ENCONTROS E DESENCONTROS NA RELAÇÃO FAMÍLIA/ESCOLA Carlos Eduardo Ienne1 [email protected] RESUMO Esse trabalho apresenta brevemente a questão numa perspectiva histórica e social e introduz os conceitos de “familia pensada” e “familia vivida”, que servirão como base para a consideração de alguns pressupostos para o trabalho nessa área. Qualquer trabalho nessa área deverá ter como ponto de partida reconhecer qual o referencial de “familia” que o orienta. Antes de julgar ou desejar encaixar as pessoas em modelos preestabelecidos, é necessário ter-se certeza dos próprios conceitos e preconceitos em relação ao tema. Uns e outros estão carregados de crenças e valores que influenciam nossos sentimentos e orientam nossas ações. Encontros e desencontros na relação familia/escola discorre sobre a necessidade de um conhecimento mais aprofundado, menos calcado em preconceitos, da escola em relação à familia, e das dificuldades para o estabelecimento de uma relação horizontal entre os país e a escola, em especial quando aqueles vem das camadas populares. O conhecimento de educadores é aquele que possa servir de subsídio para o início de un trabalho de parceria. Por não o conhecerem, muitos educadores tem a falsa impressão de que os pais, mesmo os pouco escolarizados, não dispõem de um discurso crítico em relação à escola. É importante considerar que esse trabalho com pais e mães, em especial os que vivem em situação de pobreza, não debe ter o objetivo de imposição do que Vincent (2001) chama de “formas escriturais-escolares” às famílias, desconsiderando as “formas sociais orais” que caracterizam seu processo de socialização. Palavras-chave: Família; Escola; Relação. Introdução Quando se trata se considerar a relação da escola e seu “modo escolar de socialização” com famílias das classes populares constituídas, nas grandes periferias urbanas, por migrantes das zonas rurais, e suas práticas educativas baseadas na, é oralidade que se depara com os maiores desencontros entre as duas instituições. Aquelas diferem da escola quanto às formas de aprendizagem, à organização do tempo, à valorização de regras, da assiduidade e pontualidade e, também, quanto à objetivação da experiência na forma escrita e à consideração da criança como objeto da ação educativa na forma escolar (Vincent, 2001). 1 Professor na Etec, Centro Paula Souza, Orientado por Rosana Sebastião da Silva É somente no respeito a essas diferenças que se poderá construir uma relação frutífera entre família e escola. Ao assumir essa atitude na relação com as famílias, a escola estará de acordo com o que Freire chama a “natureza ética da prática educativa, enquanto prática especificamente humana” (Freire, 1996). Tal prática não acontece somente na escola, para crianças e adolescentes. Aquela pode exercê-la em relação às famílias ao abrir-se para o potencial educativo das famílias e comunidade e iniciar um intercâmbio entre as diferentes formas de socialização. A tarefa socializadora da família em nossa sociedade complexa é muito importante para ser deixada apenas por conta da repetição, sem críticas, da tradição ou da crença em sua capacidade natural de educar. Não se trata, entretanto, de propor uma “pedagogização” das relações escola/família ou pais/filhos, mas assegurar às famílias das camadas populares o acesso ao modo escolar de socialização, sem a desconsideração do seu próprio. Um passo importante para a construção de uma parceria entre escola e pais é considerá-los também como educadores, que tem o que transmitir e o que aprender. Cito novamente Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (1987, p.68). A educação ocorre no encontro de pessoas que carregam uma cultura e se dá tanto no modo formal, na escola, como informal, na família, no trabalho, nas igrejas, movimentos populares e demais organizações sociais. O intercâmbio entre as instituições educacionais, formais e informais, torna-se, cada vez mais, necessário nessa sociedade complexa em que vivemos. É importante considerarmos as diferentes formas das relações sociais propostas pelos vários contextos sociais pelos quais transitamos, para que venha a se instaurar uma relação horizontal e dialógica, em especial entre a família e a escola. 