CIDADANIA: Ainda Falta Conscientização

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Ensinagem: Revista Periódica da Faculdade de Belém
CIDADANIA: Ainda Falta Conscientização
Ensinagem: Faculty of Belém Journal - V. 3, n.2, Julho/Dezembro 2014, p. 11-33
ISSN 2238-4871
CIDADANIA: AINDA FALTA CONSCIENTIZAÇÃO
CITIZENSHIP: STILL MISSING AWARENESS
CIUDADANÍA: AUN FALTA CONSCIENTIZACIÓN
Franco Aurélio Brito de Souza1
RESUMO
O presente estudo, cujo tema é o exercício da cidadania na
perspectiva do Estado Democrático de Direito, tem por objetivo refletir sobre qual perfil de conduta deve nortear a atuação do cidadão
hoje. Nesse diapasão, busca analisar o conteúdo inserido na expressão
Estado Democrático de Direito, correlacionando-o com a necessidade
da prática responsável da cidadania e o bem-estar da coletividade. A
partir de uma pesquisa predominantemente bibliográfica, com abordagem qualitativa, foi possível alcançar que, cidadania atualmente
exige a conscientização da existência de deveres fundamentais que
precisam orbitar no cerne de cada membro do corpo social, para fins
de gerar um sentimento comunitário em processos de inclusão, que
se apresenta como ferramenta imprescindível para o aperfeiçoamento
de uma sociedade mais harmônica, justa e solidária.
Palavras chave: Estado Democrático de Direito. Cidadania. Direito.
Dever. Coletividade.
1 Manuscript first received /Recebido em: 15/02/2014 Manuscript accepted/Aprovado em: 24/06/2014
Graduação em Direito (2006). Mestrado em Direito do Estado (UNAMA, 2009). Especialização
em Direito Eleitoral (2011) e Direito Ambiental e Urbanístico (Universidade AnhangueraUniderp, 2011). Atuou como Secretário de Administração do Município de Macapá/AP (2013).
Docente da UNAMA. Professor Adjunto I da Faculdade de Belém-FABEL e, nesta IES, é
membro do Comitê Científico e do corpo editorial científico da Revista Ensinagem. Docente da
FIBRA. Experiência acadêmica em Direito Constitucional, Direito Eleitoral, Teoria do Estado e
Ciência Política. Advogado, com atuação no âmbito Eleitoral.
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ABSTRACT
This study, whose theme is the citizenship exercise from the
perspective of the democratic rule of law, aims to reflect on what kind
of conduct should govern the actions of the citizen in the contemporary social environment. This way, try to analyze the content inserted
in the expression democratic State, correlating it with the need for
practicing responsible citizenship and the welfare of the community.
From a predominantly literature, with qualitative approach, it was
possible to achieve that citizenship nowadays requires awareness of
the existence of fundamental duties that need to orbit at the heart of
every member of the social body, with the purpose of generating a
sense of community in the inclusion processes which presents itself
as a key to the improvement of a more harmonious, just and caring
society.
Keywords: Democratic rule of law. Citizenship. Right. Duty.
Community.
RESUMEN
El presente estudio, cuyo tema es el ejercicio de la ciudadanía
en la perspectiva del Estado Democrático de Derecho, tiene por objetivo reflejar sobre cual perfil de conducta debe nortear la actuación
del ciudadano hoy. En esa sintonía, busca analizar el contenido inserido en la expresión Estado Democrático de Derecho, correlacionándolo con la necesidad da práctica responsable de la ciudadanía y
el bien-estar de la colectividad. A partir de una investigación predominantemente bibliográfica, con abordaje cualitativa, fue posible
alcanzar que, ciudadanía actualmente exige la concientización de la
existencia de deberes fundamentales que necesitan orbitar en el cerne
de cada miembro del cuerpo social, para fines de generar un sentimiento comunitario en procesos de inclusión, que se presenta como
herramienta imprescindible para el perfeccionamiento de una sociedad más harmónica, justa y solidaria.
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Palabras-clave: Estado Democrático de Derecho. Ciudadanía. Derecho. Deber. Colectividad.
1 INTRODUÇÃO
Considerando que os direitos fundamentais, além de tratarem
da tutela e promoção da pessoa na sua individualidade, percebida
como titular de direitos, denotam valores de toda coletividade, os
quais o Estado e a sociedade devem reverenciar, resguardar e promover; não se deve olvidar que direitos não podem ter uma existência
baseada na desconsideração recíproca com relação a deveres.
A máxima de que direitos não podem vigorar sem deveres segue
atual e mais do que nunca exige ser levada a sério, ainda mais pelo fato
de a atual Carta Constitucional brasileira fazer menção expressa, juntamente com os direitos, a deveres fundamentais, como se percebe da
redação do art. 5º, isto sem levar em conta outras referências diretas ao
longo do texto constitucional (SARLET, 2010, p. 226).
Não obstante, o tema dos deveres fundamentais é reconhecidamente um dos mais “esquecidos” pela doutrina constitucional hodierna, não se valendo de um regime constitucional equivalente ou
sequer aproximado àquele referente aos direitos fundamentais (NABAIS, 1998, p. 15).
