Um Estudo Sobre Moeda, Juros E Distribuição

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UM ESTUDO SOBRE MOEDA, JUROS E DISTRIBUIÇÃO
Fernando Maccari Lara
Tese apresentada ao Instituto de Economia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
requisisto parcial para obtenção do grau de
Doutor em Ciências Econômicas
Orientador: Prof. Franklin Serrano
Rio de Janeiro, 31 de marçõ de 2008
UM ESTUDO SOBRE MOEDA, JUROS E DISTRIBUIÇÃO
Fernando Maccari Lara
Tese apresentada ao Instituto de Economia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
requisisto parcial para obtenção do grau de
Doutor em Ciências Econômicas
Banca examinadora
____________________________________________
Prof. Dr. Franklin Serrano (UFRJ) (Orientador)
____________________________________________
Prof. Dr. Fábio Freitas (UFRJ)
____________________________________________
Prof. Dr. Carlos Medeiros (UFRJ)
_____________________________________________
Prof. Dr. André Lourenço (UFRN)
____________________________________________
Prof. Dr. Antonio Silveira (Ministério da Fazenda)
Rio de Janeiro, 31 de março de 2008
AGRADECIMENTOS
Dedico este trabalho a todos que acreditaram.
Agradeço com especial gratidão a meu pai José, minha mãe Gladis e minha irmã Luciana.
Sem o seu carinho e atenção nada disto teria sido possível.
Agradeço ao Prof. Franklin Serrano pelo competente trabalho de orientação e aos professores
do Grupo de Economia Política do IE-UFRJ pelas inúmeras discussões sobre os temas aqui
tratados.
Agradeço aos colegas da pós-graduação do IE-UFRJ, aos alunos da graduação da UFRGS e
aos demais amigos e familiares gaúchos e cariocas.
3
RESUMO
O tema central da tese é a influência de fatores monetárias sobre a distribuição, a partir da
abordagem clássica do excedente. Discute-se em primeiro lugar a possibilidade de influência
da taxa monetária de juros sobre a taxa de lucro sob diferentes hipóteses de funcionamento de
sistemas monetários baseados no ouro. Em seguida, uma discussão sobre a determinação das
margens reais de lucro a partir de modelos de inflação de custos e conflito distributivo, com
atenção para a questão da resistência da margem real ao crescimento dos salários nominais.
Por último, uma discussão sobre a movimento distributivo ocorrido na economia norteamericana na transição entre o parão ouro-dólar e o padrão dólar-flexível.
4
ABSTRACT
5
SUMÁRIO
Introdução
I.
Distribuição no padrão ouro-imóvel
1.1 Ajuste automático do balanço de pagamentos
1.2 Valor-trabalho da moeda-mercadoria
1.3 Ouro e moedas
1.4 Distribuição na gold money economy
1.5 Distribuição no padrão ouro-libra
II.
Resistência da margem real e distribuição
2.1 Mark-up real exógeno
2.2 Mark-up real endógeno
2.3 Resistência da margem real, margem nominal e pricing
2.4 Determinantes da resistência da margem real
2.5 Margem nominal, decisão de pricing e custo de oportunidade
2.6 Estado e distribuição
2.7 Regime cambial e política monetária
III.
Desigualdade e estabilização do padrão dólar-flexível
3.1 Caracterização do movimento distributivo
3.2 Margens de lucro e política monetária
3.3 Poder de barganha e salários
3.4 Análise de períodos
Conclusão
6
INTRODUÇÃO
Há poucos anos, já tratamos de forma sucinta acerca da questão da influência de fatores
monetários sobre a distribuição do excedente. Neste novo estudo, procuramos ampliar a
discussão deste mesmo problema, por meio de três ensaios.
No primeiro ensaio, discutimos as condições distributivas relativas a diferentes hipóteses
sobre o sistema monetário baseado na libra, que vigorava no século. Partindo de uma
discussão entre os teóricos quantitativistas e a posição clássica sobre a moeda-mercadoria,
procuramos estabelecer as condições gerais de ajuste do balanço de pagamentos da Inglaterra
que lhe permitiam administrar o sistema monetário mundial sob um regime de taxas fixas de
câmbio. Argumentamos que o alto grau de abertura da economia inglesa e a manutenção da
paridade oficial entre a libra e o ouro impunham uma restrição absoluta para o nível de preços
doméstico, determinando uma capacidade muito pequena de resistência da margem real de
lucro diante do crescimento dos custos domésticos, e uma reduzida influência da taxa de juros
como elemento regulador da lucratividade do capital em geral.
No segundo ensaio, o ponto de partida é o extremo oposto no que diz respeito à capacidade de
resistência da margem real ao crescimento dos custos. Boa parte dos modelos de inflação por
conflito distributivo, inspirados na tradição kaleckiana, tomam como hipótese distributiva
fundamental a formação de preços com base em uma margem real fixa sobre os custos de
7
produção. Nesses modelos, mesmo uma taxa persistente de crescimento dos salários nominais
teria pouca ou nenhuma capacidade de reduzir a lucratividade do capital. Apontamos porém
que, em geral, este resultado pressupõe o repasse sempre completo e/ou instantâneo dos
custos aos preços, por meio de uma correção sempre completa das margens nominais em
função do crescimento dos custos ou uma reavaliação instantânea destes custos.
Argumentamos que, para que isto seja possível em um quadro de crescimento persistente dos
custos, é preciso que a autoridade monetária adote uma política de manutenção do custo de
oportunidade do capital em termos reais.
No terceiro ensaio, apresentamos uma ilustração de como a dinâmica das taxas de juros,
câmbio e crescimento dos salários nominais interagiram para determinar uma significativa
alteração distributiva nos Estados Unidos a partir dos anos 70. A passagem de um sistema de
taxas fixas de câmbio, cuja vigência encerra em 1971, para um sistema de taxas flexíveis de
câmbio, estabilizado plenamente depois de 1979, permitiu que a política monetária norteamericana aumentasse sua capacidade de influência sobre a lucratividade do capital. Por outro
lado, a significativa redução do poder de barganha dos trabalhadores norte-americanos,
especialmente durante os anos 80, reduziu drasticamente sua resistência salarial. O resultado
foi uma estabilização do processo inflacionário que caracteriza a década de 70, acompanhado
de uma forte tendência de elevação da desigualdade e de aumento da parcela dos proprietários
no total da renda e da riqueza norte-americanas.
8
I. DISTRIBUIÇÃO NO PADRÃO OURO-LIBRA
O foco deste primeiro ensaio são as diferentes estilizações sobre os sistemas monetários
baseados no ouro, com ênfase no modo como o funcionamento do sistema monetário pode
determinar ou influenciar o comportamento da autoridade monetária responsável pela moedachave do sistema monetário internacional. Dependendo das condições supostas para o sistema
monetário, a taxa de juros pode ou não ser manejada pela autoridade monetária do país central
com objetivos de natureza distributiva.
A necessidade de considerar o contexto histórico, e portanto o sistema monetário vigente, para
uma análise da política monetária é destacada por Pivetti (1991).
"The level of interest rates prevailing in any given situation appears clearly to be determined by
the monetary authorities on the basis of policy objectives and constraints, the nature and the
weight of which can only be ascertained by reference to the concrete historical experience of each
country" (Pivetti, 1991, p. 16).
Cada experiência histórica concreta, portanto, corresponde a um conjunto específico de
objetivos e restrições colocadas para a autoridade monetária.
"Thus is our contention that interest rate determination can be described in terms of sets of
objectives and constraints, on the action of the monetary authorities, with different weights both
among various countries and for a particular country at different times. We believe that an ideal
History of Interest Rates - a thorough consideration of the circumstances that have governed the
course of interest rates in the major capitalist countries - is bound to lead one to see clearly that
interest rate determination is not subject to any general law" (Pivetti, 1991, p. 136)
9
A primeira qualificação a ser feita com respeito aos objetivos e restrições da política
monetária de diferentes países diz respeito à diferença entre o país central e os demais (que
chamaremos genericamente de periferia) a cada momento histórico. Entre esses dois pólos há
sempre uma diferença no grau de liberdade da autoridade monetária no controle da taxa
monetária de juros, uma vez que os países periféricos sempre se deparam com uma restrição
adicional, que é ter de se adequar ao nível da taxa de juros definida pelo país central.
“Low rates of interest, for example, simply cannot be a long-term phenomenon in a relatively
small and internationally integrated economy unless low interest rates prevail and continue to
prevail in the rest of the world” (Pivetti, 1991, p. 14).
Em qualquer momento histórico considerado há, portanto, uma distinção fundamental entre o
país que emite a moeda chave do sistema monetário internacional e os demais países, no
sentido de que a política monetária destes últimos sempre encontrará uma restrição adicional
em relação ao primeiro. Tal restrição consiste no fato de que os países que não emitem a
moeda chave do sistema, mas estão integrados a ele, sempre terão que, em alguma medida,
lidar com sua posição de balanço de pagamentos, motivo pelo qual terão que adequar em
alguma medida os movimentos da sua taxa de juros com os movimentos da taxa de juros do
país central. Esta consideração será tanto mais importante quanto for a liberdade do
movimento do capital entre os países.
Há uma segunda qualificação fundamental, que diz respeito aos países que exerceram de fato
a condição de emissor da moeda chave do sistema em diferentes momentos históricos. O
recorte histórico relevante para este ensaio é aquele em que vigorava o padrão ouro-libra,
conforme definido por Serrano (2003). Neste padrão monetário a autoridade monetária da
Inglaterra exercia a condição de emissor da moeda chave do sistema, a libra, tendo mantido
sua paridade fixa com o ouro entre 1819 e 1914, ao início da I Guerra Mundial, quando esta
paridade foi abandonada.
10
Entre a I e a II Guerras, a Inglaterra ainda tentou reorganizar o sistema sob seu controle
fixando a libra na paridade antiga, sem sucesso. Ao fim da II Guerra, a conferência de Bretton
Woods definiu as regras de funcionamento do padrão ouro-dólar, em que os Estados Unidos
assumiram a condição de emissor da moeda-chave do sistema e também mantiveram a
paridade do dólar com o ouro até 19711.
O propósito deste ensaio é analisar diferentes estilizações utilizadas para representação do
padrão ouro-libra. A relevância relativa de uma estilização depende de sua capacidade de
incorporar os aspectos essenciais e abstrair os aspectos menos relevantes. No caso aqui
considerado, depende de sua capacidade de incorporar os objetivos e restrições a que está
sujeita a autoridade monetária do país central.
A partir dessas breves observações gerais, parece que qualquer estilização feita para
compreender o funcionamento desses sistemas monetários não pode deixar de considerar: (a)
a existência de uma assimetria entre o país que emite a moeda-chave e os demais; (b) a forma
de inserção do país que ocupa a posição de emissor da moeda-chave, refletida pela posição
estrutural de seu balanço de pagamnentos.
Discutiremos nas seções seguintes algumas estilizações utilizadas na literatura, em busca da
mais adequada para a representação do padrão ouro-libra. Considera-se, além das condições
relativas à determinação da taxa de juros pela autoridade monetária, também a conexão entre
a taxa de juros e a taxa de lucro, ou seja, em que medida as estilizações mais relevantes são ou
não capzes de explicar a influência de fatores monetários sobre a distribuição do excedente.
1
A passagem do padrão ouro-libra para o padrão ouro-dólar envolveu um aspecto importante, obviamente, que
foi a troca de posições entre os Estados Unidos e a Inglaterra, no que diz respeito ao comando do sistema
monetário. Porém, em outro aspecto também importante, não houve alteração, no sentido que em ambos os
sistemas o país central se compromete a manter a conversibilidade de sua moeda em uma quantidade fixa de
ouro. Já a passagem do padrão ouro-dólar para o padrão dólar-flexível, que o sucedeu, envolveu uma
transformação diferente. O comando do sistema seguiu com os Estados Unidos, a paridade fixa entre o dólar e o
ouro foi abandonada unilateralmente, fato que alterou as condições relativas ao funcionamento do sistema e as
restrições colocadas à autoridade monetária central.
11
Na primeira parte do ensaio, o foco são as condições do balanço de pagamentos da Inglaterra.
Veremos que a concepção ortodoxa do ajuste automático não capta nem a assimetria entre o
centro e a periferia, nem atribui papel significativo à taxa monetária de juros do país central.
Inexiste nessa concepção, além disso, uma teoria coerente para os preços e a distribuição. O
nível de preços é simplesmente associado à quantidade de moeda em circulação, e assim os
resultados do balanço de pagamento são supostamente auto-ajustáveis por alterações da
competitividade relativa entre os países.
Na estilização utilizada por Ricardo (no contexto da teoria do valor) e Marx, por outro lado,
em que supostamente a moeda é uma mercadoria produzida, é possível determinar, sob certas
hipóteses específicas, os preços e da istribuição de acordo com a concepção clássica. Nesse
caso, porém, há também uma dificuldade de considerar a assimetria entre o país central e a
periferia, uma vez que supostamente há um sistema monetário único, no qual o nível geral de
preços está associado às condições técnicas de produção de ouro.
Ocorre que a manutenção da paridade oficial entre a libra e o ouro torna bem pouco plausível
que os movimentos do nível de preços em libras acompanhem os movimentos dos custos de
produção de ouro, como seria o caso no esquema teórico utilizado por Marx. O próprio Marx,
em seus relatos sobre os momentos de crises financeiras na Inglaterra fornece elementos para
compreensão da forma pela qual a autoridade monetária inglesa mantinha a paridade fixa:
alterações da taxa nominal de juros.
Na segunda parte do ensaio, o foco é a questão distributiva, começando pela apresentação do
argumento de Serrano (1993) que afirma que, no modelo abstrato da gold money economy,
uma vez determinado o nível do salário em ouro, não há espaço para a influência da taxa de
juros sobre a taxa de lucro. Ao contrário, considerando-se que o lucro de empresário seja uma
grandeza de natureza permanente, a taxa de juros teria de ser determinada pela taxa de lucro,
12
negando-se, portanto, qualquer influência da autoridade monetária sobre as condições
distributivas.
Discutimos em seguida a posição de M. Smith (1996), que procura sustentar a possibilidade
de determinação monetária da distribuição em um sistema de preços de produção em que
supostamente a moeda é uma mercadoria. Para tanto, argumenta que de fato o salário em ouro
teria de ser flexível para ajustar as condições distributivas determinadas pela taxa de
juros.Indicaremos ainda que este autor comete um equívoco ao interpretar as considerações
críticas de Serrano (1993) sobre a possibilidade de determinação monetária da distribuição
como afirmação de que a taxa monetária de juros não pudesse a princípio ter influência sobre
a distribuição no padrão ouro-libra conforme referido pelo próprio Serrano (2003).
Procura-se argumentar, ao fim do ensaio, que a estilização mais adequada para a compreensão
do funcionamento do padrão ouro-libra consiste em um sistema de preços de produção em
que o preço do ouro é mantido fixo nas diferentes unidades monetárias. Isso permite
considerar a assimetria entre o país central e a periferia, na medida em que cada país fixa a
paridade da sua moeda com a libra, configurando assim um sistema de taxas fixas de câmbio.
A taxa monetária de juros é determinada pelo país central em função das condições de seu
balanço de pagamentos, e influencia a distribuição no que diz respeito ao próprio país central
e também, de forma mais indireta, nos demais países, que precisam acompanhar os
movimentos dessa taxa de juros para determinarem a sua, junto com outras condições
específicas a cada um.
1.1 O argumento do ajuste automático do balanço de pagamentos
13
Conforme apontado, o problema desta parte do capítulo é estabelecer as condições de ajuste
do balanço de pagamentos do país central sob o padrão ouro-libra, fundamentais para a
estabilidade do sistema monetário internacional no século XIX.
"No centro das discussões sobre a administração do sistema monetário internacional, ou de
preservação da estabilidade sistêmica sob o regime de padrão-ouro, estão as políticas
macroeconômicas da Grã-Bretanha, e dentre estas a que tem recebido maior atenção dos
historiadores é a política de descontos do Banco da Inglaterra. Em grande medida, as diferentes
visões sobre estas políticas estão por detrás de divergências sobre o aparente 'automatismo'
subjacente ao funcionamento do padrão-ouro. [nota 5] A noção de que funcionava de modo
'automático' era a característica principal das visões de 'livro-texto' sobre o sistema. Estas
interpretações tinham origem nos escritos clássicos de Hume e Ricardo. Amostras podem ser
encontradas em D. Hume (1752) e D. Ricardo (1811)" (Franco, 1988, p. 2).
Este autor destaca, portanto, o papel central que tinha o Banco da Inglaterra nesta
administração, e aponta o instrumento fundamental para a realização desta tarefa: o nível da
taxa de juros. Aponta também que a concepção mais ortodoxa tem dificuldade em analisar
esse papel do Banco da Inglaterra, uma vez que qualquer "política", no sentido amplo de um
ato deliberado da autoridade com o objetivo de alcançar um fim (no caso, a estabilidade do
sistema), vai de encontro à concepção de livro-texto sobre o automatismo do sistema.
Menciona ainda Hume e Ricardo como autores fundamentais para o desenvolvimento dessa
concepção ortodoxa. Isto não é absolutamente uma visão incomum, uma vez que Hume e
Ricardo são de fato sempre arrolados nos manuais vulgares como sendo economistas
“clássicos”, que supostamente acreditavam ou supunham que o sistema funcionava
“automaticamente”. Dito desse modo, porém, esconde-se importantes diferenças entre esses
dois autores, como procuraremos discutir no que se segue2.
1.1.1 David Hume
2
Diz Franco que a versão de livro-texto, mesmo na ortodoxia sofreu “profunda” revisão, fundamentalmente a
partir do fracasso da tentativa de retorno à paridade por parte da Inglaterra no entre-guerras. De qualquer modo,
ela persiste em muitos livros e mentes. Esperamos que a leitura das próximas páginas possa dar uma idéia mais
clara sobre a oceânica diferença que separa esses dois pensadores a respeito dos temas monetários. Ricardo de
fato contribuiu inclusive para a aplicação prática da doutrina quantitativista na Inglaterra, mas desenvolveu
também uma outra teoria que nunca é mencionada pelos livros-textos.
14
Embora haja muitas referências de autores quantitativistas anteriores a David Hume, as
origens da teoria quantitativa da moeda são em geral atribuídas a ele. Seguindo uma
concepção comum à época, Hume entendia que a moeda era algo desprovido de valor. Ao
entrar na circulação de mercadorias, adquiria um valor imaginário ou simbólico.
"All the precious metals in a country represented commodities in the process of exchange, hence
reducing these metals to mere tokens, things without value. Although gold and silver had no
value and hence were not real commodities when they entered the sphere of circulation, once in
the circulation they were spontaneously transformed into commodities through their acquisition of
a 'ficticious value’" (Green, 1992, p. 37, referindo-se a Hume).
A abordagem de Hume não faz referência desse modo à produção de metal monetário, e sua
concepção do nível de preços também não faz referência à produção das demais mercadorias.
Sua abordagem de troca pura indica que haveria elevação do nível de preços sempre que a
proporção entre a quantidade de moeda e de mercadorias aumentasse, e redução do nível de
preços no caso oposto. Isto é representado de forma muito simples por meio da conhecida
equação das trocas.
MV=PQ
(1.1)
logo
P=M(V/Q)
(1.2)
Referindo-se a uma “ficção” encontrada em Montesquieu, Marx expõe da seguinte forma o
argumento monetarista:
"se o mundo das mercadorias consistisse numa única mercadoria, 1 milhão de toneladas de trigo,
por exemplo, seria fácil imaginar que 1 tonelada seria trocada por 2 onças de ouro, no caso de
existirem 2 milhões de onças de ouro, e por 20 onças de ouro no caso de existirem 20 milhões, e
que, conseqüentemente, o preço da mercadoria subiriam ou baixariam na razão inversa da
quantidade de dinheiro existente" (Marx, 1857, p. 118).
Nesse caso mencionado por Marx, teríamos Q = 1.000.000 ton, M = 2.000.000 onças, logo
assumindo V=1 constante, então pela equação temos P=2. Caso a quantidade de moeda fosse
dez vezes maior, logo M=20.000.000, então isto acarretaria simplesmente que P=20, ou seja,
que o preço fosse dez vezes maior.
15
"... the only permanent effect of an alteration in the amount of money would be a proportional and
uniform change in commodity prices, at any given velocity of circulation" (Green, 1992, p. 36).
Nesse processo hipotético, caso a velocidade fosse diferente de um, o que mudaria seria o
nível absoluto do preço, mas não a suposta dinâmica de alteração proporcional dos preços em
resposta a mudanças na quantidade de moeda, mantida de que V é constante3.
Quando esta noção é transportada para o plano internacional, argumenta-se que a distribuição
do meio circulante entre os países está sujeita a uma regulação automática. Como vimos, uma
elevação da quantidade de moeda em um determinado país, dadas a velocidade de circulação
e a quantidade de mercadorias, determinaria a elevação dos preços internos. Isto torna mais
vantajoso adquirir mercadorias estrangeiras, e com isso parte do meio circulante seria
transferido para o estrangeiro. Reduz-se conseqüentemente a quantidade de moeda em
circulação interna (reduzindo os preços internos) e aumenta a quantidade de moeda no
estrangeiro (aumentando os preços dos produtos estrangeiros). Desse modo, a moeda em
circulação vai sendo distribuída entre os países de modo a equilibrar os preços de todas as
mercadorias4.
Na sua origem, portanto, a versão de livro-texto do ajuste automático dos balanços de
pagamentos remonta a Hume e sua concepção de moeda como algo sem valor, como um mero
representante das mercadorias. Em circulação, a moeda adquire um valor fictício, e distribuise entre os países de modo a equilibrar as transações entre eles.
3
O Prof. Serrano indica que no artigo de Hume “On Money” o efeito inflacionário do aumento da quantidade de
moeda é gradual. O primeiro efeito pode ser um aumento da produção no curto prazo, para posteriormente
aumentar o nível de preços no longo prazo. Assim, não seria exatamente um esquema de troca pura, embora o
resultado de longo prazo seja. Na verdade há supostamente um produto dado a longo prazo, mas não
necessariamente a curto. Green (1992) menciona que Hume tem dificuldades para justificar porque o efeito sobre
o produto seria apenas temporário e o efeito sobre os preços seria permanente.
4
Observe-se, portanto que em certo sentido se pode dizer que a quantidade de moeda que circula internamente
em cada nação é "endógena", porque está sujeita a uma regulação supostamente automática, que determina o
equilíbrio entre os balanços de pagamentos de todos os países. Porém isso nada tem a ver com o mecanismo
heterodoxo de moeda endógena, como destaca Lavoie (2001).
16
A fraqueza teórica desta concepção é bastante evidente, uma vez que os preços não guardam
nenhuma relação com os custos de produção, nem das mercadorias em si e nem do material
monetário.
1.1.2 O quantitativismo em David Ricardo
Marx descreve assim o contexto em que Ricardo desenvolveu suas primeiras idéias sobre
teoria e política monetária:
"Não foram os fenômenos da circulação metálica, mas sim os da circulação das notas bancárias
que, durante o século XIX, deram impulso às pesquisas sobre o dinheiro. Atentou-se para a
primeira a fim de se descobrir as leis da segunda. A suspensão dos pagamentos em espécie do
Banco da Inglaterra, a partir de 1797, a elevação dos preços de numerosas mercadorias que se
verificou a seguir, a queda do preço monetário do ouro abaixo de seu preço de mercado, a
depreciação das notas bancárias, particularmente desde 1809, forneceram os motivos práticos e
imediatos para uma luta partidária no Parlamento, e um torneio teórico fora dele, tão
apaixonado quanto aquela" (Marx, 1857, p. 120).
Na concepção de Ricardo, o material monetário não era desprovido de valor, assim como as
demais mercadorias. Em seus primeiros trabalhos porém, relacionados a questões monetárias
na Inglaterra, procurava combinar essa noção com a teoria quantitativa absolutamente
dominante à época.
"Passaremos por alto os numerosos escritores do período que vai de 1800 a 1809 para considerar
imediatamente Ricardo, quer porque sua obra resume a de seus predecessores, de quem formula
as idéias de uma forma mais rigorosa, quer porque a forma que deu à teoria do dinheiro domina
até agora toda a legislação bancária inglesa. Ricardo, como seus predecessores, confunde a
circulação das notas bancárias, ou da moeda creditícia, com a circulação dos simples sinais do
valor. O fato que lhe prende a atenção é a depreciação de papel-moeda e o aumento simultâneo
dos preços das mercadorias. O que as minas americanas significaram para Hume, as prensas de
notas de papel de Threadneedle Street [nota] rua de Londres onde se localiza o Banco da
Inglaterra [fim da nota] significaram para Ricardo" (Marx, 1857, p. 121).
Assim Marx indica que as prensas significavam para Ricardo o mesmo que as minas, no
sentido de que os preços acompanhariam a emissão de notas bancárias. O diagnóstico de
Ricardo para a inflação do período pós 1797 (período em que os pagamentos em ouro foram
suspensos pelo Banco da Inglaterra) estava relacionado a um crescimento das notas bancárias
em circulação acima do que deveria ser para representar o ouro na circulação. Para Ricardo o
17
excesso de notas bancárias em relação à quantidade normal acabam desvalorizando-as, e
assim os preços crescem.
De Vivo (1987) destaca que, de fato, das investigações e discussões de Ricardo com os
demais economistas políticos da época, surge o documento “Proposals for an economical and
secure currency” (1815), que contém o plano elaborado por Ricardo para a conversibilidade
das notas do Banco da Inglaterra em lingotes de ouro. Este plano foi discutido, tornou-se
muito influente e foi posteriormente adotado e implementado em 1821. Ficou conhecido
como “Ricardo’s ingot plan”.
O plano mencionado incluía um mecanismo que, para Ricardo, impediria que o Banco da
Inglaterra fosse conduzido de forma a emitir mais notas do que o necessário para substituir o
ouro em circulação: a conversibilidade das notas a preço fixo. Dado que há um custo de
transportar ouro da Inglaterra para a França, por exemplo, a princípio o melhor para um
importador inglês de produtos franceses é a princípio fazer as transações em libras, não em
ouro. Mas, na medida em que a cotação de mercado da libra se desvalorizasse frente à
paridade oficial em relação ao franco, em algum ponto tornaria-se interessante realizar as
transações convertendo as libras em ouro ao preço oficial e efetuando o pagamento
diretamente em ouro, enviando o metal para a França em troca de mercadorias. A cotação em
que este processo torna-se vantajoso é o “gold export point”.
Ricardo imaginava então que, mantendo-se as libras conversíveis em ouro a um preço oficial
fixo, o Banco da Inglaterra seria obrigado a proteger a cotação de mercado da libra, não
deixando que a moeda inglesa desvalorizasse além deste ponto porque, se isto ocorresse,
perderia suas reservas em ouro. Para mantê-las, portanto, seria preciso manter a emissão de
libras sob controle, evitando que o gold export point fosse atingido.
“lf Bank of England paper had instead been convertible into gold at a fixed rate - the 'Mint
price' of gold - the fall in the pound exchange could not have gone beyond the percentage cost of
sending gold from England to Holland. At this level in fact it would be cheaper for an English
importer to obtain gold from the Bank of England (at theMint price) and send it to Holland, rather
18
than settling his debt by buying a bill on Amsterdam. Once the gold export point ('the natural limit
to the fall of the exchange') had been reached, any fürther increase of paper money would
therefore cause a loss of gold to England. This could initially push things back towards the
previous equilibrium, because the increase of gold abroad would raise prices there, while prices
in England would not fürther rise, until paper money had replaced all the gold coin which might
have been in circulation. lf the issue of paper continued after this, the Bank of England would see
its coffers progressively emptied of gold. It would therefore be forced to stop it, and restore the
value of money by reducing its issues. (De Vivo, 1987 sobre Ricardo).
Ricardo atribui, portanto, a desvalorização da libra ao excesso de papel-moeda em relação ao
ouro que está representando. Quando essa desvalorização atingisse o gold export point, tudo
voltaria ao equilíbrio automaticamente, devido à saída do ouro. Há, portanto, um argumento
quantitativista envolvido, no sentido de que a quantidade de ouro em circulação governa em
última instância o nível de preços, sem referência aos custos de produção.
Como destacamos no início dessa seção sobre Ricardo, porém, ele não concebia, como Hume,
que o material monetário fosse desprovido de valor.
“Gold and silver, like all other commodities, have an intrinsic value, which … is dependent on
their scarcity, the quantity of labour bestowed in procuring them, and the value of the capital
employed in the mines which produce them” (Ricardo citado por De Vivo, p. 186)
A esta altura, portanto, Ricardo considera que os custos de produção em trabalho estão ao
lado da escassez como determinante do valor do material monetário. Ao aprofundar suas
concepções sobre os determinantes do valor Ricardo passaria a afirmar que a escassez só seria
importante para as mercadorias não reprodutíveis.
“Ricardo’s early idea that scarcity is a regulator of prices alongside cost of production, is (partly
also thanks to its vagueness) much more in accordance with a quantity theory of money than his
later labour theory of value, whose consistency with his monetary theory is problematic. These
problems of consistency Ricardo failed to solve, and to a large extent even to consider” (De
Vivo, p. 186).
De qualquer modo, como mencionamos no início dessa seção, aparece desde sempre a
diferença apontada com relação a Hume, que entendia que o metal monetário tinha apenas
valor fictício na circulação. Isto ocorria mesmo quando suas recomendações de política
econômica eram notadamente quantitativistas.
19
"Even in such early writings as his High Price of Bullion (1810), he contended that gold and
silver, like other commodities, possessed an 'intrinsic value', whose magnitude was directly
related to their cost of production" (Green, 1992, p. 70, referindo-se a Ricardo).
Também Marx deixa claro que desde sempre noção do dinheiro de Ricardo tinha valor
intrínseco, ou seja, não era um valor fictício ou imaginário. "Ricardo determina
primeiramente o valor do ouro e da prata assim como o de todas as mercadorias, pela quantia
do tempo de trabalho objetivado nelas" (Marx, 1857, p. 121).
Isso é fundamental porque, dada a soma dos valores das mercadorias em circulação (que
podemos representar por PQ, sendo P determinado pelos custos de produção em termos de
tempo de trabalho, Q pela lei de Say, hipótese adotada por Ricardo), dado o valor do dinheiro
em circulação (PG, também determinado pelos custos de produção) e dada a velocidade de
circulação da moeda (V, dada pelas características institucionais), há uma quantidade de
moeda correspondente QG.
Partindo da equação das trocas em sua forma tradicional, é preciso apenas substituir a
quantidade de moeda M pelo valor da moeda em circulação QGPG, obtendo portanto uma
forma alternativa para a equação das trocas:
QGPGV=PQ
(1.3)
logo
QG=(PQ)/(PGV)
(1.4)
"A quantidade dos meios de circulação de um país [QG] é então determinada, por um lado, pelo
valor da unidade de medida do dinheiro [PG] e, por outro lado, pela soma dos valores de troca
das mercadorias [PQ]. Essa quantidade é modificada pela economia de modo de pagamento [V]"
(Marx, 1857, p. 121, referindo-se a Ricardo).
Havendo, portanto, uma quantidade “correta” de ouro a circular dependendo do seu próprio
valor, do valor das demais mercadorias e da velocidade de circulação, estabelece-se a
quantidade de notas que deve circular em substituição a este ouro.
"Como se encontra assim determinada a quantidade de dinheiro de um dado valor que pode
circular e, como seu valor na circulação não depende senão de sua quantidade, os simples sinais
20
de valor, se são emitidos na proporção determinada pelo valor do dinheiro, podem substituí-lo
na circulação e 'o dinheiro circulante achar-se-á em seu estado acabado, se consiste
exclusivamente em papel de valor igual ao ouro que pretende representar'. Até esse momento,
tendo o valor do dinheiro como dado, Ricardo determina a quantidade dos meios de circulação
pelos preços das mercadorias, e o dinheiro enquanto sinal de valor, é para ele o sinal de uma
determinada quantia de ouro, e não, como para Hume, o representante sem valor das
mercadorias" (Marx, 1857, p. 121-122).
A recomendação fundamental do plano monetária de Ricardo pode ser compreendida,
portanto, como a necessidade de que os “sinais de valor” (papel moeda) devem representar
sempre a quantidade de ouro necessária na circulação, para que não se depreciem. O que
Ricardo não discute, porém, é a contradição entre haver uma quantidade de ouro necessária
(portanto endógena) para a circulação e, ao mesmo tempo, a quantidade de ouro ser um
determinante (portanto exógeno) dos preços das demais mercadorias.
Os problemas de consistência desta posição de Ricardo aparecem muito claramente para
Marx, quando este se investiga que efeitos poderia ter uma alteração da quantidade de ouro
em circulação segundo a teoria do valor do próprio Ricardo. Como mencionamos, a
concepção do ouro como mercadoria cujo valor é determinado pelos custos de produção
determina que a própria quantidade de ouro que deve circular é “endógena” ao sistema, e fica
determinada assim que se determine o valor relativo entre o ouro e as mercadorias que
circulam, a quantidade de mercadorias que circulam e a velocidade de circulação da moeda.
Na equação das trocas, portanto, a causalidade aparece invertida em relação à teoria
quantitativa. O nível de preços não pode se adequar à quantidade de moeda, porque é a
quantidade de moeda que passa a ser determinada pelas necessidades de circulação.
O que é fundamental destacar, porém, é a diferença entre a abordagem de Hume e Ricardo.
Ela reside precisamente no fato de que para um o dinheiro não tem valor enquanto para o
outro tem, e este valor é um dos determinantes da quantidade de ouro que deve circular para
uma dada quantidade de mercadorias. Para Ricardo, o fato de que o ouro era utilizado como
dinheiro não obscurecia o fato de que era uma mercadoria produzida como as demais.
Considerava que o material monetário poderia ser substituído sem prejuízo por papel-moeda
21
que representasse o valor do ouro necessário para a circulação segundo a expressão acima,
mas ainda assim a quantidade de papel moeda correta dependeria do valor relativo do ouro.
1.1.3 A crítica de Marx à TQM
Já mencionamos na seção anterior que, se a moeda tem valor como mercadoria, haverá uma
quantidade correta de moeda para circular as mercadorias existentes para uma dada
velocidade de circulação. Com isso, a causalidade na equação das trocas fica invertida. Podese reescrever a equação de trocas referida acima alternativamente como:
QG= (Q/V) (P/PG)
(1.5)
Desse modo, dada a quantidade de mercadorias pela Lei de Say, e a velocidade de circulação
pelas condições institucionais, a quantidade de moeda que deve circular depende do valor
relativo entre as mercadorias e a moeda (P/PG). Dados os demais elementos da equação, se
esta razão cresce, cresce também a quantidade de moeda necessária para a circulação. Se esta
razão cai, cai a quantidade de moeda necessária para a circulação. Note-se portanto que, se
caem os custos de se produzir moeda em relação aos custos de produzir as demais
mercadorias, haveria dois efeitos: (a) um aumento dos preços das mercadorias medidas em
dinheiro (P/PG); (b) um aumento da quantidade de moeda necessária para a circulação (QG).
Observe-se portanto que, considerando que o produto seja dado pela lei de Say e que a
velocidade seja uma grandeza constante (hipóteses tradicionais da doutrina quantitativista), a
hipótese de que o ouro tem valor determinado como as demais mercadorias, determina que
alterações dos custos de produção de ouro modificam não só o preço relativo entre as demais
mercadorias e o ouro (portanto o nível geral de preços), mas também alteram a quantidade
normal de ouro em circulação. De acordo com essas hipóteses, a descoberta de novas minas
mais produtivas que determinasse uma queda dos custos de produzir moeda determinaria estes
dois efeitos.
22
Esse é o argumento utilizado por Marx em "Para a crítica da economia política", ao criticar a
interepretação de Hume e dos demais quantitativistas de sua época sobre a “revolução dos
preços”, o movimento secular de elevação dos preços nos séculos XVI e XVII.
"Conforme a lei da circulação dos sinais de valor, estabelece-se a tese de que os preços das
mercadorias dependerão da massa de dinheiro circulante, e não inverso, isto é, que a massa do
dinheiro em circulação depende dos preços das mercadorias. Os economistas italianos do século
XVII formulam essa tese de um modo mais ou menos claro, ora aprovada, ora negada por Locke,
mas desenvolvida em sua forma pura no Spectator ... por Montesquieu e Hume. Sendo esse último,
indiscutivelmente, o representante mais importante dessa teoria do século XVII, começaremos por
ele nosso apanhado geral. Sob determinados pressupostos, um aumento ou uma diminuição na
quantidade, seja do dinheiro metálico circulante, seja dos sinais de valor em circulação, parece
atuar uniformemente sobre os preços das mercadorias. Se há uma queda ou alta no valor do ouro
ou da prata, os quais servem para avaliar os valores de troca das mercadorias sob a forma de
preços, os preços sobem ou descem por ter variado sua medida de valor, circulando uma
quantidade maior ou menor de ouro e prata como moeda, em conseqüência da alta ou baixa dos
preços. O fenômeno visível é a alteração dos preços - permanecendo constante o valor de troca
das mercadorias - com o aumento ou diminuição da quantidade de meios de circulação. Se, por
outro lado, a quantidade dos sinais de valor em circulação cai abaixo ou se eleva acima do nível
necessário, é, em seguida, forçada violentamente pela baixa ou alta dos preços das mercadorias a
voltar a esse nível. Em ambos os casos, o mesmo efeito parece ter sido provocado pela mesma
causa. A essa aparência se prende Hume. Qualquer pesquisa científica sobre a relação entre a
quantidade dos meios de circulação e o movimento dos preços das mercadorias deve ter como
dado o valor do material que constitui o dinheiro. Ao contrário, Hume estuda exclusivamente as
épocas de revoluções no valor dos próprios metais preciosos, isto é, revoluções da medida dos
valores. A elevação dos preços das mercadorias simultaneamente com o aumento do dinheiro
metálico, desde a descoberta das minas americanas, constitui o fundo histórico de sua teoria, ao
mesmo tempo que a polêmica contra o sistema monetário e mercantil lhe propicia o motivo
prático" (Marx, 1857, p. 114-115).
Portanto para Marx é a queda dos custos de produção do metal precioso que explica tanto a
"revolução dos preços" quanto o aumento da quantidade de moeda em circulação ocorrido nos
séculos XVI e XVII. Os quantitativistas, ao contrário, tomam o aumento da quantidade de
moeda em circulação como causa para o aumento dos preços. Segundo Marx, os argumentos
de Hume desconsideram a ocorrência de “revoluções no valor dos próprios metais” e por isto
atribui o aumento de preços ao aumento da quantidade de moeda.
"Que nos séculos XVI e XVII não só aumentava a quantidade de ouro e de prata, como diminuíam
simultaneamente os custos de sua produção, esse fato pôde ser percebido por Hume, em virtude
do fechamento das minas européias. Durante esses séculos os preços das mercadorias subiram na
Europa à medida que aumentava a massa de ouro e prata importada da América; logo, os preços
das mercadorias de cada país são determinados pela massa de ouro e de prata que nele se
encontra. Essa é a primeira 'conseqüência necessária" de Hume. Também nesses séculos, os
preços não subiram na mesma proporção em que aumentavam os metais preciosos; decorreu mais
de meio século antes que se verificasse qualquer alteração nos preços das mercadorias, e mesmo
então passou ainda muito tempo antes que os valores de troca das mercadorias fossem avaliados
23
de um modo geral em função do valor diminuído do ouro e da prata, isto é, antes que a revolução
atingisse os preços gerais das mercadorias. Hume transforma, sem submeter à crítica, fatos
observados parcialmente em proposições gerais, procedendo assim em perfeita contradição com
os princípios de sua filosofia" (Marx, 1857, p. 117).
Com base, portanto, na concepção de Ricardo de que a moeda era uma mercadoria com valor
intrínseco, cujos desdobramentos são investigados por Marx, que a interpretação de Hume e
os demais quantitativistas (incluindo o próprio Ricardo) sobre a “revolução dos preços”
ficaria prejudicada. Admitir que haja alterações de valor do material monetário transformam
aquilo que era considerado causa do aumento de preços em conseqüência desta alteração, e
modifica radicalmente, portanto, a causalidade proposta pela teoria quantitativa.
Marx destaca, porém, como já apontamos, que o próprio Ricardo não investigou
apropriadamente esses desdobramentos, caindo em confusão sobre esse aspecto.
"Quando Ricardo interrompe bruscamente o curso regular da sua exposição para adotar a tese
contrária, volta imediatamente sua atenção para a circulação internacional dos metais preciosos
e confunde assim o problema com a introdução de pontos de vista que lhe são estranhos.
Analisando a expressão íntima de seu pensamento, começaremos por deixar de lado todos os
problemas secundários e artificiais e situaremos as minas de ouro e prata nos países em que
esses metais preciosos circulam como moeda. A única frase, que resulta do desenvolvimento feito
por Ricardo até então, é que, tendo o valor do ouro como dado, a quantidade de dinheiro
circulante é determinada pelos preços das mercadorias. Assim, pois, em um dado momento, a
massa de ouro que circula em um país é determinada simplesmente pelo valor de troca das
mercadorias que circulam" (Marx, 1857, p. 122).
Marx expõe em seguida as conseqüências, com base na teoria do valor desenvolvida pelo
próprio Ricardo, o que ocorreria fora dessa posição normal. Significa perguntar o que deveria
ocorrer se, por alguma razão, a quantidade de moeda fosse diferente daquela que é consistente
com a dada velocidade de circulação e o dado valor relativo entre o metal monetário e as
demais mercadorias.
"Suponha-se então que a soma desses valores de troca diminua [queda em PQ] ... porque ... em
conseqüência de um aumento da força produtiva do trabalho, a mesma massa de mercadorias
assume um valor menor. Ou suponha-se, inversamente, que a soma dos valores de troca aumente
[aumento em PQ] porque ... o valor dessa mesma massa de mercadorias ... cresce em
conseqüência de uma diminuição da força produtiva do trabalho. O que ocorre em ambos os
casos com a quantidade dada do metal circulante? ... No primeiro caso, o ouro estaria, como
sinal de valor, abaixo de seu valor efetivo; no segundo caso, acima de dito valor ... No primeiro
caso seria como se as mercadorias fossem avaliadas num metal de valor inferior, e no segundo
caso como se fossem num metal de valor superior ao ouro. No primeiro caso, os preços das
24
mercadorias subiriam; no segundo, baixariam. Em ambos os casos, o movimento dos preços das
mercadorias, sua alta ou sua baixa, seria efeito da expansão ou da contração relativa da massa
de ouro circulante acima ou abaixo do nível correspondente a seu próprio valor, ou seja, a
quantidade normal que se determina pela reação entre seu próprio valor e o valor das
mercadorias que têm que circular" (Marx, 1857, p. 122).
No primeiro caso, a queda do valor da massa de mercadorias PQ, dado o valor do dinheiro,
exigiria uma queda na quantidade de dinheiro, para que esta voltasse a satisfazer as
necessidades da circulação. Enquanto essa queda não puder ocorrer, haverá muito dinheiro em
circulação, e portanto o preço de mercado do ouro estará abaixo do seu preço natural.
No segundo caso, o crescimento do valor da massa de mercadorias PQ, dado o valor do ouro,
exigiria um aumento da quantidade de ouro para satisfazer as necessidades de circulação.
Enquanto isto não ocorrer, o ouro será temporariamente escasso, e seu preço de mercado
estará acima do preço natural.
Nos dois casos, portanto, há uma diferença entre os preços de mercado e os preços naturais
que deriva do fato da quantidade de ouro em circulação não ser a quantidade normal que
satisfaz as necessidades da circulação.
"O mesmo processo ocorreria se a soma dos preços das mercadorias em circulação permanecesse
idêntica, mas a massa de ouro circulante viesse a se encontrar abaixo ou acima do nível normal
[diminuição ou aumento exógenos de QG]; abaixo, se as moedas de ouro desgastadas na
circulação não fossem substituídas por uma nova produção correspondente das minas; acima, se
a nova oferta das minas excedesse as necessidades da circulação. Nos dois casos supõe-se que os
custos de produção de ouro, ou seja, o seu valor, se mantém inalteráveis" (Marx, 1857, p. 122123).
O mesmo ocorre, portanto, caso a própria quantidade de ouro em circulação esteja fora da
posição normal.
"Resumindo, o dinheiro em circulação está no seu nível normal quando, dado o valor de troca das
mercadorias, a sua quantidade é determinada por seu próprio valor metálico. O dinheiro sobe, o
ouro desce abaixo de seu valor metálico e os preços das mercadorias aumentam, porque a soma
dos valores de troca da massa das mercadorias diminui ou porque aumenta a oferta proveniente
das minas de ouro. O dinheiro se contrai e desce abaixo de seu nível normal, o ouro eleva-se
acima de seu próprio valor metálico e os preços das mercadorias baixam porque a soma dos
valores de troca da massa das mercadorias aumenta ou porque o rendimento das minas de ouro
não compensa a massa de ouro gasta pelo uso. Em ambos os casos, o ouro circulante é sinal de
valor de um valor superior ou inferior ao que contém efetivamente" (Marx, 1857, p. 123).
25
Portanto, em qualquer destes casos, podemos dizer que o preço de mercado do ouro estaria
afastado do preço natural devido à sua presença em uma quantidade que não é compatível
com o valor relativo entre ele e as mercadorias. Ora, segundo a teoria do valor formulada por
Ricardo isto não pode ser permanente. Se o preço de mercado de uma mercadoria estiver
acima do preço seu natural, tende a crescer a quantidade produzida deste mercadoria até que
eles se igualem.
"De acordo com a teoria ricardiana dos valores de troca em geral, a alta do ouro acima do seu
valor de troca, ou seja, do valor determinado pelo tempo de trabalho que contém, provocaria um
aumento de produção de ouro até que esse aumento da oferta o fizesse novamente descer até
atingir a devida grandeza de valor. Inversamente, uma queda do ouro abaixo de seu valor
provocaria uma diminuição de sua produção até que atingisse de novo a grandeza de valor"
(Marx, 1857, p. 123).
O equilíbrio é alcançado portanto quando a quantidade de ouro em circulação estiuver em seu
nível normal, e este aumento decorre do incentivo para produzir ouro em uma situação em
que o preço de mercado está, por exemplo, acima do natural. Na medida em que a quantidade
de ouro em circulação cresce, o preço de mercado vai sendo ajustado ao preço natural (mais
baixo do que na situação inicial). Pelo lado das demais mercadorias, o ajuste do preço de
mercado do ouro ao preço natural menor aparece como uma elevação do nível geral de
preços.
Estava assim bastante clara, para Marx, a incompatibilidade entre a teoria do valor e a teoria
quantitativa da moeda, como explica De Vivo (1987). Alterações exógenas na quantidade de
moeda não têm o efeito de elevar de forma permanente o nível de preços, porque criam um
desequilíbrio apenas temporário entre o preço de mercado e o preço natural da mercadoria
monetária. O equilíbrio só será novamente alcançado quando a quantidade de moeda tiver
retornado ao seu valor normal, consistente com o valor relativo entre as mercadorias e a
moeda, a quantidade de mercadorias em circulação e a velocidade de circulação.
