THE KING’S RETURNED... À MÚSICA: UMA ANÁLISE DA SEXTA CANÇÃO DO PROJETO WILLIAM SHAKESPERARE’S HAMLET E SUA RELAÇÃO MULTIMODAL COM A TRAGÉDIA SHAKESPEARIANA Ana Paula de Castro Sierakowski1 Introdução Literatura serve para quê? Qual é o lugar da literatura em nossas vidas? Transfiro também essas perguntas à música. Qual a função desses dois tipos de arte para o ser humano? Alguns podem afirmar que não servem para nada. Que são artes descompromissadas... que não são produzidas a fim de propósito humanizante algum. Compagnon (2009, p.24), tratando, especificamente de literatura, também questiona: “qual é a sua força, não somente de prazer, mas também de conhecimento, não somente de evasão, mas também de ação?”. Por meio das perguntas de Compagnon, podemos perceber, então, que literatura é mais que apenas prazer “pelo belo” ou fuga; ela é também fonte de conhecimento e propulsora de ações. Tal qual a música. Mesmo podendo ser elas consideradas, essencialmente, como artes descompromissadas, elas agem no indivíduo das mais variadas formas e falam-nos sobre o mundo e os homens de maneiras tantas que talvez outros tipos de discursos não falariam. O fato é que, servindo elas para muito ou nada, são duas artes que – desconsiderando qualquer efeito de discussão do que é considerado arte ou não pelas instâncias legitimadoras do saber – movem o mercado e tocam o público de diversos modos. Comprova-se tal fato pelos inúmeros meios em que a literatura circula, fazendo-se disseminada e fruída, ou pelas multidões que se aglomeram para ver um show de uma banda, ou pela sua sobrevivência (e também florescimento) das duas em tantos gêneros. Dito isso, mais do que as formas estéticas de cada uma dessas artes, elas tocam também o público por meio dos seus temas; temas humanos considerados universais. Temas que podem ser moldados e remoldados em mídias diferentes. Tomando, então, o caminho da 1 Universidade Estadual do Centro-oeste – Irati [email protected] literatura em outras linguagens, me veio a conhecimento o projeto, lançado em 2001, intitulado William Shakesperare’s Hamlet que se trata de uma adaptação da tragédia do príncipe da Dinamarca, Hamlet, para o contexto musical, mais especificamente, para o heavy metal. Com vistas a trazer à luz o projeto brasileiro de música underground que recodifica, dessa forma, umas das tragédias humanas mais conhecidas na literatura, como objetivo geral, proponho discorrer sobre tal projeto, mas, especificamente, objetivo analisar a canção The King’s Returned, interpretada pela banda Krusader e sua relação com a tragédia shakespeariana. Para tanto, basear-me-ei em autores como Clüver (2007), Kress (2006), Hutcheon (2011), Walser (1993), Oliveira (2002) e Costa (2007). Fundamentação Teórica Segundo Kress (2006), o nosso corpo tem uma variedade de modos de relacionamento com o mundo e, dessa maneira, uma ampla variedade de modos de percepção. Esse relacionamento se dá por meio dos chamados ‘sentidos’: ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir. Cada um deles está relacionado de uma forma muito específica ao nosso ambiente, dando-nos informações muito diferenciadas sobre ele. Nosso engajamento com as artes, então, pode ser realizada a partir desses variados modos de ‘fruir’ um objeto artístico sendo ele imbricado a um único ou a vários sentidos. Nessa perspectiva, nenhum desses sentidos age de forma separada dos outros; são eles capazes de proporcionar a multimodalidade de nosso mundo semiótico. Assim, cada sociedade seleciona, no seu leque de escolhas, desenvolver essas possibilidades de relacionamento com o mundo a partir de cada sentido. As chamadas sociedades ocidentais letradas têm, por muito tempo, insistido na prioridade de um modo particular de relacionamento, por meio de uma combinação do ‘ouvir’ e do ‘ver’: o senso ‘ouvir’ especializado nos sons da fala e o senso do ‘ver’, especializado na representação gráfica dos sons por meio das letras. Deixando de lado a preocupação concernente à qual das mídias é vista como majoritária, o que é interessante perceber é a relação que podemos encontrar entre as mídias e como nos comportamos em relação a elas. Enquanto leitores de uma obra