No que tange ao ordenamento jurídico pátrio, a realidade não
é diferente. O desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial sobre
este tema não é consubstanciado. Tal estágio evolutivo encontra razão
de ser no desenho do próprio Estado de Direito e do que se poderia
assinalar de um legado liberal, a partir da postura do indivíduo em
face do Estado como a de titular de prerrogativas de não-intervenção
na sua esfera pessoal, fomentando a primazia quase absoluta dos direitos subjetivos em detrimento dos deveres.
Essa supervalorização dos direitos guarda relação estreita, pois,
com a visão de um cidadão descomprometido com a coletividade
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que o circunda. Constatação que, por sua vez, no que tange às características do Estado Social, necessitou de certa revisão, haja vista a
necessária ponderação a respeito do exacerbado individualismo, mirando, assim, os elementos sociais e os deveres econômicos, sociais e
culturais.
O imprescindível reconhecimento de deveres fundamentais é
pressuposto da atuação pró-ativa dos cidadãos na vida pública e impõe um esforço solidário e conjunto de todos na transformação das
estruturas sociais (ANDRADE, 1987, p. 155), reclamando um grau
mínimo de responsabilidade social no exercício da liberdade individual, além da existência de deveres jurídicos (e não apenas morais) de
deferência aos valores constitucionais.
Partindo do pressuposto que o Brasil tem sua “democracia
eleitoral maturada” (SOUZA, 2009, p. 150) - ou seja, que a realidade brasileira reflete uma conjuntura onde os atores políticos, partidos
ou interesses organizados, forças ou instituições de peso encontram
no processo democrático a única alternativa para alcançar o poder
e, principalmente, onde nenhum grupo ou instituição se julga no
direito de vetar a atuação de governantes democraticamente eleitos
- emerge o desafio ímpar de se marchar estavelmente rumo à consolidação de um ambiente democrático que garanta cidadania civil e
social a toda a sociedade, para além do voto; contudo, necessariamente, por meio da conscientização coletiva sobre o seu papel no Estado
Democrático de Direito.
Assim, emerge o problema, objeto de reflexão a partir dessas
linhas: como a cidadania deve ser exercida sob o prisma do Estado Democrático de Direito? - Por conseguinte, este questionamento
traz como norte outra questão: que tipo de conduta deve nortear a
atuação do cidadão no ambiente social contemporâneo?; Ora, dentro
desta moldura, tendo em vista pesquisa predominantemente bibliográfica, com abordagem qualitativa, o propósito que se ergue, então,
é identificar o conteúdo inserido na expressão Estado Democrático de
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Direito, correlacionando-o com a necessidade do exercício responsável da cidadania e o bem-estar da coletividade.
2 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: CARGA
VALORATIVA
Não é difícil perceber que a significativa difusão dos regimes
democráticos pelos “quatro cantos” do mundo contemporâneo e a
expressiva concordância de seu potencial para responder às angústias
e necessidades da vida humana (enquanto sociedade) podem corroborar a ideia daqueles que entendem os processos de implementação
e solidificação da democracia como o “apagar das luzes” do grande
espetáculo que é a História. Tal sensação, nas palavras de J. J. Gomes
Canotilho foi denominada de “pretensão de universalidade” (CANOTILHO, 1999, p. 20) dessa forma de organização política que alcançou o status de paradigma ocidental do Estado de Direito.
Mesmo com reservas quanto a esta ambição histórica, o certo
é que não se pode negar o fato de a democracia enquadrar-se virtuosamente num contexto global assinalado (a partir de raízes culturais
e religiosas) por concepções e convicções tão distintas acerca das diretrizes do “viver com dignidade e feliz em sociedade”. Sua proposta
de equacionar entre si valores de convivência e inter-relação humana,
v.g., igualdade, liberdade e dignidade, e permitir a resolução desses
conflitos aberta publicamente aos membros do coletivo social, apontam para tal constatação.
Nesse diapasão, pelo menos nos exemplos até aqui verificados
pela humanidade, a existência e constância de um regime democrático urge pela edificação de um ordenamento jurídico-político, que
se denominou de Estado, dotado de poder de coerção e supremacia
jurídica sobre determinado território¹.
A expressão ‘Estado’, portanto, tem sido utilizada para indicar
uma forma de organização política surgida na Europa medieval que,
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a partir do século XIX, passou a ser usada de modo quase unívoco em
todo o globo. No caminhar do tempo, a ideia de Estado tem recebido
adjetivações que lhe emprestam contornos e peculiaridades bastante
variáveis, de acordo com o desenho concreto que por ocasião vem
assumindo historicamente².
Uma que atingiu notório reconhecimento e proporções quase
universais é a imagem de Estado de Direito. Quanto às suas origens e
ao seu desenvolvimento histórico, juristas, filósofos e cientistas políticos, sem discrepâncias, apontam o surgimento do Estado de Direito
no momento em que se consegue pôr freios à atividade estatal por
meio da lei, ou seja, no instante em que o próprio Estado se submete
a leis por ele criadas (MENDES; COELHO; BRANCO, p. 64). Sendo expressão jurídica da democracia liberal moderna, intimamente
ligada à ideia de constitucionalismo, com feição de mecanismo de
limitação de poder, contrapôs o Estado absoluto, cuja principal característica era a concentração do poder na pessoa do Príncipe.