Como último ponto dessa seção, convém observar que a hipótese de que a quantidade de ouro
tem de variar para se adequar às condições de valor da mercadoria monetária depende
26
fundamentalmente da hipótese de que a velocidade de circulação não muda. Caso seja
possível aumentar a velocidade de circulação, por exemplo, a quantidade pode nem crescer ou
crescer muito menos em caso de queda do valor relativo entre as mercadorias e o ouro. Na
hipótese da velocidade ser completamente endógena teríamos:
V= (Q/QG)(P/PG)
(1.6)
Se a razão P/PG aumenta, dada a quantidade de mercadorias, o ajuste pode ser realizado por
um aumento da velocidade de circulação com uma razão Q/QG constante. Desse modo, a
queda do custo de produção do ouro aumentaria os preços das mercadorias e não seria
necessário produzir mais moeda, simplesmente porque ela circula mais rápido5.
De qualquer modo, é importante destacar novamente que a identificação imediata das
posições de Hume com as de Ricardo não é nada rigorosa, na medida em que Ricardo
desenvolveu uma outra teoria que acabou sendo utilizada por Marx para criticar a própria
teoria quantitativa da moeda. Segundo esta teoria, se a velocidade de circulação e o valor da
soma das mercadorias fica constante, tanto a quantidade de ouro em circulação quanto o nível
de preços crescem se os custos de produção de ouro caem. O crescimento do nível de preços
decorre diretamente do ajuste do preço de mercado do ouro ao seu novo preço natural,
enquanto o crescimento da quantidade de moeda em circulação pode ocorrer ou não,
dependendo do que ocorre com a velocidade de circulação.
Nesse quadro, um aumento exógeno da quantidade de moeda não é capaz de elevar de forma
permanente o nível de preços. Em primeiro lugar, porque ele pode ser parcial ou totalmente
compensado por uma queda na velocidade de circulação. Se porventura isto não ocorre,
haveria uma queda do preço de mercado do ouro abaixo do seu preço natural, ou o que é o
mesmo, uma elevação do nível de preços acima do preço natural. A queda do preço de
5
Talvez incluir como apêndice a nota “quanto menos ele vale mais rápido ele anda”.
27
mercado do ouro abaixo do preço natural determina redução da produção de ouro e assim uma
redução da quantidade de moeda em circulação até que o preço de mercado volte ao preço
natural, portanto até que o nível de preços também volte ao seu nível natural. Se, ao longo
desse processo, a velocidade de circulação permaneceu constante, a quantidade de moeda
retornaria exatamente ao nível inicial. Se a velocidade foi reduzida, a quantidade de moeda
poderia ser maior ao final do processo.
Esta é a razão pela qual se pode afirmar que Ricardo tem duas teorias monetárias
inconsistentes. Em certos casos, Ricardo argumenta com base em uma versão radical da teoria
quantitativa, em que a velocidade de circulação e a quantidade de mercadorias são constantes,
portanto o nível de preços depende da quantidade de moeda. Conforme argumentamos acima,
isto não pode ocorrer considerando o valor relativo entre as mercadorias e o ouro. Green
(1992) procura minimizar esta contradição de Ricardo, apontando que este utiliza a teoria
quantitativa para o curto prazo e a teoria do valor para o longo prazo. Porém uma das
passagens dos Princípios em que Ricardo utiliza explicitamente a teoria quantitativa é no
capítulo “On Foreign Trade”, em que sabidamente Ricardo analisa o comércio internacional a
longo prazo. Ali são as alterações da quantidade de moeda que transformam vantagens
absolutas em comparativas por meio de alterações dos níveis de preços nos países envolvidos.
De Vivo (1987) aponta com bastante clareza esse problema de incoerência no pensamento de
Ricardo. Marx, por outro lado, utiliza a teoria do valor-trabalho de forma coerente para a
análise da evolução do nível de preços, como veremos à frente.
1.1.4 Retomando o argumento do ajuste automático
Procuramos apontar até aqui a diferença que existe entre a interpretação quantitativista de
Hume e a análise clássica baseada no valor da mercadoria monetária, indicando a crítica que
parte desta última concepção ao argumento quantitativista. Em termos analíticos, podemos
representar o argumento do ajuste automático do balanço de pagamentos observando que a
28
operação do mecanimso quantitativista associado a uma taxa nominal fixa de câmbio entre os
países determinaria de fato um movimento equilibrador na competitividade entre eles.
Definindo a taxa real de câmbio entre dois países como:
E=e(P1/P2)
(1.7)
Pela teoria quantitativa, temos as expressões abaixo para os níveis de preços:
P1=M1(V1/Q1)
(1.8)
P2=M2(V2/Q2)
(1.9)
Se a variação da quantidade de moeda for sempre igual ao resultado do balanço de
pagamentos (aumento em M em caso de superávit, queda em M em caso de déficit, ou seja
BP=∆M), haveria um movimento equilibrador na competitividade. Um superávit equivaleria a
aumento da quantidade de moeda, aumento dos preços e queda de competitividade. Um
déficit equivaleria à queda da quantidade de moeda, queda dos preços e aumento de
competitividade.
Conforme vimos, porém, a hipótese de que alterações da quantidade de moeda alteram o nível
de preços de forma permanente é falsa no contexto da teoria clássica do valor. De acordo com
essa teoria, alterações na quantidade de moeda geram uma diferença entre o preço de mercado
e o preço natural da mercadoria monetária. Esta diferença seria reduzida na medida em que a
quantidade retornasse ao nível normal. Para que o preço de mercado do ouro tenda, portanto,
ao seu preço natural, a quantidade de moeda em circulação tem de ser endógena.
Assim, um déficit no balanço de pagamentos, por exemplo, que pela TQM deveria levar a
uma redução da quantidade de moeda e, portanto, a uma redução dos preços das mercadorias,
pela teoria clássica do valor deveria levar a uma escassez temporária de moeda, que elevaria
temporariamente seu preço de mercado acima do preço natural, induzindo a um aumento da
produção do material monetário, de modo a suprir as necessidades de circulação,
29
determinando assim o retorno do preço de mercado da moeda ao seu nível natural, assim
como os preços das demais mercadorias.
Não haveria necessariamente, portanto, o movimento equilibrador na competitividade entre os
países, porque o nível de preços não precisa se modificar de forma permanente em
decorrência de déficits ou superávits no balanço de pagamentos. Em países deficitários, por
exemplo, a tendência de elevação do preço de mercado do ouro acima do preço natural levaria
à extração do metal em maiores quantidades, podendo viabilizar neste caso um déficit
persistente pago com o ouro produzido. Em países superavitários, a queda do preço de
mercado do ouro abaixo do preço natural determinaria redução da produção do material
monetário.
Observe-se que, mesmo que não seja possível produzir o material monetário num determinado
país, o argumento de que o nível de preços se modifica de forma permanente com o resultado
do balanço de pagamentos não é necessariamente válido. Isto porque, se a quantidade de
moeda não possa retornar ao nível normal pela variação na extração do metal, o fato do preço
de mercado do ouro estar acima diferente de seu preço natural pode também induzir a
variação das reservas de metal entesouradas. Países deficitários poderiam manter-se nesta
posição reduzindo as reservas de metal entesouradas e países superavitários aumentando as
reservas entesouradas. Nesse caso, a hipótese de velocidade de circulação constante estaria
sendo relaxada.
Esse último ponto permite observar que o argumento do ajuste automático depende
fundamentalmente também da hipótese de velocidade de circulação fixa, na medida em que
somente assim o resultado do balanço de pagamentos se transforma em alteração da
quantidade de moeda. No caso de um superávit, por exemplo, se a velocidade é constante,
todo o ouro recebido pelas transações com o exterior se transforma em moeda em circulação
interna, mas se velocidade puder cair, então pode ser porque parte desse ouro não foi para a
30
circulação, e sim para reservas oficiais ou particulares. Nesse caso, a alteração temporária do
preço de mercado do ouro em relação ao seu preço natural poderia nem ocorrer, ou ocorrer em
menor intensidade.
No contexto da teoria clássica, portanto, o automatismo do ajuste fica prejudicado (a) pela
possibilidade de variação na produção do material monetário, quando o preço de mercado
estiver diferente do natural; (b) pela existência de reservas de metal que possam aumentar e
diminuir dependendo das necessidades de circulação, portanto pela possibilidade de variação
da velocidade de circulação.
Para os nossos propósitos, porém, parece que a crítica mais geral à concepção quantitativista,
nesta altura de seu desenvolvimento, era a ausência total de uma teoria do valor e distribuição,
que incluísse o valor do material monetário. Mostraremos na próxima seção que as
interpretações de Marx sobre os movimentos do nível de preços são plenamente consistentes
com a teoria do valor-trabalho. Sua dificuldade, no entanto, é em considerar que não existe
apenas um sistema monetário, mas vários interligados.
1.2 O valor-trabalho da moeda-mercadoria
Como vimos na seção anterior, Ricardo em alguns de seus escritos adere à teoria quantitativa
da moeda, ainda que isto esteja em contradição com a sua teoria do valor6.
6
Vale notar que esse aspecto essencial da história do pensamento econômico é ignorado pelos autores de livrostextos heterodoxos como o de Taylor (2004)."Ricardo's main policy recomendation was a Friedmanite rule
called the 'currency principle', recomending that the outstanding money stocks should be strictly tied to gold
reserves. Money should not be created for frivolous pursouits such as combating tyranny, and its supply should
only be allowed to fluctuate in response to movements of gold. In effect, Ricardo sought to steer monetary policy
along the trail blazed by Hume" (Taylor, 2004, p. 82-83). Muito mais importante que as posições juvenis de
Ricardo sobre o sistema monetário e sua conexão com Hume é o desenvolvimento posterior da teoria do valortrabalho, que não é abordada em nenhum ponto do livro citado. O equívoco mais grave de Taylor não consiste no
fato de mencionar esta posição de Ricardo, uma vez que o ocultamento empobreceria a trajetória intelectual do
maior economista político inglês, mas sim a omissão a respeito de seu papel no desenvolvimento da teoria
clássica do valor e distribuição.
31
De acordo com a teoria ricardiana do valor-trabalho, a moeda metálica que servia de medida
para o os preços das demais mercadorias também estava sujeita à lei do valor. Desejando
separar analiticamente as variações de valor das mercadorias e as variações do valor da
medida escolhida, Ricardo supunha que o ouro fosse produzido em condições técnicas
constantes. Assim, as variações de valor de todas as outras mercadorias eram investigadas
como supostamente resultantes de variações na quantidade de trabalho relativa a essas
mercadorias, e não de variações da quantidade de trabalho relativa ao ouro. “Ricardo
described the ´invariability of the value of the precious metals’ in a letter to Mill in 1815 as
´the sheet anchor on which all my propositions are built” (Ricardo citado por Green, p. 72).
No Ensaio (1815), Ricardo argumenta:
"O valor de troca de todas as mercadorias eleva-se à medida que aumentam as dificuldades em
sua produção. Portanto, se aparecem novas dificuldades na produção do cereal em decorrência
de que se necessita de maior quantidade de trabalho, ao passo que não se necessita de maior
quantidade de trabalho para a produção de ouro, prata, tecido de lã ou de linho etc., o valor de
troca do cereal necessariamente aumentará quando comparado com essas coisas" (Ricardo, 1815,
p. 204).
Para afirmar que o valor de troca do cereal aumenta ou diminui com relação ao ouro, portanto,
Ricardo vai supor sempre que a quantidade de trabalho relativa à produção de ouro não muda.
O problema central de Ricardo neste contexto era, porém, a determinação da taxa de lucro,
uma razão entre valores medidos em termos de quantidades de trabalho. E diante deste
problema percebeu que sua hipótese da invariabilidade do valor do metal monetário teria de
ser reformulada. Não bastava que a quantidade de trabalho relativa ao ouro fosse constante.
Era preciso também que a produção do metal monetário (o numerário) fosse caracterizada por
uma composição especial entre trabalho direto e indireto para que seu procedimento fosse
correto. Ricardo percebeu que dadas as quantidades de trabalho uma alteração distributiva
alteraria os preços relativos de uma forma demasiado complexa (o "curioso efeito" da
distribuição sobre os preços relativos).
32
Assim surgia, para Ricardo, o problema de encontrar uma “medida invariável” do valor, que
veio a ocupar sua mente até o fim de sua vida. Significava encontrar sob quais condições
especiais teria que ser produzido o “ouro”, tomado supostamente como medida de todas as
outras mercadorias, para assim determinar as condições sob as quais o “curioso efeito” que as
variações na distribuição exerciam sobre os preços relativos não invalidasse seu cálculo da
taxa de lucro no agregado.
Assim a noção de invariabilidade do valor do metal monetária culmina na busca pela
mercadoria que satisfaça as condições da teoria do valor. Segundo Marx, “simply a spurious
name for the quest of the concept, the nature of value itself” (Green, p. 73). Quem
desenvolveu este ponto foi Sraffa:
“The problem which mainly interest (Ricardo) was not that of finding an actual commodity which
would accurately measure the value of corn or silver at different times, but rather that of finding
the conditions which a commodity would have to satisfy in order to be invariable in value – and
this came close to identifying the problem of a measure with that of the law of value” (Sraffa
citado por Green, p. 73).
Ricardo investigava num plano abstrato, portanto, quais seriam as condições específicas de
produção do numerário7, para que suas proposições tivessem uma validade mais geral.
De qualquer modo, como vimos na seção anterior, Marx captou bem que os resultados das
investigações de Ricardo sobre o valor acabaram sobrepondo-se à sua teoria monetária
anterior, a partir da qual Ricardo formulou o plano de conversibilidade total das notas do
banco da Inglaterra em lingotes de ouro8.
7
Na terceira edição dos Princípios, Ricardo declara inacabada essa construção intelectual. “Of such a measure it
is impossible to be possessed, because there is no commodity which is not exposed to the same variations as the
things the value of which is to be ascertained” (Ricardo citado por Green, p. 73). Isto aparece também no
manuscrito inacabado que permaneceu inédito até a edição completa (Works) de Ricardo feita por Sraffa, e
traduzido para o português como "Valor absoluto e valor de troca”, reproduzido por Napoleoni (1983). Sraffa
(1960) posteriormente completaria a tarefa definindo a “mercadoria-padrão”.
8
Necessário dizer que esta outra visão quantitativista não foi descartada totalmente por Ricardo, e permaneceu
em diversos outros pontos, como em seus argumentos no capítulo sobre comércio internacional dos Princípios.
Ali, como já mencionamos, são as variações da quantidade de moeda entre os países que supostamente
transformam vantagens absolutas de determinado país no comércio internacional em vantagens comparativas.
33
De qualquer modo, pela teoria ricardiana do valor-trabalho, se todas as mercadorias são de
fato medidas em termos de ouro, uma queda dos custos de produção de ouro em relação às
demais mercadorias determinaria uma elevação do nível geral de preços. Observe-se que o
fato de que Marx tenha criticado Ricardo pela ambigüidade de posições sobre esse aspecto em
nada atrapalhou sua própria adesão à investigação "ricardiana" acerca da teoria do valor
trabalho, para a qual inclusive acaba contribuindo9.
A nosso ver isto fica bastante claro no texto "Salário, preço e lucro", em que Marx (1865)
relata suas posições políticas favoráveis à canalização de parte das forças ligadas aos
trabalhadores na luta por aumentos de salários, fosse como forma de obter uma elevação no
padrão de vida da classe trabalhadora, fosse como instrumento de resistência a eventuais
pressões para redução desse padrão. Ali Marx aplica vigorosamente seus conhecimentos
"ricardianos" em busca de contribuir na ação política à qual estava engajado.
"Os valores das mercadorias estão na razão direta do tempo de trabalho invertido em sua
produção e na razão inversa das forças produtivas do trabalho empregado. ... O preço ... é uma
forma particular tomada pelo valor. Em si mesmo o preço outra coisa não é senão a expressão
em dinheiro do valor. Os valores de todas as mercadorias deste país se exprimem, por exemplo,
em preços-ouro, enquanto no continente se expressam quase sempre em preços-prata. O valor
do ouro, ou da prata, se determina como o de qualquer outra mercadoria, pela quantidade de
trabalho necessária à sua produção" (Marx, 1865, p. 157).
Portanto os preços-ouro (P/PG) das mercadorias aumentam quando o valor do ouro cai. O
valor da força de trabalho era supostamente determinado pelo salário de subsistência. "O valor
da força de trabalho é determinado pelo valor dos artigos de primeira necessidade exigidos
para produzir, desenvolver e perpetuar a força de trabalho" (Marx, 1865, p. 161). Para Marx,
dados os valores de todas as mercadorias em termos de tempo de trabalho, inclusive daquelas
que compõe a subsistência, determina-se uma situação distributiva, e o excedente é
9
Este ponto é freqüentemente negligenciado pela literatura marxista, que em geral tende a fazer vistas grossas
para os elementos de continuidade teórica entre Ricardo e Marx. Sobre esta continuidade temos uma referência
recente com Serrano (2006).
34
distribuído entre os capitais particulares em termos de uma taxa de lucro sobre o capital
empregado.
Para expor seu raciocínio, Marx apresenta um exemplo em que supostamente a produção dos
bens que compõe o salário de subsistência exija 6 horas de trabalho, e que 6 horas sejam
também necessárias para produzir o material monetário equivalente a 3 xelins. "Nessas
condições, os 3 xelins seriam o preço ou a expressão em dinheiro do valor diário da força de
trabalho desse homem" (Marx, 1865, p. 163). Podemos dizer então que 3 xelins é a
quantidade de dinheiro necessária para adquirir a subsistência nas condições descritas, e isto
ocorre porque produzir o material monetário equivalente aos 3 xelins exige o mesmo tempo
de trabalho do que produzir a subsistência.
Este exemplo é retomado quando Marx menciona cinco "casos particulares de luta pelo
aumento de salários ou contra sua redução”, ou seja, cinco situações nas quais faria sentido
que os trabalhadores se mobilizassem por aumentos de salários. Em um desses casos
hipotéticos, Marx supõe uma queda do valor do ouro, derivada de alterações nos custos de
produção deste metal.
"Os valores dos artigos de primeira necessidade e, por conseguinte, o valor do trabalho podem
permanecer invariáveis, mas o preço deles em dinheiro pode sofrer alteração, desde que se opere
uma prévia modificação no valor do dinheiro com a descoberta de jazidas mais abundantes, etc.,
2 onças de ouro, por exemplo, não suporiam mais trabalho do que antes exigia a produção de 1
onça. Nesse caso, o valor do ouro baixaria à metade, a 50% e como, em conseqüência disso, os
valores das demais mercadorias expressar-se-iam no dobro de seu preço em dinheiro anterior, o
mesmo aconteceria com o valor do trabalho. As 12 horas de trabalho, que antes se expressavam
em 6 xelins, agora expressar-se-iam em 12. Logo, se o salário do operário continuasse a ser de 3
xelins, em vez de ir a 6, resultaria que o preço em dinheiro do seu trabalho só corresponderia à
metade do valor do seu trabalho, e seu padrão de vida pioraria assustadoramente" (Marx, 1865,
p. 176).
Conforme já havíamos mencionado na seção anterior, Marx criticava os quantitativistas e
mesmo Ricardo, quando estes atribuíam o crescimento dos preços ao aumento da quantidade
de moeda e não ao movimento dos custos de produção. Agora, utilizando novamente a teoria
que aprendera do próprio Ricardo e que havia utilizado para criticá-lo, supunha que os custos
35
de produção do metal monetário estavam caindo para demonstrar que, neste caso, seria
necessário que os trabalhadores exigissem aumentos salariais como forma de evitar a queda
de seu padrão de vida.
"Dizer, nesse caso, que o operário não deve lutar pelo aumento proporcional de seu salário
equivale a pedir-lhe que se resigne a ter seu trabalho pago com nomes e não com coisas. Toda a
história do passado prova que, sempre que se produz uma depreciação do dinheiro, os
capitalistas se apressam para tirar proveito da conjuntura e enganar os operários" (Marx, 1865,
p. 176).
Portanto se os trabalhadores não podem aceitar que seu trabalho seja pago com nomes e sim
com coisas, para eles não seria nada interessante seguir recebendo 3 xelins, uma vez que esta
era a quantidade de dinheiro necessária para comprar a subsistência na situação anterior. A
queda dos custos de produção de ouro pela metade tenderia a elevar o preço das mercadorias
que compõe a subsistência para 6 xelins, e portanto o dinheiro necessário para adquirir a
subsistência também passaria a ser o dobro, ou seja, 6 xelins. Assim, se os trabalhadores não
obtém o aumento salarial de 3 para 6 xelins eles não estarão em condições de manter seu
padrão de vida, portanto o argumento de Marx indica que sob essa hipótese justifica-se a luta
pela obtenção de aumentos salariais.
O que fica claro nestas passagens é que Marx parece convencido de que, de fato, melhorias
nas condições técnicas de produção do material monetário elevam os preços das demais
mercadorias em termos nominais. Se assim não fosse, não estaria aplicando tal argumento em
uma discussão com propósitos tão concretos10.
Marx pouco desenvolve, porém, o processo pelo qual a queda dos custos de produção do
material monetário levaria aos aumentos dos preços das mercadorias. Na seção anterior,
transcrevemos uma passagem em que ele diz que isto não é imediato e pode levar muitos anos
10
Além de criticar, portanto, as posições quantitativistas de Ricardo com base a teoria do valor-trabalho, Marx
também procurava aplicando esta teoria em suas ações políticas.
36
para que o ajuste ocorresse completamente. Green (1992) menciona algumas passagens dos
Grundrisse em que há algumas considerações a respeito.
"If the value of money should fall, 'this fact is first evidenced by a change in the prices of the
commodities that are directly bartered for the precious metals at the source of their production'.
Then, Marx went on, 'one commodity infects another through their common value relation, so that
their prices, expressed in gold or silver gradually settle down into the proportions determined by
their comparative values, until finally the values of all commodities are estimated in terms of the
new value of the metal that constitutes money" (Green, 1992, citando Marx, p. 92).
O processo de ajuste dos preços das mercadorias à queda do valor do ouro teria de começar,
portanto, nas trocas próximas às fontes produtoras do metal monetário, espalhando-se
progressivamente até que todas as mercadorias tivessem seu valor expresso no novo preço. Na
analogia de Marx, as mercadorias vão sendo "infectadas" ou "contaminadas" pelo novo valor
do material monetário. Caberia perguntar se não pode haver um “cordão sanitário” que
impeça a contaminação em algum ponto do processo.
"Comenting on this passage, Wicksell took issue with Marx's refusal 'to admit that the quantity of
money may possibly exert an influence on prices'; there was 'no logical reason why a change in
the conditions of production of gold (a rise or fall in the average cost of production) should not at
first, and perhaps for a fairly long period of time, be consistent with a temporarily constant
exchange value of gold'" (Green citando Wicksell, nota 55, p. 229).
De qualquer modo, Marx encontrou nos escritos de Ricardo uma explicação diferente para o
comportamento secular do nível de preços: seriam as revoluções no valor da mercadoria
monetária que explicariam a revolução dos preços dos séculos XVI e XVII e o aumento da
quantidade de moeda em circulação. Indicamos que Marx utiliza este argumento também em
questões práticas e concretas associadas à sua ação política, mas não aprofunda o mecanismo
pelo qual as alterações dos custos de produção nas fontes produtoras de ouro poderiam ser
repassadas aos preços na Inglaterra.
1.3 Ouro e moedas
37
Vimos na seção anterior que a posição clássica implica que o preço-ouro de todas as
mercadorias (P/PG) seja regulado pelas condições técnicas de produção, medidas em termos
de tempo de trabalho. Segundo este raciocínio uma queda dos cusos de produção de ouro
determinaria um aumento dos preços das demais mercadorias, inclusive daquelas envolvidas
em transações comerciais entre diferentes países também.
Suponha-se um país que só produz ouro (QG) e outro que só produz trigo (QT). Vimos nas
seções anteriores que a quantidade de ouro que deve circular em um país poderia ser expressa
por
QG= (QT/V) (PT/PG) (1.11)
Sob as hipóteses já descritas, haverá uma quantidade de ouro necessária para circular o trigo,
e o país que produz somente trigo demandará tal quantidade de ouro do país que o produz. Se
o ouro for utilizado como moeda com velocidade de circulação constante V, circulando uma
quantidade tambémn fixa de trigo QT, a quantidade de ouro que deve circular no país que
produz trigo e importa ouro dependerá apenas do preço-ouro do trigo PT/PG.
Se o custo de produção de ouro cai, conforme o raciocínio de Marx descrito acima, uma
quantidade fixa QG de ouro não estaria mais suprindo as necessidades de circulação, porque o
preço-ouro do trigo teria aumentado. Dada a quantidade QG, portanto, o preço de mercado do
ouro estaria acima de seu preço natural. Como argumentamos acima, isto faz com que os
capitalistas percebam que o ouro pode ser extraído ao custo de produção mais baixo e ser
vendido pelo preço de mercado ainda inalterado, permitindo assim a obtenção de um lucro
anormal (renda). Na medida em que a produção de ouro aumentasse para suprir as novas
necessidades, o preço de mercado do ouro cairia ao novo nível natural e o preço do trigo
subiria, adequando-se ao novo preço-ouro. Sob velocidade de circulação constante, mais ouro
teria de estar na circulação ao final do processo.
38
Quando colocado sob uma perspectiva de comércio entre países, esse raciocínio precisa
considerar, porém, as múltiplas unidades monetárias envolvidas. Investiguemos como isto
poderia ocorrer se inicialmente:
PT = 1 libra no país que produz trigo
PG = 1 dólar no país que produz ouro
Observe-se que nestas condições o preço-ouro do trigo não fica definido sem que se saiba a
relação entre as duas unidades monetárias, a libra e o dólar. Definindo a taxa nominal de
câmbio (e) como quantidade de libras necessárias para adquirir um dólar, temos que e ePG é o
preço do ouro em termos de libras. O preço-ouro do trigo fica definido como PT/ePG.
Nestas condições, temos a seguinte expressão modificada para a quantidade de ouro
necessária para a circulação.
QG = (QT/V)[(PT/ePG)]
(1.12)
1.3.1 Preço-ouro variável com preço dado em libra
Pode-se perceber a partir dessa expressão modificada que há ao menos duas formas pelas
quais o preço-ouro do trigo pode ser alterado sem que sua cotação em termos de libra precise
ser modificada
A primeira delas ocorre na hipótese da taxa nominal de câmbio ser completamente flexível.
Neste caso tanto PT quanto PG poderiam permanecer inalterados nas unidades monetárias
domésticas. A segunda ocorreria na hipótese de a taxa nominal de câmbio permanecer fixa e a
cotação do ouro variar apenas na moeda do país que o produz.
No primeiro caso, uma redução dos custos de produção de ouro com uma cotação dada na
moeda doméstica determinaria uma tendência de elevação da produção de ouro. Se a
autoridade monetária deste país segue trocando ouro por dólares em uma cotação fixa, haverá
mais dólares sendo oferecidos em troca de libras, como forma de importar o trigo que este
país supostamente não produz. Na medida em que isto ocorra a taxa nominal de câmbio seria
39
reduzida para que a mesma quantidade de trigo seguisse sendo exportada em troca de uma
quantidade maior de dólares.
Na medida em que a taxa de câmbio tivesse caído o suficiente, o preço-ouro do trigo estaria
ajustado à nova relação de valor sem que fosse necessária a alteração da cotação do trigo em
libras. O efeito, portanto, da queda dos custos de produção de ouro teria sido uma
desvalorização nominal da unidade monetária do país que o produz em relação à do país que o
importa.
No segundo caso, poderia ocorrer que a redução dos custos de produção de ouro determinasse
inicialmente uma tendência de elevação da produção de ouro, mas a autoridade monetária do
país produtor não seguisse trocando ouro por dólares à mesma taxa. Ou seja, se diante de uma
oferta maior de ouro a autoridade monetária passasse a reduzir a cotação do ouro nesta
moeda, estaria sancionando a elevação dos preços-ouro das demais mercadorias em circulação
neste país simplesmente pela redução da cotação do ouro na moeda doméstica.
Na medida em que a cotação do ouro na moeda doméstica tenha caído o suficiente para
ajustá-la à nova relação de valor, a produção de ouro voltaria ao nível normal e o efeito ficaria
restrito às fronteiras do país produtor. Na medida em que a taxa nominal de câmbio entre a
libra e o dólar permaneça inalterada, teria havido também um aumento do preço-ouro do trigo
sem que a cotação deste em libras precisasse ser alterada.
Claramente, estes são casos extremo mas úteis para demonstrar que é possível que uma queda
dos custos de produção de ouro nas fontes produtoras não seja repassado aos preços em países
que importam o material monetário. Os processo descritos são capazes de alterar o preço-ouro
do trigo sem que, no país produtor de trigo e importador de ouro, o trigo deixasse de ter seu
preço fixo em 1 libra.
Como vimos na seção anterior, para que o raciocínio de Marx se concretizasse completamente
seria preciso que, nesse caso, os preços em libras fossem “contaminados” pelas variações dos
40
custos de produção de ouro. A questão de fundo que Marx não parece dar a devida atenção
deriva do fato de que não há apenas um sistema monetário global, mas um sistema monetário
que agrega diversos sistemas monetários domésticos.
1.3.2 Preço-ouro da libra fixo
Procuramos indicar acima que o argumento de Marx de que a queda dos custos de produção
de ouro nas fontes produtoras se transforma em aumento de preços na Inglaterra não se
confirma caso: (a) as taxas nominais de câmbio entre as unidades monetárias sejam flexíveis;
(b) as taxas de câmbio sejam fixas, mas o efeito de elevação de preços-ouro ocorra apenas
internamente ao país produtor de ouro.
Por outro lado, é preciso acrescentar que em ambos os casos teria havido uma valorização da
libra em relação ao ouro, no sentido de que uma libra compraria uma quantidade maior de
ouro quando os custos de produção deste metal caem. Neste sentido, o raciocínio seguiria
sendo em parte consistente com o de Marx, se interpretado como uma elevação do preço-ouro
da libra decorrente da queda dos custos de produção de ouro. Nao haveria necessariamente,
porém, elevação das cotações das diversas mercadorias em termos de libras, como Marx
sugere em “Salário, preço e lucro”.
É fundamental perceber, porém, que as condições institucionais do século XIX são bastante
conhecidas e não correspondem a nenhum dos casos analisados. O que havia era uma
paridade oficial fixa da libra com o ouro, portanto durante toda a vigência do padrão ourolibra o preço-ouro da libra era fixo.
O conteúdo oficial da libra esterlina em termos de ouro é mencionado por Ricardo nos
Princípios:
“As nações do mundo cedo devem ter-se convencido de que não existe, na natureza, nenhum
padrão de valor ao qual pudessem referir-se sem erro, e, portanto, escolheram um meio que, no
conjunto, lhes pareceu menos variável que qualquer outra mercadoria. Devemos conformar-nos a
este padrão até que se mude a lei e se descubra alguma outra mercadoria pelo uso da qual
possamos obter um padrão mais perfeito que o estabelecido. Enquanto o ouro for o padrão
exclusivo neste país, a moeda será depreciada quando uma libra esterlina não tiver valor igual a
41
5 dwt e 3 gr. de ouro-padrão, independentemente de que o ouro suba ou desça em seu valor
geral” (Ricardo, 1821, p. 329).
Nesta passagem fica muito clara a separação que Ricardo faz a respeito do padrão monetário
definido por lei, em que uma libra esterlina deve conter certo peso fixo em ouro, e os custos
de produção desse mesmo peso fixo em ouro, que devem sofrer variações como sofrem
variações os custos de todas as mercadorias.
Convertendo o peso indicado por Ricardo em gramas teríamos que 1 libra esterlina = 7,94
gramas de ouro. Como uma onça de ouro tem 28,350 gramas, o preço da onça de ouro seria
3,56 libras esterlinas.
PG = 3,56 libras
Em segundo lugar, também não se pode supor que as demais taxas nominais de câmbio
fossem flexíveis, porque isto também não corresponde às condições institucionais do século
XIX. Na época do padrão ouro-libra, havia um conjunto de taxas de câmbio fixas em relação
à libra, e uma paridade fixa da libra em relação ao ouro. Assim, permanecendo fixas as taxas
nominais de câmbio entre as diversas unidades monetárias e a paridade libra-ouro, há uma
relação fixa entre todas as unidades monetárias, medidas em termos de quantidades de ouro.
Marx indica assim as cotações oficiais da libra em outras moedas européias. “Para 1 libra
esterlina, a paridade do câmbio com Paris é 25 francos e 20 cêntimos; com Hamburgo, 13
marcos Banko e 10 ½ xelins; com Amsterdam, 11 florins e 97 cents” (Marx, 18??, p. 106).
Portanto o preço da onça de ouro nessas moedas seria
Paris: e1PG = 25,20 X 3,56 = 89,71 francos
Hamburgo: e 2PG = 13,105 X 3,56 = 46,814 marcos
Amsterdam: e 3PG = 11,97 X 3,56 = 42,61 florins
Observe-se que isto significa que o Banco da Inglaterra está sempre disposto a comprar uma
onça de ouro ao preço de 3,56 libras, portanto todos os produtores ou comerciantes de ouro
sabem que podem obter um valor fixo em libras para uma determinada quantidade de ouro.
42
Adicionalmente, a autoridade monetária da França, por exemplo, garante que está sempre
disposta a entregar 25,20 francos por cada libra, logo entregará 89,71 francos por cada onça
de ouro, uma vez que sabe que poderá obter com esta quantidade de ouro 3,56 libras. O
mesmo valerá para todos os países que integram o sistema de taxas fixas.
Nestas condições, todos os negociantes de ouro do mundo saberão que podem obter um
determinado valor monetário fixo pela quantidade de ouro que puderem entregar às
autoridades monetárias que fazem parte deste sistema, independente dos custos de extração,
produção e transporte deste material monetário.
Seguindo com o raciocínio para o caso da França, por exemplo, só será produzido ouro por
este país se ele puder ser extraído e entregue à autoridade monetária a custo inferior a 89,71
francos, incluída uma taxa de lucro normal para o capital empregado. Se o preço de produção
de uma onça de ouro na França ou em alguma de suas colônias fosse, por exemplo, 80
francos, ele seria vendido aos 89,71 francos oficiais, e restariam 9,71 francos que constituem
uma renda absoluta, provavelmente apropriada pelo detentor da mina.
Observe-se portanto que, havendo melhorias nas condições técnicas que determinassem uma
queda do custo unitário de extração do ouro para 70 francos e o preço oficial permanece
inalterado, o detentor da mina passaria a apropriar-se de 19,71 francos, e assim por diante.
Tal situação parece consistente com a observação crítica pontual que Wicksell faz a Marx,
quando este afirma que os custos de produção de ouro menores transformam-se em preços
mais altos. Havendo um valor de troca constante do ouro, por um período longo de tempo (o
que é o caso, porque o preço era mantido fixo ao nível oficial), então uma queda do custo de
produção do ouro não tem porque alterar o preço das demais mercadorias. O mais provável a
ocorrer quando a paridade oficial é mantida fixa é uma alteração das rendas absolutas,
distribuídas geograficamente em função das diferenças entre os preços de produção das
diferentes minas e o preço oficial do ouro.
43
Considerando os três países mencionados, temos
e1PG – (1+m)C1 = R1
e2PG – (1+m)C2 = R2
(1.13)
e 3PG – (1+m)C3 = R3
Considerando uma mesma taxa de lucro em vigor na produção de ouro dos três países, a renda
absoluta na produção de ouro em cada um é dada pela diferença entre o preço oficial do ouro
na moeda doméstica e o preço de produção em moeda doméstica. Dados o preço oficial do
ouro em libras, a cotação oficial do câmbio e a taxa de lucro, reduções dos custos de produção
na moeda doméstica de cada país determinam variações no sentido oposto da renda absoluta.
Dividindo cada equação pela respectiva taxa de câmbio temos:
PG – (1+m)(C1/e1) = R1/e1
PG – (1+m)(C2/e2) = R2/e2
(1.14)
PG – (1+m)(C3/e 3) = R3/e 3
Igualando o preço do ouro nas três equaçôes temos:
PG = (1+m)(C1/e1) + (R1/e1) = (1+m)(C2/e2) + (R2/e2) = (1+m)(C3/e 3) + (R3/e3) (1.15)
Esta expressão mostra que, dada uma taxa de lucro igual para os três países, a renda absoluta
medida em termos de libras dependerá do diferencial de custos também medido em libras11.
Caso a produção de ouro ocorra em países menos relacionados com o sistema capitalista
internacional e assim variável distributiva relevante seja o salário real, a queda dos custos de
produção de ouro poderia determinar que parte do excedente maior se transformasse além de
rendas maiores também em uma taxa de lucro mais alta.
11
Alternativamente, igualando a taxa de lucro temos que:
(1+m) = (e1PG-R1)/C1 = (e2PG-R2)/C2 = (e3PG-R3)/C3
A taxa de lucro aparece nessa expressão como a razão entre o preço oficial em moeda doméstica descontado da
renda absoluta e o custo de produção em moeda doméstica. Observe-se que a autoridade monetária de cada país
pode evitar o aumento da renda absoluta em termos de moeda nacional reduzindo a taxa nominal de câmbio
quando os custos de produção em moeda doméstica caem.
44
De qualquer modo, o que parece claro é que sob estas condições nada precisa ocorrer com os
preços na Inglaterra em função de alterações dos custos de produção de ouro ao redor do
mundo. Simplesmente a queda dos custos de produção geraria um excedente maior na
produção de ouro, que pode se traduzir em termos de maiores rendas ou de uma maior taxa de
lucro nas fontes produtoras12.
Assim, havendo um preço oficial fixo as alterações nos custos de produção determinam ajuste
apenas nas rendas de extração de ouro e fica muito difícil sustentar a hipótese de que os
efeitos da variação nos custos de produção do material monetário ultrapassem as fronteiras
dos países produtores em direção à Inglaterra. Isso não significa negar que parcela
significatova do ouro pudesse de fato ser enviado à Inglaterra, mas muito diferente é a questão
acerca de qual o preço pago na Inglaterra pelo ouro importado.
Em outras palavras, não há porque os menores custos de produção do atividade extrativa no
Brasil, na Califórnia, na Austrália ou na África do Sul fossem causa para alterações dos
preços na Inglaterra. Os diferentes custos de extração nesses diferentes lugares determinam
quem são os principais fornecedores do material monetário, e as diferentes rendas derivadas
dessa exploração.
O ponto que procuramos esclarecer nesta seção consiste, portanto, no fato de que o
fundamental para os preços das mercadorias em circulação na Inglaterra não são os custos de
produção de ouro, no caso de haver uma paridade oficial da libra com o ouro e taxas de
câmbio nominais fixas com as demais moedas. Nesse caso, as alterações do custo de produção
de ouro não influenciam os preços na Inglaterra.
Cabe a seguir investigar, nesses termos, de que depende a manutenção desta paridade. Como
mencionamos anteriormente, ela passa pela possibilidade a Inglaterra, ou mais
12
Uma terceira possibilidade, menos provável é que a apropriação desse excedente maior fosse realizada pelos
trabalhadores.
45
especificamente, o Banco da Inglaterra, estar sempre em condições de comprar e vender ouro
a esta taxa fixa em libras, e isto depende da situação do balanço de pagamentos inglês.
1.3.3 Ajuste do balanço de pagamentos inglês
Da discussão da seção anterior temos, portanto, uma tabela de paridade entre as moedas de
alguns países centrais e da Inglaterra e o ouro. Estabelecida a paridade oficial, pequenas
variações das cotações de mercado das diferentes moedas tinham efeitos significativos sobre
os fluxos comerciais e financeiros entre os países, porque podem determinar vantagens e
desvantagens em realizar pagamentos na forma de ouro ou moedas.
Marx descreve assim um movimento de valorização da cotação de mercado da libra em
relação ao franco:
“Na proporção em que o câmbio com Paris ultrapassa 25 francos e 20 cêntimos, torna-se ele
mais favorável ao devedor inglês à França ou ao comprador de mercadorias francesas. Em ambos
os casos, ele precisa de menos libras esterlinas para atingir seu objetivo” (Marx, 18??, p. 106).
Uma cotação de mercado do franco acima da paridade oficial significava, portanto uma
posição desvalorizada do franco em relação à paridade oficial. Em geral o que a Inglaterra não
podia permitir era a situação contrária, ou seja, que as cotações de mercado das outras moedas
descessem significativamente abaixo do par, porque neste caso a libra estaria em posição
desvalorizada13. Se a cotação de mercado da libra descesse a 80 francos, por exemplo,
provavelmente seria vantajoso para um francês com libras a receber que exigisse o pagamento
em ouro, podendo determinar uma redução das reservas do Banco da Inglaterra14.
13
Como já referimos Ricardo atribuía tal situação a um excesso de notas em circulação. sem perceber que o
balanço de pagamentos inglês estava sujeito a flutuações que poderiam derivar de outras causas. Green (1992) e
De Vivo (19??) mencionam uma discussão entre Ricardo e Thornton em que este último tentava convencer
Ricardo disto mas este não abria mão de seu argumento.
14
O intervalo entre o câmbio oficial e a taxa de mercado que começa a determinar essas vantagens (gold export
point) depende dos custos de transportar o ouro.
46
A manutenção da paridade oficial da libra com o ouro é uma das condições mencionadas por
Serrano (2003) para que a Inglaterra mantivesse condição de emissor da moeda-chave do
sistema. A outra diz respeito à posição estrutural do balanço de pagamentos.
“There are two things that this country should not allow to occur: (a) chronic deficits in the
current account; and (b) changes in the official price of gold in terms of the local currency”
(Serrano, 2003, p. 88).
Com relação à primeira condição, os padrões do balanço de pagamentos inglês durante o
século XIX são bastante claros e apontados pela literatura:
“During the gold sterling standard, because of the protectionist policies and of the productivity
gains of the countries that industrialised later and also because of the fixed nominal sterling
exchange rate, Britain had increasing deficits in merchandise trade. They were (more than)
compensated by the balance in non-factor services, by large surpluses in the merchandise trade
vis-à-vis the colonies (especially with India), and by the net income received from its investments
abroad” (Serrano, 2003, p. 91).
"Há padrões muito claros nas contas externas britânicas: a conta corrente mostra-se
cronicamente superavitária, apesar da existência de um déficit comercial de avantajadas
proporções, principalmente em função das rendas oriundas de fretes e de investimentos britânicos
no exterior" (Franco, 1988, p. 10)
Portanto, durante esse período, a Inglaterra manteve a paridade oficial, incorreu em déficits
comerciais, mas não em conta corrente, dado o significativo fluxo de rendas. Ou seja, um
fluxo de rendas líquidas recebidas do exterior (RLR) positivo e signifcativo mais do que
compensava um resultado negativo na conta comercial (X-M).
(X-M) < 0; RLR > 0;
(X-M) + RLR = TC > 0
(1.16)
"Esse superávit em conta corrente tinha, no entanto, como contrapartida o gigantesco volume
de exportação de capital observado no período 1870-1914, que em média, chega a atingir
5,2% do PNB a cada ano" (Franco, 1988, p. 11).
Poderia ocorrer, portanto, que a magnitude destes investimentos e empréstimos externos
ingleses ao exterior (VALP) mais do que compensasse o superávit em transações correntes.
47
VALP < 0; TC >0
VALP + TC < 0
(1.17)
Observe-se que, se isto ocorresse, a entrada de divisas oriundas de transações correntes seria
mais do que compensada pela saída de divisas derivada de investimentos externos. Conforme
indicado por Serrano (2003), isto não constituiria em um problema sob uma perspectiva de
longo prazo, porque os investimentos e empréstimos externos eram exatamente a origem do
fluxo positivo de rendas recebidas do exterior.
Há, porém, que se considerar a necessidade de dar conta, num horizonte de curto prazo, de
uma saída de divisas para investimento (VALP < 0) maior do que a entrada de divisas
oriundas das transações correntes (TC > 0). Isto poderia ocorrer de duas formas: transferência
de ouro em direção aos países receptores dos investimentos (VO), reduzindo as reservas
inglesas do metal monetário, ou emissão de títulos de curto prazo denominados em libras
(VACP) e remunerados a uma taxa de juros definida pelo Banco da Inglaterra.
(VALP + TC) + VACP = VO
(1.18)
Assim bastaria que o Banco da Inglaterra pudesse colocar nos mercados financeiros títulos de
curto prazo em valor suficiente para financiar a diferença entre o resultado positivo em
transações correntes e a saída de divisas oriunda de seus investimentos externos que não
haveria variação de suas reservas de metal (VO=0). Haveria nesse caso um equilíbrio no
balanço de pagamentos inglês produzido por uma situação em que o Banco da Inglaterra capta
recursos a curto prazo e proporciona assim a liquidez necessária aos investimentos ingleses no
exterior com retorno a longo prazo.
Esse é, portanto, o padrão estrutural das contas externas inglesas, amplamente discutido pela
literatura. Na maior parte do período, a Inglaterra administrava de forma tranqüila seu balanço
de pagamentos e assim suas reservas de ouro, mantendo a paridade fixa da libra com o ouro.
48
Bastava manter uma taxa de juros minimamente atrativa para captar os recursos necessários a
curto prazo.
Não significa, no entanto, que não tenha havido períodos específicos de crises e dificuldades,
ponto que passamos a analisar. Uma crise financeira ocorrida no ano de 1847 e relatada por
Marx ilustra como eventuais distúrbios no padrão descrito do balanço de pagamentos inglês
por vezes afetavam o nível das reservas de ouro do Banco da Inglaterra e as cotações de
mercado das principais moedas em relação à libra. Fica claro pelo relato de Marx como a taxa
de juros era operada discricionariamente pelo Banco da Inglaterra de modo a manter as
reservas de ouro sempre a um nível considerado seguro e as cotações de mercado das taxas de
câmbio próximas da paridade oficial. A eventual ameaça se manifestava na forma de uma
rápida redução das reservas de ouro.
“Depoimento de Tooke: ‘Em abril de 1847 surgiu um aperto, que a rigor, equivalia a um pânico,
mas de duração comparativamente curta e não acompanhada por falências comerciais de alguma
importância. ... os cursos do câmbio, sobretudo com a América, nos compeliram a exportar
quantidade considerável de ouro, para pagar um volume extraordinariamente grande de
importações; só com um esforço extremamente violento conseguiu o Banco paralisar a
drenagem de ouro e elevar o curso do câmbio. ...’” (Marx citando Tooke,1894, vol. 5, p. 89-90)
Nos termos que colocamos acima, parece que a necessidade de cumprir uma grande soma de
pagamentos internacionais num prazo curto determinou uma significativa “drenagem de ouro”
(VO < 0), reduzindo as reservas metálicas do Banco da Inglaterra.
Tabela 1: A crise de 1847
Data
Reserva
metálica
Taxa de juros
Paris
Hamburgo
Amsterdam
1 de janeiro
15066691
3,5%
25,75
13,10
12,3
5 de março
11595535
4,0%
25,67
13,09
12,2
20 de março
11231630
4,0%
25,67
13,09
12,2
03 de abril
10246410
5,0%
25,80
13,10
12,3
10 de abril
9867053
25,90
13,10
12,4
17 de abril
9329841
26,02
13,10
12,5
24 de abril
9213890
26,05
13,12
12,6
01 de maio
9337716
26,15
13,12
12,6
5,5%
49
08 de maio
9588759
26,27
13,15
12,7
Fonte: Marx (????)
A tabela mostra a evolução das reservas de ouro, da taxa de juros praticada pelo Banco da
Inglaterra e das cotações do câmbio em Paris, Hamburgo e Amsterdam. O primeiro
movimento perceptível, entre 1º de janiero e 5 de março, é uma redução das reservas de ouro
e uma desvalorização da cotação de mercado da libra em relação às três moedas. A pronta
resposta do Banco da Inglaterra foi a elevação da taxa de juros em meio ponto percentual, ato
que imediatamente consegue reverter a evolução das cotações do câmbio.