literária, lemos tal mídia de uma forma, seguindo os elementos de seu modo específico de funcionamento. Mas parece que, mesmo que uma história já exista, ou seja, já tenha sido contada na mídia escrita, há uma atração do ser humano em recontar a mesma história em diferentes mídias, pois há, consequentemente, uma grande busca dos leitores de um livro pelas transposições desse suposto livro seja para o filme, teatro ou outro meio. Isso mostra a fascinação do ser humano pelas adaptações, tanto no sentido de produzi-las, quando de frui-las. Hutcheon confirma tal fato com um insight de Benjamin (1992, p.90 apud HUTHEON, 2011, p.22) que diz que “contar histórias é sempre a arte de repetir histórias”. Em Uma Teoria da Adaptação, Hutcheon (2011), em resumo, nos ensina que uma adaptação pode ser descrita como: a) uma transposição declarada de uma ou mais obras reconhecíveis; b) um ato criativo e interpretativo de apropriação/recuperação; e c) um engajamento intertextual extensivo com a obra adaptada. Nesses três pontos, fica clara (e óbvia) a estreita relação da adaptação com a obra original. Entretanto, a autora argumenta que essa relação é de derivação, sim, mas que isso não torna a transposição intersemiótica como uma obra secundária. Diferentemente dos estudos que se focam na superioridade do texto literário ou na fidelidade requerida no processo de adaptação, principalmente, pelo receptor do texto adaptado, esta pesquisa reflete sobre a autonomia do texto ‘refeito’ em outra mídia. Podendo ser o texto entendido como uma unidade de expressão carregada de sentido, possuidora de características próprias para seu funcionamento, sendo ele um filme, um espetáculo de balé, uma peça de teatro ou uma canção, acredito que há uma relação de ‘diálogo’ entre os textos, mas essa relação não deve ser pensada enquanto dependência que confere valor maior à obra que ‘veio primeiro’, ou seja, a literatura não tem de ser vista como uma mídia superior por ter vindo dela a obra de inspiração para o texto adaptado. Hutcheon (2011), baseada nos estudos de Barthes (1997), ensina que as adaptações são textos que possuem uma “estereofonia plural de ecos, citações e referências”. Nesse sentido, acrescenta que, mesmo que as adaptações sejam objetos estéticos em seu próprio direito, só serão consideradas enquanto adaptações se forem entendidas como obras “inerentemente duplas” ou “multilaminadas”. Elas são obras ‘segundas’, mas não secundárias. A obra original exerce relação com a adaptada no sentido de que foi a partir dela que a ‘segunda’ foi criada, mas isso não significa que ela é necessária para a compreensão da adaptação. É assim que penso, então, as adaptações, como ‘diálogos’ autônomos com o texto original, não como um texto secundário e dependente do original para a sua realização. Clüver (que é quem usa o termo ‘transposição intersemiótica’ que utilizo neste trabalho) também discute sobre as relações de ‘intermidialidade’ que as artes possuem, ou seja, as relações concernentes às diferentes mídias. Nesse contexto, define que o texto intersemiótico ou intermídia recorre a dois ou mais sistemas de signos e/ou mídias de uma forma tal que os aspectos visuais e/ou musicais, verbais, cinéticos e performativos dos seus signos se tornam inseparáveis e indissociáveis (CLÜVER, 2007, p.20). Considerando, desse modo, o corpus selecionado para essa pesquisa, tal conceito é aplicável uma vez que, para Oliveira (2002), a música se caracteriza por uma pluridimensionalidade que nos permite entendê-la em sua realidade física enquanto uma arte de movimentos no espaço sonoro concreto, não só mental. Acrescenta ainda que, “a sonoridade literária apela somente para a voz humana, seja ela audível, ou silenciosa e mental, enquanto que a música recorre também a objetos fabricados, os instrumentos” (OLIVEIRA, 2002, p. 37). Dessa maneira, a canção é vista como uma mídia de essência dupla, que conjuga o material escrito (a letra da música) com o material sonoro, composto esse, então, não apenas pela interpretação vocal (entonação de voz, timbre, etc), mas também pela sonoridade complementar que os instrumentos musicais exprimem e contribuem para a produção dos sentidos. O