Nas margens de um tema

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Nas margens de um tema1
Mariza Vieira da Silva
Universidade Católica de Brasília
Do quê estamos falando quando falamos em alfabetização?
A resposta parece evidente, óbvia mesma. Estamos falando de ensino e de
aprendizagem da leitura e da escrita, ou seja, estamos falando de alguém que ensina
algo - ler e escrever - a outro alguém em um contexto determinado. Em formulações que
venho analisando, observei que a produção de saber e de práticas sobre um objeto - a
escrita alfabética - se dá, quase sempre, a partir de uma definição como essa tomada
como evidência. Há todo um conjunto de discursos, às vezes, contrários mesmos, que se
produzem tendo como pressuposto que falamos da mesma coisa quando falamos em
alfabetização, ou seja, que lidamos com um referente unívoco e universal.
No caminho de leitura e de escrita percorrido na elaboração de minha tese de
doutorado - História da Alfabetização no Brasil: a constituição de sentidos e do sujeito
da escolarização (1998) -, fui percebendo, pouco a pouco, que responder a essa questão
da perspectiva discursiva implicava em lançar luzes sobre o funcionamento da língua
escrita em uma sociedade dada, que foram revelando não só um objeto complexo, mas,
sobretudo, ambíguo e até mesmo contraditório pela sua relação com o histórico e o
simbólico.
Na pesquisa realizada – A alfabetização e o processo de inscrição do sujeito na
cultura -, percorremos um pouco desses caminhos em busca de uma margem para uma
primeira ancoragem do barco e definição dos próximos percursos, já sabendo que em
matéria de linguagem as garantias são sempre precárias, como diz Guimarães Rosa.
1. Observamos, em primeiro lugar, que a referência e os referentes para alfabetizaçãoanalfabetismo e para analfabeto-alfabetizado se produzem como realidades de discursos
historicamente determinados, enquanto sujeitos da enunciação e do enunciado, numa
relação de oposição que produz diferenças e assimetrias significativas para a
compreensão da alfabetização enquanto uma prática pedagógica, social e política.
Estamos tratando, portanto, de referências e referentes que se instituíram como uma
1
. Texto produzido como resultado de pesquisa em 2000, e publicado em Texto Universitário:
Alfabetização: uma travessia. Brasília: Universa, 2002.
posição de sujeito de onde os indivíduos deverão enunciar, produzindo sentido para o
mundo e para si próprio.
O leitor poderá também observar esse jogo e movimento de sentido, indo a
dicionários e analisando o funcionamento discursivo de certos termos. Vejamos no
Dicionário do AURÉLIO (14ª impressão), por exemplo, os enunciados definidores2:
ALFABETIZAÇÃO.s.f. Ação de alfabetizar, ANALFABETISMO.s.m.
Estado
ou
de propagar o ensino da leitura.
condição de analfabeto; falta absoluta de
instrução.
No primeiro caso, temos uma ação de alfabetizar, logo uma relação entre
indivíduos, tendo como objeto de atuação algo capaz de propagar-se, de ser conhecido e
dominável pelo agente e pelo paciente. No caso do "analfabetismo", temos, no entanto,
um estado, uma condição, uma falta de um indivíduo, isoladamente. Não se trata, então,
de uma mera oposição. Que termo usar quando nessa "ação de alfabetizar", uma relação
entre um agente e um paciente, algo sai errado ou, ainda, quando essa "ação" não
ocorre? Não existe o termo *analfabetização, enquanto ação de não alfabetizar, de não
propagar o ensino da leitura ou a falta da ação de alfabetizar.
O "analfabetismo" tem como referência um estado, uma condição, uma falta do
indivíduo. Não se vai à escola, aluno e professor apenas para, numa ação conjunta,
aprender e ensinar o uso de uma ferramenta de comunicação, de um artefato cultural,
mas também - ou principalmente - para alterar um estado, uma condição, colocar uma
prótese em algo que falta ao indivíduo desde sempre. Na escola, essa falta ganha
visibilidade e possibilita marcar cada um perante os diferentes grupos sociais de uma
sociedade dada. A escola confirma e valida - ou não - essa condição.
