CARTA DO IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL A EDUCAÇÃO MEDICALIZADA: DESVER O MUNDO, PERTURBAR OS SENTIDOS Perturbar os sentidos, na concepção que o Fórum trouxe no título deste evento, não tem qualquer relação com a concordância da existência de distúrbios como perturbação da ordem, geralmente focada no indivíduo. Perturbar os sentidos teve o caráter de convite à ruptura, romper com a cristalização de um modo de olhar o mundo, desver. Convite que foi aceito pelos participantes deste evento e que resultou num trabalho coletivo de escuta, troca e construção de proposições que culminaram na escrita desta carta. Muito foi debatido sobre o conceito de medicalização e seu impacto na sociedade. Sabemos que este é um termo complexo, que desperta dúvidas, mas também gera força, na medida em que convoca ao pensamento e à ação. O termo medicalização não é novo. Se antes restrito a um debate acadêmico, há 5 anos, com a fundação do Fórum, ele conquista espaços que só um movimento social pode impulsionar. Nesse contexto histórico, em que o país vive grandes regressões, violações e ameaças aos direitos já conquistados e ainda a conquistar, mais necessária se faz a articulação entre academia e movimento social. Nesse IV Seminário Internacional, partimos de uma compreensão consolidada do conceito, que não reduz medicalização ao uso ou abuso de medicamentos, ou a uma disputa corporativista por territórios de trabalho. Entendemos que ainda é necessário reafirmar: medicalização envolve um tipo de racionalidade determinista que desconsidera a complexidade da vida humana, reduzindo-a a questões de cunho individual, seja em seu aspecto orgânico, seja em seu aspecto psíquico, seja em uma leitura restrita e naturalizada dos aspectos sociais. Nessa concepção, características comportamentais são tomadas apenas a partir da perspectiva do indivíduo isolado, que passaria a ser o único responsável por sua inadaptação às normas e padrões sociais dominantes. A medicalização é terreno fértil para os fenômenos da patologização, da psiquiatrização, da psicologização e da criminalização das diferenças e da pobreza. Entre tantos segmentos sociais estigmatizados, os maiores alvos da violência nesse país, não apenas de estado, figuram entre os que mais sofrem os processos de medicalização: são estudantes que não se adaptam aos processos de uma escola sucateada, vistos como incapazes de aprender e obedecer regras sociais; são os jovens negros moradores de periferias urbanas, tratados como suspeitos, em termos de sua idoneidade ética e moral; são os homossexuais e transgêneros, aos quais se insiste em oferecer tratamentos de “cura”; são as mulheres, subjugadas pelo machismo, dentro e fora de suas casas; são parturientes vítimas da violência obstétrica; são trabalhadores em contextos de trabalho precarizados, engolidos pela burocracia e pelo produtivismo, reduzidos a quadros sindrômicos; são desempregados ou indigentes, invisíveis ou supervisibilizados, jamais prontos ou já ultrapassados, em um mundo de desemprego estrutural que insiste em afirmar a meritocracia. A lista é extensa e faz pensar que a medicalização tem muitas faces, todas elas guardando relação com uma forma de organização social eminentemente coisificadora, que converte tudo e todos em mercadoria. Na contramão desse olhar, enfatizamos: a vida de um indivíduo tem história. Conhecer o sujeito, falar sobre suas questões implica em olhar sua biografia, que é ao mesmo tempo individual e coletiva: ela começa muito antes do nascimento biológico; possui lastro social e político na longa duração. Nessa caminhada, partimos da denúncia, ainda necessária, pois o processo de medicalização, patologização e criminalização daquilo que destoa da ordem hegemônica segue a passos largos e de maneiras muitas vezes sutis, mas nem por isso menos avassaladoras. Buscamos ultrapassar os limites concretos historicamente impostos, trilhando novos caminhos. Seguimos em direção à proposição de outras formas de ver e agir, que se alicerçam na história social e na articulação coletiva que é potente na criação do novo: o movimento move e se move; como toda construção é provisório, e precisa se repensar constantemente. Nesse trajeto, cada um e todos nos construímos diferentes. E nos construímos juntos. Buscamos articulações. Afinal, são muitas as frentes de luta, são muitos os movimentos (sociais, políticos, culturais, artísticos) que, em comum, tem, como horizonte, a emancipação humana. Onde há opressão, há resistência. E invenção. Salvador, 04 de Setembro de 2015