mesmo ocorre com a tragédia shakespeariana. Por se tratar de um texto dramático, seu primeiro intuito é ser encenado, utilizando atores, palco, figurino, etc, para que isso ocorra. Mas, antes da encenação, temos a produção do texto escrito, que, por sua vez, é constituído, também de elementos próprios (direções de palco e, em sua maioria, o discurso direto como parte estruturante do gênero). De acordo com Costa (2007, p. 107), “a canção é um gênero híbrido, de caráter intersemiótico, pois é o resultado da conjugação de dois tipos de linguagens, a verbal e a musical (ritmo e melodia)”. Nesse sentido, o material audível do CD é considerado, então, nesse seu status de gênero duplo, que é, além disso, chamado por Costa de um gênero que exige uma “tripla competência”, ou seja, a verbal, a musical e a lítero-musical, “sendo esta última a capacidade de articular as duas linguagens” (COSTA, 2007, p. 107). Tendo isso em vista, o material audível não pode ser entendido apenas como a representação da mídia escrita por meio da interpretação vocal, pois cairíamos no reducionismo de colocar a sonoridade unicamente enquanto um veículo para a representação da escrita. Por outro lado, a letra da música tem sua existência essencial, uma vez que se configura enquanto o registro do material a ser cantado. Desse modo, “a canção não é nem exclusivamente texto verbal, nem exclusivamente peça melódica, mas um conjugado de duas materialidades” (COSTA, 2007, 108). Ela, por si só, é multimodal. O mesmo pode ser aplicado ao teatro. Além disso, Oliveira aponta uma intrínseca relação entre as duas mídias: “[...] música e literatura têm em comum um material parcialmente semelhante, o som, representado visualmente na partitura musical e no texto impresso. Ao som em si e por si da música corresponde o com articulado da linguagem verbal. Há, de um lado, um discurso que é também si, isto é, entonação e ritmo. Do outro, um matéria sonoro que se superpõe e se organiza em grupos animados pelo ritmo, mas percebidos de forma diversa, por meio da harmonia vertical e do contraponto horizontal. Daí a dificuldade de precisar a noção de ritmo, que se encontra nas duas artes. A literatura é ritmo, a música é ritmo. Mas o som na música é animado por um ritmo próprio, enquanto na literatura é também impregnado pelo sentido do discurso” (OLIVEIRA, 2002, p.38, 39). Assim, além de o texto dramático, então, ser visto como um texto que tem seu ritmo próprio, cheio de sentido, ele tem o seu outro lado que é o espetáculo em si, a representação da palavra escrita, a encenação. Temos ainda, ao nos depararmos com o encarte do CD do projeto em questão, as letras das músicas, apresentadas como o registro do material musical no veículo ‘encarte’, têm, além da sua configuração enquanto parte do gênero ‘canção’ mencionada anteriormente, uma outra configuração, que pode ser considerada autônoma a essa. No encarte, elas funcionam como partes de um todo que não precisa, essencialmente, da mídia musical para ser realizada. Em um encarte de um CD comum, temos, basicamente, os dados essenciais da produção do CD e as letras das músicas. Já no encarte do projeto William Shakespeare’s Hamlet, temos mais que apenas a transcrição das letras das músicas; podemos nele observar um outro texto escrito que conta a história do príncipe da Dinamarca. Entremeados às letras das canções (que aqui se configuram, na realidade como partes de uma história), temos 14 poemas, 21 ‘direções’2 dadas por um narrador, além de imagens que complementam a significação do texto como um todo. Tudo isso (letras das músicas, poemas, direções e imagens) formam um texto coeso. Temos, então, em um projeto, duas mídias contando a mesma história, mas de maneiras diversas. Entretanto, nesse artigo, ainda não me aterei ao encarte do CD, nem em nenhuma das mídias em toda a sua essência. Meu corpus de trabalho não se fixa na representação teatral de Hamlet, nem no objeto sonoro da canção. Focar-me-ei no material escrito que baseia as duas outras vertentes das mídias. Pensemos, então, as duas mídias enquanto multimídias, multimodais, uma vez que conjugam mais que uma forma de expressão. O teatro não é só representação, mas também o texto escrito e a música (a parte às músicas instrumentais) não é só material sonoro, mas é também letra. 