prescrição disciplinar regida pelo direito penal - sspds-ce

Propaganda
PRESCRIÇÃO DISCIPLINAR REGIDA PELO DIREITO PENAL
José Armando da Costa
Advogado e Conferencista
Sumário: 1 Tópicos introdutórios. 2 Regência penal da prescrição disciplinar.
3 Predominância da instância penal. 4 Paralelismo prescricional das
instâncias penal e disciplinar. 5 Prejudicialidade penal 6 Falho critério do
recebimento da denúncia. 7 Coisa julgada criminal. 8 Enquadramento
múltiplo para se esquivar da prescrição. 9 Prescrição retroativa impeditiva do
exame de mérito. 10 Empréstimo ao Direito Penal. 11 Considerações finais
1 TÓPICOS INTRODUTÓRIOS
Diferentemente do Direito Penal — onde, entre outros traços
substanciais de distinção, a prescrição ataca tanto o crime quanto a sanção
imposta —, no campo do Direito Disciplinar, somente se verifica, pelo
perpassar do tempo, a extinção da infração funcional.
Por decorrência do fundamental princípio da segurança jurídica, não
poderia o agente passivo de qualquer relação jurídica — quer seja pública ou
privada — ficar indefinidamente à mercê do arbítrio do titular de um direito.
Tal circunstância, caso fosse admitida pelo direito, implicaria impor ao
devedor, ou ao réu, uma punição perpétua de desassossego.
Daí porque a regra da segurança e certeza do direito impõe limites a
tais descomedimentos.
No setor do Direito Administrativo Disciplinar, não fosse o regramento
da prescrição, poderia o servidor possivelmente faltoso ou inocente ficar —
por muito mais tempo que o devido ou pela sua vida funcional inteira —, na
dependência exclusiva da vontade dos seus superiores hierárquicos. Isso
seria, por outro lado, muito maléfico à ordem disciplinar da repartição.
Essa é a razão pela qual, nos ordenamentos jurídicos dos países
civilizados, a fluência do tempo gera relevantes efeitos na área do direito. O
decurso de certos e previstos lapsos temporais, associado à inércia do titular
de um direito, pressiona a incidência, dependendo do caso em concreto, da
decadência, da prescrição, da preclusão ou da perempção. Conquanto se
aconcheguem em origem comum — o perpassar do tempo — destaque-se
que cada um desses institutos tem as suas características próprias. Não
constituindo tal discriminação preocupação deste tema, que vai tratar, como
temática nuclear, da prescrição disciplinar ordenada pelo Direito Penal.
Todavia, vale adicionar que tais categorias jurídicas não visam, com
exclusividade, reprovar a inação dos detentores de direito, como também se
preordenam a apaziguar a convivência dos cidadãos na coletividade,
garantindo-lhes e assegurando-lhes a certeza das relações de direito.
Caso o titular de certo e determinado direito pudesse dele usufruir a
qualquer tempo, vulnerada restaria à tranqüilidade e o sossego da
coletividade, pois assim não haveria segurança, nem, muito menos, certeza
do direito.
2 REGÊNCIA PENAL DA PRESCRIÇÃO DISCIPLINAR
O Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União (Lei
8.112/90), no seu art. 142, incisos I, II e III, preceitua que
a prescrição
disciplinar ocorrerá nos seguintes lapsos: a) em cinco anos — quando se trate
de transgressões puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou
disponibilidade e destituição de cargo em comissão; b) em dois anos —
quando seja caso de falta disciplinar que comine pena de suspensão; e c) e
em cento e oitenta dias — nas hipóteses de advertência.
Já o parágrafo 2º do dispositivo legal mencionado — a exemplo do que
ocorre em relação a quase todos os estatutos das outras esferas da nossa
república federativa —, institui que “os prazos de prescrição previstos na lei
penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime”.
Pois bem, a infração disciplinar que seja considerada também como
crime, pela lei penal, prescreve em igual fluência de tempo. Até ai, tudo bem,
não há nenhuma dificuldade prática em se aplicar essa regra de prescrição:
se uma mesma conduta anômala, no atinente a todos os elementos
componentes de sua antijuridicidade, constitui tanto delito disciplinar quanto
penal, é compreensível a regra de que ambos devam prescrever em igual
tempo. Por outras palavras: se a falta disciplinar prevista na lei funcional
aplicável é também havida como crime na lei penal, e este prescreve em dez
anos, logicamente que, por força dessa norma instituída no §2º do artigo 142
da Lei 8.112/90, a extinção da pretensão punitiva daquela ocorre no mesmo
prazo deste, ou seja, em igual decênio.
Nada obstante, advirta-se, desde logo, que a questão não parece ser
tão simples assim. Por primeiro, vale indagar: a quem compete estabelecer
esse juízo de similitude? À instância disciplinar ou à penal? Predomina a penal
ou a disciplinar, ou ambas são dotadas de igual força? E mais, essa
equivalência é rigorosa ou de mera aproximação? O abandono de cargo,
como delito disciplinar, equivale necessariamente ao tipo penal previsto no
art. 323 do Código Penal?
Para o Direito Penal, tal ilicitude resta configurada quando o agente
abandona “cargo público fora dos casos permitidos em lei” (art. 323 do CP).
Já em termos de Direito disciplinar, “configura abandono de cargo a ausência
intencional do servidor ao serviço por mais de trinta dias consecutivos” (art.
138 da Lei 8.112/90).
A simples leitura dos dispositivos legais referidos já demonstra de
pronto que essas duas figuras delituais não são absolutamente semelhantes.
O abandono criminal ocorre em qualquer quantidade de dias, desde que a
ausência do servidor não seja permitida por lei e que o seu não
comparecimento apresente potencialidade de risco ao regular funcionamento
da repartição referente.
Fazendo alusão ao abandono criminal, tipificado no art. 323 do Código
Penal, preleciona o saudoso E. Magalhães Noronha:
A lei tem em vista a regularidade e normalidade da função
pública, que não pode existir sem a continuidade do
exercício do funcionário. A máquina administrativa não
pode estacar a toda hora com a ausência do servidor,
provocando interrupção, perturbando a boa ordem e
harmonia que deve reinar, a fim de que sua atividade se
desenvolva de maneira normal. A lei fala em abandonar
cargo público. O conceito de abandono está subordinado à
probabilidade de dano ou prejuízo. O afastamento de
funcionário que não crie esse perigo não será abandono.
Tal acontece com cargos que têm substitutos que os
assumem, na ausência do titular, ex vi legis. Presente o
substituto,
ainda
que
aquele
se
tenha
afastado
indevidamente, não há dano para a administração pública,
em face da substituição imediata. (Direito penal. 19. ed.
São Paulo: Saraiva, 1992. v. 4. p. 274-275)
Não é outro o modo de ver de Damásio E. de Jesus (Direito penal. 6. ed.
São Paulo: Saraiva, 1995. v. 4. p. 160-161), Cezar Roberto Bitencourt
(Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 4. p. 433), Julio Fabrini
Mirabete (Manual de direito penal. 9. ed. São Paulo: Atlas, 1995. v. 3. p. 331),
Fernando Capez (Curso de direito penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p.
464), entre outros.
Referindo-se à idêntica figura do Direito Penal Italiano, preleciona
Manzini: “O objeto jurídico do abandono de cargo é o interesse concernente
ao funcionamento normal da administração pública, em sentido amplo,
atendendo, particularmente, à conveniência de assegurar, mediante a sanção
penal, a continuidade, a regularidade e a eficiência das funções públicas, dos
serviços públicos e dos de necessidade pública, contra o abandono individual
de um ofício ou de um serviço ou contra a obstrução individual, nos
mencionados ofícios ou serviços, independentemente do dano que do fato
ilícito tenha ou não resultado. Contudo, é preciso que haja decorrido tempo
suficiente ou se tenha dado por modo idôneo a concretizar a violação do
interesse tutelado, ainda que não se tenha verificado dano” (MANZINI,
Vincenzo. Trattato di diritto penale italiano, 1946, p. 337).
