Rivaldo Capistrano de Souza Júnior A MULTIFUNCIONALIDADE DO ITEM AGORA EM TIRAS DE QUADRINHOS: DA GRAMÁTICA AO DISCURSO Belo Horizonte Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais 2005 Rivaldo Capistrano de Souza Júnior A MULTIFUNCIONALIDADE DO ITEM AGORA EM TIRAS DE QUADRINHOS: DA GRAMÁTICA AO DISCURSO Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Língua Portuguesa, elaborada sob a orientação do Prof. Dr. Johnny José Mafra. Belo Horizonte Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais 2005 FICHA CATALOGRÁFICA S729m Souza Júnior, Rivaldo Capistrano A multifuncionalidade do item agora em tiras de quadrinhos: da gramática ao discurso / Rivaldo Capistrano Souza Júnior. Belo Horizonte, 2005. 82f. Orientador: Johnny José Mafra Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. Bibliografia 1. Lingüística funcional 2. Gramática comparada. 3. História em quadrinhos. I. Mafra, Johnny José. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título. CDU: 800.85 Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC MINAS e aprovada pela seguinte Comissão Examinadora: _______________________________________________________ Profa. Dra. Maria da Penha Pereira Lins (UFES) _______________________________________________________ Profa. Dra. Vanda de Oliveira Bittencourt (PUC MINAS) _______________________________________________________ Prof. Dr. Johnny José Mafra – Orientador (PUC MINAS) Belo Horizonte, 08 de abril de 2005. Profa. Dra. Ivete Lara Camargos Walty Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras PUC MINAS AGRADECIMENTOS A meu orientador, Prof. Jonnhy José Mafra, pela orientação paciente e, também, por respeitar meu ritmo de trabalho e minhas limitações; À professora Penha Lins, cuja competência contribuiu e contribui para minha formação acadêmica, pelo estímulo e pelas valiosas sugestões; À professora Vanda de Oliveira Bittencourt, por ter me introduzido no universo da Gramaticalização; À Vera Mageste e demais funcionários da Secretaria do curso de pós-graduação em Letras da PUC-MG, pelos envios de documentos e pelo pronto atendimento; À Alcione Gonçalves, pelas palavras de incentivo e por compartilhar comigo as angústias de se terminar uma dissertação; À Araceli Covre, pelo incentivo e pelas constantes fiscalizações; Aos meus pais, Rivaldo e Ilza, e minha avó, Olinda, pelo incentivo, colaboração e compreensão. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................10 CAPÍTULO PRIMEIRO – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS.......................................................13 1.1 A lingüística funcional...........................................................................................................13 1.1.1 Acepções dos termos gramaticalização e discursivização...............................................18 1.1.2 Princípios que configuram a gramaticalização................................................................25 1.1.3 Gramaticalização de conectores......................................................................................26 1.1.4 Trajetórias de gramaticalização e de discursivização de agora.......................................29 1.2 Gêneros e tipos textuais.........................................................................................................31 1.2.1 O gênero tira de quadrinhos.............................................................................................34 CAPÍTULO SEGUNDO – REVISÃO DA LITERATURA.......................................................42 2.1 Visão diacrônica....................................................................................................................42 2.2 Visão sincrônica.....................................................................................................................43 CAPÍTULO TERCEIRO – METODOLOGIA E “CORPUS”....................................................49 3.1 Natureza do corpus................................................................................................................49 3.2 Metodologia de análise..........................................................................................................51 3.3 A construção do humor nas tiras do Gatão............................................................................52 CAPÍTULO QUARTO – A MULTIFUNCIONALIDADE DO AGORA NAS INTERAÇÕES DE GATÃO DE MEIA IDADE..................................................................................................58 4.1 AGORA dêitico temporal......................................................................................................58 4.1.1 Ampliação temporal.........................................................................................................59 4.2 AGORA juntivo.....................................................................................................................61 4.2.1 Relações de causalidade..................................................................................................62 4.2.2 Relações de contrajunção................................................................................................63 4.2.2.1 relação de ressalva....................................................................................................64 4.2.2.2 relação de contraste...................................................................................................65 4.2.2.3 relação de contra-expectativa...................................................................................66 4.2.3 Conector de seqüencialização.............................................................................................67 4.3 Marcador discursivo..............................................................................................................69 4.3.1 Conector de subtópicos....................................................................................................71 4.3.2 Introdutor de digressão....................................................................................................72 4.3.3 Redirecionar de tópicos...................................................................................................74 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................76 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................................78 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – p. 35 Figura 2 – p. 38 Figura 3 – p. 40 Figura 4 – p. 49 Figura 5 – p. 52 Figura 6 – p. 54 Figura 7 – p. 55 Figura 8 – p. 56 Figura 9 – p. 56 Figura 10 – p. 58 Figura 11 – p. 60 Figura 12 – p. 60 Figura 13 – p. 61 Figura 14 – p. 62 Figura 15 – p. 63 Figura 16 – p. 64 Figura 17 – p. 65 Figura 18 – p. 66 Figura 19 – p. 67 Figura 20 – p. 68 Figura 21 – p.69 Figura 22 – p. 71 Figura 23 – p. 73 Figura 24 – p. 74 Quadro 1 Modelos formalista e funcionalista – p. 15 Quadro 2 Estilos conversacionais – p. 53 Quadro 3 Agora temporal – p. 61 Quadro 4 Agora com função de ressalva – p. 64 Quadro 5 Agora com função de contra-expectativa – p. 67 Quadro 6 Contraste de crenças – p. 72 RESUMO Este trabalho propõe averiguar, com base no paradigma da gramaticalização e da discursivização, no âmbito da lingüística funcional, o estatuto gramatical-discursivo do item agora em suas funções dêitico-temporal, juntivo e discursivo, nas tiras de quadrinhos de Gatão de meia idade, de Miguel Paiva. Os pressupostos teóricos adotados partem do princípio de que a língua, a fim de atender às necessidades sócio-comunicativas de seus usuários, é dinâmica e se adapta a pressões internas e externas ao sistema. LINHA DE PESQUISA: Variação e mudanças lingüísticas PALAVRAS-CHAVE: agora, gramaticalização e discursivização Um novo José JOSIAS DE SOUZA Calma, José. A festa não recomeçou, a luz não acendeu, a noite não esquentou, o Malan não amoleceu. Mas se voltar a pergunta: e agora, José? Diga: ora, Drummond, agora Camdessus Continua sem mulher, continua sem discurso, continua sem carinho, Ainda não pode beber, ainda não pode fumar, cuspir ainda não pode, a noite ainda é fria, o dia ainda não veio, o riso ainda não veio, não veio ainda a utopia, o Malan tem miopia, mas nem tudo acabou, nem tudo fugiu, nem tudo mofou. Se voltar a pergunta: e agora, José? Diga: ora, Drummond agora FMI. Se você gritasse, se você gemesse, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Malan nada faria, mas já há quem faça. Ainda só, no escuro qual bicho-do-mato, ainda sem teogonia, ainda sem parede nua, para se enconstar, ainda sem cavalo preto, que fuja a galope, você ainda marcha, José. Se voltar a pergunta: Jose, para onde? Diga: ora, Drummond, por que tanta dúvida? Elementar, elementar. Sigo pra Washinton. E, por favor, poeta, Não me chame de José. Me chame Joseph. Folha S. Paulo 10 INTRODUÇÃO Estudos desenvolvidos numa perspectiva lingüística, como os de Risso (1993), Martellota (1998) e de Lins (2004), demonstram que o item agora, primitivamente um dêitico temporal, cujo papel é situar eventos em um dado período de tempo, vem sendo utilizado, sobretudo na língua oral, ora com um valor juntivo, já que lhe cabe unir proposições, estabelecendo relações semânticas entre elas, ora com um valor discursivo, uma vez que atua na organização do discurso. Em relação aos significados assumidos, esse item segue uma trajetória, que parte do sentido mais concreto para um sentido gradativamente mais abstrato. Neste estágio, passa a desempenhar não só uma função não-adverbial, apontando para um referente que não apresenta mais noção originária locativo-temporal, como também uma função típica de marcador discursivo. Em vista disso, a fim de investigar a extensão dos novos usos do item agora e a relação desses novos usos com o gênero textual em que figura, decidimos averiguar o seu comportamento em tiras de quadrinhos do Gatão de meia idade, de Miguel Paiva. Neste trabalho temos, portanto, por objetivo realizar uma análise, com base no paradigma da gramaticalização e da discursivização no âmbito da lingüística funcional contemporânea, das funções do item agora nas tiras do Gatão. A perspectiva teórica adotada parte do princípio de que a língua, a fim de atender às necessidades sóciocomunicativas de seus usuários, é dinâmica e se adapta a pressões internas e externas que interagem continuamente. De um modo mais específico, pretendemos: 11 a) mostrar aspectos da evolução do vocábulo, a partir de sua fase latina, a fim de conhecer um pouco mais sua origem; b) examinar os contextos atuais de seu emprego como forma adverbial e como formas gramaticalizadas e discursivizadas; c) detectar e analisar as diferentes correlações interclausulares por eles indicadas; d) averiguar os diferentes papéis por eles exercidos nos níveis discursivo; e) demonstrar uma possível relação entre determinados empregos de agora e o gênero textual “tiras de quadrinhos”. Esta pesquisa apóia-se no paradigma da gramaticalização e da discursivização, nos moldes em que é tratado por Heine et al. (1991), Hopper e Traugott (1993), Martellota, Votre e Cezario (1996), Castilho (1997) e Martellota e Votre (1998) No aspecto textual-discursivo, buscamos auxílio nas propostas de lingüistas preocupados com a progressão tópica (Koch et. al., 1993 e Fávero, 1996) e com a organização da conversação (Marcuschi, 1986 e Silva & Macedo, 1996). Também serão feitas considerações em relação ao gênero textual “tiras de quadrinhos”. Para isso, levamos em conta considerações teóricas de Marcuschi (2000) e Mendonça (2002). As principais hipóteses a serem tratadas neste estudo são: 1. A expressão locativo-temporal do item agora o expõe ao processo de gramaticalização/discursivização, pois é comum, em qualquer língua natural, a utilização de entidades mais concretas para expressar funções ou significados mais abstratos, processo que, conforme mencionou-se acima, vem atingindo o advérbio agora, que, de um sentido locativo-temporal, vem sofrendo uma abstratização, cujo nível pode ser tão alto, que teria resultado no enfraquecimento de sua acepção temporal . 12 2. Agora, em sua função dêitica, passa por uma ampliação da referência temporal do momento presente para futuro ou para passado, pela função de conector e pela atuação no discurso. 