1 - A Família como Instituição Social e historicamente constituída. A família é uma das instituições responsáveis pelo processo de socialização realizado mediante práticas exercidas por aqueles que tem o papel de transmissores – os pais – e desenvolvidas junto aos que são os receptores – os filhos. Tais práticas concretizam-se em ações contínuas e habituais, ou seja, nas trocas interpessoais. Embora não se trate de conhecimento sistematizado, é o resultado de uma aprendizagem social transmitida de geração em geração. Seu caráter educativo expressa-se tanto na finalidade de transmissão de saberes, hábitos, conhecimentos e em procedimentos que garantam sua aquisição e fixação, como também na constante avaliação dos membros receptores quanto ao grau de assimilação do que lhes foi transmitido. Como toda avaliação, sofre os vieses interpretativos e serve a propósitos ideológicos calcados em valores e crenças. Há, também, a reconsideração de estratégias de transmissão da herança cultural, conforme os conhecimentos acumulados por uma cultura. Esse processo remete ao caráter histórico da família considerada como produção cultural. As crianças nem sempre ocuparam o lugar que ocupam hoje e nem sempre receberam os cuidados que merecem. Os casamentos nem sempre foram por amor, pois nem sempre as pessoas tinham o direito de escolher seus parceiros e as casas nem sempre foram o reduto privado de um núcleo familiar. Nota-se, portanto, uma contínua transformação da estrutura, organização, crenças, valores e sentimentos envolvidos na instituição familiar. São quatro séculos de formação de um modelo que se instalou no pensamento dos ocidentais e que é mantido por várias instituições tais como a escola, a igreja, o sistema de justiça e os meios de comunicação. Não é de se estranhar que mudanças sejam difíceis de serem assimiladas. Deve-se lembrar que, há três séculos atrás, a transformação para o atual modelo nuclear de família também foi vista com desconfiança e, desde então, preconiza-se seu fim. Como instituição social, a família sempre esteve inserida na rede de inter-relações com outras instituições, em especial com a escola. No momento histórico (séc. XVII) em de que a unidade escolar assumiu a educação formal, surge a preocupação com o acompanhamento mais próximo dos pais junto a seus filhos. Com essa finalidade, foram elaborados tratados de educação para os pais com a finalidade de orientá-los quanto a seus deveres e responsabilidades (Ariès, 1978). Essas orientações refletiam as expectativas da sociedade considerando um modelo específico de família – a família nuclear burguesa, na qual a mulher era incumbida de formar os filhos – em razão de lhe ter sido atribuída essa capacidade “instintiva” – e o homem recebeu a função de provedor. A interpretação das funções paterna e materna e a divisão de trabalho por gênero permanecem muito fortes até nossos dias, denotando a influência de um modelo de família construído há alguns séculos atrás. Prova disso é a falta de oportunidades formais para a formação de pais e mães como educadores e o valor de referência que esse modelo assumiu por outras instituições da sociedade, principalmente a escola. É na família que a criança encontra os primeiros “outros” e, por meio deles, aprende os modos humanos de existir – seu mundo adquire significado e ela começa a constituir-se como sujeito. Isto se dá na e pela troca intersubjetiva carregada de emoções – o primeiro referencial para a construção da identidade pessoal. A criança, ao nascer na família, já encontra um mundo organizado segundo parâmetros construídos pela sociedade como um todo e assimilados, idiossincraticamente carrega uma cultura própria. A cultura familiar particular está impregnada de valores, hábitos, mitos, pressupostos, modos de sentir e de interpretar o mundo que definem modos específicos de trocas intersubjetivas e, consequentemente, tendências para a constituição do sujeito. Esses procedimentos de inserção do jovem integrante da família no mundo, ou seu processo de humanização – seu nascimento social e existencial – manifestam-se tanto em ações com um sentido definido, quanto em oportunidades de desenvolvimento para as crianças e os adolescentes. O conceito de desenvolvimento está cada vez mais assumido um caráter relacional, que leva em conta as influências nos múltiplos níveis de proximidade da criança, o que acaba por desafiar a concepção de unilinearidade do desenvolvimento cognitivo, social e moral. O ambiente familiar é propício para inúmeras atividades que envolvem a criança numa ação intencional, numa situação de trocas intersubjetivas que vão se tornando mais