EDUCAÇÃO INCLUSIVA NO BRASIL: PERCURSOS E PERCALÇOS Nerli Nonato Ribeiro Mori – UEM [email protected] Ao apresentar os dados do censo escolar de 2005, o Ministério de Educação indica que o atendimento inclusivo no Brasil passou de 24,7% em 2002 para 41% no ano pesquisado. Isto implica que o atendimento exclusivo em escolas e classes especiais tem diminuído significativamente. O que significam esses números? Qual é o contexto e sob que política educacional eles são produzidos? Para discutir essas questões, estabelecemos um panorama histórico que vai da segregação ao atendimento escolar inclusivo. Num primeiro momento são destacadas as formas de relação frente às pessoas com deficiência; desde a segregação e o isolamento na Idade Antiga, passando pelos atendimentos de caráter caritativo e assistencialista na Idade Média e a criação das primeiras instituições com fins educacionais. A seguir são apresentados os movimentos de integração e de inclusão escolar com ênfase em questões educacionais brasileiras. 1. Da segregação ao atendimento educacional O início do cristianismo e a propagação de uma moral judaico-cristã contribuíram para romper com a segregação, o abandono e o extermínio que marcavam a relação com as pessoas que apresentavam características especiais que as diferenciavam dos demais componentes dos grupos aos quais pertenciam. Atitudes de tolerância e resignação predominaram na Idade Média; cuidar de doentes, deficientes e parias passou a ser considerado um caminho para se chegar ao céu. Imbuídos desse espírito, foram criadas – especialmente nos séculos XVI. XVII e XVIII – instituições cujo atendimento tinha caráter 1 assistencialista e de caridade. Para elas eram enviados os loucos, os doentes, os filhos dos mendigos e vagabundos; as crianças que se portavam mal, ou seja, vagabundeavam, mendigavam, roubavam ou se prostituíam; os órfãos, os bastardos e os “expostos” ou abandonados e também as pessoas com deficiência. Somente no final da Idade Média e início do século XIX foram escritas as primeiras obras sobre deficiências e criadas as primeiras instituições voltadas para a educação de pessoas com deficiências. Como explica Mazzota (2003), a partir do século XVII passou a imperar a idéia de que as pessoas com deficiência requeriam atendimento especializado. Nesse período foram criados os primeiros métodos de ensino para pessoas com deficiência, marcando, assim, o início da Educação Especial. Como as principais iniciativas na área são feitas por médicos, esse início é marcado pelo modelo biológico-clínico, fazendo com que o atendimento fosse marcado pelo viés terapêutico e rígida classificação etiológica. Apesar de tão criticado em nossos dias, é importante lembrar que os médicos foram os primeiros a apontar e propor a necessidade de escolarização para uma população comumente internada em anexos a hospitais psiquiátricos, principalmente no caso da deficiência mental e de quadros que hoje poderiam ser considerados como condutas típicas, por exemplo, o autismo ou outras manifestações condutuais peculiares de síndromes e de quadros psicológicos, neurológicos ou psiquiátricos que ocasionam dificuldades acentuadas na aprendizagem e prejuízo no relacionamento social. Assim, nos primórdios do atendimento educacional especializado destacam-se os trabalhos de Jean Marc Itard (1774-1838), o qual ficou conhecido pela educação de Vítor, o “selvagem de Aveyron”, cujo norte era a educação dos sentidos por meio da instrução individual, da programação sistemática de experiências de aprendizagem, da motivação e da recompensa. Eduard Seguin (1812-1880), aluno de Itard, criou o primeiro internato público da França para crianças com retardo mental. Emigrou para os estados Unidos e em 1907 publicou o livro Idiocy and its treatment by the Physiological Method, no qual apresentava um programa para escola residencial. 