Os sinais distintivos do Estado (Liberal) de Direito foram tratados por José Afonso da Silva e resumidos em três:
[...] Submissão ao império da lei, que era a nota
primária de seu conceito, sendo a lei considerada
como ato emanado formalmente do Poder
Legislativo, composto de representantes do povo,
mas do povo-cidadão; divisão de poderes, que separe
de forma independente e harmônica os Poderes
Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica
que assegure a produção das leis ao primeiro e a
independência e imparcialidade do último em face
dos demais e das pressões dos poderosos particulares;
enunciado e garantia dos direitos individuais [...]³
(SILVA, 2003, p. 112-3).
O Estado de Direito, no molde liberal clássico, representou
valiosa conquista na trajetória das instituições políticas da humanidade. Não obstante, marcada pelo individualismo e pelo abstencio16
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nismo ou neutralismo, tal realidade estatal provocou imensas injustiças e se mostrou insuficiente para garantir o cabal atendimento dos
novos clamores por melhoria das condições de vida da população, em
sua constante luta pela efetivação de padrões qualitativos de bem-estar e harmonia social geral.
Analisada, historicamente, vê-se que essa concepção
atendia às exigências da burguesia recém-instalada
no poder, mas levaria ao limite, à sua própria
desagregação, na medida em que servia, apenas,
aos interesses de uma classe social que detendo o
poder econômico, num primeiro momento, logo se
assenhoreou, também, do poder político e, afinal,
transformou o Estado e o Direito em simples
instrumento de realização/legitimação da sua
ideologia, que outra não era senão a ideologia liberal.
[...]
Noutras palavras, como não poderia deixar de ser,
a Carta Política desse modelo de Estado de Direito
é entendida, em seus princípios, como Constituição
do liberal-individualismo – mera superestrutura
jurídica, como diriam os marxistas -, encerrando,
por isso mesmo, em primeiro lugar, uma decisão
fundamental no sentido da liberdade burguesa,
em seus múltiplos aspectos: a liberdade pessoal, a
propriedade privada, a liberdade de contratar e
a liberdade de indústria e comércio, entre outras
(MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p.67).
Diante dessa problemática social, o Estado de Direito se distancia dos rigorosos postulados absenteístas liberais e adota uma conotação intervencionista, assumindo o financiamento e a administração de programas de seguro social sem olvidar ao primado do direito.
Nesse estágio, recebe um aditamento em sua adjetivação: é agora o
Estado Social de Direito que passa a ter como fito a conciliação, num
mesmo sistema, de elementos do modo de produção capitalista com
a garantia de alcance de patamares mais elevados de bem-estar social
geral. Nas lições de Paulo Bonavides:
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Quando o Estado, coagido pela pressão das massas,
pelas reivindicações que a impaciência do quarto
estado faz ao poder político, confere, no Estado
constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho,
da previdência, da educação, intervém na economia
como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda,
regula os preços, combate o desemprego, protege
os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa
própria, controla as profissões, compra a produção,
financia as exportações, concede crédito, institui
comissões de abastecimento, provê necessidades
individuais, enfrenta crises econômicas, coloca
na sociedade todas as classes na mais estreita
dependência de seu poderio econômico, político e
social, em suma, estende sua influência a quase todos
os domínios que dantes pertenciam, em grande
parte, à área de iniciativa individual, nesse instante
o Estado pode, com justiça, receber a denominação
de Estado social (BONAVIDES, 2007, p. 186).
No Estado Social de Direito, em princípio, também não se vislumbra uma incompatibilidade com a dimensão “democrática” que
se fazia presente nas origens do Estado de Direito. Pelo contrário, o
alargamento e realização de direitos civis e políticos para o âmbito
dos direitos sociais e econômicos acabaram por colaborar, na maioria
dos casos, para a consolidação e o avanço das instituições democráticas4.
No entanto, a expressão “Estado Social de Direito” igualmente
não se revelou apta a traduzir os anseios mais dinâmicos e participativos das diversas sociedades5, emergindo na metade do século XX
uma nova adjetivação que se espraiou pelos textos constitucionais
de inúmeros países, qual seja, a noção de Estado Democrático de
Direito6-7.
Este “novo Estado”, pelo menos em tese, deveria buscar aquilo
que Inocêncio Mártires Coelho chamou de “uma generosa utopia”
(MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 69) perseguida por Elías
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Díaz, em cujo seio se realizaria a integração conciliadora dos valores
da liberdade e da igualdade, da democracia e do socialismo, traduzindo-se na síntese do processo contraditório do mundo contemporâneo8. Vale dizer, ir além do Estado capitalista opressor e segregador
para configurar um Estado fomentador de justiça social (SOUZA,
2007, p. 113), o qual as “democracias populares” (socialismo real)
não foram capazes de construir em virtude do personalismo e monismo político (SILVA, 2003, p. 120).
3 O EXERCÍCIO DA CIDADANIA SOB O PRISMA DO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A compreensão hodierna de cidadania é um fenômeno singular, de modo que não se há de articular em uma sequencia do mundo
antigo. A “cidadania” do passado9 não guarda relação muito estreita
com o entendimento atual. Não obstante, como a análise histórica do
que se entende por cidadania dá sentido à percepção desse processo
evolutivo e facilita a apreensão de sua acepção contemporânea, para
os fins perseguidos neste estudo remontar-se-á aos idos das Revoluções Liberais10 em função de refletirem marcos significativos.