complexas ou envolvendo mais intencionalidades, numa perspectiva temporal. Famílias que oferecem às crianças e adolescentes mais atividades organizadas, gradualmente aumentando sua complexidade e nas quais possam se engajar por períodos de tempo, facilitam, os processos de desenvolvimento. Essas atividades não só desenvolvem habilidades cognitivas e sociais na criança, mas vão consolidando sua posição na constelação familiar. As trocas intersubjetivas na família, numa situação de apego emocional sólido, oferecem oportunidade de desenvolvimento para todos os envolvidos e não só para as crianças. Ao se pensar em famílias como lócus de desenvolvimento, deve-se lembrar que elas divergem quanto à concepção de infância e, em consequência, irão possibilitar diferentes oportunidades de desenvolvimento. Além do mais, por razões internas e externas à família, ligadas a sistemas sociais mais próximos ou mais amplos, as condições desenvolvimento que a família poderia, saberia ou gostaria de oferecer podem não ocorrer. Desenvolvimento não é um conceito ideologicamente neutro, pois, como aponta Nunes (1994), apresenta conotações avaliativas que podem se tornar um problema quando são considerados tanto crianças e jovens ou mesmo práticas educativas familiares de diferentes culturas, origens ou classes sociais, sob o ponto de vista do grupo dominante. Ao considerar-se a família como um contexto de desenvolvimento, não se pode olhá-la como atuando isoladamente em relação às demais agências sociais. Como se pode ver, a família como contexto de desenvolvimento é um fenômeno muito complexo cuja compreensão é dificultada pelo número de fatores envolvidos: interdependentes, internos e externos à família e que apresentam efeitos cumulativos, ao longo do tempo. A relação com o ambiente social mais amplo tem efeito nos modos das famílias agirem com seus filhos e interferem no tipo de desenvolvimento que promovem. O desenvolvimento psicológico da criança é afetado: (a) pela ação recíproca entre os ambientes mais importantes nos quais a criança circula (por exemplo, na família-creche, na família-escola, entre outros); (b) pelo que ocorre nos ambientes frequentados pelos pais (por exemplo, no trabalho, nas organizações comunitárias, entre outros); (c) e pelas mudanças e/ou continuidades que ocorrem com o passar do tempo no ambiente em que a criança vive e que tem um efeito cumulativo. Nesse sentido, é ingênuo achar que medidas pontuais na família possam reverter uma situação que foi engendrada na relação com um contexto mais amplo. O ambiente familiar é propício para oferecer inúmeras atividades que envolvam a criança numa ação intencional baseada em trocas intersubjetivas que vão se tornando mais complexas, ou envolvendo mais intencionalidades, ao longo do tempo. Famílias que oferecem às crianças e adolescentes mais atividades organizadas, gradualmente aumentando sua complexidade, nas quais possam se engajar, gradualmente, facilitam, na proposta de Bronfenbrenner (1996), os processos de desenvolvimento. Essas atividades não só desenvolvem habilidades cognitivas e sociais como também vão consolidando sua posição na constelação familiar. As trocas intersubjetivas na família, em situação de apego emocional sólido, oferecem oportunidade de desenvolvimento para todos os envolvidos, sejam adultos ou crianças. A família apresenta-se como um contexto de desenvolvimento humano, lançando mão de práticas educativas com a finalidade de preparar seus filhos para a sociedade em que vivem. Trata-se da transmissão de uma herança cultural que possibilita a inserção da criança no mundo social mais amplo, para torná-la apta a atuar nele, considerando sua realidade social e histórica. Como toda avaliação, sofre os vieses interpretativos e serve a propósitos ideológicos, calcados em valores e crenças. Além do mais, tem uma finalidade socializadora reconhecida e frequentemente explicitada, com significados que se enraízam poderosamente e que definem o sentido da inserção do indivíduo no mundo social. Um olhar educativo para a família sugere que as práticas podem ser aprendidas e/ou modificadas segundo uma proposta educacional e que os pais, enquanto educadores podem ser sujeitos de um programa de formação. Este seria um serviço importante a ser oferecido às famílias, já que se cobra tanto sua participação na educação das crianças e jovens e seu envolvimento em outras instituições educativas, principalmente