A drenagem de reservas, porém, prossegue (embora em intensidade menor do que o
movimento inicial), e o banco segue elevando a taxa de juros até que esta chega a 5,5%.
Somente neste patamar de juros é que a drenagem de reservas parece totalmente contida.
Ao final do processo, a libra encontrava-se acima do par e em cotação mais valorizada em
relação ao início da crise, em relação às três moedas consideradas. As reservas encontravamse a nível menor do que o inicial. Marx relata o destino do ouro.
“O Economist menciona o rápido efeito, em 1847, sobre o curso do câmbio, da elevação da taxa
de juros e outras pressões sobre o mercado monetário. Mas não se deve esquecer que, apesar da
alteração do curso do câmbio, o ouro continuou sendo drenado até fim de abril; o rumo só mudou
no começo de maio. ... Em 1847, a exportação global de metal precioso da Inglaterra importou em
8602597 libras esterlinas. Delas foram para os Estados Unidos 3226411; delas foram para a
França 2479892 libras esterlinas” (Marx, p. 103-104).
Ou seja, o que parece ter ocorrido foi que a Inglaterra precisou utilizar parte de suas reservas
de ouro para fazer frente a obrigações externas, determinando alguma desconfiança e uma
resposta imediata dos mercados de câmbio na forma de uma pequena desvalorização da libra.
Esta pequena desvalorização foi suficiente para gerar um certo “pânico”, na expressão de
Tooke, porque se prossguisse poderia induzir a exigências ainda maiores de pagamentos em
ouro. Por este motivo, foi imediatamente combatida pelo Banco da Inglaterra, via elevação da
taxa juros. O efeito da taxa de juros do Banco da Inglaterra sobre o sistema monetário
internacional é reconhecido pela literatura
50
"Tipicamente, uma pressão sobre Londres se manifestava na necessidade de se elevar as reservas
metálicas do Banco da Inglaterra, ou em se cancelar débitos (circulação fiduciária) em libras.
Uma elevação da taxa de descontos resulta em pressionar, em primeiro lugar, os centros com
ligações mais estreitas, e daí irradiar-se em 'ondas' para as extremidades mais distantes do
sistema. ... havia uma hierarquia através da qual Londres 'emitia sinais' (elevava a taxa de
desconto) que se transmitiam para os principais centros financeiros e daí para outros subcentros
" (Franco, 1988, p. 7).
A elevação da taxa de juros por parte do Banco da Inglaterra pressiona os demais centros no
sentido de que cria incentivos adicionais para que estes comprem os títulos ingleses e assim
transfiram parte de suas próprias reservas para a Inglaterra. No esquema que apresentamos
acima, consiste em induzir o financiamento via VACP ao invés de VO. Quando VO<0 deixa
de ocorrer ou mesmo inverte para VO>0 e VACP aumenta, as reservas de ouro vão se
recompondo.
A passagem seguinte traz um relato do processo pelo qual a elevação dos juros consegue
reverter o movimento do câmbio, bem como seus efeitos na periferia do sistema.
“Apesar da mudança dos cursos do câmbio, no fim de março, a drenagem de ouro prossegue
ainda por um mês inteiro; provavelmente para os Estados Unidos. ‘Vemos aí (diz o Economist,
1847, p. 954) quão rápido e decisivo foi o efeito da alta da taxa de juros e do subseqüente aperto
monetário na correção de um curso do câmbio desfavorável e na reversão do fluxo de ouro, de
modo que ele voltou de novo à Inglaterra. O efeito foi conseguido de modo inteiramente
independente do balanço de pagamentos. Uma taxa de juros maior gerou um preço menor dos
papéis de crédito, tanto ingleses quanto estrangeiros, e motivou grandes compras dos mesmos
por conta do exterior. Isso aumentou a soma das letras emitidas na Inglaterra, enquanto, por
outro lado, com alta taxa de juros a dificuldade de obter dinheiro era tão grande que a procura
por essas letras caiu, enquanto sua soma aumentava. Pela mesma razão, ocorreu que encomendas
de mercadorias estrangeiras foram anuladas e investimentos de capital inglês em papéis de
crédito estrangeiro foram realizados e o dinheiro foi trazido à Inglaterra para ser investido.
Assim, por exemplo, lemos no ‘Rio de Janeiro Price Current’ de 10 de maio: ‘O curso do câmbio
{sobre a Inglaterra} experimentou novo retrocesso causado principalmente por uma pressão
sobre o mercado por remessas correspondentes a grandes vendas de fundos públicos
{brasileiros} feitas por conta inglesa. Capital inglês, que estava investido no exterior em diversos
papéis de crédito, quando a taxa de juros aqui estava muito baixa, foi assim trazido de volta,
quando a taxa de juros subiu” (Marx citando Economist, p. 104).
Quando a taxa de juros sobe, portanto, ocorre que parte do capital inglês deixa de ser aplicado
fora da Inglaterra, e parte do capital disponível fora da Inglaterra é atraído para os títulos
ingleses. Para os demais países, o processo aparece como uma “fuga de capitais”, frente à
qual os bancos centrais desses países precisam acompanhar as elevações de juros. Desse
modo é que a Inglaterra acabava “exportando a sua crise” para o resto do mundo.
51
"Observa-se, em geral, um movimento 'competitivo' da parte de outros bancos centrais no sentido
de se defender dessa drenagem externa elevando também suas taxas de desconto, o que é
consistente com o paralelismo no comportamento das taxas de juros observado ao longo desses
anos" (Franco, 1988, p. 7)
Fica claro, portanto, o papel fundamental da taxa de juros praticada pelo Banco da Inglaterra
nas condições de financiamento do balanço de pagamentos inglês e também sua influência
sobre as taxas de juros praticadas nos outros países15.
De qualquer modo, tendo em vista apenas o comportamento do país central, há claramente
uma relação entre o nível dos juros e o comportamento das reservas de ouro do Banco da
Inglaterra. Diante de uma ameaça de redução das reservas a taxa de juros era aumentada para
evitar o afastamento do câmbio em relação ao par.
Fato que chama a atenção de Franco (1988, p. 5) era a "reduzida dimensão das reservas
metálicas do Banco da Inglaterra", uma vez que diversos outros países menores e periféricos
tinham reservas muito maiores.
"Pode-se interpretar o fenômeno como uma eloquente expressão do quanto o sistema era de fato
fundado na moeda fiduciária da economia mais importante do planeta, e que, portanto, se tratava
de fato de um 'padrão-libra', e que não tinha como fundamento básico a conversibilidade"
(Franco, 1988, p. 5).
Parece necessário qualificar essa afirmação de que o sistema não tinha como fundamento a
conversibilidade, para evitar uma interpretação equivocada. Não tinha como fundamento a
conversibilidade no sentido de que nem todo o volume de notas e títulos denominados em
libra em circulação precisavam estar cobertas pelas reservas de ouro, e que a libra servia
15
Este papel demonstra que de fato a imagem mencionada por Keynes sobre o Banco da Inglaterra agindo como
"condutor de uma orquestra internacional" faz bastante sentido. (cf. Franco, 1988, p. 2). "A influência da taxa de
juros britânica sobre o estado do balanço de pagamentos e das reservas internacionais da Grã-Bretanha se
estabelece de meneira progressiva ao longo da segunda metade do século XIX. ... Progressivamente a taxa de
descontos do Banco da Inglaterra foi se tornando um instrumento cada vez mais 'internacional' (Franco, 1988,´p.
3-4). Esse autor enfatiza o período posterior a 1870 mas, como vimos pelo episódio de 1847, isso já era claro
desde antes.
52
como reserva de valor assim como o ouro, mas como já colocamos, o preço oficial do ouro
era mantido fixo.
Em segundo lugar, o fato de que as reservas da Inglaterra eram menores do que as de outros
países decorre exatamente da capacidade que o Banco da Inglaterra tinha de controlá-las por
meio do manejo da taxa de juros. Isto justifica o cuidado em evitar qualquer flutuação mais
pronunciada das cotações no mercado de câmbio. Qualquer desvalorização mais significativa
da libra geraria vantagens em exigir pagamentos em ouro, e nesse caso sim as reservas
poderiam tornar-se pequenas.
O que é preciso acrescentar é que este episódio de 1847, visto de uma perspectiva mais ampla,
é apenas um episódio que demonstra como a Inglaterra atuava para manter suas reservas de
ouro a um nível considerado seguro. Este nível considerado seguro não está relacionado,
porém com a quantidade de libras em circulação, mas sim com a necessidade de ter sempre
condições de transacionar ouro à paridade fixa, dadas as condições estruturais do balanço de
pagamentos inglês. Na maior parte do tempo, isto era realizado de forma mais tranquila, e o
Banco da Inglaterra trabalhava com taxas de juros baixas16.
É importante mencionar ainda que a situação da Inglaterra é totalmente diferente dos demais
países, havendo uma assimetria considerável. O caráter específico da situação inglesa é
destacado na seguinte passagem
"A nós interessa basicamente apontar para o fato de que há uma assimetria óbvia nesse sistema
na medida em que credores e devedores possuem capacidades inteiramente diversas para
enfrentar desequilíbrios externos. ... Os devedores freqüentemente viam-se na eventualidade de ter
de enfrentar poderosos processos de ajustamento na conta corrente, o que certamente não ocorria
com as economias 'líderes', pelo menos na mesma ordem de magnitude. Daí a persistência, nessas
economias, de desequilíbrios em conta-corrente que não geravam nenhuma espécie de mecanismo
equilibrador. O status de economia 'líder', nas palavras de Lindert [nota 63] key currency status
no original [fim da nota] 'permitia à Grã-Bretanha ... adiar um ajustamento contracionista de
16
A situação mudaria completamente no entre-guerras, quando a Inglaterra resolveu voltar à paridade oficial
(depois de tê-la abandonado antes da guerra) com os preços internos inflacionados. Isto determinou uma perda
de competitividade tão grande que reverteu a situação das transações correntes, que tornaram-se deficitárias.
Com isto desmontou-se o esquema de financiamento descrito, e o ouro acabou fluindo para os Estados Unidos.
Voltaremos a mencionar este ponto mais à frente.
53
outra forma inevitável. A posição da Grã-Bretanha logo antes da Primeira Guerra Mundial
fornece um exemplo clássico de 'deficit sem lágrimas' [nota 64] P. Lindert (1969, p. 75) deficit
without tears no original. Pode-se facilmente trivializar o problema argumentando-se que um país
que tem uma moeda que desfruta de conversibilidade, o que na verdade traduziria em última
análise uma série de atributos desejáveis dessa economia, de fato desfruta de uma vantagem no
tocante a seu balanço de pagamentos vis-à-vis outro de moeda não conversível, pois pode, até
certo ponto, fabricar seu próprio dinheiro para se financiar. Deve haver pouca discussão sobre o
fato de que existe uma assimetria muito clara aí, o ponto é se isso apenas reflete diferenças no
tocante à estrutura de cada economia ou se vai além disso [fim da nota]. (Franco, 1988, p. ??).
De qualquer modo, a moeda internacional era na prática a libra esterlina, e o destino dos
recursos oriundos de superávits de outros países eram aplicações denominadas em libras.
Reescrevendo o esquema contábil do balanço de pagamentos inglês, considerando que a
entrada de aplicações de curto prazo (VACP) seja função da taxa de juros, temos:
BP = TC + VALP + VACP(i) = VO
(1.19)
VO = 0 implica que
VACP(i) = - (TC + VALP)
(1.20)
Assim podemos definir uma taxa mínima de juros i* que proporcione o VACP necessário
para equilibrar o balanço de pagamentos inglês e garantir VO=0
VACP(i) < -(TC + VALP) sempre que i<i* e assim VO<0
Por último, é preciso lembrar que a taxa de juros exerce efeitos não só sobre as contas
externas inglesas, mas também sobre as contas públicas, na medida em que o tesouro inglês
tem de pagar os rendimentos dos títulos. M. Smith (1996) indica que o objetivo prioritário da
política da Inglaterra nesse período era reduzir os gastos com pagamentos de juros. Isto não é
contraditório com o esquema acima, porém há que se considerar que a necessidade de atrair o
capital de curto prazo poderia exercer em certos períodos uma configurava uma restrição ao
objetivo de manter taxas de juros baixas (nunca poderiam estar abaixo de i*).
1.3.4 Observações conclusivas sobre ouro e moedas
Procuramos argumentar nas seções anteriores que o argumento de Marx acerca da influência
dos custos de produção de ouro não se aplica ao quadro institucional do padrão ouro-libra, em
que o Banco da Inglaterra mantinha uma cotação oficial do o uro fixa em libras. Significa,
54
portanto, que reduções dos custos de produção de ouro não são capazes de “contaminar” os
preços na Inglaterra. O efeito mais provável de tal movimento seria tão somente a elevação
das rendas absolutas auferidas na extração desse metal.
Procuramos indicar também de que forma a Inglaterra administrava seu balanço de
pagamentos de modo a manter sempre um nível de reservas de ouro considerado seguro,
estando assim em condições de comprar e vender ouro à paridade fixa. O instrumento
fundamental para tanto era a taxa de juros oferecida pelo Banco da Inglaterra para aplicações
em títulos de curto prazo. Oferecendo uma remuneração básica para estes títulos a autoridade
monetária inglesa mantém as reservas de ouro sob seu controle, já que é vantajoso para outros
proprietários de reservas metálicas (sejam agentes privados ou outras autoridades monetárias)
manter títulos ingleses que rendem juros ao invés de reservas metálicas.
Eventuais dificuldades no balanço de pagamentos inglês que obrigassem a realização de
pagamentos em ouro reduziam as reservas e eram prontamente combatidas pela autoridade
monetária inglesa elevando sua taxa de juros. Fica claro também, portanto, que o sistema não
funcionava de modo automático como sugere a concepção monetarista. O bom funcionmento
do sistema dependia fundamentalmete da condução da política monetária inglesa.
55
1.4 Distribuição na gold money economy
Esperamos ter deixado claro na seção anterior que no padrão ouro-libra os preços das
mercadorias cotadas em libras não dependem dos custos de produção de ouro. Este ponto é
fundamental para o esclarecimento de uma certa confusão cuja origem está em uma
interpretação equivocada de M. Smith (1996) a respeito das observações de Serrano (1993)
quanto à possibilidade de influência de fatores monetários na determinação da taxa de lucro
em uma “gold money economy”.
Antes de mais nada, é preciso observar que quando Serrano (1993) refere-se a uma gold
money economy, trata-se apenas de uma abstração teórica que pode ser representada de uma
forma simples por um sistema de preços de produção em que a moeda é uma das mercadorias.
Existe uma semelhança grande entre esta abstração e aquela que poderia ser inferida do
raciocínio de Marx em “Salário, preço e lucro”, com a diferença essencial sendo o fato de que
Marx raciocinava nos termos mais restritos da teoria do valor-trabalho. A abstração da gold
money economy corresponderia, portanto, a uma adaptação do raciocínio de Marx às
condições mais gerais do sistema de preços de produção, que não dependem de hipóteses
específicas sobre a “composição orgânica” como teoria do valor-trabalho.
Estas considerações iniciais parecem necessárias para estabelecer que as críticas feitas ao
argumento de Marx nas seções anteriores aplicam-se também à abstração mais geral da gold
money economy, no sentido de que ela também não é uma boa estilização para a
representação do padrão ouro-libra em que o preço do ouro era mantido fixo em libras. O que
estaremos analisando nesta seção serão as possibilidades de determinação monetária da
distribuição neste sistema considerado em abstrato, sem qualquer associação imediata com o
padrão ouro-libra. Isto é necessário para situar de forma mais precisa a discussão estabelecida
56
a partir da resenha de Serrano (1993) ao livro de Pivetti (1991), posteriormente comentada por
M. Smith (1996).
1.4.1 O argumento de Serrano (1993)
Suponha um sistema de preços de produção na sua forma matricial geral, com salários pagos
ao fim do processo
P = A' P (1 + r ) + wL
(1.21)
Suponha que haja apenas duas mercadorias, trigo e ouro, e as seguintes condições técnicas:
A=
aT
aG
0
0
L=
lT
lG
(1.22)
Os dois zeros na segunda linha da matriz de coeficientes técnicos significam supor que o ouro
não seja utilizado como insumo. São necessárias aT unidades de trigo e lT unidades de
trabalho para produzir uma unidade de trigo, e aG unidades de trigo e lG unidades de trabalho
para produzir ouro. O ouro é utilizado apenas como moeda. O sistema é resolvido para os
preços na forma:
P = [I − A' (1 + r )] wL
−1
(1.23)
Observe-se que a expressão entre colchetes corresponde a uma matriz de dimensão 2x2 que
podemos representar por S:
S = [I − A' (1 + r )] =
−1
α β
γ σ
(1.24)
Temos, portanto que P = SwL, logo
PT = αwlT + β wlG
PG = γwlT + σwlG
(1.25)
Os elementos da matriz S, portanto, determinam a relação entre o preço de cada mercadoria e
os custos salariais envolvidos na produção de ambas. Esta relação depende dos elementos da
matriz A e da taxa de lucro. Para o caso da matriz A suposta acima, que corresponde à gold
money economy, temos:
57
α=
1
1 − aT (1 + r )
β =0
γ=
aG (1 + r )
1 − aT (1 + r )
σ =1
(1.26)
E assim o sistema fica:
PT = αwlT
PG = γwlT + wlG
E a relação de preço entre o trigo e o ouro, que no caso corresponde ao nível de preços:
p=
αl T
PT
α
=
=
PG γl T + l G γ + (l G lT )
(1.27)(*)
Esta última expressão mostra que o nível de preços depende dos elementos α, γ e da relação
entre os coeficientes técnicos lG e lT. Dados, portanto, os coeficientes técnicos aT e aG e a taxa
de lucro, estariam determinados os elementos α, γ, de modo que o nível de preços dependeria
da relação entre lG e lT. Fica claro que uma melhoria das condições técnicas de produção de
ouro expressa por uma redução do coeficiente lG aumenta, portanto, o nível de preços.
Conforme havíamos mencionado esta formalização resulta em resultados semelhantes aos
referidos por Marx em “Salário, preço e lucro”.
Serrano (1993) argumenta que neste sistema não há espaço para uma determinação monetária
da distribuição uma vez que dados os coefcientes teécnicos e o salário em uma determinada
quantidade de ouro, a taxa de lucro fica determinada.
“The fact that wages are paid in gold, and gold is a produced commodity makes gold behave just
like a ‘basic’ good and as soon as we know the gold money wage we can determine the rate of
profits and all relative prices (and hence also the real wage rate measured in terms of any other
commodity” (Serrano, 1993, p. 120).
De fato, resolvendo o sistema acima para a taxa de lucro temos:
(1 + r ) =
1
gl a
aT + T G
1 − gl G
(1.28)
58
Esta expressão mostra que dado o salário em ouro (g=w/PG) e os coeficientes técnicos, a taxa
de lucro fica determinada. Mostra também que um salário em ouro maior tende a reduzir a
taxa de lucro. Com base neste ponto é que Serrano (1993) argumenta não haver espaço para a
influência da taxa de juros no esquema abstrato da gold money economy, supondo que o
salário em ouro esteja dado. As condições de barganha salarial e as condições técnicas são
suficientes para determinar a taxa de lucro.
1.4.2 Os argumentos de M. Smith (1996)
M. Smith (1996) sugere, por outro lado, que o salário em ouro não seja considerado exógeno,
abrindo assim a possibilidade de influência da taxa de juros sobre a taxa de lucro, mesmo na
gold money economy.
Um de seus argumentos fundamentais consiste na afirmação de que quando os custos de
produção de ouro variam, os preços das demais mercadorias variam na direção oposta, e
assim a manutenção de uma situação distributiva depende de um ajuste completo do salário
em ouro ao novo vetor de preços.
Na seguinte passagem expõe a influência dos custos de produção de ouro sobre os preços das
demais mercadorias.
"In a gold money economy, the long run price level will be governed by the technical conditions of
production which (given distribution) determines the ratio between the normal price of
commodities other than gold and the normal price of gold. The long run price level can therefore
largely be explained by reference to those factors which exert a persistent influence on the
technical conditions of production which determine the normal cost of production of commodities
other than gold in relation to the normal cost of production of gold" (M. Smith, 1996, p. 49).
Pela formalização acima isto pode ser percebido a partir da equação (*) onde uma redução do
coeficiente lG por exemplo aumentaria o nível de preços, dados os demais elementos. A
segunda parte do argumento consiste no ajuste do salário em ouro à mudança do nível de
preços.
"It is important to emphasise that the re-establishment of normal distribution is conceived to
involve a wage-bargaining process by which the money wage attains its normal level compatible
59
with the normal rate of profit for a given technique. Thus, in the example above of an increase of
the price level, the restoration of the real wage will require workers to successfully obtain the
higher normal money wage consistent with an unchanged normal rate of profit" (M. Smith, 1996,
p. 52).
De fato, caso haja um crescimento do preço relativo entre o trigo e o ouro no modelo acima, a
manutenção de uma dada situação distributiva exige que os trabalhadores recebam mais ouro
para serem capazes de adquirir a mesma quantidade de trigo, portanto é necessário que o
salário em ouro suba na mesma proporção em que caíram os custos de produção de ouro.
A nosso ver há, porém, uma certa redundância neste argumento porque o efeito da variação
dos custos de produção de ouro sobre os preços já pressupõe que a distribuição seja dada.
Observar que na passagem citada acima M. Smith afirma que, dada a distribuição, o nível de
preços no longo prazo é governado pelas condições técnicas de produção, que determinam a
razão entre os preços das mercadorias em relação ao ouro. Na formalização acima, isto pode
ser percebido na medida em que os elementos α e γ (que têm entre seus determinantes a a taxa
de lucro) têm de estar fixos para que o efeto de lG sobre o nível de preços deja derivado.
Nesse sentido o mecanismo de transmissão entre os custos de produção de ouro os preços das
demais mercadorias poderia ser descrito de modo inverso ao suposto por M. Smith. Isto
porque, ao caírem os custos de produção de ouro com a taxa de lucro dada, o efeito imediato
poderia ser o aumento do salário em ouro pago no setor de mineração. Somente na medida em
que o salário em ouro mais elevado começasse a ser pago nos demais setores é que os preços
teriam de subir para também manter inalterada a taxa de lucro nestes setores. Desse modo o
mecanismo proposto por M. Smith estaria invertido.
Como se pode perceber, o argumento de M. Smith referido acima se assemelha bastante ao de
Marx em “Salário, preço e lucro”, quando este expõe aos trabalhadores ingleses a necessidade
de exigir reajustes de salários na hipótese de queda dos custos de produção de ouro, para
evitar a redução do poder de compra real em termos de mercadorias. M. Smith subordina,
porém, o resultado desta barganha salarial à condução da política monetária.
60
"In this picture, the implications of a permanent change in the (gold) price level for the
distribution of income between wages and profits will depend on the concurrent effect on the longterm money rate of interest. If the rate of interest remains unchanged in the face of a change in the
long run price level brought about by a permanent change in the normal cost of producing gold,
the (gold) money wage will adjust pari passu with the price level and the real wage will be
unaffected" (M. Smith, 1996, p. 51-52).
Ou seja, para M. Smith a condição para que a taxa de lucro fique inalterada e assim, segundo
a sua interpretação, os salários em ouro sejam completamente ajustados ao novo nível de
preços é a manutenção da taxa de juros a um nível inalterado diante de alterações dos custos
de produção de ouro.
Por outro lado, há a possibilidade de que a taxa de juros seja alterada em meio a este processo.
"The discussion has thus far assumed that the rate of interest remains constant in the face of a
change in the long run price level brought by a change in the cost of production of a non-basic
gold. However, in view of the central role of gold in the monetary system, it is hardly plausible to
suppose that the money rate of interest will be unaffected by a fundamental change in the
underlying level of money prices" (M. Smith, 1996, p. 53).
Ou seja, M. Smith pensa ser pouco plausível que diante de alterações nos custos de produção
de ouro a taxa nominal de juros permaneça inalterada, devido às características da demanda
por ativos de longo prazo.
"... it can be argued that to the extent the demand for long-term interest-bearing assets (e.g.
'consols') by agents is dependent on the real inflation-adjusted rate of interest, the nominal rate of
interest will tend to vary in sympathy with movements in the long run price level. Thus persistent
price inflation is likely to cause an increase in the long-term rate of interest, while persistent price
deflation will induce a reduction in the interest rate" (M. Smith, 1996, p. 53).
Ele indica, portanto, que o mais provável quando caem os custos de produção do ouro e os
preços crescem é que a taxa nominal de juros suba para manter a rentabilidade real dos títulos
de longo prazo, e quando os custos de produção de ouro crescem e os preços caem, a taxa
nominal de juros seja reduzida.
Se isto ocorre segundo M. Smith, a distribuição seria alterada:
“a permanent increase (decrease) in the interest rate associated with a higher (lower) long run
price level will limit the rise (decline) of the money wage to a normal level at which the real wage
(or gold money wage) stands lower (higher) than before, compatible with a higher (lower) normal
61
rate of profit and accompanied by a redistribution of income from wages (profits) to profits
(wages)” (M. Smith, 1996, p. 53).
Portanto se uma queda dos custos de produção de ouro que aumenta os preços das demais
mercadorias é acompanhada de aumento da taxa nominal de juros, o salário nominal não
cresceria na mesma proporção, e portanto a taxa de lucro seria maior, porque o salário em
ouro seria menor do que aquele necessário para manter a situação distributiva.
Alternativamente, um aumento dos custos de produção de ouro que determinasse queda do
nível de preços acompanhada de queda da taxa nominal de juros teria por conseqüência uma
queda menos que proporcional dos salários nominais, e assim a taxa de lucro seria menor,
porqueo o salário em ouro seria maior do que aquele que manteria inalterada a situação
distributiva.
Dadas variações nos custos de produção de ouro, as variações da taxa nominal de juros são
capazes, portanto, de dissociar o salário nominal e o salário em ouro. Na primeira situação
descrita acima o salário nominal cresce mas o salário em ouro cai, e na segunda o salário
nominal cai e o salário em ouro cresce. A nosso ver essa distinção entre o salário nominal e o
salário em ouro não faz sentido na gold money economy. Observe-se que na formalização
acima o salário em ouro foi definido como g=w/PG ou seja, a quantidade de ouro a que
corresponde o salário nominal. Na medida em que o nível de preços é definido como o preço
relativo entre o trigo e o ouro, ou seja p=PT/PG, o salário real corresponde neste sistema à
razão entre o salário em ouro e o nível de preços g/p = w/PT. Como se vê o preço do ouro
desaparece desta última expressão, pois o procedimento de medir os preços e o salário
nominal em termos de ouro é semelhante a definir PG=1, de modo que g=w.
Em segundo lugar, M. Smith supõe que o retorno relevante para os títulos públicos seja a taxa
nominal de juros descontada da variação dos preços, enquanto o retorno relevante para o
capital aplicado na produção de ouro e mercadorias seja a taxa nominal de juros. Observe-se
que em um cenário de crescimento do nível de preços seria muito difícil para a autoridade
62
monetária conseguir colocar seus títulos segundo esta interpretação, já que ao tentar proteger
sua rentabilidade real estaria aumentando a rentabilidade da aplicação produtiva do capital e
gerando uma tendência de deslocamneto do capital de ativos financeiros para ativos
produtivos. Em um cenário de queda do nível de preços, por outro lado, a redução da taxa
nominal de juros para manter a rentabilidade real dos títulos determinaria redução da
rentabilidade dos ativos produtivos, determinando uma tendência ao deslocamento do capital
aplicado na produção em direção dos títulos públicos. Haveria portanto uma curiosa situação
em que quanto mais a autoridade monetária eleva a sua taxa nominal de juros, menos atrai o
capital para seus títulos e quanto mais ela reduz sua taxa nominal de juros mais fácil seria a
colocação destes títulos17.
Um último ponto a mencionar sobre a interpretação de M. Smith sobre a gold money
economy diz respeito à diferença fundamental entre este sistema e as economias que operam
com moeda fiduciária: a direção de causalidade entre os salários e os preços. O caráter
endógeno dos salários nominais é a característica que distingue o sistema baseado na moedamercadoria.
"... whereas the residual determination of the real wage on the basis of a given rate of interest
(profit) and technique of production in a gold money economy involves the adjustment of the
money wage in relation to a given level of (gold) money prices, in a fiat money economy it
envolves the adjustment of money prices in relation to the given money wage" (M. Smith, 1996, p.
54-55).
A endogeneidade dos salários nominais na gold money impossibilita a criação de uma espiral
salário-preço derivada do estado do conflito distributivo como no caso das economias com
moeda fiduciária.
17
Uma interpretação alternativa – a nosso ver mais consistente com a hipótese de concorrência - poderia supor
que a taxa real de juros medida como a taxa nominal descontada da variação dos preços fosse relevante tanto
para a rentabilidade dos títulos públicos quanto para a taxa delucro da produção. Assim a manutenção da taxa de
lucro diante de alterações das condições técnicas de produção de ouro dependeria de um ajuste proporcional da
taxa de juros ao movimento do nível de preços. Mantida a taxa real de juros assim definida estaria mantida a taxa
de lucroe assim o efeito dos custos de produção de ouro sobre os preços e os salários em ouro seria completo e a
situação distributiva mantida.
63
"There is simply no scope for any incompatibility between interest-rate policy and wage
determination spilling over into a series of wage-prices increases which can drive a wedge
between the nominal and real rate of interest in a gold money economy [nota 2] As the discussion
above has indicated, only a change in the value of gold associated with a change in the technical
conditions of its production could cause a divergence between the nominal and real rate of interest
in a gold money economy [fim da nota]. Instead, any such conflict over distribution will take the
form of protracted industrial disputation over the determination of the normal money wage" (M.
Smith, 1996, p. 55).
Portanto dada uma taxa de juros e as condições técnicas de produção do ouro e das demais
mercadorias, o salário nominal tem que assumir um valor específico que seja consistente com
tal situação. O conflito, se houver, terá de se resolver na determinação deste nível de salário.
Dado, por exemplo, um determinado nível de preços, se a taxa nominal de juros sobe o salário
nominal tem de cair.
"Thus, a permanent increase in the long-term rate of interest will, for a given technique, require
productive enterprises in general to reduce their wage payments in the long run so as to bring
their normal money costs of production in line with normal money prices at which a higher normal
rate of profit can be earned” (M. Smith, 1996, p. 44).
Isto é diferente da fiat money economy, por exemplo, onde uma elevação exógena da taxa
nominal de juros poderia ser acompanhada por uma resistência por parte dos trabalhadores
obtendo salários nominais também mais altos, deflagrando um processo inflacionário por
conflito distributivo. Na gold money economy, conforme interpretada por M. Smith o conflito
tem de ser resolvido no nível do salário. O grau em que isto ocorrerá depende das condições
de barganha.
“It is because capitalists possess superior bargaining strenght over workers in general that they
can force a lowering in the normal money wage and thereby higher price-wage ratio compatible
with the new higher rate of interest. The power of capitalists to override workers in the
determination of money wages is however circumscribed by competitive forces. Therefore, when
there is instead a permanent reduction in the rate of interest which tends to lower the normal
costs of production, compatible with a lower normal rate of profit and price-wage ratio,
competition will ensure capitalists in general tend to accede to workers demands for higher
money wages rather than risk costly industrial disruption and/or the loss of its (skilled) workers
to competitors. In this manner the money rate of interest is conceived to be the main magnitude
through which the distribution of income between wages and profits is determined in a gold money
economy such as have historically existed" (M. Smith, 1996, p. 44).
64
A passagem seguinte atesta a importância da barganha salarial também no caso já analisado
de alterações do nível de preços em função de alterações dos custos de produção do material
monetário.
"When there is an increase in the long run price level the onus is on workers to obtain a higher
normal (gold) money wage and when there is a decrease in the long run price level the onus is on
industrial capitalists to lower the money wage to mantain the normal rate of profit" (M. Smith,
1996, p. 53).
O ponto que queremos chamar a atenção diz respeito, portanto, ao elevadíssimo grau de
importância que tem o processo de barganha salarial pelo salário em ouro nas condições
abstratas da gold money economy, e o fato de que este ajuste pode ou não ocorrer dependendo
das condições de barganha das partes. A nosso ver, uma vez admitido este elevado grau de
importância, faz pouco sentido supor que seu resultado esteja subordinado à condução da
política monetária e não às condições específicas da barganha salarial.
Suponha por exemplo que haja uma elevação dos custos de produção de ouro e, segundo o
raciocínio de M. Smith, isto tenha por conseqüência uma redução dos preços das demais
mercadorias. Segundo a passagem citada acima, neste caso o ônus de reduzir os salários seria
dos capitalistas, caso desejassem manter sua taxa de lucro. Porém segundo o raciocínio de
Smith sobre a influência da política monetária sobre o resultado da barganha salarial, esta
ação dos capitalistas dependeria ainda da ação da política monetária sobre a taxa nominal de
juros. Se a taxa nominal de juros fosse reduzida, os capitalistas teriam de aceitar uma taxa de
lucro menor, e assim não estariam em condições de reduzir os salários em ouro para manter
sua taxa de lucro.
Obviamente que a ação dos capitalistas sempre poderia encontrar algum grau de resistência
dos trabalhadores, que poderiam estar em condições de barganha suficientemente forte para
impedir que a redução do salário em ouro fosse proporcional à queda dos preços, e assim
obter ao final do processo um salário real maior. Segundo o raciocínio de M. Smith, porém tal
65
resultado estaria subordinado a uma ação da política monetária que reduzisse a taxa nominal
de juros. Somente assim seria possível acomodar um salário real mais alto e uma taxa de lucro
mais baixa.
Por outro lado, se a autoridade monetária mantivesse a taxa nominal de juros inalterada, a taxa
de lucro seria mantida inalterada e seria isto que daria aos capitalistas condições para reduzir
o salário em ouro proporcionalmente à queda dos preços, resultando em um salário real
inalterado.
Estas observações permitem perceber porque parece mais plausível supor, como faz Serrano
(1993) que a distribuição em uma gold money economy seja determinada fundamentalmente
pela barganha salarial e, portanto, pela determinação do salário em ouro. Caso os
trabalhadores estejam em posição fortalecida na barganha salarial, é provável que estejam em
condições de exigir aumentos de salário em ouro quando os preços crescem e de resistir à
queda dos salários quando os preços caem, mas isto deve ocorrer ou não de forma um tanto
independente do que ocorre com a taxa de juros. Por outro lado quando os trabalhadores
estiverem enfraquecidos na barganha salarial, é muito pouco provável que os capitalistas
dependam de uma ação da autoridade monetária que os autorize a reduzir os salários quando
os preços caem, bem como a resistir a aceitar aumentos de salários quando os preços crescem.
Em suma, a importância da barganha pelo salário em ouro é tão importante na “gold money
economy” que faz pouco sentido supor que esteja subordinada ao que ocorre com a política
monetária18.
1.4.3 A contradição de M. Smith (1996)
Até aqui procuramos analisar as condições distributivas do sistema abstrato referido por
Serrano (1993) como gold money economy, tendo advertido no início da seção, com base na
18
O fato de que a decisão da autoridade monetária sobre a taxa monetária de juros e a barganha salarial sejam
processos um tanto independentes aumenta a nosso ver a plausibilidade de um ajuste por uma outra variável: o
lucro de empresário.
66
discussão anterior sobre o padrão ouro-libra, que esta não é uma estilização adequada para a
análise da economia inglesa no século XIX.
Independente da correção ou relevância das críticas que se possa fazer a respeito do
mecanismo teórico proposto por M. Smith (1996), a nosso ver seu equívoco mais grave deriva
de uma falta de clareza sobre este ponto, que o leva a uma associação imediata entre o sistema
abstrato da gold money economy e o padrão ouro-libra. Em diversas passagens de seu artifgo
esta associação é referida de modo explícito19, mas em sua própria análise histórica o autor
fornece elementos que vêm a descaracterizar a gold money economy como representação para
o período considerado.
Sua interpretação indica que a crise do sistema monetário do entre guerras (momento em que
de fato chega ao fim o padrão ouro-libra) teria sido o momento de transição entre uma gold
money economy e uma fiat money economy. Segundo o autor, as altas taxas de juros deste
período exigiriam uma queda dos salários de magnitude tal que acabou não sendo compatível
com o fortalecimento do poder de barganha dos trabalhadores ingleses na década de 20. A
razão da crise teria sido, portanto, uma incompatibilidade entre o aumento do poder de
barganha dos trabalhadores ingleses na década de 20 e queda de salários que seria necessária
em decorrência da condução da política monetária do período.
Observe-se que isto parece consistente com o raciocínio teórico de M. Smith, pois este nega
sempre qualquer papel autônomo para os salários na gold money economy, argumentando
sempre que sejam subordinados aos movimentos dos custos de produção de ouro e da taxa de
juros. A razão invocada por ele para a desconfiguração do sistema é exatamente uma mudança
das condições de barganha salarial, ou mais especificamente um fortalecimento significativo
19
“This paper shows that a monetary explanation of distribution is historically relevant to the kind of gold
money economy which prevailed in nineteenth century britain" (M. Smith, 1996, p. 34). “ … fundamental
changes in the international monetary system, such as occurred with the shift from a gold money to fiat money
system in the twentieth century, must have implications for distribution" (M. Smith, 1996, p. 56).
67
do poder de barganha dos trabalhadores, que teria determinado um comportamento mais
autônomo para o salário nominal incompatível com altas taxas nominais de juros vigentes no
período. A necessidade de manter altas de juros nos anos 20 exigiria, no quadro da gold
money economy, queda de salários nominais, mas a referida mudança do poder de barganha
não permitiu que isto ocorresse, e assim o sistema teria entrado em crise.
Mas o ponto que queremos chamar a atenção é: por que razão M. Smith acredita que as taxas
de juros tiveram que ser mantidas altas neste período?
"As is well known, the relative deterioration of Britain's external position after the First World
War meant a return to gold at the pre-war parity required the adoption of a dear money policy,
and, in the absence of increases in the price level in the rest of the world, considerable reductions
in the money wage" (M. Smith, 1996, p. 56-57)
Segundo o próprio M. Smith teria sido portanto o retorno à paridade oficial do ouro que
exigiu as altas taxas de juros e a necessidade de reduzir os salários.
“Given the fixed rate of exchange in terms of gold, it meant external adjustment by (deficit)
countries involved the implementation of very tight monetary policies which could overcome
workers resistance to lower wages by the establishment of socially intolerable levels of
unemployment" (M. Smith, 1996, p. 57).
Nesta discussão M. Smith menciona, portanto, uma importante característica do sistema
monetário baseado na libra, que não está presente no modelo teórico da gold money economy,
e na verdade está em contradição com esta abstração. A referência a uma dada taxa de câmbio
em relação ao ouro pode passar despercebida se não colocado claramente que isto
corresponde a uma cotação fixa do ouro em libras, ou a um preço oficial do ouro em libras,
como o que discutimos nas seções anteriores. Segundo este autor, no período do entreguerras, a taxa de câmbio fixa em termos de ouro tornou-se uma restrição fundamental para a
Inglaterra no plano externo, e a causa para a manutenção de altas taxas de juros.
Ocorre que, embora sem conseqüências tão drásticas como as que ocorreram após o retorno
da paridade no entre-guerras, quando os valores nominais domésticos estavam inflados, a
68
paridade à qual a Inglaterra tentou voltar depois da I Guerra é a mesma que vigorou ao longo
de todo o século XIX. Ou seja, ao longo de todo o século XIX a mencionada rigidez da
cotação do ouro em libras também existia.
Diante dessa constatação, como já discutimos na primeira parte, torna-se difícil sustentar que
as condições técnicas de produção de ouro possam determinar o nível de preços em libras. O
fato de que há um preço oficial fixo por tanto tempo contrasta com a natureza das mudanças
técnicas, que ocorrem a qualquer momento do tempo.
A paridade fixa implica que uma determinada quantidade física de ouro QG assume o valor
monetário de QGPG libras. Observe-se que QG é uma grandeza medida por uma unidade física,
como por exemplo, a “onça”. Se a cotação PG é fixa, significa que qualquer quantidade fixa de
ouro tem seu valor também fixo em libras, independente dos seus custos de produção.
Ou seja, a paridade fixa da libra com o ouro indica que com QG onças de ouro pode-se obter
uma quantidade fixa de libras, independente do que acontece com o custo de produção para
produzi-las, e portanto independentemente dos coeficientes técnicos envolvidos, do salário e
da taxa de lucro. Se essa paridade é mantida, portanto, o mais plausível é imaginar que as
alterações nos custos de produção de ouro alterem as rendas auferidas pelos produtores de
ouro e/ou a taxa de lucro na mineração, ou ainda, o salário dos trabalhadores na mineração,
mas não os preços das demais mercadorias cotadas em libras.
Assim, embora de fato tenha havido alterações significativas quando da passagem do padrão
ouro-libra para o padrão ouro-dólar (processo que de fato começa com as dificuldades da
Inglaterra para manter a paridade no entre-guerras e só se configura plenamente depois dos
acordos de Bretton Woods), em um aspecto esses dois padrões se assemelham. Em ambos os
casos a autoridade monetária do país central mantém uma cotação fixa do ouro em sua própria
moeda, e em nenhum dos dois casos se pode aplicar a abstração da gold money economy
como faz M. Smith (1996) no caso do padrão ouro-libra.
69
1.4.4 Fechando a seção sobre a gold money economy
Como vimos, M. Smith procura raciocinar de modo consistente com o que Serrano (1993)
denominava uma gold money economy, sem perceber que com este conceito este autor não se
referia a uma economia concreta nem a um período histórico específico, mas apenas a um
modelo abstrato de preços de produção em que os salários são pagos em ouro, cujo preço é
determinado exatamente como os demais, pelas condições técnicas e pela distribuição.
Essa hipótese da moeda-mercadoria foi também utilizada por Ricardo e por Marx, mas é
fundamental perceber que ela não é a melhor forma de aproximar as condições institucionais
do período que o próprio Serrano (2003) refere como a vigência do padrão ouro-libra.
Conforme o próprio M. Smith indica, no período do padrão ouro-libra havia uma
cotação oficial do ouro em libras, independente dos seus custos de produção.
Segundo M. Smith manutenção de uma situação distributiva na gold money economy depende
do comportamento da autoridade monetária. Caso a taxa nominal de juros seja modificada
para compensar variações do nível de preços decorrentes de alterações dos custos de produção
de ouro, há um ajustamento incompleto dos salários nominais em relação aos preços que
determina um salário em ouro compatível com uma nova taxa de lucro.
Conforme argumentamos, o efeito das alterações dos custos de produção de ouro sobre os
preços já pressupõe uma rigidez distributiva (taxa de lucro dada), de modo que não parece
coerente postular que, em um segundo momento, a distribuição se modifique por esta mesma
causa. Admitindo que o efeito pudesse ser dividido em dois momentos, pareceria mais
coerente inclusive interpretar o mecanismo de transmissão no sentido inverso. A manutenção
de uma taxa de lucro inalterada na atividade de produção de ouro permite que o salário em
ouro aumente quando caem os custos de produção desse setor. Quando o salário em ouro mais
elevado passa a ser pago nos demais setores, a manutenção da taxa de lucro exige a elevação
dos preços das demais mercadorias.
70
Dessse modo, se a taxa monetária de juros influencia via competição a taxa de lucro, a
distribuição monetária da distribuição pareceria logicamente possível na gold money
economy, bastando que o salário em ouro fosse ajustado para acomodar esta taxa de juros. A
importância do ajuste do salário em ouro seria, no entanto, tão grande que o mais plausível é
pensar que o processo de barganha seja mais diretamente focado no próprio salário em ouro, e
com menos intensidade na taxa de juros.
O ponto mais fundamental de nossa crítica a M. Smith consiste porém na reafirmação de que
a gold money economy não é a melhor sistematização do padrão ouro-libra, em que o preço
oficial do ouro era mantido fixo e independente dos custos de produção de ouro. Em diversas
passagens o próprio M. Smith destaca a importância da manutenção da paridade da moeda
inglesa para a sustentação desse sistema, atestando portanto que o modelo da gold money
economy não se aplica a este período. Para manter a conversibilidade da libra em ouro em um
momento de grave deterioração do balanço de pagamentos, foi necessário elevar a taxa de
juros. Destaque-se, portanto, que era necessário elevar a taxa de juros quando a paridade
parece ameaçada pelas condições de balanço de pagamentos, e não porque os custos de
produção de ouro estariam mudando.
De qualquer modo, M. Smith menciona a rigidez da taxa de câmbio libra-ouro como causa,
neste período do entre-guerras, para a necessidade de altas taxas de juros. Conforme já
argumentamos, isto descaracteriza uma gold money economy, portanto é inconsistente com a
sua própria argumentação teórica.
1.5 Distribuição no padrão ouro-libra
Nossa discussão sobre a contradição presente em M. Smith permite retomar um ponto
fundamental que já havíamos discutido em seções anteriores: a taxa nominal de juros
71
praticada pela autoridade monetária inglesa no padrão ouro libra estava sujeita ao ajuste do
balanço de pagamentos inglês. Assim, ainda que se possa considerar que ela de algum modo
influencie a distribuição no padrão ouro-libra, tal influência estaria sujeita a uma restrição
relacionada ao tamanho necessário de VACP (variação dos ativos de curto prazo) a cada
momento.
Como também argumentamos na seção anterior, a paridade oficial entre a libra e o ouro era
PG=3,56 libras por onça de ouro. Isto significa que a Inglaterra paga e recebe um valor fixo
em libras por uma quantidade fixa de ouro. Conforme já destacamos, uma vez estabelecido
este preço oficial, o custo de importação do ouro em termos de libras estaria determinado para
o Banco da Inglaterra. Para os demais países, isto aparece como um preço oficial de venda de
ouro e, mantida a paridade de suas moedas com o ouro, como a taxa de câmbio entre suas
moedas e a libra.
Certamente, deve haver todo um espectro de possibilidades de se produzir ouro,
essencialmente derivadas dos diferentes lugares em que ele será extraído, que se refletem em
diferentes valores para o custo de produção de ouro. Dado o preço, alguns locais serão
produtores viáveis de ouro, e outros serão inviáveis, no sentido de que o preço de produção
(custo e margem de lucro normal) é superior ao preço fixo oficial de venda. Dentre os locais
viáveis, alguns terão custos menores, e auferirão maiores rendas por isso. Assim se temos n
possibilidades viáveis de produção com custos diferentes, teremos n rendas absolutas
associadas20.
Assim, dado que a Inglaterra não estava entre os países produtores de ouro, variações dos
custos de produção de ouro não podem ter efeito algum sobre rendas e preços neste país. Nos
20
A imagem da correria de garimpeiros que acompanha a descoberta de jazidas minerais muito férteis pode ser
interpretada como uma ação desorganizada de agentes individuais tentando apropriar-se das rendas que podem
ser auferidas com venda do ouro facilmente extraído ao preço conhecido. Que isto siga deste modo ou não é algo
que em parte dependerá da vontade do comprador a respeito. Se essas rendas forem muito significativas é
provável que tente manter a extração sob algum tipo de controle.
72
países produtores, as alterações dos custos de produção de ouro também não poderiam alterar
os preços das demais mercadorias se a paridade oficial da moeda doméstica for mantida.
Nesse caso, haveria o efeito sobre as rendas que já referimos, que poderia ser evitado ou
atenuado por alterações na paridade oficial da moeda doméstica.