Dentro desse contexto, pode-se asseverar que a estrutura da cidadania foi alicerçada pelas revoluções inglesa, americana e francesa.
Posteriormente, o conceito de cidadania continuou se desenvolvendo
de acordo com o avanço da sociedade, v.g., direitos sociais, meio ambiente, luta das mulheres e das minorias em geral, até culminar ao
estágio conhecido presentemente.
A Revolução Inglesa (1640-1688) assinalou uma transformação nas relações de poder na sociedade (COMPARATO, 2008, p.
98), o qual passou para as mãos de uma nova classe social (a pequena
nobreza progressista e agricultor capitalista) indicando o norte para
o livre desenvolvimento do modo de produção capitalista. Trouxe
consigo a necessidade histórica da inquietação com “[...] a inclusão
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dos despossuídos e o tratamento dos iguais com igualdade e dos desiguais com desigualdade” (MONDAINI, 2005, p. 131). Corresponde
de tal modo a uma baliza expressiva de abandono da era dos deveres
e passagem para a era dos direitos.
A Revolução Americana (1776) foi precursora na formulação
dos direitos humanos (COMPARATO, 2008, p. 99). A declaração da
independência americana trouxe em seu bojo ideias conectadas à cidadania como o direito à vida, à liberdade, à felicidade e à igualdade
entre os homens. “A liberdade passou a ser constituída como fator
de integração nacional e de invenção do novo Estado” (KARNAL,
2005, p. 140). É de bom alvitre ressaltar que apesar dessa liberdade
não ter sido irrestrita, posto que foram excluídos os índios, as mulheres e os negros, nos dizeres de Leandro Karnal:
[...] a liberdade religiosa, a liberdade de imprensa,
o sufrágio universal masculino e a educação pública
seduziam o mundo. O cidadão norte-americano
parecia gozar de uma liberdade inédita e sem a
necessidade de enfrentar as desordens e o caos
revolucionário francês (KARNAL, 2005, p. 148).
Observa-se, pois, que o diferencial da revolução americana foi a
questão da cidadania relacionada ao direito à liberdade. A Revolução
Francesa (1789) constitui, sem qualquer dúvida, dentro dessa evolução do conceito de cidadania, um marco de singular relevância em
virtude dos princípios tremulados: liberdade, igualdade e fraternidade (COMPARATO, 2008, p. 128). Sendo considerada a fundadora
dos direitos civis, tem como termo expressivo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada em 26 de agosto de 178911.
Tal documento teve o distintivo de universalidade, por isso
também sua maior propagação mundial; não se restringindo apenas
aos cidadãos franceses, constituiu “uma declaração dos direitos civis
dos homens, sem qualquer tipo de distinção, pertençam não importa
a que país, a que povo, e a que etnia. É uma declaração que pretendeu
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alcançar a humanidade como um todo” (ODÁLIA, 2005, p. 164).
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, nessa conjuntura, sobressaiu-se porque denotou o florescer de um processo de
transformação consubstanciado na garantia legal dos direitos civis.
Sem embargo desta relevância histórica, convém observar, por sua
vez, análise crítica elaborada por Karl Marx referente ao sentido da
Revolução Francesa para o futuro, a qual foi bem resumida por Fábio
Konder Comparato:
Foi preciso que transcorresse pouco mais de meio
século da Revolução Francesa, para que se fizesse a
primeira análise crítica prospectiva em profundidade.
Num escrito de juventude, Karl Marx enxergou-a
como a instauração do regime do individualismo
egoísta, em lugar do egoísmo corporativo do Ancien
Régime. A separação entre “direitos do homem”
e “direitos do cidadão”, entre a sociedade civil e a
sociedade política, demonstrava, segundo ele, que
se realizara uma autêntica revolução copernicana
em relação ao feudalismo. Neste, salientou Marx,
a sociedade civil ostentava diretamente um caráter
político, pois as instituições elementares da vida
civil – como a posse, a família, ou o trabalho –
eram estruturadas, respectivamente, sob as formas
jurídicas da dominação feudal, do estamento e da
corporação. A Revolução, ao suprimir a dominação
social fundada na propriedade da terra, ao destruir
os estamentos e abolir as corporações, acabou por
reduzir a sociedade civil a uma coleção de indivíduos
abstratos, perfeitamente isolados em seu egoísmo.
Em lugar do solidarismo desigual e forçado dos
estamentos e das corporações de ofícios, criou-se a
liberdade individual fundada na vontade, da mesma
forma que a filosofia moderna substituíra a tirania
da tradição pela liberdade da razão. O regime
da autonomia individual, próprio da civilização
burguesa, tem seus limites fixados pela lei, assim
como a divisa entre dois terrenos é fixada por cercas
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ou muros. Os “direitos do cidadão” passaram,
então, a servir de meios de proteção aos “direitos
do homem”, e a vida política tornou-se mero
instrumento de conservação da sociedade civil, sob
a dominação da classe proprietária (COMPARATO,
2008, p. 146-7).