Ficando, ainda, apenas no terreno dos dicionários, podemos ver esta assimetria
ser reforçada, analisando outros verbetes:
2
. Ver análise completa no artigo de Silva:"O dicionário e o processo de identificação do sujeitoanalfabeto", em Língua e cidadania: o Português no Brasil, 1996, 151-162.
Nas margens de um tema – Mariza Vieira da Silva
ALFABETIZADO. (Part. de alfabetizar) ANALFABETO. (Do gr. Analphabeta,
Adj. e s.m. Que ou aquele que sabe ler.
aquele que não sabe nem o alfa nem o beta,
pelo lat. Analphabetu.) Adj.
1. Que não conhece o alfabeto. 2. Que não
sabe ler e escrever. 3. Absolutamente ou
muito ignorante. 4. Que desconhece
determinado assunto ou matéria. 5.
Indivíduo
ignorante,
sem
nenhuma
instrução. (Sin.bras.gir.: analfa) 6. Indivíduo
analfabeto. * Analfabeto de pai e mãe.
Indivíduo rigorosamente analfabeto.
O enunciado definidor é assimétrico (mesmo quantitativamente), o processo de
derivação dos verbetes indica origens distintas para cada termo, e a classificação
morfológica situa os termos em dimensões diferentes na ordem dos seres e das coisas.
Esse funcionamento produz diferentes efeitos de sentidos - analfabeto de pai e mãe - e
indicam um caminho de reflexão para o trabalho teórico e prático de ensino e
aprendizagem da escrita em nossa sociedade.
Os sentidos produzidos em cada termo destas dicotomias, que são
hierarquizadas, se determinam, se confrontam, se aliam, pois os contrários se
engendram mutuamente e estão para sempre relacionados. Não há a possibilidade da
existência de um sem o outro. Assim, podemos pensar que há um já-lá-dito do
analfabetismo, do analfabeto que marca - nega mesmo - o sentido da alfabetização, pois
aquele que alfabetiza tem sempre de lidar com alguém parasitado internamente, com
alguém já afetado por uma falta, inscrito na memória discursiva como condição de
possibilidade de funcionamento da estrutura da escolarização.
2. Os discursos científicos “sobre” a alfabetização tratam de diferentes perspectivas
teóricas o fenômeno da "alfabetização", envolvendo diferentes áreas do conhecimento,
na análise do objeto "escrita", buscando, quase sempre atingir uma globalidade
complexa. Assim, ao estudarmos, por exemplo, a alfabetização no Brasil, mais
especificamente, em Brasília, teríamos um tema já estabelecido a priori demandando
uma explicação, que poderia vir de diferentes ciências e disciplinas pela soma,
agregação e correlação de dados, de campos de conhecimento distintos.
Essa forma de conceber a produção de conhecimento tem trazido uma
contribuição substantiva para a compreensão da "alfabetização", enquanto processo de
ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita em diferentes momentos da
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organização das sociedades dos homens; mas tem mostrado também as diferentes
questões que permanecem sem resposta. Em se tratando do Brasil, podemos observar tal
processo em funcionamento pela leitura da vasta produção na área, principalmente nas
três últimas décadas, e mais especificamente pela leitura dos chamados "estados da arte"
que analisam, de determinada perspectiva, toda essa produção.
Gostaria de comentar, brevemente, um trabalho elaborado por Soares (1989),
denominado “Alfabetização no Brasil: o estado do conhecimento”, em que a
pesquisadora sistematiza a produção científica e acadêmica sobre a alfabetização no
Brasil - artigos, teses e dissertações -, no período de 1954-1986.
As categorias de análise estabelecidas por Soares para trabalhar os dados
coletados foram: a temática, o referencial teórico, o ideário pedagógico e a natureza do
texto. Caminhando pela análise produzida em cada um desses pontos, podemos ir
observando uma fragmentação e dispersão do objeto de estudo que, de uma certa
perspectiva, pode ser considerada produtiva, pois permite uma compreensão em
profundidade do objeto por diferentes ciências, mas, por outra, traz algumas
dificuldades.