3. Nas tiras de quadrinhos, o item agora apresenta o mesmo comportamento e exerce as mesmas funções que na conversação, ou seja, parte da enunciação, passa pelo enunciado e chega ao discurso. Este trabalho está dividido em quatro capítulos: No primeiro capítulo, expomos os pressupostos básicos da lingüística funcional, a fim de explicar como ocorrem os processos de gramaticalização e de discursivização. Por último, apresentamos, também, a fundamentação teórica sobre gêneros discursivos e tipos textuais, a fim de melhor caracterizar as tiras de quadrinhos. No segundo capítulo, como ponto de partida, buscamos de maneira breve uma abordagem histórica com o intuito de compreender o processo diacrônico que levou a expressão latina hac hora ao item agora, no português atual. Em seguida, categorizamos esse item levando em conta visões da tradição gramatical e perspectivas lingüísticas contemporâneas. No terceiro capítulo, descrevemos os procedimentos metodológicos utilizados nesta pesquisa e caracterizamos o corpus. No quarto capítulo, analisamos a trajetória de agora, considerando suas funções e seus significados nas tiras de quadrinhos. 13 1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS 1.1 A lingüística funcional Neste sub-capítulo, objetivamos, de maneira breve e didática, revisitar as noções formalistas (modelos estruturalista e gerativista) e funcionalista de estudos da língua. No estruturalismo, abandona-se o comparativismo gramatical, centrado na evolução histórico-diacrônica, e assume-se um estudo descritivo-sincrônico do sistema da língua. A língua, no estruturalismo, era concebida como um sistema de unidades e relações, cujas características dependiam essencialmente de sua natureza coletiva, social. Seu caráter descritivista era totalmente compatível com o caráter geral da ciência no início do século: analítico e centrado na observação empírica. Saussure expõe claramente essa concepção no seguinte trecho do Curso de Lingüística Geral (1993: 17): “Mas o que é língua? Para nós, ela não se confunde com linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos.” Além de conceber a língua como um produto social, os estruturalistas não pretendiam dedicar-se ao estudo da faculdade da linguagem. Assim Câmara Jr. (1974: 23-4) se refere ao campo de estudo da Lingüística: Não lhe cabe depreender que elementos mentais e que estímulos condicionaram para a humanidade um rudimento de linguagem, que lhe permitiu construir a representação do seu mundo exterior e interior, e desenvolver uma e outro por meio do auxílio mútuo que se emprestaram. 14 Nem lhe interessa, a rigor, a linguagem em si mesma, considerada como uma faculdade abstrata do homem. O seu objeto (já aqui se frisou antes) é o estudo dos sistemas de linguagem, ou línguas (...) Deslocando o centro de interesse do social para o mental, Chomsky passou a focalizar a língua como um tipo de conhecimento tácito, específico, o qual todo ser humano é capaz de dominar desde a infância. Assim, a teoria gerativa se concentra na mente, no conhecimento inconsciente da língua. Um dos pressupostos da sintaxe gerativa é o de que a Gramática é uma teoria da competência do falante/ouvinte, e não uma teoria do desempenho. Estudar a competência equivale a construir um modelo de conhecimento implícito, uma hipótese sobre o saber interiorizado que todos os falantes possuem. Como conseqüência, propor uma gramática é produzir um sistema finito de regras que expliquem o conhecimento intuitivo do falante na produção e interpretação de um conjunto finito de frases de sua língua. Segundo Chomsky (1971), no uso convencional, o termo gramática é “uma descrição ou uma teoria de uma língua, um objeto construído por um lingüista. Para os gerativistas, o estudo da gramática tem como objeto de investigação os estados da mente/cérebro que fazem parte do comportamento lingüístico real ou potencial e dos produtos desse comportamento. Assim, ocupa-se da inteligência do leitor, dos princípios e dos processos acionados para atingir o conhecimento de uma língua. Chomsky (op. cit.) define como seu objeto de estudo o conhecimento da Língua-I (interna), representação da competência do falante. Já para os estruturalistas, o objeto de estudo é a Língua-E (externa), ou seja, o produto do desempenho. A concepção funcionalista dos estudos lingüísticos admite que uma língua natural nunca é estática e acabada. Tomada sincronicamente, a gramática de qualquer língua exibe, 15 simultaneamente, padrões regulares, rígidos, e padrões que não são completamente fixos, mas fluidos. Entende-se por gramática funcional a que analisa a relação existente entre a gramática de uma dada língua e sua instrumentalidade de uso. Daí, numa perspectiva funcional, a simples descrição da estrutura não é suficiente. A descrição deve incluir referências ao falante, ao ouvinte e ao contexto sociocultural em que as sentenças ocorrem. Para os funcionalistas, a gramática não é somente um organismo gerado por fatores cognitivos inatos; o funcionalista valoriza, principalmente, os imputs, os quais exercem um papel relevante na estruturação da linguagem. Desta forma, não podemos considerar que a gramática obedece a uma estruturação de ordem exclusivamente inata. Castilho (1997) admite a existência de uma sintaxe funcional, que se refere à competência comunicativa do falante, parte da semântica e do discurso e contextualiza a língua na situação social. Leech (apud Neves, 1997: 49) apresenta sistematização dos pressupostos teóricometodológicos da lingüística formal e funcional: QUADRO 1 – Modelos formalista e funcionalista FORMALISTA (o exemplo é Chomsky) Linguagem como fenômeno mental FUNCIONALISTA Linguagem como fenômeno primariamente social Os universais lingüísticos são explicados Os universais lingüísticos são explicados como herança lingüística genética comum da como derivação da universalidade dos usos espécie humana da linguagem nas sociedades humanas Aquisição da linguagem: capacidade inata Aquisição da linguagem: desenvolvimento humana das necessidades e habilidades comunicativas Estudo da língua como sistema autônomo Estudo da língua em relação com sua função social 16 Leech liga as diferenças entre as duas abordagens a diferentes modos de encarar a natureza da linguagem: para os formalistas é um fenômeno mental; para os funcionalistas é um fenômeno social. Por outro lado, Nascimento (1990) ressalta que, embora formalismo e funcionalismo tratem do mesmo fenômeno, ou seja, a língua, seus pressupostos, objetosmodelos, metodologia são diferentes, mas não totalmente independentes. Para ele, o lingüista não deve só privilegiar uma descrição exterior da língua, mas também estar atento aos elementos que a constituem. Dillinger (1991, apud Moura Neves, 1997: 50) também afirma que formalistas e funcionalistas, de fato, estudam fenômenos diferentes que envolvem o mesmo objeto; assim, um estudo não exclui o outro, sendo ambos complementares e igualmente necessários. Neste trabalho, toma-se como suporte teórico o paradigma da lingüística funcional contemporânea, segundo o qual, a língua, instrumento de interação social, é um organismo dinâmico e maleável, que se adapta continuamente às necessidades comunicativas dos seus usuários. Assim, no intuito de melhor se expressar, no desejo de ser enfático, entre outros fatores, o sujeito “molda” a língua aos seus propósitos comunicativos. Nessa moldagem, atuam processos como o da gramaticalização e o da discursivização. Para o funcionalismo, a gramática1 de uma língua não é concebida apenas como sistema de regras fixas e acabadas, mas também como um sistema formado por um 1 É de Hopper (1987, apud Cunha, Oliveira e Martelotta, 2003: 50) a noção de “gramática emergente”, no sentido de que a gramática está num contínuo fazer-se, pois novas estruturas gramaticais são desenvolvidas à medida que surgem necessidades comunicativas não preenchidas e necessidades de dar conta de conteúdos para os quais não existem designações lingüísticas adequadas. 17 conjunto de regularidades decorrentes de pressões de uso, cuja estrutura está num contínuo processo de variação e adaptação, como atestam Martellota et al. (1996: 11): “... a gramática de uma língua natural nunca é estática e acabada: tomada sincronicamente, a gramática de qualquer língua exibe, simultaneamente, padrões regulares, rígidos, e padrões que não são completamente fixos, mas fluidos. Por alguma razão, certos padrões novos se estabilizam, o que resulta numa reformulação da gramática. Nesse sentido, a gramática é um “sistema adaptativo”: enquanto sistema, é parcialmente autônoma mas, ao mesmo tempo, é adaptativa na medida em que responde a pressões externas ao sistema.” Essa noção de gramática de cunho funcionalista difere do estruturalismo, que concebe a língua como um sistema estável de unidades e relações, e do gerativismo, que interpreta a língua como atividade mental. Este trabalho fundamenta-se, portanto, nos pressupostos do funcionalismo, cuja abordagem integra o estudo da língua paralelamente ao estudo da situação comunicativa, como se pode ler em Moura Neves (1997:15): “Por gramática funcional entende-se, em geral, uma teoria da organização gramatical das línguas naturais que procura integrar-se em uma teoria global da interação social. Trata-se de uma teoria que assenta as relações entre as unidades e as funções das unidades têm prioridades sobre seus limites e sua posição, e que entende a gramática como acessível às pressões de uso.” O funcionalismo se preocupa, então, com o estudo do uso da língua em situação comunicativa, e os estudos de base funcionalista procuram explicar de uma forma interligada os componentes sintático, semântico e pragmático. 18 É nessa concepção de gramática como estrutura maleável que o paradigma da gramaticalização e da discursivização é recuperado a fim de explicar a variação e a mudança, bem como a estabilização do sistema lingüístico. 1.1.1 Acepções dos termos gramaticalização e discursivização Segundo Paiva (2002), pode-se entender que gramaticalização2 possui duas significações básicas: a de paradigma e a de processo. Na acepção de paradigma, explicita uma mudança lingüística relativa tanto ao grau de vínculo forma/função, quanto ao grau de desgaste/manutenção de formas e construções gramaticais. Na acepção de processo, designa um processo diacrônico e um continuum sincrônico através do qual palavras léxicas mudam de estatuto e adquirem o status de formas gramaticais. Conforme Heine et al. (1991 – apud Neves, 1997 e Poggio, 2002), o termo gramaticalização, como se conhece hoje, tem suas origens, na China, no século X. No século XVIII, filósofos franceses (Condillac e Rouseau) admitiam que o vocábulo abstrato e a complexidade gramatical se desenvolviam a partir de um vocábulo anterior, concreto e individual. No século XIX (Alemanha e Estados Unidos), a gramaticalização, sem se adotar esse nome, foi vista como tema de estudos de gramática comparada. Nessa época, destacase o trabalho de Franz Bopp (1816 apud Poggio, op. cit), que apresentou exemplos de mudança de itens lexicais em auxiliares, afixos e/ou flexões. Merece atenção, ainda, o 2 Neste trabalho, o termo gramaticalização é empregado em seu sentido amplo e abrange os processos de gramaticalização e de discursivização, processos investigados pela lingüística funcional. 19 trabalho do neogramático Georg von der Gabelentz (1891, apud Poggio, op. cit.). Para ele, a gramaticalização é o resultado de uma tendência ligada à facilidade de articulação e outra ligada aos traços distintivos. Uma segunda idéia de Gabelentz é a de que a mudança lingüística não é concebida como linear, mas constitui um processo em espiral. No século XX, Antoine Meillet, fundador dos modernos estudos lingüísticos sobre gramaticalização, foi o primeiro a empregar, em seu artigo, L’évolution des formes grammaticales (1982)3, o termo gramaticalização para indicar “l’attribution du caractère grammaticale à un mot jadis autonome.”4 Para ele, as línguas seguem uma espécie de desenvolvimento em espiral: elas criam novas formas para novas idéias; algumas palavras perdem sua força expressiva e passam a sofrer nova concorrência, sendo substituídas por outra forma, e assim o ciclo se repete indefinidamente. Em seu artigo, Meillet descreve processos por meio dos quais surgem novas formas gramaticais: 1) analogia – formação de novos paradigmas, a partir de paradigmas já existentes; 2) gramaticalização – passagem de uma palavra autônoma a elemento gramatical. Enquanto a analogia não reorganiza o sistema da língua, ou seja, apenas proporciona a renovação de formas, a gramaticalização cria novas formas e ocasiona transformação no sistema, ao introduzir categorias para as quais não existiam expressões lingüísticas. 3 4 A primeira edição desse artigo é de 1912. A atribuição do caráter gramatical a uma palavra outrora autônoma. 