Confirmando a tese de que o abandono criminal (caput do art. 323 do
CP) somente se configura quando haja, no mínimo, probabilidade de dano ou
prejuízo, confiram-se estes fragmentos jurisprudenciais:
O
crime
de
abandono
de
função
pressupõe,
necessariamente, a conseqüente acefalia do cargo, isto é, a
inexistência ou ocasional ausência do substituto legal do
desertor. Estando presente funcionário a quem caiba a
substituição do ausente, não há, sequer, probabilidade de
dano, que constitui condição mínima para a existência do
evento criminoso. (TACRIM-SP – AC – Rel. Dínio Garcia – RT
451/423)
O legislador incluiu o abandono de cargo entre os ilícitos
penais, visando a não deixar paralisada a máquina
administrativa. Tal não acontece quando está presente o
funcionário a quem incumbe assumir o cargo na ausência
do ocupante; nesse caso, não havendo probabilidade de
dano, que é a condição mínima para a existência de um
evento criminoso, não se configura o delito do art. 323 do
CP. (TACRIM – AC – Rel. Cunha Bueno – RT 526/331)1
Em termos disciplinares, tal infração — presumindo de modo absoluto
(presunção jure et de jure) essa potencialidade de risco —, somente se
caracteriza quando a falta do agente público ao serviço se estenda por mais
de trinta dias consecutivos, e desde que seja essa a sua intenção (rectius:
quando haja ausência de causa justificante).
Se o funcionário ausenta-se de modo injustificado por mais de trinta
dias, caracterizado restará o abandono disciplinar, mas não necessariamente
o abandono criminal, pois que este, diferentemente daquele que presume o
risco funcional, exige que se prove as circunstâncias definidoras desse risco.
Havendo demonstração de risco potencial, a falta ao serviço por um só
dia configura o abandono criminal, não ocorrendo o mesmo em relação ao
delito disciplinar correspectivo, pois que nessa instância o fato signo
presuntivo do prejuízo funcional somente ocorre quando haja mais de trinta
faltas ininterruptas.
Tanto é verdade que, para a configuração penal do abandono, se exige
apenas a potencialidade de risco. A efetivação do prejuízo funciona não como
condição elementar do crime e sim como circunstância que o qualifica
(cominando pena mais severa), consoante o disposto no §1º do art. 323 do CP
(“Se do fato resulta prejuízo público”). Quando esse desserviço se verifica em
repartição localizada em faixa de fronteira, a potencialidade de risco,
adquirindo maior relevo, torna a conduta do agente ainda mais grave,
configurando, portanto, abandono qualificado, nos termos do §2º do
mencionado caput (“Se o fato ocorre em lugar compreendido na faixa de
fronteira”).
1
Corroboram tal ponto de vista os acórdãos publicados nas seguintes RTs: 5/33 e 34, 388/289,
451/423, 452/370, 501/276, 522/358, 526/331, entre outros.
Quando se penetra nessa quadra movediça, a compreensão segura e
exata do dispositivo legal mencionado (§2º do art. 142 da Lei nº 8.112/90)
passa a exigir maiores esforços exegéticos, cujo resultado, sem dúvida, não
se comporta nos lindes elásticos geralmente encontrados por arbitrárias
comissões de processo disciplinar. Estas, com o indevido adjutório do
dispositivo legal em comento, lançam mão desse instituto como quem dispõe
de um nariz de cera: ora colocam para um lado, ora, para outro. Se a infração
disciplinar, como crime, requisita maior tempo para a prescrição, forçam a
interpretação de similitude somente para esticar artificialmente o prazo da
prescrição disciplinar, maleficiando, de efeito, o servidor imputado.
Agem, assim e freqüentemente, no intuito de elidir as cominações
legais que são acenadas contra os desidiosos, de que é exemplo o disposto
no §2º do artigo 169 da lei acima referida (“A autoridade julgadora que der
causa à prescrição de que trata o art. 142, §2º, será responsabilizada na
forma do Capítulo IV do Título IV”).
3 PREDOMINÂNCIA DA INSTÂNCIA PENAL
De antemão, assinale-se que as instâncias penal, civil e disciplinar são
autônomas e independentes, não podendo, em princípio, a decisão de uma
influir na outra. As exceções previstas expressamente não admitem, por
diversas razões, que as decisões disciplinares repercutam no campo penal. Já
a recíproca, porém, não é verdadeira, uma vez que as decisões penais —
quando neguem categoricamente o fato ou sua autoria — fazem coisa julgada
nas outras instâncias.
Esse excepcional predomínio da sentença penal sobre os processos
civis e disciplinares decorre do fato de o princípio de ordem pública ser mais
denso na seara penal. Ademais, destaque-se que, em relação às demais, a
instância penal, a par de produzir conseqüências superlativamente mais
drásticas, é bem mais rigorosa em matéria de prova.
Tocante a esse aspecto do maior rigor probatório, vale reproduzir aqui
o seguinte trecho jurisprudencial:
A atividade jurisdicional, a nível penal, não define a
atividade a nível administrativo relativamente ao mesmo
fato, porque a exigência de prova da ilicitude penal é mais
rigorosa do que para a ilicitude administrativa. É mais
rigorosa porque, apesar de inexistir diferenças entre as
ilicitudes (penal, civil e administrativo), existe uma escala
de gravidade da mesma, ensejando com isso respectivas
sanções mais ou menos graves. O fato da prova dos autos
não ser admissível, em tese, para uma reprimenda penal,
pode ser mais do que suficiente para uma conseqüência
punitiva administrativa. (TRF – 2ª Região, Agravo de
instrumento nº 91220/RJ, 2ª Turma, Rel. Des. Federal Paulo
Espírito Santo, DOU 22.12.2004)
Contudo, há quem fundamente essa supremacia da decisão penal no
caráter lógico ou sistemático da ordem jurídica, não permitindo que decisões
desencontradas,
e
até
contraditórias,
desgastem,
desprestigiem
e
desacreditem as autoridades constituídas. Sem desmerecer tais asserções,
ressalte-se que elas são insuficientes para, de per si, justificar a supremacia
que as leis conferem às decisões de caráter penal (sentido estrito). Não fosse
assim, tais argumentos serviriam, igualmente, para conceder tal supremacia
em favor de qualquer uma das instâncias, ou até mesmo conferir
reciprocidade de influência entre elas, o que não ocorre.
Refutando com veemência esse ponto de vista, assinala o emérito e
saudoso mestre Francisco Campos:
E como os que invocam a mencionada razão não aceitam a
regra de reciprocidade de influência entre as coisas
julgadas em distintas jurisdições, não há como excluir como
improcedente a aludida razão, fechando-se, finalmente, o
circuito lógico em torno à única razão determinante do
caráter prejudicial da coisa julgada criminal, a saber, a
razão do maior peso ou da maior intensidade com que se
exteriorizam no Juízo Penal os motivos de ordem pública
que no civil (não penal) têm caráter mais remoto ou, se
quiser, de segundo plano. (in Direito administrativo. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos. v. 2. p. 367)
Pois bem, no que atine à exceção do princípio da independência das
instâncias, o nosso jus positum, auscultando as razões mencionadas,
somente confere caráter prejudicial à res judicata penal.
A esse respeito preceitua o Código de Processo Penal:
Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer
ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em
legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou
no exercício regular de direito. (art. 65)
E mais:
Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a
ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido,
categoricamente, reconhecida a inexistência material do
fato. (art. 66)
Fazendo coro com as disposições processuais acima transcritas,
assinala o nosso Código Civil que “a responsabilidade civil é independente da
criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre
quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo
criminal”.2
2
Art. 935 do Código Civil (Lei 14.406, de 10.01.2002).