Verifica-se que a História articula fundamentalmente a questão da cidadania à conquista de direitos, o que, por conseguinte, no
aspecto legal, traduz uma evolução no reconhecimento destes. Nessa
direção, pensadores contemporâneos (BOBBIO, 2004, p. 52) revelam que na evolução dos direitos dos homens encontram-se três grupos distintos:
a) Direitos civis - correspondentes ao conjunto das liberdades
individuais estabelecidas por meio da igualdade jurídica. Compreende-se o direito de liberdade como o direito que tende a limitar o
poder estatal e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado;
b) Direitos políticos - referentes ao exercício do poder e são
estabelecidos por mecanismos de participação social e política. Os
direitos políticos são aqueles que, concebendo a liberdade não apenas
negativamente, como não impedimento, mas positivamente, como
autonomia, tiveram como consequência a participação cada vez mais
ampla, generalizada e frequente dos membros de uma comunidade
no poder político (ou liberdade no Estado);
c) Direitos sociais - que se apresentam como o conjunto das
garantias mínimas do bem-estar econômico, de acordo com os padrões culturais aceitos por uma sociedade. São regidos pelo signo da
igualdade e visam ao bem-estar social. Os direitos sociais expressam
o amadurecimento de novas exigências (de novos valores) como os do
bem-estar e da igualdade não apenas formal, e que se poderia chamar
de liberdade através ou por meio do Estado12.
Neste momento, já é perceptível que a definição de cidadania
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é extremamente complexa haja vista não se tratar de um conceito
estanque, mas sim histórico-dialético, variando seu sentido no tempo
e no espaço.
Cidadania não é uma definição estanque, mas um
conceito histórico, o que significa que seu sentido
varia no tempo e no espaço. É muito diferente ser
cidadão na Alemanha, nos Estados Unidos ou no
Brasil (para não falar dos países em que a palavra
é tabu), não apenas pelas regras que definem quem
é ou não titular da cidadania (por direito territorial
ou de sangue), mas também pelos direitos e deveres
distintos que caracterizam o cidadão em cada um dos
Estados-nacionais contemporâneos. Mesmo dentro
de cada Estado-nacional o conceito e a prática da
cidadania vêm se alterando ao longo dos últimos
duzentos ou trezentos anos. Isso ocorre tanto em
relação a uma abertura maior ou menor do estatuto de
cidadão para sua população (por exemplo, pela maior
ou menor incorporação dos imigrantes à cidadania),
ao grau de participação política de diferentes grupos
(o voto da mulher, do analfabeto), quanto aos direitos
sociais, à proteção social oferecida pelos Estados aos
que dela necessitam (PINSKY, 2005, p. 9).
A evolução histórica do conceito de cidadania descortina várias
circunstâncias que, consideradas absurdas outrora, incorporam-se ao
conteúdo de cidadão com o passar dos anos. Exemplos dessas situações podem ser verificados na questão da mulher, do negro, do deficiente físico, da criança e do adolescente13.
Dessa forma, pode-se conceituar cidadania diante de uma conjuntura espaço-temporal dialética, porém em hipótese alguma de
maneira perene e definitiva, eis que o conceito também se liga, precipuamente, às lutas e reivindicações de cada povo e ao pleno exercício
da democracia.
Cidadania, sob o prisma moderno14 é “[...] um conceito deri-
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vado da revolução Francesa (1789), para designar um conjunto de
membros da sociedade que têm direitos e decidem o destino do Estado” (FUNARI, 2005, p. 49). Jaime Pinsky atribui ao cidadão as
seguintes características:
Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à
propriedade, à igualdade perante a lei: é, em
resumo, ter direitos civis. É também participar do
destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos
políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram
a democracia sem os direitos sociais, aqueles que
garantem a participação do indivíduo na riqueza
coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário
justo, à saúde, a uma velhice tranqüila. Exercer a
cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais
(PINSKY, 2005, p. 9).
Pode-se dizer que ser cidadão sugere o reconhecimento e a
concretização de seus direitos civis, políticos e sociais. Ao passo que
cidadania traduz a efetivação de tais direitos e a luta incessante para
alcançá-los, além de implicar no cumprimento de seus deveres:
[...] só existe cidadania se houver a prática da
reivindicação, da apropriação de espaços, da pugna
para fazer valer os direitos do cidadão. Nesse
sentido, a prática da cidadania pode ser a estratégia,
por excelência, para a construção de uma sociedade
melhor. Mas o primeiro pressuposto dessa prática
é que esteja assegurado o direito de reivindicar os
direitos, e que o conhecimento deste se estenda, cada
vez mais, a toda a população (COVRE, 1991, p. 10).
Isso posto, delineando cidadania, tem-se que: a) alude ao reconhecimento e à concretização dos direitos civis, políticos e sociais; b)
necessita da prática de reivindicação, com a ciência de que o interessado pode ser o agente desses direitos; c) precisa da conscientização dos
direitos e deveres; d) gera um sentimento comunitário em processos
de inclusão; e) apresenta-se como ferramenta imprescindível para a
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edificação de uma sociedade mais harmônica, justa e igualitária.
Pelo revelado, notória e lógica é a estreita relação entre cidadão e cidadania, pois aquele abarca a prática do indivíduo através da
garantia de seus direitos e a cabal participação na sociedade, enquanto que esta é considerada um atributo do cidadão, isto é, traduz o
conjunto de atributos do cidadão no que tange a sua relação com as
pessoas e a sociedade política a que pertence.