2 ‘Direções’ foi o nome por mim encontrado para dar aos trechos que são colocados entre os poemas e as letras das músicas no encarte. Em outras pesquisas, uma nomenclatura posterior poderá substituir essa. A tragédia de Hamlet no Heavy Metal O heavy metal, visto por muitos como um gênero musical marginal, ‘popular’ – por ser distante do erudito – grosseiro e obscuro, surge nos anos 70, com o intuito de radicalizar os ideais de contestação que o rock, primeiramente, havia pensado, mas que fracassou (NAKAMURA, 2009). Entretanto, é na década de 80 que teve sua maior popularidade e influência. Walser (1993) tira (ou ameniza, talvez) esse rótulo de ‘rudeza’ dizendo que, apesar de preferirem participar de criações coletivas e priorizarem a oralidade derivada da tradição das músicas populares, os músicos do heavy metal são grandemente influenciados pelas práticas dos conservatórios de músicas. Além disso, elegendo como tema predominante do gênero o mundo das sombras e das forças ocultas, utilizando-se de imagens grotescas e alusões à morte, e buscando nas guitarras distorcidas e no pesado ritmo binário da bateria uma sonoridade agressiva e até primitiva (no sentido psicanalítico), o rock pesado, aponta Jannotti (1994, p. 9 apud NAKAMURA, 2009, p.42), buscaria “uma vivência simbólica longe da serialidade do cotidiano e sua extrema racionalização”. Tenta, então, de certa maneira, se afastar das esferas populares de consumo e se caracterizam pelo tom de contestação cultural. Ficavam, propositadamente, no submundo, talvez numa tentativa de negação e protesto contra a sociedade que eles se encontravam. Diante de tal fato, parece uma dessintonia dizer que o heavy metal encontra relações com a literatura. Mas não é. Literatura também é contestação. Também é negação de muitos valores impostos pela sociedade. É um prisma que projeta problemas a serem questionados. William Shakespeare, um dos maiores dramaturgos da literatura, é um exemplo disso. Tratando muitas vezes de temas polêmicos, toca em pontos fulcrais da condição humana. E a vingança e a obsessão são temas seminais de uma das tragédias fundamentais da literatura inglesa e também universal: Hamlet. Em resumo, Hamlet descobre, por meio do fantasma do antigo rei da Dinamarca, seu pai, que ele havia sido assassinado por Claudius, irmão do rei. Depois da descoberta, seu único pensamento é vingar-se de seu tio que, acaba por desposar Gertrude, viúva do rei. Contudo, a essência do príncipe Hamlet tende mais à reflexão do que ao assassinato. O resultado disso mostra que o fim do Príncipe da Dinamarca é a sua própria destruição. William Shakesperare’s Hamlet, de iniciativa da Die Hard Records, lançado em 2001, apresenta 193 faixas; 14 delas são cantadas por 14 bandas4 do cenário heavy metal brasileiro 3 1. From Hades to Earth; 2. Sweet Flavour of Justification; 3. The Happiness of the Queen; 4. Visions of the Beyond; 5. Villainy; 6. The King’s Returned; 7. The Truth Appears; 8. The Play; 9. A Letter to Ophelia; 10. em suas variadas vertentes a fim de contar e cantar a história de Hamlet. Na última canção, To Be..., temos a reunião de todos os vocalistas das bandas participantes do projeto, além da participação especial de André Matos, um dos mais famosos vocalistas do cenário metal tupiniquim. Essa última canção tem a melodia composta pelo maestro José Luiz Ribalta e é acompanhada por uma orquestra. Dentre essas 15 canções, são interpretadas 4 vinhetas que as separam em ‘4 atos’. Todas as letras das canções do álbum foram compostas pelo poeta Adriano Villa, e transpostas para o inglês arcaico por Alexandre Calliari. Segundo dois dos produtores executivos do projeto, Fausto Mucin e André Mesquita, em entrevista ao site Whiplash5, as letras das músicas foram entregues para cada banda considerando-se o estilo musical de cada uma e o momento da tragédia que a canção representava. A canção escolhida para análise é a sexta das dezenove, intitulada The King’s Returned (O Rei Retornou). Ela é interpretada pela banda de Jundiaí, São Paulo, Krusader, formada em 1989 e que se