Por sua vez, o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União
(Lei nº 8.112/90), fechando o mais coerente circuito de entrosamento dessa
matéria, preceitua: “A responsabilidade administrativa do servidor será
afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou
sua autoria” (art. 126).
Num arremate final, conclua-se que somente a instância penal, nas
circunstâncias excepcionais aludidas, pode encontrar incidental ressonância
nas áreas civil e disciplinar. Não sendo jamais possível o reverso.
4 PARALELISMO DAS INSTÂNCIAS PENAL E DISCIPLINAR
Todas as transgressões disciplinares previstas no Regime Jurídico dos
Servidores Públicos Civis da União (artigos 116, 117 e 132 da Lei nº
8.112/90), prescrevem — segundo o seu art. 142, incisos I, II e III —, em cinco
anos
(“quanto
às
infrações
puníveis
com
demissão,
cassação
de
aposentadoria ou disponibilidade e destituição de função”); em dois anos
(“quanto à suspensão”); e em cento e oitenta dias (“quanto à advertência”).
Donde se deduz que o paralelismo prescricional das infrações penal e
disciplinar somente ocorre em relação ao universo de crimes previstos no art.
132, inciso I, da Lei nº 8.112/90, que compreende todas as infrações penais
perpetradas por funcionário público contra a administração em geral. Tais
delitos encontram-se tipificados nos artigos 312 a 337 do Código Penal.
A prática de qualquer uma dessas infrações penais, salvante a
incidência do princípio constitucional da proporcionalidade,
3
3
pode, nos
Diz-se salvante o princípio constitucional da proporcionalidade para que não se enverede no absurdo
de demitir servidor público com base na prática de crime funcional dotado de pouquíssima gravidade,
de que são exemplos o peculato culposo (art. 312, §2º), a prevaricação (art. 319), a condescendência
criminosa (art. 320), a advocacia administrativa (art. 321), todos do Código Penal, entre outras
figuras, seria o cúmulo dos absurdos. Uma vez que tratar do mesmo modo quem tenha cometido
peculato doloso e quem tenha perpetrado peculato culposo, não só configura afronta ao princípio
termos do art. 132, inciso I, ensejar ao seu infrator a pena de demissão,
cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em
comissão.
Inexistindo justo título administrativo autônomo para punir, de que são
exemplo os casos previstos no inciso I do art. 132 acima mencionado
(hipóteses de crimes contra a administração pública), obviamente que é de
bom aviso a política jurídica que, cortando ensanchas a desencontros que
somente servem para desgastar e desacreditar os órgãos públicos,
estabeleça prazo uniforme para a prescrição nesses dois campos punitivos.
Daí a proclamação legal do §2º do art. 142 da Lei 8.112/90: “os prazos de
prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares
capituladas também como crime”.
Se a pena de demissão imposta ao servidor se escora no art. 132,
inciso I, combinado com o art. 138 (definição legal do abandono cargo), a
decisão da instância disciplinar, além de não depender da instância penal, se
sujeita à prescrição qüinqüenal instituída no §2º do art. 142, todos da Lei
8.112/90 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União). Todavia, se
a demissão for calcada nos termos do inciso I do art. 132 do Estatuto do
Servidor, combinado com o art. 323 do Código Penal, o prazo prescricional de
regência é o previsto na lei penal, que varia de acordo com a tipificação do
abandono criminal.
Tratando-se de abandono criminal simples (previsto no caput do art.
323), o prazo prescricional nas duas instâncias se concretiza com o decurso
de dois anos; enquadrando-se no parágrafo primeiro, em 4 anos, e, no
parágrafo segundo, em 8 anos.
constitucional da proporcionalidade — extraído da faceta substantiva da cláusula fundamental do
devido processo legal (due process of law) — como também arrosta o princípio constitucional da
isonomia, que não permite que se trate de modo igual circunstâncias tão diferentes.
Se o motivo de punir encontra exclusivo lastro na própria lei disciplinar
não há razão para que se aplique a norma do paralelismo prescricional (“os
prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações
disciplinares capituladas também como crime”). Vale dizer, se o abandono do
cargo atende a configuração prevista no art. 138 do estatuto federal,4 não há
por que fazer a regência penal. Existindo título disciplinar autônomo, não há
razão para que a administração se subordine à instância criminal. Mesmo
porque essa vinculação requesta que o decisório penal transite em julgado.
Se não fosse assim, estabelecido restaria o império da incerteza e da
incoerência, uma vez que, em tese, o abandono disciplinar poderia ser
arbitrariamente deslocado para o inciso I do art. 132 do estatuto federal
(combinado com o caput do art. 323 do CP), diminuindo, em favor do servidor
faltoso, o prazo prescricional de cinco anos para dois anos apenas.
5. PREJUDICIALIDADE PENAL
Como já elucidado em linhas atrás, as instâncias são, em princípio,
autônomas e independentes, não devendo uma subordinar a outra. Salvante
as exceções previstas nos artigos 65 e 66 do Código Processo Penal, 935 do
Código Civil e 126 do Estatuto Federal, onde é lançada a regra de que o juízo
criminal faz coisa julgada nas outras instâncias, quando as questões
relacionadas com o fato e sua autoria resultem de menção categoricamente
assentada na sentença penal.
Donde se conclui que a sentença penal que negue a existência do fato
ou que, mesmo reconhecendo a existência deste, negue incisivamente que o
servidor imputado seja o seu autor, repercutirá necessariamente para
absolvê-lo da condenação disciplinar, caso já tenha sido punido.
4
“Configura abandono de cargo a ausência intencional do servidor ao serviço por mais de trinta dias
consecutivos” (art. 138 da Lei 8.112/90).
Tais reflexos não subordinam, em princípio, a instância disciplinar, que
poderá
desenvolver-se
independentemente
da
penal,
embora
fique,
posteriormente e nesses casos referidos acima, sujeita a essas vicissitudes
reflexivas.
O mesmo não se poderá dizer em relação às hipóteses do art. 132,
inciso I, da Lei nº 8.112/90 (“crime contra a administração pública”), posto
que — constituindo o cometimento de tais crimes a única e exclusiva razão
da pena de demissão —, não deverá o servidor público ser punido sem o
advento da sentença penal passada em julgado.
Pois bem, inexistindo outro motivo fático, ou resíduo disciplinar,
suficiente e idôneo para sustentar a pena disciplinar capital, deverá
necessariamente ser aguardado o desfecho da instância penal para a
imposição de tal reprimenda.
A esse respeito, já havia pacificado o velho e extinto DASP que não
poderia “haver demissão com base no item I do art. 207 do (então) Estatuto
dos Funcionários, se não a precede condenação criminal” (Formulação nº
128).
Como bem demonstram os excertos jurisprudenciais transcritos abaixo,
não é outro o modo de ver das nossas mais elevadas Cortes:
Estando o decreto de demissão alicerçado em tipo penal,
imprescindível é que haja provimento condenatório trânsito
em julgado. Se de um lado é certo que a jurisprudência
sedimentada no Supremo Tribunal Federal indica o caráter
autônomo da responsabilidade administrativa, a não
depender dos procedimentos cível e penal pertinentes, de
outro não menos correto é que, alicerçada a demissão na
prática de crime contra a administração pública, este há
que estar revelado em pronunciamento do judiciário
coberto pelo manto de coisa julgada. (STF – Tribunal Pleno,
MS nº 21.310-8 – DJ 11.03.94 – Rel. Min. Marco Aurélio)
A autonomia das instâncias penal e administrativa é
firmemente reconhecida por esta Corte, ressalvando-se as
situações em que ocorre a repercussão dessa naquela, ou
seja,
quando
na
instância
penal
se
conclua
pela
inexistência material do fato ou pela negativa de sua
autoria e, ainda, quando o fundamento lançado na
instância administrativa refira-se à prática de crime contra
a administração pública. (STF – MS nº 22.076, Rel. Min.