a escola. Para que esse envolvimento aconteça, os pais precisam aceitar a responsabilidade de se abrirem para uma mudança, que não significa apenas um novo modo de educar os filhos para que eles obedeçam melhor, mas o começo de uma luta em busca da “liberdade para criar e construir, para admirar e aventurar-se, iniciando o caminho do amor à vida” (Freire, 1970, p.55). O cotidiano da vida familiar está repleto de momentos em que se deve constatar, escolher, decidir, romper, avaliar, comparar e é nesses domínios, como os chama Freire (1996, p.21), que se impõe a necessidade da ética. É na consideração dos modos de tratamento interpessoal, de relação com o coletivo e com o ambiente, que se cria um campo de exercício da ética e se constrói a responsabilidade. A família também pode e deve estar comprometida com uma mudança na sociedade, apresentando uma visão libertária de mundo e repudiando qualquer tipo de opressão. Com certeza, não se trata de um processo isolado, mas daquelas famílias que se comprometem com esse projeto. Nele, a escola tem um importante papel e as trocas com as famílias podem ser efetivas na sua construção. Já em 1957, Freire apontava para o trabalho da escola com os pais, dando-lhes condições para mudança de “hábitos antigos de passividade para hábitos novos de participação” (Gadotti, 1996, p.96). Dialogar com uma criança e um adolescente não significa abdicar da autoridade: significa instaurar um pensar crítico; mostrar sensibilidade e abertura para compreender o outro; ter confiança na sua capacidade de compreensão; estar disponível para criar novas soluções; considerar os fundamentos éticos da educação; transmitir o conhecimento e a interpretação do mundo. Não significa ausência de conflitos, pois eles estão presentes na dialética entre o vivido e o pensado. É na sua superação que se constrói um novo saber. O diálogo cumpre sua função no movimento libertador quando é instituído como caminho para a constituição de sujeitos num processo de humanização e como ato de criação para a liberação dos homens para serem mais. A concepção autoritária de que um sabe e o outro não e que esse outro deve submeter-se é contrária à postura de humildade de quem admite no outro um saber. É essa postura que reconhece que “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (Freire, 1996, p.25). Aprender a escolher é um dos maiores legados que se pode oferecer aos filhos, e é só na prática que isso se dá. A condição de escolha cresce na medida em que se desenvolve a capacidade crítica, a habilidade argumentativa e o conhecimento de si e do mundo, incluindo-se, aqui, o conhecimento sistematizado e formal. Não é liberdade agir conforme os impulsos, numa total desconsideração pelo mundo e pelo ambiente: é licenciosidade. Enganam-se os pais que confundem impulsividade com liberdade, assim como se enganam aqueles que confundem autoridade com autoritarismo. Filhos e filhas merecem respeito à autonomia, dignidade e modo de ser e devem aprender a respeitar essas mesmas condições em relação aos seus pais e mães: é o bom senso que informa a justa medida. 2– Como conhecer a família Serão apresentados alguns cuidados que as pessoas que desejam trabalhar com famílias devem ter. Eles poderiam ser resumidos como a preocupação constante em respeitar aquelas pessoas com as quais trabalhamos, na sua individualidade, nas suas crenças e valores. a) É desejável que aqueles que pretendem trabalhar com famílias façam uma reflexão crítica a respeito das próprias experiências com sua família (de origem: pai, mãe, irmãos, tios, avós; e construída: mulher/marido, filhos) e procurem conhecer os valores, crenças e mitos que foram se desenvolvendo a respeito do que é família. b) Procurar compreender a problemática apresentada e evitar julgamentos baseados em preconceitos científicos, moralistas ou pessoais. Pode-se lembrar, aqui, de um exemplo citado por uma assistente social a respeito de uma criança que foi deixada num centro de atendimento por sua família que desapareceu. Depois de alguns meses, reapareceram para buscar o filho. Disseram que não tinham meios de sustentar a criança, por isso deixaram-na lá, onde achavam que estaria melhor do que com eles. Em momento algum acharam que tivessem abandonado a criança. Deixar o filho lá era sua interpretação peculiar de “cuidados com a criança”. Só é possível dialogar com essa família, em vista de mudanças no seu modo de agir, se primeiro