contáveis

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Substantivos contáveis e incontáveis: uma porta de entrada para a semântica.
Heronides Moura (UFSC)
1. Introdução
Fatores cognitivos, gramaticais e pragmáticos interferem na interpretação de uma forma
linguística. Tentarei mostrar neste artigo, de forma simples e objetiva, como esses fatores se
articulam na distinção que fazemos entre substantivos contáveis e substantivos incontáveis no
português do Brasil. Essa análise servirá para mostrar como se pode fazer descrição e
teorização no campo da semântica, levando em conta os principais elementos que compõem o
significado. O estudo da oposição contável x incontável pode ser uma boa porta de entrada
para o estudo da semântica.
O artigo está organizado da seguinte forma: na seção 2, são apresentadas quatro teorias
semânticas: a formal, a argumentativa, a lexical e a cognitiva. Essas diferentes teorias enfocam
diferentes aspectos do significado.
Nas seções seguintes, de 3 a 6, é analisada a distinção entre substantivos contáveis e
incontáveis. A análise dos substantivos contáveis e incontáveis mostra que os aspectos
cognitivos, gramaticais e pragmáticos do significado devem ser levados em conta, quando se
pretende fazer uma boa descrição de um dado fenômeno semântico.
Na seção 3, a oposição contável x incontável é descrita de um ponto de vista conceitual e são
apresentados testes que permitem identificar as duas categorias. Argumenta-se que as
categorias conceituais não são suficientes para a classificação de um substantivo como
contável ou incontável. Mostra-se que essa classificação não é de natureza estritamente
lexical, mas sentencial e predicativa.
Na seção 4, são analisadas algumas construções gramaticais que interferem na interpretação
de um substantivo como contável ou incontável. Apesar de essa distinção não ser
gramaticalizada de forma estável no português, há construções gramaticais que favorecem
uma ou outra dessas interpretações (contável e incontável). Mostra-se que o caráter contável
ou não de um substantivo emerge da composição semântica da sentença como um todo.
Muitas vezes, porém, a estrutura gramatical não é suficiente para definir a natureza contável
de um termo: o conhecimento enciclopédico e os contextos de uso também desempenham
um papel importante nessa categorização.
Na seção 5, são identificadas diferentes formas de contar os seres, na língua portuguesa. Há
pelo menos quatro maneiras distintas de quantificar os seres, em nossa língua: (i) contamos
entidades individuais e discretas: três alunos, quatro árvores, duas ruas; (ii) contamos partes
iguais de uma substância a partir de uma medida determinada (três copos de água, duas latas
de cerveja, um quilo de arroz); (iii) Contamos partes identificáveis de uma substância ou de
uma entidade: três pingos de água, duas lascas de madeira, uma capa de livro; (iv) contamos
quantidades indefinidas de entidades: um cardume de tainhas, um monte de amigos.
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Na seção 6, argumenta-se que o caráter contável de uma entidade depende da
representação cognitiva que se faz dela. As coisas não são contáveis ou incontáveis por
natureza. A categorização depende da maneira como pensamos nelas. Um mesmo substantivo
pode ser contável numa língua, e incontável em outra. Dentro da mesma língua também pode
haver variação: um conceito pode se apresentar como contável em certos contextos, e como
incontável em outros contextos.
2. Diferentes abordagens semânticas
Antes de entrar no tema que vou analisar neste capítulo, é importante examinar,
brevemente, as diferentes linhas teóricas da semântica. Vou considerar aqui as seguintes
abordagens da semântica: a formal, a argumentativa, a lexical e a cognitiva.
Vou apresentar essas linhas teóricas com base no exame que cada uma dessas correntes faria
da sentença abaixo:
(1) João comprou uma Ferrari.
2.1. A semântica formal
A semântica formal visa descrever as sentenças de uma língua com base na denotação. Nessa
perspectiva, cada signo tem uma denotação. A denotação equivale ao referente, que é uma
entidade extralinguística. Assim, o objetivo principal de uma semântica formal é estabelecer as
regras que levam dos signos à denotação de uma sentença.