Assim, na relação de temas trabalhados nesse período temos as seguintes
delimitações: "proposta didática", "prontidão", "dificuldades de aprendizagem",
"concepção de alfabetização", "método", "determinantes de resultados", "caracterização
do alfabetizador", "sistema fonológico/sistema ortográfico", "cartilhas", "avaliação",
"formação do alfabetizador", "língua oral/língua escrita", "conceituação de língua
escrita", "letra de forma/letra cursiva", "literatura para alfabetizandos" (:17).
Na parte relativa ao referencial teórico da produção brasileira sobre
alfabetização, o objeto de estudo desdobra-se por diferentes áreas e subáreas do
conhecimento:
"Psicologia",
"Pedagogia",
"Lingüística",
"Psicolingüística",
"Sociolingüística", "Sociologia", "Literatura", "Educação Artística: Artes Plásticas",
"Educação Artística: Música", "Audiologia", "Estatística", "Interdisciplinaridade" (:49).
No período analisado - 1954-1986 -, segundo a pesquisa, o enfoque predominante é o
psicopedagógico, seguido do lingüístico.
Como disse anteriormente, essa fragmentação é produtiva, no sentido de ampliar
conhecimentos e de dimensionar diferentemente o objeto de estudo, mas pode ser
também o sintoma de outras questões que não se mostram tão prontamente e que dizem
respeito ao próprio processo de produção do conhecimento em sua relação com as
condições materiais de existência do homem.
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Saussure já afirmara que é o ponto de vista que cria o objeto (1974:15), ou seja,
o objeto de estudo em Lingüística não se apresenta como dado previamente. E se assim
é, então, podemos pensar esse ponto de vista como sendo um enunciado de um sujeito
em um contexto histórico dado. A produção de conhecimento está inscrita, portanto, nas
condições de reprodução-transformação das relações de produção econômico-sociais, e
referida às formações ideológicas, que são representadas na linguagem, pelas formações
discursivas.
Assim, podemos pensar cada trabalho científico e acadêmico como discursos,
como fatos de linguagem que têm uma história, que resultam de uma construção, que
me dão acesso não só a uma ordem de conhecimentos universais, marcada pela
neutralidade e objetividade, mas também a uma ordem significante que me remetem a
uma exterioridade discursiva aonde se constituem os sujeitos e se produzem os sentidos
dessa prática teórica.
Isto significa que, embora tenhamos análises e interpretações distintas sobre a
alfabetização, se considerarmos as propostas teórico-metodológicas de cada área do
conhecimento e as escolhas de cada pesquisador, os efeitos de sentido "podem" ser os
mesmos, pois a materialidade das formações discursivas faz intervir uma memória, um
já-dito, anterior e exterior à formulação feita.
A nossa escolha teórico-metodológica para tratamento de nosso tema de
investigação implica, pois, no estabelecimento de relações específicas entre o
"aprender-ensinar a ler e a escrever" e as condições econômicas, sociais e políticas em
que tal prática se dá, produzindo efeitos de sentidos determinados. Para nós, não se
trata, portanto, de somarmos mais uma perspectiva de análise para compreensão de uma
globalidade complexa natural, mas de analisarmos o funcionamento discursivo de uma
prática, fazendo trabalhar as contradições que produzem as evidências de um discurso
específico, o pedagógico, fundamental para a organização e gestão de uma sociedade
letrada.
3. Outro caminho de trabalho. Podemos pensar a alfabetização tomando como
referência uma série de oposições que vêm sendo construídas ao longo da história e que
têm por base o caráter mecânico-repetitivo e o caráter criativo-produtivo que o acesso e
o domínio da escrita alfabética e dos textos, em termos quantitativo e qualitativo, trazem
para os indivíduos, integrantes dos diferentes grupos de uma sociedade.
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Essas diferentes dicotomias produzem também seus desdobramentos, no sentido
de delimitar e determinar a natureza da escrita e da leitura, seus alcances e limites, bem
como suas finalidades sociais e políticas. E de um outro lugar (ou quem sabe do
mesmo?), o tema se apresenta multifacetado e complexo, reforçando o sentido de
globalidade complexa.