Maurício Corrêa, DJ 16.10.95)
Constitucional – Administrativo – Mandado de Segurança –
Servidor público – Policial rodoviário federal – Ajuda de
custo em virtude de cessão – Demissão – Capitulação dos
fatos como crime – Necessidade da precedência do trânsito
em julgado de sentença penal condenatória – Afronta ao
princípio da ampla defesa. (STJ - Terceira Seção - Ms nº
6478/DF, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 25.09.2000, p. 110)
Servidor
público-militar.
Ilícito
penal.
Punição
administrativa. Policial que é excluído da corporação, por
fato tido como delituoso, sem o julgamento da Justiça
Criminal. Inviabilidade. Súmula nº 18 do STF. Segurança
concedida. Sendo imputado ao servidor um ilícito penal, só
é admissível a punição administrativa pela falta residual,
depois do julgamento pela Justiça Criminal. (Ac. da 4ª
Turma do TJPR – AC nº 15.658-9, DJPR 19.08.91, p. 11)
Infere-se, por fim, que somente com a superveniência da sentença
penal condenatória, com trânsito em julgado, reconhecendo haver o servidor
público praticado crime contra a administração, é que ele poderá ser
demitido nos termos do inciso I do art. 132 da Lei nº 8.112/90.
6 FALHO CRITÉRIO DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA
A incidência do disposto no §2º do art. 142 do estatuto federal (“os
prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações
disciplinares capituladas também como crime”) somente encontra regência
quando haja cognição penal. E esta somente resta satisfeita com o advento
da decisão condenatória não mais sujeita a recurso.
É curial que somente o Poder Judiciário, por meio da justiça criminal,
tem legitimidade constitucional para proclamar, com definitividade, a
existência de um crime. Somente depois desse reconhecimento judicial é que
poderá a infração penal servir de justo título para produzir os recepcionados
efeitos nas demais instâncias.
Para que resulte legitimada a regência da legislação penal para o
efeito do estabelecimento do prazo da prescrição disciplinar, nos termos do
§2º do art. 142 da Lei nº 8.112/90, não basta que haja regular apuração
criminal em andamento. E sim requer a existência de provimento criminal
trânsito em julgado.
Equivocadamente, alguns órgãos judicantes, para admitirem essas
excepcionais projeções da instância criminal, se apegam ao simples despacho
judicial de recebimento da denúncia do Ministério Público. Juízo esse que,
quando muito, revela apenas plausibilidade condenatória (fumus boni juris), e
nunca a certeza legal sobre a prática do crime.
Com tal erronia, já tem decidido o egrégio Superior Tribunal de Justiça,
conforme fragmento jurisprudencial transcrito abaixo:
A Lei
6174/70 — Estatuto dos Funcionários Públicos do
Estado do Paraná — prevê em seu art. 301, parágrafo
único, que a falta administrativa também prevista na lei
penal como crime prescreve juntamente com este.
Na presente hipótese, constituindo a falta praticada pelo
servidor o delito de peculato tipificado no art. 312 do
Código Penal, bem como tendo sido o servidor denunciado
e estando a ação penal em regular trâmite, aplica-se na
instância administrativa o prazo prescricional previsto na
instância penal — dezesseis anos, nos moldes do art. 109,
inciso II, do Código Penal. (STJ, Recurso Ordinário em
Mandado de Segurança nº 18093/PR, 5ª Turma, Rel. Min.
Gilson Dipp, DJU 13.12.2004)
O recebimento da denúncia — ajuntado ao presumido desenvolvimento
regular do processo — não estabelece uma base processual de conhecimento
suficiente para ensejar a projeção do efeito instituído na disposição
estatutária referida.
Até que a decisão penal condenatória não adquira o feitio de coisa
julgada (res judicata), pode haver a mudança de enquadramento penal, ou
até mesmo absolvição que negue categoricamente a existência do fato ou da
sua autoria. Por conseguinte, o simples recebimento da exordial do Ministério
Público não é o bastante para que, nesses casos, se estenda à instância
disciplinar a mencionada regência prescricional do Direito Penal.
Ressalte-se que nessa questão não pode prosperar o argumento de
que o acusado se defende do fato que lhe imputado, e não do
enquadramento que é dado a esse mesmo fato. Isso porque, mesmo que a
imputação seja de fato existente, a variação de sua subsunção à norma é por
demais relevante, pois, dependendo da qualificação jurídica da fatispécie
penal considerada, o prazo prescricional poderá ser maior (maligno) ou
menor (benigno).
As próprias modalidades de abandono criminal de cargo comportam
três distintos lapsos de regência prescricional na área disciplinar, conforme
seja o fato encaixado no caput do art. 323 do Código Penal (um ano) ou nos
tipos qualificados dos seus parágrafos 1º (quatro anos) e 2º (oito anos).
Bem elucidativa a esse respeito é a questão que foi submetida ao
Supremo Tribunal Federal por meio da Ação Penal 375-2/SE. O caso fora
inicialmente levado às barras do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, o
qual, por unanimidade, recebeu a denúncia inaugural do processo. Com a
eleição do acusado para o cargo de Deputado Federal, foi a pendência
deslocada para a nossa Suprema Corte, em cumprimento ao disposto na
alínea “b”, inciso I do art. 102 da Constituição Federal.
A denúncia — que foi recebida por unanimidade por aquela Corte
estadual — assestava ao réu a prática do crime de peculato (art. 312 do
Código Penal). Consoante as provas produzidas ainda nessa instância
estadual, restou comprovado que o réu não praticara tal delito, e sim teria,
quando muito, malferido o art. 315 do CP (emprego irregular de verbas).
No Excelso Pretório, pela manifestação da Procuradoria Geral da
República, ficaram assentadas as seguintes assertivas, depois de haver
examinado outras provas dos autos:
De fato, conforme salientado pelo Tribunal de Contas de
Sergipe, fls. 51, o denunciado não elaborou o devido termo
aditivo contratual para que fosse possível realizar a referida
restauração da Rua V. No entanto constata-se que o desvio
de verbas públicas se verificou em favor do próprio ente
público. O denunciado efetuou destinação diversa da
prevista
no
contrato
com
a
sociedade
JAGUARACY
CONSTRUÇÕES E SANEAMENTO E LTDA, mas esta foi
revertida a favor da própria municipalidade.
Tal conduta não se amolda aos preceitos do art. 312
(peculato) do CP, nem tão pouco aos do inciso I do art. 12
do
Decreto-Lei
nº
201/67,
que,
pelo
princípio
da
especialidade, traz a definição jurídica mais adequada ao
caso. O comportamento do réu poderia caracterizar o crime
descrito no art. 315 do CP — Emprego irregular de verbas
públicas — se a destinação fosse prevista em lei; o que não
é o caso.
Por fim, o Pleno da Suprema Corte decidiu, por unanimidade, pela
improcedência da ação penal contra o réu, absolvendo-o, nos termos do art.
386, inciso III, do Código de Processo Penal. 5
Esse caso ilustra muito bem que é por demais equivocado o ponto de
vista dos que defendem a tese de que — para a regência da prescrição penal
na área disciplinar, nos moldes do §2º do art. 142 do Estatuto Federal ou dos
estaduais similares (“os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicamse às infrações disciplinares capituladas também como crime”) — basta que a
denúncia haja sido recebida pelo Judiciário.
O prazo prescricional do peculato previsto na cabeça do art. 312 do
Código Penal é de dezesseis anos; ao passo que a prescrição do delito
consistente no emprego irregular de verbas ocorre com a fluência de apenas
dois anos.