Outra característica fundamental da economia inglesa do século XIX era a grande abertura ao
exterior, por meio da importação de um grande volume de matérias-primas e alimentos, que
viabilizavam a produção de manufaturados para consumo interno e exportação.
Se a paridade oficial da libra e das demais moedas de países centrais é fixa em relação ao
ouro, significa que há um sistema de taxas fixas de câmbio entre estes países. Se a economia
inglesa é muito aberta ao exterior, podemos raciocinar supondo que todos os produtos básicos
envolvidos (sem distinguir manufaturados e matérias-primas) sejam comercializáveis no
mercado internacional.
Neste caso temos que o nível de preços doméstico na Inglaterra está restrito pelo nível
internacional de preços convertido pela taxa de câmbio21.
P=eP*
(**)(1.30)
Este preço deve ser suficiente para cobrir os custos de produção acrescidos da margem real de
lucro. Supondo como antes que os salários sejam pagos ao fim do processo temos
eP* = (1+r)aeP* + lW (*)(1.31)
Dividindo ambos os lados da equação por eP* temos que
1+ r =
1 − lv
a
W
v=
eP *
(1.32)
21
Observe-se que o mesmo poderia ser expresso por P=PGP* se P* fosse expresso em termos de uma
quantidade de ouros. Como todos os países centrais também mantinham o preço do ouro fixo neste caso P*
equivaleria à razão entre o preço das mercadorias cotadas na unidade monetária de cada país e o preço do ouro
nesta unidade monetária. Desse modo teríamos novamente a expressão (**) sendo a taxa nominal de câmbio a
razão entre os preços do ouro nas duas moedas.
73
Como a taxa de câmbio nominal e o preço externo são dados, variações do nível do salário
nominal implicam necessariamente variações no mesmo sentido do salário real, e portanto
variações em sentido inverso da taxa de lucro.
Tais condições representam, portanto, uma situação em que há uma posssibilidade muito
pequena de repassar aos preços as variações de custos salariais, porque o nível de preços é
dado pelo nível internacional e pela paridade oficial fixa. Isto pode ser melhor observado
escrevendo-se a equação (*) na forma alternativa de um mark-up sobre os custos salariais
eP*=(1+m)lW (**)(1.33)
onde (1+m)=1/[1-a(1+r)]
(1.34)
Na medida em que os salários nominais crescem no lado direito de (**) e que o lado esquerdo
está fixo, o ajuste tem de ocorrer por uma redução da margem real (1+m). Com as condições
técnicas dadas, isto determina uma redução da taxa de lucro.
A taxa de lucro, por sua vez, pode ser decomposta em duas partes: a remuneração pura do
capital, equivalente à taxa monetária de juros, e o l ucro de empresário.
r=i+k
(1.35)
Como argumentamos acima, para um dado salário nominal, uma dada taxa nominal de câmbio
e um dado nível de preços internacional, corresponde um salário real determinado. Dadas as
condições técnicas, isto corresponde a uma dada taxa de lucro. Portanto, variações autônomas
da taxa nominal de juros determinariam uma pressão para redução do lucro de empresário.
k=
1 − lv
− (1 + i )
a
(1.36)
Isto é consistente com a convicção de Marx de que há um conflito entre os capitalistas
financeiros e os industriais, além do conflito entre capital e trabalho. O fato de que a taxa de
câmbio é fixa e os preços domésticos estão dados pelos preços internacionais faz com que,
dado o salário nominal, esteja dado o salário real. Na medida em que taxas de juros mais
74
elevadas ampliam a parcela da taxa de lucro apropriada pelo componente de juros, o ajuste
tem de ser realizado pelo lucro de empresário.
Possivelmente, portanto, quando a autoridade monetária inglesa aumentava a taxa de juros em
função da situação do balanço de pagamentos, estabelecia um conflito entre os capitalistas
industriais e os financeiros, dada a dificuldade de reduzir os salários nominais e reais.
O mesmo ocorre caso a taxa de juros esteja dada e os salários nominais cresçam. Dada a taxa
nominal de câmbio e o nível de preços internacional, o aumento do salário real reduz a taxa de
lucro. Como a parcela dos juros na taxa de lucro está dada, novamente o ajuste tem se der
realizado por uma redução do lucro de empresário22.
Observe-se que esta restrição absoluta seria relaxada caso o preço oficial do ouro fosse
alterado para cima. Uma elevação de e na mesma proporção do aumento de W seria capaz de
manter a margem real inalterada e assim também a taxa de lucro. Isto configuraria, como já
mencionamos em seções anteriores, uma desvalorização da libra em relação ao ouro e às
demais moedas, fato que o Banco da Inglaterra não permitia que ocorresse.
[a possibilidade de o lucro empresarial ser protegido aumenta na medida em que a restrição
absoluta ao preço se flexibiliza e que a resistência da margem real possa ser aumentada; este é
o gancho para o segundo capítulo]
22
Observe-se que este esquema simples permite uma interpretação parecida com a de M. Smith sobre a
desconfiguração do padrão ouro-libra, sem a contradição com o sistema abstrato da gold money economy. O
rompimento da paridade ao início da I Guerra permitiu um crescimento dos salários nominais e dos preços
domésticos para níveis acima da restrição dos preços internacionais eP*. Quando do retorno à paridade no entre
guerras, a antiga taxa nominal de câmbio associada ao nível inflado de preços domésticos determinou uma forte
perda de competitividade para a Inglaterra. Junto com as novas condições coloniais inglesasm, tal situação
determinou uma deterioração das transações correntes. Para dar conta da situação do balanço de pagamentos as
taxas de juros foram elevadas, pressionando o lucro de empresário. A recuperação da competitividade inglesa
poderia ser obtida mediante uma deflação de preços e salários nominais que restabelecesse os níveis anteriores à
guerra, porém ela não ocorreu na magnitude suficiente, de modo que a Inglaterra acabou perdendo suas reservas
de ouro e a condição de emissor da moeda chave do sistema.
75
II. RESISTÊNCIA DA MARGEM REAL
Como vimos no capítulo anterior, nossa estilização relativa ao padrão ouro-libra implica em
uma restrição absoluta para o repasse do aumento dos custos salariais aos preços. Nestas
condições, uma elevação da capacidade de barganha dos trabalhadores que determinasse um
nível mais elevado para o salário nominal determinaria um aumento do salário real e uma
redução da margem real de lucro.
Existem diversos modelos que visam estabelecer relação entre o estado do conflito
distributivo e o processo inflacionário, supondo que uma insatisfação dos trabalhadores com a
situação distributiva determine não só elevações do nível dos salários nominais, mas também
taxas de crescimento mais elevadas.
Boa parte desses modelos incorpora uma hipótese distributiva que está no outro extremo em
relação ao que analisamos no primeiro capítulo, ou seja, que nem o nível nem a taxa de
crescimento dos salários nominais sejam importantes para a determinação da margem real de
lucro. Assim, esses modelos buscam esclarecer a influência do estado do conflito distributivo
sobre a taxa de inflação, mas não admitem que o estado do conflito possa influenciar também
o próprio resultado distributivo.
O objetivo principal deste capítulo é analisar as hipóteses distributivas presentes em alguns
destes modelos de inflação de custos e conflito distributivo. No primeiro capítulo, portanto,
76
chegamos a uma situação em que a “resistência da margem real” ao crescimento dos custos
era praticamente nula, e agora partiremos do extremo oposto em que haja uma resistência
plena. Em seguida, apresentaremos algumas possibilidades de relaxar esta hipótese e
expressar a margem real como parcialmente resultante da dinâmica dos custos, dentre os quais
estão os salários nominais. Em seguida, uma discussão sobre a relação entre a margem real
em condições inflacionárias e a taxa real de juros enquanto determinante do custo de
oportunidade do capital. Por último, uma discussão sobre condições para que a autoridade
monetária possa manter uma determinada rentabilidade para o capital em geral e a relação
destas condições com o regime cambial vigente.
2.1 Mark-up real exógeno
Uma referência fundamental para os modelos de inflação de custos são os trabalhos de
Kalecki. No artigo “Luta de classe e distribuição da renda nacional”, Kalecki contrapõe sua
hipótese sobre a determinação dos preços à da “concorrência perfeita”, e afirma em termos
gerais que os preços sejam formados por um markup sobre os custos primários (salários e
matérias-primas).
P=(1+m)C
(2.1)
Kalecki afirma ainda que quando os custos primários crescem os preços crescem na mesma
proporção, mantendo a margem real fixa e independente do nível dos custos e dos preços.23.
Em termos de taxas de crescimento, esta situação está garantida se:
p^=c^
(2.2)
Supondo que os custos incluídos em C sejam apenas os custos salariais24 temos
23
No mesmo artigo Kalecki cogita que a margem real possa ser alterada, possibilidade que será analisado mais á
frente.
77
P=(1+m)lW
(2.3)
Em termos de taxas de crescimento a margem real é mantida se
p^=w^+l^
(2.4)
Ou seja, os preços crescem à mesma taxa dos custos, e estes crescem à taxa de crescimento
dos salários nominais líquida do crescimento da produtividade.
Uma implicação importante da hipótese de mark-up real fixo é a determinação simultânea das
parcelas da renda apropriadas pelos salários e pelos lucros. Se o mark-up real é constante, a
participação dos salários (ω) e dos lucros (1-ω) também são constantes.
ω = 1/(1+m) (2.3)
(1-ω) = m/(1+m)
(2.4)
Dada a produtividade, o mark- up real determina também o nível do salário real.
β = 1/l(1+m) (2.5)
Assim, as condições de manutenção da margem real de lucro são as mesmas da manutenção
das parcelas dos lucros e salários na renda. Dada a produtividade, valem também para a
manutenção do nível do salário real25.
Dada a produtividade, portanto, o crescimento dos preços deve ser igual à taxa de crescimento
dos salários nominais. Esta é, portanto, uma condição de equilíbrio26 para o mark-up real e
para as parcelas dos lucros e dos salários.
24
Conforme já mencionado no capítulo anterior isto não implica supor que não sejam utilizados insumos na
produção, bastando considerar que a margem real corresponda a (1+m)=1/[1-a(1+r)].
25
Observe-se que em si o fato de que a parcela dos salários na renda seja constante não implica necessariamente
que o salário real β=W/P também o seja, em caso de alterações na produtividade do trabalho. Uma queda do
coeficiente l, por exemplo, permitiria uma elevação do nível do salário nominal sem alteração dos custos e dos
preços. Caso as alterações de salários nominais compensem exatamente os ganhos de produtividade, por
exemplo (w^+l^=0), os preços não crescem e o salário real aumenta, mantendo-se porém a margem real e as
parcelas dos lucros e dos salários na renda.
26
Observe-se que se, temporariamente, as taxas de crescimento dos salários nominais e dos preços forem
diferentes, há uma alteração do nível do mark-up real e das parcelas dos lucros e salários. Quando as taxas de
crescimento voltam a ser iguais, o nível do mark-up volta a ser constante, e o equilíbrio distributivo seria
restabelecido, mas em nível diferente da inicial. Essas possibilidades serão exploradas nas próximas seções.
78
Muitos modelos de inflação de custos, alguns bastante influentes, foram desenvolvidos a
partir da hipótese de uma situação distributiva rígida, porém não compatível com as
aspirações de uma das partes envolvidas. Afirma-se usualmente com base nestes modelos que
a inflação deriva do conflito distributivo porque os salários nominais crescem devido à
insatisfação dos trabalhadores com situação distributiva vigente. A esta hipótese básica
associam-se diversas alternativas sobre a determinação do nível do conflito e sobre os
esquemas de timing dos reajustes de preços e salários, que resultam em modelos diferentes
para explicar a dinâmica da inflação.
2.1.1 Inércia completa
Uma hipótese também usual em modelos de conflito distributivo atribui aos salários nominais
o seguinte comportamento
w^ = p^(-1) + c
(2.6)
Ou seja, os reajustes de salários nominais incorporam completamente a inflação do período
anterior mais um componente c que corresponde ao grau de insatisfação dos trabalhadores
com a situação distributiva. Neste caso, dada a produtividade do trabalho, a taxa de inflação
corresponde a:
p^ = p^(-1) + c
(2.7)
Isto implica, portanto, que a inflação só poderá permanecer constante ao longo do tempo
(p^=p^(-1)) se o componente c for nulo.
2.1.2 Hiato de aspiração como determinante do conflito distributivo
Conforme mencionado, o componente c na equação (2.6) corresponde ao grau de insatisfação
dos trabalhadores com a situação distributiva. Carlin & Soskice (1990) definem a aspiração
dos trabalhadores em função do nível de emprego.
Quanto mais elevado o emprego maior o salário real barganhado pelos trabalhadores β(E),
representado no gráfico pela reta positivamente inclinada BRW.
79
Conforma já mencionado, se o mark-up real m é dado, temos uma parcela salarial ω dada.
Para uma dada produtividade do trabalho, isto corresponde também a um dado salário real β
fixo e independente do nível de emprego, representado no gráfico pela reta horizontal PRW.
A distância vertical entre BRW e PRW corresponde, portanto, à diferença entre o salário real
barganhado pelos trabalhadores e o salário real consistente com dado mark-up real e dada
produtividade.
Gráfico 2.1. Determinação do nível de conflito em função do emprego
Fonte: Carlin & Soskice (1990)
Para níveis de emprego superiores a E*, portanto, temos uma diferença positiva β(E)-β>0, e
assim uma insatisfação dos trabalhadores com o salário real vigente. A forma pela qual os
trabalhadores podem expressar tal insatisfação é requisitando reajustes de salários nominais
acima da inflação passada, de modo que podemos definir o componente de conflito da
equação (2.7) como:
80
c = ε [ β ( E ) − β )]
(2.8)
Estando fixas as funções β(E) e β, a manutenção desse nível de emprego determina uma
insatisfação permanente dos trabalhadores com o salário real efetivamente recebido, e assim
pela equação (2.7) teremos uma inflação em permanente aceleração.
Este é, em linhas gerais, o argumento que justifica a existência de um único nível de emprego
que mantém a inflação constante. Níveis de emprego acima de E* determinam uma
insatisfação permanente dos trabalhadores com o salário real vigente se: (a) o mark-up real é
dado; (b) os reajustes de salários nominais incorporam plenamente a inflação passada mais o
componente de conflito; (c) o conflito é permanentemente positivo quando os trabalhadores
desejam um salário real maior do que aquele consistente com o mark-up real.
Relaxando-se qualquer uma das três hipóteses, porém, o resultado não se aplica. Nosso foco
principal é a hipótese (a), que deixaremos para a próxima seção. Discutiremos, porém,
brevemente as hipóteses (b) e (c).
2.1.3 Adaptação do salário real barganhado ao salário real efetivo
Ros (1989) define modelos de inflação inercial, em oposição aos modelos de conflito
distributivo, como aqueles em que existe um processo de adaptação das aspirações
distributivas ao resultado efetivo.
“Distributional conflict is here an original inflationary pressure but plays no role in the
perpetuation of inflation. Implicit in it is, in our view and as a key underlying assumption, the
presence of an adaptive mechanism in the determination of the target real wage” (Ros, 1989, p.
9).
Ou seja, nos termos do gráfico acima, ainda que uma elevação do nível de emprego a um
nível superior a E* possa acelerar a inflação, isto não seria permanente se o salário real
barganhado pelos trabalhadores fosse adaptado ao salário real efetivo. Neste caso o conflito
acabaria desaparecendo e a taxa de inflação voltaria a um nível constante.
81
“Distributional conflict, therefore, plays no role in perpetuating steady inflation. The workings of
the adaptation process close the gap between target and average real wages and make the original
conflict disappear. Aspiration gaps do come in, however, to explain accelerations of the inflation
rate from one steady state to another” (Ros, 1989, p. 10).
Neste caso, portanto, a taxa de inflação só se perpetua devido à presença da hipótese (b), que
prevê o reajuste dos salários nominais pela inflação passada27. De qualquer forma, havendo
este processo de adaptação não haveria um único nível de emprego que mantém uma inflação
constante.
2.1.4 Inércia parcial
Outra possibilidade para descaracterizar o resultado de um único nível de emprego com
inflação constante é considerar que os salários nominais não sejam reajustados plenamente
pela inflação passada.
Rowthorn (1977) relaxa esta hipótese, porém na forma de uma dicotomia drástica: acima de
um nível crítico de inflação os salários nominais são reajustados plenamente pela inflação
passada, e abaixo deste nível crítico a inflação passada é totalmente desconsiderada. A
hipótese pode ser relaxada sob uma forma alternativa que admite casos intermediários
reescrevendo-se a equação (*) como:
w^=ap^(-1) + c
onde
0<a<1
(2.9)
Neste caso, a expressão resultante para a taxa de inflação com margem real fixa seria:
pˆ =
ε [ β ( E ) − β )]
1− a
(2.10)
Claramente, a taxa de inflação constitui sob esta hipótese uma função crescente do nível de
emprego, na medida em que este influencia sobre a aspiração dos trabalhadores e esta sobre a
taxa de crescimento dos salários nominais. Mesmo um conflito permanente, portanto, não é
capaz de gerar uma aceleração indefinida da inflação porque nem toda a inflação passada se
transforma em inflação corrente, devido à indexação parcial dos salários nominais.
27
A justificativa dada pelos modelos de inflação inercial para a persistência do reajuste dos salários nominais
pela inflação passada na ausência de conflito diz respeito a problemas de coordenação.
82
2.1.5 Rigidez do salário real médio
Vimos portanto que relaxando isoladamente as hipóteses (b) ou (c) o resultado de um único
nível de emprego com inflação constante não se aplica. Há porém uma forma de determinar
um trade-off entre inflação e desemprego mantendo-se as hipóteses (a), (b) e (c) ao mesmo
tempo.
Arida (1982) formula um modelo em que a hipótese de mark-up real fixo está presente, mas a
dinâmica dos salários nominais e preços é formalizada de um modo diferente em relação aos
modelos já mencionados. Ao invés de supor que tanto salários nominais quanto preços sejam
reajustados a intervalos discretos de tempo, supõe-se alternativamente que os preços crescem
segundo uma trajetória contínua. Os salários nominais seguem sendo reajustados a intervalos
discretos de tempo (cuja duração tem um tamanho D), incorporando completamente a inflação
acumulada no período anterior.
A combinação entre salários nominais reajustados a intervalos discretos e preços crescendo de
forma contínua determina que o salário real seja gradativamente reduzido ao longo do período
entre os reajustes de salários nominais. O salário real efetivo passa a oscilar, portanto, entre
um valor de pico, atingido no exato instante do reajuste do salário nominal, e um piso,
atingido no instante imediatamente anterior ao próximo reajuste.
O salário real β relevante para a situação distributiva neste modelo é o salário real médio, que
para Arida (1982) será sempre constante e consistente com o mark-up real dado, independente
do que aconteça com a taxa de inflação.
"O modelo supõe β constante. Como os empresários, por hipótese, têm o poder de fixação do
salário real, torna-se ingênua qualquer tentativa de forçá-los a pagar um salário real maior do
que β através de simples variações na regra legal de reajuste. Na ausência de controles de preços,
reajustes mais freqüentes do salário nominal não têm o poder de elevar o salário real em
situações caracterizadas pela persistência do processo inflacionário" (Arida, 1982, p. 337).
Fica clara, por esta passagem, portanto, que a rigidez distributiva está presente. Como nos
modelos discutidos acima, pode-se atribuir o tamanho do conflito distributivo à diferença
83
entre o salário real dado β, consistente com um mark-up real dado, e o salário real desejado
pelos trabalhadores, que Arida define como α. “O aumento do poder de barganha dos
trabalhadores reflete-se, então, na obtenção de um valor maior de α” (Arida, 1982, p. 321).
Quando o emprego aumenta, o poder de barganha aumenta e os trabalhadores aspiram um
salário real α maior28. Tomado em conjunto com o piso, atingido imediatamente antes do
próximo reajuste, determinará o nível médio β. Assim, dado o salário real β e a aspiração dos
trabalhadores α, haverá um nível de conflito distributivo (α- β) a ser resolvido pela taxa de
inflação, que atua como redutor do salário real ao longo do período D entre os reajustes de
salários nominais.
α −β =
pˆ D
(2.11)
2
Para um dado intervalo entre os reajustes de salários nominais, há uma taxa de inflação que
possibilita resolver o conflito distributivo. Arida menciona que “fixar legalmente D equivale a
ditar ao sistema econômico a taxa de inflação p^, que possibilita aos empresários a redução do
salário real de α para β” (Arida, 1982, p. 315).
Resolvendo a expressão acima para a taxa de inflação temos:
pˆ =
2(α − β )
D
(2.12)
Ou seja, se a duração do período é fixa, só há uma taxa de inflação que possibilita fazer
vigorar o salário real médio β diante de uma aspiração maior α por parte dos trabalhadores.
Admitindo, porém, como nos modelos anteriores, que a aspiração dos trabalhadores (agora
representada α ) é crescente com o nível de emprego, a taxa de inflação também seria uma
28
Observe-se que α corresponde a algo semelhante a β(E) nas formulações analisadas acima, no sentido que
constitui apenas uma aspiração. Optou-se por não usar a mesma notação devido a uma pequena diferença. Nos
modelos com periodicidade discreta a aspiração β(E) nem chega a tornar-se efetiva, enquanto no modelo de
Arida α chega a realizar-se como um valor de pico do salário real.
84
função crescente com o nível de emprego para um dado salário real médio e um dado
intervalo entre reajustes de salários nominais.
Caso, porém, a periodicidade dos reajustes seja endógena, no sentido de que quando o nível
do conflito e a taxa de inflação aumentam o período entre reajustes de salários nominais seja
mais curto, determina-se um mecanismo de realimentação para o processo inflacionário, que
pode facilmente atingir um equilíbrio instável e uma aceleração indefinida da inflação.
Esta hipótese é amplamente utilizada nos modelos “estruturalistas” de inflação, como em Ros
(1989), Taylor (1991) e Taylor (2004). O procedimento comum é estabelecer uma regra
simples que relaciona a duração endógena do período com uma duração inicial dada e a taxa
de inflação. A razão pela qual o período se torna mais curto é pouco discutida, mas envolve
basicamente uma tolerância progressivamente menor com as oscilações do salário real ao
longo do período.
No caso de Arida (1982), a periodicidade endógena dos reajustes de salários nominais é
discutida sob duas hipóteses alternativas, porém semelhantes em seus fundamentos. Uma
delas supõe que o Estado determine um teto de inflação que, quando atingido, dispare o
reajuste do salário nominal, e a outra supõe que o Estado determine um piso para o salário
real que, quando atingido, do mesmo modo dispare o reajuste do salário nominal29.
No que diz respeito à determinação do resultado distributiva, esta justificativa de Arida sobre
a periodicidade endógena do reajuste salarial aponta para aspectos bastante sugestivos.
Observe-se que, sob qualquer destas duas hipóteses, assume fundamental importância o ato de
fixar o teto de inflação ou o piso de salário real. Isto porque, dado um salário de pico,
consistente com a aspiração dos trabalhadores, e considerando que a regra seja de fato
29
Sob as duas hipóteses, o tamanho do período entre reajustes de salários nominais dependeria, portanto, de
quanto tempo leva para que o teto de inflação ou o piso de salário real fossem atingidos. O autor destaca que o
que muda em relação à hipótese de que D seja fixo é que, sob essas duas hipóteses alternativas, sabe-se de
antemão de quanto serão os reajustes de salários nominais, mas não se sabe exatamente quando eles vão ocorrer.
85
obedecida, o salário real médio efetivo só será consistente com o mark-up real desejado pelos
capitalistas se o Estado fixar o nível correto do teto de inflação ou do piso de salário real.
Se o Estado fixar um teto de inflação muito alto, por exemplo, o salário real seria reduzido a
um nível que determinaria uma média inferior à desejada pelos capitalistas. Desse modo, o
mark-up real seria maior do que o desejado pelos capitalistas, como resultado de uma ação do
Estado. Se, por outro lado, o Estado fixar um teto de inflação muito baixo, os salários
nominais seriam reajustados antes do que deveriam, ou seja, antes que o salário real tivesse
atingido seu valor de piso consistente com o mark-up desejado pelos capitalistas. Nesse caso,
o Estado determinaria um mark-up real efetivo menor que o desejado pelos capitalistas.
Esta última observação deixa claro, portanto, que neste último modelo, sob a hipótese de D
endógeno, o Estado assume papel fundamental na determinação do resultado distributivo. Ao
fixar o teto de inflação ou o piso de salário real, é o Estado que estará sancionando ou não o
resultado distributivo desejado pelos capitalistas. Em seu artigo, Arida não discute porém de
forma explícita esta influência, supondo que o Estado fixa o teto de inflação ou o piso de
salário real sempre de modo consistente com o mark-up real dado.
2.1.6 Resistência plena da margem real
Já observamos acima que uma condição para que o mark-up possa permanecer fixo é a taxa
de crescimento dos preços ser sempre idêntica à dos custos. Isto ocorre em todos os modelos
apresentados até aqui. Mesmo no modelo de Arida (1982), em que os preços crescem
continuamente durante o intervalo entre reajustes de salários nominais, o crescimento
acumulado durante este intervalo será sempre o necessário para garantir o salário real médio.
Ocorre que, nos modelos em que tanto os salários nominais quanto os preços crescem a
intervalos discretos de tempo, é preciso ainda supor que os reajustes de preços ocorrem
imediatamente depois dos reajustes de salários. Como faz Carlin & Soskice explicitamente.
86
"Prices are set immediately after wage increases have been negotiated ... This timing assumption
means that the actual real wage is always equal to the price determined real wage. An immediate
pricing response to cost increases ensures that the target profit margin is always achieved"
(Carlin & Soskice, 1990, p. 163).
Esses autores atestam, portanto, que em última análise é a hipóteses sobre o timing dos
reajustes que determina a predominância da aspiração dos capitalistas sobre a dos
trabalhadores, garantindo que o mark-up real desejado pelos capitalistas seja o determinante
do resultado distributivo. De fato, uma vez suposto que os reajustes de preços ocorrem sempre
no instante imediato após os reajustes de salários, é pouco plausível que o resultado desejado
pelos trabalhadores possa ser efetivo, porque os capitalistas reajustam os preços sempre de
modo a garantir que o resultado desejado por eles será o efetivo ao longo do período.
A possibilidade de um esquema temporal diferente deste é mencionada, embora muito pouco
explorada, por Carlin & Soskice (1990).
"In practice, however, prices do not rise immediately to preserve profitability. There are time lags
between wage-and-price setting and vice-versa. To the extent that price changes lag behind wage
changes, the actual real wage will diverge from the level of the price-determined real wage. A
simple assumption which highlights this case is the exact reverse of the one above: wages rise at
the start of the period and prices rise at the end. In this case, the real wage is always equal to the
BRW" (Carlin & Soskice, 1990, p. 163).
No caso oposto, portanto, em que os salários nominais fossem reajustados imediatamente
após os preços, o resultado efetivo ao longo do período seria aquele desejado pelos
trabalhadores.
A despeito de algumas diferenças de ênfase, os modelos de Carlin & Soskice (1990) e
Rowthorn (1977), supõe o mesmo esquema temporal para os reajustes de reajustes de salários
nominais e preços. Também no modelo de Rowthorn (1977), os salários nominais e os preços
são reajustados a intervalos discretos de tempo e os reajustes de preços ocorrem
87
imediatamente após os reajustes de salários nominais. Porém este autor afirma explicitamente
a possibilidade alteração da distribuição diante de exigências dos trabalhadores30.
"The working class can shift distribution in its favour by fighting more vigorously for higher
wages, although the cost of such militancy is a faster rate of inflation, as capitalists try, with only
partial success, to protect themselves by raising prices" (Rowthorn, 1979, p. 391).
Tarling & Wilkinson (1985) questionam como, dentro das hipóteses sobre o timing assumidas
explicitamente pelo próprio Rowthorn (reajuste de preços realizado instantaneamente depois
dos reajustes de salários nominais), a distribuição poderia ser mudada em favor dos
trabalhadores. “Rowthorn does not explain why capitalists have only partial success” (Tarling
& Wilkinson, 1985, p. 179). Trataremos deste ponto na próxima seção.
2.2 Mark-up real endógeno
Na seção anterior, vimos alguns modelos de inflação que supõe que esta seja causada pelo
conflito distributivo, definido como a diferença entre as aspirações dos trabalhadores e um
resultado distributivo dado a priori. Nenhum dos modelos apresentados considera a
possibilidade de que esse resultado distributivo seja alterado em função do próprio conflito. O
resultado nos modelos apresentados é sempre aquele desejado pelos capitalistas, ainda que
possa ser sancionado pelo Estado como no modelo de Arida (1982).
O próprio Kalecki, porém, apontado por boa parte desses autores como referência
fundamental, em certas passagens cogitava a possibilidade de alteração do mark-up como
resultado de pressão dos trabalhadores por reajustes de salários nominais. No mesmo artigo
citado anteriormente, Kalecki (1971) indicava que, sob certas circunstâncias, os trabalhadores
poderiam forçar reduções do mark-up real. Rowthorn (1977) também afirma explicitamente
30
Embora, como veremos mais à frente, esta posição esteja em contradição com algumas de suas próprias
conclusões no que diz respeito ao comportamento aceleracionista da inflação.
88
que os trabalhadores podem alterar a distribuição a seu favor lutando por salários nominais
mais elevados, apesar de supor que os reajustes de preços ocorrem imediatamente após os
reajustes de salários nominais.
2.2.1 Rowthorn
A explicação para esta aparente contradição está na forma funcional definida por Rowthorn
para o reajuste dos preços em função da inflação prevista p^e, do grau de insatisfação dos
capitalistas com as negociações de salários nominais (π*- πN) e de um parâmetro x.
pˆ = x(π ∗ − π n ) + pˆ e
A parcela-alvo dos lucros π* é aquela consistente com o mark-up real desejado pelos
capitalistas, e a parcela negociada dos lucros πN é aquela associada à inflação prevista p^e e à
taxa de crescimento dos salários nominais w^. Embora esta última variável não apareça
explicitamente no modelo, conforme apresentado originalmente por Rowthorn, fica claro que
quando os trabalhadores desejam uma parcela dos salários superior à vigente precisam exigir
reajustes de salários nominais acima da inflação prevista p^e, como nos modelos apresentados
na seção anterior.
O parâmetro x, segundo Rowthorn, indica a “velocidade” com que os capitalistas conseguem
impor a parcela desejada dos lucros, diante destas demandas dos trabalhadores por reajustes
de salários nominais acima da inflação prevosta.
Observe-se que de fato parece existir à primeira vista uma certa contradição entre afirmar que
os capitalistas reagem imediatamente ao crescimento dos salários nominais, porém o fazem
segundo uma regra em que a “velocidade” à qual conseguem impor o resultado distributivo
que desejam depende do parâmetro x. Isto é possível, entretanto, se o processo for
caracterizado por um reajuste imediato, porém incompleto, em relação ao que seria necessário
para garantir a parcela-alvo dos lucros. Ou seja, os capitalistas de fato reajustam os preços
89
imediatamente após as negociações salariais, mas não necessariamente na magnitude
suficiente para garantir o mark-up real desejado.
Deste modo, quando x=1, temos que a parcela efetiva dos lucros seria, já no instante imediato
após o processo de reajuste dos preços, igual à parcela-alvo, portanto o mark-up real desejado
pelos capitalistas é imediatamente alcançado. A inflação não-prevista seria neste caso sempre
e exatamente aquela necessária para cobrir a diferença entre a parcela desejada dos lucros e a
parcela negociada, que resultaria do crescimento dos salários nominais e da inflação prevista.
Em outras palavras, sob x=1 vale a condição já mencionada de que a inflação efetiva (que no
caso é a soma da inflação prevista e não-prevista) é sempre igual ao crescimento dos salários
nominais. O crescimento dos salários nominais estaria em parte repassando a inflação prevista
e em parte exigindo um aumento que, se a inflação fosse a prevista, reduziria a parcela dos
lucros. Fica claro portanto que esta formalização de Rowthorn coresponde a um modelo de
mark-up real fixa caso x=1, e a afirmação de Rowthorn de que os trabalhadores podem mudar
a distribição seria a princípio consistente com x<1.
Consideremos então a situação extrema oposta quando x=0. Neste caso, temos que a inflação
é sempre igual à inflação prevista, portanto o resultado das negociações salariais torna-se
sempre o efetivo. Se os trabalhadores desejam uma parcela dos salários maior do que a
vigente, basta que haja reajustes salariais acima da inflação prevista. Os capitalistas não
reajustariam os preços, neste caso extremo, de modo a promover inflação não-prevista.
Observe-se que neste caso o resultado seria sempre o desejado pelos trabalhadores,
exatamente como na passagem de Carlin & Soskice (1990) citada na seção anterior, em que
estes autores mencionavam o resultado distributivo da hipótese que a seqüência entre
reajustes salariais e preços fosse invertida no tempo. Aqui, porém, a seqüência de tempo
poderia continuar rigorosamente igual, sem que os capitalistas conseguissem o resultado que
desejam.
90
Esas observações são úteis para estabelcer que a possibilidade de que o mark-up real seja
alterado em função do que ocorre com os salários nominais depende tanto da seqüência no
tempo quanto da capacidade de repassar o crescimento dos salários nominais aos preços. Se a
seqüência de tempo for aquela que favorece os capitalistas mas, por alguma razão, eles não
puderem reajustar os preços na magnitude necessária para obter o resultado distributivo que
desejam, ele não será o efetivo. Por outro lado, se forem capazes de reajustar os preços na
magnitude necessária, mas a seqüência de tempo não os favorecer, também não obterão o
resultado desejado.
O caso de maior interesse seria, portanto, o caso intermediário, em que 0<x<1. Nesse caso,
temos que a inflação não-prevista é apenas uma parcela da que seria necessária para garantir
que, em apenas um período, a parcela desejada dos lucros fosse alcançada diante de uma
negociação de salários nominais que visasse reduzi-la. Portanto, ao menos nesse primeiro
momento, a parcela efetiva dos lucros estaria em um valor intermediário entre a parcela
negociada e a parcela desejada pelos capitalistas.
πn <π <π∗
Nestas condições a questão essencial passa a ser a possibilidade de que esta situação possa ser
mantida, ou seja, que a parcela efetiva seja mantida permanentemente abaixo da meta dos
capitalistas. Isto depende, porém, de como se comportam os trabalhadores. Havendo um hiato
de aspiração inicial, é certo que os trabalhadores demandariam um nível de salário nominal
acima daquele que apenas apenas repõe a inflação prevista. Se por hipótese x<1, significa que
os capitalistas não conseguiriam promover a inflação não prevista necessária para frustrar
imediatamente a aspiração dos trabalhadores.
Se, num segundo momento, os trabalhadores deixam de exigir o reajuste acima da inflação
prevista, qualquer divergência inicial entre a parcela efetiva dos lucros e a desejada pelos
capitalistas tenderia a desaparecer. Isto porque os capitalistas seguem com a capacidade de
91
produzir algum nível de inflação não-prevista, e podem assim reduzir gradativamente o
salário real até que este seja novamente consistente com o resultado distributivo desejado por
eles. Fica claro, portanto, que apenas uma elevação do nível do salário nominal não seria
capaz de alterar a situação distributiva de forma permanente, mesmo com x<1.
Havendo, porém, uma sucessão de negociações salariais que mantivesse, período após
período, o objetivo de reduzir a parcela dos lucros abaixo da desejada pelos capitalistas, tal
resultado poderia ser alcançado de modo permanente. Para tanto os reajustes de salários
nominais teriam de ser, a cada negociação, sempre superiores à inflação prevista. Como os
capitalistas não são capazes de impor toda a inflação não-prevista que compensa o
crescimento dos salários nominais, uma taxa de crescimento dos salários nominais
permanentemente acima da inflação prevista seria capaz de alterar o resultado distributivo em
favor dos trabalhadores de modo permanente.
Nas seções anteriores, havíamos observado que uma das condições para o resultado de um
único emprego que garante inflação constante seria a ausência de adaptação das aspirações
dos trabalhadores ao salário real efetivo31. Neste caso, novamente seria preciso especificar a
presença ou não de adaptação da aspiração dos trabalhadores ao resultado distributivo efetivo
para garantir que estes possam, insistindo em reajustar os salários nominais acima da inflação
prevista, reduzir a margem real de forma permanente. O próprio Rowthorn (1977) não deixa
este ponto claro em sua exposição.
Nossa análise do modelo de Rowthorn (1977) nos leva a concluir, portanto, que para que o
grau do conflito distributivo possa ser um dos determinantes do resultado distributivo é
preciso que (a) não haja adaptação completa do resultado desejado pelos trabalhadores ao
resultado distributivo efetivo, havendo assim insistência por parte dos trabalhadores em
31
Conforme já referido este ponto é discutido por Ros (1989) como determinante para distinguir modelos de
“inflação inercial” e modelos de “inflação por conflito”. Sobre estes dois tipos de modelos ver também Serrano
(1986) e Viana (s.d.).
92
negociar reajustes de salários nominais acima da inflação passada, mesmo que o resultado que
desejam não seja plenamente alcançado; (b) não haja repasse completo dos reajustes de
salários nominais para os preços, impedindo que a inflação não-prevista seja sempre
suficiente para tornar inúteis as exigências dos trabalhadores.
Sob estas duas condições, um grau permanente de conflito distributivo determinaria um
crescimento permanente dos salários nominais e um resultado distributivo permanentemente
menor do que o desejado pelos capitalistas.
Tal situação é diferente: (a) das condições analisadas no primeiro capítulo em que havia uma
restrição absoluta ao nível de preços, caso em que mesmo uma elevação do nível do salário
nominal era capaz de reduzir a margem real de lucro; (b) dos modelos de margem real fixa em
que nem o nível nem a taxa de crescimento dos salários nominais eram capazes de alterar a
situação distributiva.
A partir desta interpretação do modelo de Rowthorn o que temos, portanto, é um caso
intermediário em que uma elevação do nível do salário nominal não é capaz de reduzir a
margem real de lucro permanentemente porque os capitalistas fariam um repasse defasado aos
preços. A restrição absoluta ao repasse não está, portanto, presente. Porém, taxas permanentes
de crescimento dos salários nominais são capazes de determinar alteração do resultado
distributivo, configurando-se uma restrição relativa ao repasse dos custos aos preços, que
depende no caso da formalização de Rowthorn do nível do parâmetro x.
A formalização de Rowthorn não é, porém, a melhor forma de analisar esta possibilidade, e a
nosso ver isto deriva de dois aspectos: (a) seu modelo não diferencia explicitamente o
crescimento dos salários nominais e dos preços; ao invés disto, diferencia a inflação prevista e
a não prevista; (b) a regra de correção dos preços não faz distinção entre a parcela negociada
dos lucros e a parcela efetiva dos lucros, definindo o nível de inflação prevista como
dependente da parcela desejada pelos capitalistas e da parcela negociada com os
93
trabalhadores; com relação a este segundo ponto, indicamos que é possível interpretar o
modelo de duas formas, sendo que apenas uma delas determina que o resultado distributivo
possa ser permanentemente diferente do desejado pelos capitalistas.
2.2.2 Lavoie
Ao contrário de Rowthorn, Lavoie (1992) formula o modelo com duas equações distintas,
separando a dinâmica dos salários nominais e a dinâmica dos preços.
A equação referente aos salários nominais é definida em função da variação desejada do nível
do salário real e da taxa de crescimento esperada dos preços. Para que o salário real fosse
sempre igual ao desejado pelos trabalhadores, por exemplo, o crescimento dos salários
nominais seria dado pela expressão:
wˆ = ωˆ + pˆ e
Lavoie observa que isto não é necessariamente verdadeiro porque os trabalhadores não
conseguem sempre o reajuste de salário nominal que incorpora completamente a inflação
esperada mais o seu desejo de elevação do salário real. “In general the new actual real wage
rate will not be equal to what has been sought by workers. Wages may not be fully indexed
and workers may not manage to obtain what they considered to be their fair real wages”
(Lavoie, 1992, p. 393).
wˆ = a1 (ω w − ω ) + a 2 pˆ e
(*)
Este autor incorpora na equação, portanto, dois importantes aspectos. O primeiro é o fato de
que o resultado da negociação salarial pode não ser, via de regra, estritamente o desejado
pelos trabalhadores. O parâmetro a1 indica em que extensão os trabalhadores conseguem
reagir a uma discrepância entre o salário efetivo e o salário real desejado, de modo que este
parâmetro pode ser considerado como um indicador do poder de barganha32.
32
“Workers may feel that the real wage is much too low compared to what they considered to be the just rate,
but they may have little means of implementing their beliefs” (Lavoie, 1992, p. 393). Observe-se que em certo
94
Já o parâmetro a2 é a medida da indexação dos salários nominais à expectativa de inflação. “It
is equal to one in the case of full indexation, and is generally less than unity” (Lavoie, 1992,
p. ??). Observe-se que nos modelos apresentados na primeira parte, este parâmetro estava
implícito e era supostamente igual à unidade33.
Exceção deve ser feita novamente ao modelo de Rowthorn (1977), em que ele está definido
em termos de uma dicotomia drástica: acima de um patamar crítico de inflação ele é igual a
um, e abaixo deste patamar é igual a zero. Quando é igual a um, a inflação prevista é igual à
esperada, e quando é igual a zero a inflação prevista é zero, mesmo que haja inflação
esperada34. Ocorre que, no caso geral, podemos ter 0<a2<1 e assim os reajustes de salários
nominais incorporam apenas uma parcela da inflação esperada.
Em suma, portanto, a equação dos salários nominais guarda semelhança com a apresentada
nos modelos da seção 2.1, com o parâmetro ε sendo equivalente a a1 e o parâmetro a2 estando
implicitamente definido como igual à unidade, e podendo agora variar entre zero e um.
O mais fundamental para a nossa discussão é a definição da equação de crescimento dos
preços. Lembremos que a condição para que o mark-up real fosse exógeno era que p^=w^, e
que no modelo de Rowthorn isto poderia não ocorrer caso x≠1. No modelo de Lavoie (1992) a
equação da variação dos preços é definida de forma simétrica à dos salários nominais.
“We may proceed in a similar way with the equation determining the rate of price inflation. It
may be assumed that firms increase prices when the actual mark-up is below the mark-up which
sentido o parâmetro a1 é semelhante ao parâmetro ε nos modelos apresentados com margem real exógena, porém
naquele caso a insatisfação dos trabalhadores era definida como a diferença entre o salário real desejado pelos
trabalhadores e o salário real consistente com o mark-up real exógeno. Neste caso o salário efetivo não mais
corresponde necessariamente ao desejado pelos capitalistas.
33
Há uma diferença, porém, na medida em que nos modelos anteriores a expectativa de inflação estava definida
como o caso mais simples de expectativas adapatiativas, correspondendo à taxa de inflação passada. Na sua
formalização Lavoie (1992) não especifica a formação de expectativas.
34
ˆ = a1 (ω w − ω ) . Podemos interpretar esta situação
Se a2=0, a equação dos salários nominais resulta em w
como expressando, para Rowthorn o comportamento do salário nominal abaixo de um nível crítico de inflação.
Os salários nominais só crescem se houver divergência entre o salário real desejado e o efetivo. Já acima do
ˆ=
nível crítico, teríamos w
a1 (ω w − ω ) + pˆ e .
95
they would ideally desire to set, and that the larger the differential between those two mark-ups the
higher the rate of price inflation” (Lavoie, 1992, p. 393).
A formalização incorpora uma meta de salário real consistente com o mark-up real desejado
pelos capitalistas e a expectativa de crescimento dos salários nominais. Quanto maior o markup real desejado, menor o salário real desejado pelos capitalistas.
pˆ = b1 (ω − ω f ) + b2 wˆ e (**)
Os parâmetros b1 e b2 nesta equação têm funções simétricas a a1 e a2 na equação anterior. A
capacidade dos capitalistas de reajustar os preços em função de sua insatisfação com o salário
real efetivo é expressa por b1, e a capacidade de repassar aos preços os reajustes esperados de
salários nominais é expressa por b235.
Observe-se que isto não corresponde exatamente à regra sugerida por Rowthorn porque: (a) a
expressão entre parênteses não é a diferença entre o resultado desejado pelos capitalistas e o
resultado da negociação salarial (como em Rowthorn), mas sim a diferença entre o resultado
distributivo efetivo e o resultado distributivo desejado pelos capitalistas. Desse modo o
parâmetro b1 tem papel semelhante, mas não exatamente o mesmo sentido que o parâmetro x
na formalização de Rowthorn; (b) na regra de Rowthorn, o reajuste efetivo dos preços
incorporava sempre a inflação prevista de forma completa. Nesta formalização, ao contrário, o
reajuste de preços incorpora não a inflação prevista, mas o crescimento esperado dos salários
nominais, em um grau definido pelo parâmetro b2.
Estas são, portanto, as duas equações que compõe basicamente o modelo de Lavoie (1992). A
condição de equilíbrio é satsifeita quando as taxas de crescimento dos salários nominais e dos
preços são iguais.
35
Se o repasse do crescimento esperado dos salários nominais aos preços fosse nulo (b2=0), teríamos uma regra
ˆ = b1 (ω − ω f ) , portanto os preços seriam reajustados apenas em função de
de correção dos preços na forma p
divergência entre o salário real efetivo e o salário real desejado pelos capitalistas. Se o repasse do crescimento
esperado dos salários nominais fosse completo (b2=1) teríamos alternativamente
pˆ = b1 (ω − ω f ) + wˆ e
96
wˆ ∗ = pˆ ∗ =
ab(ω w − ω f )
a+b
onde
a=
a1
(1 − a 2 )
b=
b1
(1 − b2 )
Esta expressão mostra, portanto que a taxa de inflação de equilíbrio depende da diferença
entre o salário real desejado pelos trabalhadores e o desejado pelos capitalistas (hiato de
aspiração) e dos quatro parâmetros. O salário real de equilíbrio também depende das
aspirações de capitalistas e trabalhadores e dos quatro parâmetros.
ω∗ =
aω w + bω f
a+b
(***)
Em geral, portanto, o resultado distributivo não será nem aquele desejado pelos capitalistas
nem aquele desejado pelos trabalhadores. Isto pode ocorrer, porém, em condições extremas
que dependem fundamentalmente dos parâmetos a2 e b2. Conforme mencionado em nota
acima, Lavoie não define explicitamente a formação de expectativas para os salários nominais
e os preços. As expressões que definem o equilíbrio são válidas porém para o caso em que as
expectativas são sempre corretas, de modo que os valores dos parâmetros a2 e b2 representam
respectivamete o repasse da inflação efetiva aos salários nominais e o repasse do crescimento
efetivo dos salários nominais à taxa de inflação.
Caso 1. Mark-up real desejado pelas firmas determina o salário real
“In the first case, firms have either an infinite bargaining power – b1 tends to infinity – or they are
able to index fully any wage increase, when b2 is equal to unity. In either situation, the actual real
wage rate, as defined by equation (***), will tend towards ... the target real wage of firms. Firms
do not let the margin of profit fall below its target level and they are able to respond immediately
to any increase in their wage cost. This situation corresponds to the one that has been implicitly
assumed previously in the book. It is also, I believe, the way mark-up pricing is viewed by most
economists” (Lavoie, 1992, p. 395).
Lavoie destaca, portanto, que esta é a hipótese mais comum nos modelos de mark-up, que
garante sempre o mark-up real desejado pelos capitalistas. De fato, esta é a situação de rigidez
97
distributiva analisada na primeira parte e que está presente em muitos modelos de inflação por
conflito distributivo. Queremos chamar a atenção, porém, para as condições por ele
mencionadas, em termos dos parâmetros b1 e b2.