Por exemplo, na sentença (1) acima, temos quatro palavras. Cada uma contribui de uma
forma específica para o cálculo da denotação da sentença. O nome próprio João denota um
indivíduo, e unicamente ele. Note que há, assim, uma diferença fundamental entre o signo
João e o ser humano (o referente do signo) que ele denota. Uma regra semântica do nome
próprio é que apenas um único referente é denotado pelo signo. O nome João é muito
comum, mas cada nome João denota um único indivíduo (o João filho da Maria da Penha e de
seu Mário, por exemplo).
O substantivo Ferrari também denota, na sentença acima, um único referente. Chegamos a
essa interpretação, porque juntamos o sentido do artigo uma e do substantivo Ferrari. É
importante observar que um artigo não tem uma denotação, mas ele ajuda a definir a
denotação do substantivo com o qual se conecta. Assim, pode-se dizer que o sintagma [uma
Ferrari] é que possui denotação. Na semântica formal, os artigos são quantificadores, pois
servem para quantificar referentes (CHIERCHIA, 2003). A interpretação da denotação do
sintagma [uma Ferrari] equivale a algo como: do conjunto de carros denotado pelo termo
Ferrari, João comprou um exemplar. A semântica formal tenta formular regras sobre como os
falantes definem as denotações das expressões linguísticas.
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Resta, para ser examinado, o verbo comprar. Este verbo possui dois argumentos, ou seja, só
adquire sentido completo quando possui um referente que é o comprador, e um segundo
referente, que é o objeto da compra. Os argumentos semânticos correspondem às categorias
gramaticais de sujeito e objeto do verbo. Mas qual a denotação de um verbo transitivo, como
comprar? É o conjunto de pares de referentes que satisfaz a relação de compra. Por exemplo,
João é um comprador, e a Ferrari é a coisa comprada por ele. Logo, o par {João, Ferrari} faz
parte da denotação de comprar, se a sentença (1) acima é verdadeira.
A ideia, então, é que o verbo comprar se refere a uma relação entre dois referentes: o
comprador e o objeto da compra. Note que a denotação do verbo, nesta perspectiva,
corresponde ao conjunto de pares de compradores e objetos de compra. Por exemplo, se eu
comprei um celular, então o par {Heronides, celular} também faz parte da denotação de
comprar.
Finalmente, depois de examinar a denotação de todas as palavras da sentença (1), podemos
indagar qual a denotação da sentença (1), considerada como um todo. Na semântica formal, a
sentença também é um signo, e como tal denota algo. E o que uma sentença denota é o
verdadeiro e o falso. Ou seja, a semântica formal visa determinar as condições de verdade de
uma sentença. E, nessa perspectiva teórica, uma sentença só pode ter dois valores: verdadeiro
ou falso.
A verdade (ou falsidade) de uma sentença é definida com base na denotação das palavras que
formam a sentença. Já vimos o que denota cada uma das palavras da sentença (1). Para
calcular o valor de verdade da sentença como um todo, basta conferir se o par {João, Ferrari}
pertence de fato à denotação do verbo comprar. Ou seja, o nosso amigo João realmente
comprou uma Ferrari? Se sim, então o par de referentes {João, Ferrari} pertence à denotação
de comprar, e a sentença é verdadeira.
Note que precisamos de conhecimento sobre o mundo para atribuir denotações às
expressões. A semântica formal não está preocupada com esses fatos específicos do mundo,
mas apenas com as regras que usamos para calcular a verdade de uma sentença.
E quanto ao cálculo de uma sentença falsa? Muito simples. Basta checar se o par de
referentes do verbo comprar pertence à denotação desse verbo. Se não pertencer, a sentença
é falsa. Por exemplo, uma sentença como Heronides comprou uma Ferrari é falsa, pois o par
{Heronides, Ferrari} não pertence à denotação do verbo comprar. Infelizmente, não é verdade
que eu tenha comprado uma Ferrari.
A semântica formal visa, então, estabelecer as regras pelas quais usamos a linguagem como
um meio de transmitir verdades sobre o mundo.
Note que, nesta perspectiva, duas sentenças sintaticamente diferentes podem ter as mesmas
condições de verdade. Considere, por exemplo, a sentença (2):
(2) Uma Ferrari foi comprada pelo João.