Tal disparate (doze ou dois anos) revela muito bem a grosseira erronia
dos que se satisfazem, para tal mister, com a simples recepção judicial da
denúncia.
5
O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:
III - não constituir o fato infração penal (art. 386 do CPP).
Como se vê, não pode a sorte do servidor público ficar a mercê de tão
inseguras, incertas e absurdas interpretações.
7 COISA JULGADA CRIMINAL
A menos que se pretenda fazer do direito uma caixa de surpresa —
negando-lhe a sua precípua e crucial função de certeza e garantia — poderá a
regência penal da prescrição disciplinar contentar-se tão somente com a
recepção judicial da denúncia ministerial, nos termos do §2º do art. 142 do
Estatuto Federal ou dos estaduais similares.
Mesmo porque, como bem esclarecido no item anterior, o acolhimento
da acusação inicial, encerrando apenas um juízo de plausibilidade
condenatória, funciona como mero fiat processual, cuja desenvoltura poderá
tomar rumo tanto positivo quanto negativo, bem como apresentar no final
conclusão condenatória que contemple prazo de prescrição bem menor do
que o presumido na acusação principiante do processo penal.
Tratando-se, pois, de realidade processualmente movediça, a acusação
criminal postulatória não se prestará, mesmo que recebida pelo mais
expressivo órgão judicante da república, para servir de esteio à fixação do
prazo da prescrição disciplinar ora em comento.
Daí porque se deplora, sob todos os ângulos do direito, que modo de
pensar tão precipitado e desconchavado — dando indevida projeção a uma
peça processual que tem apenas o condão jurídico-processual de iniciar a
persecutio criminis em juízo — possa predominar no Colendo Superior
Tribunal de Justiça, como bem revela a ementa jurisprudencial abaixo
transcrita:
Consoante entendimento
deste Superior Tribunal de
Justiça, havendo regular apuração criminal, deve ser
aplicada a legislação penal para o cômputo da prescrição
no processo administrativo. Precedentes.
A Lei 6.174/70 — Estatuto dos Funcionários Públicos do
Estado do Paraná — prevê em seu art. 301, parágrafo
único, que a falta administrativa também prevista na lei
penal como crime prescreve juntamente com este.
Na presente hipótese, constituindo a falta praticada pelo
servidor o delito de peculato tipificado no art. 312 do
Código Penal, bem como tendo sido o servidor denunciado
e estando a ação penal em regular trâmite, aplica-se na
instância administrativa o prazo prescricional previsto na
instância penal — dezesseis anos, nos moldes do art. 109,
II, do Código Penal. (STJ, Recurso ordinário em mandado de
segurança nº 18093/PR, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp,
DJU 13.12.2004)
Ademais, não é possível deduzir, no vazio, que o processo em que o
servidor público foi denunciado encontre-se tramitando regularmente, uma
vez que a via heróica mandamental não conta com dilações probatórias que
permitam tais inferências. Isso é o que insinua equivocadamente o excerto
jurisprudencial mencionado (“bem como tendo sido o servidor denunciado e
estando a ação penal em regular trâmite”).
Erronias que tais despontam de repente e de um só jato, não exigindo
maiores esforços exegéticos de complementação. Pois não é legítimo que se
tome como definitiva uma realidade (denúncia recebida) que se apresenta no
cenário jurídico do processo penal como possível ou provável, abrindo apenas
espaço para que, no processo instaurado, se busque a verdade legal (res
judicata).
Esse equivocado julgamento do Superior Tribunal de Justiça — sobre
ser fortemente salpicado por injustiça — não se concilia com o princípio
constitucional da presunção de inocência6 nem, muito menos, com a cláusula
do devido processo legal (due process of law).
Havendo o servidor público cometido infração que possa, ao mesmo
tempo e de modo autônomo, enquadrar-se como disciplinar e penal, poderá
independentemente do juízo penal ser punido com base tão só no tipo
disciplinar, devendo a prescrição, nesse caso, se reger pelas normas
disciplinares referentes. Porém, se o justo título disciplinar tem como base
exclusiva a prática de crime — nos termos do inciso I do art. 312 do Código
Penal (Crimes contra a administração) —, deve a instância disciplinar
aguardar
o
trânsito
em
julgado
do
decisório
condenatório
penal
correspondente. Nesta hipótese, sim, a prescrição disciplinar se deve reger
pela criminal, nos termos do §2º do art. 142 do Estatuto Federal.
Isso ocorre com fundamento na simples razão de que somente à
Justiça Criminal — conforme o dogma constitucional da separação de poderes
— compete jurisdizer, por sentença formal, quem praticou, ou não, crime.
Não existe no direito pátrio nem no alienígena nenhuma disposição
que, tomando por esteio a prática de crime, prescinda da sentença penal
respectiva passada em julgado. Principalmente quando tal diagnóstico
jurídico-penal, em sua exata e lídima compreensão, deva repercutir em
outras instâncias.
Desacertos jurisprudências que tais, apegando-se apenas no tópico da
viabilidade de condenação criminal, não estão muito longe de consagrar o
entendimento de que deva o juízo penal antecipadamente produzir efeitos
6
“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art.
5º, inciso LVII, da CF).
noutras áreas do direito, de que é exemplo o consectário capitulado no art.
935 do Código Civil. 7
8 ENQUADRAMENTO MÚLTIPLO PARA SE ESQUIVAR DA PRESCRIÇÃO
Por vezes, a administração pública, buscando justificar a sua desídia na
elaboração e julgamento de processos disciplinares (demora injustificável por
mais de cinco anos), lança mão da incorreta e antijurídica técnica do
enquadramento disciplinar por exaustão, fazendo, por meio de sofismas e
astúcias, com que a conduta do servidor seja artificialmente subsumida em
vários tipos disciplinares. A utilização dessa artimanha não muito ortodoxa
faz lembrar as longas redes de tresmalho ou de arrastão8 que são utilizadas
por pescadores na cobiçada captura do maior volume de peixes possível.
Tais ardis — poucas vezes captados pelo Judiciário, infelizmente — tem
por escopo subtrair do servidor imputado qualquer chance de defesa e, por
outro lado, justificar a negligência e o desleixo dos administradores
responsáveis.
Os desleixos referidos ingressaram já há bastante tempo no universo
da notoriedade, não sendo palatável que alguém os desconheça. Tanto isso é
verdade que o legislador pátrio — embora mais preocupado com questões
políticas — já entendeu essa realidade, instituindo cominação legal a esses
relapsos administradores, nos seguintes termos:
7
“A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a
existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no
juízo criminal” (art. 935 do Código Civil).
8
Tresmalho ou arrastão são redes de arrastar pelo fundo das águas do mar ou dos rios, em que se
apanham todas as espécies de peixe que encontra.
A autoridade julgadora que der causa à prescrição de que
trata o art. 142, §2º, será responsabilizada na forma do
Capítulo IV do Título IV. (Lei 8.112/90, art. 169, §2º).
O legislador, ao que denota o dispositivo legal referido, parece haver
dado um basta a tais desídias oficializadas, restando, por fim, ao órgão
judicante não servir como tábua de salvação àqueles que renitem no erro.
Conforme o grau de desídia revelado pelo servidor responsável pela
prescrição, poderá o caso, em estatutos como o do Estado de São Paulo,
configurar até mesmo o ilícito disciplinar da ineficiência no serviço, punível
com demissão, segundo o art. 256, inciso III, da Lei Estadual 10.261/1968.
Daí por que certas administrações públicas — numa sub-reptícia
demonstração de ignorância aos princípios jurídicos da incidência das normas
disciplinares (enquadramento
disciplinar), notadamente as regras da
especialidade, da subsidiariedade e da consunção —, se louvam em falácias
para, de um só jato, enquadrar a conduta do desditoso funcionário em várias
disposições disciplinares, tornando tormentosa qualquer ação em seu favor.