Em primeiro lugar, não parece fazer muito sentido supor que o parâmetro b1 tenda ao infinito,
uma vez que ele mede a capacidade dos capitalistas de repassar aos preços sua insatisfação
com o salário real efetivo, expresso como diferença entre este nível de salário e aquele que
desejam como meta. Parece mais plausível supor que este parâmetro assuma valores entre
zero e um. Se for igual a um, significa que toda a insatisfação dos capitalistas se transforma
em aumentos de preços e, se for igual a zero, significa que a insatisfação não é transformada
em reajuste de preços. Valores intermediários significariam que apenas uma parcela da
insatisfação se transforma em reajuste de preços.
Em segundo lugar, para caracterizar a hipótese do mark-up real fixo neste modelo bastaria
supor que b2=1 e b1>0, porque nesse caso o parâmetro b já tenderia ao infinito. Sob essas
condições, as firmas teriam o poder de determinar o salário real que desejam porque o reajuste
esperado de salários nominais é completamente e imediatamente repassado aos preços. Desse
modo, o mark-up real seria fixo e independente do crescimento dos salários nominais.
Graficamente, essa situação é ilustrada em um plano em que no eixo vertical estão as taxas de
inflação e de crescimento dos salários nominais e no eixo horizontal está o salário real. A
equação da taxa de inflação seria ilustrada, com b2=1, por meio de uma reta vertical ao nível
do salário real desejado pelas firmas. A interseção com a curva de crescimento dos salários
nominais determinaria a taxa de inflação de equilíbrio, mas o salário real efetivo seria sempre
o desejado pelas firmas.
98
Gráfico 2.2 Mark-up real fixo no modelo de Lavoie
ωF
ωW
Alterações na taxa de inflação de equilíbrio poderiam ocorrer, nesse caso, por deslocamentos
da curva de crescimento dos salários nominais. Assim uma redução da inflação, por exemplo,
poderia ser obtida mediante (a) redução da meta de salário real almejada pelos trabalhadores;
(b) redução do coeficiente a1 que representa o poder de barganha dos trabalhadores; (c)
redução do coeficiente de indexação dos salários nominais à inflação esperada a2.
Observe-se ainda que a interseção da curva de crescimento dos salários nominais com o eixo
horizontal ocorre no nível da meta de salário real desejado pelos trabalhadores, de modo que
sob estas condições a taxa de inflação de equilíbrio só poderia ser zero se as metas dos
capitalistas e dos trabalhadores fossem iguais. Para qualquer ωw>ωf haveria um equilíbrio
99
com inflação constante e positiva, e o mark-up real seria fixo ao nível desejado pelos
capitalistas.
Em segundo lugar, observe-se que, para um dado hiato de aspiração, o nível de equilíbrio da
inflação dependeria dos parâmetros a1 e a2. A inflação não é explosiva para qualquer a2<1.
Em terceiro lugar, há uma outra possibilidade (ao menos do ponto de vista formal) não
comentada por Lavoie de que o resultado desejado pelos capitalistas seja sempre alcançado,
mesmo que o parâmetro b não tenda ao infinito, e portanto mesmo que b2<1. Basta supor que
a1=0, ou seja, que os trabalhadores não reagem diante de divergências entre sua meta de
salário real e seu salário efetivo.
Em síntese, no modelo de Lavoie (1992) podemos associar a hipótese de mark-up real fixo a
duas situações: (a) quando o repasse dos salários nominais aos preços é completo e
instantâneo b2=1 e os capitalistas têm algum poder de barganha b1>0; (b) quando o poder de
barganha dos trabalhadores é nulo a1=0.
Caso 2. Salário real desejado pelos trabalhadores é o efetivo
“The other extreme case arises when labour unions have an absolute power over the real wage
rate. This can happen either because they have infinite bargaining power, or because they are able
to index fully nominal wages to nominal prices. In either situation, the actual real wage rate gets
infinitely close to the real wage sought by the labour unions” (p. 395).
Novamente a hipótese de “poder de barganha infinito” que criticamos com relação aos
capitalistas é mencionada. Ocorre que, também para o caso dos trabalhadores, parece mais
plausível supor que o parâmetro a1 não ultrapasse a unidade, caso em que a alteração desejada
do salário real seria completamente transformada em reajuste de salário nominal.
Novamente, para que o parâmetro a tenda a infinito bastaria supor que a2=1 e a1>0, ou seja
que os trabalhadores têm algum poder de barganha para determinar reajustes de salários
nominais quando o resultado distributivo efetivo é diferente do que desejam, e que os salários
nominais são plenamente indexados pela inflação esperada.
100
Desse modo, a curva de crescimento dos salários nominais no plano que tem a inflação no
eixo vertical e o salário real no eixo horizontal é que seria uma reta vertical ao nível do salário
real desejado pelos trabalhadores. Nesse caso, o mark-up real efetivo estaria completamente
fora do controle das firmas porque os trabalhadores reajustam seus salários nominais
instantaneamente e completamente de acordo com a inflação esperada, acrescentando ainda
um valor acima da inflação esperada quando seu alvo de salário real difere do efetivo.
Agora seria a curva da taxa de crescimento dos preços que determinaria o nível de equilíbrio
da taxa inflação. Para dados parâmetros (b1>0 e 0<b2<1), quanto menor fosse a meta de
salário real desejada pelas firmas (portanto quanto maior fosse o mark-up desejado), maior
seria a taxa de crescimento dos preços. Como nesse caso o salário efetivo é sempre igual a ωw,
haveria inflação zero somente no caso de ωf=ωw. Para qualquer ωf>ωw haveria inflação
positiva e constante. De forma análoga ao caso anterior, para uma dada meta ωf (que
determina a interseção da curva com o eixo horizontal) quanto maiores forem os parâmetros
b1 e b2 maior é o parâmetro b, portanto maior a inclinação e assim mais alta a inflação de
equilíbrio.
Como no caso anterior, Lavoie não comenta a possibilidade formal de que os trabalhadores
possam alcançar sempre o resultado desejado porque o poder de barganha dos capitalistas é
nulo (b1=0). Nesse caso, a inflação de equilíbrio seria zero.
Em síntese, nesse modelo a hipótese de salário real fixo ao nível desejado pelos trabalhadores
pode derivar de duas situações: (a) reajuste dos salários nominais em função da inflação
esperada é completo a2=1 e os trabalhadores tem algum poder de barganha a1>0; (b) poder de
barganha dos capitalistas é nulo b1=0.
Retomando os casos extremos 1 e 2
Observe-se que os dois resultados distributivos analisados até aqui são equivalentes os casos
extremos mencionados na exposição do modelo de Rowthorn (1977). O caso x=1, em que a
101
parcela efetiva é sempre a desejada pelos capitalistas caracteriza-se no modelo de Lavoie por
b2=1; b1>0 ou simplesmente a2=0. O resultado é, como já referimos, igual ao dos modelos
apresentados na primeira parte.
Já o caso x=0, quando a parcela efetiva é a desejada pelos trabalhadores corresponde, na
formalização de Lavoie, ao caso em que a2=1 e a1>0 ou simplesmente quando b2=0. Este
resultado é semelhante ao referido por Carlin & Soskice (1990) quando menciona a inversão
da hipótese sobre o timing entre reajustes de salários e preços, ou seja, supondo que o reajuste
de salários nominais ocorre imediatamente após os reajustes de preços.
Caso 3. Geral
“Finally, there is the general case, in which the actual real wage is somewhere in between the
targets fixed by the firms and the trade unions. The general case arises when neither group has
absolute bargaining power or the ability to index fully wage or price increases. The inconsistent
wage claims are made good by inflation and a compromise in the actual real wage rate” (Lavoie,
1992, p. 396).
Portanto, no caso geral, o salário efetivo assume um valor intermediário entre o desejado
pelos trabalhadores e o desejado pelos capitalistas. Na formalização de Rowthorn vimos que
isto poderia ocorrer quando (a) 0<x<1, situação em que a parcela efetiva dos lucros poderia
estabilizar em um valor entre a parcela negociada e a parcela-alvo dos capitalistas; (b) a
parcela negociada não fosse adaptada à parcela efetiva.
Conforme mencionamos na análise dos dois casos extremos anteriores, eles se caracterizam
por b2=1, a1=0, a2=1, b1=0. Para definir o caso intermediário basta, portanto, supor que estes
valores extremos não sejam assumidos pelos parâmetros, ou seja, que a2<1, b2<1, a1>0 e a2>0.
Isso significa que nem os capitalistas conseguem repassar completamente o crescimento
esperado dos salários nominais aos preços (b2<1), e nem os trabalhadores conseguem
reajustar seus salários nominais incorporando completamente a inflação esperada (a1<0).
Adicionalmente, tanto capitalistas (b1>0) quanto trabalhadores (a1>0) conseguem incluir nos
102
reajustes de preços e de salários nominais ao menos uma parcela de sua insatisfação com o
resultado distributivo efetivo.
Observe-se que, sob essas condições teríamos de fato o salário real de equilíbrio expreso pela
expressão (***) porque 0<a<∞ e 0<b<∞. O salário real efetivo é um valor intermediário, ou
seja, situado entre os salários desejados por capitalistas e trabalhadores.
Para dados valores dos parâmetros e um dado hiato de aspiração, temos portanto uma taxa de
inflação de equilíbrio constante. Na medida em que as taxas de crescimento dos salários
nominais e dos preços são iguais, temos um equilíbrio distributivo que não é nem o desejado
pelos capitalistas nem o desejado pelos trabalhadores, mas sim uma situação intermediária.
A interseção entre as curvas w^ e p^ configura um equilíbrio estável porque, se o salário
efetivo estiver acima do equilíbrio, a taxa de crescimento dos preços é maior do que a taxa de
crescimento dos salários, portanto o salário real está caindo. Se o salário efetivo estiver abaixo
do equilíbrio, a taxa de crescimento dos salários é maior do que a taxa de crescimento dos
preços e assim o salário real está aumentando.
Pode-se ver que claramente que um aumento da diferença entre o salário real desejado pelas
firmas e o alvo dos sindicatos, portanto um aumento do hiato de aspiração, levaria a um
aumento da taxa de inflação. Se o hiato de aspiração depende, por hipótese, inversamente da
taxa de desemprego, teríamos um trade-off entre inflação e desemprego. Uma redução da taxa
de desemprego determina um hiato de aspiração maior e uma taxa de inflação de equilíbrio
maior, mas não uma aceleração indefinida da inflação.
2.2.3 Observações conclusivas sobre o repasse parcial dos custos aos preços
Concluímos que o modelo proposto por Lavoie (1992) mostra-se portanto bastante superior
para uma análise da inflação por conflito distributivo em relação a Rowthorn. Neste caso, o
resultado distributivo efetivo depende da aspiração dos capitalistas, da aspiração dos
trabalhadores e dos valores assumidos pelos parâmetros.
103
“The real wage rate thus depends on the relative bargaining positions of the labour class, a
theoretical stance akin to that of the classical authors” (Lavoie, 1992, p. 395 mencionando
Garegnani como referência).
A esse ponto, a questão fundamental levantada por Tarling & Wilkinson (1985) a respeito de
Rowthorn (1977) é mencionada também por Lavoie (1992):
“How is it possible for firms do not reach their mark-up or real wage targets if they have ultimate
control over prices? As Tarling & Wilkinson (1985, p. 179) put it, ‘why should distributional
shares change in a system where wages are determined unilaterally by capitalists and where in the
time sequence prices follow wages?’” (Lavoie, 1992, p. 393).
Conforme havíamos mencionado anteriormente, Tarling & Wilkinson (1985) indicam que,
quando os preços são reajustados imediatamente após as negociações de salários nominais
(hipótese explicitamente mencionada por Rowthorn em passagem citada acima), o resultado
mais plausível a esperar é que os capitalistas consigam o resultado que desejam.
Pela formalização de Lavoie (1992), porém, as diversas combinações possíveis entre os
valores dos parâmetros determinam diferentes resultados distributivos. Elas podem ser
interpretadas como representando diferentes posições de barganha e/ou diferentes estruturas
de defasagem entre os reajustes de salários-preços.
“One must conclude that, in historical time, prices do not always follow wages, or that firms face
constraints on prices that have not been discussed yet. In the latter case, foreign competition
would be a good example. In the former case, one may think of firms having to publish price lists
in advance, before wage bargaining is over. There would generally be a lag between the increase
in costs and the increase in prices. Different situations will thus arise, depending on the
bargaining positions of firms and of unions, and depending on the time lags or reverse time lags
between wage bargaining and price setting” (Lavoie, 1992, p. 393-4).
Na interpretação deste autor, portanto, para que haja alguma restrição sobre o mark-up
efetivo, no sentido de que este possa não corresponder ao desejado pelas firmas, é preciso
considerar hipóteses alternativas sobre o poder de barganha e sobre o timing dos reajustes de
salários-preços.
104
Duas limitações, entretanto, podem ser apontadas: (a) não torna explícita a relação entre os
parâmetros envolvidos e a estrutura de defasagem entre os reajustes de salários nominais e
preços, mencionada pelo próprio autor como fundamental para ausência de rigidez
distributiva; (b) analisa a questão da determinação da margem real de lucro como relativa ao
repasse dos custos aos preços, sem discutir a dinâmica das margens nominais em resposta ao
movimento dos custos.
2.3. Margem nominal, pricinng e a resistência da margem real
2.3.1 Reajuste parcial da margem nominal
Conforme procuramos demonstrar na subseção anterior, a exposição de Lavoie permite
perceber de forma mais clara como é possível uma redução da margem real via reajuste de
salários nominais. Naquela formalização, o parâmetro fundamental é b2 pois, sendo este
menor do que a unidade, significa que a dinâmica dos preços não é capaz de recompor sempre
os reajustes de salários nominais de forma completa.
Como vimos, Lavoie não trata explicitamente da questão acerca da relação entre o reajuste de
salários nominais e a margem real de lucro, na medida em que a variável distributiva em foco
no seu modelo é o salário real. Nesta seção, indicaremos que, visto sob o ângulo da
possibilidade de divergência entre o mark-up real desejado pelos capitalistas e o mark-up
efetivo, o ponto fundamental não é exatamente o repasse dos custos aos preços, mas a rigor a
questão da correção parcial ou total da margem nominal em função do crescimento dos
custos.
A partir de Pivetti (1991), Serrano (1993) e Stirati (2001) podemos expressar a equação dos
preços em termos de uma margem nominal sobre os custos históricos:
P=(1+n)C(-1)
105
Se esta margem nominal permanece fixa ao longo do intervalo entre t-1 e t, um crescimento
positivo dos salários nominais w^ só seria repassado aos preços com defasagem. Isto faria
com que a margem real efetiva sobre o custo de reposição fosse menor do que a margem
nominal sobre o custo histórico.
(1+m)=(1+n)/(1+c^)
Observe-se que, nesta formalização, isto basta para que os trabalhadores possam obter
elevações reais de salários (determinando, portanto, reduções da margem real de lucro) por
meio da negociação dos salários nominais, porque uma eventual reação dos capitalistas só
poderia acontecer com a defasagem de um período. No período seguinte, os trabalhadores
poderiam promover um novo crescimento dos salários nominais, que novamente só seria
repassado aos preços com defasagem, mantendo assim a margem real efetiva a um nível
menor do que a margem nominal. Para uma dada margem nominal haveria sempre, portanto,
uma taxa de crescimento dos salários nominais que determina o resultado desejado pelos
trabalhadores.
Serrano (2006) deixa explícito porém que este é também um caso extremo, na medida em que
o reajuste da margem nominal entre t-1 e t é nulo. Para observar isto, vamos analisar
novamente o caso extremo em que temos um mark-up real rígido sobre o custo de reposição.
P=(1+m)C
Temos que a variação dos preços é dada pela variação da margem real mais a variação dos
custos
p^ = m^ + c^
(1a)
Se por hipótese a margem real é rígida então m^=0 e portanto temos p^=c^.
Para o caso do mark-up nominal sobre custos históricos teríamos, em termos de taxas de
variação:
p^ = n^ + c^(-1)
(2a)
106
A condição para que o segundo caso (2a) seja idêntico ao primeiro (1a) pode ser explicitada
igualando as taxas de inflação nos dois casos:
p^ = m^ + c^ = n^ + c^(-1)
Como m^=0 quando o mark-up real é fixo, temos:
n^ = c^-c^(-1).
Isto mostra que o caso em que o mark-up real é fixo, portanto, corresponde ao caso em que a
margem nominal é reajustada sempre na exata proporção da aceleração dos custos (diferença
entre a taxa de crescimento dos custos e a taxa de crescimento dos custos no período anterior).
Serrano (2006) formaliza o caso intermediário por meio da expressão:
n^ = x[c^-c^(-1)]
com 0<x<1
(3)
Quando x=0, temos o caso já mencionado em que o mark-up nominal sobre o custo histórico
é fixo, e quando x=1 temos o caso em que o mark-up nominal acompanha completamente os
movimentos dos salários nominais, havendo, portanto rigidez distributiva como nos modelos
analisados na primeira parte.
Assim, para que o comportamento dos custos e, portanto, dos salários nominais tenha
influência sobre a margem real efetiva, basta que x<1, ou seja, que a margem nominal não
seja completamente reajustada. O parâmetro x pode ser compreendido, portanto, como um
indicador do grau de resistência da margem real ao crescimento dos salários nominais.
Portanto, com relação ao modelo de Lavoie, esta formalização deixa mais claro que o fato de
que nem todo aumento de salários nominais seja transformado em aumento de preços deriva a
rigor de uma correção apenas parcial da margem nominal, em relação à que seria necessária
para manter a margem real fixa.
2.3.2. Periodicidade da decisão de pricing
Resultado semelhante ao da seção anterior pode ser obtido mesmo que a margem nominal
aplicada sobre os custos históricos não seja corrigida em função do crescimento dos custos,
107
mas que a decisão de pricing ocorra com determinada freqüência em relação ao reajuste
salarial. Observe-se que, na seção anterior, a formalização é feita em termos de uma
defasagem de um período, ou seja, o período de tempo considerado é sempre, e para todas as
variáveis, o intervalo entre t e t-1.
Ocorre porém que se, dentro deste período relativo ao reajuste salarial, houver mais de uma
decisão de pricing, também deverá haver resistência à queda da margem real diante de um
crescimento dos custos, mesmo que a margem nominal aplicada sobre os custos permaneça
sempre a mesma. Isto ocorreria porque a cada decisão de pricing, há uma reavaliação do nível
dos custos para a formação do preço.
Para explicitar esta relação entre a resistência da margem real e a periodicidade da decisão de
pricing, suponha que os salários nominais cresçam segundo uma trajetória contínua e os
preços segundo uma periodicidade discreta36. Supondo que os custos crescem de forma
contínua, temos:
C (t ) = C0 e cˆ.t
Considerando-se exclusivamente os custos salariais, o custo inicial corresponde ao salário
nominal inicial e o coeficiente técnico de trabalho.
C0 = w0 ( L / X )
A taxa instantânea de crescimento dos custos corresponde à taxa instantânea de crescimento
dos salários nominais.
cˆ = wˆ
A decisão de pricing ocorra a intervalos discretos de tempo de duração D.
P (t ) = P0
para 0 ≤ t ≤ D
36
Observe-se que isto é formalmente semelhante ao modelo de Arida (1982), porém as hipótese sobre o
comportamento de preços e salários nominais ao longo do tempo estão invertidas.
108
Isto significa, portanto, que o preço é praticado sem reajuste ao longo de um período de
duração D. No momento do “pricing”, a margem de lucro atinge seu valor de pico (1+n).
P
ln 0
 C0

 = 1 + n

Na medida em que o tempo decorre, o preço estabelecido ao início do período segue sendo
praticado e os custos crescem, de modo que a margem real vai sendo continuamente reduzida.
Há, nesse caso, uma margem de lucro real instantânea n–wt em um momento t qualquer.
 P 
ln 0  = 1 + n − wˆ t
 C (t ) 
Como o período tem duração D, este é o valor máximo a ser atingido por t, e assim haverá
uma margem real mínima n-wD, atingida imediatamente antes da próxima decisão de pricing.
Haverá, consequentemente, um valor médio do mark-up real ao longo deste período, que
corresponde a:
(1 + m) = 1 + n −
wˆ
D
2
A margem real média depende portanto: (a) do nível da margem nominal n praticada na
decisão de pricing; (b) da duração do período D entre duas decisões de pricing; (c) da taxa de
crescimento dos salários nominais w^.
m=n−
wˆ
D
2
Assim, a diferença entre o mark-up de pico (o mark-up nominal n aplicado aos custos no
momento de cada decisão de pricing n), e o mark-up real médio m ao longo do período
depende da taxa de crescimento dos custos (no caso, dos salários nominais w^) e da duração
do período D.
A duração do período D assume, portanto, a condição de indicador da sensibilidade da
margem real ao crescimento dos salários nominais, ou em outras palavras da resistência da
109
margem real ao crescimento dos salários nominais. Um dado crescimento dos salários
nominais poderá reduzir significativamente a margem real média se o período entre duas
decisões de pricing for longo, mas terá pouco efeito sobre a margem real média se este
período for curto.
O gráfico abaixo mostra a relação entre a margem média e a duração do período, para uma
dada margem nominal e um dado crescimento dos salários nominais.
Gráfico 2.4 – Margem real média e duração do período
Margem
real média
i
r =i−
wˆ
D
2
r = i−
ŵ
2
1
Duração do
período
Dado que os salários supostamente crescem segundo uma trajetória contínua, valores muito
elevados para o intervalo D não fariam sentido. Suponha que o valor máximo possível seja
D=2. Se a unidade de tempo relevante é o ano, isto significa que a decisão de pricing ocorre a
cada dois anos, e portanto que são realizados N=1/D=1/2 decisões de pricing por ano. Neste
caso extremo, o crescimento dos salários nominais exerce um efeito pleno de redução da
110
margem de lucro já que com D=2 temos r=i-w^. Este é o caso, portanto, em que não há
resistência da margem real ao crescimento dos salários nominais37.
Na medida em que o intervalo D seja mais curto, mais freqüentes serão os reajustes de preços,
portanto maior será o número de decisões de pricing por unidade de tempo, passando a haver
alguma resistência da margem real ao crescimento dos salários nominais. Um caso
intermediário que está explícito no gráfico é D=1, portanto N=1, que determina que apenas a
metade do crescimento dos salários nominais seja descontado da margem nominal.
No outro extremo, temos o caso em que D=0, portanto em que N tende a infinito e que a
resistência da margem real é plena. Neste caso a margem real média é igual à margem
nominal porque isto corresponde à situação em que os custos estão sendo reavaliados
continuamente. Na verdade nesse caso os preços também crescem, como os salários, segundo
uma trajetória contínua.
Esta formalização alternativa permite, portanto, representar as mesmas situações da
apresentada na seção anterior, em que a resistência da margem real ao crescimento dos custos
dependia do valor assumido pelo parâmetro x. A diferença com relação ao modelo da seção
anterior consiste no fato de que no modelo apresentado nesta seção não há, a rigor, correção
da margem nominal, mas sim diferentes possibilidades para a periodicidade da decisão de
pricing. Mesmo que a margem nominal não seja reajustada, ou seja, que a mesma margem
nominal seja aplicada a cada decisão de pricing, haveria algum grau de resistência da margem
real diante do crescimento dos salários nominais para qualquer D<2.
2.3.3 Formalização alternativa
Uma terceira forma de expressar essas hipóteses é estabelecer uma relação entre o coeficiente
de repasse do crescimento dos custos e a duração do intervalo entre decisões de pricing.
37
Observe-se que este resultado é equivalente, em escala logarítmica, ao resultado distributivo quando se supõe
uma margem nominal fixa sobre o custo histórico (1+m)=(1+n)/(1+w^). Como neste caso tanto os preços quanto
os salários nominais variam segundo uma periodicidade discreta e a intervalos iguais de tempo, o conceito de
margem real média não faz sentido. [o intervalo entre t e t-1 passa a ser agora entre t e t-D/2].
111
Suponha que o preço seja formado por uma margem nominal sobre os custos medidos como
uma média entre o custo histórico e o custo de reposição, geometricamente ponderada por um
coeficiente h.
Pt = (1 + n)bwt1−−1h wth
(*)
onde n é o mark-up nominal, b o coeficiente técnico L/X e h o coeficiente de repasse.
A relação do coeficiente h com a duração do período entre decisões de pricing é
h = 1- 1/2N
ou
h = 1 – D/2
Na seção anterior, mostramos que o mark-up real dependeria do comportamento da margem
nominal, cujo grau de reajuste era dado pelo parâmetro x, mas neste caso seguimos
investigando a hipótese de haver resistência da margem real mesmo que a margem nominal
permaneça fixa.
A margem real num dado momento é dada pela razão entre o preço e o custo de reposição, ou
seja:
(1 + m) =
Pt
bWt
Substituindo o preço pela expressão (*) e rearranjando os termos temos:
(1 + m) =
(1 + n)
e (1− h ) wˆ
Ou seja, com a margem nominal fixa em n, a margem real dependerá da taxa instantânea de
crescimento dos salários nominais e do coeficiente h. Como este coeficiente depende do
intervalo de indexação D, podemos escrever a mesma expressão alternativamente como:
(1 + m) =
(1 + n)
e
wˆ D
2
112
Observe-se novamente que para D=0 temos o caso de resistência plena da margem real ao
crescimento dos salários nominais, e para D=2 temos o caso em que o efeito do crescimento
dos salários nominais sobre a margem real é pleno38. Para qualquer D<2, portanto, o
crescimento dos salários nominais exerce algum efeito redutor sobre a margem real, no caso
da margem nominal fixa.
Observe-se que esta última observação é fundamental porque a princípio nada impede que
mesmo que não haja resistência plena da margem real devido à existência de algum intervalo
entre as decisões de pricing, esta resistência pode existir pela outra via, apresentada
inicialmente. A princípio nada impede que, dado um certo intervalo entre decisões de pricing
que determine uma resistência apenas parcial da margem real, essa resistência seja
estabelecida por uma correção da margem nominal de modo a manter uma margem real
desejada.
2.3.4 Comentários conclusivos da seção sobre margem real endógena
Vimos nesta segunda parte que a possibilidade de redução da margem real via reajustes de
salários nominais é possível quando os capitalistas encontram algum tipo de restrição ao
repasse das alterações de custos aos preços.
Em uma segunda interpretação do modelo de Rowthorn (1977), isto aparece como uma
incapacidade dos capitalistas de produzir a inflação não-prevista que seria necessária para
impor de imediato a parcela desejada dos lucros. Se, portanto, os trabalhadores insistem em
requisitar reajustes de salários nominais acima da inflação e os capitalistas encontram-se
constrangidos a produzir o nível de inflação não-prevista que garante o resultado que desejam,
o mark-up real pode ser reduzido de forma permanente.
Esta possibilidade aparece de forma mais clara pelo modelo de Lavoie (1992), que indica que
um resultado distributivo intermediário entre as aspirações de capitalistas e trabalhadores é
38
Neste último caso o resultado é novamente semelhante ao caso de margem nominal sobre custo histórico já
que ew^ é o equivalente a (1+w^) sob a hipótese de tempo contínuo para a dinâmica dos salários nominais.
113
obtido quando nem os capitalistas conseguem repassar completamente e instantaneamente os
reajustes previstos de salários nominais aos preços, nem os trabalhadores conseguem reajustes
de salários nominais que incorporem de forma completa e instantânea a inflação passada.
Além disso, é preciso que ambas as partes consigam tornar efetiva ao menos uma parcela de
sua insatisfação com o resultado distributivo efetivo.Do contrário, o resultado distributivo será
o desejado por uma das partes.
O modelo de Lavoie não demonstra explicitamente, porém, que a diferença fundamental entre
os modelos de margem real fixa como os apresentados na primeira parte e os modelos de
margem real endógena não está a rigor na capacidade de os capitalistas repassarem os
aumentos de custos aos preços, mas sim na sua capacidade de reajustar as margens nominais
de modo a alcançar sempre o resultado desejado e/ou na sua capacidade de reavaliar os custos
numa periodicidade que permita manter o resultado distributivo desejado. Embora mencione
que a estrutura de defasagem entre os reajustes de salários nominais e preços seja fundamental
para a determinação dos parâmetros que determinam o resultado distributivo, não examina em
detalhe esta relação.
Os modelos sraffianos de inflação vêm a suprir estas lacunas, ao tomar o problema da
resistência da margem real ao crescimento dos salários nominais como uma questão que diz
respeito ao grau de reajuste das margens nominais. O modelo de margem real fixa aparece
como o caso extremo em que as margens nominais são reajustadas a uma dada periodicidade
mas sempre de forma completa com relação ao comportamento dos custos. Para qualquer
situação de reajuste parcial das margens nominais e de dada periodicidade da decisão de
pricing, o crescimento dos salários nominais pode reduzir a margem real.
Em seguida, procuramos indicar a possibilidade de que haja diferentes graus de resistência da
margem real diante do crescimento dos custos mesmo que a margem nominal permaneça fixa.
Neste caso, assume fundamental importância a maior ou menor periodicidade em que ocorrem
114
as decisões de pricing. No caso em que a margem real é fixa, há uma reavaliação contínua dos
custos, havendo portanto infinitas decisões de pricing em um intervalo de tempo qualquer.
Nesse caso extremo, o resultado distributivo seria a igualdade entre a margem real e a
margem nominal fixa para qualquer taxa de crescimento dos custos. Por outro lado, quanto
maior for o intervalo entre duas decisões de pricing, maior será o efeito redutor do
crescimento dos salários nominais sobre a margem real média, considerando-se uma margem
nominal constante.
Finalmente, procuramos apontar que as duas formas de definir o grau de resistência da
margem real diante do crescimento dos custos não são excludentes, ou seja, a rigor o grau de
resistência pode ser determinado por uma combinação das duas formas. Nada impede que, por
exemplo, para uma dada periodicidade das decisões de pricing que por alguma razão não
possa ser alterada, a resistência da margem real diante de um crescimento mais rápido dos
custos seja mantida pela correção das margens nominais. Por outro lado, havendo alguma
restrição para que a margem nominal seja reajustada diante de um crescimento mais rápido
dos custos, a princípio a resistência da margem real poderia ser exercida pelo encurtamento do
intervalo entre decisões de pricing.
A seguir, discutimos estes determinantes da resistência da margem real.
2.4 Determinantes da resistência da margem real
Até aqui discutimos modelos em que o mark-up real é rígido a priori e modelos em que o
mark-up real não é independente da dinâmica dos salários nominais. Vimos que, para que esta
segunda possibilidade exista, é preciso que pricing não seja instantâneo, ou seja, que os custos
não sejam reavaliados a cada instante, e que havendo um intervalo de tempo entre estas
decisões o repasse do crescimento dos custos às margens nominais não seja completo.
115
Não discutimos até agora, nesse contexto em que o mark-up real não seja independente do
crescimento dos salários nominais, qual o nível resultante do mark-up real diante de um
processo de inflação de custos.
Ao apresentarmos o modelo de Lavoie (1992), indicamos que o resultado distributivo
dependia tanto das aspirações dos capitalistas quanto das aspirações dos trabalhadores, além
dos valores assumidos pelos parâmetros, e dentre estes parâmetros está o grau de repasse do
crescimento dos custos aos preços. No decorrer da segunda parte, porém, apresentamos
hipóteses que relacionam este grau de repasse dos custos aos preços à possibilidade de
reajuste das margens nominais e/ou à periodicidade das decisões de pricing.
Ao supor que os capitalistas encontram restrições para reajustar completamente as margens
nominais ou para reavaliar instantaneamente os custos, sendo possível a redução da margem
real diante do crescimento dos salários nominais, é preciso explicar adicionalmente porque
isto em geral não ocorre a ponto de o mark-up real tornar-se muito reduzido ou mesmo nulo.
Ou seja, em condições de resistência parcial da margem real, poderiam os trabalhadores
pressionar tanto que a margem real fosse reduzida a zero? Se não, qual o determinante da
margem real mínima? Procuramos tratar deste ponto nesta terceira parte.
2.4.1 Frenkel e a formação de expectativas
Vimos na primeira parte que a margem real depende da taxa de crescimento dos custos e do
grau de resistência da margem real a este crescimento. Este grau de resistência , por sua vez,
depende da possibilidade de corrigir a margem nominal de acordo com o crescimento dos
custos e da periodicidade com que os custos são reavaliados.
Alguns autores como Roberto Frenkel (1979) supõe que as margens nominais aplicadas pelas
firmas incorporam previamente a expectativa de crescimento dos custos.
(1 + n) = (1 + m ∗ )(1 + wˆ e )
116
Essa hipótese implica que a margem real m* seria alcançada caso o crescimento dos salários
nominais fosse exatamente previsto, e assim a margem nominal fosse exatamente a necessária
para obter este resultado. Segundo o modelo formulado por Frenkel, o processo de decisão da
margem nominal deriva de um problema de otimização que leva em consideração dois tipos
de riscos:
“El primero es un riesgo de ingreso, que proviene de su incertidumbre sobre la demanda y resulta
de no poder colocar toda la producción al preço que es ofrecida; lo llamamos riesgo de tipo I. El
segundo es um riesgo de capital que proviene de uma subestimación del precio futuro del insumo;
a éste lo denominamos riesgo de tipo II” (Frenkel, 1979, p. 17).
Portanto o risco de tipo I é o risco associado ao volume de vendas, e o risco de tipo II é o risco
de vender a um preço que não garante o mark-up real, devido ao crescimento efetivo dos
custos ter sido maior do que o esperado.
Diante dessas definições, seria plausível esperar que uma superestimação do crescimento dos
custos traga perdas no que diz respeito ao risco tipo I (porque o preço seria fixado a um nível
maior do que aquele consistente com uma expectativa correta sobre os custos), porém ganhos
no que diz respeito ao risco tipo II (porque a margem real seria maior do que a desejada). Do
mesmo modo, poderíamos esperar que subestimar o crescimento dos custos traria benefícios
em termos de ganhos de mercado (risco tipo I) e perdas porque a margem real seria menor do
que a desejada (risco tipo II). Assim, havendo esta simetria, em ambos os casos haveria um
resultado líquido entre perder ou ganhar mercado e ganhar ou perder lucratividade.
Conforme indicado por Bastos (2001) esta simetria não existe na análise de Frenkel, devido à
forma como define o risco tipo I. Frenkel supõe que quando as firmas “erram” para cima, ou
seja, fixam preços mais elevados do que as concorrentes, são punidas com redução das
vendas. Assim de fato haveria um resultado líquido entre perder mercado e obter uma
lucratividade maior quando o crescimento dos custos fosse superestimado.
117
Frenkel supõe, por outro lado, que quando as firmas “erram” para baixo, fixando preços
menores do que aqueles que garantem a margem desejada, não são premiadas com vendas
maiores. Nesse caso, só existiria a perda relativa ao risco tipo II, que resulta de uma
lucratividade menor.
Observe-se que em seu raciocínio quanto ao risco tipo I, Frenkel menciona o comportamento
dos estoques de mercadorias não-vendidas e os custos associados a esses estoques. “El valor
de la pérdida por riesgo de tipo I es el costo de immovilizar el capital líquido asignado a la
parte de la producción no colocada que se acumula como exceso de existencias” (Frenkel,
1979, p. 17)
Portanto o risco tipo I está relacionado a perdas por acumulação de estoques não-planejados,
quando o preço é fixado segundo uma superestimação do crescimento dos custos. Segundo
Frenkel o tamanho destas perdas depende também da taxa de juros, na medida em que todo o
capital imobilizado em estoques poderia estar aplicado em ativos financeiros.
“La parte de la producción no vendida se traduce em existências sobredimensionadas que
integrarán la oferta futura. Toda acumulación excesiva de existencias supone la pérdida de la
totalidad de intereses que hubieran podido obtenerse por la parte excesiva de capital líquido
inmovilizado en insumos, sin tomar em cuenta el aumento esperado de su precio” (Frenkel, 1979,
p. 17-18)
Fica claro, portanto, que a perda associada ao risco tipo I acrescenta aos custos um
determinado montante que represente o custo de oportunidade do capital aplicado em insumos
e transformado em mercadorias que não são vendidas. Esta passagem indica ainda
explicitamente, como é aparentemente óbvio, que os estoques acumulados integrarão a oferta
futura.
Observe-se que, por este ponto de vista, quando as vendas fossem maiores que a produção e,
portanto os estoques fossem reduzidos, seria plausível esperar de fato algum ganho porque
uma parcela dos produtos vendidos já estava acumulada. Isto proporcionaria à firma algum
nível de receitas sem nenhuma contrapartida em custos de produção, pois estes já teriam sido
118
contabilizados quando o produto em estoque foi produzido. Haveria apenas o custo do
armazenamento dos estoques, relativo ao período em que ficaram estocadas, e o já
mencionado custo de oportunidade.
Esta possibilidade, porém, não existe no modelo de Frenkel porque, ao definir o risco tipo I
como função dos custos de produção, da taxa de juros e da diferença entre a quantidade
produzida e a quantidade efetivamente vendida (portanto da quantidade acumulada em
estoques), impõe-se a condição adicional que de a quantidade efetivamente vendida é sempre
menor ou igual do que a quantidade produzida.
Portanto, por menor que seja o preço fixado, decorrente de uma eventual subestimação do
crescimento dos custos, não há no modelo a possibilidade de que as vendas sejam maiores do
que a produção.
“Logo, esse comportamento assimétrico da demanda implica em permanente pressão altista
sobre as expectativas inflacionárias e, conseqüentemente sobre a própria fixação dos preços”
(Bastos, 2001, p. 224).
Observe-se que isto provoca, além do viés de superestimação para as expectativas de inflação
e para as margens nominais indicado por Bastos (2001), ainda uma segunda distorção
inconcebível pois, se a quantidade efetivamente vendida nunca pode ser maior do que a
quantidade produzida, então os estoques nunca diminuem, só aumentam. Quando as
expectativas superestimam o crescimento dos custos, a margem real é elevada, perde-se
mercado e acumula-se estoques. Quando as expectativas subestimam o crescimento dos
custos, a margem real é reduzida mas as vendas podem ser, no máximo, iguais à produção,
porém nunca maiores, de modo que os estoques não podem ser reduzidos.
Mesmo que o modelo de Frenkel possa parecer plausível, portanto, em um ambiente no qual,
por alguma razão, as margens nominais estejam de fato crescendo (fato que, a depender da
magnitude desse crescimento poderia mesmo ser um componente inflacionário autônomo),
119
isto teria de estar associado a um crescimento indefinido dos estoques, algo dificilmente
observado.
2.4.2 Tarling & Wilkinson e a periodicidade do pricing
Mesmo sem supor que o mark-up real seja fixo a priori, formulando um modelo em que há
uma margem nominal aplicada sobre o custos e em que se permite a existência de defasagem
entre os reajustes de salários nominais e preços, esse autores procuram justificar porque o
processo inflacionário em si não tem influência sobre o resultado distributivo efetivo.
Argumentam que o fato de que o processo inflacionário determine ou não um resultado
distributivo mais favorável a alguma das partes não está relacionado à “mecânica” do
processo inflacionário em si, mas deriva de concessões realizadas por alguma das partes,
decorrente de sua posição relativa de barganha. Os autores mencionam que nos trabalhos já
citados de Rowthorn (1977) e Kalecki (1979), nos quais a hipótese contrária está presente,
porém consideram que sem fundamentação adequada.
No modelo proposto pelos autores, a redução da margem real de lucro diante do crescimento
dos salários nominais poderia ocorrer devido à existência de restrições para o repasse
completo dos custos, como nos modelos analisados na segunda parte, e a questão é tratada na
forma de uma defasagem entre o momento do reajuste dos salários nominais e da decisão de
pricing. Vejamos como desenvolvem seu raciocínio.
“The existence of the lag means that for a period the firm has to finance the cost increase
either from its own financial resources or by borrowing” (Tarling & Wilkinson, 1985, p. ??)
Ou seja, na medida em que não seja possível repassar imediatamente o aumento dos custos
aos preços, as firmas precisam financiar esse custo adicional utilizando recursos próprios ou
tomando recursos por empréstimo. Sobre este valor, haverá um serviço financeiro que
também deverá ser acrescentado ao custo. Supõe-se que a taxa de juros referente a esse
serviço é idêntica à taxa de lucro.
120
Supondo, portanto, um crescimento dos salários nominais e uma defasagem entre o momento
do reajuste nominal de salários e a decisão de pricing subsequente, a obtenção de uma
margem real desejada só poderá ser efetivada se a margem nominal for fixada levando em
consideração esses dois aspectos. Portanto, a margem nominal associada a uma margem real
esperada dependerá não só do crescimento esperado dos salários nominais, mas também da
estrutura de defasagem vigente. Nos termos da formalização da segunda parte podemos
escrever:
n = m*+
wˆ e e
D
2
Ou seja, dada uma previsão de quanto tempo levará para que a decisão de pricing possa
ocorrer novamente, e dada uma previsão de quanto será o crescimento dos salários nominais,
obtém-se a margem nominal consistente com a margem real desejada.
Desse modo o resultado distributivo efetivo dependerá não só, como no modelo de Frenkel,
do fato de as firmas acertarem ou não suas expectativas sobre o crescimento dos salários
nominais, mas também da duração do período ser ou não aquela que estava sendo levada em
consideração no momento do pricing.
Este ponto é fundamental para o argumento de Tarling & Wilkinson porque, supostamente,
são as firmas que têm o controle sobre a duração do período. Sendo assim, elas poderão
compensar um eventual erro quanto ao crescimento dos salários nominais (w^>w^e) com uma
antecipação da próxima decisão de pricing (D<De) que compense este erro e possa garantir a
margem desejada.
“If too low a wage increase is built into n, the firm simply shortens the period from the wage
increase to its next price rise. In the extreme, the firm marks-up instantaneously” (Tarling &
Wilkinson, 1985, p. 183).
Assim, embora não assumam a priori que o resultado distributivo é sempre o desejado pelos
capitalistas, como nos modelos apresentados na primeira parte, Tarling & Wilkinson
121
sustentam que, em última análise, a fixação da margem nominal antecipa eventuais aumentos
posteriores de custos, e já leva em consideração também a estrutura de defasagem, fazendo
com que as empresas possam sempre alcançar o mark-up desejado. Havendo um erro de
previsão sobre o crescimento dos custos, ainda restaria às firmas o recurso de antecipar a
próxima decisão de pricing, garantindo assim o mark-up desejado. Desse modo o
comportamento dos salários nominais voltaria a ter efeitos apenas sobre a inflação, mas não
sobre o resultado distributivo.
“Whatever rule is chosen, whether it be a real wage target or not, has implications for the pace if
inflation but it cannot alter the fixity of distributional shares when firms adopt the above pricefixing behaviour. Full cost pricing alone however does not guarantee fixed shares: it is still
necessary to allow firms to vary the timing of price increases in relation to cost increases in order
to compensate for unanticipated wage increases” (Tarling & Wilkinson, 1985, p. 183).
Conforme mencionamos acima, para esses autores o fato de haver uma defasagem que não
seja a adequada para garantir o resultado desejado pelos capitalistas derivaria de alguma
restrição imposta pela sua posição de barganha.
“The view that wage earners can unilaterally change distributive shares rests on the
assumption, rarely made explicit, that entrepreneurs do not or cannot adopt a pricing policy of
compensation fully for cost increases” (Tarling & Wilkinson, p. 185).
Se isto ocorre, as parcelas são mantidas constantes, e diferentes movimentos de salários
nominais e variações na estrutura de defasagem são transmitidas para a taxa de inflação, sem
no entanto mudar as parcelas distributivas.
“In terms of the simple models considered here, where wages are the only costs and the economy
is assumed to be closed, either wage fixers forego attainment of their target real wages, or firms
forego their desired mark-up, or neither side is able to adapt the lag structure and each has to
suffer a loss. In practice, distributive shares do change and inflation is contained, but this is due to
the behavioural response of the participants involved and their relative bargaining positions. It
has little to do with the pure mechanics of the inflationary process itself” (Tarling & Wilkinson,
1985, p. 185).
Fica claro, portanto que, para estes autores há uma separação bastante drástica entre o que é o
processo inflacionário e o que é o processo de determinação da distribuição. Porém esta
122
separação nos parece problemática uma vez que ambos os fenômenos estão supostamente
sujeitos à influência do poder de barganha das partes envolvidas.
2.4.3 Custo de oportunidade
Uma das principais linhas de crítica de Pivetti (1991) aos modelos kaleckianos diz respeito à
indeterminação dos limites superior e inferior para a margem de lucro quando esta é
supostamente associada ao “grau de monopólio”. No modelo de Frenkel, esta dificuldade fica
bastante evidente na medida em que prevê um viés de superestimação permanente para as
expectativas de inflação, de modo que o determinante da margem real de lucro passa a ser um
processo viesado de formação de expectativas. Observe-se que, seguindo este raciocínio,
quanto maior fosse o erro de superestimação da taxa de inflação maior seria a margem real.
Frenkel não discute a existência de qualquer limite superior para as margens nominais ou
reais de lucro.
Embora o modelo de Tarling & Wilkinson (1985) não apresente essa dificuldade em termos
de uma superestimação permanente das expectativas de inflação, também não apresenta
claramente uma hipótese determinante para as margens de lucro. A possibilidade de que a
margem de lucro seja diferente da desejada pelas firmas é afastada pela hipótese de que,
quando as firmas percebem que isto vai ocorrer, antecipam ou postergam a próxima decisão
de pricing.
Desse modo, esse modelo apresenta a dificuldade usual dos modelos kaleckianos, na medida
em que não contém uma explicação para o nível resultante da margem real de lucro. Os
autores sustentam que não há porque supor que o processo inflacionário em si possa fazer
com que os capitalistas tenham que aceitar um resultado distributivo diferente daquele que
desejam. Se a margem real depende, porém, apenas do desejo dos capitalistas, restaria
explicar porque ela não é fixada sempre ao nível máximo possível, ou seja, aquele que reduz o
salário ao nível mínimo de subsistência.
123
Para perceber essa dificuldade de forma mais clara, observe-se que os autores mencionam
explicitamente que, quando houvesse superestimação do crescimento dos custos por parte dos
capitalistas, isto seria compensado por um alargamento do período até a próxima decisão de
pricing, impedindo que a margem real efetiva fosse elevada.
“Note that, if firms overestimated the next wage increase, they could increase the lag of prices
to wages to compensate” (Tarling & Wilkinson, 1985, p. 183, nota 1).
Esses autores consideram portanto que, se os capitalistas agissem de modo semelhante ao
comportamento viesado previsto pelo modelo de Frenkel, superestimando a taxa de inflação,
não haveria necessariamente elevação das margens reais, porque o aumento do intervalo entre
decisões de pricing poderia compensar o erro de expectativa. Percebendo que superestimaram
o crescimento dos custos na última decisão de pricing, as firmas deixariam que o tempo
passasse, postergando a decisão de pricing subseqüente, e deixando que a margem real fosse
reduzida ao nível que vigorava antes do erro de expectativa.
Note-se, porém, que esta seria uma ação dos capitalistas visando reduzir a sua própria
margem de lucro, como forma de compensar um erro de expectativa que, tudo mais constante,
tenderia a elevá-la. Porém nenhuma razão adicional é apontada para justificar porque os
capitalistas espontaneamente rejeitariam a obtenção de uma margem real menor. Não
significa, obviamente, que isto não possa ocorrer, mas seria preciso haver algum tipo de
restrição à obtenção de uma margem de lucro mais alta para que os capitalistas se
comportassem desta forma.