Seguindo por essa trilha, o objeto escrita vai, novamente, fragmentando-se e
dispersando-se em busca de uma completude, imaginária, de forma que se possa formar
o verdadeiro cidadão: ler-escrever, cópiar-escrever, ler-compreender, ler letra de formaler letra cursiva, ler placas-ler textos, ler-decodificar, escrever-codificar, leitura
mecânica-leitura compreensiva, leitura intensiva-leitura extensiva, alfabetizaçãoletramento, alfabetização funcional-disfuncional, alfabetizado-letrado, analfabeto
primário-analfabeto secundário...
Sustentam o trabalho dessas oposições teorias, métodos e técnicas, em que há
sempre o objetivo de ampliar a abrangência do ler e do escrever do indivíduo pelo
domínio - compreensão e produção - de textos considerados mais ou menos complexos
em termos de conteúdo e forma, tendo em vista as diferentes funções que tais textos
desempenham na organização de uma sociedade determinada e, conseqüentemente, na
identificação e controle de seus cidadãos.
Hautecouer, em "Analfabetismo: direção? ações? resultados?" (1993), analisa as
diferentes definições sociais do analfabetismo e seus usos, dentre as quais destacamos
uma, que deixa entrever a assimetria existente nessas dicotomias:
A França alarga o conceito de analfabetismo, o qual, após um século de
escolaridade obrigatória, se tornou claramente inapropriado e
inaplicável. No presente é aplicado somente à população de imigrantes.
Illetrisme, o termo usado para descrever os naturais da França que
freqüentaram escola, é assumido no sentido de definição oficial
inspirada pela expressão usada pela Associação Francesa para a
Leitura (AFL): significa medíocre competência em leitura medida em
termos de velocidade. (:10-grifo meu)
Que diferença há entre imigrantes e franceses? Se para os franceses essa
competência é "medíocre", como será a dos imigrantes?
Por que tantos tipos de "analfabetismos" e de "analfabetos"?
Analisando o funcionamento discursivo de tais dicotomias, podemos ver efeitos
de sentidos se produzindo que apontam para questões não apenas de ordem lingüística,
mas também de ordem social e política, trabalhando o que Pêcheux (1994) chama da
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... ambigüidade fundamental da palavra de ordem mais que centenária
"aprender a ler e a escrever", que visa ao mesmo tempo a "apreensão de
um sentido unívoco" inscrito nas regras escolares de uma assepsia do
pensamento (as famosas "leis semântico-pragmáticas da comunicação)
e o "trabalho sobre a plurivocidade do sentido" como condição mesma
de um desenvolvimento interpretativo do pensamento.
Como pensar e compreender essa "ambigüidade" entre a paráfrase e a polissemia,
entre o mesmo e o diferente, contida nessa prática como condição necessária para o
funcionamento de um determinado tipo de sociedade: a letrada urbana? Até que ponto
esses objetivos - "apreensão de um sentido unívoco" e "trabalho sobre a plurivocidade
do sentido" - servirão para determinar a organização e divisão social do trabalho de uma
sociedade e, conseqüentemente, o estabelecimento de usos sociais da linguagem e das
línguas e a criação de ofícios e funções específicos para cada cidadão de modo a marcar
o seu lugar social e político e a extensão dos benefícios e exclusões?
Escrita e reprodução ou/e escrita e recriação, leitura e decodificação ou/e leitura e
compreensão estão sempre presentes nos discursos sobre esse aprender a ler e a
escrever, enquanto termos complementares ou excludentes de um par que se pretende
opositivo, cabendo à escola, ao método, ao professor a opção consciente por um deles.
A questão, contudo, parece ser outra. No aprender a ler e a escrever há sempre
tanto a possibilidade de copiar, de reproduzir, de ler mecanicamente como a de escrever,
de criar, de interpretar. O mesmo e o diferente estão sempre presentes. Há sempre a
possibilidade de não se ter uma alfabetização de qualidade de acordo com quem
organiza e administra esse "aprender a ler e a escrever", ou seja, de sair algo "errado".