2 Os métodos de Itard e Seguin foram aprimorados pela médica italiana Maria Montessori (1870-1956), a qual criou programas de treinamentos para crianças com retardo mental cujo objetivo era a "auto-educação" pelo uso de materiais didáticos (blocos, encaixes, recortes, objetos coloridos e letras em relevo). Em 1882, com a obrigatoriedade do ensino primário na França e a configuração de um grupo de alunos que apesar de não ter características aparentes de deficiência, apresentava dificuldades para aprender do mesmo modo que os colegas. Como explica Simon (1991), para os atrasados escolares foram então criadas, em 1909, as “classes e escolas de aperfeiçoamento” (p. 15). A obrigatoriedade de educação para todos, o conseqüente aumento de alunos e a insuficiência de professores deram origem a classes numerosas; a colocação dos alunos com deficiência nas classes ou escolas especializadas passou a ser uma constante, constituindo-se um panorama de segregação escolar. Ao longo das décadas após a Segunda Guerra Mundial, a segregação escolar ampliou-se ainda mais, pois se multiplicaram as categorias de crianças que deveriam freqüentar estabelecimentos ou classes especiais. Por meio do que Simon (Ibid) chama de despistagem precoce, realizadas antes da entrada na escola primária, as estatísticas oficiais passaram a classificar as crianças e adolescentes em quinze categorias. A França, em 1981, tinha um total de 384.633 crianças as quais, segundo os critérios estabelecidos, deveriam receber ensino especial. A idéia de especialização dos professores e dos estabelecimentos foi ampliada para países como Canadá e Estados Unidos. Uma justificativa para a chamada “febre segregativa” é a de que seria mais barato concentrar especialistas e materiais no menor número de estabelecimentos e aí atender o maior número possível de pessoas com quadros semelhantes. Na década de 60 as políticas de segregação passaram a ser fortemente criticadas, o que deu início aos movimentos em prol da integração de pessoas com deficiência, questionando-se não só a segregação social e escolar, mas também as atitudes sociais frente a estas pessoas. 3 2. Da Integração à Inclusão Um conceito fundamental para se entender a Integração é o de normalização, o qual significa tornar acessível às pessoas com deficiência − ou àquelas socialmente desvalorizadas − condições e modelos de vida semelhantes aos disponíveis, de um modo geral, ao conjunto da população. O conceito é derivado dos movimentos deflagrados por pais e organizações ao final da década de 60 e início dos anos 70 do século XX nos países nórdicos, no intuito de tornar possível a participação de pessoas com deficiência nos mesmos espaços e contextos que as pessoas ditas normais. Nesse contexto, o atendimento de pessoas com deficiência nos centros de educação especial passou a ser considerado inadequado e até mesmo uma afronta aos direitos humanos devido à segregação e isolamento em que se encontravam as pessoas neles inseridos. Os esforços centraram-se em integrar as pessoas com deficiência nas escolas regulares. Num primeiro momento foram formadas classes especiais em escolas regulares e, mais tarde, foi idealizado o atendimento especializado a alunos especiais que freqüentavam as classes regulares em tempo parcial. Apesar do princípio de normalização, a integração escolar foi dominada na prática pela classificação a partir do déficit dos alunos, ou seja, dependendo da capacidade do aluno especial em adaptar-se à escola tal como consolidada. Como observam Glat e Fernandes (2005) este modelo, “que até hoje ainda é o mais prevalente em nossos sistemas escolares, visa preparar alunos oriundos das classes e escolas especiais para serem integrados em classes regulares recebendo, na medida de suas necessidades, atendimento paralelo em salas de recursos ou outras modalidades especializadas” (p. 37-38). Conforme as autoras, o pressuposto de que “o deficiente pode integrar-se na sociedade” (Ibid, p. 38), tornou-se a matriz filosófica e científica da Educação Especial e provocou transformações radicais nas políticas públicas, na qualidade dos serviços e na definição de novos campos de investigação. Quanto a estes últimos, temas como o papel da interação social e o da mediação na aprendizagem ocuparam o centro das atenções dos pesquisadores, demonstrando que as pessoas com deficiência podiam 4 construir conhecimentos e aprender conteúdos escolares. Além disso, serviços e atendimentos especiais foram inseridos no sistema geral de ensino. Apesar dos avanços, prevalecia ainda a necessidade de adaptação dos alunos com deficiência à escola; muitos permaneciam excluídos. Não só eles estavam fora do sistema escolar, mas também aqueles que escapavam ao padrão estabelecido. Teve início, então – em meados dos anos 80 e princípio dos 90 – o movimento pela escola inclusiva, ou seja, a defesa de um único sistema educacional para todos os alunos. Para tanto, seria