Diante dessas considerações, fica claro que esses modelos a rigor não contém uma teoria para
a distribuição, mas apenas uma descrição (que muitas vezes pode ser plausível e coerente
enquanto tal) do processo de fixação das margens nominais e dos preços.
“The full-cost pricing generally assumed in Kaleckian contributions is evidently not per se an
explanation of prices, but a description of how firms determine their prices, which is open to
different explanations of the normal profit rate. Hence this description may in principle be
124
compatible also with an explanation of the normal profit rate as determined by the real wage rate,
as in the old classical tradition” (Stirati, 2001, p. 5).
De fato, as lacunas apontadas com relação a Frenkel e Tarling & Wilkinson poderiam ser,
teoricamente, superadas na medida em que a margem real de lucro fosse associada ao salário
de subsistência. Sempre que o salário real estivesse acima da subsistência, haveria espaço para
uma superestimação do crescimento dos custos, e a decisão de pricing poderia conter uma
margem nominal que determinasse elevação da margem real de lucro, como prevê o modelo
de Frenkel. Quando a margem real atingisse, porém, o nível compatível com o salário de
subsistência, começariam a surgir pressões sociais que impediriam a continuidade da elevação
das margens reais via superestimação do crescimento dos custos e elevação de margens
nominais. Neste ponto, seria plausível a operação do mecanismo previsto por Tarling &
Wilkinson, ou seja, começaria a fazer sentido que os capitalistas passassem a postergar a
decisão subsequente de pricing ao perceber que superestimaram o crescimento dos custos,
tendo em vista as pressões sociais derivadas de uma redução dos salários reais a níveis
considerados abaixo da subsistência.
Nesse caso, portanto, conforme apontado por Stirati (2001) os modelos apresentados a rigor
não estariam contribuindo para uma explicação teórica da distribuição que apontasse como
variável central a taxa de mark-up. Ao contrário, consistiriam em descrições a respeito de
como a taxa de mark-up e os preços são formados para serem consistentes com a teoria da
distribuição desenvolvida pelos economistas clássicos do século XIX. O preço é formado
segundo uma taxa de mark-up que não pode ser maior do que aquela consistente com o nível
de subsistência.
Esta não é, porém, a hipótese que vem sendo desenvolvida por Pivetti (1991), Serrano (1993),
Stirati (1999). A possibilidade que estes autores têm procurado investigar é exatamente a idéia
de que a formação de preços por mark-up pode conter não somente uma descrição de como a
decisão de pricing é realizada pelas firmas, mas também que as margens de lucro sejam a
125
variável distributiva exógena na relação com o salário real. Assim, ao invés de o mark-up
assumir valores consistentes com um salário real determinado, é o salário real que vai
depender das margens de lucro praticadas. Para tanto, é preciso apontar quais os limites para
as margens reais.
A hipótese desenvolvida por Pivetti (1991) a partir da sugestão de Sraffa (1960) de certo
modo aparece em alguns dos modelos mencionados, ainda que sem o grau de generalidade
que a levaria a um papel determinante da distribuição. Vimos que tanto Frenkel (1979) quanto
Tarling & Wilkinson (1985) atribuem algum papel à taxa de juros em seus modelos. Frenkel
indica que os estoques não vendidos acrescentam um custo de oportunidade aos custos de
produção, porque recursos que estão sendo imobilizados em estoques poderiam estar gerando
rendimentos em aplicações financeiras. Tarling & Wilkinson mencionam a necessidade de
financiar com recursos próprios ou de terceiros eventuais reajustes não esperados de custos,
situação que impõe às firmas custos de oportunidade quando utilizam recursos próprios e
custos financeiros quando utilizam recursos de terceiros.
Ocorre que o papel da taxa de juros enquanto determinante do custo de oportunidade pode ser
tomado como algo muito mais geral do que suposto por estes autores. Observe-se que, se
sobre os estoques de mercadorias não-vendidas e sobre os recursos necessários para cobrir
aumentos não previstos de custos é necessário considerar um custo de oportunidade, porque
não seria igualmente plausível considerar que este custo de oportunidade tenha de ser
considerado para a totalidade do capital? Em outras palavras, não é apenas o capital circulante
aplicado em estoques ou na folha salarial que poderia ser alternativamente aplicado em ativos
financeiros. Na verdade todo o capital aplicado em ativos reais está sujeito a esta alternativa,
ainda que pudesse levar um certo tempo para transformá-lo (como a parte imobilizada em
equipamentos por exemplo) em aplicações financeiras, o cálculo da rentabilidade a longo
prazo tem de levar em consideração esta alternativa.
126
A título de ilustração, notemos que esta idéia aparecia de forma bastante clara em Serrano
(1986) e Arida & Lara-Resende (1985), quando consideravam o caso brasileiro nos anos 80.
"Em qualquer economia capitalista, opera continuamente um processo de arbitragem, na
margem, entre a taxa de juros e o retorno médio sobre o capital não-financeiro. Se a taxa de juros
é alta (ou baixa) demais em relação à taxa média de retorno sobre o capital não-financeiro, a
demanda dos detentores de riquezas se desloca para os ativos financeiros (ou para os ativos nãofinanceiros). O preço relativo dos ativos financeiros (ou dos não-financeiros) tende a crescer,
reduzindo conseqüentemente a diferença entre as taxas de retorno dos dois tipos de ativo" (Arida
& Lara-Resende, 1985, p. 7)
A este processo de arbitragem, portanto, os autores atribuem um caráter geral. A rentabilidade
do capital não-financeiro e a taxa de juros não podem estar muito distantes devido à
arbitragem entre a taxa de juros e a rentabilidade do capital em geral. Caso a rentabilidade de
uma alternativa seja superior à outra, haveria transferência do capital de uma alternativa a
outra, e a equalização do retorno ocorrerá via mudança dos preços relativos dos ativos.
Considerando o caso brasileiro no início da década de 80, os autores acrescentam que o
sentido da causalidade partia dos ativos financeiros para os ativos reais.
"No período 1981-1983, este processo de arbitragem apresentou uma especificidade crucial. Um
menu sofisticado de instrumentos de política conseguiu que a taxa real de juros no país, apesar de
fixada a níveis muito maiores do que a taxa real externa, ficasse insensível aos processos de
arbitragem. Como conseqüência, a arbitragem só pôde efetivar-se através de um aumento na taxa
de retorno sobre o capital não-financeiro que a tornasse compatível com a taxa de juros fixada"
(Arida & Lara-Resende, 1985, p. 7).
Fica claro, portanto, que para estes autores o mecanismo de ajuste da taxa de lucro à taxa de
juros aparece como um resultado do quadro institucional ali vigente, e não como uma
característica geral do processo de arbitragem descrito na passagem anterior. Ainda assim,
parece útil mencionar o argumento desses autores como forma de introduzir a hipótese que
queremos sugerir.
"Com plena correção monetária, os juros prefixados legalmente tornavam-se os juros reais
oferecidos por essa forma de aplicação (caderneta de poupança). Os juros reais nos demais ativos
financeiros, levando em conta diferenças de tributação, risco e efetivos de segmentação de
mercado, foram ajustados à remuneração real de 6% das cadernetas de poupança" (Arida &
Lara-Resende, 1985, p. 9).
127
A plena correção monetária sobre as taxas nominais de juros era, portanto, a forma de manter
uma remuneração real básica insensível às taxas de inflação. "Uma vez que a taxa real de
juros era fixada pelos instrumentos de política, os processos de arbitragem exerceram-se
através de um aumento na taxa de retorno dos ativos não-financeiros" (Arida & Lara-Resende,
1985, p. 9).
Portanto o quadro geral descrito pelos autores é de uma alta taxa real de juros fixada pela
autoridade monetária e uma taxa de lucro endógena que se ajusta a essa alta taxa de juros.
Como já mencionamos, Pivetti (1991) procurou discutir esta possibilidade de uma perspectiva
teórica geral, e não relativa apenas a um período específico, ainda que haja algumas condições
em que ela se torne mais plausível. De qualquer modo, a interação entre taxas nominais e
reais de juros e as taxas de inflação é crucial para o funcionemento desse mecanismo.
“In fact, given a policy-determined nominal interest rate, competition among firms within each
industry should tend to cause the rate of profit to move in simpathy with the real rate of interest,
rather than with nominal one, because its the former which constitutes the actual price for the use
of capital in production, or its opportunity cost” (Pivetti, 1991, p. 52).
Nesta passagem Pivetti deixa claro, portanto que o custo de oportunidade do capital é
determinado de forma geral pela taxa real de juros. Uma política monetária como a
mencionada por Arida & Lara-Resende (1985), portanto, em que há plena correção monetária
e manutenção da taxa real de juros em condições de alta inflação, seria de fato capaz de
balizar a lucratividade do capital.
2.4.4 Taxa real de juros
Segundo o raciocínio de Pivetti, quando a autoridade monetária fixa uma taxa nominal de
juros (1+i) sobre seus títulos públicos, ela estabelece a existência de um ativo que retorna num
momento futuro este percentual para cada unidade monetária aplicada no presente.
“Given the nominal rate of interest i, competition implies that any unit of money, however invested
at time t, must still yield (1+i) at time t+1. The real rate of interest r depends on i and on the rate
of change in prices: if i is 20 per cent per annum and the value of money is falling by 20 per cent
per annum, the repayment of 120 a year hence in return for 100 loaned today will leave the lender
128
with a sum of the same real value and with zero real interest. And if i is 20 per cent and 100 is the
amount of capital (the price of the capital goods) employed in production at the beginning of the
year, equalization of the rate of profit with r by the competition among firms simply implies that,
whatever the change in prices during the year, firms should be left at the end of the year with 120
after paying wages” (Pivetti, 1991, p. 53).
Segundo o raciocínio de Pivetti, portanto, uma vez determinada a taxa nominal de juros estará
determinada a margem nominal e o retorno nominal que deverá ser auferido pelas firmas em
competição ao final do período relevante para a aplicação financeira, definido como o
intervalo de tempo entre t e t+1. Nesta formulação, a periodicidade é mantida fixa ao longo da
análise, e supõe-se que este horizonte de tempo seja igual para o capital financeiro e produtivo
e também para a avaliação do movimento dos custos.
Ocorre, porém, que é possível desenvolver um raciocínio semelhante supondo, como fizemos
na parte II, que os custos variem de forma contínua e os preços de forma discreta. Conforme
já mencionamos, esta hipótese aplicada à decisão de pricing das firmas faz com que o
conceito relevante para a margem real de lucro seja o valor médio no decorrer do período.
Podemos supor agora que a taxa nominal de juros seja fixada pela autoridade monetária a
intervalos discretos de tempo, e que permaneça fixa no decorrer deste intervalo. Desse modo,
no que diz respeito à taxa real de juros, o importante passa a ser também o valor médio no
decorrer do período, que depende do pico inicial (igual à taxa nominal de juros) e do piso
atingido antes do reajuste subseqüente (a taxa nominal de juros descontada da inflação
acumulada no período).
Suponha que $ sejam aplicados em títulos públicos no momento t, e determinem um
rendimento nominal de $(1+i) em t+D. Seguindo o raciocínio de Pivetti, dada esta taxa
nominal de juros, todas as aplicações alternativas para o capital devem chegar em t+D com o
mesmo rendimento nominal, independente da taxa de inflação. Significa dizer que, se D
equivale a um ano e a taxa nominal de juros é 20%, todas as aplicações alternativas do capital
devem, em concorrência, render um intervalo de um ano os mesmos 20% em termos
nominais, independente do que ocorre com os custos e os preços.
129
Observe-se porém que, nesse caso, se os custos crescessem os mesmos 20% ao longo desse
intervalo de tempo, a margem real ao final do período seria zero, mas a margem real média
estaria em torno de 10%. Isto deriva da hipótese de que os custos crescem continuamente, e
que e preço é formado a intervalos discretos. Nosso raciocínio a partir de agora tomará como
hipótese a necessidade de manter uma taxa real média de juros r*.
Nestas condições, isto pode ser alcançado de duas formas: ajustando a taxa nominal de juros a
um dado intervalo de tempo ou ajustando o intervalo de tempo relativo a uma dada taxa
nominal de juros. Na primeira opção, a política monetária seria pautada pela regra39:
i = r *+
pˆ e
D
2
O mesmo efeito poderia ser obtido de uma forma alternativa. Para uma dada taxa real média
de juros almejada pela autoridade monetária, uma dada taxa nominal de juros e uma dada
expectativa de inflação, há um intervalo D correspondente40.
D=
2(i − r*)
pˆ e
A partir do exemplo anterior, suponha que a taxa mensal de inflação aumente de 10% para
20%. A autoridade monetária deseja manter a taxa real média em 10%, mas por alguma razão
não deseja elevar a taxa nominal de juros para 20%, que seria o nível compatível com D=1.
Ocorre que a mesma taxa real média pode ser obtida mantendo a taxa nominal de juros em
15% e reduzindo o intervalo D para 0,5.
Isto significa que, ao aplicar $ unidades monetárias em títulos públicos ao início do mês, estas
unidades monetárias chegariam ao fim da primeira quinzena do mês acrescidas de um
rendimento nominal de 15%. Como a inflação neste período teria sido de aproximadamente
39
Se, por exemplo, a taxa nominal de juros é corrigida a intervalos fixos mensais (D=1 mês) e a taxa mensal de
inflação é 10%, para manter uma taxa real média de juros de 10% a taxa nominal deve ser fixada ao nível de
15% no início do período. Isto porque a média entre este valor de pico (15%) e o piso atingido ao final do mês
(cerca de 5% quando os preços já cresceram 10%) resultaria nos 10% desejados.
40
130
10%, haveria um rendimento real de 5%. O mesmo ocorreria na segunda quinzena, ou seja,
rendimento nominal de 15% e inflação de aproximadamente 10%, portanto rendimento real de
5%. A taxa real média de juros teria sido, portanto, os mesmos 5% apesar da inflação mais
elevada ao longo do período.
Observe-se que por esta forma o nível da taxa nominal de juros seria mantido, mas o período
a que diz respeito teria sido reduzido para apenas 15 dias, ao invés de um mês. Outra
possibilidade seria manter a taxa de 15% relativa ao mês, mas corrigir os valores nominais
aplicados a cada 15 dias, ou seja, fazer correção monetária dos valores nominais ao invés de
alterar a taxa nominal de juros.
De qualquer modo, o ponto central é que, a princípio, existem diferentes formas de a
autoridade monetária manter uma rentabilidade real média para os títulos públicos. Havendo
sempre, como argumentamos acima, a possibilidade de transferir o capital para esta aplicação,
sua remuneração real deve ser tomada como um custo de oportunidade para o capital
empregado em outras aplicações. Naturalmente que a aplicação do capital em títulos públicos
(especialmente no que diz respeito aos títulos emitidos pela autoridade monetária responsável
pela moeda-chave do sistema internacional) é uma opção de baixo risco, de modo que opções
mais arriscadas de investimento deverão ter um retorno superior a este, acrescentando à
remuneração básica um diferencial relativo ao risco.
Por hora, porém, estamos abstraindo este diferencial de risco e tomando a rentabilidade dos
ativos reais e financeiros como equivalentes. Na medida em que existe a possibilidade de
transferir o capital para uma aplicação segura, as firmas deverão levar esta opção em
consideração nas suas decisões de investimento e de pricing, planejando sempre uma
rentabilidade real igual ou superior à dos títulos públicos.
2.5. Margem nominal, pricing e o custo de oportunidade
131
Retomando o argumento, se o custo de oportunidade do capital é dado pela taxa real de juros,
a margem real de lucro relativa aos ativos produtivos não pode ser menor do que a
rentabilidade real dos títulos públicos. Para que isto ocorra, em condições de crescimento dos
custos, é necessário que haja uma política de pricing compatível por parte das firmas.
Se a autoridade monetária pratica uma política que almeja manter a rentabilidade real médio
dos títulos públicos, as firmas adotarão um comportamento compatível com este processo de
modo a também manter sua rentabilidade real.
Observe-se que se, no momento t, as margens nominais fossem fixadas com base no retorno
nominal dos títulos públicos estabelecido neste mesmo momento (taxa nominal de juros), elas
já estariam incorporando uma determinada taxa de inflação p^e esperada. Caso, portanto, o
crescimento dos custos c^ fosse igual a p^e e a decisão de pricing ocorresse a intervalos
também idênticos aos praticados pela autoridade monetária, a margem real média seria
mantida exatamente em r*, portanto equivalente à rentabilidade real média dos títulos
públicos, ou simplesmente à taxa real de juros.
Deste modo, as taxas reais de juros vigentes estariam determinando as margens reais de lucro
sobre os ativos produtivos. Ocorre que este seria o comportamento mais trivial por parte das
firmas para garantir este resultado, mas não a única possibilidade. Obviamente, seguir o
comportamento da autoridade monetária tanto no que diz respeito à margem nominal quanto
ao intervalo entre decisões de pricing determinaria o mesmo resultado médio real.
Ou seja, se a autoridade monetária mantém uma determinada periodicidade para a correção
monetária e ajusta a taxa nominal de acordo com a inflação esperada, e as firmas adotarem
uma periodicidade fixa equivalente para as suas decisões de pricing, fixarem nesta decisão
uma margem nominal equivalente à taxa nominal de juros. Por outro lado, se a autoridade
monetária procura ajustar a rentabilidade real dos títulos públicos por meio de alterações na
132
periodicidade da correção monetária, as firmas poderiam seguir este comportamento e
protegerem suas margens reais por meio de alterações da periodicidade das decisões de
pricing.
Em qualquer desses casos, a margem real média seria igual à taxa real média de juros, se o
comportamento dos custos fosse igual à inflação prevista. Este seria, como observamos, o
comportamento trivial, no sentido de que as firmas procuram manter tanto a igualdade entre a
margem nominal e a taxa de juros quanto a igualdade entre a periodicidade das decisões de
pricing e a periodicidade da correção monetária dos títulos públicos.
Ocorre que esta não é a única possibilidade de manter a margem real igual à taxa real de juros.
Assim como a autoridade monetária tem mais de uma opção para manter a rentabilidade real
dos títulos públicos ao nível desejado, as firmas também teriam diferentes formas de manter
sua margem real equivalente à taxa real de juros. Retomando o exemplo referido acima,
observamos que quando a inflação esperada passasse de 10% para 20% a autoridade
monetária poderia corrigir a taxa nominal de juros de 10% para 20% ou reduzir o período de
D=1 para D=0,5.
Se o custo de oportunidade do capital é a taxa real de juros (que permanece a mesma nas duas
possibilidades), o fato de que a autoridade monetária escolha uma ou outra alternativa não
obriga as firmas a fazerem a mesma opção. Digamos, por exemplo, que a autoridade
monetária escolha elevar a taxa nominal de juros para 20% e manter a correção monetária
mensal. A princípio nada impede que uma determinada firma opte por manter a margem
nominal em 10% (ao invés de corrigi-la para 20%, como seria se seguisse exatamente o
comportamento da autoridade monetária) sobre os custos, porém reduza o intervalo entre
decisões de pricing para D=0,5.
Nesse caso, ao final da primeira quinzena o valor nominal dos custos seria reavaliado e o
preço formado acrescentando-se a mesma margem nominal de 10%. Este comportamento
133
alternativo manteria a igualdade entre a margem real média e a taxa real média de juros. A
firma utiliza uma margem nominal menor do que a taxa nominal de juros, mas corrige seu
preço em função da inflação mais rapidamente do que a autoridade monetária corrige os
valores nominais aplicados em títulos públicos.
A taxa real de juros define, portanto, o custo de oportunidade do capital e a margem real
média que será almejada pelas firmas, mas a princípio não define que tipo de estratégia de
pricing a firma utilizará para alcançar esta margem real média. Na medida em que a margem
real média esteja restrita, porém, à taxa real de juros, no sentido de que em condições de
concorrência as firmas não poderão obter rentabilidade muito superior a esta rentabilidade
básica, optar por reajustes muito freqüentes dos preços implicaria restrições para praticar
margens nominais muito elevadas. Por outro lado, praticar margens nominais elevadas
implicaria em restrições para a periodicidade dos reajustes de preços.
Feitas estas observações, retornemos a um ponto mencionado na discussão sobre o artigo de
Tarling & Wilkinson (1985). Suponha que a autoridade monetária pratique a regra de
correção da taxa nominal de juros em função da inflação esperada, mas haja diferenças na
dinâmica dos custos entre diferentes setores, ou seja, para alguns setores a taxa de
crescimento dos custos seja maior e, em outros, menor do que a taxa de inflação esperada.
Observe-se que, dada a regra de política monetária acima especificada e supondo que todos
adotassem o comportamento “trivial” mencionado acima (margem nominal e periodicidade
iguais às adotadas pela autoridade monetária), setores em que eventualmente os custos
crescessem menos do que o esperado (c^<p^e) poderiam obter margens reais maiores do que
a taxa real de juros, e setores em que os custos crescessem mais do que o esperado (c^>p^e)
obteriam margens reais menores do que a taxa real de juros.
Ocorre que, em concorrência, isto não poderia ocorrer de forma permanente, pois se
determinada aplicação de capital obtivesse rendimentos reais acima de outra, tenderia a haver
134
transferência do capital e equalização das margens reais. Vejamos então como o ajuste de
equalização das margens reais de diferentes setores à taxa real de juros poderia ocorrer
mesmo que as margens nominais aplicadas sobre as aplicações alternativas do capital fossem
iguais, mas o crescimento dos custos fosse diferente do previsto. Para tanto, vamos recuperar
os argumentos de Tarling & Wilkinson (1985) mencionados acima, que atribuem às firmas o
poder de decidir o intervalo entre os reajustes de preços.
Segundo esses autores, havendo erro na estimativa do crescimento dos custos, haveria uma
forma de compensação, por meio de alterações do intervalo entre decisões de pricing. Caso as
firmas superestimassem o crescimento dos custos, poderiam compensar e manter a margem
desejada antecipando o reajuste subseqüente do preço, e caso subestimassem este
crescimento, poderiam evitar uma elevação de rentabilidade postergando a decisão
subseqüente de pricing.
Estamos argumentando agora que desvios da margem real em relação à taxa real de juros
poderiam ocorrer caso as margens nominais fossem igualmente fixadas em todos os setores
mas as taxas de crescimento dos custos fossem diferentes da taxa de inflação esperada e
incorporada na taxa nominal de juros. Estes desvios podem ser, porém, evitados se conforme
previsto por Tarling & Wilkinson (1985) aqueles setores ou firmas que superestimaram o
crescimento dos custos demorem mais para realizar o próximo reajuste, e aqueles que
subestimaram antecipem o próximo reajuste.
i = r *+
wˆ
wˆ
pˆ e
D = r * + A D A = r * + B DB
2
2
2
Suponha, por exemplo que a inflação tenha sido igual à inflação esperada mas w^A<p^<w^B,
ou seja, os salários nominais cresceram mais do que a inflação no setor B e menos do que a
inflação no setor A. Se a margem nominal aplicada nos dois setores fosse por hipótese igual à
taxa nominal de juros, a margem real r* poderia ser igual à taxa real de juros nos dois setores
se os períodos de indexação DA e DB fossem ajustados de modo a compensar a diferença do
135
crescimento dos custos. No caso teríamos que DB<D<DA, portanto em que o intervalo entre
reajustes de preços do setor B fosse mais curto do que o intervalo D e que o intervalo no setor
A fosse mais longo do que o intervalo D.
Voltando ao exemplo acima em que tínhamos r*=10* e p^=10% com D=1 observamos que a
taxa nominal de juros deveria ser i=15%. Agora suponha que de fato a inflação tenha sido de
10% mas os custos no setor B tenham crescido 20% e no setor A tenham crescido apenas 5%.
O setor B poderia obter a mesma rentabilidade real média reduzindo o intervalo para DB=0,5,
e o setor A obteria a mesma rentabilidade aumentando o intervalo para DA=2. Ou seja, os
custos do setor A cresceram a metade do esperado e os do setor B cresceram o dobro do
esperado, mas a rentabilidade média dos dois setores foi mantida igual porque o setor B
reajustou seu preço na metade do intervalo entre os reajustes dos juros nominais, enquanto o
setor A não reajustou seu preço ao final do período, deixando para fazê-lo apenas ao final do
período subseqüente.
Observe-se que aqui há um processo semelhante ao previsto por Tarling & Wilkinson (1985),
no sentido de que as firmas de fato têm liberdade para escolher o intervalo entre decisões de
pricing, mas ao contrário do que ocorre no argumento desses autores, aqui há uma razão
explícita para que o intervalo de pricing seja ajustado de modo a manter a igualdade entre as
margens reais dos setores A e B: a taxa real de juros enquanto custo de oportunidade para o
capital.
O setor que optou por aumentar o intervalo entre decisões de pricing, por exemplo, de modo a
impedir que sua rentabilidade real estivesse acima das demais, o fez porque se isto ocorresse
haveria um diferencial entre sua margem real e a taxa real de juros, abrindo espaço para a
entrada de novos conc
136
orrentes. Por outro lado, o que optou por reduzir o intervalo entre decisões de pricing o fez
porque do contrário seria mais vantajoso transferir seu capital para ativos financeiros, obtendo
uma rentabilidade mais elevada.
Como havíamos argumentado anteriormente, procede a observação de Stirati (1999) de que o
processo de formação de preços previsto por Tarling & Wilkinson (1985) e por outros
modelos kaleckianos pode ser considerado uma boa descrição de como isto ocorre, mas
precisa ser complementado com uma teoria para a distribuição, que determine os limites para
tal processo. Havíamos mencionado que, enquanto descrição, este processo seria compatível
por exemplo com a determinação da distribuição pelo salário de subsistência. Agora, porém,
argumentamos que ele é compatível com a determinação da distribuição pelo custo de
oportunidade do capital, sendo este determinado pela taxa real de juros.
2.6. Estado e distribuição
Neste ponto, é útil fazer uma observação a respeito do que já mencionamos sobre o papel do
Estado na determinação da distribuição quando expusemos o modelo de Arida (1982). O
papel da autoridade monetária na forma que estamos propondo torna explícita a sua influência
sobre o resultado distributivo.
Recuperando o argumento de Arida (1982), indicamos que, no modelo referido deste autor,
quando o intervalo de indexação dos salários nominais fosse fixo pelo Estado, a taxa de
inflação seria aquela necessária para determinar, neste tempo determinado, o salário real
médio consistente com a taxa de mark-up real exógena. Quando, por outro lado, o intervalo de
indexação dos salários fosse endógeno, o Estado teria de fixar um teto para a inflação ou um
piso de salário real que, quando atingidos, disparariam os reajustes de salários nominais. Já
137
observamos que, nesta segunda hipótese, tem papel essencial o nível do piso de salário real ou
o teto de inflação fixado, pois é disto que dependeria o resultado distributivo.
O argumento aqui apresentado está baseado na determinação, por parte da autoridade
monetária, não de um piso de salário real, mas de um piso para a rentabilidade do capital.
Quando a autoridade monetária persegue com sucesso uma política de manutenção de
determinada rentabilidade real para os títulos públicos, estabelece um custo de oportunidade
para o capital, que constitui um nível mínimo de lucratividade necessariamente desejado por
capitalistas que optam por ativos de retorno mais arriscado.
Ainda que diversas possibilidades estejam abertas para a política de pricing das firmas, em
termos de diferentes combinações entre a periodicidade dos reajustes de preços e as margens
nominais praticadas, tais políticas estarão buscando sempre esta rentabilidade mínima para o
capital mais um diferencial de risco associado a cada aplicação particular. Precisarão estar
sempre atentas, por outro lado, para que sua política de preços não determine uma
lucratividade muito superior ao custo de oportunidade, pois isto seria um incentivo à entrada
de concorrentes em seu mercado.
2.7. Regime cambial e política monetária
Assim como, conforme argumentamos até aqui, as firmas não são totalmente livres para
estabelecer suas margens nominais e a periodicidade dos reajustes de preços, estando estas
decisões balizadas pela política monetária, a autoridade monetária também não dispõe de
liberdade irrestrita para escolher a taxa real de juros e o custo de oportunidade do capital
vigente em determinada economia doméstica. Em um ambiente de liberdade para o fluxo de
capitais entre países, cada autoridade monetária estará em algum grau restrita, em sua decisão
sobre a taxa nominal de juros, pela decisão das demais autoridades monetárias.
138
"to the extent to which a country's nominal rates cannot continue to diverge from those prevailing
abroad, the power its monetary authority have for mantaining a desired level of the real rate in
the face of a changing domestic price level would be correspondingly restricted" (Pivetti, 1991, p,
56-7).
O grau de liberdade de cada autoridade monetária na definição de sua taxa nominal de juros
com relação aos fatores externos é portanto um determinante fundamental de sua capacidade
de influenciar as margens de lucro, uma vez que, como argumentamos até aqui, isto depende
da manipulação da taxa nominal de juros tendo em vista a taxa de inflação e o crescimento
dos custos no plano doméstico.
Deste modo, a possibilidade de manipulação da taxa nominal de juros segundo a regra que
mantém a taxa real de juros igual à rentabilidade desejada do capital depende
fundamentalmente do tipo de inserção externa e das condições estruturais do balanço de
pagamentos do país considerado, bem como do regime cambial vigente.
Considere-se por hipótese uma economia com dois setores, um que produz mercadorias
comercializáveis com o exterior (T) e outro que produz mercadorias não comercializáveis (N).
Suponha que o preço da cesta de consumo dos trabalhadores seja formado por uma média
simples entre os preços desses dois bens.
p=
pT + p N
2
Representando os preços como formados por uma margem real sobre os custos salariais
temos:
pT = wlT (1 + m) = ep *
p N = wl N (1 + m)
O preço da mercadoria comercializável tem de ser equivalente ao preço externo p* convertido
pela taxa nominal de câmbio e. Suponha que a produtividade do trabalho nos dois setores seja
igual, de modo que o preço em ambos os setores também seja igual. Assim teríamos
inicialmente igualdade entre o preço da cesta de consumo e o preço externo convertido pela
taxa nominal de câmbio.
139
p = pT = p N = ep *
2.7.1 Taxa fixa de câmbio
Partindo desta situação inicial de igualdade entre os preços de ambos os setores, e portanto de
igualdade destes com o nível de preços doméstico, e supondo uma elevação dos salários
nominais, com a taxa de câmbio fixa e o nível de preços internacional dado, o setor de
comercializáveis não poderia repassar o aumento de custos aos preços, portanto sua margem
real seria reduzida.
Já o setor de não comercializáveis a princípio não encontra esta restrição absoluta. Suponha a
princípio que ele repasse completamente o aumento de custos aos preços. Isto geraria uma
elevação dos preços do setor de não comercializáveis e, como o preço do outro setor
permanece inalterado, uma elevação menos que proporcional do nível de preços doméstico.
p N > p > pT
Se, por hipótese o setor de não comercializáveis repassou completamente o aumento de
salários nominais, teríamos uma razão entre o preço e o salário nominal inalterada nesse setor
e uma razão menor no setor de comercializáveis.
pN
p p
> > T
w
w w
Isto significa que o salário real cresceu (já que o nível de preços domésticos cresceu menos do
que os salários nominais, porque por hipótese o preço dos comercializáveis não cresceu), a
margem real do setor de não comercializáveis foi mantida e a margem real do setor de
comercializáveis foi reduzida.
A um prazo mais longo, isto incentivaria a transferência de capital do setor de
comercializáveis para o setor de não-comercializáveis. Havendo novas pressões por aumento
140
de salários nominais, o efeito seria cada vez mais intenso e, no limite, deixaria de ser lucrativo
produzir qualquer mercadoria comercializável neste país.
Isto demonstra porque, em condições de taxa fixa de câmbio não é plausível supor que possa
haver taxas de crescimento dos salários nominais período após período sendo repassadas aos
preços como nos modelos de margem real fixa analisados no início deste capítulo. O fato de
que há um preço externo dado no setor de comercializáveis impede que este setor realize o
repasse mesmo de elevações do nível do salário nominal.
Em segundo lugar, a queda da margem real no setor de comercializáveis que deriva do
processo suposto tende a reduzir a produção deste tipo de bem, fato que provavelmete
acarretaria deterioração das transações correntes do país considerado. Sob certas condições,
tal problema poderia ser sanado temporariamente pela manutenção de diferenciais positivos
de juros nominais em relação às taxas internacionais, de modo a atrair um fluxo de capital que
equilibre o balanço de pagamentos.
Tal solução seria crescentemente frágil, no entanto, pois se por um lado elevações da taxa
nominal resolvem temporariamente o problema do balanço de pagamentos, por outro
facilitariam o repasse e a manutenção da margem real a níveis elevados no setor de não
comercializáveis, exacerbando ainda mais o problema inicial de divergência na lucratividade
dos dois setores.
Na medida em que as transações correntes deterioram, o passivo externo aumenta e a taxa de
juros sobre este passivo também torna-se mais elevada, em algum momento este processo
levaria a uma crise cambial. Fica claro por estas observações, portanto, que mesmo que haja
uma importância grande do setor de não comercializáveis, ou seja, que a economia em
questão não seja tão aberta, o regime de câmbio fixo configura restrições muito fortes para o
repasse de aumentos de custos domésticos ao preços. Por esta razão, a determinação do nível
do salário nominal é fundamental para o resultado distributivo, e a autoridade monetária tem
141
reduzida capacidade de proteger a lucratividade do capital diante de elevações domésticas dos
custos41.
2.7.2 Câmbio flexível
A situação muda bastante quando se admite que a taxa nominal de câmbio possa sofrer
desvalorizações nominais. Partindo do mesmo exemplo analisado acima, suponha-se que
exemplo que a taxa nominal de câmbio aumente na mesma proporção do salário nominal.
Com isto, o teto do preço externo no setor de comercializáveis eP* subiria na proporção exata
do crescimento dos custos, fazendo com que a margem real desse setor fosse mantida
inalterada.
Neste caso, portanto, torna-se mais plausível imaginar que possa haver taxas de crescimento
permanentemente positivas dos salários nominais, porque seu efeito em termos da evolução
dos custos medidos em moeda estrangeira é ao menos parcialmente neutralizado por taxas de
crescimento também permanentemente positivas de variação do câmbio nominal.
Nestas condições é que ganha importância a discussão realizada neste capítulo sobre a
resistência da margem real em função do grau de correção das margens nominais e/ou da
periodicidade da decisão de pricing. Isto porque desaparece a restrição absoluta do teto do
preço externo em moeda doméstica, e assume papel fundmenetal restrição relativa ao repasse
dos custos aos preços que depende, conforme a discussão deste capítulo, da manutenção ou
não do custo de oportunidade do capital em moeda doméstica.
Se o repasse fosse, como antes, completo no setor de não comercializáveis, a margem real
seria mantida nos dois setores, e o crescimento do salário nominal seria transformado somente
em inflação dos preços domésticos. Para que isto ocorresse, porém, teria de haver a
41
Conforme já analisamos ao final do primeiro capítulo, em uma economia muito aberta em que o preço
internacional e a taxa nominal de câmbio regulam os preços de todas as mercadorias básicas quando os salários
nominais crescem os salários reais crescem tendo em vista um preço dado para a cesta de consumo dos
trabalhadores. Neste caso a hipótese mais plausível é de fato uma redução da margem de lucro e um ajuste pelo
lucro de empresário, se a taxa de juros permanecer fixa.
142
manutenção da taxa real de juros em termos da moeda doméstica. Em um cenário de
desvalorização cambial, a taxa nominal de juros precisa ser reajustada de acordo com a
desvalorização esperada, porque o fluxo de capitais depende da taxa nominal de juros
descontada de variações esperadas na taxa de câmbio
"so a suitable exchange rate policy, it would seem, might significantly increase the ability and
freedom of monetary autorithies to control the level of rr [taxa real de juros] by establishing the
appropriate level of rn [taxa nominal de juros]. But the overall effects of exchange-rate changes
should be taken into account" (pivetti, 1991, p. 57)
No caso, portanto, em que a pressão de custos vem do crescimento dos salários nominais e a
taxa nominal de câmbio desvaloriza na mesma proporção, (w^=e^>0) é preciso que o nível da
taxa nominal de juros acompanhe para evitar uma fuga de capitais (i=r*+e^). Nestas
condições tenderia a haver um repasse completo para os preços domésticos, e portanto a
manutenção da margem real nos dois setores.
Por outro lado se a desvalorização nominal e o crescimento dos salários nominais ocorrem em
igual proporção mas a taxa nominal de juros não é corrigida de modo a incorporar a
desvalorização nominal de forma completa, isto tende a dificultar o repasse no setor de não
comercializáveis, uma vez que a taxa real de juros seria reduzida. Dependendo da magnitude,
isto poderia gerar também problemas de fuga de capital, tendo em vista as perdas em termos
de moeda estrangeira.
Deste modo, em condições de câmbio fixo, um crescimento dos salários nominais tende a
gerar forte pressão sobre as margens reais de lucro, dada a restrição absoluta do preço externo
convertido pela taxa fixa de câmbio. Uma desvalorização do câmbio nominal que relaxe esta
restrição absoluta facilita o repasse porque eleva o teto do preço externo em moeda doméstica,
elevando automaticamente o preço das mercadorias exportadas. Nos demais setores, porém,
isto pode configurar uma nova pressão de custos oriunda dos custos com mercadorias
importadas, e a capacidade de repasse dependeria de como a política monetária é gerida. Se a
143
devalorização do câmbio nominal não é acompanhada de elevações da taxa nominal de juros
que mantenham a rentabilidade real dos títulos públicos a rentabilidade tende a ser reduzida
também no setor de não comercializáveis.
Veremos como estas considerações parecem consistentes com o movimento distributivo nos
Estados Unidos na transição entre o padrão ouro-dólar e o padrão dólar-flexível.
144
III. DISTRIBUIÇÃO E ESTABILIZAÇÃO DO PADRÃO DÓLAR-FLEXÍVEL
O período de vigência do padrão ouro-dólar corresponde à “era de ouro” do capitalismo norteamericano, quando taxas significativas de crescimento econômico ocorriam simultaneamente
a baixos níveis de inflação e a um padrão distributivo mais igualitário em relação a períodos
anteriores. Os últimos anos de vigência desse sistema, especialmente a partir de 1968,
caracterizam-se por uma aceleração no crescimento dos salários nominais e da taxa de
inflação nos Estados Unidos.
Ao longo da década de 70, quando os Estados Unidos formalmente já haviam rompido a
conversibilidade do dólar, as taxas de inflação seguiram em crescimento, impulsionadas pelos
sucessivos choques nos preços das matérias-primas, e especialmente do petróleo. Ao final
desta década, em 1979, o choque dos juros promovido pelo FED inverte as tendências de
desvalorização do dólar e dos preços das matérias-primas, dando início ao processo de
consolidação do padrão dólar-flexível.
No início da década de 80, as forças conservadores lideradas por Ronald Reagan promovem
uma recessão sem precedentes desde a década de 30, obtendo êxito no controle da inflação.
De 1984 em diante, a economia norte-americana retomaria taxas razoáveis de crescimento
econômico e o desemprego passaria ser reduzido, sem que as taxas de inflação voltassem a
145
alcançar níveis próximos daqueles atingidos nos anos 70, contrariando diversas estimativas
ortodoxas da NAIRU.
Progressivamente, foi tornando-se mais claro que o padrão distributivo havia sido alterado
significativamente, com a desigualdade na distribuição pessoal da renda aumentando
drasticamente durante as décadas de 80 e 90.
3.1 Caracterização do movimento distributivo
3.1.1 Caracterização do movimento de aumento da desigualdade
O fato de que o padrão distributivo hoje vigente nos Estados Unidos caracteriza-se por uma
desigualdade fortemente mais elevada, na comparação com o padrão vigente no período
conhecido como “era de ouro” do capitalismo norte-americano, é amplamente documentado
pela literatura recente. Nesta seção, procuramos ilustrar essa transformação com alguns dados
gerais, e no restante do trabalho procuramos associá-la às políticas econômicas e às
transformações estruturais relacionadas à alteração no padrão monetário e aos padrões
inflacionários da economia norte-americana.
Com relação a essa tendência distributiva geral, é ilustrativo o trabalho de Shapiro et al
(2001). Analisando dados do Congressional Budget Office (CBO), dizem os autores que
“de 1979 a 1997, ... a renda média após impostos das famílias norte-americanas entre as 20%
mais pobres ficou estagnada. ... para o quinto central das famílias, a renda média após os
impostos cresceu modestos 10% ao longo desse período de 18 anos. ... em contraste, a renda
média após impostos cresceu 157% para o 1% das famílias mais ricas. ... como resultado, as
disparidades entre ricos e pobres, e entre a classe média e os ricos, é mais ampla em 1997 do que
em qualquer outro momento do período analisado (Shapiro et al, 2001, p. 1, tradução nossa).
146
Bartels (2003)42 nos informa que o coeficiente de Gini norte-americano aumentou algo
próximo a 25% entre os anos de 1970 e 2000. A tabela abaixo mostra o crescimento da renda
média por estratos de renda no período 1948-2001. Ela demonstra que os que mais cresceram
em média foram os estratos de renda mais elevada, evidenciando o aumento da dispersão dos
rendimentos.
Tabela 3.1 Crescimento dos estratos de renda (1948-200)
Percentil
Taxa média de crescimento
20%
40%
60%
80%
95%
1,58%
1,66%
1,86%
1,97%
2,10%
Fonte: Bartels (2003)
Piketty & Saez (2001) fornecem dados que permitem perceber a relevância e magnitude dessa
transformação no contexto de um período de tempo ainda mais amplo. O gráfico abaixo
mostra o comportamento da parcela da renda total apropriada pelos 10% mais ricos da
população norte-americana ao longo de quase todo o século XX.
Como se vê, após um longo período de estabilidade, que coincide com a era de ouro do
capitalismo norte-americano43, a parcela dos 10% mais ricos passa a apresentar uma visível
tendência de crescimento a partir do final da década de 70. A magnitude desse crescimento
fica clara se observarmos que, ao final dos anos 90, a parcela apropriada por esses 10% quase
atinge os patamares do período anterior à era de ouro.
42
O trabalho sugere que a alternância de poder entre democratas e republicanos tenha efeitos sobre o padrão de
distribuição da renda. Não estaremos aqui considerando essa possibilidade, uma vez que nosso foco é um
período mais amplo, em que existe notável piora na distribuição pessoal da renda norte-americana.
43
Sobre esse período ver Medeiros (2000) e Serrano (2004).
147
Gráfico 3.1 Evolução da parcela da renda dos 10% mais ricos (1917-1998)
Fonte: Piketty & Saez (2001)
3.1.2 Distribuição funcional e distribuição pessoal da renda
Os dados apresentados acima, como de resto os dados utilizados em muitos estudos empíricos
sobre distribuição de renda, referem-se ao conceito de distribuição pessoal da renda, ou seja,
às diferentes parcelas da renda que auferem indivíduos (ou famílias) mais ricos ou mais
pobres.
A outra forma de tratar a distribuição da renda refere-se à divisão entre diferentes categorias
de rendimentos, associadas a diferentes classes sociais. As classes sociais usualmente
consideradas e suas rendas correspondentes são os trabalhadores, que recebem salários, e os
capitalistas (proprietários de ativos produtivos reais produzidos), que recebem lucros.
Estas duas categorias não constituem maiores problemas de definição, mas o mesmo não
ocorre, porém, com a categoria denominada “rentistas”. Em certos casos, o termo é utilizado
para referir aqueles que recebem rendas de propriedade sobre ativos reais não produzidos
148
(como aluguéis em áreas urbanas e arrendamentos em áreas rurais), porém em tempos
recentes, tem sido bastante utilizado para referir-se aos que recebem rendas de propriedade de
ativos financeiros44.
Wolff & Zacharias (2007) definem a classe “capitalista” de um modo mais abrangente,
composta por aquelas famílias cuja riqueza acumulada é
"under normal circumstances, sufficient to yield a property income that can provide a household
with a standard of living that is beyond the reach of the majority of households. In effect, members
of capitalists households may be considered as being free from the economic compulsion to
engage in wage labour by virtue of their exceptionally large amounts of wealth. Moreover, our
definition includes the so-called 'rentier' class - those who can live off the mere ownership of their
wealth" (Wolff & Zacharias, 2007, p. 7).
Esta definição compreende, portanto, toda a classe de propretários de quaisquer tipos de
ativos cuja riqueza acumulada proporciona uma renda maior do que a necessária para a
subsistência, permitindo que não precisem vender sua força de trabalho.
Dos dados apresentados pelos autores, chama a atenção o aumento da parcela da renda
apropriada pelos capitalistas, assim definidos, entre 1989 e 2000. Esta proporção passa de
10,3% para 20,2% (a proporção de famílias capitalistas no total também cresce, passando de
1,1% para 2,0%).
Por outro lado, segundo esses mesmos dados, quem mais perdeu no período foram os
"nonskilled workers", cuja parcela da renda caiu de 29,1% para 25% (tendo permanecido
estável sua participação como proporção do total de famílias). Fica claro, portanto, que uma
parcela inalterada de trabalhadores não qualificados viu sua parcela da renda diminuir,
enquanto por outro lado um número significativo de famílias conseguiu acumular riqueza que
lhe permitiu ingressar na categoria dos proprietários, cuja parcela da renda quase dobrou de
tamanho no período considerado.
44
O prof. Serrano lembra que em alguns trabalhos a agregação é feita somando-se a renda da “terra” (ativos reais
não produzidos) com o lucro, considerando-se, portanto, uma categoria de renda de propriedade de ativos reais.
Neste tipo de agregação o “rentista” seria apenas o proprietário de ativos financeiros.
149
Esses autores também atestam que, de fato houve um movimento de ampliação da
desigualdade na distribuição pessoal, no período a que se refere o artigo (1989-2000).
Segundo eles, o índice de Gini aumentou de 0,408 para 0,492 neste período. Por meio de uma
decomposição desse índice, os autores sustentam que o aumento da desiguladade foi quase
que exclusivamente devido ao aumento da desigualdade inter-classes, e não intra-classes.
“The most striking result is that the increase in overall inequality between 1989 and 2000 was
solely due to an increase in inter-class inequality. ... Class divisions aming households thus
accounted for a substantial amount of overall inequality, reflecting primarily the huge gap in
income between the capitalist class and everyone else” (Wolff & Zaccarias, 2007, p. 19).
O aumento da distância entre os proprietários de riqueza (capitalistas no sentido definido
pelos autores) e as demais classes foi, portanto, determinante para o movimento geral.
Observe-se que esta influência do padrão de distribuição funcional da renda sobre o padrão de
distribuição pessoal e familiar é reconhecida, sob uma perspectiva mais geral, pela literatura
empírica.
“The functional income distribution (i.e. the shares of factors of production) is an important
determinant of household distribution, since household incomes depend on the returns on the
various assets they possess (including their labour), as well as their quantity. Since the upper
income groups own most financial and physical assets, they are likely to gain relatively when
the share of profits rises and the share of wage-incomes falls” (Stewart, 2000, p.18).
Uma forma simples de compreender como esta influência ocorre pode ser vislumbrada
observando-se mais alguns dados apresentados por Wolff & Zacharias (2007). Eles mostram
que as únicas classes em que a parcela da população e a parcela apropriada da renda são
significativamente diferentes são os capitalistas e os trabalhadores não-qualificados. Nas
demais categorias utilizadas pelos autores, as parcelas na população e na renda são
praticamente idênticas.