20 Meillet afirma que, na transição de mots principaux (itens lexicais) a mots accessoires (itens gramaticais), há graus intermediários. Pode-se observar tal transição como um continuum. Os mots accessoires apresentam um aumento na freqüência e um esvaziamento do valor expressivo.5 Desta forma, a gramaticalização, segundo Meillet, é um processo de constituição de formas gramaticais por degradação de palavras antes autônomas. J. Vendryès (1950), em artigo intitulado “Les transformations morphologique”, cita Meillet, mas não emprega o termo gramaticalização. Para Vendryès, há duas tendências que dominam as mudanças de uma língua: 1) a analogia, a criação de novas palavras, a partir de um modelo que lhe é conhecido; 2) a passagem de palavras plenas a palavras vazias. Em 1968, Benveniste, discípulo de Meillet, repete o que este havia dito, em 1912, a respeito da gramaticalização de verbos auxiliares. Benveniste criou o termo auxiliarização para nomear a passagem de um verbo pleno a verbo auxiliar. Também empregou os termos criação (quando a mudança diz respeito ao desaparecimento de categorias gramaticais ou ao surgimento de novas formas) e renovação (quando as categorias são renovadas). (Poggio: 2002 p. 67) Kurylowicz (1965 – apud Castilho, 1997: 29) define gramaticalização como a ampliação dos limites de um morfema que avança de um item lexical a forma gramatical ou de um status menos gramatical para um mais gramatical. Segundo o autor, o item lexical, ao gramaticalizar-se, perde substância semântica e fonológica e passa a comportar-se como morfema livre ou preso. 5 Meillet ilustra esse processo com o verbo francês être, que de um verbo pleno, assume um sentido locatico, passa a verbo de ligação e, finalmente, desemboca na função de verbo auxiliar, indicando tempo e aspecto. Assim, tem-se: Je suis celui que suis – Je suis chez moi – Je suis malade – Je suis part / Je suis allé. 21 De acordo com Castilho (1997), até 1970, a gramaticalização foi vista como parte da lingüística diacrônica, como meio de analisar a evolução lingüística, de reconstrução da história de uma língua ou grupo de línguas, ou de relacionar estruturas lingüísticas atuais com estruturas mais antigas. Posteriormente, os estudos de gramaticalização se voltam a uma melhor compreensão da gramática sincrônica, já que as abordagens estruturalistas e gerativistas não se preocupavam com a relação entre domínios cognitivos (como espaço, tempo, modo, etc.) e estruturas lingüísticas. A partir dos estudos de Givón, (apud Castilho op. cit.), nos inícios da década de 70, surge uma nova perspectiva de análise. Givón, retomando e modificando o slogan de Hodge “a sintaxe de ontem é a morfologia de hoje”, declara, no trabalho Historical syntax and synchronic morfology, que “a morfologia de hoje é a sintaxe de ontem, mais tarde esse slogan é transformado em “a sintaxe de hoje é o discurso pragmático de ontem.” (Cf. Castilho 1997). Assim, até 1970, os lingüistas operavam com dois módulos lingüísticos: o léxico e a gramática. Mas Givón, ao declarar que a sintaxe de hoje é o discurso pragmático de ontem, delineia a gramaticalização, na perspectiva do funcionalismo, agregando um novo módulo lingüístico: o do discurso. Segundo Hopper e Traugott (1993: 1-2), o termo “gramaticalização” pode ter dois significados: 1) pode estar relacionado ao estudo da língua que observa a possibilidade de as fronteiras entre categorias serem discretas e a interdependência da estrutura e uso de elementos fixos e menos fixos na língua; 2) pode estar relacionado ao processo que torna elementos da língua mais gramaticais ao longo do tempo. Para Martellota et al. (1996), a gramaticalização é entendida como um processo de mudança que consiste na passagem de um item lexical a um item gramatical ou na 22 passagem de um item menos gramatical a um item mais gramatical. Assim, quando um item se torna mais gramatical, passa a assumir posições mais fixas na cláusula, tornando seu uso mais previsível; quando se torna menos gramatical, assume “funções relacionadas ao processamento do discurso, perdendo as restrições gramaticais típicas de seus usos originais...” (Martellota, Votre e Cezario: 45-46) Esses autores ressaltam que o processo de gramaticalização é unidirecional, pois os itens lexicais e construções sintáticas passam a assumir funções gramaticais e, uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais. Ao final, o elemento lingüístico se torna previsível e regular, pois sai do nível da criatividade (nível individual) para o das restrições gramaticais (nível pragmático-discursivo). Segundo Martellota et al. (p. 53-4), o processo de gramaticalização percorre vários níveis: o cognitivo, o pragmático, o semântico e o sintático. a) Nível cognitivo – a gramaticalização segue a tendência de usar elementos do mundo concreto para o mundo abstrato. O elemento do léxico é mais concreto que o da gramática. b) Nível pragmático – a gramaticalização envolve uma intenção do falante em usar algo conhecido do ouvinte para fazê-lo entender o que quer expressar, portanto, utiliza-se de conceitos mais próximos da realidade do falante/ouvinte para expressar novas idéias que surgem no decorrer do processo comunicativo. c) Nível semântico – a gramaticalização, como processo de mudança ocorrida no léxico, envolve o conhecimento por parte dos interlocutores dos significados de origem das palavras envolvidas; caso contrário, o sentido novo corre o risco de não ser detectado pelo ouvinte. 23 d) Nível sintático – a gramaticalização ocorre em contextos que a estimulem, aspectos sintáticos não só propiciam a gramaticalização, como também são responsáveis pelos caminhos da mudança. Para Castilho (1997: 31), a gramaticalização é o trajeto no tempo real ou no tempo aparente empreendido por uma forma lingüística, ao longo do qual ela muda de categoria sintática (= recategorização), recebe propriedades funcionais na sentença, sofre alterações semânticas e fonológicas, deixa de ser uma forma livre, e até mesmo desaparece, como conseqüência de uma cristalização extrema. A discursivização (pós-gramaticalização ou pragmatização, para alguns teóricos) é o processo de mudança que leva determinados itens a perderem função lexical, passando a assumir funções mais voltadas para a orientação da interação. Constitui um movimento que parte da gramática para o discurso, assumindo caráter mais pragmático e interativo. Para Castilho (1997: 60), a discursivização “é o uso discursivamente de itens lexicais”. Trata-se de um processo em que um item gramatical perde suas propriedades gramaticais e constitui-se numa categoria discursiva. É um processo distinto da gramaticalização, pois atua num campo mais vasto do que a gramática, marcando as relações entre os participantes ou entre os participantes e seu discurso. Segundo Martellota (1998: 64), “a discursivização leva o item a adquirir função de marcador discursivo, modalizando ou reorganizando a produção da fala, quando a sua linearidade é momentaneamente perdida, ou servindo para preencher os vazios ou interrupções por essa perda da linearidade”. Para esse lingüista, a gramaticalização gera operadores argumentativos, elementos que assumem um valor mais textual, apontando para algo que já foi dito ou que ainda será, ou que ligam partes do discurso atribuindo-lhes uma relação argumentativa. São mais fixos 24 na cláusula e têm função básica de organizar internamente o texto e não fazer referências a fatos do universo biossocial. Podem, ainda, indicar estratégias interativas, mas apresentam menor grau de pragmaticidade e de subjetividade. Martelotta et al. (1996: 61) consideram que os marcadores discursivos têm como função primária “reorganizar a linearidade das informações no discurso, quando essa linearidade é momentaneamente perdida por motivos diversos como insegurança ou falhas de memória, e , apenas subsidiariamente, para organizar as relações textuais”. De acordo com Vincent et al. (apud Martellota et al., 1996: 73), a discursivização tende a levar elementos lingüísticos a assumirem as seguintes características: a) asseguram um ritmo dinâmico aos enunciados que são emitidos em intervenções longas; b) constituem elementos repetitivos no discurso e não têm valor relacional; c) normalmente, ocorrem no fim de um sintagma prosódico; d) tendem a ser fracos e a apresentar redução fonética. Martellota (1998: 65-6) afirma que os marcadores discursivos desempenham funções voltadas para viabilização do processamento da fala no contexto de improviso e para a recepção por parte do ouvinte. Assim, os marcadores discursivos não estão primariamente a serviço da organização lógica interna ao texto, função desempenhada pelos operadores argumentativos, mas se relacionam às limitações cognitivas impostas ao processamento do discurso, sua função é, portanto, de natureza mais interacional. Diante disso, neste trabalho o termo “marcador discursivo” se aplica a elementos com função mais pragmática ou interacional (discurso), ou seja, são elementos que 25 organizam a fala dos interlocutores; por sua vez o termo “operadores argumentativos” se aplica a elementos que possuem uma função mais textual, como a de conexão lógica das informações. De acordo com as definições apresentadas, a gramaticalização e a discursivização se relacionam a um processo de mudança na estrutura lingüística. Isso é motivado por necessidades de ordem interacional e cognitiva dos usuários da língua, os quais, para transmitirem seus objetivos comunicativos, fazem uso de formas já disponíveis no sistema e atribuem a elas novos significados e funções. 1.1.2 Princípios que configuram a gramaticalização Hopper (1991 – apud Omena & Braga, 1996: 78) estabelece cinco princípios básicos como deflagradores do processo de gramaticalização/discursivização. São eles: a) Layering (estratificação) – segundo esse princípio, há coexistência de formas com funções correspondentes. Dentro de um domínio funcional, surgem novas camadas e as camadas antigas não desaparecem necessariamente, passando a coexistir e a interagir com as novas. b) Divergência – preconiza que quando uma determinada forma lexical se gramaticaliza, passando a clítico ou afixo, sua forma original pode permanecer como elemento autônomo, estando sujeita às mesmas mudanças de qualquer outro item lexical. 6 c) Especialização – se refere ao estreitamento das possibilidades de escolha 6 A noção de divergência pode se confundir com a noção de estratificação. Segundo Omena & Braga (p. 80), a noção de estratificação diz respeito a diferentes formas lexicais codificarem uma mesma categoria de um domínio funcional, enquanto a divergência se aplica ao fato de que uma mesma forma fonológica com diferentes estatutos gramaticais, isto é, a uma forma que, segundo os contextos, funciona ora como item lexical, ora como item gramatical. 26 d)Persistência – está ligada ao fato de que, com o processo de gramaticalização, uma forma derivada mantém vestígios do significado original. e) Descategorização – as formas, ao se gramaticalizarem, tendem a perder ou neutralizar as características de sua classe, como marcadores fonológicos e privilégios sintáticos. 1.1.3 Gramaticalização de conectores Segundo Hopper & Traugott (1993: 177), no processo de gramaticalização, há um continuum unidirecional ao longo do qual ocorrem mudanças de categoria. Diacronicamente, os elementos conectores se originaram a partir de itens lexicais ou de outros elementos menos gramaticais, como os advérbios e as preposições: “Clause linkage markers have their sources in nouns, verbs, adverbs, pronouns, case morphemes (including prepositions and postpositions), derivational affixes…”7 Inicialmente, ocorre uma extensão da referência dêitica de entidades no mundo extra-lingüístico para o estabelecimento de relações anafóricas ou catafóricas de SN e de proposições. Os elos conectores surgem da necessidade de ser claro e informativo, de fornecer direções ao ouvinte para interpretação da relação funcional entre as cláusulas e para marcar fronteiras sintáticas. Paiva (2002) relaciona a esse percurso de gramaticalização o desenvolvimento de embora a partir da expressão in bona hora > em boa hora, oposta a em má hora, como exemplifica o texto de Gil Vicente (apud Paiva): 7 “Marcadores de ligação entre cláusulas têm sua origem em nomes, verbos, advérbios, pronomes, morfemas de caso (incluindo preposições e posposições), afixos derivacionais...” 