Vale assinalar também a visão de Thomas Marshall a respeito
do tema, já que para este autor a definição de cidadania deve conjugar três elementos, a saber, o civil, o político e o social (MARSHAL, 1967, p. 63). Sendo aquele primeiro integrado pelos direitos
necessários à liberdade individual, abrangendo o direito de ir e vir,
liberdade de pensamento, liberdade religiosa, direito de propriedade,
direito de celebrar contratos e direito à justiça, o qual, especificamente, distingue-se dos demais porque traduz o direito de defender
e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com os outros e
pelo devido encaminhamento processual.
Caminhando com os ensinamentos sobre os elementos que
se agregam à noção de cidadania, o referido autor leciona que a dimensão política consiste precisamente na ideia já consagrada correspondente ao direito de participação no exercício do poder político,
mediante a prática do direito de votar e ser votado para as funções
governamentais, tanto a legislativa quanto a executiva. Por fim, no
tocante ao denominado elemento social, diz com o direito ao mínimo bem-estar econômico e segurança pessoal e o direito de sentir
e desfrutar de um padrão de vida civilizado coerente com os níveis
satisfatórios socioeconômicos que vigoram na sociedade15.
4 CONCLUSÃO
Balizado pelo relevo do art. 1º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o qual integra o rol dos princípios
fundamentais do ordenamento jurídico pátrio; sem qualquer pretenEnsinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 11-33
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são de findar o debate a respeito da carga valorativa da expressão
e do seu significado para a harmonização das relações intrassociais;
pode-se indicar que hodiernamente Estado Democrático de Direito
diz com organização jurídico-política que reúne singularidades edificadas a partir de inúmeros arcabouços teóricos, v.g, constitucionalismo, república, ingerência popular na tomada de decisões públicas,
separação de poderes, legalidade, garantia e prática de direitos individuais, políticos, sociais, econômicos e culturais, desenvolvimento
e justiça social.
Orientado pela cidadania e suas exigências práticas para o alcance de níveis de bem-estar coletivizados, percebe-se, igualmente,
que a conduta norteadora do cidadão, ante o conteúdo do Estado Democrático de Direito, não prescinde ao reconhecimento e à concretização dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais,
bem como à prática de reivindicação; entretanto, sobretudo, exige
conscientização da existência de deveres fundamentais que precisam
orbitar no cerne de cada membro do corpo social, para fins de gerar
um sentimento comunitário em processos de inclusão, que se apresenta como ferramenta imprescindível para o aperfeiçoamento de
uma sociedade mais harmônica, justa e solidária.
Refletir sobre a efetivação de tal conduta consubstancia-se
em alternativa para enfrentar o processo de transformação social que
ora se impõe, a partir do qual teorias, conceitos, modelos e soluções
então considerados hábeis para detectar e resolver crises, parecem não
mais surtirem efeito, o que, por sua vez, tem o condão de gerar um
sentimento de desesperança no seio social, aprofundando as dificuldades de convivência entre as pessoas.
Consciência e responsabilidade coletivas são exigências inadiáveis para responder às angustias individuais da atualidade. É mister compreender que atitudes particulares repercutem necessariamente no “todo”, eis que este não existe sem as partes.
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NOTAS
1 Impende destacar que o Estado Moderno, bem como seus consagrados
elementos estruturais, passam por uma forte mutação advinda do processo
de globalização hodierno. Sobre a redefinição de conceitos para o Estado
Pós-Moderno ver ROCHA, Luiz Alberto G. S. Estado, democracia e globalização. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
2 “Esclarecendo, desde logo, que essa evolução não se verificou de forma
linear e sincrônica – antes se realizou com avanços e retrocessos, em contextos variáveis ou distintos – como, de resto, sempre ocorreu no processo de
desenvolvimento das ideias e instituições, [...] ressaltando, ademais, a natureza dialética desse evolver histórico, graças ao que as fases subsequentes
devem ser vistas como absorção/transformação/superação das etapas anteriores, em movimento aberto e infinito, em tudo semelhante ao movimento
do espírito humano” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 66).
3 Trazendo a análise para o contexto da América Latina, José Ribas Vieira
leciona que o Estado de Direito originalmente veio no bojo do movimento
liberal que coincidiu com a formação da maioria dos Estados nacionais do
continente. Conforme o autor, existe uma diferença fundamental entre os
países da América Latina e da Europa no que tange ao Estado de Direito,
haja vista que em algumas sociedades europeias tal percepção de Estado
“transforma-se na própria consciência de seus cidadãos”, enquanto que na
América Latina “o Estado de Direito assume característica meramente formal e imposta de cima pelo poder político”. (VIEIRA, 1989, p. 140).
4 Vale ressaltar, todavia, a insuficiência da concepção de Estado Social de
Direito intimamente ligada à ambiguidade que carrega a palavra social: “A
Alemanha nazista, a Itália fascista, a Espanha franquista, o Portugal Salazarista, foram ‘Estados sociais’. Da mesma forma, Estado social foi a Inglaterra de Churchill e Attle; os Estados Unidos, em parte, desde Roosevelt;
a França, com a Quarta República, principalmente, o Brasil, desde a Revolução de 30 [...] Ora, evidencia tudo isso que o Estado social se compadece
com regimes políticos antagônicos, como sejam a democracia, o fascismo e
o nacional-socialismo [...]” (BONAVIDES, 2007, p. 184). Depreende-se,
pois, que muitas ideologias, exceto a marxista, que não confunde o social
com socialista, com sua própria visão do social e do Direito, podem acolher
uma concepção do Estado Social de Direito. Além disso, verifica-se que o
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ideal não é o “social” qualificar o Estado, e sim o Direito, em busca de significativo bem-estar e justiça social.