tentamos compreender o seu referencial, sem julgá-la, recriminá-la, simplesmente, porque não partilha de nossos valores. É obvio que, quando se trata de famílias com procedimentos que ameacem a vida e a integridade da criança e adolescente – como no caso de violência física e abuso sexual -, a ação tem de ser imediata e radical, o que não exclui a necessidade de um atendimento á família e ao agressor (vide arts. 129 e 130 do ECA). c) O saber acumulado na área de estudos da família é útil na compreensão da problemática apresentada e no alargamento do campo de possibilidades de ação, mas as escolhas de conduta estão no âmbito da própria família. d) As pessoas da família e as que coordenam os trabalhos estão numa relação dialógica, em que todos tem a possibilidade de expor-se à mudança no processo de compreender o que está acontecendo. A troca de informações possibilita a descoberta de significados comuns. Para quem coordena os trabalhos: a atualização e a utilização de conhecimentos técnicos na área é tão importante quanto o estado de alerta (alimentado pelo processo avaliativo) para a própria forma de atuação na família. e) Para o grupo participante: o conhecimento de seu desenvolvimento no decorrer dos trabalhos (com informações fornecidas pelo processo de avaliação da sua própria responsabilidade na escolha das alternativas. Em nosso cotidiano, diante das escolhas todas que temos que fazer – pequenas escolhas e decisões importantes – estamos sempre usando um referencial (que é o que pensamos a respeito das coisas). Muitas vezes, nosso referencial (nossas crenças, valores, costumes) nos encaminha para uma direção e, ao mesmo tempo, informações novas nos empurram para outras. Para muita gente, o que está estabelecido no ECA como direitos da criança será uma grande surpresa. Pessoas que pensam: “Eu tive de parar de estudar com nove anos para ajudar minha família e meu filho também vai fazer o mesmo” ou “Eu apanhei muito quando era criança, mas hoje dizem que é violência” – terão de mudar modos arraigados de pensar. É um longo caminho, cheio de ambiguidades, esse de encarar o vivido e o pensado. Difícil, também, é o de ir construindo um pensado pessoal, crítico. Difícil porque implica, também, uma responsabilidade pessoal pela escolha dos rumos do vivido. Uma pessoa que cresce em um ambiente onde a violência é a moeda corrente vê o outro e o mundo de forma muito diferente de alguém que foi acolhido em um ambiente onde havia respeito pessoal. O primeiro direito da criança e do adolescente é o da “proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência” (artigo 72). Este é o ponto de partida para todo trabalho que se fizer com crianças e adolescentes e com suas famílias. Muitas famílias, só com ajuda para melhorar sua condição material de vida, deixam de criar condições para o deterioramento de suas relações interpessoais e o consequente dano para suas crianças e adolescentes. O trabalho focalizando as relações interpessoais preventivo ou curativo – não pode estar desvinculado do cuidado com as condições materiais de vida. 3- Situando as Relações entre Escola e Famílias O preconceito se limita a uma interpretação fechada do outro e seu mundo define atitudes, sentimentos e ações que guardam a mesma característica de rigidez. Reconhecer significa sair dos limites estreitos do preconceito e abrirse para as novas possibilidades de ser do outro e de ser-com-o-outro. Num primeiro perspectiva limitada e ensaiar um novo olhar, de preferência interrogativo, curioso. O processo de reconhecimento pede, também, um darse a conhecer, que ocorre na relação face-a-face, aberta e respeitosa (não é tão difícil assim...).Não conseguimos isso sozinhos. Precisamos de “outros”: interlocutores, livros, cursos, relatos de pesquisas. Esse reconhecimento a que me referi pode ser uma possibilidade de abertura de um novo caminho. As professoras, além de um contato pessoal com a vizinhança, com sua história e com seu cotidiano, podem aumentar seu conhecimento com uma infinidade de trabalhos acadêmicos que apontam para o descompasso entre famílias e escola. O acesso a esse conhecimento depende de uma estratégia que a escola pode desenvolver em conjunto com os órgãos públicos de formação de profissionais e com as universidades. Uma condição importante nas relações entre família e escola é a criação de um clima de respeito mútuo – favorecendo sentimentos de confiança e competência -, tendo