IMPLICAÇÕES DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NAS PRÁTICAS DE PROFISSIONAIS EM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO1 Cláudio Rossano Dias de LIMA Especialista em Psicologia Clínica Humanista–Existencial Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte Membro do Grupo de Estudos Subjetividade e Desenvolvimento HumanoGESDH/UFRN/CNPq [email protected] RESUMO O presente trabalho apresenta a pesquisa de mestrado em execução no Programa de PósGraduação em Psicologia da UFRN, que objetiva compreender a vivência dos profissionais que trabalham no Hospital Psiquiátrico público da cidade de Natal-RN. A pesquisa parte da problemática de que embora, atualmente, sejam reconhecidas em lei novas práticas em saúde mental, nem sempre se verifica a sua execução em campo. As novas formas de atuar e novos serviços que reforma psiquiátrica brasileira propõem, evidenciam a iminência de alterações no fluxo de trabalho daqueles que atuam nos hospitais psiquiátricos. Surge, nesse contexto, a importância de conhecer o cotidiano das práticas dos profissionais que atuam nos hospitais psiquiátricos e como eles estão vivenciando este processo de mudança. Os dados serão construídos por meio de narrativas dos profissionais que atuam na referida instituição. As análises das narrativas realizar-se-ão à luz da fenomenologia-hermenêutica de Heidegger e do diálogo com os autores/pesquisadores do tema. Palavras-chave: Heidegger; Pesquisa fenomenológica; Narrativas; Hospital Psiquiátrico; Profissional de saúde mental. Introdução A reforma psiquiátrica brasileira surge como movimento na década de 1980, a partir de um processo de luta dos trabalhadores, familiares e usuários dos serviços de saúde mental do país. Suas bases estão ancoradas nas experiências da reforma francesa e italiana (Passos, 2009; Tenório, 2002; Yasui, 2011), sendo pautada em um novo paradigma da saúde mental, o da atenção psicossocial. Fruto do Projeto de Lei 3.657/89, o qual propunha mudanças nas políticas públicas de atenção à saúde mental, promulga-se em 2001 a Lei 10.216, um marco histórico para o campo da saúde mental brasileira. Como resultante desse processo, encontra-se a implementação de uma rede de atenção extra-hospitalar e de outros programas federais. Além da criação de serviços substitutivos aos Hospitais Psiquiátricos, está a proposta de atuar com novas formas de 1 Trabalho elaborado sob a orientação de Elza Dutra, professora adjunta do Departamento de Psicologia da UFRN tratamento junto aos seus usuários, considerando-se como parte do processo de reabilitação sua reinserção nos ambientes comunitários, sociais e familiares (Sampaio, Guimarães, Carneiro & Filho, 2011). À medida que a rede substitutiva avança, diminui a necessidade de acionar os serviços prestados pelos hospitais psiquiátricos. Dessa forma, as propostas conduzidas pela reforma implicam uma forte afetação na estrutura de funcionamento dos hospitais psiquiátricos, até então referência no tratamento de doentes mentais ao longo de muitos anos. Em Natal-RN, a implantação dessas novas estratégias evidencia a iminência de alterações no fluxo de trabalho daqueles que atuam nos hospitais psiquiátricos da cidade. Destacamos especificamente o Hospital Dr. João Machado (HJM), que por ser uma instituição pública é nomeada a participar dessas mudanças. Assim, nos perguntamos sobre as novas estratégias de atuação adotadas no HJM, e ainda como os profissionais que atuam nessa instituição vivenciam suas práticas em um contexto reformista ou quais as implicações que a reforma psiquiátrica tem para esses profissionais. A revisão literária mostrou que pesquisas envolvendo profissionais de saúde mental têm sido realizadas principalmente com profissionais que atuam nos serviços substitutivos (Sales & Dimenstein, 2009; Garcia & Jorge, 2006; Honorato & Pinheiro, 2008, Rabelo & Torres, 2006). Já no âmbito dos hospitais psiquiátricos foi possível encontrar estudos que abordam as perspectivas de trabalhadores de saúde mental frente ao fechamento do hospital psiquiátrico (Barbosa, Souza & Dimenstein, 2009), ou que falam da perspectiva de profissionais sobre a vivência de moradores de um hospital psiquiátrico (Bezerra & Dimenstein, 2011). Entretanto, esses estudos enfocam principalmente as mudanças que os profissionais de hospital psiquiátrico enfrentam em sua prática, pouco se dedicam a olhar o próprio trabalhador. Partindo desse contexto, o presente trabalho apresenta a pesquisa de mestrado em execução no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN que em por objetivo compreender como é a vivência dos profissionais que trabalham no Hospital Dr. João Machado ante as transformações da reforma