Essa sentença corresponde à forma passiva da sentença (1). Sintaticamente, (1) e (2) são muito
diferentes. No entanto, têm as mesmas condições de verdade. Se a sentença (1) é verdadeira,
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a sentença (2) é necessariamente verdadeira, e vice-versa. Ressalte-se que esse tipo de relação
semântica levou Chomsky, com sua gramática gerativa, a propor uma mesma estrutura
sintática subjacente para as formas ativa e passiva de uma sentença, pois essa estrutura
sintática única captaria as mesmas condições de verdade das duas sentenças. Em suma, para a
semântica formal, (1) e (2) são duas formas diferentes de dizer a mesma coisa, pois o que
importa, nessa perspectiva, são as condições de verdade.
A semântica formal foi desenvolvida por uma série de autores. O patrono principal desses
autores é o filósofo e matemático alemão Gottlob Frege (1848-1925), que estabeleceu as
bases da semântica formal. Na segunda metade do século XX, o modelo formalista foi
representado especialmente pelo lógico norte-americano Richard Montague (1930-1971). No
campo da linguística, o livro Semântica (CHIERCHIA, 2003) é uma boa introdução à semântica
formal.
2.2. A semântica argumentativa
Passemos, agora, à semântica argumentativa. Essa teoria se opõe à semântica formal, na
medida em que considera que as condições de verdade não são importantes para um estudo
do significado. Nessa teoria, o significado é relacional, ou seja, trata-se de identificar as regras
que conectam as palavras, ao modo de um esquema retórico de premissas e conclusões.
Nessa abordagem, palavras servem de premissas para conclusões, na sequência do discurso.
Um enunciado não descreve o mundo; ele aponta para certas conclusões sobre o estado de
coisas.
A semântica argumentativa faria uma análise bem diferente da sentença (1), que estamos
tomando como base, nesta introdução. Lembremos a sentença:
(1) João comprou uma Ferrari.
Para a semântica argumentativa, uma sentença é parte de um encadeamento discursivo. O
que importa é a conexão de enunciados numa cadeia discursiva, e não o cálculo da denotação
da sentença.
A sentença (1) poderia servir como premissa das seguintes conclusões discursivas:
(3) João é muito rico.
(4) João é um homem feliz.
Essa abordagem da semântica propõe que o encadeamento entre sentenças não é de
natureza lógica, mas de natureza puramente argumentativa, na medida em que um enunciado
serve como premissa para uma sequência inferencial. Essa sequência corresponde a uma
forma de pensar sobre o mundo, e não a uma descrição neutra do mundo, tal como proposto
pela semântica formal.
Note que a sentença (1) poderia levar a duas inferências conflitantes. A partir de (1), João
poderia ser descrito como esbanjador, ou como alguém que sabe aproveitar as coisas boas da
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vida. A enunciação de (1) pode servir como premissa para duas argumentações opostas. Essa
ambiguidade seria eliminada, se o falante prosseguisse com seu discurso, e produzisse um
enunciado que explicitasse a sequência discursiva relevante:
(5) João comprou uma Ferrari. É um esbanjador.
Nesse caso, o adjetivo esbanjador dirige a sequência discursiva para uma determinada
apreciação dos fatos. A palavra esbanjador implica que comprar produtos caros é visto como
um problema. Essa palavra não faz uma descrição neutra das coisas do mundo: ela impõe um
argumento específico, para uma conclusão específica. O efeito argumentativo seria muito
distinto se o falante enunciasse (6), ao invés de (5):
(6) João comprou uma Ferrari. Ele sabe aproveitar as coisas boas da vida.
Assim como (5), a enunciação de (6) envolve uma apreciação dos fatos, e num sentido
contrário. Agora, comprar produtos caros é visto como uma virtude, e não como um defeito. O
ponto central da semântica argumentativa é considerar que a semântica das línguas naturais
não pode ser reduzida às condições de verdade, porque enunciados que aparentemente têm
as mesmas condições de verdade, diferem muito quanto ao seu valor inferencial. Ou seja,
nessa perspectiva, o que importa é o potencial argumentativo de uma palavra, e não a sua
denotação.
Na perspectiva dessa teoria, os estados de coisas não podem ser descritos de forma neutra.
Por exemplo, alguém que gasta muito, pode ser descrito, ora como um esbanjador (a virtude
consistindo na moderação), ora como alguém de bem com a vida (a virtude consistindo na
liberdade de gastar).