No ano 2000, essas parcelas eram: manager (13% na população e 14% na renda), supervisor
(6% e 5%), professional (14% e 14%), white-collar (6% e 6%). blue-collar (9% e 6%) e selfemployed (11% e 10%). Já os capitalistas, que eram 2% da população, detinham 20% da
150
renda, enquanto os trabalhadores não-qualificados eram 40% da população e detinham 25%
da renda.
Dado, portanto, que os lucros e rendas são distribuídos apenas entre os proprietários de ativos,
uma classe significativamente menos numerosa que os não-proprietários, um aumento da
parcela das rendas de propriedade em geral tende a gerar um aumento da desigualdade entre
os indivíduos e/ou famílias mais ricas e as mais pobres. Assim, em geral um movimento
fundamentalmente derivado da mudança de posição relativa entre as classes sociais pode
determinar, além de uma alteração da própria distribuição funcional da renda, também uma
alteração na distribuição pessoal da renda45.
Voltando ao caso específico da economia norte-americana, outros autores confirmam que de
fato houve uma alteração significativa na distribuição funcional, na direção de um aumento na
parcela das rendas de capital nos anos 80 e 90, como mostra o gráfico abaixo.
Gráfico 3.2 Parcela das rendas de capital na renda pessoal (1929-1998)
Fonte: Piketty & Saez (2001)
45
Isto não significa que não possa haver um movimento dentro das proprias parcelas, como de fato também
houve, reforçando a tendência da distribuição pessoal.
151
Como se vê no gráfico, partindo de uma média de cerca de 13% ao longo das décadas de 60 e
70, essa parcela atinge um pico de 20% em 1990, cai até 1993 e começa então uma novo
crescimento. De qualquer forma, é visível que, de uma flutuação entre 13%, ela passa a
oscilar em torno de algo próximo a 18% depois de uma elevação bastante drástica na primeira
metade dos anos 80.
O trabalho recente de Wolff & Sacharias (2007) vem a confirmar, portanto, que esse aumento
da parcela dos lucros contribuiu decisivamente para o aumento da desigualdade na sociedade
norte-americana.
“Desconstruction of the change in income distribution shows that the increased inequality was
generally due, in part, to increased inequality in wage and salary earnings, and in part, to a rise
in the profit share and a fall in the wage share, increasing the proportion of income arising from
ownership of assets, which is invariably distributed more unequaly than work income ... One
then need to explain why the functional distribution has changed in this way (Stewart, 2000, p.
16-18).
Para compreender, portanto, o movimento de crescimento da desigualdade na economia norteamericana é preciso explicar o movimento na distribuição funcional da renda46.
Observe-se que estamos considerando sempre ao longo do trabalho a distribuição da renda, e
não da riqueza. A priori isso não parcece um prejuízo para a análise uma vez que, segundo
Unctad (1997, p. 117), a riqueza das famílias 1% mais ricas caiu de 44% em 1929 para 20%
em 1972, e cresceu novamente para chegar a 34% em 1992. A desigualdade da riqueza parece
seguir portanto uma trajetória similar à da renda, caindo significativamente no período do
pós-guerra e crescendo fortemente nas duas últimas décadas.
3.1.3 Distribuição funcional da renda, política monetária e barganha salarial
A distribuição entre classes sociais é, sabidamente, tema central da economia política clássica.
Nos anos recentes, tem havido uma retomada da pesquisa teórica nesse campo procurando
46
fazer referência aqui ao processo de aumento da desigualdade intra-salarial]
152
estabelecer uma conexão entre questões monetárias e distributivas, principalmente devido à
contribuição de Pivetti (1991), desenvolvendo uma sugestão de Sraffa (1960).
“Wage bargaining and monetary policy are regarded as the main channels which class relations
act in determining distribution and those relations are seen as tending primarily to act upon the
profit rate, via the monetary rate of interest, rather than upon the real wage rate, as mantained by
both the classical economists and Marx. It seems to us that, in the conditions of modern
capitalism, it is difficult to conceive of the real wage rate as the independent os given variable in
the relationship beetween wages and profits” (Pivetti, 1991, p. 36).
Conforme procuramos sustentar em trabalho preliminar (Lara, 2006), o aumento referido na
parcela dos lucros pode ser atribuido: (a) às altas taxas reais de juros praticadas nos Estados
Unidos durante a década de 80; (b) ao processo de redução do poder de barganha dos
trabalhadores norte-americanos, iniciado já na década de 70, fortemente aprofundado no
início dos anos 80 e consolidado nos anos 90.
Enquanto, por um lado, as altas taxas de juros pressionavam os custos financeiros e de
oportunidade do capital das empresas, por outro a redução do poder de barganha dos
trabalhadores norte-americanos retirou-lhes possibilidade de reagir de forma decisiva,
impondo-lhes a necessidade de arcar com o peso do ajuste, resultando em aumento das
margens de lucro.
Ocorre, porém, que essa transformação distributiva parece ter começado, como vimos acima,
no final da década de 70 e início da de 80, um momento histórico de profunda transformação
estrutural na economia norte-americana e mundial, que corresponde ao final do perríodo de
transição entre o padrão ouro-dólar e o padrão dólar-flexível.
Tal transição foi acompanhada de um esforço para a estabilização do processo inflacionário
que caracteriza o final dos anos 60 e toda a década de 70. Nas seções seguintes, procuramos
mostrar as conexões entre o aumento da parcela dos lucros e essas transformações, que
envolvem essencialmente aspectos de política monetária e cambial, além de mudanças
institucionais e estruturais relativas ao processo de barganha salarial.
153
3.2. A Lucratividade do capital e o repasse dos custos aos preços
Mencionamos na seção anterior que, de uma forma geral, o movimento de elevação da parcela
dos lucros na renda pode ser atribuído à elevação das taxas reais de juros e ao
enfraquecimento do poder de barganha dos trabalhadores norte-americanos. Nesta seção,
procuraremos mostrar a conexão entre estes fatos e o processo de estabilização da inflação
que caracteriza a década de 70, período de transição entre o padrão ouro-dólar e o padrão
dólar-flexível. A condução da política monetária e as alterações nas condições de barganha
salarial nos Estados Unidos foram dois pilares importantes da estabilização dos preços e na
consolidação do novo padrão monetário.
3.2.1 Repasse parcial ou completo
Com base em um modelo de inflação por conflito distributivo, Setterfield (2007) analisa a
aceleração da inflação nos anos 70 e sua posterior estabilização de uma forma que em geral
pode ser considerada um tanto semelhante à nossa. Queremos chamar a atenção nessa seção,
porém, para o fato de que sua análise desconsidera um elemento importante.
Sua explicação para o que chama de um padrão de alternância entre baixa, alta e baixa
inflação (sendo o período de alta situado nos anos 70/80) toma como ponto de partida a
análise das condições institucionais e macroeconômicas através das quais o conflito sobre a
distribuição da renda se desenvolve. Mudanças periódicas destas condições afetam o conflito
distributivo e assim a inflação resultante.
“ ... institutions are not immutable – they can, and do, change over time. This change in the
institutional structure of the economy will give rise to (inter alia) change in the conditional
equilibrium rate of inflation. It is thus the institutional change that this paper seeks to associate
with the variations in the US inflation rate identified earlier” (Setterfield, 2007, p. 128-9).
A origem das variações na taxa de inflação está, portanto, nas alterações institucionais. Mais
especificamente, o autor atribui a diferença entre os padrões inflacionários mencionados: (a) à
154
ausência de “políticas de renda” nos anos 70, mesmo que tenha sido este o período em que
foram formalmente e explicitamente implementadas tais políticas, durante o governo Nixon;
(b) à presença de “políticas de renda” nos períodos anterior e posterior, que são radicalmente
diferentes em seu funcionamento, mas semelhantes no resultado.
“But the argument developed here is that the the low inflation episodes during recent US
macroeconomic history correspond precisely to the operation of two successful (in terms of their
capacity to reduce inflation) but structurally very different incomes policies, with the high inflation
interlude during the 1970s and 1980s – including the period that conventional wisdom identifies
with the brief and unsuccessful adoption of income policies – constituting and inter-regnum”
(Setterfield, 2007, p. 129).
Observe-se que sua concepção de “política de renda” é, portanto, bastante ampla. A expressão
é usada pelo autor para referir de uma forma genérica as instituições formais ou informais que
regulam o comportamento dos salários nominais e preços. Com base nesta estrutura
institucional é que a análise de Setterfield procura explicar, portanto, as altas taxas de inflação
dos anos 70 e início dos 80.
Em termos metodológicos, as seguintes proposições são consideradas como princípios
fundamentais do processo inflacionário: (i) o conflito sobre a distribuição da renda é central
para o processo de inflação; (ii) o poder de barganha dos trabalhadores na negociação salarial
e o poder de mercado das firmas nos mercados de bens são incompletos, ou seja, nenhum
deles consegue impor suas aspirações e expectativas sobre salários e preços; (iii) a barganha
se dá sobre o salário nominal e depois as firmas determinam os preços, portanto o salário real.
“These fundamentals, together with the institutional framework within which they are embedded,
allow us to identify three ‘regimes’ on which the analysis of inflation can be based. The wage and
price regimes identify the determinants of the rate of growth of nominal wages and prices,
respectively, in a manner consistent with the fundamentals of the inflation process identified
above” (Setterfield, 2007, p. 130).
Em termos gerais, concordamos com estes princípios, porém queremos chamar a atenção para
uma inconsistência entre o item (ii) e o modelo utilizado pelo próprio autor para analisar a
questão.
155
Este modelo é apresentado em sua forma mais geral por Lavoie (1992), conforme exposto no
capítulo anterior, em termos de duas equações, referentes às taxas de crescmento dos salários
nominais e dos preços.
w = a1 (ωW − ω ) + a 2 p
p = b1 (ω − ω F ) + b2 ( w − q)
Na equação dos salários nominais, Setterfield (2007) supõe que o coeficiente de repasse da
inflação esperada seja menor do que unidade (a2<1), sendo portanto consistente com os
princípios gerais indicados, mais especificamente, com o item (ii). Na equação dos preços, no
entanto, o autor supõe que o coeficiente seja igual à unidade (b2=1), contradizendo seu
próprio princípio geral de que “neither workers nor firms can fully index their expectations or
aspirations into wages and prices” (Setterfield, 2007, p. 130).
Já em meio à análise dos períodos, o autor menciona a possibilidade de que este repasse seja
incompleto, porém considera que isto não pode ser uma característica permanente do sistema,
mas apenas um regime de preços “transitório”, “where b2<1 captures the inability of firms to
fully index price inflation to the rate of growth of unit labour costs under the historically
specific conditions pervalent during the early 1970s” (Setterfield, 2007, p. 140-1, nota 27).
Observe-se que o repasse parcial do crescimento dos custos aos preços, que nas observações
metodológicas foi citado como um princípio geral da análise, neste trecho é referido como
uma hipótese relevante apenas para as condições históricas específicas do início dos anos 70.
Em outra passagem, menciona a pressão da concorrência externa como causa para esta
situação de repasse incompleto.
“Essentially what we are postulating is that globalization has an initial effect on firms (captured
by b2<1 in the ‘transitory’ price regime) that does not persist: as firms (aided by the state) find
ways of reducing a and/or ωW in the wage regime, this so moderates unit labour cost growth (w-q)
as to permit a return of the full indexing of the latter into p (i.e., b2=1)” (Setterfield, 2007, p. 143,
nota 33).
156
Ou seja, para este autor, depois desse período apenas transitório no qual a “globalização”
exercia seus efeitos, o repasse voltaria a ser completo porque as firmas (ajudadas pelo Estado)
conseguiram reduzir o salário real almejado pelos trabalhadores, moderando o crescimento
dos salários nominais.
Conforme já indicamos acima, parece haver uma clara inversão em relação àquilo que o autor
havia colocado como sendo o princípio geral e aquilo que constitui exceção. Ao invés de o
repasse parcial ser a regra geral e o repasse completo a exceção (quando a pressão da
concorrência externa ou a “globalização” fosse menos importante), a análise é baseada na
concepção contrária: o repasse completo é que é a regra geral, e o repasse parcial constitui a
exceção em momentos históricos em que a pressão da concorrência externa é muito elevada.
Observe-se ainda que, considerando-se apenas o grau de exposição à concorrência externa
como determinante para o grau de repasse, não seria muito fácil justificar porque o repasse
poderia ter voltado a ser completo nos anos 80, já que nesse período a economia norteamericana tornou-se mais aberta.
Em terceiro lugar, na última passagem citada o retorno à situação de repasse completo depois
do período de “transição” é atribuído também a uma alteração do salário desejado pelos
trabalhadores. Ou seja, argumenta-se que, uma vez que as demandas dos trabalhadores por
salários nominais são reduzidas, o repasse salarial poderia voltar a ser completo.
A nosso ver, não parece razoável associar tão diretamente os níveis salariais que os
trabalhadores almejam com a capacidade das firmas de repassar aos preços os aumentos de
custos. Em muitos casos, é exatamente a combinação entre uma aspiração salarial elevada por
parte dos trabalhadores e uma capacidade também elevada de repasse dos custos aos preços
que forma as condições para um processo de aceleração da inflação. Se, porventura, a partir
de uma dada situação com relação ao repasse parcial dos custos (coeficiente b2 fixo e menor
do que a unidade) a aspiração salarial fosse por alguma razão reduzida, de fato a inflação
157
também seria reduzida, porque as demandas por crescimento dos salários nominais seriam
menores. A princípio nada precisaria ocorrer com o grau em que o crescimento dos salários é
repassado aos preços, havendo mesmo assim conseqüências distributivas47.
Ocorre que a hipótese de que a regra geral seja o repasse parcial, podendo haver repasse
próximo do pleno em determinadas situações específicas, pouco ou nada prejudica ou
contraria a interpretação realizada por Setterfield (2007). Ao contrário, é a hipótese adotada
por esse mesmo autor que reduz a capacidade analítica do modelo utilizado, na medida em
que o próprio grau em que o repasse ocorre é um elemento importante para a determinação
não só da taxa de inflação, mas também do resultado distributivo vigente a cada período
histórico específico.
3.2.2 O coeficiente de repasse e o regime cambial
A questão acerca do grau de repasse dos custos aos preços foi investigada sob uma
perspectiva empírica por Sylos-Labini (1979). Labini considera separadamente os custos
salariais e os custos com matérias-primas, e procura estimar os coeficientes a e b na seguinte
equação econométrica:
Pˆ = aLˆ + bMˆ
onde L^ é a variação dos custos salariais e M^ a variação dos custos com matérias-primas.
Observe-se que os coeficientes a e b refletem não só as parcelas desses custos no custo total,
mas também o grau de repasse das variações desses custos sobre os preços. Eles podem ser
expressos na forma:
a = a’a’’
b = b’b’’
47
Observe-se inclusive que o mesmo grau de repasse do crescimento dos custos aos preços, associado a um
crescimento menor dos salários nominais determinaria uma taxa de inflação menor e uma margem real de lucro
maior.
158
onde a’ e b’ são as parcelas dos custos salariais e com matérias-primas, determinadas
fundamentalmente pela tecnologia. Por definição, a’+b’=1.
Já a’’ e b’’ correspondem a:
a ' ' = (1 + αˆ / Lˆ )
b' ' = (1 + αˆ / Mˆ )
onde α^ representa a variação de margem real decorrente de um repasse incompleto das
variações de custos L^ e M^. Observe-se que quando α^=0, então a’’=b’’=1 e assim a+b=1.
Isto significa que as variações de custos seriam totalmente repassadas os preços, de acordo
com as proporções determinadas por a’ e b’ (tecnologia). Mas Labini não considera ser este o
caso mais geral.
“Vale notar que os dois índices de variação a’’ e b’’ são iguais a 1 se o ‘mark-up’ α não varia
quando o custo direto varia, e é menor que 1 se, como parece ser a regra, o ‘mark-up’ cai
quando o custo direto sobe, e vice-versa” (Labini, 1979, p. 176, grifo nosso).
Esta afirmação deriva da estimação econométrica dos coeficientes a e b para alguns países
selecionados, entre eles os Estados Unidos no período 1948-1976, e os seguintes resultados
são reportados:
"Estudei variações de custos diretos e dos preços nas indústrias de transformação italiana e
americana, em particular, mas também considerei, ainda que marginalmente, o Reino Unido e a
RFA. .... Usei as taxas de variação e não os níveis absolutos, primeiro, para reduzir o risco de
colinearidade, mas, sobretudo, para poder julgar imediatamente o grau em que variações de
custos são transformadas em variações de preços. ... Excluindo-se o uso da equação para a
Argentina, em que a soma dos coeficientes é igual à unidade, em todos os outros casos parece que
alterações dos custos são apenas parcialmente repassadas como alterações de preços. A
proporção varia de 74%, no caso do Reino Unido, até 90% no caso dos EUA" (Labini, 1979, p.
156-158).
Segundo as investigações econométricas realizadas por Labini, portanto, a soma dos
coeficientes a e b é em geral menor do que a unidade, logo a situação normal é o repasse
apenas parcial dos custos aos preços. A principal justificativa dada por Labini para o repasse
159
parcial é também aquela mencionada por Setterfield (2007), ou seja, a pressão da
concorrência externa48.
Quaisquer forças (como custos de transportes, conhecimento de mercados, controles sobre os
canais de varejo, etc.) que impeçam a plena concorrência estrangeira
“podem permitir uma divergência, e mesmo uma crescente divergência, entre os preços dos
produtos domésticos e dos estrangeiros, ainda que tal divergência não possa ultrapassar certos
limites. Assim, a pressão da concorrência estrangeira tende a agir como um freio sobre o
repasse de variações de custos para os preços” (Labini, 1979, p. 158).
Para Labini, a menor pressão da concorrência externa no caso norte-americano é que explica
que a soma dos coeficientes estimados para este país seja mais alta em relação, por exemplo, à
Itália e ao Reino Unido. Ainda assim, a soma estimada é menor do que a unidade, indicando
que o repasse é apenas parcial no caso norte-americano. Observe-se que Setterfield (2007)
menciona que o repasse parcial poderia ser considerado uma situação “transitória” que
vigorava nos início dos anos 70 nos Estados Unidos, mas Labini (1979) indica que o repasse é
incompleto em todo o período 48-76, portanto já desde muito antes do período de “transição”
mencionado por Setterfield.
Além disso, como destacamos acima, não parece correto a princípio justificar um grau mais
elevado de repasse nos anos 80 se o determinante fundamental é o grau de exposição à
concorrência estrangeira, uma vez que neste foi nesse período que houve uma maior abertura
da economia norte-americana, havendo na verdade uma maior exposição a esta concorrência.
Ocorre que o argumento do grau de exposição à concorrência externa é sem dúvida
importante para questão do grau de repasse, mas há que se considerar um outro aspecto
intrinsecamente conectado, que é o regime cambial vigente.
Conforme já procuramos expor nos capítulos anteriores, em um sistema de taxas fixas de
câmbio, está claro que o crescimento dos custos no plano interno, se plenamente repassado os
48
Menciona também um argumento relativo à produtividade porém este é inconsistente com a teoria clássica da
renda e com a teoria do preço-limite do próprio autor, exposta em Labini (1964).
160
preços, transforma-se integralmente em perda de competitividade da produção doméstica em
relação à produção externa, uma vez que nesse caso os preços crescem também em moeda
estrangeira. Nesse sentido, quanto maior for a possibilidade de substituir a produção
doméstica por similares importados (portanto quanto mais forte for a pressão da concorrência
externa) maiores serão dificuldades de repassar as elevações de custos aos preços.
Em concorrência, o preço interno do produto exportável (Px) deve ser equivalente ao preço
externo convertido pela taxa nominal de câmbio.
PX = eP*
(1)
O preço de produção interno depende dos custos e da margem real
(1+m)CX = eP*
(2)
Se o preço externo P* está dado e o câmbio nominal é fixo, o crescimento dos custos no plano
interno tem de ser compensado por uma queda da margem real para manter a igualdade entre
o preço interno e o preço externo. Desse modo, não se pode esperar que o repasse do
crescimento dos custos às margens nominais seja completo, a não ser que as condições do
balanço de pagamentos sejam tais que seja possível a redução da competitividade das
exportações sem maiores conseqüências.
Portanto, quanto maior for a exposição da produção doméstica à concorrência externa, maior
a importância da estabilidade dos custos internos para a manutenção da lucratividade do
capital. Em outras palavras, havendo crescimento dos custos domésticos com taxa fixa de
câmbio, estabelece-se um trade-off entre a margem real e a competitividade externa. A
pressão para não perder mercados externos diante de um crescimento dos custos domésticos
tende a determinar que, se isto ocorrer, o repasse aos preços seja apenas parcial, determinando
reduções das margens reais.
Este parece ser o fundamento, portanto, para a ausência de repasse completo durante todo o
período de vigência do acordo de Bretton Woods, em que as taxas de câmbio eram fixas.
161
Observe-se que a maior parte do período que compõe a amostra de Labini (1979) está sob a
vigência desse regime cambial.
Observe-se que, nas estimativas deste autor, o grau de repasse em países como a Itália e a
Inglaterra eram menores do que nos Estados Unidos, devido à maior exposição desses países à
concorrência externa. Conforme indicamos acima, quanto maior o grau de repasse, maior a
perda de competitividade diante do crescimento dos custos domésticos, e de fato, é notória e
perda de competitividade dos Estados Unidos ao longo deste período.
Por outro lado, quando a taxa de câmbio não é fixa, o crescimento dos custos em moeda
doméstica pode ser compensado por desvalorizações da taxa nominal de câmbio, que reduzem
o efeito em termos de moeda estrangeira. Os custos de produção de uma mercadoria
exportável em moeda doméstica podem ser expressos como
CX = axP + lxw + fxeP*
(3)
Substituindo (3) em (2), obtemos a seguinte expressão para a margem real:
(1 + m) =
P*
a x ( P / e) + l x ( w / e) + f x P *
(4)
Observa-se, por esta expressão, que a princípio um crescimento proporcional dos salários
nominais (w) e do preço dos insumos domésticos (P) pode ser compensada completamente
por uma desvalorização nominal do câmbio (e) que mantenha inalteradas as razões (P/e) e
(w/e), que expressam os preços dos insumos e salários em moeda estrangeira.
Assim, dada a tecnologia (coeficientes a, l, f) e o preço da produção externa (P*), a margem
real de lucro sobre a produção de bens comercializáveis permaneceria, neste caso, inalterada.
Este ponto é mencionado por Sylos-Labini (1979).
“A tendência das margens de lucro a cair, como conseqüência do crescimento dos custos, pode
ser remediada por meio de uma desvalorização da unidade monetária, o que aumenta o ‘teto’
estabelecido pelo preço da produção externa de bens competitivos. Mas, num país que importa
uma grande proporção de suas matérias-primas e que tem sindicatos muito fortes, o aumento dos
lucros tem vida curta, pois qualquer crescimento adicional dos preços é rapidamente seguido por
um crescimento adicional dos custos, especialmente se há um mecanismo de indexação dos
salários, como a escala móvel na Itália, que é disparada a curtos intervalos. A lucratividade
162
sempre pode ser recuperada se a unidade monetária é novamente desvalorizada, mas isso pode
causar uma progressiva aceleração do processo inflacionário, o que gera uma redistribuição de
renda dentro da mesma classe de renda (por exemplo, entre o mercado de trabalho oficial e o
negro) e aumenta as tensões sociais” (Labini, 1979, p. 173).
Suponha portanto que a origem do crescimento dos custos seja uma elevação dos salários
nominais (w^>0), que por hipótese seja plenamente repassada ao nível de preços doméstico,
(p^=w^), e que a elevação dos custos de produção do bem exportável em moeda doméstica
fosse compensada por uma desvalorização nominal correspondente (e^=p^=w^), mantendo
inalteradas as margens de lucro na produção desses bens.
Ha que se considerar as conseqüências inflacionárias desta desvalorização cambial como
forma de resistência da margem real a elevações de custos domésticos. É preciso considerar,
por exemplo, que se os salários nominais estão crescendo a uma taxa w^ sem que isto
determine elevação do salário real, é muito provável que os trabalhadores passem a negociar
taxas ainda maiores, procurando manter uma razão w/e mais elevada. Neste caso seriam
necessárias desvalorizações cada vez maiores da taxa de câmbio, determinando uma taxa de
inflação cada vez maior, como menciona Labini na passagem citada acima.
Em segundo lugar, a desvalorização do câmbio nominal configura uma segunda pressão de
custos para o setor que produz os insumos domésticos não comercializáveis, além do
crescimento dos salários nominais. Dependendo da importância deste efeito e da capacidade
de repasse dos custos aos preços neste setor, também a razão P/e pode ser pressionada para
cima, exacerbando também o efeito inicial.
Diante destas considerações, portanto, a inflação resultante depende: (a) do grau em que uma
desvalorização cambial afeta os custos domésticos; (b) do grau em que as demandas de
salários nominais são persistentes e não se adaptam ao resultado distributivo determinado pelo
processo de desvalirização cambial que mantém a margem de lucro inalterada.
No que diz respeito ao item (a), o caso norte-americano caracteriza-se por um efeito pequeno
por dois motivos: um é o fato de que a economia norte-americana produz uma parte
163
significativa das matérias-primas que consome, e o outro é o fato de que boa parte dos
insumos que são importados (como o petróleo) já são negociados em dólar, portanto os custos
internos dependem essencialmente dos preços destas matérias-primas, mas não diretamente da
taxa de câmbio49.
No que diz respeito ao item (b), no caso dos Estados Unidos este efeito também foi sempre
bastante menor na comparação, por exemplo, com os países europeus, onde os sindicatos
atingiram um poder de barganha maior ao longo da era de ouro. Não se pode dizer, porém,
que não houvesse algum grau importante de resistência salarial ao menos nos anos iniciais da
década de 70, quando a moeda norte-americana passou a desvalorizar, de modo que este será
um fator fundamental a ser considerado na análise da inflação norte-americana do período.
Parece ter sido exatamente neste período que a capacidade de resistir a reduções de salário
real começou a ser reduzida nos Estados Unidos.
Nos anos 80, entretanto, uma transformação significativa ocorreu de forma muito mais clara,
com respeito a este aspecto. O poder de barganha dos trabalhadores norte-americanos, assim
como dos trabalhadores de todos os países desenvolvidos, foi significativamente reduzido.
Isto determinou não só o desaparecimento da capacidade de resistir a perdas reais decorrentes
de um processo inflacionário importante, mas uma situação em que baixas taxas de inflação
eram acompanhadas de reduções reais de salários.
Para os propósitos desta seção, no entanto, o essencial a destacar é que, no caso de taxas fixas
de câmbio, o caso geral é sem dúvida o repasse incompleto dos custos aos preços. No caso de
câmbio flexível, o repasse do crescimento dos custos domésticos aos preços dos bens
exportáveis é facilitado por desvalorizações cambiais, uma vez que isto eleva as receitas de
exportação em moeda doméstica, para um dado preço em moeda estrangeira.
49
Alguns autores (como Schulmeister) supõe uma conexão direta entre a desvalorização do câmbio norteamericano e os preços das matérias-primas negociadas em dólar. Serrano (2004) discorda da generalidade desta
relação.
164
Dependendo, porém, da magnitude do efeito resultante da desvalorização cambial sobre os
custos internos e do grau de resistência salarial dos trabalhadores, isto pode desencadear
novas rodadas de crescimento dos custos internos, novas desvalorizações e um processo de
aceleração da inflação.
Com destacamos, no caso norte-americano este efeito foi sempre mais reduzido em relação
aos países europeus, pela menor proporção de matérias-primas importadas, pelo fato destas
serem negociados em dólar e pela menor capacidade de reação dos sindicatos na comparação
com os países europeus. Neste aspecto, portanto, pode-se considerar que a flexibilização da
taxa de câmbio a partir de 1971 gerou condições para um grau mais elevado de repasse do
crescimento dos custos domésticos aos preços, ainda que ao custo de taxas mais elevadas de
inflação em relação à década anterior.
Observe-se, porém que é exatamente o início dos anos 70 o período mencionado por
Setterfield (2007) como sendo a “transição” ou seja, o período em que este autor supõe que o
repasse teria sido parcial. Até aqui, argumentamos que a restrição fundamental ao repasse até
1971 (ao lado da exposição à concorrência externa) tenha sido a rigidez da taxa de câmbio,
que desapareceu a partir do rompimento da paridade. A partir desse momento histórico,
portanto, é preciso acrescentar um terceiro elemento para justificar o repasse parcial.
Nesta seção procuramos destacar a importância do o regime cambial para a questão do
repasse do crescimento dos custos aos preços. Com câmbio fixo, o repasse é restrito pela
exposição à concorrência externa, e isto justifica os resultados empíricos de Labini (1979)
para o período 48-71. A partir do rompimento da paridade e da desvalorização do dólar, a
restrição externa ao repasse pode ter sido reduzida, mas as margens de lucro passam a ser
balizadas pelo custo de oportunidade do capital, e portanto, pela condução da política
monetária. No caso norte-americano, ao longo dos anos 70 a condução da política monetária
165
não permitiu que o repasse fosse significativamente elevado. Trataremos deste ponto com
mais profundidade na próxima seção.
3.2.3. Margens de lucro e política monetária
Como argumentamos o abandono da paridade do dólar a partir de 1971 determinou que a
restrição externa ao repasse foi reduzida, mas não que o repasse tenha de fato se tornado
completo neste período, porque há um terceiro aspecto fundamental para a determinação da
resistência da margem real ao crescimento dos custos. Para que o repasse completo ocorra (e
portanto a resistência da margem real seja plena), tem de haver uma correção periódica das
margens nominais, de modo a antecipar a elevação dos custos, ou alternativamente uma
redução da periodicidade em que os custos são avaliados e que a margem nominal é aplicada
para formar os preços.
De acordo com a hipótese sraffiana desenvolvida por Pivetti (1991), o nível em torno do qual
as margens de lucro são balizadas está relacionado ao custo de oportunidade do capital, que
depende das taxas reais de juros praticadas pela autoridade monetária. Portanto, o grau de
resistência das margens reais a um processo de crescimento dos custos domésticos está
relacionado (mesmo em um cenário de desvalorizações cambiais que relaxam a restrição
decorrente da perda de competitividade externa) ao comportamento da autoridade monetária
no sentido de manter um determinado nível de retorno para os títulos públicos.
As taxas reais de juros norte-americanas tiveram, em média, o seguinte comportamento:
Tabela 3.2. Taxas reais médias de juros
Período
Década de 60
Década de 70:
Década de 80:
Década de 90:
Taxa média de juros
2,26%
0,14%
4,69%
2,64%
Fonte: Epstein & Power (2003)
Esse dado indica que as taxas nominais de curto prazo descontadas da inflação foram em
média muito reduzidas na década de 70. Isto significa que neste período as aplicações em
166
títulos norte-americanos proporcionaram em média um rendimento nominal pouco maior do
que a inflação.
Como o grau de repasse do crescimento dos custos aos preços depende do grau em que as
margens nominais são reajustadas, de modo a manter uma determinada lucratividade real, o
fato de que a taxa nominal de juros não proporcionava rendimentos muito superiores à
inflação inibia a correção das margens aplicadas sobre o capital produtivo. Isto porque, em
concorrência, se em uma determinada aplicação do capital as margens nominais fossem
reajustadas de modo a proporcionar uma rentabilidade superior (descontado o diferencial de
risco) àquela que corresponde ao rendimento dos títulos públicos, abre-se uma oportunidade
para transferir o capital aplicado em títulos públicos para esse setor produtivo. Para evitar que
os mercados em que atuam sejam tão atrativos a novos investimentos concorrentes, as firmas
acabam reajustando suas margens nominais de modo a manter um alinhamento com a
rentabilidade real dos títulos públicos.
O grau de repasse do crescimento dos custos aos preços depende, portanto, do grau em que as
taxas nominais de juros praticadas pela autoridade monetária são reajustadas de modo a
compensar as taxas de inflação. Já indicamos que ao longo da década de 70 as taxas reais de
juros praticadas nos Estados Unidos eram bastante baixas. O gráfico abaixo indica que além
de serem em média reduzidas, estas taxas eram oscilantes e, em três oportunidades (1974,
1975 e 1979) alcançaram valores negativos.
167
Gráfico 3.3 – Evolução da taxa real de juros
12
10
8
6
4
2
20
06
20
04
20
02
20
00
19
98
19
96
19
94
19
92
19
90
19
88
19
86
19
84
19
82
19
80
19
78
19
76
19
74
19
72
19
70
19
68
19
66
19
64
19
62
19
60
19
56
19
58
0
-2
-4
Fontes: FED; Bureau of Labour Statistics (www.bls.gov)
Esse gráfico mostra a taxa real de juros medida como diferença entre a taxa nominal (bank
prime loan) e a taxa de inflação (variação anual do cpi de dezembro a dezembro). Como se vê,
durante os anos 70 em três oportunidades esta taxa nominal não foi superior à taxa de
inflação, e em apenas duas oportunidades ultrapassou 2%50.
À primeira vista, isto poderia levar a concluir que tais oscilações derivam de um
comportamento da autoridade monetária que desconsiderava as oscilações da taxa de inflação
para fixar a taxa nominal de juros, resultando assim em oscilações da taxa real. O gráfico
abaixo mostra, porém, que este não é o caso, uma vez que as oscilações da taxa nominal de
juros são bem próximas das oscilações na taxa de inflação.
50
Os níveis da taxa real de juros a cada momento seriam diferentes caso consideradas taxas nominais referentes
a diferentes tipos de títulos, mas tais diferenças seriam relativamete pequenas e a tendência de oscilação é
semelhante em todas as taxas. Em geral todas passam a assumir níveis mais altos e maior volatilidade a partir do
final dos anos 60.
168
Gráfico 3.4 Evolução das taxas nominais de juros e da taxa de inflação
20
18
16
14
12
10
8
6
4
2
Juro nominal (bank prime loan)
20
06
20
04
20
02
20
00
19
98
19
96
19
94
19
92
19
90
19
88
19
86
19
84
19
82
19
80
19
78
19
76
19
74
19
72
19
70
19
68
19
66
19
64
19
62
19
60
19
58
19
56
0
Inflação (CPI)
Fontes: FED; Bureau of Labour Statistics (www.bls.gov)
Observe-se que a taxa nominal de juros passa a acompanhar o movimento da taxa de inflação
a partir do final dos anos 60, mantendo-se na maior parte das observações pequenas
diferenças positivas e determinando, portanto, taxas reais positivas. Nas três oportunidades
mencionadas em que a taxa real foi negativa, o reajuste da taxa nominal também ocorreu,
porém não em magnitude suficiente51.
Ocorre que o rendimento dos títulos norte-americanos têm papel fundamental não só para os
Estados Unidos mas para todos os demais países. Durante todo o período de vigência do
acordo de Bretton Woods, o dólar manteve uma paridade fixa com o ouro e as demais
moedas, e os títulos públicos denominados nesta moeda eram a principal forma de
manutenção de reservas dos demais bancos centrais. Os dados indicados acima mostram que
51
Observar que os anos em que as taxas nominais não foram reajustadas em magnitude suficiente para
determinar juros reais negativos, segundo esta conta, são exatamente os anos dos choques dos preços do
petróleo.
169
ao longo dos anos 60, por exemplo, estes títulos rendiam taxas reais positivas em média
superiores a 2% ao ano, uma remuneração livre de qualquer risco.
Nos anos 70, a situação muda radicalmente porque o dólar passa a desvalorizar e a
rentabilidade dos títulos públicos denominados nesta moeda passa a apresentar oscilações,
caindo a níveis negativos em algumas oportunidades. Sua função como forma de manutenção
de reservas torna-se, portanto altamente questionável. Tais condições contribuíram para o
aumento da especulação em commodities, um fator importante para o aumento da volatilidade
dos preços das matérias-primas no período.
Voltando, porém, ao quadro da situação doméstica norte-americana, o essencial a destacar é a
ausência, neste período, de uma política monetária que mantivesse o custo de oportunidade do
capital a um nível minimamente estável e protegido das flutuações da taxa de inflação. Neste
quadro, a correção das margens nominais de modo a antecipar os movimentos dos custos (ou
o encurtamento dos intervalos entre decisões de pricing) ficava restrita pois, se realizada em
um setor específico, elevaria a rentabilidade desse setor e atrairia investimentos concorrentes.
Nestas condições, portanto, por motivos diferentes dos da década de 60, o repasse do
crescimento dos custos aos preços seguiu sendo apenas parcial.
Tal hipótese, como destacamos acima, é consistente com os princípios metodológicos
mencionados por Setterfield (2007), mas diferente do que é suposto pelo mesmo autor em sua
análise. Para este autor, o repasse parcial foi uma característica específica dos anos iniciais da
década de 70. Em nosso entendimento, porém, no período anterior, em que vigorava um
sistema de taxas fixas de câmbio, a hipótese de que o repasse seja incompleto também é
válida, com a diferença que os custos não cresciam tanto quanto cresceram na década de 70,
havendo, portanto taxas de inflação mais baixas. Nos anos 70 o que ocorre é que o repasse
incompleto do crescimento dos custos aos preços torna-se mais visível, porque os preços das
matérias primas passam a crescer rapidamente.
170
O quadro se modifica completamente, porém, a partir de 1979, quando a orientação da
política monetária norte-americana é modificada.
“A posse de Paul Volcker no FED em 1979, ainda no governo Democrata de Jimmy Carter,
sinalizou o início da virada conservadora nos EUA. Decidido a estabilizar o sistema Volcker
desistiu de tentar coordenar a política em conjunto com os demais países industrializados, pois
estes constinuavam insistindo na tese de que deveria haver mudanças no que hoje se chama de
‘arquitetura do sistema monetário financeiro internacional’, com o objetivo de reduzir o papel
assimétrico do dólar. Pouco depois do segundo choque do petróleo, Volcker elevou a taxa de juros
americana unilateralmente, inaugurando um período histórico de taxas de juros reais elevadas”
(Serrano, 2004, p. 202).
Como procuramos indicar acima, a situação dos anos 70 implicava uma situação inédita no
sentido de que a moeda norte-americana desvalorizava, os títulos públicos norte-americanos
por vezes rendiam taxas reais negativas, sem que surgisse uma forma alternativa de manter
reservas que substituísse a antiga, apesar de pressão dos demais países centrais para a
reorganização do sistema.
Em meio às negociações entre os países industrializados para reconstruir o sistema de um
modo que retiraria dos Estados Unidos as vantagens de exercer a função de “banco central
internacional”, este país alterou unilateralmente sua política monetária, elevou drasticamente
suas taxas de juros.
Observe-se pelo gráfico acima que, partindo de um nível negativo em 1978-9 a taxa real de
juros atinge um pico de cerca de 11% em 1982. Os demais países foram obrigados
acompanhar este movimento, elevando suas taxas de juros para evitar uma desvalorização
descontrolada de suas taxas de câmbio. Ainda assim, o efeito da brusca mudança da política
monetária norte-americana acabu sendo a reversão da tendência das taxas de câmbio,
começando um período de valorização do dólar que dura até 198552.
Obviamente, esta atitude teve repercussões drásticas para toda a economia mundial, como a
crise da dívida do terceiro mundo e a reversão da tendência dos preços de matérias-primas,
52
Observar que o período é marcado também pela reversão da tendência dos preços de matérias-primas, que
passam a cair.
171
que passam a cair a partir de então. Porém novamente queremos chamar a atenção para os
efeitos sobre a situação doméstica norte-americana e, em especial, para sua influência sobre as
margens de lucro praticadas.
Em primeiro lugar, parece certo supor que essas altas taxas reais de juros tenham elevado o
custo dos empréstimos do setor privado. Se, por hipótese, diante de um quadro generalizado
de altas taxas de juros, as empresas não pudessem aumentar as suas receitas, a elevação dos
custos de empréstimos estaria reduzindo sua rentabilidade, e estaria havendo, nesse caso, uma
transferência de renda dos proprietários de capital investido na produção para os proprietários
do capital financeiro, como relata a UNCTAD:
“The rise in interest rates has also been a key factor in the increase in the interest payments as a
proportion of value added in the corporate sector. The immediate effect of financial
liberalization in the 1980s was the squeeze profits by pushing up the cost of capital and
transfering a greater part of corporate incomes to rentiers. Thus, the rise in interest rates and
the share of interest in national income were initially reflected in a redistribution of property
income from profits to rentiers” (UNCTAD, 1997, p. 147).
À primeira vista, isto poderia levar a concluir que a manutenção de altas taxas reais de juros
na década de 80 tenha sido uma situação favorável apenas aos rentistas (no sentido de
proprietários de ativos financeiros), e desfavorável aos capitalistas (no sentido mais específico
de proprietários de ativos reais produzidos), uma vez que estes passaram a arcar com maiores
custos financeiros para viabilizar a produção. O relatório da UNCTAD acrescenta, porém, que
a compressão mencionada dos lucros não teria sido permanente, mas apenas temporária.
“However, mark-ups in trade and industry typically respond to sustained increases in interest
rates in the same way as they respond to changes in other costs. Since, under financial
liberalization, interest rates adjust rapidly to changes in the price level, mark-up pricing implies
that the greater interest burden tends to be shifted onto labour. There is indeed evidence from
some countries that the redistribution of income in favour of the rentiers has been in expense of
labour” (UNCTAD, 1997, p. 147-8, grifo nosso).
Essa passagem atesta, portanto, que o comportamento normal é o repasse dos maiores custos
financeiros de modo a não prejudicar a rentabilidade dos setores produtivos. O peso do ajuste,
portanto, tende a recair sobre os salários.
172
Analisando um período de tempo mais longo, Epstein & Power (2003) também sustentam que
o ajuste requerido pela elevação da parcela dos rentistas (que de fato ocorreu) não recaiu
sobre a parcela dos lucros.
"... there is very little evidence that increases in rentier shares have come at the expense of profit
shares accruing to non-financial corporations. This suggests that, in the current period, there is a
material basis for unity, rather than rivalry, between industrial and financial capital ... 'if the
1980's and 1990's were the decades of the rentier, in most countries the non-financial
corporations did not have to foot the bill" (Epstein & Power, 2003, p. 4-6)
Segundo os dados fornecidos por Epstein & Power (2003, p.11), a parcela do PIB norteamericano apropriada pelos rentistas foi de 22,47% em média na década de 70, e subiu para
38,26% em média na década de 80. Já a parcela dos lucros de setores não-financeiros era em
média 10,65% do PIB nos anos 70 subiu para uma média de 12,18% nos anos 80. Um
crescimento muito menos pronunciado, portanto, mas é um crescimento que atesta a
inexistência de rivalidade entre os setores não-financeiros e os rentistas no que diz respeito à
prática de altas taxas reais de juros. O gráfico abaixo mostra o comportamento dessas
parcelas.
Gráfico 3.5 Parcela dos rentistas e parcela dos lucros não financeiros
173
Fonte: Epstein & Power (2003).
Como fica visível no gráfico acima, a parcela dos rentistas de fato apresenta uma elevação
muito pronunciada nos anos 80, seguida pela parcela dos lucros do setor financeiro. Há
também, entretanto, uma elevação da parcela dos lucros de setores não-financeiros que,
embora visivelmente menos pronunciada, também está em sincronia com o período da alta
dos juros reais. Não parece haver base, portanto, para supor que a elevação das taxas de juros
tenha sido favorável apenas para os proprietários de ativos financeiros, e desfavorável para os
proprietários de ativos empregados na produção.
" ... there is no clear negative relationship between non-financial corporate income share and
rentier income share... the data suggest that when rentier income shares increase, they do not
come at the expense of nonfinancial corporate shares... there appears to be no material basis
evident in these data for a political division between rentiers and non-financial capitalistas in
these particular countries53" (Epstein & Power, 2003, p. 6).
Estas considerações parecem corroborar, portanto, o acerto da opção analítica de Wolff &
Zacharias (2007) ao considerar de forma agregada uma classe de proprietários, unificando
capitalistas e rentistas em uma só categoria para efeito da análise da distribuição funcional da
renda. A ausência de rivalidade entre o setor produtivo e o setor financeiro deriva do fato de
que maiores custos financeiros são repassados pelo setor produtivo aos preços de forma
idêntica ao que ocorre com os custos em geral.
Observe-se adicionalmente que as evidências apresentadas sobre esse movimento distributivo
parecem uma clara aproximação empírica da relação teórica estabelecida por Pivetti (1991).
Na medida em que não só os custos financeiros, como também o custo de oportunidade do
capital tenha sido elevado de forma permanente, as margens reais almejadas por todos os
setores de atividade também cresceram.
Observe-se a diferença entre uma situação em que as taxas reais de juros encontram-se nesses
altíssimos níveis dos anos 80, no que diz respeito à capacidade de repasse do crescimento dos
53
Indicar os países analisados além dos eua em Epstein & Power (2003).
174
custos aos preços. Como argumentamos antes, quanto os custos apresentam tendência
crescente, mas a atratividade dos títulos públicos é baixa, a correção das margens nominais
para antecipar o crescimento dos custos é inibida, porque as firmas não desejam a realização
de investimentos concorrentes em seus mercados, atraídos por uma lucratividade que não
esteja em linha com o baixo custo de oportunidade do capital.
Na medida em que os títulos públicos voltam a ser uma aplicação altamente lucrativa,
aumenta a possibilidade de correção das margens nominais em antecipação a aumentos de
custos, uma vez que boa parte dos fundos disponíveis para investimentos estará sendo
direcionada para este tipo de aplicação sem risco.
Observe-se adicionalmente que a primeira passagem citada do relatório da UNCTAD destaca
que, sob as novas condições de liberalização financeira, as taxas de juros adaptam-se
rapidamente a mudanças no nível de preços. Como argumentamos acima, esta característica
parecia já estar presente na década de 70, porém a diferença crucial dos primeiros anos da
década de 80 foi que as taxas nominais passaram a ser reajustadas muito acima da inflação,
garantindo altas taxas reais. O gráfico com as taxas nominais de juros e a taxa de inflação
norte-americana mostra que estas taxas andavam muito próximas até 1979. Já em 1980, o
gráfico mostra uma inflação em queda e uma taxa nominal que segue subindo. Nos anos 90,
os juros nominais passam a cair, porém em ritmo mais lento do que a redução a inflação,
fazendo com que as taxas reais permaneçam em média maiores do que as da década de 60.
Procuramos argumentar nessa seção, portanto, que além do grau de exposição à concorrência
externa e do regime cambial, a questão do repasse dos custos aos preços depende
fundamentalmente da forma como é conduzida a política monetária. Se as taxas reais de juros
são mantidas a níveis baixos, como ocorreu nos anos 70, a correção das margens nominais de
modo a antecipar o crescimento dos custos é inibida, e assim a resistência da margem real é
baixa. Se as taxas nominais de juros são reajustadas de modo a manter taxas reais elevadas,
175
como nos anos 80, cresce a possibilidade de corrigir as margens nominais de modo a
antecipar o crescimento dos custos, aumentando assim a resistência das margens reais.
Embora este aspecto não seja observado nem por Setterfield (2007) nem por Labini (1979), é
notável que o período de crescimento mais acentuado da parcela das rendas de capital (de
1979 a 1984 conforme o gráfico acima) coincida quase que exatamente com a escalada da
taxa real de juros. Isto foi possivelmenteo resultado tanto de um crescimento menos
acentuado dos custos quanto de um grau de repasse mais elevado.
Pivetti (1991) adverte para a dificuldade de analisar uma variável como a taxa de lucro sob
uma perspectiva empírica e/ou estatística, uma vez que a discussão teórica refere-se não à taxa
efetiva de lucro, mas sim à taxa normal de lucro, “the rate of return on capital which would
be obtained by firms using dominant or generally accessible techniques, and producing
output at levels regarded as normal at the time the capacity was installed” (Pivetti, 1991, p.