Em ligeira digressão, vale recordar aqui o instituto da interação
concursal de tipos disciplinares (o equivalente, na área criminal, ao conflito
aparente de normas penais), em que certo fato anômalo — parecendo incidir
sob várias normas disciplinares —, enquadra-se apenas numa delas. Isso em
virtude de que os tipos aparentemente concorrentes apresentam entre si
certa relação de dependência ou precedência, o que faz com que apenas um
deles seja aplicável, ficando os remanescentes excluídos ou absorvidos.
Vale denunciar mais uma vez que, não raro, os enquadramentos de
tresmalho ou de arrastão constituem evasivas para escamotear a crônica
negligência de quem, voluntariamente, permitiu que a tramitação de certo
processo se arrastasse por longo tempo. Não saneando, assim, as possíveis
mazelas provocadas à administração pública, e, ao mesmo tempo, deixando
inseguro o servidor imputado. Este, ainda que seja inocente, passa a viver
sob a espada de Dâmocles (trabalhando com desassossego, em perigo
iminente).
Daí porque, nesse tocante, são impostos limites de tempo à
administração pública, como já assinalava, com muita proficiência, o
pranteado mestre J. Guimarães Menegale:
Convencionou-se a fixação de contérminos à tolerância ou
à incerteza da autoridade, a quem não será lícito prolongar
indefinidamente a expectativa do inculpado, ao mesmo
tempo em que se descura o interesse da disciplina, sem
desagravá-la com a presteza exigida pelas necessidades da
ordem administrativa. Em matéria de repressão disciplinar,
com efeito, tolerância ou incerteza exageradas geram
relaxamento
da
autoridade.
A
solução,
portanto,
é
delimitar, no tempo, a eficácia potencial da penalidade,
conter a força da punição e descarregá-la em momento
determinado, no calor da infração, com a plenitude dos
seus efeitos psicológicos, ou extingui-la, para relegar ao
esquecimento um fato, cuja desagradável repercussão
normalmente já terá cessado. (O Estatuto dos Funcionários.
Rio de Janeiro: Forense, 1962. v. II. p. 623-624)
Destaque-se, ainda, que o regime prescricional do §2º do art. 142 do
estatuto federal (“os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às
infrações disciplinares capituladas também como crime”), somente rege as
hipóteses de demissão que, configurando uma das hipóteses criminais
estabelecidas no seu art. 132, inciso I, não disponha de prazo prescricional
específico e expresso. É o caso, por exemplo, do abandono de cargo, que,
conforme o estatuto aludido (art. 142, inciso I) prescreve em de cinco anos, e
não no lapso de dois anos, como sinalizado pelo art. 323 c.c. o art. 109, inciso
VI, do CP. Se o abandono de cargo, como falta disciplinar, não estivesse
previsto como causa autônoma e própria de demissão, aí sim, seria o fato
(caso chegasse a configurar o delito penal do caput do art. 323) prescritível
em dois anos, e não em cinco. Na hipótese de abandono de cargo que
implique prejuízo público, ou se o fato ocorrer em faixa de fronteira, os prazos
prescricionais respectivos seriam de quatro ou oito anos, nos termos dos
parágrafos 1º e 2º do art. 323 combinado com os incisos IV e V do art. 109,
todos do CP.
Aludindo-se ao parágrafo único do art. 213 da Lei 1.711/52
9
(anterior
estatuto do servidor federal), que tinha simílima redação do §2º do art. 132
do atual (Lei nº 8.112/90), Eduardo Pinto Pessoa Sobrinho, com o prumo e a
proficiência que lhe eram peculiares, chegou a ponderar:
Inexistindo prazo de prescrição expressamente estipulado
no Estatuto dos Funcionários para a hipótese contemplada
no §1º do art. 207 (crime contra a administração pública)
desse diploma legal, e, constituindo, por outro lado, a
infração falta prevista na lei penal como crime, segue-se
que o prazo deferido a administração para diligenciar a
punição do faltoso será o estatuído na legislação penal, ex
vi do disposto no parágrafo único do art. 213 do
mencionado Estatuto. (Manual dos Servidores do Estado.
12. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1968. v. II. p. 1109)
9 PRESCRIÇÃO RETROATIVA IMPEDITIVA DO EXAME DE MÉRITO
Mesmo quando seja cabível a regência penal da prescrição disciplinar,
nos termos do §2º do art. 142 do estatuto federal (“os prazos de prescrição
previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas
também como crime”), não se aplica tal regra quando, havendo sido
interposta apelação pelo servidor, haja o tribunal, em preliminar de ofício,
9
“A falta também prevista na lei penal como crime prescreverá juntamente com este” (parágrafo único
do art. 213 da Lei nº 1.711/52, anterior Estatuto Federal).
reconhecido a ocorrência da prescrição retroativa e, de efeito, encerrado a
questão com a extinção do processo.
Decisão como tal, impedindo o exame do mérito recursal, corta
oportunidade a que o servidor recorrente possa, no segundo grau de
jurisdição, provar as suas eventuais razões absolutórias ou demonstrar que o
ilícito que praticara é bem menos grave e, por conseguinte, prescritível em
prazo bem menor. Como, por exemplo, evidenciar que não houve o crime de
peculato do art. 312 do CP (prescritível em dezesseis anos), e sim o emprego
irregular de verbas públicas do art. 315 desse mesmo estatuto punitivo
(prescritível em 2 anos), como bem ficou ilustrado no recente julgado da
nossa Suprema Corte referido no item 6 deste ensaio (Ação Penal nº 3752/SE, DJU 17.12.2004).
Casos alcançados pela prescrição retroativa (regida pela pena em
concreto imposta na sentença do primeiro grau de jurisdição, com trânsito
em julgado para o acusado), ainda que o réu proclame e pretenda provar a
sua inocência na instância recursal, não são passíveis de reexame. Isso
porque a prescrição penal — por ser matéria de elevado teor público
(suplantando qualquer outra no processo) — fulmina, de pronto, a pretensão
punitiva do Estado.
Assinale-se que não discrepa do ponto de vista acima esposado o
acórdão unânime da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça/SP,
proferido nos autos da Apelação Criminal de nº 227.304-3/4, da Comarca da
capital, além de inúmeros outros julgados de igual teor.
Obviamente que nesses casos de prescrição retroativa, o reflexo do
prazo prescritivo pela pena cominada não servirá para reger a prescrição
disciplinar. Configuraria, pois, um absurdo não permitir que o funcionário
imputado questione o seu direito na instância recursal e, ao mesmo tempo,
admitir que o crime que possa haver cometido produza esse secundário
efeito de superdimensionar o prazo prescricional em seu desfavor. Isso,
estreme de dúvidas, afrontaria o princípio constitucional do devido processo
legal (due process of law), previsto no art. 5º, inciso LIV, da Constituição
Federal de 1988.
Tal despautério equivaleria impor ao cavaleiro, além da queda, o coice,
pois, sendo impedido de questionar a sua inocência no segundo grau, por
força da prescrição, passaria, na área administrativa, a sofrer o refluxo de um
efeito não reconhecido pelo direito. Estar-se-ia, desse modo, dando guarida a
descomedido e inconcebível desconchavo.
Saliente-se que a prescrição pela pena em concreto (retroativa) — a
par de elidir frontalmente a pretensão punitiva do Estado e produzir a
rescisão da sentença condenatória —, impede que se projete em qualquer
cidadela do direito a mais ínfima conseqüência, como muito bem esclarece
Damásio E de Jesus:
A prescrição retroativa extingue a pretensão punitiva,
rescinde a sentença condenatória e exclui seus efeitos
principais e secundários. Como se trata de forma de
prescrição da pretensão punitiva, o decurso do prazo,
incidindo em período anterior à publicação da sentença
condenatória, extingue o poder-dever de punir do Estado.