Pode-se dizer que a semântica argumentativa está voltada para os sentidos conotativos, ao
passo que a semântica formal está devotada aos sentidos denotativos. Mas o debate de fundo
é a função que a linguagem cumpre nas sociedades humanas: descrever o verdadeiro, num
caso, e orientar o discurso para certas conclusões, no outro caso.
Vamos ver outro exemplo do potencial argumentativo de enunciados. Trata-se de uma
situação real, que vivi há pouco tempo. Marquei uma consulta com um médico, que me disse o
seguinte:
(7) Eu atendo pontualmente, na hora marcada.
Entendi que esse enunciado indicava que eu devia chegar um pouco antes da hora marcada,
evitando atrasos. Ou seja, (7) seria um argumento para o paciente chegar na hora. Quinze
minutos antes da hora marcada, eu toquei a campainha do consultório. O próprio médico me
atendeu e disse que ele só poderia me receber na hora marcada. Quer dizer, ele estava sem
secretária e não tinha como receber os pacientes na sala de espera, antes da hora marcada! O
enunciado (7) era um argumento para eu não chegar antes do horário!
Do ponto de vista denotacional, a sentença (7) tem as seguintes condições de verdade: o
médico atende na hora marcada, nem antes, nem depois. Do ponto de vista da semântica
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formal, o advérbio pontualmente é neutro, quanto ao tipo de conclusão que se pode tirar
desse enunciado. No entanto, para a semântica argumentativa, o potencial argumentativo do
advérbio pontualmente é mais importante que sua denotação. O termo pontualmente pode
sugerir não depois da hora, mas pode indicar também não antes da hora, como era o caso do
enunciado do médico.
Observe que o potencial argumentativo de um enunciado está ligado a um contexto de uso,
sendo assim de natureza pragmática. Sem a definição do contexto, muitas vezes não
conseguimos definir o valor das sequências discursivas.
O principal autor da teoria argumentativa é o linguista francês Oswald Ducrot, nascido em
1930. Outros autores importantes dessa corrente teórica são Jean-Claude Anscombre e
Marion Carel, também franceses. Na entrevista dada a Moura (1998), pode-se encontrar uma
boa apresentação das ideias de Ducrot.
2.3. A semântica lexical
A semântica lexical está voltada para a descrição das estruturas lexicais que permitem a
construção e interpretação de enunciados. A ideia é que o léxico apresenta padrões regulares,
que possibilitam a expressão dos significados. Retomemos a sentença (1):
(1) João comprou uma Ferrari.
Ao analisar essa sentença, os proponentes da semântica lexical dedicariam atenção aos
aspectos semânticos do verbo comprar. Um dos princípios da semântica lexical é a
decomposição dos significados, em unidades menores. A combinação dessas unidades
menores formata os itens lexicais, e conduz ao significado do enunciado. Na ótica da
semântica lexical, o verbo comprar, na sentença (1), pode ser analisado como:
Quadro 1. Decomposição lexical do verbo comprar.
([João] CAUSA) (POSSE [Ferrari] (DE [x] PARA [João]))
Nessa análise, a significação de comprar é decomposta em unidades mínimas de significado.
Essas unidades mínimas aparecem em maiúsculas no quadro acima: CAUSA, POSSE, DE, PARA.
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Note que, na abordagem da semântica lexical, há o uso de variáveis (x) e de expressões
referenciais, como João e Ferrari, assim como na semântica formal. Mas o foco de análise recai
não sobre a denotação, mas sobre a forma como são combinadas as unidades mínimas do
significado, em um dado item lexical.
Traduzindo a fórmula do Quadro 1, temos que João é um agente associado à CAUSA, que faz
com que a posse da Ferrari seja transferida de um indivíduo x (não especificado), para ele
mesmo, João, que passa a ser o possuidor da Ferrari. Isso implica que o verbo comprar
contém, no seu significado, todos esses elementos de significação. Note que o vendedor da
Ferrari aparece na fórmula, representado pela variável x, mas não aparece, expressamente, na
sentença (1).
Essa é uma grande diferença entre a semântica formal e a semântica lexical. A semântica
formal parte da análise de signos que possuem representação sintática, criando assim uma
equivalência entre sintaxe e semântica. A semântica lexical, por sua vez, assenta a análise na
estrutura lexical subjacente, que pode ser mais rica e mais completa que a representação
sintática correspondente.