caracteriza como banda do gênero heavy e power metal. Os membros da banda que participaram do projeto foram, Rafael Reis (baixo e violino), André Almeida (bateria), Paulo Soares (guitarras), Fábio Thesta (teclados), e Rick Ricci (vocais), além de contarem com a participação de Mário Linhares (da banda Dark Avenger) como convidado especial. Uma das cenas mais marcantes da peça faz parte do ato I, cena V quando Hamlet se encontra com o fantasma de seu pai. Em cenas anteriores, Horatio e Marcellus veem um fantasma e acreditam ser ele o fantasma do pai de Hamlet. Então, contam sobre o acontecimento ao príncipe que, ao saber, suspeita que algo está errado, como pode ser visto no seguinte monólogo: Hamlet: [...] o espírito de meu pai! E armado! Nem tudo está bem; Suspeito de alguma felonia. Queria que já fosse noite! Te contém até lá, meu coração! A infâmia sempre reaparece ao olhar humano, Mesmo que a afoguem no fundo do oceano (SHAKESPEARE, ato I, cena II)6. Expressa nesse sentido a suspeita de que algo nefasto aconteceu no reino da Dinamarca, uma vez que o espírito de seu pai, que deveria descansar em paz, está vagando e Dagger of Words; 11. Prayers in the Wind; 12. Stormy Nights; 13. Hands of Fury; 14. Hidden by Shadows; 15. Mandate for Freedom; 16. Trap; 17. Good by my Dear Ophelia; 18. The Last Words; 19. To Be. 4 São elas: Delpht; Santarem; Hammer of the Gods; Krusader; Nervochaos; Symbols; Hangar; Torture Squad; Fates Prophecy; Tuatha de Dannan; Eterna; Vers Over; Imago Mortis e Sagga. 5 Entrevista completa disponível em: http://whiplash.net/materias/entrevistas/001406-hamlet.html; acesso em 23/10/12. 6 Os excertos de Hamlet aqui colocados são da edição de 2011, da editora LPM, traduzidas por Millôr Fernandes. ainda traz consigo suas armas de guerra. Tal passagem, assim como na tragédia, é apresentada no projeto Hamlet antes da cena do encontro entre pai e filho. No projeto, temos quatro ‘vinhetas’ entremeadas às canções e que acabam por fazer o papel de separar as canções em atos. A vinheta (a segunda do CD), instrumentalizada a partir de flautas, é intitulada por Villany e foi composta por José Luiz Ribalta, FLUTE VIGNETTE VILLAINY "My father's ghost carries weapons No, things are not going well I suspect of some villainy Let's wait for the night to come And until then my soul will stay calm Even if the whole land tries to hide them At the end, the evil acts will appear!" A vinheta introduz a canção e reproduz o solilóquio de Hamlet transposto anteriormente. Mostra a preocupação de Hamlet com algo que tenha acontecido no reino e descreve também a sua certeza de que, se algo realmente aconteceu, a verdade aparecerá. Além disso, transpõe um verso que remete a uma explicação de Horatio a Marcellus sobre a condenação dos espíritos a unicamente poderem vagar durante a noite. Hamlet diz: “– Let’s wait for the night” (“– Vamos esperar pela noite”), pois o cantar do galo, considerado ‘trombeta da alvorada’, desperta o ‘Deus do dia’ e que, escutando esse sinal, os espíritos que vagam errantes, voltam aos seus túmulos (ato I, cena I). Após isso, a cena da conversa entre Ophélia e Laertes (ato I, cena III) não é demonstrada nesse momento do projeto, direcionando o receptor diretamente à cena do encontro entre Hamlet e o fantasma de seu pai, retirando também as partes em que Horatio e Marcellus participam. Hamlet, então, meio receoso em relação ao fantasma, (pois seres sobrenaturais eram vistos, na época, como sinal de mau agouro, como que se os fantasmas tivessem o poder de tomarem a forma de um humano para levar um vivo ao inverno), vai ao encontro do espectro de seu pai. Nesse encontro, o pai revela ao filho que fora assassinado por seu próprio irmão enquanto dormia e pede, então, que Hamlet busque por vingança. THE KING'S RETURNED Skies that art over my head Heaven or hell is this emissary from? Cheating my soul art my eyes! How canst such a resemblance exist? No! Among sun and moon Resemblance there is The most correct word for what I see Is: Equality This sensation that drowns my spirit Makes me call thee Hamlet, King of Denmark, my father! I do not fear for my life, because I'm so immortal as thee And there's no