27 “Paio Vaz, se queres gado, dà ó demo essa pastora Paga-lho seu, vá-se embora/ou má hora/ E põe o teu em recado” (Gil Vicente) De uma expressão, usada na época medieval, com o sentido de em boa hora, o item embora passou a ser usado como advérbio com verbos ir, vir, mandar, até chegar à conjunção concessiva (Embora cansado, prosseguiu viagem). Assim, numa escala de abstratização crescente, ocorreu a passagem de um sentido mais concreto para o menos concreto. Heine et al. (1991, apud Lins 2004), ao demonstrarem que existe uma estreita relação entre as noções de espaço e de tempo, propuseram a seguinte escala ilustrativa do processo de gramaticalização de conectores: TEMPO ESPAÇO TEXTO Segundo Lins (2004), elementos que indicam espaço, por transferência metafórica, passam a ser empregados como indicadores temporais e, posteriormente, como organizadores do espaço textual, havendo a possibilidade de ocorrer um percurso do espaço externo diretamente para o espaço textual. De acordo com o esquema proposto, podemos ressaltar que a passagem da noção de espaço para a noção de tempo pode ou não acontecer, pois a orientação espacial pode passar diretamente ao texto. 28 A escala proposta por Heine et al. (apud Lins) ilustra que, numa trajetória de abstratização crescente, os elementos de organização interna do texto são provenientes da gramaticalização de noções espaciais e de dados temporais. Coelho (2001), em sua dissertação de mestrado, ilustra esse mecanismo de mudança com a passagem do item onde, que inicialmente tem sentido de espaço físico, evoluindo para espaço virtual, assumindo também o sentido de tempo, até atingir um nível de abstratização em que não se percebem as noções de espaço nem de tempo. Essa trajetória dos usos do onde segue o esquema abaixo: ESPAÇO FÍSICO>ESPAÇO VIRTUAL (=em que)>TEMPO (=quando)>TEXTO (=o qual) /DISCURSO Além da pressão por informatividade, a reanálise, mecanismo que atua no eixo sintagmático, é outro mecanismo de mudança na reorganização do enunciado. Por exemplo, no Inglês, o elemento that, de pronome catafórico, na primeira oração abaixo, se transforma no conectivo that, na segunda oração, por um processo de reanálise: (Lins, 2004) I said that: John is coming > I said that John is coming O mesmo ocorreu na formação do futuro do presente do português, em que dois vocábulos formais foram interpretados como um único elemento: amar hei > amarei. 29 1.1.4 Trajetórias de gramaticalização e discursivização de agora O item agora, forma de estatuto adverbial, passa por um processo de mudança lingüística e adquire estatuto de operador argumentativo. Sua origem remonta à noção de espaço, inclusa no pronome demonstrativo hac. Sua significação de neste momento faz referência ao pronome demonstrativo neste, pois, no seu uso latino, já se relacionava a uma função locativa temporal. Em exemplo citado por Martelotta (1998: 95), podemos constatar, no português arcaico, o uso do item agora com um valor tanto espacial quanto temporal: “Giflet, eu nom soõ rei Artur, o que soíam chamar rei aventuroso pólas boas que havia. Mas que me agora chamar per meu direito nome, chamar-me-á mal-aventurado e mizquinho. Posteriormente, em português, agora atua como dêitico temporal, exercendo a função de situar eventos a que se refere em um dado período de tempo, como no exemplo abaixo: 1. morro agora está bom, está calmo à beca, está tudo calmo. Mas em (hes) um ano atrás esse morro virou um <inf> Deus me livre.8 O valor temporal do agora inclui também uso mais amplo, podendo fazer referência a um período de tempo que não se restringe ao momento da fala: 2. Agora está muito bom o morro (“Ele”) está ótimo, está bom demais. 8 Os exemplos de 1 a 4 foram extraídos de Lins (2004) 30 No exemplo acima, embora o agora ainda seja empregado em seu uso canônico, adverbial, ocorre uma abrangência de tempo que inclui passado e futuro próximos. O item agora, além de expressar circunstância temporal, passa a exercer função na classe dos conectores e dos operadores discursivos, conforme os exemplos 3 e 4: 3. É, muita gente vai, agora eu não vou não. Tem uns dois ou três ano que eu não entro naquela quadra da vila pra nada. No exemplo 3, agora, ao se voltar para conexão de idéias no enunciado, assume novo valor, “que emerge de contextos determinados em que um sentido novo pode ser inferido do sentido primeiro – é o mecanismo de pressão de informatividade” (Lins, 2004). 4. É, isso não acontece na Europa, não é? Você estava mostrando, assim, uma série de coisa, a gente não lembra, (est) não é? E a mulher chega na Europa, entra num (hes) boteco, que ela bem entender, na América, vai ver um filme de sexo sozinha. E nem por isso, ninguém, agarra a mulher ali (risada). Respeito é muito maior, não é? (est). Agora, (nós não) é diferente, não é? Aquele negócio que eu estava falando, nós temos (hes) só quinhentos ano, não é? Até o homem adivinhar isso, não é? No exemplo 4, agora assume função mais pragmática, voltada para a construção textual-interativa. Agora redireciona o tópico conversacional, pois “o informante parece querer dar finalização ao assunto e o faz com uma estrutura introduzida por agora.” (Lins, 2004) Podemos constatar, portanto, que esse item vem cumprindo a trajetória de gramaticalização de conectores: (espaço) tempo > texto > discurso. 31 1.2 Gêneros e tipos textuais Os atuais estudos sobre gêneros textuais9 se reportam aos estudos de Bakhtin, cujo ensaio “O problema dos gêneros do discurso” é ponto de partida para outras reflexões. Para Bakhtin (1997: 301) toda prática social ou individual de linguagem se organiza em conformidade com um gênero do discurso:10 o querer dizer do locutor se realiza na escolha de um gênero, e essa escolha é determinada em função da especificidade de uma dada esfera de comunicação verbal, das necessidades de uma temática, do conjunto constituído de parceiros, etc. Os gêneros, na visão desse autor, se constituem historicamente e se caracterizam por tipos diferenciados de conteúdo, de estilo verbal e de formas composicionais específicas. Desta forma, cada esfera de atividade social, devido a sua função sócio-ideológica, formula na/pela interação verbal determinados gêneros de discurso específicos. Esse repertório particular de cada esfera se diferencia e cresce à medida que ocorrem as transformações sociais, o que confere ao gênero um caráter de mudança e de relativa estabilidade. Essa variedade e heterogeneidade dos gêneros dificulta uma classificação. No entanto, Bakhtin, ao estudar a natureza dos enunciados nas diferentes esferas de comunicação, e numa releitura da noção de gêneros ligada à literatura e à retórica, agrupaos em primários (simples) e secundários (complexos). De acordo com o teórico russo, os gêneros primários, como a conversação e a carta pessoal, “são constituídos em 9 Neste trabalho, utilizamos a noção de gênero textual, trilhando a concepção bakhtiniana, para referirmo-nos a eventos comunicativos, construídos historicamente, que se encontram em uso em determinada esfera social, com finalidades próprias, e construídos a partir de modelos préexistentes. 10 A terminologia usada por Bakhtin é flutuante: ora utiliza gêneros do discurso, ora gêneros de texto. Isso acontece, na visão de Bronckart (1999, p. 143), pela evolução interna da obra e pelas inúmeras traduções. 32 circunstâncias de comunicação verbal espontânea” (p.281); os gêneros secundários, como o romance, o teatro, o discurso científico, etc, “aparecem nas circunstâncias de uma comunicação cultural (principalmente escrita), mais complexa e relativamente mais evoluída” (idem). Bakhtin não formaliza tipologias. O agrupamento em gêneros primários e secundários está assentado em um princípio sócio-histórico. Os gêneros primários, constituídos na comunicação espontânea, são absorvidos e reelaborados pelos gêneros secundários. Bronckart (1999), inserido na corrente sócio-interacionista e apoiando-se em pressupostos teóricos baktinianos, enfoca a linguagem como meio pelo qual os participantes de uma dada comunidade lingüística interagem. A adoção de uma posição interacionista leva em conta, no processo sócio-histórico, as estreitas relações entre os gêneros e as atividades humanas. Para esse autor (1999: 75), texto é “toda unidade de produção de linguagem situada, acabada e auto-suficiente (do ponto de vista da ação ou da comunicação)”. Como todo texto se inscreve, necessariamente em um gênero, adotou-se a expressão gênero de texto. Assim, a fim de escapar a confusão terminológica, Bronckart esclarece suas definições: “Enquanto, devido à sua relação de interdependência com as atividades humanas, os gêneros são múltiplos, e até mesmo em número infinito, os segmentos que entram em sua composição (segmentos de relato, de argumentação, de diálogo, etc.) são em número finito, podendo, ao menos parcialmente, ser identificados por suas características lingüísticas específicas. Essas duas propriedades parecem estar estreitamente relacionadas, pois, se as espécies de segmentos são em número limitado, isso se deve ao fato de atualizarem subconjuntos de recursos de uma língua natural, que são finitos ou limitados. Esses diferentes segmentos que entram na composição de um gênero são produto de um trabalho particular de 33 semiotização ou de colocação em forma discursiva e é por essa razão que serão chamados de discursos, de agora em diante. Na medida em que apresentam fortes regularidades de estruturação lingüística, consideraremos que pertencem ao domínio dos tipos; portanto, utilizaremos a expressão tipo de discurso para designa-los, em vez da expressão tipo textual.” (p. 75-76) No trecho acima, o autor faz referência ao fato dos gêneros serem compostos por segmentos que, por utilizarem de recursos da língua, são, conseqüentemente, limitados ou finitos. Tais segmentos são denominados, na visão de Bronckart, de tipos de discurso, os quais, na visão de Marcuschi (2002: 22), são definidos como tipos textuais e tomados como constructos teóricos “definidos pela natureza lingüística de sua composição. (...) e que abrangem cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção.” Ainda segundo Marcuschi (op. cit.), para a identificação de tipo textual predomina a identificação de seqüências lingüísticas típicas como norteadora. Narrativa: caracteriza-se pela presença de organizadores temporais. Descritiva: predominam as seqüências de localização, caracterizam-se, também, pelo emprego de verbos de estado e de adjetivos. Expositivos: caracterizam-se por enunciados analíticos, com verbos no presente do indicativo. Argumentativo: caracterizam-se pelo emprego de técnicas argumentativas e estratégias de persuasão (confronto, comparação, analogia, etc) e pelo emprego de enunciados avaliativos. Injuntivos: caracterizam-se pelo uso de formas verbais no imperativo ou no infinitivo. Dialogal: caracterizam-se por serem segmentos estruturados em turno de fala. Marcuschi (op. cit.) usa a expressão gênero textual para se referir a: 34 “...uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdo, propriedades funcionais, estilo e composição característica” (p. 22-3) Os gêneros textuais têm características típicas que abrangem aspectos externos, sócio-comunicativos, e aspectos internos, formais e lingüísticos (tipos textuais). Estes atuam como elementos organizadores e, muitas vezes, determinam o gênero em questão. Pode-se dizer, então, que os gêneros textuais fundam-se em critérios externos (sóciocomunicatico e discursivo) e os tipos textuais fundam-se em critérios internos (lingüísticos e formais). Os gêneros textuais devem ser estudados/descritos a partir de suas características lingüístico-textuais e de suas características discursivas, as quais respondem pelas condições de produção e de circulação do gênero na sociedade. 1.2.1 O gênero tira de quadrinhos Segundo Iannone e Iannone (1994), as histórias em quadrinhos (HQs) eram publicadas nos jornais dominicais, na forma de tablóide e, inicialmente, tinham um conteúdo cômico (comics), pois combinavam piadas e situações engraçadas envolvendo crianças e suas fantasias. O surgimento de novos desenhistas e o crescente interesse econômico dos donos de jornais por novidades fizeram com que essa arte seqüencial se tornasse diária e tomasse o formato de faixa horizontal, composta por três ou quatro quadros, a que se chama tira. Seu conteúdo passou a criação de suspense, presente no último quadro da tira, o que obrigava o leitor a comprar o jornal no dia seguinte. Surgem, então, as tiras diárias. 35 Eisner (2001) define as HQs como uma forma de arte seqüencial, cuja característica é utilizar-se da sobreposição de recursos icônicos e verbais na feitura de seu texto. Esses recursos icônicos não são, segundo o autor, meramente ilustrativos de fragmentos da história. Pelo contrário, fazem parte constitutiva da mesma, já que, em grande parte, o desenrolar das ações na trama narrativa é exercida por meio do desenho. Podemos atestar essa interdependência entro o visual (imagem) e o texto escrito na figura abaixo: FIGURA 1 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2 No primeiro quadro da figura 1, o personagem Gatão, ao procurar ser notado pelas personagens femininas, adota uma postura de conquistador, a qual é desfeita por meio da inserção de um segundo quadro sem palavras, em que as personagens mudam suas expressões fisionômicas deixando transparecer o descontentamento com a presença do personagem masculino. É imagem que dá continuidade ao fluxo da narrativa, preparando o leitor para fim da narrativa de humor. 