necessário reformular os currículos, as formas de avaliação, a formação dos professores, a partir de uma política educacional consistente, planejada para um longo prazo e voltada para a escolarização de todos. Sob o paradigma da inclusão, os sistemas devem ser adequados de modo a eliminar barreiras físicas, atitudinais e sociais que impedem a participação de algumas pessoas. Vários eventos mundiais foram realizados em prol da inclusão. Dentre eles, dois foram especialmente definidores para o estabelecimento das políticas educacionais. Um deles foi a Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada em Jomtien, na Tailândia, em 1990. Nessa ocasião, o Brasil fixou metas para melhorar o seu sistema educacional, inclusive aquele voltado para o alunado especial. O outro evento foi a Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais: Acesso e Qualidade, realizada em Salamanca, na Espanha, em junho de 1994. Organizado pelo governo espanhol em cooperação com a UNESCO, o encontro contou com cerca de trezentos representantes de noventa e dois governos e vinte e cinco organizações internacionais. Dos trabalhos ali realizados resultou a Declaração de Salamanca, cujo princípio fundamental é o de que as escolas devem acolher todas as crianças, independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas ou outras. Para Sánchez (2005), a conferência realizada em Salamanca foi a que contribuiu de maneira mais decisiva para impulsionar a educação inclusiva em todo o mundo. 5 Conforme a Declaração, toda criança tem direito à educação e a ela deve ser possibilitado atingir e manter o nível adequado de aprendizagem. No caso daquelas com necessidades educativas especiais “devem ter acesso às escolas comuns que deverão integrá-las numa pedagogia centralizada na criança, capaz de atender a essas necessidades” (BRASIL, 1994, p.10). A questão pedagógica é um dos maiores desafios à inclusão. Oferecer um ensino ao mesmo tempo individualizado e grupal é uma tarefa muito complexa porque envolve a superação da visão do déficit individual e ênfase na proposta educativa. Não é fácil romper com prática da homogeneização, acabar com a rotulação, flexibilizar currículos e respeitar os diferentes ritmos e estilos de aprendizagem. No Brasil, soma-se a esse obstáculo o problema do número de pessoas com necessidades especiais fora de qualquer sistema escolar. Como denuncia Mendes (2002), a despeito da retórica da integração escolar e da inclusão, vivemos no Brasil uma situação de exclusão significativa. Ou seja, como ressalta a autora, as metas assumidas em 1990 ainda não foram cumpridas. Os gestores da Educação Especial não pensam assim. Para eles, a elevação da taxa de inclusão de estudantes com necessidades educacionais especiais em classes comuns e a redução do crescimento das matrículas em escolas especializadas ou classes especiais consolida a tendência de inclusão. A Educação Especial não mais é concebida como um sistema educacional paralelo. Segundo o documento Diretrizes Nacionais para Educação Especial na Educação Básica, a Educação Especial “é uma modalidade da educação escolar e como tal organiza-se de modo a considerar uma aproximação sucessiva dos pressupostos e da prática social da educação inclusiva” (BRASIL, 2001, p. 11). Destarte o reconhecimento da importância dos pressupostos e da prática social da educação inclusiva, na prática a escola inclusiva não se configura no Brasil como uma proposta educacional amplamente difundida e aceita. Glat e Fernandes (2005) explicam que apesar de experiências promissoras nos últimos anos, “a grande maioria das redes de ensino carece de condições institucionais necessárias para sua viabilização” (p. 39). 6 Dentre os defensores da inclusão, há um consenso de que ela exige uma reorganização de base das escolas e salas de aula regulares, cujas mudanças devem ser voltadas para atender a diversidade; é necessário abandonar a expectativa e prática voltada para a homogeneidade e substituí-las pelo princípio da homogeneidade da heterogeneidade. Mittler (2005) propõe que essas mudanças envolvem três níveis: • Todas as crianças freqüentando a escola local, na sala de aula regular e com o devido apoio; • Todas as escolas reestruturando seu programa de ensino, pedagogia, avaliação e sistemas de agrupamento para garantir acesso e sucesso a todas as crianças da comunidade; • Todos os professores aceitando a