way to lose something That doth not has belonged to us Go ahead, I'll follow thee and soon I'll know the reasons... Why hath the king returned… Tell me, my beloved father What make thee rip out of thy shroud And walk once again in a world That doth not belong to thee anymore Tell me, lord of the lords, Owner of my soul Thou art so generous for giving me life Tell me what I canst do To bring thee peace And I shall satisfy thy will Thou hast broken the walls which Separate the worlds. Why? Thou hast broken the peace that awaits For us since born we wert Tell me father, I'm begging In the name of the years That I hast given thee All my honest feelings Primeiramente, Hamlet demonstra apreensão por não saber se o fantasma é enviado pelo céu ou pelo inferno, mas mal consegue acreditar na semelhança que seus olhos enxergam. O fantasma é muito parecido com seu pai, então, ele não tem o que fazer a não ser acreditar que o fantasma, é mesmo, seu pai. O refrão da canção, marcado na terceira estrofe, remete à resposta aos conselhos de Horatio para Hamlet não ir ao encontro do fantasma: Hamlet: Porquê? Qual é o medo? Minha vida não vale um alfinete E à minha alma ele não pode fazer nada, Pois é tão imortal quanto ele (SHAKESPEARE, ato I, cena IV). No verso seguinte, Hamlet deixa claro que seguirá o fantasma, certo de que descobrirá o que aconteceu. Então, nas próximas estrofes podemos entender que ele está sozinho com o fantasma e implora para que o pai lhe conte o motivo de ter saído de sua mortalha e voltado ao mundo dos vivos. Entretanto, temos, na canção toda, apenas a voz de Hamlet, clamando para que o fantasma do pai lhe traga à luz a verdade, e o pai, por sua vez, nada responde. Criase, dessa forma, um suspense em relação à resposta do pai e tal resposta só é dada na canção seguinte, The Truth Appears (A Verdade Aparece). Como o próprio título da canção diz, o rei retornou. A canção, desde a vinheta que a apresenta, demonstra ao receptor que algo de errado aconteceu no reino da Dinamarca. Como diria Marcellus: “– Something is rotten in the state of Denmark” (Há algo podre no reino da Dinamarca). Entretanto, nada é revelado ao receptor na letra da canção número seis. Na peça shakespeariana, fica claro o desejo do pai Hamlet de que o filho seja tão corajoso quanto ele um dia foi e vingue sua morte. Mas Hamlet filho não tem quase nada em comum com o pai, pois Hamlet “é um intelectual universitário, representante de uma nova era” (BLOOM, 2001, p. 484). Ele pensa, pondera, questiona, duvida e, eventualmente acaba por vingar a morte do pai, mas encontra também, seu próprio fim. Na canção, vemos apenas o lado ponderado de Hamlet que suspeita do fantasma, mas depois, por acreditar na semelhança que seus olhos encontram com a figura que era seu pai, ele implora para que a verdade seja contada. E a verdade tem de esperar até a outra faixa do CD. Conclusão As relações encontradas entre as artes são várias. Literatura e música, então, parecem ter uma afinidade muito grande em suas estruturas de funcionamento. Talvez, alguns pensem que o heavy metal, por ser visto como um gênero do submundo, não se relacionaria com a literatura, tão aclamada por sua erudição e beleza. Entretanto, ambos podem encontrar relações, e isso foi demonstrado pela amostragem do projeto brasileiro William Shakesperare’s Hamlet, especificamente, por meio da canção The King’s Returned. Nesse sentido, o tema principal da tragédia shakespeariana, a vingança e tudo que decorreu a partir dela na peça, pode encontrar relação com o tom de violência reconhecido na expressividade dos sons do heavy metal: o batido marcante das baquetas, das guitarras, das vozes, que, juntamente com as letras das canções, transformaram, remidiaram umas das mais fantásticas obras da literatura em música. Referências Bibliográficas BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. CLÜVER, Claus. Inter Textus / Inter Artes / Inter Media. In: Aletria: revista de estudos de literatura. v.14. Belo Horizonte: POSLIT, Faculdade de Letras da UFMG, 2007. p. 11-41. COSTA, Nelson Barros. As Letras e a Letra: o Gênero Canção na Mídia Literária. 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