claramente delimitados os âmbitos de atuação de cada uma. Acredito que equipes multidisciplinares possam colaborar para a construção de um conhecimento. A intermediação da comunidade, com a participação de seus representantes, também abre perspectivas de uma parceria, na qual a troca de saberes substitua a imposição e o respeito mútuo possa fazer emergir novos modelos educativos, abertos à contínua mudança. CONSIDERAÇÕES FINAIS. Descartando-se a visão naturalizada de família, pode-se depreender que as habilidades e estratégias necessárias para a prática de ações educativas foram aprendidas, de modo informal, dentro das famílias, que transmitem para as gerações seguintes tais modos de socializar os pequenos. Mas podem, também, ser transformadas em programas de atenção continuada para famílias. Indo mais longe, está se tornando uma questão ética informar às famílias das classes economicamente desfavorecidas o processo de exclusão de seus filhos e começar a construir, com elas, práticas educativas que possibilitem uma continuidade do processo socializador da família para a escola e para o mundo do trabalho. Isso não significa responsabilizar os pais pelo aproveitamento escolar, nem apagar a distinção entre educação formal e informal, nem confundir o papel materno/paterno com o papel docente, conforme adverte Carvalho (2000). O sentido dessa atuação é considerar as diferenças entre os ambientes educativos, conscientizar as famílias de baixa renda das condições esperadas pela escola, incorporar suas contribuições na educação formal, respeitar suas opções educacionais, apontar para danos que certas práticas educativas, em especial as que envolvem violência física e psicológica, podem trazer para o desenvolvimento dos filhos e apresentar a possibilidade de uma prática educativa dialógica, crítica e libertadora. A atenção psicoeducacional familiar pode ter tanto o sentido de uma prática social – no seu trabalho de atenção às famílias -, como o de um campo de conhecimento – no trabalho de pesquisa que vem sendo realizado (Durning, 1999). Trata-se de uma especialidade recente e que está em linha com a proposta de que pais, na sua função educativa, tanto quanto outros educadores, se beneficiam de programas de formação. Olhando-se os pais como educadores, não há como negar a contribuição do conhecimento científico, em especial da psicologia e da educação, para o desempenho da tarefa educativa com os filhos. A consideração da família como um fenômeno histórico, social, psicológico, educacional sugere a necessidade de um trabalho multidisciplinar ao atendimento da mesma, incluindo, tanto a possibilidade de atendimento individualizado, como as redes sociais das quais as famílias fazem parte. Além do mais, para preservar a família como um contexto de desenvolvimento, o planejamento de um programa de atenção deverá contemplar tanto fatores intrafamiliares como extrafamiliares. Por estarem, jogo, crenças e valores, arraigados, pode-se supor que projetos de intervenção devam ter uma perspectiva de mudanças a médio e longo prazos, e surge, cada vez mais, a necessidade de pesquisas longitudinais que avaliem, ao longo do tempo, tanto a eficácia de programas de atenção psicoeducacional às famílias, como seu impacto no desenvolvimento dos seus membros, em especial, crianças e adolescentes. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARIÉS P. História social da criança e da família. Trad. D. Filsman, Rio de Janeiro, Zahar, 1978. BRONFENBRENNER, U.A. Ecologia do desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. CARVALHO, M. E. P. (2000). Relações entre família e escola e relações de gênero. Caderno de Pesquisas nº 110, PP. 143-157. DURNING, P. (1999). Éducation familiale: acteurs, processus et enjeux. Paris: Presses Universitaires de France. FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1996. GADOTTI, M. Paulo Freire – uma biobibliografia. S. Paulo: Cortez. Instituto Paulo Freire, 1996. GANDOLFO, T. (1996). Interação Familiar e a Construção do Cidadão: uma possibilidade de formação do sujeito social. Dissertação de Mestrado. PUCSP. MCLOYD V.C. (1998). Social Economical Disadvantage and Child Development. American Psychologist, vol. 53, nº 2, 185-204. NUNES, T. (1994). “O Ambiente da Criança”. In: Cadernos de Pesquisa, nº 89, p. 5-23. VOGEL, A., MELLO M. A. S. Da casa à rua. In: Ayrton Fausto e Rubens Cervini (orgs). O trabalho e a rua. São Paulo: UNICEF.