No entanto, o importante é observar que tanto uma coisa como a outra - em
relação à escrita - funcionam, isto é, atuam, produzem sentido e efeitos práticos. Isto
significa que sempre poderemos identificar cada indivíduo de uma sociedade dada a
partir de critérios ambíguos, mas eficazes do ponto de vista político-social, em um
continuum, enquanto analfabetos, alfabetizados, letrados, cultos, comportando variações
e distinções.
A escrita alfabética institui uma relação específica entre a linguagem e o real e
produz um lugar de significação próprio para o sujeito significar. Tal estatuto da escrita
foi se construindo ao longo da história, a partir de uma união material e empírica da
linguagem e do mundo pelo universo cuneiforme, passando pelo enigma da palavra nos
alfabetos semíticos, para chegar à ilusão da correspondência som-letra do alfabeto
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grego, tornando "visível o abismo que separa, no homem, as coisas da linguagem e as
coisas do mundo". (Herrenschmidt: 1995)
Até chegarmos ao alfabeto greco-romano assistimos a um processo longo e
diferenciado de apagamento da situação mediata e imediata - da história e do sujeito das coisas da língua e do mundo, e de visibilidade e legibilidade dessas mesmas coisas
em uma relação termo-a-termo entre fala e escrita que se pretende "natural".
Este artefato tecnológico criado pelo homem tem uma potência para produzir
realidades que podem ajudar a reproduzir as condições materiais de existência do
homem, mas também de transformá-las. E vemos ao longo da história o desejo do
homem em interferir nesse objeto de forma a construir um mundo determinado e a nele
atuar, sustentado pela crença na identidade objetiva da língua consigo mesma, tornandoa um objeto disponível para qualquer instrumentalização.
A alfabetização pode ser posta a serviço de toda e qualquer causa das sociedades
letradas. Daí sua força. Daí seu perigo. Não há garantias de sucesso completo por parte
daquele que organiza e executa o ato de ensinar a ler e a escrever, mesmo que se tomem
as medidas necessárias para manter a univocidade do sentido. Felizmente...
Ao longo da história social do homem, a leitura sempre foi objeto de controle dos
grupos dominantes política e ideologicamente. Não se deve deixar o impresso nas mãos
de qualquer um, isto é, de crianças, de mulheres, de pobres, de operário, etc. Não se
deve deixar o leitor entregue às palavras, que é, aliás, a relação necessária e, às vezes,
suficiente para que a aprendizagem aconteça. Em uma sociedade letrada está-se,
sempre, trabalhando para conter o que há de descontínuo, de violento, de desordem, de
acaso, de perigoso... na escrita. Ela está disponível para todos, mas não cessa de ser
organizada, protegida, cerceada.
A crítica e a negação do "mecânico" da alfabetização, sob diferentes formas
parafrásticas, parece, portanto, ser resultante do fato de se saber, consciente ou
inconscientemente, que, em se tratando de linguagem, a mecanicidade é ilusória. Não é
possível apagar, de forma absoluta, a história, a opacidade e a espessura semântica da
linguagem, do sujeito e do sentido. Mas é possível produzir relações sociais e constituir
práticas a partir dessas construções imaginárias, o que mostra a eficácia do imaginário,
pois o que funciona em uma sociedade, na perspectiva da linguagem, não é a coisa mas
os efeitos imaginários que ela (a coisa) produz.
Essa dimensão imaginária remete-nos de forma direta à realidade, por um lado, e
coloca-nos dentro da ideologia e seus efeitos de sentido, de outro.
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A ideologia é interpretação de sentidos em certa direção, determinada
pela relação da linguagem com a história, em seus mecanismos
imaginários. Ela não é, pois, ocultação mas função necessária entre
linguagem e mundo. Linguagem e mundo se refletem, no sentido da
refração, do efeito (imaginário) necessário de um sobre o outro. Na
verdade, é o efeito da separação e da relação necessária, mostradas no
mesmo lugar. Há uma contradição entre mundo e linguagem, e a
ideologia é trabalho desta contradição. Daí a necessidade de
distinguirmos entre a forma abstrata (com sua transparência e seu efeito
de literalidade) e a forma material, que é histórica (com sua opacidade
e seu equívoco) quando trabalhamos com discurso.(Orlandi: 1994)
No discurso da alfabetização, essa discussão sobre a oposição ler mecanicamente
X ler com compreensão coloca-nos, portanto, dentro do político no sentido de se dar
uma ou outra direção (sentido) a nossas práticas, de produzir o mesmo ou o diferente em
relação ao mundo, de reproduzir ou transformar as condições de existência do homem.