36 Como operação básica do processo narrativo, os balões, espaços delimitados por diferentes tipos de linhas curvas ou retas, indicam seqüência temporal, mudança locativa, etc. Geralmente ligados ao personagem das tiras por um apêndice, incorporam o texto à imagem, e seu contorno pode indicar fala, pensamento, cochicho, sensações de medo, cólera, etc. É o uso dos balões que permite, no mesmo desenho, atribuir a cada personagem o que ela diz e o que pensa11, diferentemente do cinema (Cf. Quella-Guyot, p. 12). Esse recurso gráfico indica, portanto, o turno de fala dos personagens sobre um determinado tópico discursivo. Embora, normalmente, não ocorra sobreposição de turnos, pode haver assaltos a eles. Isso ocorre, segundo Lins (2004), porque o diálogo entre os personagens parece estar no entremeio do oral com o escrito12. O gênero HQs e as tiras se aproximam bastante do texto falado, pois constituem um texto que é planejado para parecer não planejado, procurando evidenciar a espontaneidade da conversação informal. Assim, embora o tema e os aspectos lingüísticos sejam produtos de um planejamento prévio, o que faz com que, nos diálogos dos personagens, não se percebam truncamentos ou repetições, características da conversação, pode-se encontrar, nas HQs e nas tiras, outros elementos responsáveis pela organização do texto falado tais como: turno conversacional, tópico discursivo, marcadores conversacionais, registro de onomatopéias, etc. Como mais um recurso da narrativa, as legendas ou letreiros são responsáveis pela introdução do discurso do narrador. São comumente empregados no início da história, ou 11 Quando diversos personagens falam ou pensam a mesma coisa, o balão tem mais de um apêndice e se chama balão-uníssono. 12 Isso faz com que, na visão de Bakhtin, as HQs e as tiras de quadrinhos constituam um gênero discursivo secundário, pois são produzidos na interface oral/escrita. 37 no decorrer dela, ligando um quadro a outro.Além disso, no sistema narrativo dos textos em quadrinhos, a presença de certos caracteres tipográficos tem a função de economizar palavras no que diz respeito à expressão de sensações, emoções, etc dos personagens e do narrador. Por exemplo, uma lâmpada acesa indica uma idéia brilhante; cobras e lagartos representam palavras obscenas; uma fumacinha que sai da cabeça dos personagens pode indicar raiva, aborrecimento. De temática diversificada, que vai desde sátira a aspectos econômicos e políticos do país a forma de informação e entretenimento, as tiras13, de acordo com Mendonça (2002), podem ser dividas em dois tipos: a) tiras-piada, em que o humor é obtido por meio de estratégias discursivas utilizadas nas piadas de um modo geral, como a possibilidade de dupla interpretação, sendo selecionada pelo autor a menos provável; b) tiras-episódio, nas quais o humor é baseado especificamente no desenvolvimento da temática numa determinada situação, de modo a realçar as características das personagens. No corpus em análise, predominam as tiras-episódio. A temática gira em torno das aventuras e desaventuras do Gatão, representante de um novo homem que, pressionado pelas mudanças no comportamento feminino, busca compreender o novo papel da mulher na sociedade. Construído a partir de um quadro ou de uma seqüência de mais de um quadro, que narram um determinado fato ou acontecimento por meio da conjugação de dois códigos 13 A expressão “tiras de quadrinhos” será usada, neste trabalho, para se referir a unidades narrativas, contadas na forma de desenhos, geralmente delimitados por linhas formando quadrados ou retângulos, e de diálogos. Para Mendonça (2002), as tiras, de menor extensão e de caráter sintético, são um subtipo de histórias em quadrinhos 38 (verbal e não-verbal), esse gênero se assenta, fundamentalmente, no tipo textual dialógico e narrativo, sem, contudo, deixar de lado a heterogeneidade tipológica, propriedade de todos os gêneros. Isso pode ser observado nas figuras abaixo em que aparecem outras seqüências textuais: FIGURA 2 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2 Na figura 1, as seqüências lingüísticas são sustentadas pelo objetivo de defender uma tese, “homem e mulher não se entendem”. Ocorre, portanto, predomínio do tipo textual argumentativo. Gryner (2000), a partir da análise se seqüências textuais da modalidade oral, delineou categorias, identificando os enunciados constituintes da seqüência argumentativa, como sendo: 1) posição (ponto de vista) – asserção básica cujo conteúdo será defendido pelo locutor; 2) justificação – geralmente introduzida pelos conectivos porque e que, funciona como explicação de qualquer parte dos constituintes (posição, exemplificação, evidência formal, conclusão ou coda) 39 3) sustentação: núcleo da argumentação, defesa do ponto de vista do locutor, que pode ser apresentada de duas maneiras: a- evidência formal: apresentação de um ou vários aspectos particulares b- evidência empírica: exemplificação, ilustração através de fatos concretos 4) conclusão: fecho da argumentação, confirmação da posição defendida pelo locutor com base nas provas apresentadas; 5) coda: asserção que expressa a atitude do locutor. É a “moral da história”. Com base nos constituintes acima descritos, propomos uma descrição simplificada a fim de melhor caracterizar a tira em análise: 1) posição: asserção básica, que apresenta o ponto de vista a ser desenvolvido. É, em geral, conforme Gryner (op. cit.), o primeiro constituinte da seqüência, apresentando forma declarativa com verbo no indicativo. No primeiro quadro da tira, o personagem Gatão introduz seu ponto de vista: “Homem e mulher não se entendem mesmo!” 2) justificação: explicita causas e motivos do ponto de vista. Aparece após a posição e é introduzida pelos conectores porque, que, pois. Normalmente, vem logo após a posição. No segundo quadro da tira, a fala do Gatão explicita a justificação. A conexão do segundo enunciado ao primeiro é feita de forma implícita pelo conectivo pois: “Um fala uma língua o outro fala outra língua...” 3) sustentação: evidências apresentadas que sustentam o ponto de vista a ser defendido; 4) conclusão: é o fecho, término da argumentação. Pode-se apresentar por meio de uma declaração, geralmente introduzida pelos conectivos portanto, em vista disso, etc; por 40 meio de enunciados que ratificam a posição e por meio de enunciados que apresentam um posicionamento. O último quadro da tira não só apresenta evidências, por meio da exemplificação, como também coincide com o término da argumentação. A fim de marcar esses constituintes e melhor caracterizar o tipo textual argumentativo, podemos reescrever os enunciados da tira a seguinte forma: “Homem e mulher não se entendem mesmo(posição), POIS um fala uma língua (justificação), o outro fala outra língua. POR EXEMPLO, minha ex-mulher só sabia dizer não na minha língua” (sustentação e conclusão). FIGURA 3 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1 Nos três primeiros quadros, um narrador onisciente situa o clima de sedução. A função narrativa e sua seqüencialização temporal são marcadas em grande parte por meio do desenho. Ocorrem os seguintes tipos textuais: 1) descritivo (Vestígios de sedução, sinais de uma noite de amor e sexo de um homem moderno, livre e desquitado...), marcado por meio de seqüências lingüísticas que caracterizam o clima de sedução; 41 2) expositivo (“A música sensual estabelece o clima de conquista, de mútua atração entre dois corpos excitados...”, “As roupas caem, revelando o frêmito selvagem do desejo incontrolável, do prazer imenso...”, “É ele, o nosso herói, mostrando seu lado sensível, seu savoir-faire”, maracdo pela exposição dos fatos e pelas constatações; 3) injuntivo (“Não liga, amor, isso acontece”), sinalizado pela prescrição de comportamento. 4) argumentativo - no último quadro, o personagem Gatão, a fim de manter sua imagem de homem viril, atribui à personagem feminina a responsabilidade de seu fracasso sexual. Ele, ao tentar se explicar, defende a tese de que a culpa não é dele. Segundo Mendonça (op. cit.), a preferência pelo gênero tira de quadrinhos parece ocorrer por dois fatores: economia de espaço e acesso à narrativa completa numa mesma edição. Normalmente localizadas nos “cadernos” dos jornais, as tiras, destinadas a um público bastante heterogêneo, também, aparecem em gibis, boletins informativos de empresas pública e privadas, publicações voltadas para o lazer educativo de crianças e em revistas dirigidas ao público adolescente e ao público feminino. É com base nessa descrição realizada que procuraremos entender o comportamento do item agora no gênero tira de quadrinhos. 42 2. REVISÃO DA LITERATURA 2.1 Visão diacrônica O item agora, do latim ao português atual, por um processo de sonorização, sofreu a seguinte mudança: hac hora > ac ora > agora14. Surgido da re-análise da expressão latina hac (= por aqui) hora, sendo hac um dêitico espacial, que expressa proximidade em relação ao falante. Segundo Martelotta (2004: 107), embora o vocábulo agora revele, em sua etimologia, origem espacial, no português arcaico, já funcionava como circunstanciador temporal. Neste exemplo, citado pelo autor, verifica-se o uso do item agora tanto com um valor espacial como temporal: “... ca agora he o mês de feuereyro e toda esta terra de Capadocia he cuberta de geada e de friu e nõ há em ella folhas uerdes ne flores nenhûas.. Câmara Jr. (1975: 122) afirma que, no sistema de advérbios temporais, o advérbio latino nunc possuía a acepção de “neste momento”. Nunc foi substituído, no latim vulgar, regionalmente, pela locução ablativa hac hora, ou apenas pelo ablativo hora. Ac hora e hora originaram, no português, respectivamente, agora e ora. De acordo com Câmara Jr., nunc formava uma série temporal tripartida com antes – “num momento anterior a este” – e depois – “num momento seguinte”. E se opunha, ainda, a então – “não neste momento”. O autor salienta que antes e depois também podem ter referenciais locativos, além dos temporais. 14 Desde a época clássica, a aspirada /h/ desapareceu, tornando-se um sinal gráfico sem valor fonético. Por isso, nas línguas neolatinas, não há /h/ aspirado. A pretensa aspiração do h francês, segundo o Doutor José Augusto de Carvalho, em héros, por exemplo, é para evitar a elisão, e só ocorre em contextos em que há a possibilidade de confusão com outros itens lexicais: les héros não se confunde com les zeros por causa disso. 43 Tendo em vista, então, que a origem do agora remonta à noção de espaço, constatase que esse item vem cumprindo a trajetória espaço > tempo > texto. 2.2 Visão sincrônica As gramáticas da língua portuguesa não apresentam uma análise satisfatória e abrangente para o item agora, pois não contemplam seus múltiplos usos. O que se observa é que essas gramáticas não estão preocupadas com as funções discursivo-pragmáticas, por isso, o agora se enquadra apenas na classe dos advérbios. Cunha e Cintra (1985), por exemplo, caracterizam o agora, primeiramente, como advérbio de tempo e, posteriormente, juntamente com os itens afinal, então, mas, etc., como palavra denotativa de situação. Embora esses dois autores não apresentem exemplos de agora como palavra denotativa de situação, apenas pelo primeiro exemplo “Desculpeme... Mas sente-se mal?”15, supõe-se que se trata de um operador discursivo. Os próprios autores reconhecem a dificuldade em classificar o agora e outros itens exclusivamente na classe dos advérbios: “... tais palavras não devem ser incluídas entre os advérbios. Não modificam o verbo, nem o adjetivo, nem outro advérbio. São por vezes de classificação extremamente difícil. Por isso, na análise, convém dizer apenas: ”palavra ou locução denotadora de exclusão, de realce, de retificação”, etc”.16 Para Rocha Lima (1999), os advérbios são vistos apenas como modificadores do verbo, servindo para expressar as várias circunstâncias que cercam a significação verbal. O agora está inserido na classe dos advérbios de tempo. 