psiquiátrica. Em linhas específicas pretendemos compreender como é para estes profissionais trabalhar em uma instituição psiquiátrica num contexto reformista; saber como a reforma psiquiátrica afetou suas práticas na instituição; conhecer quais as dificuldades enfrentadas na implementação das novas medidas exigidas pela reforma; e saber como esses profissionais lidam com as mudanças advindas da reforma. Algumas razões para pesquisar o assunto É sabido que a reforma psiquiátrica trouxe para a saúde mental, estratégias de tratamento que alteram tanto os dispositivos utilizados para este fim, quanto a visão que se têm sobre o doente mental. Nesse sentido, não somente com a reforma psiquiátrica, mas anteriormente a ela, a assistência em saúde mental nos apresenta, no decorrer de sua história, mudanças de postura quanto ao paradigma que permeia a concepção acerca da loucura. Por conseguinte alteram-se concomitantemente os tipos de tratamentos ofertados às pessoas com transtornos mentais. Ao retomar brevemente as mudanças ocorridas na história da saúde mental, encontramos importantes marcos que, de forma antagônica, simbolizam, cada um com suas peculiaridades, um processo de reforma2. Assim, o primeiro movimento da sociedade envolvendo uma tentativa de assistência às pessoas com transtornos mentais ocorre a partir do século XVII, na Europa, com o início do período mercantilista (Belmonte et al, 1998), onde foram instituídos locais reservados não só àquelas pessoas, bem como a todas as outras que contribuíam com a produção e mantimento do comércio. Entretanto, as instituições não dispunham de propostas ou ações com fins terapêuticos (Guerra, 2008). Novas perspectivas se desvelaram no século XVIII, com Pinel, que buscou estabelecer bases científicas para uma psiquiatria (Guerra, 2008). Os asilos, que abrigavam até então, toda a população marginalizada socialmente, direcionam suas ações para o tratamento da loucura. O saber médico entra em ação, e as instituições são referenciadas como palco para a prática pedagógica e de experimentação (Belmonte et al, 1998). O século XX foi período de novas mudanças. O movimento da Psiquiatria Democrática Italiana marcou o início das reformulações referentes aos trabalhos e à reabilitação em saúde mental (Guerra, 2008). Nesse momento específico da história questiona-se a eficácia dos hospitais psiquiátricos – que são comparados aos campos de concentração e vistos como lugar de exclusão social e marginalização – e são apresentadas novas propostas de trabalho para a inserção social e regate da cidadania das pessoas em tratamento, como as oficinas. 2 Não se atribua aqui, à palavra reforma, os valores dispensados pela reforma que a psiquiatria brasileira experiência atualmente; leia-a, pois, com o sentido que se refere a uma experiência de mudança nos valores sociais de uma população. Das intercorrências da reforma psiquiátrica, no Brasil, o período da década de 1980 foi marcado pelo movimento de redemocratização, e por um contexto sociopolítico favorável às críticas dos profissionais de saúde mental (Garcia & Jorge, 2006). Data deste período as reformulações assistenciais nas políticas de saúde mental, com o lema “Por uma Sociedade Sem Manicômios”, com propostas de substituir a assistência dos Hospitais Psiquiátricos por outros serviços. Deslocando-nos para a cidade do Natal, campo desta pesquisa, encontramos na rede de atenção à saúde mental os seguintes dispositivos: CAPS, Serviços de Residência Terapêutica, o Ambulatório de Prevenção e Tratamento do Tabagismo, Alcoolismo e outras Drogadições-APTAD, o Ambulatório de Saúde Mental (Prefeitura Municipal do Natal, 2007), bem como o Programa de Volta Para Minha Casa e a previsão de implantação de leitos para pacientes psiquiátricos em Hospitais Gerais. As mudanças realçadas pela reforma psiquiátrica no Brasil, com repercussões na cidade do Natal, implicaram na criação de novos serviços substitutivos. À medida que a rede substitutiva avança, diminui a necessidade de acionar os serviços prestados pelos hospitais psiquiátricos. Em Natal, essas novas estratégias, geradoras de mudança na rede de atenção de saúde mental do estado, evidencia minimamente a iminência de alterações no fluxo de trabalho daqueles que atuam nos hospitais psiquiátricos da cidade. Enquanto que as clínicas psiquiátricas particulares da cidade resistem ao fluxo seguido pela reforma, que clama por mudança de hábitos (da equipe profissional, do período de internação e dos subsídios utilizados no tratamento), talvez por uma questão de sobrevivência, a única instituição pública da cidade, o Hospital Dr. João Machado (HJM), tenta se adaptar às novas configurações de assistência implantada no