A questão não é de negação ou destruição do mecânico, pois "é o efeito da separação e
da relação necessária, mostradas no mesmo lugar": o das letras, em sua forma abstrata e
em sua forma material.
A apropriação da escrita alfabética é um gesto de interpretação, é um ato
simbólico, porque trata-se, antes de tudo, de uma relação do sujeito com a linguagem de
algum lugar da história e tem uma direção, que é o que chamamos de político. Para que
a língua, no caso a língua escrita, faça sentido é preciso que a história e o inconsciente
intervenham e com eles o equívoco, a opacidade, a espessura material do significante.
Nesse espaço textual, a interpretação não é mera decodificação ou decifração da
mecânica da escrita, nem é livre de determinações para produzir um sentido qualquer.
E é aqui, na apropriação da escrita, nos gestos de interpretação do sujeito que a
escola deve atuar: no lugar em que o sujeito, face a um objeto simbólico, vê-se
"obrigado" a dar um sentido às coisas, a significar o mundo. É preciso instituir uma
direção para que ele possa "encontrar" os significados no texto que lhe darão a
oportunidade de conhecer e compreender o mundo de forma crítica e criativa.
Este desejo de estabilidade e de completude que sustenta as teorias e as práticas
de leitura e de escrita vê-se, contudo, frustrado pelo próprio objeto que as instituiu e
pelo sujeito que as produz. Um objeto que atua radicalmente, de forma não-controlável,
por esse sujeito "pensante e consciente" no lugar mesmo da realização do desejo de
poder - de compreensão, de re-conhecimento do significado verdadeiro e adequado -
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contido em todo trabalho de leitura e de escrita proposto e desenvolvido pelas
instituições.
Trabalhar o "ler com compreensão" em diferentes momentos históricos, é um
ponto estratégico para gerir a interpretação, pois estabelece os limites de quem pode ou
não interpretar, de quem pode construir e re-atualizar espaços de memória. A escola ao
guiar a leitura de seus alunos, pode dificultar-limitar-impedir que se constituam lugares
de interpretação diferenciados.
4. E para nós, neste trabalho? De quê lugar falamos sobre a alfabetização?
Em primeiro lugar, falamos do lugar do alfabetizado, daquele que sabe que o
outro não sabe, daquele que aponta para a falta do outro para que ele se re-conheça
como tal. Falamos daquela posição enunciativa de quem está quase sempre invisível nos
discursos sobre a alfabetização, embora seja o modelo a ser seguido; daquele lugar que
cria a demanda por alfabetização e atribui uma configuração própria para os pobres e
excluídos das sociedades letradas.
Falamos, ainda, do lugar de uma instituição - a Escola -, que tem um discurso
específico - o pedagógico - que legitima e é legitimada por indivíduos que enunciam da
posição de sujeito-letrado - aquele que organiza e administra o espaço da escrita: um
espaço eminentemente urbano. Falamos, então, de uma posição capaz de construir uma
escrita - em termos de metalinguagem e de uso - que se transforma em objeto a ser
conhecido por alguém que é "analfabeto de pai e mãe" (coisa de herança).
Mas, falamos também como analista de discurso. E na Análise do Discurso não
é o analista, enquanto sujeito consciente e pensante, que faz a análise de um objeto
empírico controlável chamado discurso. A análise é que se faz pelo funcionamento da
materialidade lingüística do texto, através do analista, munido de um dispositivo teórico
que lhe permite trabalhar a discursividade, isto é, a espessura lingüística e histórica da
linguagem e deslocar a sua posição de sujeito-leitor para a de sujeito-analista: um lugar
em que deverá trabalhar com ambigüidades e contradições e não ignorá-las, suprimi-las
ou resolvê-las.