15 16 P. 541 p. 241 44 Bechara (1999: 290) aponta para o fato de que a grande variedade semântica que caracteriza a classe dos advérbios dificulta uma classificação mais precisa: “constituindo o advérbio uma classe de palavra muito heterogênea, torna-se difícil atribuir-lhe uma classificação uniforme e coerente”. Entretanto, Bechara não tece mais considerações em relação a essa variabilidade. Por outro lado, Perini (1996: 342) comenta o caráter multifuncional de alguns advérbios. Diz o autor que “a definição de advérbio, se for possível, deverá ser formulada em termos de funções” e que “sob o rótulo de advérbio se esconde uma variedade irredutível de classes”. Pereira (1933) já havia observado, dado o caráter multifuncional de alguns advérbios, a trajetória de advérbio em conjunção. Ele subdivide, quanto ao valor sintático, a classe dos advérbios em simples e conjuntivos. São simples os que só têm função de advérbio (aqui, hoje, talvez, etc) e conjuntivos os que acumulam na frase o papel de conjunção (onde, quando, como, enquanto, etc). Segundo Almeida (1999) tanto ora quanto agora exercem o papel de conjunção: “Agora é forma derivada da locução latina “hac hora” (=nesta hora), e ora da palavra latina “hora”. Note-se que hora, com h, indica o período de tempo de 60 minutos, ao passo que ora, sem h (não obstante ter procedência igual à de hora), é advérbio, que não raro funciona como conjunção.” (p. 318, § 526) O item agora, quando repetido, também funciona como conjunção: Agora lhe pergunta pelas gentes De toda a Hispéria última, onde mora; Agora pelos povos seus vizinhos; Agora pelos úmidos caminhos. (ibid, p. 318) Ilari et al. (1996) apresentam uma nova proposta de classificação dos advérbios, os quais são subdivididos em advérbios de constituinte, de sentença e de discurso. Desta forma, alguns advérbios se aplicam tanto a sentença quanto ao discurso: 45 “Alguns ‘advérbios’, particularmente os dêiticos, podem aplicar-se a unidades cujas dimensões ultrapassam não só os limites dos constituintes, como também da sentença. Encontramos, por exemplo, advérbios como agora, aplicado a segmentos de amplitude e natureza lingüística diferentes.” (ILARI et al., 1996, p. 84) Os exemplos a seguir foram arrolados por Ilari et al.:17 1) “Por enquanto não [têm esses problemas de juventude] porque... as mais velhas estão entrando agora na adolescência. 2) “Então é um corre-corre realmente, não é? ... Agora eu assumi também uma secretaria de APM... lá no colégio das crianças, então tenho muita tarefa também fora de casa, não é? 3) “- Agora que estão todos maiores, quer dizer, cada um fica mais ou menos responsável por si. - já se cuidam - de higiene, de trocar de roupa, todo esse negócio. Quer dizer, já é alguma coisa que eles fazem porque... - Ajuda demais, né? - Já ajudam bem. - Agora, tem sempre [...] numa família grande há sempre um com tarefa de supervisor... por instinto, não é por obrigação.” Em 1, o agora possui um viés semântico equivalente a “nesse período”. Já em 2, o agora se vincula a toda sentença e possui uma referência temporal mais ampla. Inicia-se em algum ponto do passado, tem continuidade no presente e, provavelmente, continuará no futuro. Finalmente em 3, a segunda ocorrência do item agora abarca uma seqüência 17 p. 85 46 discursiva mais ampla, pois introduz um novo momento no discurso que se distingue do anterior por uma mudança de tópico e de orientação discursiva. Neves (2000) comenta a ampliação do valor temporal que o advérbio agora pode apresentar. Segundo ela, o advérbio agora não só exprime momento ou período fisicamente delimitado mas também uma abrangência temporal que inclui um passado ou futuro: “Os advérbios não ligados a escalas concretas de medição, como AGORA, não exprimem momento ou período fisicamente delimitado; apresentam variação de abrangência que pode reduzir-se a um mínimo (pontual), mas pode abranger um período maior ou menor, não só do presente, mas também do passado ou do futuro, desde que toque o momento da enunciação ou se aproxime dele.” (Neves, 2000: 259) A partir disso, constata-se que, segundo a autora, o tempo em questão é nãocronológico, sem ligação com o calendário. Para ilustrar os traços semânticos das circunstância de tempo de agora, a autora arrola os seguintes exemplos18: 1) “Só AGORA é que a senhora se lembrou disso?” = neste momento 2) “Estava dizendo um matuto, na venda, que Aparício anda AGORA com mais de duzentos homens.” = na época atual 3) “Mas vamos passar AGORA à parte principal do nosso programa.” = neste momento ou período, prolongando-se para o período imediatamente seguinte a este) 4) “E AGORA houve uma mula que tenha parido?” = no momento/período imediatamente anterior a este 5) “A vida da gente é esta mesma que está aqui e o melhor é acabar com ela. E AGORA aparece menino novo, para ainda mais me sucumbir.” = nos últimos tempos 18 Neves, 2000: 266. 47 Risso (1993), a partir de dados do projeto NURC, se propõe a investigar o agora enquanto unidade de âmbito textual. Segundo a autora, nesse caso, o agora se diferencia da classe dos advérbios porque: y não é desencadeado pela fórmula interrogativa “quando?” ou desde quando?”. “L1 ... agora eu assumi também... uma:: secretaria de APM... Quando você assumiu também uma secretaria de APM? Agora (:Atualmente).” y não é parafraseável por equivalentes como “atualmente”, “neste momento”. “L1 como artista... no piano... não é? Agora:: o Luís... o de seis anos L2 ahn ahn L1 ele::... desde pequenino ele é ((vozes ininteligíveis)) Desde pequeno o Luís gosta... da história do homem...” y não é passível de enquadrar-se como foco de orações clivadas – ponto que configura sua condição de elemento pragmático-textual. Agora:: o Luís... desde pequeno gosta... da história do homem... (*) É agora que o Luís desde pequeno gosta da história do homem. Risso (1993) descreve, em seu trabalho, as funções do agora, levando em conta o tipo de articulação (intertópica ou intratópica). Para ela, “como operador da coesão no âmbito textual, agora particulariza-se por sua condição de elemento não-integrante da 48 estrutura sentencial”19. Ao analisar as funções de agora na abertura e encaminhamento de tópicos, a autora identificou pontos no plano das relações textuais, como: y “A propriedade remissiva do marcador no estabelecimento das relações internas no texto” (p. 54) “A propriedade de refletir a instância da enunciação a partir de dados de natureza essencialmente pragmática.” (p. 55) “A configuração de uma situação discursiva ego-cêntrica, ou seja, o agora tende a “orientar o discurso para o que um dado falante vai dizer, a partir do que ele mesmo disse” (p. 55) Podemos constatar, pelos estudos de Risso (1993) e de Ilari et al. (1996), que o item em análise se associa a significados progressivamente mais abstratos, partindo da noção de tempo e desembocando na categoria de organização textual/discursiva. Essa trajetória foi descrita por Heine et al (1991), conforme esquema abaixo: ESPAÇO > (TEMPO) > TEXTO De acordo com essa visão, a gramaticalização documenta um processo linear e unidirecional segundo o qual determinados itens lexicais passam a assumir novo estatuto como elemento gramatical, passando a ficar mais regulares e mais previsíveis. 19 1993: 38 49 3. METODOLOGIA E “CORPUS” 3.1 Natureza do corpus Nosso trabalho consiste na análise de um corpus formado por 15 tiras, publicadas no livro Gatão de Meia Idade, volumes 1 e 2. Ao todo são 566 tiras, entretanto, foram selecionadas, de acordo com nossos objetivos, apenas aquelas em que há ocorrência do item agora. O volume 1 é composto por onze tirinhas, o 2, por cinco. O personagem principal das tiras é um homem quarentão, de classe média, designer, que se apresenta em uma das tiras: FIGURA 4 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1 Lins (2004) traça, em sua tese de doutorado, o perfil deste personagem a) Identificação Quarentão em crise Cabelo longo, amarrado em rabo de cavalo Descasado Moderno 50 b) Cenário em que atua Em casa Nos bares c) Características atitudinais Angustiado por causa da idade Descontraído, charmoso, irreverente com as mulheres Ocupado em entender o universo feminino Perplexo perante os novos tempos Miguel Paiva, ao apresentar na contra-capa do livro seu personagem, tece as seguintes considerações: “Mutante, ambíguo, moderno, ele vive alguns terríveis conflitos com a própria idade – mas é capaz de se divertir como um adolescente quando sai com os amigos. Amou os Beatles e os Rolling Stones, e no entanto exibe agora, sem o menor constrangimento, vícios hyppies e namoradas tão jovens. Assim é o nosso herói, o Gatão de meia idade: retrato preciso e bem humorado das contradições de nosso tempo.” A opção pelas tiras do Gatão de Meia Idade se fez pela própria temática. Miguel Paiva, ao retratar o universo de um profissional liberal, quarentão, descasado e com uma filha pré-adolescente, utiliza uma linguagem mais próxima do registro falado informal. Além disso, as tiras de quadrinhos se aproximam bastante da conversação do dia-adia, o que permite analisá-las tomando como parâmetro pesquisas feitas a respeito da conversação. 51 Segundo Marcuschi (1985:15), as cinco características básicas da conversação são a interação entre pelo menos dois falantes, a ocorrência de pelo menos uma troca de falantes, a seqüência de ações coordenadas, execução numa identidade temporal e o envolvimento numa “interação centrada”. Por outro lado, os diálogos das tiras, quando aparecem, apresentam características tais como cada personagem fala na sua vez, o que não favorece a sobreposição de vozes e assaltos aos turnos; normalmente não há casos de hesitação ou correção; são raros, também, os casos em que aparecem marcadores conversacionais de início, meio ou fim (cf. Macedo e Silva, 1996), como bem, bom, tá?, né?. Neste trabalho, portanto, os diálogos presentes nas tiras de quadrinhos serão tratados como uma espécie de simulação de textos conversacionais, já que se situam num continuum lingüístico, pois se realizam por meio escrito, mas buscam reproduzir a fala. 3.2 Metodologia de análise Na análise dos usos de agora nas tiras de quadrinhos do Gatão de Meia Idade, foram utilizados textos especializados, sobretudo de cunho funcionalista, e textos que versam sobre gramaticalização e discursivização de conectores e operadores discursivos. Com fins de análise, a partir da observação dos dados selecionados, procuramos distribuir o item agora em três traços básicos: com valor de dêitico temporal, com valor juntivo e com valor discursivo. 52 3.3 A construção do humor nas tiras do Gatão20 As tiras de quadrinhos, na sua representação icônica e verbal dos fatos, constituem um interessante objeto de análise das relações entre linguagem e sociedade, uma vez que refletem valores culturais. No caso das tiras do Gatão de Meia Idade, as atitudes e posturas de seu personagem retratam a mudança no comportamento e na sexualidade do homem maduro, traduzindo o perfil do homem dos anos 90: “o Gatão saiu da realidade para a ficção, onde (sic) se tornou espelho desses famosos anos 90.” 21 Perdido diante das transformações que a emancipação feminina causou, o Gatão busca compreender a mulher atual. Na tira da figura 5 abaixo, um grupo de homens procura adequar seu comportamento ao novo momento sócio-histórico: FIGURA 5 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2 20 Embora não seja tema central de nosso trabalho, a abordagem do processo de construção de humor nas tiras do Gatão de Meia Idade visa ao enriquecimento da análise do corpus. 21 PAIVA, Miguel. Gatão de Meia Idade. v.1 contra-capa 53 As crises, as angústias e os prazeres do Gatão, retratados de uma forma irônica nas tiras de Miguel Paiva, são uma importante estratégia que leva à produção do humor. Buscaremos, numa perspectiva de análise interacional, neste subcapítulo, descrever as estratégias lingüístico-discursivas responsáveis pela produção do humor. Lins (2002), com base na Sociolingüística Interacional, busca, em seu trabalho, explicar como se produz o humor nas tiras de quadrinhos. Para essa lingüista, a situação de interação criada22, ou seja, o modo como o autor gerencia seus personagens, pondo-os a atuarem de modo a romper com as estruturas de expectativas ativadas, é o gatilho que desencadeia o humor. Nas tiras do Gatão, a mudança de comportamento quanto aos papéis sexuais é uma importante estratégia para deflagração do humor. Segundo,Tannen (1990), Coulthard (1991) e Lins (1997), enquanto as mulheres, normalmente, usam a língua para se integrar, os homens a utilizam como instrumento de ação. O quadro abaixo procura sintetizar os estilos conversacionais que predominam na fala dos homens e das mulheres. QUADRO 2 - estilos conversacionais Homem Mulher Exercer o controle da conversa Estabelece e mantém a conversa Domina a conversa É solidária na conversa Tende a dar conselhos Incentiva o outro a falar Assertivo Não-assertivo Exibe conhecimento e habilidades Compara experiências 22 Segundo Lins (p. 53), a abordagem da situação de interação envolve não só a análise do comportamento verbal dos personagens, mas também dos movimentos impostos pelo desenrolar da conversação dentro da interação, tendo em vista os cenários, a postura dos personagens, os modelos culturais e a situação social do momento em que a interação é realizada. 