Observe também que as unidades mínimas de significado são representadas por palavras das
línguas naturais, mas o seu valor é definido na metalinguagem. Por exemplo, de é uma
preposição do português. No Quadro 1, DE é um termo da metalinguagem, e indica a fonte de
um movimento, no caso, de transferência de posse (a POSSE da Ferrari, que passa DE x, PARA
João).
A abordagem da semântica lexical tem várias vantagens. Em primeiro lugar, permite tratar a
semântica como um nível independente da sintaxe. O componente semântico teria suas
próprias regras. A semântica seria traduzida na sintaxe por meio de regras de interface, que
ligariam os dois componentes (semântica e sintaxe).
Por outro lado, essa abordagem possibilita a conexão entre diferentes itens lexicais, que se
encaixam em estruturas semânticas similares. Por exemplo, o verbo vender tem uma estrutura
muito similar àquela proposta para o verbo comprar. Se João tivesse vendido a sua Ferrari, a
estrutura semântica seria: ([João] CAUSA) (POSSE [Ferrari] (DE [João] PARA [x])). O que muda
da compra para a venda, é que na compra temos (PARA João), e na venda temos (DE João).
Isso indica que, no primeiro caso, o da compra, João é o destinatário da transferência de
posse, e no caso da venda, é a fonte da transferência de posse.
Agora veja a sentença (8), abaixo:
(8) João perdeu a sua Ferrari.
Nesse caso, o conceito de CAUSA está ausente da representação de (8) e, dessa forma, João
não é mais o elemento causador. A representação lexical de (8) é a seguinte:
Quadro 2. Decomposição lexical do verbo perder.
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POSSE [Ferrari] (DE [João]) PARA [φ])
O Quadro 2 indica que a perda de um objeto equivale a uma transferência de posse, que deixa
de ser do sujeito do verbo perder, o que é representado por (DE João). Ou seja, João (que é o
sujeito gramatical do verbo perder) é a fonte da transferência de posse. O símbolo φ marca
que a transferência de posse pode não ter nenhum destinatário especificado, indicando um
conjunto vazio. Quer dizer, um objeto perdido pode passar a não ser posse de ninguém. No
entanto, perder também pode significar que a transferência de posse se deu para alguém
especificado, mas nesse caso o verbo muda de sentido, como se pode averiguar na sentença
abaixo:
(9) João perdeu a Ferrari para o banco.
Volte, agora, a examinar o Quadro 1, que contém a decomposição lexical do verbo comprar.
Observe que essa representação serviria também para o verbo roubar, pois o roubo é uma
ação que provoca uma transferência de posse, em benefício do agente. A única diferença
entre o roubo e a compra é que, nesta última, há uma transferência de dinheiro entre os
participantes da compra. Assim, o Quadro 1 deve ser enriquecido da seguinte forma:
Quadro 3. Enriquecimento da decomposição lexical do verbo comprar.
([João] CAUSA) (POSSE [Ferrari] (DE [x] PARA [João]))
&
(João CAUSA) (POSSE [dinheiro] (DE [João] PARA [x]))
O Quadro 3 é mais completo que o Quadro 1, pois adiciona a informação semântica de que,
numa compra, quando um objeto é transferido para o comprador, uma quantidade de
dinheiro, em contrapartida, é transferida para o vendedor.
Em resumo, a semântica lexical tenta explicar os sentidos denotativos das expressões
linguísticas, a partir de representações e regras de natureza lexical. Essas representações se
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combinam entre si, para gerar, de forma estruturada, o léxico de uma dada língua (por
exemplo, as relações entre os verbos comprar, vender, perder, ganhar, emprestar, doar, etc).
Ao contrário da semântica formal, o que importa não é a denotação, e sim a relação entre as
diferentes estruturas lexicais.
Por outro lado, a semântica lexical não se preocupa com o potencial argumentativo dos
enunciados, relegando esse fator para uma análise pragmática.
O artigo Estrutura de uma teoria semântica, de Katz e Fodor (1977), cujo texto original é de
1963, é considerado um clássico da semântica lexical. Outros autores importantes desse
modelo são Jackendoff (1990) e Pustejovsky (1995).
