GÊNERO E EDUCAÇÃO: DISCUTINDO A DOCILIZAÇÃO DOS CORPOS INFANTIS TAINARA GUIMARÃES ARAÚJO UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ (UESC) Resumo A construção das identidades de gênero constitui todo um processo sócio-cultural que, através de várias instituições sociais, como a família, a escola e a igreja, impõem sobre os corpos humanos um grande controle. Partindo dessa perspectiva, o presente trabalho, utilizando a Pesquisa Bibliográfica, tem como objetivo refletir sobre a construção das identidades de gênero na educação infantil, pensando a prática pedagógica como construtora de subjetividades e modeladora de corpos dóceis, destituídos de autonomia. Dessa forma, as crianças recebem uma educação sexista, carregada de preconceitos, que dita e afirma a todo o tempo o que é “coisa de menino” e o que é “coisa de menina”, uma educação que naturaliza o gênero e reforça os padrões impostos pela cultura hegemônica. Como consequência disso, as crianças também internalizam e reproduzem em seus cotidianos esses valores sexistas, aprendendo a não respeitar a pluralidade das formas de ser. Este trabalho, portanto, contribui para a discussão do que precisa ser desconstruído e desnaturalizado, desde a infância, buscando um novo olhar sobre a prática pedagógica, afinal, é preciso que esta seja repensada e reinventada, para que a educação seja um espaço de reconhecimento, afirmação e respeito das diversidades de gênero e de sexualidade. Palavras-chave: escola; diversidade; controle; normatização. Introdução Boneca, bola, rosa, azul, todas essas palavras carregam fortes significados, não aqueles significados encontrados em dicionários de língua portuguesa, são significados que atribuem valor, que condicionam corpos, que introjetam em nós, seres humanos, maneiras de ser, de falar, de se comportar, de se enxergar no mundo. Ter uma boneca ou uma bola não diz somente que você é uma criança que possui brinquedos, ou que gosta de brincar, usar vestidos não significa somente que você se veste, assim como cruzar as pernas ao sentar não é um “simples” e “natural” ato do ser humano. Há algo por detrás de tudo isso, que para muitas pessoas é simples e até mesmo natural. Algo que não pode ser visto a olho nu, sentido com as mãos, não é algo material, pois refere-se a construções imersas em um universo simbólico: este algo é denominado gênero. Mas afinal, o que realmente é gênero? De que forma ele é construído? Qual o papel da educação infantil nesse processo? Essas são as questões norteadoras, que o presente trabalho objetiva discutir. Como será explicado, o gênero não é algo inato ao ser humano, não se nasce mulher ou homem, ninguém nasce gostando de rosa, de sentar com pernas fechadas, de brincar com carrinhos, assim como a vontade de casar, ter filhos, a atração por alguém do sexo oposto não são intrínsecos a nós. Tudo isso é socialmente construído e culturalmente inculcado pela família, pela escola, pelas novelas, pelas histórias infantis, ou seja, não nascemos com um gênero. Partindo dessa perspectiva, Bíscaro (2009), analisando esse processo de construção das identidades de gênero no âmbito da educação infantil, defende em sua dissertação de mestrado que [...] a professora da Educação Infantil, nas suas atividades, proporciona cotidianamente aos alunos e alunas atitudes sexistas, diferenciando constantemente as atividades para os meninos e meninas, embora, ao ser questionada sobre tais atitudes, acredite que seja “natural” das crianças, ou seja, a professora não consegue perceber que ela própria, ao realizar a fila dos meninos e meninas, ao colocar na parede um cartaz escrito de um lado o nome das meninas e de outro o nome dos meninos, ao vigiar as brincadeiras para meninos e meninas, dividir as meninas nas mesas (rosa, amarela, verde) e os meninos nas mesas (azul, marrom, verde), dividir os brinquedos que são tidos para meninos e meninas em sacos diferentes, entre outras condutas, está diariamente reforçando nas meninas e meninos o que cada um pode ou não fazer, legitimando, assim, seus lugares na sociedade (BÍSCARO, 2009, p. 125). Como se percebe, a educação infantil disciplina as crianças dentro da lógica binária masculino-feminino, incutindo nas mesmas valores e condutas correspondentes a cada gênero (mulher e homem), adotando práticas sexistas, reproduzindo