5 Questão absolutamente pertinente é a levantada por Elías Díaz a respeito
do que estaria por trás da adjetivação capitalista social: “saber se e até que
ponto o neocapitalismo do Estado Social de Direito não estaria em realidade encobrindo uma forma muito mais matizada e sutil de ditadura do
grande capital, isto é, algo que no fundo poderia denominar-se, e se tem denominado, de neofascismo [...] O grande capital encontrou fácil entrada nas
novas estruturas demoliberais, chegando assim a constituir-se como peça
chave e central do Welfare State. Ainda que institucionalizado no chamado
Estado Social de Direito, permanece sempre sob este – representada por
seus grupos políticos e econômicos mais reacionários e violentos – essa
tendência e propensão do capitalismo ao controle econômico e monopolista e à utilização de métodos políticos de caráter totalitário e ditatorial,
visando a evitar, sobretudo, qualquer eventualidade realmente socialista”.
(DÍAZ, 1973, p. 121/123).
6 Inclusive a nossa Constituição de 1988 em seu art. 1º, caput, também adota expressamente a ideia de “Estado Democrático de Direito” para definir o
formato da organização jurídico-política da República brasileira.
7 À guisa de esclarecimento, convém ressaltar que as etapas evolutivas
apresentadas aqui em sequencia: Estado (Liberal) de Direito, Estado Social
de Direito e Estado Democrático de Direito, não são adotadas em absoluto por todos os autores que discutem a matéria. É o caso, por exemplo,
de Carlos Ari Sundfeld que assim indica tal evolução: Estado de Direito,
Estado Democrático de Direito e Estado Social e Democrático de Direito.
Para este autor, os traços característicos do Estado de Direito são: a) a supremacia da Constituição; b) a separação dos Poderes; c) a superioridade da
lei; d) a garantia dos direitos individuais. Quanto aos elementos integrantes do conceito de Estado Democrático de Direito, encontram-se: a) criado e
regulado por uma Constituição; b) os agentes públicos fundamentais são
eleitos e renovados periodicamente pelo povo e respondem pelo cumprimento de seus deveres; c) o poder político é exercido, em parte diretamente
pelo povo, em parte por órgãos estatais independentes e harmônicos, que
controlam uns aos outros; d) a lei produzida pelo Legislativo é necessariamente observada pelos demais poderes; e) os cidadãos, sendo titulares de
direitos, inclusive políticos, podem opô-los ao próprio Estado. Com relação
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à noção de Estado Social e Democrático de Direito, agregam-se aos elementos conceituais já indicados o dever estatal de atingir objetivos sociais, e
a atribuição, aos indivíduos, do correlato direito de exigi-lo. Em termos
sintéticos, o Estado Social e Democrático de Direito é a soma e o entrelaçamento
de: constitucionalismo, república, participação popular direta, separação de
Poderes, legalidade, direitos (individuais, políticos e sociais), desenvolvimento e justiça social. (SUNDFELD, 2006, p. 37/58).
8 Seguindo nas considerações sobre o tema realizadas por Elias Díaz tem-se
que: “Desta forma, e sem querer chegar com isso apressadamente à ‘grande
síntese final’ ou qualquer outra forma de ‘culminação da história’ (isto deve
ficar bem claro), cabe dizer que o Estado Democrático de Direito aparece
como fórmula institucional e que atualmente, e sobretudo para um futuro
próximo, pode vir a concretizar-se o processo de convergência em que podem ir ocorrendo as concepções atuais da democracia e do socialismo. A
passagem do neocapitalismo ao socialismo nos países de democracia liberal
e, paralelamente, o crescente processo de despersonalização e institucionalização jurídica do poder nos países de democracia popular, constituem em
síntese a dupla ação para esse processo de convergência em que aparece o
Estado Democrático de Direito”. (DÍAZ, 1973, p. 133). Ressalta-se que
não quer dizer que a nossa Constituição prometeu em suas linhas a transição para o socialismo a partir da inauguração do Estado Democrático de
Direito. O que houve foi a indicação para transformação social profunda,
baseada na prática de direitos sociais e no exercício real da cidadania, perseguindo a justiça social, sempre conexa com a dignidade da pessoa humana.
Sobre o tema ver ainda: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2001.
9 Com relação à noção de “cidadania” na antiguidade greco-romana; no
período medieval; bem como na época do surgimento dos Estados Nacionais europeus, ver MARSHAL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social
e status. Rio de Janeiro, Zahar, 1967.
10 “As grandes Revoluções Liberais que agitaram o panorama sociopolítico
europeu nos séculos XVII e XVIII, sob a influência das ideias iluministas
de cunho jusnaturalista que pregavam a igualdade entre todos os seres humanos e afirmavam que a liberdade era um princípio intangível que deveria
ser respeitado pelo Estado, trouxeram novos horizontes para a redefinição
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do conceito de cidadania” (ALVES, 2006, p. 29).