A Análise do Discurso não é mais uma - ou a principal - disciplina auxiliar,
complementar, para se chegar àquela globalidade complexa; ela é uma disciplina que
atua na contradição das formulações da Lingüística com as Ciências Sociais. Como
analista de discurso, interessa-nos compreender como esse tema se construiu
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historicamente no Brasil, na e pela linguagem, para ser lido e escrito, descrito e
explicado, por ciências e disciplinas aparentemente distintas. Interessa-nos, ainda,
compreender o que se diz - ou se pode dizer - em cada um desses lugares de produção,
não só de conhecimento, mas, também, de sentido e de sujeito, capaz de movimentar o
cotidiano de uma sociedade.
Não há separação entre a linguagem e o seu objeto de estudo, entre a escrita e o
sujeito, a não ser imaginariamente. Não há metalinguagem. Há uma história que fica na
linguagem como linguagem e na escrita como escritura, como textualidade, como
discursividade.
Neste sentido, tomamos a alfabetização como um ritual de passagem, organizado
institucionalmente por determinados grupos sociais de uma sociedade dada, para o
ingresso de um sujeito em um mundo novo de linguagem, que se realiza em uma
relação de interlocução com outros sujeitos, através de uma língua específica – a
nacional -, produzindo sentidos que tornarão esse novo mundo inteligível,
compreensível e interpretável - ou não - para esse mesmo sujeito.
A invenção da escrita criou um espaço novo de produção de linguagem e de
língua para ser habitado por um sujeito que aí se constituía e, ao mesmo tempo, adquiria
os meios de sua reprodução-transformação: o escriba, o escritor, o autor. Com a escrita
criou-se também o leitor: aquele que deveria "re-conhecer" o significado que fora
produzido por quem de direito, que desse voz às mensagens, que as "decifrasse"
adequadamente, ou seja, re-constituísse o sentido original. E, paradoxalmente, como diz
Manguel (1996), a exigência de um leitor, posta pela escrita, decretava a morte do
escritor, para que os sentidos do texto emergissem pelas mãos de seu verdadeiro criador.
O poder que a escrita traz não pertence apenas a seu criador. Ele tem de
necessariamente de ser compartilhado, senão com todos, pelo menos com alguns. E
mesmo esses alguns devem ser ensinados a "descobrir", a "re-conhecer" os significados
corretos, verdadeiros, pois o que um leitor vê e lê - a legibilidade de um texto organiza-se em função de um sistema que aprendeu e que compartilha - ou não - com
uma comunidade de leitores.
Isto significa dizer que estamos diante de uma ordem significante que se
constitui em uma determinada ordem histórica e social, produzindo-a e reproduzindo-a
ao mesmo tempo. E se falamos de ordem significante, é preciso supor que essa ordem se
constitua em sua relação com uma exterioridade uma vez que sem história não há
sentido, ou seja, como diz Orlandi (1994), é a inscrição da história na língua que faz
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com que ela signifique. Daí os efeitos entre locutores. E em contrapartida, a dimensão
simbólica dos fatos. (:53)
Neste trabalho, estamos, portanto, interrogando a transparência da linguagem, a
ambigüidade do sentido e a heterogeneidade do sujeito, buscando os efeitos de sentido
que se produzem em um outro espaço de linguagem, construído pela mão do homem: o
da escrita alfabética; um espaço em que a inscrição da história em uma língua - a
Portuguesa -, fazendo com que ela signifique, se dá no confronto e no conflito das
línguas de oralidade com as línguas de escrita.
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MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo, SP:
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ORLANDI, Eni P. Discurso, imaginário social e conhecimento. IN: Em Aberto, n.61,ano 14.
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SILVA, Mariza Vieira da. História da alfabetização no Brasil: a constituição de
sentidos e do sujeito da escolarização. Tese de doutorado Campinas, SP:
UNICAMP, 1998. Mimeo.
__________. O dicionário e o processo de identificação do sujeito-analfabeto. IN:
Língua e cidadania: o Português no Brasil. Orgs. Eduardo Guimarães e Eni P.
Orlandi. Campinas, SP: Pontes, 1996, 151-162
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