responsabilidade pelo aprendizado de todas as crianças, recebendo treinamento contínuo, apoio do diretor, do corpo administrativo da escola, de seus colegas e da comunidade. A proposta de escola inclusiva rompe, portanto, rompe com o modelo escolar que conhecemos. Trata-se de uma educação na e para a diversidade, voltada para todos os alunos, com todos os membros da comunidade envolvidos nas tomadas de decisões. Tanto os alunos como os profissionais e recursos financeiros e educacionais devem estar integrados numa síntese superadora do individualismo. Ressalte-se mais uma vez que a educação inclusiva não se refere apenas às deficiências, mas à educação de todas as pessoas, independente de condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas ou outras. Como estratégia básica para efetivar a educação inclusiva, Stainback e Stainback (1999) propõem que sejam previstas adaptações curriculares, de modo a adequar o currículo às necessidades dos alunos, bem como a adoção de mecanismos de flexibilidade dos objetivos, para que eles possam ser modificados quando necessário. Outra estratégia essencial é a formação profissional e atitudinal dos educadores e gestores da educação, pois a escola inclusiva se configura como um novo espaço profissional, didático, curricular, organizativo e institucional, o 7 qual requer uma formação pautada pela lógica da diversidade e da heterogeneidade. E isto implica, como afirma Torres-González (2002), em vias formativas que envolvem aspectos teórico-práticos e de atitudes e disposições. Efetivar a escola inclusiva é um processo que não se fará por imposições de leis ou de diretrizes políticas. As grandes mudanças são engendradas nas tensões e lutas pela satisfação de necessidades postas na produção da vida. Uma possibilidade de encaminhamento do processo é pensar uma política educacional promotora de práticas mais inclusivas que valorizem a criação e o fortalecimento de vínculos entre escolas regulares e escolas especiais. A legislação atual seria cumprida, segundo Mendes (2002), com a manutenção de um continuum de serviços de soluções, com ênfase na matrícula em sala comum − com o aluno e a escola recebendo apoios especializados de acordo com suas necessidades. A Educação Especial teria, assim, um caráter complementar, o que já está garantido pela Constituição, a qual estabelece em seu artigo 208, o atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, “preferencialmente, na rede regular de ensino”. Para Mantoan (2005), o caráter de complementaridade significa que se, por um lado o atendimento especializado não substitui o trabalho escolar realizado em sala de aula com todos os alunos – com e sem deficiência – por outro, ele deve ser disponibilizado em todos os níveis de ensino (do básico ao superior). A autora ressalta também que ao considerar a Educação Especial como uma modalidade de ensino, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBN/96 garante aos alunos com deficiência, especialmente aos que estão em idade de cursar o Ensino Fundamental, o direito de ser matriculado e de freqüentar com regularidade classes comuns de escolas regulares, com alunos de sua faixa etária e de receber atendimento educacional especializado complementar. O caminho rumo a uma educação realmente inclusiva é longo, mas avanços significativos estão em processo, especialmente em termos de políticas educacionais e legislação. O grande desafio é proporcionar as condições necessárias e fazer cumprir o que está delineado. 8 3. Referências BRASIL. Constituição: República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. BRASIL. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE). Declaração de Salamanca e Linhas de ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília, 1994. BRASIL. Ministério da Educação / Secretaria de Educação Especial. Diretrizes Nacionais para a educação especial na educação básica. Brasília: MEC/ SEESP, 2001. http://portal.mec.gov.br/seesp. BRASIL. Ministério da Educação/Secretaria de Educação Especial/ Coordenação Geral do Planejamento. Números da Educação Especial no Brasil. Brasília: MEC/SEESP, janeiro de 2006. http://portal.mec.gov.br/seesp GLAT, Rosana, FERNANDES, Edicléa Mascarenhas. Da educação segregada à educação inclusiva: uma breve reflexão sobre os paradigmas educacionais no contexto da educação especial brasileira. 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