54 Em algumas tiras, o Gatão assume um estilo conversacional e um comportamento previstos para o homem, como na tira da figura abaixo: FIGURA 6 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2 Podemos observar três mulheres conversando num bar. A primeira personagem fala de sua vida pessoal, exprimindo sua dificuldade de entender os homens (“Homem é tudo igual!”); as outras, com o objetivo de serem solidárias a ela, utilizam a linguagem do relacionamento. As mulheres tendem a ser mais cooperativas em seus discursos, para isso desenvolvem um estilo interativo/solidário. Em geral, sentem a necessidade de compartilhar detalhes da vida pessoal, o que, de certo modo, reforça as relações de amizade, já que, de acordo com Lins (1997), falar de intimidades cria igualdade, comprometimento mútuo e lealdade e, por isso, ser fundamental a idéia de “melhor amiga”. Além disso, o fato de se olharem diretamente no rosto revela um comportamento tipicamente feminino, pois as mulheres, normalmente, “prendem seus olhares nos rostos umas das outras (às vezes olham para o outro lado), ao passo que os homens fitam outros lugares do aposento e, de vez em quando, se olham entre si”. (Tannen, 1990, p. 250) 55 Pelo comportamento dos homens na tira em análise, podemos verificar que seu estilo interacional é marcado pela independência/ prestígio. Normalmente, não expressam sentimentos íntimos, fraquezas, pois isso comprometeria sua imagem de durão. A figura abaixo corrobora essa visão: FIGURA 7 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1 Ao narrar suas aventuras amorosas, o Gatão procura manter a face de conquistador, mas, na verdade, ele confessa ao leitor que tudo não passou de invenção. O Gatão procurar manter a fachada ante o amigo. O humor, nas tiras do Gatão de meia idade, advém, muitas vezes, do fato de atribuir à mulher um estilo conversacional e um comportamento tipicamente masculinos, como ilustram as figuras 8 e 9: 56 FIGURA 8 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1 FIGURA 9 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2 Na figura 8, a personagem feminina, depois de transar com o Gatão, imediatamente se arruma para sair. É ela que domina a situação, pois diz que vai embora e não quer envolvimento: “Foi ótimo. Mas tenho que ir embora!” Na figura 9, mais uma vez, a mulher tem o controle. O Gatão, ao dizer que não pensa em sexo no primeiro encontro, começa adotando uma fala feminina e se surpreende com a atitude da mulher, que assume a imagem do dominador: 57 “Acho que me enganei de pessoa... Desculpa, tchau!!” Embora os estudos sobre a relação entre linguagem e gênero apontem para o fato de que os homens possuem uma linguagem mais direta, mais assertiva dada a necessidade de demonstrarem poder, dominação, nas tiras analisadas é a mulher que assume um estilo masculino, decidindo o que deve fazer e tendo o controle da situação. É essa inversão de estilos que rompe com as expectativas, já que se espera homem agindo como homem e mulher agindo como mulher, que faz o humor nas tiras. 58 4. A MULTIFUNCIONALIDADE DO AGORA NAS INTERAÇÕES DE GATÃO DE MEIA IDADE No caso específico do que se propõe aqui, o desafio é o exame do estatuto sintático, semântico e discursivo-textual do item originalmente instanciador de tempo, agora, nas tiras do Gatão de Meia Idade. Observaremos o deslizamento de sentido que ocorre com esse item, o qual, numa trajetória de crescente abstratização, passa do sentido + concreto para o sentido + abstrato. Analisaremos o item agora em suas funções dêitica (exofórico), juntiva e discursiva. 4.1 AGORA DÊITICO TEMPORAL O agora, na função de dêitico temporal, é identificado, neste trabalho, da mesma forma que os gramáticos e o senso comum o consideram. É visto como advérbio de tempo e apresenta os seguintes traços [+referência presente], [+circunstanciação verbal] e [+mobilidade], como na figura 10: FIGURA 10 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2 59 Agora atua como um dêitico temporal prototípico.23 Equivale semanticamente a “neste momento”, “no momento presente”, que nos remete ao tempo presente da ação enunciativa. Na função dêitica, pode ser mudado de posição na estrutura do sintagma sem alterar o sentido do mesmo, podendo, desta forma, assumir a posição que pode ser inicial, medial ou final. Identificamos como dêiticas (exofóricas) as instâncias nas quais agora faz uma remissão demonstrativa temporal e indica uma proximidade em relação ao momento exato da enunciação. Portanto, nos enunciados em que aparece o agora, só podemos entender completamente o que está sendo dito se estivermos presentes no momento da fala ou se reconstituirmos as circunstâncias da enunciação. Para COSTA (1990:16), a exata localização do falante no momento da fala seria o “ponto dêitico”, isto é, o ponto espacial e temporal em que o falante está situado seria o ponto-dêitico da enunciação. 4.1.1 Ampliação temporal Conforme atesta Moura Neves (2000), o item agora pode assinalar ampliação do momento pontual da fala para um contexto maior. No caso das tiras das figuras 11 e 12, agora, acompanhado de até, aproxima um período de tempo anterior ao momento da fala, assinalando que a situação descrita não mudou. 23 Tomamos, neste trabalho, o conceito de protótipo estabelecido por Neves (1997, p. 138): “O protótipo é o membro que ostenta o maior número das propriedades mais caracteristicamente importantes, e todos os demais membros devem ser classificados de acordo com o grau de semelhança com o protótipo, ou seja, de acordo com a distância do ‘pico prototípico’”. 60 FIGURA 11 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1 FIGURA 12 Fonte: Gatão de meia idade, volume1 Nas figuras 11 e 12, agora, que pode ser parafraseado por “momento”, parece desempenhar uma função durativa, reforçada pelo item até, que marca um limite no tempo, ou seja, a situação descrita nas tiras em análise não mudou até o presente momento da enunciação. Quando agora prototípico perde o traço [referência presente], esse item pode adquirir o traço [+ referência passada] ou [+ referência futura]. Esse uso, vinculado a um fato que ainda está para acontecer, pode ser observado na tira da figura a seguir: 61 FIGURA 13 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1 No primeiro quadro da tira, o Gatão, após um dia de trabalho, faz planos para noite. O item agora marca o início de ações a serem realizadas, podendo ser parafraseado por “em seguida” ou “daqui a pouco”. Além de expressar [+ referência futura], esse item relaciona contraste entre tempo passado x tempo futuro, o que pode ser comprovado no esquema que segue: QUADRO 3 – Agora temporal Antes Trabalho no escritório Agora Daqui a pouco, tomar banho e cair na noite Esse uso de agora, ao relacionar ações passadas e futuras, na tira 4, parece indiciar o caminho para a re-análise em juntivo. 4.2 AGORA JUNTIVO O item agora, na função de conector, apresenta-se com o sentido mais abstratizado sem, contudo, deixar seu traço característico de [+ referência presente]. Assim, agora perde 62 o traço [+mobilidade], pois serve para unir proposições, e adquire o traço [+fixação]. Nesse contexto, o agora atua no nível mais gramatical em relação à função sintática e exerce funções conectivas no texto, passando a funcionar como recurso para organização das idéias e a ser responsável pela progressão textual. No nível semântico, manifesta-se basicamente estabelecendo relações de causalidade e de contrajunção. 4.2.1 Relações de causalidade Segundo Fávero (1992), “a relação de causalidade (...) é expressa pelas construções que a gramática chama de causais, conclusivas e consecutivas”. Essa relação de causalidade pode ser observada na figura 14: FIGURA 14 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1 Levando-se em consideração que a noção semântica implícita na fala da personagem indica conclusão, já que os conectores conclusivos introduzem afirmações, pois a conclusão é uma conseqüência lógica de uma premissa, podemos reescrever a fala da personagem da seguinte forma: Meu pai dormiu, portanto posso ver “A volta dos mortos vivos”. Assim, dentro de uma visão geral, “argumento portanto tese”. 63 Conforme o explicitado acima, pode-se inferir que a relação de causa/conseqüência conduz ao sentido de conclusão. Pode-se, também, constatar essa relação causa/conseqüência na tira da figura 15, abaixo: FIGURA 15 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1 Agora propicia a junção de enunciados, promovendo uma relação de causalidade, que se viabiliza semanticamente em: “não tem mais ninguém lá fora”, cujo segundo enunciado,“posso voltar a trabalhar”, indicia para uma relação de causa/conseqüência. 4.2.2 Relações de contrajunção Para Fávero (1992: 56), a contrajunção “designa o tipo de junção que articula seqüencialmente frases cujos conteúdos se opõem”. Azeredo (2000: 249), ao tratar do valor contrastivo das conjunções adversativas, atribui a elas valor semântico de oposição de dois conteúdos e de quebra de uma expectativa24. No seu valor juntivo de contrajunção, com base na análise do corpus, pode-se afirmar que o item agora estabelece basicamente relações de ressalva, de contraste e de contra-expectativa. 24 Para ilustrar o valor de quebra de expectativa, Azeredo lista o seguinte exemplo: “O lutador era magrinho, mas derrubava todos os seus adversários”. 64 4.2.2.1 Relação de ressalva Na função de ressalva, agora introduz uma noção semântica de restrição: uma primeira proposição (p), tomada como verdadeira, será delimitada pela segunda proposição (q), como se pode observar na figura 16: FIGURA 16 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1 Podemos observar que agora, semanticamente, distancia-se de sua significação temporal prototípica e passa a exercer a função de um elemento juntivo, unindo segmentos que se complementam. No último quadro da figura 16, o Gatão menciona que “é duro ser abandonado por mulher”; em seguida ele ressalta que “ser abandonado pela ex-mulher é humilhante”. Esse último seguimento introduzido pelo item agora indicia para uma idéia de ressalva. Isso pode ser observado no esquema que segue: QUADRO 4 – Agora com função de ressalva Proposição p Agora Proposição q “ser abandonado por mulher é duro” Agora = só que “ser abandonado pela exmulher é humilhante” 65 4.2.2.2 Relação de contraste Na figura 17, agora vem acompanhado do item mas. Com o sentido mais abstratizado do que o sentido original (adverbial), sua função, na tira, parece conferir uma característica de adversidade, sem perder vestígios de seu sentido primitivo. Esse valor adversativo é marcado pela oposição temporal passada (casado) X presente (solteiro)25, conforme se verifica nos diálogos abaixo: FIGURA 17 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1 Com base na análise da figura acima, podemos constatar que agora não se configura num conectivo prototípico totalmente gramaticalizado, pois guarda resquícios de seu valor dêitico. 25 Essa sobreposição semântica, conforme o conceito de estratificação (camadas) proposto por Hopper, é típica do processo de gramaticalização do qual estamos tratando. 66 4.2.2.3 Relação de contra-expectativa Neste uso, o item agora marca uma cláusula, cujo conteúdo semântico quebra a expectativa em relação ao curso normal dos acontecimentos. Na tira da figura 18, o ouvinte cria toda uma expectativa em relação ao que o falante poderia ter deixado subentendido em seu discurso, agora propicia a quebra de expectativa: FIGURA 18 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2 Nos diálogos acima, agora marca uma cláusula, cujo conteúdo contrasta com a estrutura de expectativa do enquadre social. O que ocorre na tira é a idéia de contraexpectativa em relação ao contexto, pois se cria toda uma expectativa em relação ao comportamento de um homem ideal para se casar: um cavalheiro, pronto para ajudar nas tarefas, como carregar compras, consertar uma pia, etc e a ocorrência de agora quebra essa expectativa. Sua função na tira é marcar elo referencial entre tempo/espaço da enunciação; elo referencial entre o que está sendo dito e a situação de interação; e elo referencial entre a situação criada, com função de operador discursivo. 