as desigualdades de gênero. Dessa forma, as crianças aprendem a ser meninas ou meninos, seguindo o modelo binário que lhes é imposto cotidianamente. Entende-se, portanto, que se faz necessário discutir sobre a construção das identidades de gênero na educação infantil, pensando a prática pedagógica da forma que ela se apresenta na realidade empírica: produtora e reprodutora dos padrões hegemônicos de gênero. No entanto, faz-se necessário também a análise crítica dessa prática pedagógica, ressignificando-a. Partindo desse viés, este trabalho irá se debruçar sobre a discussão e a análise crítica desse processo de produção e reprodução do gênero na educação infantil, contribuindo, então, para o debate acerca das questões de gênero, um tema bastante delicado e polêmico, que precisa ser debatido, afim de que as diversidades sexual e de gênero sejam vistas e aceitas como tais. Compreendendo o Gênero e situando a Educação Infantil A feminista pós-estruturalista Joan Scott (1990) define o gênero da seguinte maneira: Minha definição de gênero tem duas partes e várias sub-partes. Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder (SCOTT, 1990, p. 14). Entende-se, portanto, o gênero como uma construção sócio-cultural pautada nas diferenças entre os sexos e, também, como um conjunto de referências que orientam a organização da sociedade, estabelecendo distribuições de poder. Partindo dessa perspectiva, nega-se a concepção do gênero como algo unicamente natural e estático, concebendo-o como uma construção, um processo dinâmico que perpassa por inúmeras instituições sociais, inclusive a escola. A educação infantil representa papel fundamental nesse processo, pois, segundo Vianna e Finco (2009, p. 271) “A educação infantil não só cuida do corpo da criança, como o educa: ele é o primeiro lugar marcado pelo adulto, em que se impõem à conduta dos pequenos os limites sociais e psicológicos. É o emblema no qual a cultura inscreve seus signos.” A educação infantil, portanto, não apenas apresenta o mundo à criança, mas dita a maneira “adequada” de se inserir nesse mundo, moldando o seu corpo conforme as regras e os padrões pré-estabelecidos socialmente, nessas regras e padrões estão incluídos aqueles que se referem ao gênero: os corpos das crianças são educados de forma a serem enquadrados no gênero masculino ou feminino. Vianna e Finco (2009) realizaram uma pesquisa para discutir as relações de gênero e poder que permeiam a educação das crianças na etapa da educação infantil, buscando analisar como os corpos das crianças são controlados e normatizados e compreender esse processo de controle e normatização nas crianças que rompem os padrões de gênero. Segundo elas, [...] as formas de controle disciplinar de meninas e meninos estão intrinsecamente relacionadas ao controle do corpo, à demarcação das fronteiras entre feminino e masculino e ao reforço de características físicas e comportamentos tradicionalmente esperados para cada sexo nos pequenos gestos e nas práticas rotineiras da educação infantil (VIANNA; FINCO, 2009, p. 274). A educação infantil, como se percebe, controla, rotula, molda os corpos infantis, fazendo com que “as crianças aprendem desde bem pequenas o que é ser menina ou menino, a diferenciar os papéis femininos e masculinos” (DRUMOND, 2010, p. 02). Predomina, desta forma, a percepção das crianças “como corpos femininos ou masculinos, que precisam ser diferenciados, rotulados, classificados” (DRUMOND, 2010, p. 02). Louro (2003, p. 58), discutindo sobre as diversas diferenças que a escola produz, nos diz que: “A escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui. Informa o "lugar" dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas”. Ou seja, a escola, na medida em que inculca estereótipos de feminilidades e masculinidades, delimita o “lugar” de meninos e de meninas, instituindo diferenças. Isso ocorre ao educador afirmar que “homem não chora”, que “as meninas são mais sensíveis e doces que os meninos”, que “as meninas devem se comportar como mocinhas”, dentre outras afirmações que expressam estereótipos, que categorizam e dicotomizam os corpos em Meninas ou Meninos. Através da estereotipação dos corpos das crianças, em sala de aula, reproduzem-se também as relações desiguais de gênero, onde as meninas são destituídas de autonomia, em relação