20).
Ainda assim, parece possível avaliar empiricamente se, em ocasiões em que as taxas reais de
juros são drasticamente alteradas, como foi o caso, o retorno do capital apresenta alteração no
sentido previsto pela teoria. E o que se vê pelos dados apresentados parece indicar que a
elevação da taxa de juros determinou de fato uma elevação da taxa de lucro normal na
economia norte-americana.
3.3. Poder de barganha e salários
Se a elevação da parcela dos rentistas não foi compensada, e ao contrário, foi acompanhada de
elevação das margens de lucro e da parcela dos proprietários como um todo, sua contrapartida
só poderia ser a redução da parcela dos rendimentos salariais. Na seção anterior,
argumentamos que as margens reais praticadas nos Estados Unidos apresentavam pouca
176
resistência ao crescimento dos custos até o fim da década de 70, quando a inversão da política
monetária norte-americana elevou a capacidade de correção das margens nominais.
Já observamos também que em si isto não poderia resultar em redução das taxas de inflação,
fato também verificado a partir do início dos anos 80. Pelo contrário, dada uma determinada
situação de barganha dos trabalhadores (em termos de sua capacidade de repassar elevações
do custo de vida aos salários nominais e de exercer sua insatisfação com a situação
distributiva também em termos de elevação dos salários nominais) uma elevação da
resistência da margem real poderia aumentar estas margens somente somente ao custo de uma
taxa de inflação mais alta, devido ao acirramento do conflito distributivo.
Quanto ao grau de resistência salarial dos trabalhadores norte-americanos, embora este fosse
historicamente menor do que nos países europeus, ainda sofreu significativa redução ao longo
da década de 80. Este aspecto, junto com a inversão da tendência dos preços das matériasprimas, que caem significativamente após o choque dos juros (possivelmente devido à atração
para aplicação em títulos norte-americanos grandes somas de capital até então aplicadas em
estoques especulativos de matérias-primas), é fundamental para compreender a redução das
taxas de inflação da década de 80 na comparação com a década anterior. Nesta seção
trataremos deste ponto.
3.3.1 Queda da parcela salarial
Antes de analisar o que ocorreu com os salários e o padrão de vida dos trabalhadores neste
período, parece necessário mencionar a discussão a respeito de como medir tais variáveis.
“Superficially, labor’s share is straightforward to measure: divide total compensation of workers
by national income. But this recipe glosses over several tricky issues. In particular, who is a
worker? Should CEOs and business owners be included? What is included in compensation?
Should the corporate officers’ stock options count as labor earnings? Is the return to investment in
human capital counted as labour or capital income? How should retired workers who receive
continuing health insurance coverage be trated?” (Krueger, 1999. p. 1).
Um dos agregados importantes para esta discussão é portanto o referido “total compensation”,
que inclui além dos salários propriamente ditos uma série de benefícios não salariais, como
177
seguro de vida, seguro desemprego, pensões, participação nos lucros, planos de
aposentadoria, seguros saúde e outros (Nilsson, 1999).
Alguns estudos empíricos sustentam que um suposto crescimento desses benefícios teria
contrabalançado a queda dos rendimentos salariais, de modo que não teria havido queda
significativa do padrão de vida dos trabalhadores norte-americanos a partir dos anos 80.
Nilsson (1999), porém, argumenta que na verdade isso não ocorreu. Os rendimentos salariais
apresentaram uma queda de 12,5% entre 1978 e 1995, e mesmo medido pelo conceito de
“compensation” teria havido queda de 13,5%.
Utilizando o conceito de “raw labor share” (o que significa?), outro trabalho também mostra a
mudança de tendência nos anos 80 e 90. “The results ... suggest that raw labor’s share of wage
and salary income increased between 1939 and 1959, remained fairly stable between 1959
and 1979, and then fell in the 1980s and 1990s” (Krueger, 1999, p. 9).
Na verdade, parece que tentativas de minorar a magnitude desse processo são tentativas de
esconder uma verdade bastante dura para os trabalhadores norte-americanos. “Referring to
these trends since the early 1970’s as ‘the wage squeeze’ is polite understatement calling it the
‘wage collapse’ might be more apt” (David Gordon, citado por Nilsson, 1999, p. 133).
Outro economista integrante da família Gordon é bem menos contundente nesta afirmação, e
de fato prefere afirmações mais polidas, embora os seguintes dados apresentados em um de
seus trabalhos corroborem a hipótese de que houve queda da parcela dos salários
especialmente no período 79-97.
Tabela 3.3 Diferenças entre o crescimento anual da produtividade e do salário real
72-79
79-87
87-97
97-01
01-05
Produto por hora
1,57
1,36
1,32
2,10
2,78
Salário real por hora
1,51
1,24
1,07
3,60
2,02
Parcela dos salários
-0,06
-0,12
-0,25
1,49
-0,77
Fonte: Tabela 1 em Dew-Becker & Gordon (2005)
178
Por essa tabela se percebe que os períodos em que a taxa de crescimento do salário real foi
menor do que a taxa de crescimento da produtividade foram 72-79, 79-87, 87-97 e 01-05. Em
todo o longo período 1972-2005, portanto, a única exceção é o subperíodo 97-01. Em todos
os demais, os dados indicam queda na parcela dos salários.
Considerando as diferenças entre o setor privado (NFPB) e o restante da economia “we can
see that after 1987 residual productivity growth slowed down while NFPB productivity
growth increased, accounting for the growing gap between the total economy and the NFPB
sector” (Dew-Becker & Gordon, 2005, p. 10).
Tabela 3.4 Variação da parcela dos salários entre os setores
72-79
79-87
87-97
97-01
01-05
NFPB
-0,13
-0,55
-0,53
1,64
-1,58
Demais setores
-0,06
1,16
0,64
1,09
1,97
Toda a economia
-0,06
-0,12
-0,25
1,49
-0,77
Fonte: Tabela 1 em Dew-Becker & Gordon (2005)
Portanto, considerando-se os mesmos quatro subperíodos de valor negativo para a diferença
entre crescimento da produtividade e salário real, mas observando apenas o setor privado, as
quedas da parcela dos salários são ainda mais consideráveis, tendo sido parcialmente
compensadas pela evolução dos demais setores, em que a parcela aumenta em todos os
subperíodos com exceção de 72-79.
O fundamental a partir desses dados parece ser, portanto, o fato de que houve queda da
parcela dos salários no setor privado (especialmente no período 79-97), embora isto não
apareça de forma tão clara na economia como um todo, devido ao movimento no sentido
oposto nos demais setores.
179
Gráfico 3.6 - Índice de salário real
115
110
105
100
95
20
06
20
04
20
02
20
00
19
98
19
96
19
94
19
92
19
90
19
88
19
86
19
84
19
82
19
80
19
78
19
76
19
74
19
72
19
70
19
68
19
66
19
64
90
Fonte: Elaboração própria com dados do Bureau of Labour Statistics (www.bls.gov)
O gráfico acima mostra o comportamento de um índice de salário real construído a partir da
evolução dos salários nominais para o total do setor privado e a evolução do CPI. Subtraindo
da taxa de variação dos salários nominais w^ a taxa de variação dos preços p^ obtém-se a taxa
de variação v^ do salário real. Tomando como base o ano de 1964 e aplicando essas taxas de
variação temos um índice de salário real (1964=100). O resultado é, em linhas gerais, um
salário real crescente de 1964 a 1972, decrescente de 1972 a 1997 e crescente de 1997 a 2006.
Observe-se que o pico é atingido em 1972 (113,60), portanto logo em seguida ao período da
“explosão salarial”. A partir deste ponto o índice apresenta notável tendência decrescente,
com uma forte redução no subperíodo 73-75 (logo após o primeiro grande choque do
petróleo) e uma redução ainda mais drástica no subperíodo 79-82 (após o choque dos juros).
Segue em decréscimo ao longo dos anos 80 e atinge um piso em 1994 (91,92), depois
voltando a subir, porém, longe de alcançar o nível anterior aos anos 80 e posterior à “explosão
salarial”. Atinge em 2006 um valor equivalente ao de 1964 (100,91). A questão que fica é:
porque teria havido esta clara reversão da tendência a partir da década de 70?
180
Ao longo da década de 80, sabe-se que o valor real do salário mínimo reduziu-se em mais de
30% (Fortin & Lemieux, 1997), dado que indica uma transformação institucional importante
na direção de uma queda no poder de barganha dos trabalhadores. Porém o movimento parece
ter começado ainda antes.
3.3.2 Queda do poder de barganha dos trabalhadores
Conforme indicam os dados apresentados acima, parece que a tendência de redução da
parcela dos salários começa já nos anos 70, encerrando período de grande estabilidade da era
de ouro. Ao que parece, um dos momentos chave para o fim dessa estabilidade da parcela
salarial é o período 1972-1974, marcado pela vigência de regras de controles de preços e
salários, instituídas pelo governo Nixon. A figura abaixo também mostra que há uma reversão
da tendência de crescimento dos salários reais bem em meio à vigência dos referidos
controles. Observar que isto ocorre em 1973, o ano do primeiro grande choque do petróleo,
indicando que estes controles não permitiram a recuperação salarial à inflação gerada por este
choque de custos.
Gráfico 3.7 - Salário real durante controles de preços e salários
Fonte: Nilsson(2001)
Nilsson (2001) argumenta que já na implementação esses controles teriam deslocado o estado
do poder de barganha dos trabalhadores e, ao serem eliminados, não foram substituídos por
181
nenhum outro ordenamento institucional que restabelecesse o estado anterior. Segundo
expressão utilizada pelo autor, o estado mais reduzido do poder de barganha acabou sendo
mantido depois por meio de “instituições informais”.
Parece que os anos 70 já assistiam, portanto, ao início do desmonte do quadro institucional
que caracterizou o pós-guerra na economia norte-americana, marcado por significativo poder
de barganha da classe trabalhadora. Foi nos anos 80, porém, que o cerco parece ter sido
fechado definitivamente. O período inicia com a chegada ao poder das forças conservadoras
lideradas por Ronald Reagan.
“O presidente Ronald Reagan tomou posse em 1981 e imediatamente começou um ataque frontal
à classe trabalhadora, ao movimento sindical e às demais forças progressistas americanas. Além
de confrontar diretamente e enfraquecer os sindicatos, Reagan acabou com as políticas de renda
de Nixon e Carter e fez avançar o processo de desregulamentação industrial. ... Dessa forma, no
início dos anos 80, o poder de barganha dos trabalhadores norte-americanos sofreu uma forte
redução. Além da hostilidade aberta aos sindicatos e da reestruturação industrial, com a
crescente concorrência externa e as ameaças das empresas de aprofundar a deslocalização, a
taxa de desemprego atingiu níveis recordes jamais vistos desde a grande depressão dos anos 30”
(Serrano, 2004, p. 203).
De fato, a virada conservadora nos Estados Unidos resultou de imediato em picos de
desemprego. No início da década de 80, o desemprego na economia norte-americana atinge os
níveis mais elevados de todo o período 1948-2000. Em 1982 atinge 9,7% e em 1983 atinge
9,6%. Para visualizar o que isso significa basta considerar que a taxa média de desemprego ao
longo de toda a série 1948-2000 é de 5,5%. A tabela abaixo mostra as taxas médias de cada
década.
Tabela 3.5 Taxa de desemprego
Período
50-59
60-69
70-79
80-89
90-99
Taxa média de desemprego
4,51%
4,78%
6,21%
7,27%
5,75%
Fonte: U.S. Department of Labor (2001)
182
Esse alto nível de desemprego colocou definitivamente em xeque a capacidade dos sindicatos
norte-americanos de reagir diante de políticas macroeconômicas ou alterações institucionais
que fossem contrárias aos seus interesses.
A passagem citada acima menciona, além do desemprego, outros aspectos importantes para a
posição de barganha da classe trabalhadora. Observando o movimento sob uma perspectiva de
tempo mais ampla, Dew-Becker & Robert Gordon (2005) indicam a existência de uma
trajetória em “U” do poder de barganha dos trabalhadores norte-americanos. O fortalecimento
ao longo da era de ouro e o enfraquecimento a partir da década de 70 são atribuídos a três
aspectos: “(1) the rise and fall of unionization; (2) the decline and recovery of immigration,
and (3) the decline and recovering in the importance of international trade and the share of
imports" (Dew-Becker & Robert Gordon, 2005, p. 49).
Um dos aspectos citados é, portanto, o processo de abertura e desregulamentação dos
mercados, com o conseqüente aumento da competição externa, que foi mais acentuado em
setores tradicionalmente sindicalizados, como o setor de automóveis e as steel industries,
segundo relatório do U.S. Department of Labor (2001). Dados do BLS indicam também que a
taxa de sindicalização, que oscilava levemente nas décadas de 60 e 70 (29% em 1960 e 25%
em 1979) passou a cair quase um ponto percentual por ano entre 1979 e 1985. Os dados
mostram ainda reduções drásticas na freqüência, participação e duração das greves nos
Estados Unidos, comparando-se os períodos 1961-80 e 1981-2000.
Tabela 3.6 Greves nos EUA (1961-2000) (Dados em milhares)
Número total de greves
Média anual
Número total de grevistas
Média anual
Dias de paralisação
Média anual
1961-1980
5.019
284,1
25.590
1.355,7
452.034
22.815,3
1981-2000
592
51,5
4.380
368,7
103.908
8.145,8
Fonte: Bureau of Labour Statistics (www.bls.gov)
183
No que diz respeito ao comportamento do fluxo migratório, parece haver um padrão bastante
compatível com a hipótese de redução do poder de barganha dos trabalhadores nas últimas
décadas do século XX:
“the share of immigration per year in the total population declined from 1,3 percent in 1914 to
0,02 percent in 1933, remaining very low until a gradual recovery began in the late 1960's,
reaching 0,48 percent (legal and illegal) in 2002” (Dew-Becker & Robert Gordon, 2005, p. 50).
No estudo econométrico de Setterfield & Lovejoy (2006), uma das variáveis consideradas
para medir o poder de barganha é o “índice de insegurança dos trabalhadores”, definido como
nulo para o período 1962-7254, e para o período posterior medido como um composto entre os
seguintes indicadores: (a) percentual do emprego em tempo parcial; (b) grau de mobilidade do
capital; (c) taxa de sindicalização; (d) número de greves; (d) grau de abertura da economia
norte-americana.
A evolução desse índice demonstra a significativa alteração das condições de barganha
salarial nos Estados Unidos no período considerado, e sintetiza o ponto que estamos
procurando desenvolver nessa seção.
“The average annual value of our worker insecurity index has risen steadily over each consecutive
business cycle since 1973, from 0.185 between 1973 and 1979, to 0.567 between 1980 and 1989,
to 0.818 between 1990 and 2000. Since 1994, however, the value of the index has remained
roughly constant, suggesting that it might have arrived at a new long-run value just prior to the
beginning of the ‘new economy’” (Setterfield & Lovejoy, 2006, p. 145, nota 28)
Convém referir que a partir de 1984 a economia norte-americana já entrava no longo período
de crescimento que se estendeu por toda a década de 90, situação bem diferente da maioria
dos outros países, especialmente os periféricos, que viveram a partir de então um longo
período de estagnação. Mesmo a retomada do crescimento e a conseqüente queda das taxas de
54
Segundo os autores isto se justifica poque neste período o processo de barganha salarial se processava de
forma distinta, havendo um grau maior de cooperação na negociação. Assim, mesmo que o poder de barganha
dos trabalhadores aumentasse ou diminuísse isto não era tão levado em conta na negociação.
184
desemprego não recuperaram o estado anterior do poder de barganha dos trabalhadores norteamericanos.
“Para Garegnani esta performance diferenciada está ligada ao fato de que nos EUA o conflito de
poder interno já estava substancialmente “resolvido” nos anos 80, enquanto que em diversos
outros países centrais a luta contra o Estado de Bem Estar Social e o poder dos trabalhadores
ainda continua. Isto tornaria desnecessária a continuação da utilização do desemprego em
massa para garantir a “estabilidade” nos EUA, ao contrário dos demais países onde os conflitos
são mais fortes” (Serrano, 2004, nota 38).
Como se viu nessa seção, portanto, parece que uma significativa alteração do poder de
barganha dos trabalhadores norte-americanos, iniciada já nos anos 70 e consolidada nos anos
80, permitiu que o peso do ajuste distributivo que determinou aumento da parcela dos lucros a
partir do final dos anos 70 tenha recaído sobre a parcela salarial55. Na ausência desta redução
do poder de barganha possivelmente a resistência salarial teria sido mais forte, e o aumento da
parcela dos lucros não poderia ter ocorrido simultaneamente à redução da inflação.
3.4. Análise de períodos
Nas três primeiras seções deste ensaio procuramos sustentar: (a) que o repasse do crescimento
dos custos aos preços é, no caso geral, incompleto; durante o período Bretton Woods (câmbio
fixo) tal restrição era fundamentalmente relacionada à competitividade externa; a partir de
1971 o câmbio passa a desvalorizar, mas o custo de oportunidade do capital é mantido a
níveis muito reduzidos pela autoridade monetária norte-americana; somente a partir de 1979 é
que este quadro se altera; as taxas reais de juros se elevam, possibilitando muito
provavelmente um grau de repasse mais alto, mas não necessariamente completo do
crescimento dos custos aos preços; (b) o fato de que o grau de repasse mais alto a partir de
55
A redução do poder de barganha dos trabalhadores pode ser considerada também causa para o aumento da
desigualdade intra-salarial. Wolff & Zacharias (2007) mencionam que a desigualdade tende a ser menor nas
categorias mais sindicalizadas, confirmando um ponto mencionado por Medeiros (1992).
185
1979 não tenha gerado mais inflação (e sim menos) se deve, dentre outros fatores, ao quadro
recessivo que se instala a partir desse momento e à redução do poder de barganha dos
trabalhadores; (c) em conjunto, estas alterações determinaram uma mudança significativa no
padrão distributivo da economia norte-americana, com a elevação da parcela dos capitalistas e
demais proprietários em detrimento dos trabalhadores, determinando por conseqüência uma
piora nos índices de distribuição pessoal da renda.
Nesta seção, procuramos aprofundar a relação entre estas condições e os resultados em termos
das mudanças de tendência da taxa de inflação no decorrer do período histórico considerado.
O gráfico abaixo mostra claramente que o início dos anos 80 foi um divisor de águas no que
diz respeito à trajetória da inflação norte-americana. Observe-se que a queda brusca da
inflação ocorre somente a partir do primeiro trimestre de 1981, mesmo ano em que as taxas
nominais de juros atingem seu pico.
Gráfico 3.8 – Mudanças no Padrão Inflacionário
12
10
8
6
4
2
2002:4
2000:3
1998:2
1996:1
1993:4
1991:3
1989:2
1987:1
1984:4
1982:3
1980:2
1978:1
1975:4
1973:3
1971:2
1969:1
1966:4
1964:3
1962:2
1960:1
0
Fonte: Braga (2006)
Braga (2006) apresenta este gráfico em que há quatro “padrões de inflação” diferentes, em
termos de ano e trimestre:
1960(1) a 1980(4): acelerando de 1 a 10%
186
1981(1) a 1983(1): queda brusca de 10 a 3%
1983(2) a 1991(2): estabilidade em 3,5%
1991(3) a 2003(4): estabilidade em 2%
Nossa análise divide o primeiro período em outros dois pois, como argumentamos o câmbio
era fixo até 1971 e passa a desvalorizar a partir de então até 1979. A discussão sobre inflação
na literatura macroeconômica norte-americana freqüentemente faz referência ao conceito de
NAIRU, que depende de uma indexação completa da inflação corrente à inflação passada. No
modelo mencionado de Lavoie/Setterfield, isto corresponde à situação em que tanto o
coeficiente de repasse dos preços aos salários quanto dos salários aos preços sejam iguais à
unidade.
Segundo Braga (2006) a hipótese de inércia completa pode ser testada (exceto para o período
2 em que não há observações suficientes) mediante o teste estatístico/econométrico de raiz
unitária. No período 4, a hipótese de raiz unitária é rejeitada, portanto não há inércia
completa. Nos períodos 1 e 3 o teste não é conclusivo mas a hipótese também tende a ser
rejeitada, havendo portanto maior probabilidade da inércia não ser completa.
Estes estudos empíricos apontam também para uma redução da inércia.
“Na literatura empírica existe muita evidência de que a inércia inflacionária na economia
norte-americana teria diminuído a partir de 1983, e de forma mais intensa, na década de 90”
(Braga, 2006, p. 96).
Portanto as evidências empíricas não só não corroboram a hipótese de inércia completa, como
também apresentam evidências de que esta teria diminuído depois de 1983, com certa
sincronia, portanto, com o movimento de redução do poder de barganha dos trabalhadores.
3.4.1 O compromisso
O período do compromisso corresponde à vigência do acordo de Bretton Woods até o final da
década de 60. Com taxas fixas de câmbio e juros nominais moderados, o crescimento dos
salários nominais era contido pelo compromisso entre capital e trabalho que caracteriza a era
187
de ouro. As baixas taxas de inflação não seriam, portanto, resultado da ausência de conflito
distributivo (já que não haveria necessariamente correspondência entre o salário real e as
margens reais desejado por cada parte), mas sim de um compromisso entre trabalhadores e
capitalistas no sentido de não transformar sua insatisfação em termos do resultado distributivo
em crescimento das variáveis nominais. Em um contexto de câmbio fixo, isto é fundamental
para não gerar um colapso na competitividade ou uma redução drástica da margem real de
lucro. Dado, porém, que esse repasse do crescimento dos custos aos preços era maior nos
Estados Unidos em relação aos demais países, um mesmo nível de crescimento dos custos
determinava perda de competitividade para este país. De fato, no período há uma deterioração
progressiva do balanço de pagamentos norte-americano em conta-corrente.
3.4.2 A contestação (1968-71)
Nos últimos anos da vigência do sistema de taxas fixas de câmbio houve uma aceleração do
crescimento dos salários nominais e da taxa de inflação. Kaldor (1989) comentando a
escalada mundial da inflação:
“This occurred prior to any major change in commodity prices as a result of the inflationary rise
in wage rates in a large number of countries in 1968 and 1969, the precise causes of which are
uncertain. It may have been the reaction to the ‘evenements’ in France in June 1968, when a
general strike led to the Government agreeing to a universal increase in wage rates by 15 per
cent, the effects of which rapidly spread to other countries (much as the February revolution in
Paris in 1848 led, within a very short time, to revolutionary outbreaks all over Europe) given the
increased aggressiveness of trade unions after many years of full employment. This meant that the
annual rise in the dollar price-level of manufactured goods moving in international trade, which
hovered around 1-1,5 per cent throughout the post-war period, rose to 5 per cent a year after
1968” (Kaldor, 1989, p. 247, nota 13)
Sobre o caso específico dos Estados Unidos:
“In the United States, the process began earlier but was far more moderate, the annual
rise of hourly earnings in manufacturing having reached a peak rate of 6 percent
between 1967 and 1968” (Kaldor, 1978, p. 224)
Conforme Kaldor menciona na primeira passagem citada, é difícil determinar uma causa
específica para o início da aceleração dos salários nominais, que ocorreu em todo o mundo
188
desenvolvido. O certo, porém, é que isto ocorreu em um contexto de elevadíssimo poder de
barganha da classe trabalhadora, depois de ao menos duas décadas de rápido crescimento
econômico e manutenção de um estado permanente de pleno emprego.
“Nos últimos anos da década de 60 ocorreu uma súbita redução do grau de ‘conformismo social’
nos países industrializados com a chegada no mercado de trabalho de uma nova geração de
trabalhadores que havia crescido em um ambiente de excepcional segurança política e
econômica. O grau de militância sindical aumentou drasticamente, simultaneamente aos
movimentos estudantis e de grupos em luta por direitos civis. No caso dos EUA, o grande ímpeto a
esta radicalização política a e contestação da ordem social vigente foi dado pelos conflitos raciais
e pela oposição à guerra do Vietnã” (Serrano, 2004, p. 190).
Num contexto, portanto, de elevado poder de barganha da classe trabalhadora em geral, os
diversos movimentos de contestação deram força a maiores demandas por salários nominais,
rompendo-se o compromisso do período anterior. Conforme mencionamos anteriormente,
num sistema de taxas de câmbio fixas como o que ainda estava vigente neste período, o
repasse completo do crescimento dos salários nominais é dificultado porque implica em
redução da competitividade da produção frente a países em que os aumentos não ocorreram.
“A explosão salarial levou a uma aceleração da inflação na medida em que os reajustes salariais
iam sendo repassados aos preços. No entanto, as margens de lucro nominais não subiram o
suficiente para fazer face ao aumento do ritmo de crescimento dos custos salariais e o repasse
acabou sendo apenas parcial, tendo sido bem maior nos EUA do que nos demais países. Por um
conjunto de motivos, a política monetária americana não reajustou as taxas de juros nominais
em linha com o aumento da inflação, o que dificultava a subida das margens de lucro nominais,
ao mesmo tempo em que erodia a remuneração real dos detentores de ativos financeiros. A
explosão salarial levou, em diferentes graus nos diversos países centrais, à compressão das
margens reais de lucro e da parcela dos lucros na renda” (Serrano, 2004, p. 191).
Conforme Serrano (2004) portanto o coeficiente de repasse do crescimento dos custos aos
preços era no caso norte-americano menor que a unidade, mas provavelmente maior em
relação a outros países centrais. No caso dos Estados Unidos, portanto, o efeito da explosão
dos salários nominais foi provavelmente maior sobre a inflação e a competitividade, e menor
sobre a margem real de lucro.
Segundo Kaldor (1978), a aceleração do crescimento dos salários nominais levou a um
rápido crescimento dos preços dos manufaturados no comércio internacional, e assim a
189
uma deterioração dos termos de troca dos produtores primários. Isto se explica pelo fato
da explosão dos salários nominais ter ocorrido nos países industrializados, mas não nos
produtores de matérias-primas. Desse modo, mesmo com repasse parcial, os preços dos
manufaturados cresceu mais do que os das matérias-primas, determinando assim uma perda
dos termos de troca destes.
Tal situação foi tornando-se crescentemente insustentável para os Estados Unidos, na medida
em que o repasse parcial em grau mais elevado do que nos outros países determinava ao
mesmo tempo compressão das margens reais e perda de competitividade da economia norteamericana em relação aos demais países industrializados.
Assim, se por um lado o repasse apenas parcial do crescimento dos salários nominais que
determinou a compressão das margens reais de lucro norte-americanas e agravou ainda mais a
posição do balanço de transações correntes, por outro o fato de que o repasse era maior do que
nos outros países, minava a competitividade já bastante reduzida da economia norteamericana.
O processo de perda de competitividade já vinha em curso ao longo do período do pós-guerra,
mas nesse momento era já tão avançada que havia revertido a posição do balanço de
transações correntes.
Conforme Serrano (2003) para manter a posição de emissor da moeda-chave do sistema o país
central não pode ter déficits em transações correntes, para que seu passivo externo não cresça,
mas era exatamente esta a posição da economia norte-americana ao final dos anos 60. Diante
desta situação, os setores mais expostos à concorrência externa passariam a pressionar para
uma desvalorização cambial, porém esta era a outra restrição mencionada por Serrano (2003)
para a manutenção da posição de emissor da moeda chave: não tomar a iniciativa de
desvalorizar sua moeda.
190
O dilema de Nixon consistia exatamente na necessidade de desvalorizar a moeda (como forma
de conter ou reverter o crescimento do déficit em transações correntes) sem que isto
significasse perder a condição de moeda chave do sistema. Haveria, obviamente, uma outra
opção que seria promover uma contração econômica que ao mesmo tempo enfraqueceria o
poder de barganha dos trabalhadores (reduzindo suas demandas por salários nominais e assim
a pressão sobre as margens de lucro) e também as importações e o déficit em transações
correntes.
“No entanto, no período 1968-71 esta não foi a reação da política econômica americana. Pelo
contrário, a resposta inicial do governo americano à aceleração da inflação foi, no primeiro
mandato do presidente Nixon, a manutenção das políticas macroeconômicas expansionistas. A
prioridade central, naquele contexto político, era evitar o crescimento do desemprego” (Serrano,
2004, p. 194).
3.4.3 Choques de commodities e aceleração da inflação (71-79)
O dilema começou a ser resolvido por uma atitude unilateral dos Estados Unidos que rompia a
paridade do dólar com o ouro, e portanto com as demais moedas.
O primeiro choque de custos importante da década de 70 vem dos preços das commodities,
após o rompimento da paridade e estimulado pela formação de estoques especulativos ou
defensivos; o resultado foi uma reação mais que proporcional desses preços ao movimento
anterior dos industrializados
“Dado o contexto de crescimento acelerado e sincronizado da economia mundial, aumento da
inflação nos EUA, taxas de juros de curto prazo nominais e reais baixas em dólar e crescente
capacidade de criação de crédito no circuito offshore do eurodollar, o fim da conversibilidade do
dólar levou a uma verdadeira explosão dos preços em dólar das matérias-primas nos mercados
internacionais a partir de 1972. Estes preços subiram muito mais do que em expansões anteriores
e de forma muito mais que proporcional ao aumento anterior dos preços em dólar dos produtos
industrializados” (Serrano, 2004, p. 198).
O aumento do componente especulativo nos preços das matérias-primas torna-se muito mais
acentuado na ausência de uma moeda de referência.
191
Labini (1984) menciona que “as expectativas de natureza especulativa se tornaram
decididamente mais importantes depois do enfraquecimento do dólar como moeda de
reserva” (citando Biasco, 1979, p. 95)
“As incertezas sobre o dólar como moeda de reserva começaram no momento em que o dólar foi
desvinculado do ouro (15 de agosto de 1971), uma vez que caiu então o suporte institucional
àquele papel, suporte constituído por uma norma incluída nos acordos de Bretton Woods (cf.
Siglienti, 1981). A crise do sistema monetário internacional é sancionada pelo abandono
generalizado das taxas fixas de câmbio” (Labini, 1984, p. 187)
“O fato de que o dólar como moeda de reserva e representação de valor enfraqueceu e a adoção
das taxas flexíveis acentuaram a componente especulativa nos mercados internacionais é indicado
pela forte acentuação das flutuações dos preços das matérias-primas negociadas nesses mercados
depois de 1971” (Labini, 1984, p. 187).
Labini analisa isto com um gráfico que compara a amplitude das flutuações desses preços e de
produção industrial. Até 1971, a amplitude das flutuações da produção industrial era maior do
que a flutuação dos preços. Após esta data, a amplitude das flutuações de preços passa a ser
de quatro a cinco vezes maior do que as da produção industrial.
Nas equações de regressão estimadas por esse autor para a relação entre taxa de variação da
produção industrial (eixo horizontal) e taxa de variação de preços (eixo vertical) para o
período 72/80 é muito mais inclinada do que para o período 58/71, indicando, portanto que o
efeito das variações na produção industrial sobre as variações de preços de matériasprimas tornou-se muito maior.
Kaldor menciona que as flutuações de preços passariam a antecipar qualquer escassez
esperada de matérias-primas.
“The real explosion of commodity prices began in the latter half of 1972 and there can be little
doubt that much of it was in anticipation of shortages, since the end-of-season stocks of the main
agricultural commodities did not show a bug fall until 1973” (Kaldor, 19??, p. 226).
Assim, após o rompimento da paridade, qualquer expectativa de redução de estoques de
determinada matéria-prima passaria a constituir motivo para uma corrida à formação de
192
estoques especulativos e/ou defensivos, que determinavam um aumento imediato e antecipado
dos preços.
“To an unknown extent the currency upheavals following the formal suspension of the gold
convertibility of the dollar, together with general inflationary expectations, must have induced a
great deal of commodity buying as an inflation-hedge – in the same way as the outbreak of the
Korean War 25 years earlier led to the rapid rise in commodity prices in anticipation of shortages
which in the event did not materialise. That boom (which increased commodity prices by some 50
per cent) collapsed within a year or so. In the present instance there was a remarkable correlation
between movements in the price of gold and of The Economist’s index of commodity prices which
followed much the same time-path” (Kaldor, 1978, p. 226).
Kaldor destaca também que os salários nominais não foram, neste período a causa primária do
processo inflacionário. “the U.S. inflation of 1972-3 ... was clearly cost-induced but not wageinduced (with wages trailing behind the rise in living costs)” (Kaldor, 1978, p. 220).
Gráfico 3.9 – Variação dos salários nominais e dos preços ao consumidor
0,14
0,12
0,1
0,08
0,06
0,04
0,02
Taxa de variação do salário nominal
20
05
20
03
20
01
19
99
19
97
19
95
19
93
19
91
19
89
19
87
19
85
19
83
19
81
19
79
19
77
19
75
19
73
19
71
19
69
19
67
19
65
0
Taxa de variação do CPI
Fonte: Bureau of Labour Statistics (www.bls.gov)
Observe-se neste gráfico que de fato a variação do salário nominal parece liderar a primeira
elevação da taxa de inflação no fim dos anos 60, mas o mesmo não vale para a segunda, entre
71-73. A taxa de inflação que em 1971 e 1972 estava próxima a 3,5% pula para 8,7% em
1973, enquanto os salários nominais cresceram nesses três anos consecutivos a taxas entre 6%
193
e 7%, ainda próximas às alcançadas no período da “explosão salarial”. Não houve, neste
primeiro choque, redução significativa do valor real dos salários.
Em 1973, ocorre o primeiro grande choque do preço do petróleo. O gráfico abaixo indica a
evolução do custo de aquisição do petróleo pelas refinarias norte-americanas. Observa-se um
movimento de elevação a partir de 1973.
Gráfico 3.10: Evolucão do custo de aquisição de petróleo para refino
Fonte: EIA
Segundo Serrano (2004), já a partir de 1971 a OPEP passaria a pressionar por reajustes no
preço internacional do petróleo, e o movimento mais brusco de 1973 vem a tornar visível o
conflito distributivo entre os países produtores e os desenvolvidos. Reflete também uma
relativa perda de controle por parte dos Estados Unidos, ainda que a magnitude dos seus
efeitos se devesse à continuidade da política macroeconômica expansionista deste país e à sua
política de segurança energética.
“A política energética americana priorizava a preservação e a ampliação das reservas internas
americanas e simultaneamente a garantia de abastecimento aos EUA. Estas prioridades foram
mantidas mesmo com o primeiro choque do petróleo, a despeito dos evidentes custos dessa
política. Estes custos incluíam o aumento da inflação nos EUA e no resto do mundo, a
transferência de renda aos países árabes (embora parte das transferências fosse para as
multinacionais americanas) e, especialmente, as grandes dificuldades de balança de
pagamentos criadas aos demais países industrializados pelo choque do petróleo, que ao
contrário dos EUA, não emitiam os dólares necessários para pagar a OPEP” (Serrano, 2004, p.
200).
194
Ou seja, apesar do movimento de elevação de preços os Estados Unidos não desejavam um
ajuste que implicasse reduzir sua demanda ou suas reservas internas do produto. A
redistribuição de renda a favor de países produtores de petróleo que não tinham como gastar
uma proporção significativa em um prazo curto e as restrições de balanço de pagamentos dos
países (exceto EUA) gerando introdução de políticas de stop-and-go gerou uma grande
desaceleração do crescimento mundial.
“Estes aumentos acirravam ainda mais os conflitos distributivos nos países centrais, pois a
mudança nos termos de troca agravava a compressão das margens de lucro enquanto que, ao
mesmo tempo, tendia a reduzir os salários reais dos trabalhadores em termos de poder de compra
sobre bens de consumo. Estes conflitos, por sua vez, faziam a inflação dos preços dos produtos
industrializados acelerar ainda mais. Os aumentos dos preços dos produtos industrializados e os
aumentos do preço do petróleo acabavam levando, posteriormente, a ajustes compensatórios
adicionais nos preços nominais das commodities pelo lado dos custos. No entanto, a rápida
inflação nos países industrializados acabou reduzindo novamente os termos de troca das
commodities fora o petróleo, que no final dos anos 70 já tinham perdido novamente quase todos
os ganhos do início da década” (Serrano, 2004, p. 200).
De fato, o ano de 1973 é marcado tanto por uma perda do salário real (segundo o nosso
índice a passagem 72-73 á primeira queda depois do pico de 113 para 110) quanto por uma
taxa real de juros negativa (medida como a diferença entre a taxa bank prime loan menos a
variação do cpi. O mesmo ocorre em 1974, quando a taxa de inflação atinge 12,3% e os
salários nominais crescem apenas 7%, determinando nova queda do salário real. A taxa real
de juros é novamente negativa em torno de -1,5%. Em 1975, os efeitos do choque já eram
mais reduzidos e a inflação cai para 6,9%, o juro real volta a um valor positivo mas ainda
menor do que 1% e o salário real se mantém.
Inicialmente, portanto, o peso do primeiro choque do petróleo parece ter recaído tanto sobre
os lucros quanto sobre os salários.
A partir de 1975, já não há mais controles formais de preços e salários. Os salários nominais
crescem acima da inflação em 1976 e 1977, determinando um pequeno aumento do salário
real. Os juros reais são novamente positivos nestes dois anos.
195
Em 1978 a inflação foi de 9% e o crescimento dos salários nominais de 8%, determinando,
portanto, uma pequena queda mas nada parecido com o que estava por vir. O juro real por sue
vez mantinha-se a nível próximo de zero.
O ano seguinte é marcado pelo segundo grande choque do petróleo. O custo de aquisição do
óleo cru que em 1978 era de 12,46 dólares/barril passa para 17,72 em 1979, para 28,07 em
1980 e 35,24 em 1981. Um crescimento de 182% em quatro anos.
As taxas de inflação nestes anos também são significativamente mais altas do que no
subperíodo 75-77 e atingem 9% em 1978, 13,3% em 1989, 12,5% em 1980 e 8,9% em 1981.
Observe-se que são taxas de inflação semelhantes às alcançadas no subperíodo posterior ao
primeiro choque do petróleo (73-75) quando, como vimos, o peso do ajuste recaiu tanto sobre
os salários quanto sobre os lucros. Desta vez, porém, a história seria muito diferente. Nestes
quatro anos os salários nominais cresceram menos do que a taxa de inflação, determinando
queda do salário real de 5,4% em 1979 e 4,4% em 1980. A taxa real de juros, por outro lado,
pula de um nível negativo -0,63% em 1979 para 2,76% em 1980, 9,97% em 1981 e o nível
mais alto de toda a série 56-2006, de 11,05% em 1982. No segundo choque, portanto, a queda
do salário real se deve não só ao ajuste da alta dos preços do petróleo, mas também a uma
taxa de lucro mais elevada.
3.4.4 Restauração da hierarquia (1979-84)
A nosso ver, o episódio de elevação unilateral das taxas de juros pelo FED é fundamental
porque evidencia o grau de autonomia da autoridade monetária norte-americana na definição
desta variável.
Uma das interpretações para tal ação indica que o referido choque fez parte de uma estratégia
deliberada da política externa norte-americana no sentido de retomar o controle das finanças
mundiais, em um momento de instabilidade econômica e política e mesmo questionamentos
196
sobre a hegemonia norte-americana. Aos mercados e aos demais países só o que restou foi
ajustar-se às novas condições.
A ação implicou em uma grande atração de capitais para os títulos públicos norte-americanos,
e isto parece ter sido fundamental para uma reversão do comportamento dos preços
internacionais de matérias-primas56. Como vimos na subseção anterior, Kaldor (1989) atribui
a volatilidade de preços internacionais ao aumento das pressões especulativas, na ausência de
um padrão monetário. A seguinte passagem analisa os riscos inflacionários em 1978.
“The very jumpiness of commodity prices shows that they are increasingly under the influence of
inflationary expectations [nota 2] Without being a ‘monetarist’ I do believe in the importance of
inflationary expectations; but unlike the monetarists, I believe they are mainly of importance in
markets where speculation is important – i.e. in commodity markets, and not in the labour market
or the market for goods with cost-determined prices [fim da nota] The absence of any stable
monetary medium which would serve as a hedge against inflation may well come to mean that
any revival of demand will lead to spectacular increases in commodity prices, fed by
speculation” (Kaldor, 1978, p. 227)
A elevação dos juros terminou com este processo ao dar aos capitais especulativos uma opção
de aplicação com rentabilidade alta e sem risco. Aliado ao quadro recessivo instalado na
economia mundial a partir de então, este fator determinou uma queda do preço do petróleo,
que alcançaria ao final da década de 80 níveis próximos aos anteriores ao segundo choque.
A reversão do quadro dos preços internacionais determinou, portanto, a queda da taxa de
inflação norte-americana. De uma taxa de 8,9% em 1981, cai para nível pouco inferior a 4%
entre 82-85 e para apenas 1,1% em 1986.
Aliada à queda dos preços das matérias-primas está, como vimos em seção anterior, a redução
drástica do poder de barganha dos trabalhadores norte-americanos. Prova disto é o fato de que
neste período de inflação em queda o salário real não cresceu. Ao contrário, seguiu sua
tendência de queda iniciada já no primeiro choque do petróleo. Observe-se que entre 1980 e
56
O trabalho clássico de tavares (1985) atribuía ao movimento da autoridade monetária norte-americana o
objetivo de captar os capitais externos e assim financiar o déficit em transações correntes. Serrano (2004) critica
esta interpretação atribuindo a este movimento o objetivo de parar a inflação em dólares.
197
1990, um período de portanto 11 anos, em apenas três oportunidades (1982, 1983 e 1986) os
salários nominais cresceram mais do que a inflação. Nos outros 8 anos houve, portanto, queda
do salário real.
A redução de custos, portanto, determinada pela tendência de queda dos preços das matériasprimas e a desaceleração dos salários nominais foram aspectos fundamentais, portanto, para a
redução das taxas de inflação nos Estados Unidos nos anos 80.
Gráfico 3.11 – Taxas de crescimento dos salários nominais
0,1
0,09
0,08
0,07
0,06
0,05
0,04
0,03
0,02
0,01
20
05
20
03
20
01
19
99
19
97
19
95
19
93
19
91
19
89
19
87
19
85
19
83
19
81
19
79
19
77
19
75
19
73
19
71
19
69
19
67
19
65
0
Fonte: Bureau of Labour Statistics (www.bls.gov)
Observe-se que por si uma redução de custos tende a aumentar a margem real de lucro se o
repasse é assimétrico, como sustenta Labini (1984).
“O preço só cai se diminuem os custos, e estes diminuem de maneira generalizada quando caem
os preços das matérias-primas ou quando os salários monetários crescem menos que a
produtividade. Porém, por razões que não posso examinar aqui, o preço diminui muito menos que
proporcionalmente ao custo (Sylos-Labini,1984?, p.192)”.
Acompanhado de elevação da taxa real de juros, como foi o caso, o movimento determinou
um forte crescimento das margens de lucro em geral na economia norte-americana.
198
CONCLUSÃO
O ajuste automático do balanço de pagamentos deriva do funcionamento da TQM com taxas
fixas de câmbio. Ricardo utiliza a TQM em certos escritos e em outros utiliza a teoria do
valor-trabalho. Marx demonstra a incompatibilidade entre estas duas teorias utilizadas por
Ricardo, e utiliza a teoria do valor-trabalho para uma explicação alternativa para a “revolução
dos preços”. Esta explicação não pode ser tomada como válida, no entanto, no padrão ourolibra porque a cotação do ouro é mantida fixa em libras. A manutenção da paridade depende
da manutenção de reservas de ouro, que por sua vez depende do resultado do balanço de
pagamentos, que depende fundamentalmente do fluxo de capital de curto prazo, que é afetado
pelo nível da taxa nominal de juros inglesa. Dada a taxa nominal de câmbio, variações dos
custos domésticos em uma economia aberta como a da Inglaterra determinam redução da taxa
de lucro e portanto com taxa de juros dada isto resulta em redução do lucro de empresário. Do
mesmo modo, com dada taxa nominal de câmbio e dados custos domésticos a taxa de lucro
fica determinada, e uma elevação da taxa de juros determina redução do lucro de empresário.
Nestas condições, a convicção de Marx sobre a existência de conflito entre o capital
financeiro e o capital industrial torna-se plausível.
Os modelos mais tradicionais de inflação de custos partem da hipótese de margem real de
lucro fixa e independente do movimento dos custos. Associada à hipótese de inércia completa
199
(reajustes de salários nominais incorporam a inflação passada de forma plena), qualquer
insatisfação com a situação distributiva determina inflação em aceleração. Se o nível de
emprego influencia as aspirações dos trabalhadores, só há um nível consistente com uma taxa
de inflação constante, que é aquele baixo o bastante para fazer com que os trabalhadores
aceitem o salário real consistente com a margem real considerada fixa. Relaxando-se a
hipótese de que a margem real seja fixa, este resultado deixa de ser válido mesmo com inércia
completa. Muitos modelos que consideram a margem real endógena e dependente da
dinâmica dos custos apenas descrevem a decisão de pricing das firmas, porém não fornecem
uma explicação para o nível resultante do mark-up. Esta lacuna pode ser preenchida pela
hipótese de que a decisão de pricing das firmas está restrita ao custo de oportunidade do
capital. Em concorrência, a correção da margem nominal e a periodicidade da decisão de
pricing estão restritas de modo a resultarem em margem real que não exceda o custo de
oportunidade do capital.
A literatura empírica relata um forte movimento de ampliação da desigualdade na sociedade
norte-americana. Há fortes indícios de que boa parte deste movimento seja explicado por uma
elevação da parcela dos proprietários em detrimento dos não proprietários. A transformação
parece estar em sincronia com a transição do padrão ouro-dólar para o padrão dólar-flexível.
Nos últimos anos do padrão ouro-dólar a “explosão” dos salários nominais determinou queda
das margens reais e perda de competitividade da economia norte-americana. O rompimento da
paridade entre o dólar e o ouro relaxou a restrição ao repasse dos custos em alguns setores
mas a desvalorização do dólar associada à manutenção de baixas taxas reais de juros
estabeleceu as condições para o início de um período de forte especulação em commodities,
que determinou sucessivos choques nos preços de matérias-primas e petróleo, e portanto
novas pressões de custos ao longo dos anos 70. O primeiro choque foi principalmente sobre
os preços de commodities, e como no início dos anos 70 o quadro institucional permitiu a
200
recomposição dos salários nominais, os salários foram razoavelmente protegidos, ao contrário
das margens de lucro, que foram reduzidas no cenário de baixas taxas reais de juros. No
primeiro choque do petróleo, a resistência salarial já era mais reduzida devido à introdução e
retirada de controles de preços, e tanto os salários reais quanto as margens de lucro sofreram
perdas. No segundo choque do petróleo, a drástica alteração da política monetária norteamericana permitiu uma resistência maior das margens reais e o peso do ajuste recaiu
primordialmente sobre os salários. Em termos gerais, a passagem da década de 70 para a
década de 80 representou uma redução do poder de barganha da classe trabalhadora e uma
elevação do custo de oportunidade do capital, e assim uma transferência de renda dos
assalariados para as classes proprietárias em geral
A elevação das taxas de juros no caso do padrão dólar-flexível não determina redução do
lucro de empresário como seria a convicção de Marx, porque não há necessidade de manter
uma paridade fixa com nenhuma moeda ou mercadoria, e o dólar segue sendo a moeda de
reserva mesmo quando se desvaloriza frente a outras moedas. Pressões domésticas de custos
(reduzidas após a queda drástica do poder de barganha dos trabalhadores) não determinam
redução de margem real porque o repasse aos preços pode ser facilitado pela valorização das
demais moedas e pela manutenção de taxas reais de juros positivas.
201
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