município. É com base nisso que nos perguntamos, também, como se configuram as estratégias de atuação no HJM frente a estas modificações? O contexto de atenção psicossocial produzido pelas novas concepções e práticas em saúde mental denota, pois, uma atenção maior a essas novas estratégias de atenção, os serviços substitutivos. Os hospitais psiquiátricos, embora sejam colocados em pauta, haja vista sua significância à atenção em saúde mental, são deslocados do foco de atenção, que agora se voltam para os serviços mais recentes. Precisamos nos perguntar pelo lugar que os hospitais psiquiátricos ocupam atualmente. Embora a proposta de implantação de novos serviços seja importante, não se pode negar que ainda hoje a assistência que esses hospitais dispensam são necessárias e importantes. Para se chagar a uma extinção total desses hospitais, ainda há que se passar por diversas mudanças e ampliação da rede substitutiva de saúde mental. Com isso, justificamos a importância de conhecer como os profissionais do HJM, que atuam em uma instituição baseada no modelo hospitalar, vivenciam o cotidiano de suas práticas diante de um contexto de reforma psiquiátrica. Uma pesquisa desta natureza pode trazer discussões, e por que não, questionamentos que auxiliem no debate dessas novas práticas. Outrossim, o próprio contato com os profissionais pode ser caracterizado como um espaço de escuta pessoal e reflexão sobre a forma como eles estão vivenciando sua atuação naquele contexto. Ademais, as próprias contribuições embargadas por um trabalho de cunho fenomenológico-hermenêutico, traz à área uma perspectiva outra, diferente daquelas encontrada em pesquisas realizadas com trabalhadores nos hospitais psiquiátricos ou em serviços como o CAPS e as Residências Terapêuticas (Sales & Dimenstein, 2009; Honorato & Pinheiro, 2008), mas que já vem sendo cunhada (Garcia & Jorge, 2006). Como a pesquisa será feita O campo de inserção da pesquisa é o Hospital Dr. João Machado, localizado na cidade de Natal-RN, instituição psiquiátrica pública, referência na assistência em saúde mental do estado. Trata-se de uma investigação de cunho qualitativo, embasado na fenomenologia hermenêutica de Heidegger (2006). Compreende-se o homem como um ser-no-mundo, dotado da capacidade de desvelar e atribuir sentido às coisas que lhes são apresentas no mundo a partir de seu existir, e a partir do encontro com sua vida cotidiana é possível aproximar-se desses sentidos. Dessa forma, utilizamos como estratégia metodológica para o alcance dos objetivos: a observação de campo e a narrativa. Por meio da observação de campo, almejase conhecer as atividades desenvolvidas no cotidiano das práticas dos profissionais em seu ambiente de trabalho. Como parte do processo de aproximação com a cotidianidade do trabalhador e de sua vivência pessoal, serão colhidas, por intermédio de entrevistas individuais, narrativas. A narrativa é entendida enquanto expressão por meio da palavra, capaz de abordar a experiência, a existência, o ser-aí, o ser-com, pertencentes ao ser-no-mundo (Dutra, 2002), que visa a contemplação da experiência própria do narrador, que se desvela, se reconstrói e ganha novos sentidos à medida que é narrada/ouvida. Os profissionais entrevistados serão aqueles atuam na referida instituição há mais de cinco anos, caracterizando assim, uma população que fez parte das mudanças institucionais referentes à reforma psiquiátrica. As entrevistas serão norteadas por uma pergunta disparadora, a saber: como é para você ser profissional de uma instituição psiquiátrica? Durante o processo de construção dos dados o pesquisador utilizará um diário de campo, onde constarão suas primeiras afetações e interpretações sobre as observações e entrevistas. Tais afetações, em concomitante com as interpretações do pesquisador, advindas da leitura das narrativas e das nuances observadas em campo, são apresentadas durante a discussão dos dados como a parte de uma colcha de retalho que é alinhavada pelo diálogo com a teoria. Fazem parte desse diálogo, Heidegger e os conceitos elaborados em sua analítica do ser e, igualmente, autores/pesquisadores que abordam o tema dessa pesquisa em seus trabalhos acadêmicos e de campo. Referências: Barbosa, V.; Souza, P. K.; & Dimenstein, M. (2009). Trabalhadores de saúde mental frente ao fechamento de um hospital psiquiátrico. In: M. Dimenstein (Org.). Produção do conhecimento, agenciamentos e implementação no fazer pesquisa em psicologia. Natal, RN: Editora da UFRN. Belmonte, P. R., Reis, V. L. M., Pereira, R. C., Pereira, M. F. M., Jorge, M. A. S. & Costa, A. L. (1998). Temas de Saúde Mental. Textos Básicos de CBAD. 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