De forma que no momento em que o Juiz profere a decisão
não há mais jus puniendi. Assim, a aplicação da prescrição
retroativa rescinde a sentença condenatória, que só tem
valor em termos de fixação da quantidade da pena
privativa da liberdade, não subsistindo em nenhum dos
seus efeitos principais e secundários. Se o réu, dois anos
após ser favorecido pela prescrição retroativa, vier a
praticar outro delito, não será considerado reincidente por
ausência de seu pressuposto, seja qual for a condenação
anterior. (Prescrição penal. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
p. 167-168)
10 EMPRÉSTIMO AO DIREITO PENAL
Há quem equivocadamente entenda que o Regime Jurídico dos
Funcionários Públicos Civis da União (bem como os demais estatutos
estaduais e municipais), ao regular o instituto da prescrição disciplinar,
nesses casos de regência penal, tomou de empréstimo apenas os prazos
previstos abstratamente nos tipos penais respectivos.
Nada obstante, destaque-se que esse modo restritivo de ver e ajuizar
não se concilia com a alta carga de ordem pública contida no instituto da
prescrição, o qual, por constituir matéria de direito estrito, se sujeita aos
termos traçados na norma, e não contemporiza com interpretações que
restrinjam direitos (benigna amplianda, odiosa restringenda).
Ademais, vale destacar que os conceitos, categorias ou institutos
jurídicos tomados de empréstimos de outros segmentos do direito — quando
não ajustados por lei às acepções próprias que lhe queira imprimir o ramo
receptor — devem ser interpretados no seu originário sentido e alcance. A
não ser que se pretenda transformar o nosso ordenamento jurídico numa
caixinha de surpresa, em que o seu entendimento ou alcance fique ao sabor
do arbítrio de quem o interpreta ou aplica.
A improcedência dessa ótica salta a olhos desaparelhados, pois, se
fosse assim como defendem esses equivocados intérpretes, o direito —
despojando-se de sua fundamental função de segurança e certeza —,
transformar-se-ia num vasto banco de areia movediça.
Releva, ainda, acrescer que, em obediência aos princípios aludidos
acima (certeza e segurança jurídicas), tais elementos de empréstimos
somente podem comportar sentido próprio, específico e diferenciado em face
da existência de regra expressa nesse sentido. Fora disso, é laborar no
campo da dúvida, do casuísmo, da incerteza e da insegurança do direito.
Exemplo de tais empréstimos ocorre em relação ao nosso Direito
Penal, o qual — louvando-se na categoria de funcionário público (instituto de
Direito Administrativo) para regular os crimes contra a administração pública
— deu a esse instituto, por meio de transfiguração legal, acepção própria,
como bem ilustra o art. 327, e seu §1º, do Código Penal.
10
Ocorrendo o
mesmo com a Lei 8.429/94, a qual, ao regular as hipóteses de improbidade
administrativa, dar maior alcance, para o específico fim da matéria de sua
regulação, ao conceito de agente público. Dando, assim, amplitude bem mais
abrangedora à figura do agente ativo de tais delitos (civil, criminal e
disciplinar), assim dispondo:
Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo
aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem
remuneração,
por
eleição,
nomeação,
designação,
contratação ou qualquer outra forma de investidura ou
vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades
mencionadas no artigo anterior. (art. 2º)
Nesse tocante, extrai-se do magistério de Alfredo Augusto Becker esta
bem mais que esclarecedora lição:
Mesmo
no
caso
de
haver
o
Direito
Tributário,
aparentemente, aceito e consagrado um princípio (ou
conceito ou categoria ou instituto ou diretriz) da Ciência
das Finanças Públicas ou de outra ciência pré-jurídica,
todavia
e
sempre
e
necessariamente,
houve
uma
deformação e transfiguração naquele princípio (ou conceito
ou categoria ou instituição ou diretriz) quando entrou no
mundo jurídico, passando a ter um conceito jurídico que
10
“Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem
remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública” (art. 327 do Código Penal). “Equipara-se a
funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal” (§1º).
não é e nem pode mais ser aquele conteúdo original e
peculiar da Ciência das Finanças Públicas ou de outra
ciência pré-jurídica.
Porém, quando a aceitação pelo Direito Tributário foi de
princípio (ou conceito ou categoria ou instituto) de outro
ramo do Direito (ex.: Direito Civil, Comercial; compra e
venda, locação, empreitada, etc.), então (salvo existindo
regra jurídica expressa transfiguradora e deformadora), o
Direito
Tributário
ao
aceitá-lo
não
o
deformou
e
transfigurou. Esta deformação ocorreu em momento bem
anterior: quando aquele princípio jurídico (ou conceito, etc.)
criou-se (entrou no mundo jurídico) naquele ramo do
Direito. 11
Buscar nesses conceitos jurídicos tomados de empréstimo outra
acepção significa decretar, por antecipação, a falência da coerência sistêmica
do direito e dos princípios fundamentais de justiça e certeza do direito. Isso
exatamente porque se torna impossível conciliar tais valores, se os conceitos
tomados de empréstimo de outros ramos do direito possam ter o elastério
dado arbitrariamente pelo seu intérprete. E não o seu sentido e alcance
originários, ou mesmo o significado próprio que lhes tenham imprimido, de
modo explícito, a lei receptora.
Agregue-se, ainda, que o regime federal (Lei 8.112/90) e os estatutos
paulista (Lei Estadual 10.261/1968, art. 261, inciso III) e paranaense (Lei
Estadual 6.174/70, art. 301, parágrafo único), ao recepcionarem a regência
da prescrição penal, não cuidaram de estender alcance específico a esse
elemento. Isso implica afirmar que a sua compreensão jurídica continua
sendo de índole penal, devendo comportar, por inteiro, os consectários
oriundos de sua natureza originária (Direito Penal).
11
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1972. p. 74.
Importa salientar que, consoante o princípio constitucional do juiz
natural (art. 5º, LIII, da CF/1988), somente o juízo criminal competente
(assegurado os recursos inerentes) poderá, por meio de sentença, fornecer
juízo legítimo sobre a existência de infração penal. Sem esse reconhecimento
formal, inexiste justo título jurídico para fundamentar, por razão criminal, a
pena disciplinar de demissão. Essa asserção já se encontra devidamente
pacificada na jurisprudência do nosso Pretório Excelso, conforme atestam, a
título de exemplo, os trechos jurisprudenciais que se transcrevem a seguir:
Estando o decreto de demissão alicerçado em tipo penal,
imprescindível é que haja provimento condenatório trânsito
em julgado. Se de um lado é certo que a jurisprudência
sedimentada no Supremo Tribunal Federal indica o caráter
autônomo da responsabilidade administrativa, a não
depender dos procedimentos cível e penal pertinentes, de
outro não menos correto é que, alicerçada a demissão na
prática de crime contra a administração pública, este há
que estar revelado em pronunciamento do judiciário
coberto pelo manto de coisa julgada.12
A autonomia das instâncias penal e administrativa é
firmemente reconhecida por esta Corte, ressalvando-se as
situações em que ocorre a repercussão dessa naquela, ou
seja,
quando
na
instância
penal
se
conclua
pela
inexistência material do fato ou pela negativa de sua
autoria e, ainda, quando o fundamento lançado na
instância administrativa refira-se à prática de crime contra
a administração pública.13
Por mais esse ângulo, vê-se que é de todo incoerente a tese do mero
empréstimo apenas do prazo prescricional do direito penal.
12
STF – MS 21.310-8, DJ, 11.03.94 – Rel. Ministro Marco Aurélio.
13
STF – MS 22.076, Rel. Ministro Maurício Corrêa, DJ, 16.10.95.