67 Na tira em análise, no quarto quadro, ocorre a negação de uma pressuposição, decorrente do fato de o personagem Gatão não agir de acordo com a estrutura de expectativa criada pela personagem feminina da tira. O esquema abaixo ilustra isso: QUADRO 5 - Agora com função de contra-expectativa Expectativa Pressuposição Ele é gentil, prestativo È provável que seja o homem ideal para se relacionar Agora Constatação Ele não quer nada sério 4.2.3 Conector de seqüencialização Na função de seqüenciador, agora adquire traço [+conector de seqüencialização] e estabelece uma relação de continuidade entre as informações do enunciado. Sua função é, nas tiras, é marcar a relação de sucessão temporal dos eventos. Nessa função, agora pode ser parafraseado por “em seguida”, “a seguir”. FIGURA 19 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2 Na figura 19, agora funciona como conector de seqüencialização. A namorada do Gatão dá instruções acerca de como despi-la; e quando ela utiliza agora, este propicia a 68 continuidade dessas instruções, que devem ser seguidas. A função de agora é a de elo continuativo, nas seqüências das ações a serem executadas pelo personagem Gatão ao despir a namorada. Podemos constatar que o emprego de agora, na tira analisada, relaciona-se a um sentido mais ampliado que o sentido dêitico. Sua função é de servir como referencial de tempo/seqüência na enunciação. Marcuschi (1986), ao tratar de marcadores conversacionais, pressupõe elo referencial entre os segmentos textuais anterior e posterior. É o que se observa na tira 9. Nas figuras 20 e 21, agora também exerce a função de seqüencializador de ações: FIGURA 20 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1 O Gatão, nos dois primeiros quadros, planeja uma ação e, para isso, utiliza-se de seus instrumentos de trabalho para fazer um projeto. O uso do agora funciona não só como recurso para estruturar o discurso, no sentido de marcar seqüência de ações, como também atua como gatilho para deflagração do humor, uma vez que ele tenta realizar uma tarefa que normalmente cabe às mulheres, relacionando idéias a princípio não relacionáveis. 69 Ao promover uma relação de coesão textual, a abstratização do sentido adverbial é maior, embora ainda se possa identificar resíduos do sentido temporal característico de advérbio. FIGURA 21 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1 No último quadro da figura 21, a mãe do personagem Julinho Neves, após oferecer ao filho um copo de leite morno, como informa o narrador da tira, manda-o escovar os dentes e, depois, ir se deitar. Agora propicia uma continuidade às ações a que o filho deve obedecer. 4.3 MARCADOR DISCURSIVO Agora, além de exercer a função de [+ conector], volta-se, como marcador discursivo, para interação entre os falantes e adquire traço [+ circuntanciação discursiva] e atua na organização de unidades tópicas. Nesta função, por meio do processo de discursivização, agora perde restrições gramaticais, sobretudo seu uso exofórico e seu uso juntivo, já que não integra a estrutura oracional, e passa a exercer funções voltadas para organização de unidades discursivas, em relação a tópicos ou segmentos de tópicos. 70 Segundo Marcuschi (1989: 304), os marcadores discursivos apresentam, formalmente, as seguintes características: operam como fatores de coesão textual, organizando as unidades discursivas; distribuem-se em posições bastante regulares; contribuem para hierarquizar e topicalizar argumentos; operam com características de dêiticos discursivos; e mantêm relativa independência sintática. Neste trabalho, o termo marcador discursivo parece exercer a função de “amarrar” textualmente as informações e de direcionar as perspectivas do falante em relação ao assunto, direcionando o tópico discursivo. A noção de tópico discursivo é explicada por Koch (1992: 71) como “o assunto sobre o qual se fala”, e, em seu caráter semântico-discursivo, é responsável pelo fluir das informações e pela interação entre os participantes. Segundo Koch et al. (1992) e Fávero (1998), o tópico discursivo tem duas propriedades: centração e organicidade. A primeira diz respeito à relação de interdependência semântica entre os enunciados. A segunda diz respeito à relação de interdependência que se estabelece no plano seqüencial e no plano hierárquico. O vocábulo segue uma trajetória do tipo: dêitico > fórico > marcador discursivo e seu papel é, segundo Risso (1993: 39), de “fazer avançar o discurso para uma situação nova, com força de ressalva, contraposição, reordenação de enfoque, desacordo, relativamente a uma situação já posta dentro do mesmo tópico, ou no tópico anterior.” Assim, ao viabilizar o discurso no ato de fala, permite ao falante apresentar seu ponto de vista a respeito do que está sendo tratado e indica, também, a permanência do turno de fala26. 26 Segundo Marcuschi (1986), turno de fala indica, na conversação, a produção de um falante enquanto ele está com a palavra. 71 4.3.1 Conector de subtópicos Ao adquirir o traço [+ conector subtópicos], o item agora estabelece conexão entre um subtópico e outro subtópico, ocupando a posição inicial de subtópico. FIGURA 22 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1 Destaca-se, na figura acima, as crenças do Gatão, que, com 40 anos, já não acredita nas mesmas coisas que antes. De acordo com Koch et. al. (1992), podemos visualizar o esquema de organização hierárquica do tópico discursivo da figura 22: Supertópico: Crenças Quadro tópico: as crenças e as fases da vida Subtópicos: 1. 2. 3. 4. Crenças da infância Crenças da adolescência Crenças da juventude Crenças da maturidade Segmentos tópicos: 1. Crenças da infância (texto do quadro 1) 72 2. Crenças da adolescência (texto do quadro 2) 3. Crenças da juventude (texto do quadro 3) 4. Crenças da maturidade (texto do quadro 5) Desse modo, o item agora (presente no quadro 4) estabelece a conexão entre um subtópico (crenças da juventude) e outro subtópico (crenças da maturidade) e estabelece uma espécie de contraposição entre os enunciados, definida pelo contraste de crenças, conforme quadro a seguir: Quadro 6 – Contraste de crenças PASSADO CONTRAPOSIÇÃO PRESENTE marcado pela dúvida Tempo A Papai Noel, Batman, Deus, estudo, revolução socialista, cinema sueco, fluminense, etc Tempo B Parreira, Lula, astrologia AGORA Na fala do personagem Gatão, figura 22, a transição para outro subtópico, no quarto quadro, é marcada pelo item agora, que indicia, também, um ponto de vista diferente, estabelecido levemente pelo contraste dos Tempos A e B. Esse uso de agora nos parece guardar resquícios de seu uso dêitico-temporal e de seu uso juntivo. 4.3.2 Introdutor de digressão O uso de agora como traço [+ introdutor de digressão] ocorre quando um personagem insere um segmento tópico no interior de outro. 73 FIGURA 23 Fonte: Gatão de meia idade, volume 2 Na figura 23, a filha pré-adolescente diz ao pai que menstruou. No terceiro quadro, agora, promove uma descontinuidade na organização tópica, perturbada pela introdução de assunto constitutivo de outro subtópico na seqüencialidade. Insere-se, nesse quadro, uma reflexão do personagem sobre quando o assunto deveria ser abordado (na tira de 2a feira) e não sobre o ato de menstruar em si, que representa o tópico. É provável que na tira de 2a feira tenha aparecido a menina com a mãe conversando sobre o ato de menstruar, o que restabeleceria a linearidade. Temos, então, na figura em análise, o seguinte esquema: 1o quadro: tópico ficar menstruada 3o quadro: inserção sob a forma de digressão (Cf. Koch et al. 1992, Fávero 1996), ou seja, há ocorrência de um segmento tópico no interior de outro segmento tópico em desenvolvimento, num esquema do tipo A-B-A. O que implica a retomada do tópico em momento posterior, o que já é sinalizado na tira. 74 Além de sinalizar a abertura de um sub-tópico, parece ter a função de modalizador, pois marca a incerteza, a insegurança do Gatão em relação à situação, já que, no segundo quadro, percebemos, por meio de sua expressão fisionômica, que ele não sabe como agir. 4.3.3 Redirecionador de tópico O uso de agora como traço [+ redirecionador de tópico], nas tiras em análise, ocorre quando um personagem deixa de lado o tópico principal ou sub-tópico sobre o qual discorre para dar explicações, fazer comentários, apresentar um ponto de vista ou uma opinião do sobre o que está sendo tratado. FIGURA 24 Fonte: Gatão de meia idade, volume 1 Agora, na tira em análise, opera uma reorientação discursiva, identificando, a partir de diferentes expectativas geradas, a relação dos personagens com o seqüenciamento temático do fluxo de informações. 75 De acordo com as análises realizadas, agora, na função de marcador discursivo, é responsável pelo gerenciamento dos tópicos conversacionais, marcando a conexão e o redirecionamento dos tópicos. 76 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho, procuramos descrever e explicar, com base na trajetória de mudança e de variação característicos dos processos de gramaticalização e de discursivização, a multifuncionalidade do item agora nas tiras de Gatão de meia idade. Essa trajetória relaciona-se às extensões de usos e funções desse item, que remete a sua origem etimológica, hac hora, cuja noção é a de locativo-temporal, fundada pelo demonstrativo hac, e culmina na indicação de relações discursivas. Nesse sentido, frisamos, segundo Hopper, o conceito de camadas, segundo o qual o surgimento de novos sentidos não põe fim ao mais antigo, podendo coexistir e interagir, dentro de um contexto determinado. Nosso corpus, formado por 15 tiras, sendo 4 ocorrências de agora com função temporal, 8 com função juntiva e 3 com função discursiva, caracteriza-se pela utilização das linguagens icônica e verbal. Produzido na interface oral/escrita, o texto das tiras, segundo Lins (2004), busca reproduzir a conversação espontânea, pelo uso do diálogo e pelo uso de estratégias interacionais, mas seu texto é fruto de um planejamento prévio tanto do tema quanto dos aspectos lingüísticos. “É um texto para ser lido, mas como objetivo de se fazer escutar, o que inclui dentro dessa questão do continuum fala-escrita”. Nesse sentido, quanto à influência do gênero textual, pudemos verificar que o maior número de ocorrências foi de agora exercendo a função juntiva, o que nos parece evidenciar uma maior aproximação do texto das tiras do Gatão de meia idade da escrita mais planejada, haja vista, nessa função, a presença dos monólogos nas tiras. Além desse aspecto, não foram observados em nosso corpus ocorrências de funções anafóricas ou 77 catafóricas, como no exemplo “Agora no sábado”, comuns à conversação. Também não encontramos estruturas mais amplas com o item agora como: agora veja, essa agora, cujo valor expressa irritação. Isso, a nosso ver, parece reforçar a aproximação dos textos das tiras de Miguel Paiva do texto escrito. A análise das tiras, também, nos permitiu verificar que: 1) Em seu valor dêitico temporal, agora veicula relação de proximidade temporal do fato evocado com a fala dos personagens, assinalando o tempo da enunciação, e tende marcar uma abrangência temporal que inclui não só o traço de [+referência presente] como também traços de [+referência passada] ou de [+referência futura]. Nessa função, ocorre a permanências dos traços [+circunstanciação verbal] e [+mobilidade]. 2) Em seu uso juntivo, há perdas de traços prototípicos como [+circunstanciação verbal] e [+mobilidade] e o item agora apresenta função de [+conector de seqüencialização] e passa a incidir sobre enunciados, estabelecendo relações lógicas. Essas relações parecem ser relações de causa/conseqüência e relação de contrajunção, que se estabelece por ressalva, contraste e contra-expectativa. 3) Como marcador discursivo, agora parece atuar na organização do discurso e apresenta as seguintes variações: conector intratópicos e redirecionador de tópico. Na função de conector intratópico, nas tiras analisadas, agora, além de contribui para organização do tópico discursivo, propicia ocorrência de um contexto ambíguo que sugere uma relação de oposição no tempo, assinalando o princípio da Persistência, proposto por Hopper. Em nossa pesquisa, não tivemos pretensão de esgotar o assunto. Pretendemos, apenas, evidenciar, por meio das análises, o comportamento do item agora nas tiras de quadrinhos do Gatão de meia idade. 78 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática metódica da língua portuguesa. 44. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. (trad. Maria Ermantina Galvão G. 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The theoric presupposes adopted, come from the beginning that the language, in order to attend the social-communicative necessities of its users, becomes active and able to adjust itself to either internal, or external pressures from the linguististic system. KEY WORDS: agora, grammaticalization and discoursivization