por meio desta, se declare inconstitucional a decisão do Poder Público que tenta descumprir o seu dever de atender ao cidadão no tocante ao seu direito. Além disso, reivindica-se, por meio desta ação, que o seu conteúdo não seja aplicado, anulando os efeitos emanados do instrumento do Poder Público, já que a sua finalidade precípua não está sendo cumprida. No foro pós-moderno, entendemos que presentes os pressupostos processuais e as condições da ação, estando a demanda em trâmite regular, presente a pretensão de declaração de inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, resistida pela parte contrária, surgirá a lide constitucional prejudicial em seu bojo, cuja solução será necessária e útil para o julgamento do pedido constante da demanda principal, portanto, cabível, em tese, a ação declaratória incidental de inconstitucionalidade. (SILVA, 2009, p. 146). Não há que se discutir, então, da possibilidade de se defender direitos por meio desta ação, até porque, segundo Adailson Lima e Silva (2009), o objeto da ação declaratória de inconstitucionalidade é a relação jurídica de direito civil, penal, do trabalho controvertida, ou seja, a lei ordinária ou ato normativo equivalente que se tem por inconstitucional, cuja aplicação poderá trazer prejuízos ao titular do polo ativo da relação jurídica processual(p.153). Assim, sendo as Políticas Sociais Públicas espaço de democratização social, política, econômica e cultural da sociedade para a consolidação da cidadania , também se constituem como atribuições do Poder Público e, por isso mesmo, são passíveis de sofrer a interposição destes instrumentos processuais constitucionais. CONCLUSÃO As mudanças no paradigma de Estado trouxeram, em cada momento histórico-social, uma atuação diferenciada deste em relação às demandas da sociedade: ora, atuando de forma incisiva, absoluta; ora, deixando de intervir por mera conveniência e, por fim, intervindo pela exigência de uma sociedade mobilizada e participativa, consolidada em um sistema democrático brasileiro. Com isto, passou-se a exigir do Poder Público o dever de se concretizar os ideais de uma Constituição Democrática e participativa, nos quais os direitos fundamentais passaram a merecer uma tutela especial, de máxima importância e com maior efetividade, muitas das vezes, manifestada pela implantação e implementação de Políticas Sociais Públicas, indispensáveis para o exercício da cidadania no país. A partir dessas premissas, toda e qualquer disposição legal deve obedecer ao dirigismo constitucional que orienta para o respeito a estes direitos, minimizando as distorções produzidas pelo sistema econômico, em cuja base, está a desigualdade e a exclusão social, motivos determinantes para o usufruto de uma cidadania plena. Por esta ótica, conclui-se que os direitos sociais, por serem reconhecidos e protegidos por um sistema internacional de direitos humanos e recepcionados pela Constituição Federal brasileira como fundamentais, não podem e não devem sofrer limitações ou restrições por parte do Poder Público, sob a justificativa de poucos recursos ou falta de investimentos, pois esta é uma declaração de falência do Estado e de sua incapacidade para cuidar de seus cidadãos. Antes, há que se investir em áreas de planejamento, verificando quais as demandas para que se possam efetivar políticas sociais públicas que respondam à efetivação dos direitos fundamentais. Não perdendo de vista a análise crítica, ainda que haja os impositivos de princípios, em especial o da dignidade da pessoa humana, não se pode desconsiderar que o Estado Constitucional Democrático de Direito presta uma resposta fragmentada através destas políticas, contribuindo para a produção e reprodução dos interesses de uma classe dirigente. Registra-se uma incompetência do Estado em se garantir os direitos individuais e sociais fundamentais, sendo notório o reconhecimento da sociedade em relação a esta situação, a qual pode ser comprovada através dos meios de comunicação que, a todo instante, denunciam falhas na gestão das Políticas Públicas, seja na área de segurança, de saúde, de habitação, de educação, dentre outras, o que tem demandado do Judiciário uma interferência no sentido de se fazer valer as garantias constitucionais. No sentido de se evitar uma ingerência estatal, a Constituição Federal de 1988 trouxe um aperfeiçoamento na defesa da legalidade ao ampliar os instrumentos de defesa na garantia dos direitos fundamentais e que estão colocados à disposição das pessoas, a exemplo do Mandado de Segurança e da Ação Declaratória Incidental de Inconstitucionalidade, no que tange a acessibilidade às Políticas Públicas. Ambos, pertencentes ao sistema processual constitucional, voltados para que o Estado assuma o seu compromisso de garantir o bem comum e de possibilitar uma justiça social. A constituição do processo passa a ter uma visão mais humanista, que permita a participação das partes e o maior aproveitamento para o que foi proposto, consistindo na sua maior efetividade, especialmente no que se refere a mediadas de urgência, pois a falta de acesso às Políticas Públicas pode representar um grave dano para aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade, qualquer que seja esta. Destaca-se, assim, que só é possível uma justiça social e vida digna com a efetiva promoção do homem através do cumprimento dos objetivos constitucionais, tarefa primordial do Estado Democrático de Direito, representada pela construção efetiva de políticas públicas enquanto resposta do sistema para que se promova a estabilidade da ordem econômica e jurídica e a consolidação da cidadania. 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