Observe-se, ainda, que a questão somente é posta pela administração
pública para exasperar o prazo extintivo do direito de impor sanções
disciplinares aos seus servidores. E nunca em sentido contrário, que é bem
mais possível, conforme visto nos itens anteriores. Vale dizer: os órgãos
administrativos jamais invocam a regência penal quando o prazo prescritivo
ali previsto for menor do que o assinalado no regime disciplinar referente.
Isso revela, de modo inconteste, que a administração pública lança
mão desse embuste ampliativo do prazo prescricional disciplinar para
justificar sua desmedida desídia, chegando, na maioria das vezes e de modo
negligente, a demorar por mais de cinco anos na feitura de procedimentos
disciplinares.
Saliente-se que o não comparecimento intencional do agente ao
serviço por mais de trinta dias consecutivos, contendo alto teor de
probabilidade de prejuízo ao serviço, tanto caracteriza o delito disciplinar
previsto no art. 138 da Lei nº 8.112/90 quanto a infração penal instituída no
caput do art. 323 do Código Penal. Nem por isso admite a administração
pública que o abandono disciplinar se deva reger pela prescrição penal, ainda
que haja sentença penal com trânsito em julgado. Isso somente ocorre
porque o prazo da prescrição penal desse delito é apenas de dois anos;
enquanto o abandono disciplinar prescreve em cinco anos, elastério esse que
é muito mais favorável à negligência do administrador público.
Essa é, sem dúvida, a razão pela qual a administração pública,
pretendendo escamotear a verdade (sua injustificável inércia), faz, no mais
das vezes e de modo arbitrário e exaustivo, o enquadramento do servidor
imputado em vários dispositivos disciplinares.
De certa feita, o governo de São Paulo — havendo passado,
injustificadamente, mais de oito anos para concluir processo disciplinar em
que se imputava a determinado agente fiscal da Fazenda Estadual a prática
do recebimento de propina para não lavrar auto de infração contra
comerciante daquela praça — lançou mão do artifício da rede de tresmalho.
De efeito, o órgão de assessoria jurídica competente, para livrar a
administração desidiosa, fez (tal qual fazem os delinqüentes dos arrastões da
praia de Copacabana/Rio) a indiciação do fiscal nos seguintes dispositivos:
art. 256, inciso II (“Será aplicada a pena de demissão nos casos de: II procedimento irregular, de natureza grave”), art. 257, incisos II (“Será
aplicada a pena de demissão a bem do serviço público ao funcionário que
praticar crime contra a boa ordem da administração pública, à fé pública e à
Fazenda Estadual, ou previsto nas leis relativas à segurança e à defesa
nacional”) e VII (“Será aplicada a pena de demissão a bem do serviço público
ao funcionário que receber ou solicitar propinas, comissões, presentes ou
vantagens de qualquer espécie, diretamente ou por intermédio de outrem,
ainda que fora de suas funções mas em razão delas”).
Com tal embuste, pretendia a administração referida dilatar o prazo
prescricional e, por via de conseqüência, elidir a incidência da extingüente
qüinqüenal de punibilidade disciplinar, prevista nesse mesmo regulamento.
11 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como demonstrado ao longo deste ensaio, para que — nos termos do
art. 142, §2º, da Lei 8.112/90 (“os prazos de prescrição previstos na lei penal
aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime”) —, a
prescrição penal reja a da transgressão disciplinar é de rigor que a instância
daquela, havendo transitado em julgado, se refira a delito penal que
contenha, em toda a sua extensão fática e jurídica, idêntico de punir
disciplinarmente. Em outras palavras, é necessário, além da transição do
decisório penal, que o crime seja o mesmo corpus delicti da infração
disciplinar.
Adicione-se, ainda, que o legislador pátrio, ao instituir esse paralelismo
prescricional, não pretendeu agravar a situação disciplinar do servidor
público, e sim estabelecer uma harmonia entre essas duas instâncias. Já que
o justo título punitivo tanto do direito penal quanto do direito disciplinar se
fundamenta em idêntica seiva de antijuridicidade, não seria de boa política
jurídica que ambas tivessem prazos de prescrição diferenciados. Houve
igualmente, por parte do legislador, a preocupação de que (em certos casos,
como ocorrido no passado), o crime fosse prescritível e a transgressão penal,
não. Isso poderia, na prática, gerar certo descrédito aos órgãos públicos.
Instituindo a absorção da responsabilidade disciplinar pela penal, o
legislador do direito disciplinar castrense foi bem mais adiante para evitar
eventuais choques entre as instâncias penal e disciplinar.
A esse respeito, preceitua o Regulamento Disciplinar do Exército que
“no concurso de crime e transgressão disciplinar, quando forem da mesma
natureza, aplicar-se-á, somente, a pena relativa ao crime” (art. 12, §2º, do
Decreto 90.608/84). Simílimo sistema de absorção é adotado pelos
regulamentos da Marinha (art. 9º do Decreto 88.545/83) e da Aeronáutica
(art. 9º do Decreto 75.322/75).
O ideal seria que, nesses casos, os regimes disciplinares civis
adotassem o instituto da absorção da responsabilidade disciplinar pela penal,
e não a instituição da regência prescritiva da infração disciplinar pelo prazo
do delito penal simílimo. Realidade essa que tem, na prática do dia-a-dia,
provocado dissensões e maledicências, conforme o que foi visto e examinado
ao longo deste ensaio.
A tese da unicidade de prazo prescricional (“os prazos de prescrição
previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas
também como crime”) somente é suscitada para agravar a situação do
servidor imputado. Nunca se viu, em qualquer setor jurídico da administração
pública ou em qualquer órgão judicante, que se tenha defendido a tese de
que a prescrição disciplinar da pena de demissão pudesse ser alcançada em
prazo menor do que cinco anos. Jamais foi ventilado isso porque beneficia o
servidor, mas, seguindo as pegadas do instituto da unicidade de prazo
prescricional, poderá a pena de demissão ser prescritível até no prazo de dois
anos.
Por exemplo, se a justa causa de demissão se enquadra, única e
exclusivamente, no art. 132, inciso I, da Lei nº 8.112/90 (crime contra a
administração pública) e a fatispécie penal é a prevaricação (art. 319 do
Código Penal), a prescrição disciplinar ocorrerá no lapso de dois anos. Isso
porque, sendo a prevaricação punível com pena de detenção de três meses a
um ano, dar-se-á a sua prescrição em dois anos, conforme o disposto no art.
109, inciso VI, do Código Penal.
Evitando delongas, citou-se apenas o exemplo acima, mas existem
vários outros casos, como, por exemplo, os crimes capitulados nos artigos
312, §2º, 315, 317, §2º, 319, 321, 322, parágrafos 1º e 2º, 324 e 326 (Código
Penal). Trata-se de delitos praticáveis contra a administração pública, e que
são prescritíveis no prazo de dois anos.
No dia em que, neste país, uma comissão de processo disciplinar
concluir que o servidor deva ser demitido por haver perpetrado um desses
delitos (prescritíveis em dois anos), podem ter certeza (ou como se diz na
gíria veiculada pela mídia televisiva: podem apostar), será o indigitado
servidor, mesmo sem motivo legal, enquadrado num imenso rosário de
infrações puníveis com pena de demissão.
Por derradeiro, advirta-se que não é assim, com a utilização de
engodos e ardis, que se constrói uma grande nação. Para que a burocracia
deste país coadjuve o desenvolvimento nacional é necessário que haja em
suas entranhas uma boa ordem disciplinar interna, que é alcançada não por
meio de truculências, e sim com o aperfeiçoamento moral, técnico e científico
dos seus quadros, incluindo-se, ainda, a escorreita e justa dinamização das
normas disciplinares.
Fortaleza - Ceará, 30 de julho de 2008.
José Armando da Costa
Download