UMA ARGENTINA SE CONSTRÓI A CADA DIA Samuel

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UMA ARGENTINA SE CONSTRÓI A CADA DIA
Samuel Pessoa
Grande dúvida de diversos analistas, certamente deste colunista, é se o atual governo, se
reeleito, dobraria a aposta no intervencionismo e na piora do regime de política
macroeconômica ou se buscaria o caminho do ajustamento.
Dobrar a aposta significa continuar a tolerar a inflação acima da meta, não refazer o superávit
primário, manter a inconsistência na política econômica com juros elevados e,
simultaneamente, política creditícia muito expansionista dos bancos públicos.
No terreno microeconômico dobrar a aposta significa manter a regulação altamente
discricionária dos setores de utilidade pública, incluindo o enfraquecimento das agências
reguladoras; manter a política de controle de preços para combater a inflação, com efeitos
destrutivos sobre os setores de petróleo, álcool e elétrico; e manter a política de desonerações
seletivas entre outras ações de microgerenciamento da política microeconômica.
A consequência de dobrar a aposta será o aumento contínuo da inflação, e um processo de
fuga de capitais que produzirá forte desvalorização do câmbio, contribuindo para pressionar
ainda mais a inflação. A insistência na trajetória de não ajustamento obrigará em algum
momento à centralização da conta financeira, com a saída do país do mercado internacional de
capital.
Um aspecto que me parece tem sido pouco notado é que o caminho de argentinização não é
fruto de uma escolha racional a partir de análise política que pese todas as suas
consequências.
Caminhos como esse em geral são percorridos como consequência da incapacidade da
sociedade em enfrentar seus dilemas e conflitos distributivos. Seguem-se, a cada momento, as
vias de menor resistência.
Não resulta de algum planejamento de longo prazo de algum ator político ou social. É por esse
motivo que uma Argentina se constrói a cada dia, fruto da incapacidade de enfrentarmos
nosso conflito distributivo cotidiano.
É perfeitamente natural que capital e trabalho disputem renda. É perfeitamente natural que
essa disputa produza pressão por aumento de salários e, como consequência, pressão por
aumento de preços, ou vice versa.
A função da política econômica é evitar que esse conflito produza efeitos ruins para a
coletividade. A forma de fazê-lo é por meio da política de controle da demanda – cujo principal
e mais eficaz instrumento é a taxa básica de juros –, de maneira a desacelerar a economia
sempre que o conflito distributivo realimentar a espiral inflacionária.
A desaceleração da economia aumenta, de forma temporária e reversível, a taxa de
desemprego, e com ela o ímpeto dos trabalhadores para buscar aumento de salários. Da
mesma forma, reduz a demanda temporária e reversivelmente, e, com isso, o ímpeto dos
empresários em remarcar. Aidar o ajustamento somente aumenta o custo futuro.
Há diferentes formas de enfrentar o conflito capital e trabalho. As sociedades anglo-saxônicas
preferem que a gestão do conflito distributivo fique a cargo integralmente do mercado, tendo
a política monetária como árbitro.
A social democracia europeia, além do instrumento clássico de gestão do conflito distributivo,
a política monetária, emprega mecanismos diretos de negociação para auxiliar na redução do
custo da gestão puramente macroeconômica do conflito. Criam-se pactos entre empresários e
trabalhadores – em que moderação de aumentos de salários reais é trocada por moderação
nos aumentos de preços – cujo resultado final é reduzir o custo social da política monetária.
Evidentemente para que o modelo europeu continental funcione a contento é necessário
haver fóruns bem abrangentes de negociação capital-trabalho, geralmente com a presença do
governo que funciona como árbitro, que consiga negociar pactos nacionais.
O que nenhuma sociedade desenvolvida faz é transigir com a inflação. A incapacidade de
aceitar este fato – explícito na afirmação de que não se combate a inflação com o aumento do
desemprego – nos conduz ao caminho de construir uma Argentina um pouco a cada dia.
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