aos seus próprios corpos. Dessa forma, por serem meninas e, consequentemente, terem que usar saias e vestidos, essas crianças não podem brincar de qualquer coisa, pois devem se “portar como mocinhas”, com as pernas fechadas, sem correr demais para não transpirar como os meninos, ou seja, há toda uma opressão às crianças identificadas como sendo do gênero feminino. Como se percebe, as crianças recebem uma educação completamente machista e sexista, onde cada gênero possui seus respectivos papéis na sociedade. As meninas aprendem que serão mães, que cuidarão do lar, se casarão com homens, respeitando-os, pois este será o provedor do lar, irá sustentar a casa. Percebe-se, aí, a reprodução das desigualdades de gênero, assim como um tipo de educação que hierarquiza e cataloga. Como afirma Louro (2003, p. 81): “Não há dúvidas de que o que está sendo proposto, objetiva e explicitamente, pela instituição escolar, é a constituição de sujeitos masculinos e femininos heterossexuais— nos padrões da sociedade em que a escola se inscreve”. A partir do momento em que a escola ensina a criança e ser heterossexual, apresentando esse tipo de relação como a única legítima na sociedade, ela está ensinando a criança a ser intolerante e homofóbica, afinal, como nos diz Louro (2003, p. 34): “A concepção dos gêneros como se produzindo dentro de uma lógica dicotômica implica um pólo que se contrapõe a outro (portanto uma idéia singular de masculinidade e de feminilidade), e isso supõe ignorar ou negar todos os sujeitos sociais que não se "enquadram" em uma dessas formas”. Esses sujeitos por último mencionados são, por sua vez, estigmatizados e marginalizados, não somente pela escola, assim como Louro (2000) nos diz: Na escola, pela afirmação ou pelo silenciamento, nos espaços reconhecidos e públicos ou nos cantos escondidos e privados, é exercida uma pedagogia da sexualidade, legitimando determinadas identidades e práticas sexuais, reprimindo e marginalizando outras. Muitas outras instâncias sociais, como a mídia, a igreja, a justiça, etc. também praticam tal pedagogia, seja coincidindo na legitimação e denegação de sujeitos, seja produzindo discursos distantes e contraditórios (LOURO, 2000, p. 18). A educação infantil acaba contribuindo fortemente para a marginalização de um determinado grupo de sujeitos. O que nos é ensinado, nessa fase, legitima o preconceito e a violência contra gays, lésbicas, mulheres, travestis e tantos outros sujeitos que não se enxergam nos padrões hegemônicos estabelecidos e impostos violentamente a todos os seres humanos. Conclusão Educamos para a igualdade ou para a diferença? Infelizmente, o que se percebe é que estamos formando e construindo pessoas que reafirmam as diferenças o tempo todo. Mulher não é igual a homem, heterossexual não é igual a homossexual, é isso o que reproduzimos para as crianças, diferenças embutidas de valores segregadores e intolerantes. A educação infantil deveria ser um espaço de reafirmação da igualdade, do respeito, do amor, ensinando as crianças que homem realmente é diferente de mulher, mas somente biologicamente, afinal, na sociedade, esses indivíduos deveriam ocupar os mesmos espaços, terem os mesmos direitos, em suma, serem respeitados igualmente. É preciso que esses professores revejam suas práticas, entendendo que elas possuem um grande poder sobre os indivíduos que eles educam. Referências Bibliográficas BÍSCARO, C. R. R. A construção das identidades de gênero na educação infantil. 2009. 138 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Dom Bosco, Campo Grande, 2009. DRUMOND, Viviane. É de menina ou de menino? Gênero e sexualidade na formação da professora de educação infantil. In: FAZENDO GÊNERO, IX, 2010, Florianópolis. Seminário Internacional Fazendo Gênero 9 - Diásporas, diversidade, deslocamentos. Florianópolis: EdUFSC, 2010, p. 1-7. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pósestruturalista. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. ______. Pedagogias da Sexualidade. In: O corpo educado: pedagogias da sexualidade. (Org.). Belo Horizonte: Autentica, 2000. p. 07 – 34. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, 1990. VIANNA, Claudia; FINCO, Daniela. Meninas e Meninos na Educação Infantil: uma questão de gênero e poder. Cadernos Pagu, n. 33, p. 265-284, jul./dez. 2009.