11 “Ela [a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão] representa, por assim dizer, o atestado de óbito do Ancien Regime, constituído pela
monarquia absoluta e pelos privilégios feudais, e, neste sentido, volta-se
claramente para o passado. Mas o caráter abstrato e geral das fórmulas empregadas, algumas delas lapidares, tornou a Declaração de 1789, daí em diante, uma espécie de carta geográfica fundamental para a navegação política
nos mares do futuro, uma referência indispensável a todo projeto de constitucionalização dos povos” (COMPARATO, 2008, p. 151).
12 Tais direitos seriam garantidos da seguinte forma: a) os tribunais para
a garantia dos direitos civis; b) as assembleias, câmaras e congressos locais
e nacionais, como espaços institucionais de representação popular nas tomadas de decisão e elaboração de legislação e, portanto, de salvaguarda dos
direitos políticos; c) o conjunto de ações públicas com fins sociais que se
apresentam nas mais diversas instituições, entre as quais aquelas correspondentes à saúde, educação e previdência, que garantem os direitos sociais
(MEKSENAS, 2002, p. 38). A título exemplificativo, na Inglaterra, esses
direitos consolidaram-se de maneira escalonada, isto é, os direitos civis, os
políticos e os sociais, respectivamente, no século XVIII, no século XIX e no
século XX. Em terras brasileiras, a consolidação desses direitos aconteceu
tardiamente (a partir do século XIX) e de modo distinto. Estabeleceramse direitos políticos, alguns direitos sociais (principalmente na era Vargas)
e os direitos civis, sempre enfrentando obstáculos naturais por força da
mudança da forma de governo e das políticas desenvolvidas. Essa situação
evidencia um desenvolvimento na questão da cidadania do povo brasileiro
caracterizado por fatos históricos e pela exclusão de parcela da comunidade
(mulheres, escravos, negros, crianças e adolescentes, portadores de deficiência) de seus direitos fundamentais. Atualmente, a afirmação dos direitos civis, políticos e sociais está bem desenhada na Constituição Federal de 1988,
muito embora a população ainda padeça do mal da desinformação, advindo
muitas vezes da extrema marginalização socioeconômica.
13 Com a finalidade de facilitar o trabalho dos que quiserem aprofundar
o tema sobre a evolução da noção de cidadania, em especial na realidade
brasileira, José Murilo Carvalho indica uma singular lista de literatura
pertinente, dentre as quais, destaca-se aqui: “a Historia geral da civilização
brasileira, organizada por Sergio Buarque de Holanda (colônia e Império)
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e Boris Fausto (República). Foi publicada em São Paulo pela Difel em 11
volumes, entre 1960 e 1984 [...] Recentes também, e mais acessíveis, são
a História do Brasil de Boris Fausto (São Paulo, Edusp, 1996 [...] e História
geral do Brasil, organizada por Maria Yedda Linhares (Rio de Janeiro, Campus, 9 ed., 2000 [...] Há alguns ensaios clássicos de interpretação do Brasil
de grande relevância para o tema da cidadania, embora não o tratem diretamente nem exclusivamente e adotem perspectivas muito variadas. Cito [...]
Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala (Rio de Janeiro, José Olympio, 1933)
[...]” (CARVALHO, 2003, p. 231).
14 Assim como os elementos estruturais do Estado Moderno, a noção de
cidadania também vem sofrendo forte modificação a partir do processo de
globalização hodierno. Faz-se mister incluir neste ponto a referência cultural para melhor análise da matéria e não perder de vista que “a leitura
genuinamente histórica que trata de questões do tempo presente, portanto,
localizada no mesmo fluxo de nossas atividades cotidianas, não pode se dar
ao luxo de exercer a posição apriorística do julgamento moralista absoluto;
senão deixar-se levar pela dialética necessária de argumentos opostos e de
origens filosóficas diversas que tornem a leitura de dentro do pós-modernismo mais próxima à compreensão holística de sua realidade multifacetada
[...] Todas, e tantas outras, peculiaridades culturais do pós-modernismo são
sintomas e expressões de uma dialética historicamente original, envolvendo
a inserção dos sujeitos individuais em um conjunto multidimensional de
realidades radicalmente descontínuas que vão desde os rincões de modernismo burguês até a desorganização inimaginável do capital global. O futuro
dessa nova ordem cultural pós-moderna, em substituição à guerra antiambivalência, poderá ser superada com a contínua reformulação das fronteiras
fazendo com que os antagonismos se tornem cada vez mais superficiais. E
a focalização no globo deve ser somente para sugerir qual o novo nível de
conceitualização. Mas, talvez a questão mais controversa seja como culturalmente não aceitar que o processo de assimilação cultural propague seus
danos mundo afora. A forma política do pós-modernismo, se houver uma,
terá como vocação a invenção e a projeção do mapeamento cognitivo global,
em uma escala social e espacial” (ROCHA, 2008, p. 146 e 152). Sobre
o assunto ver ainda BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências
humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999; SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência
universal. 13. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
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15 A moldura do significado de mínimo existencial, bem como a validade de
seu conteúdo, são temas constantemente abordados pela literatura jurídica contemporânea. Ver SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional. 10. ed. rev. atual e ampl. 2 tir. Porto Alegre: Livraria do
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