2.4. A semântica cognitiva
Na perspectiva teórica da semântica cognitiva, as estruturas linguísticas são entendidas
como “manifestações de capacidades cognitivas gerais, da organização conceptual, de
princípios de categorização, de mecanismos de processamento e da experiência cultural, social
e individual” (SILVA, 1997, p.1). Sendo assim, a linguagem não é vista como uma entidade
autônoma. A análise linguística só faz sentido, nessa perspectiva, quando conectada com as
capacidades cognitivas do ser humano.
Essa crítica da autonomia das estruturas linguísticas leva a uma recusa das premissas da
semântica formal, pois, como vimos, esta abordagem pretende definir as regras, de natureza
formal, que permitem a passagem do signo à denotação. Na semântica formal, esse tipo de
regra não faz qualquer menção à estrutura da cognição humana. O cálculo do valor de verdade
de um enunciado é feito de forma automática, com base em regras, sem a necessidade de se
descrever a mente humana, que realiza o cálculo.
No entanto, para os cognitivistas, é impossível separar as regras linguísticas do aparato
cognitivo que codifica essas regras. Como afirma Pinker (2008, p. 185), a estrutura da
linguagem reflete a plataforma conceitual mais ampla que organiza a experiência humana.
Pense, por exemplo, nos substantivos comuns. Para a semântica formal, a denotação de
uma palavra como cachorro é, simplesmente, o conjunto de animais dessa classe, ou seja, uma
lista de referentes. Mas isso escamoteia todo o processo de categorização envolvido nos
substantivos comuns. Nossa cognição cria categorias estáveis, com contornos definidos, mas
que sejam suficientemente flexíveis para agregar novos exemplares. Por exemplo, novas raças
de cães podem entrar no nosso conceito de cachorro. Para a semântica cognitiva, é a forma
como categorizamos o que importa, e não uma lista pré-determinada de referentes.
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Vejamos, agora, que tipo de análise a semântica cognitiva faria da sentença (1), repetida
abaixo:
(1) João comprou uma Ferrari.
Uma análise cognitiva dessa sentença levaria em conta três processos cognitivos bastante
importantes: 1) metonímia; 2) causalidade; 3) enquadramento.
A metonímia permite o uso de um termo como Ferrari, que denota uma marca de
automóveis, no sentido de um exemplar produzido por essa marca. Essa passagem de um
elemento mais geral (o produtor), para um mais específico (o produto), corresponde a um
processo cognitivo, e não a uma regra linguística, de natureza formal. Esse tipo de relação
parte-todo, que caracteriza a metonímia, não se encontra apenas na linguagem, mas também
em outras capacidades cognitivas, como o reconhecimento visual. Se vemos apenas um rabo
de cachorro num quadro, por exemplo, estando o resto do corpo do animal recoberto por um
móvel, ainda assim reconhecemos a figura de um cachorro. Para a identificação visual, o rabo
(parte) vale pelo todo (o corpo inteiro).
Um segundo processo cognitivo relevante, para a análise da sentença (1), é a causalidade. Já
vimos que a semântica lexical identifica o elemento de significação CAUSA, na descrição dessa
sentença. Mas o que é exatamente uma causa?
Talmy (2003) define causa em termos de dinâmica de forças. Um antagonista exerce uma
força sobre um agonista, para tentar mudar um estado de coisas, que é inerente à situação do
agonista. Ou seja, um mundo sem causas seria um mundo em que nada mudaria, e em que os
participantes de uma cena continuariam sempre numa mesma situação. O antagonista
corresponde ao elemento causal que provoca a mudança (ou pelo menos, tenta provocar a
mudança, pois o agonista possui, também, força própria, e pode contrapor-se à força do
antagonista ). As forças em jogo, na nossa percepção cognitiva da causalidade, são de vários
tipos: físicas, sociais, psicológicas (MOURA & BRITO, 2011).
No caso da sentença (1), João dispõe de uma força social, que é o dinheiro. Essa força provoca
uma mudança no estado de coisas, ou seja, a Ferrari, que não estava em sua posse, passa a ser
de sua propriedade. Em suma, uma boa descrição do conteúdo de (1) deve levar em conta
como percebemos a causalidade, e quais as condições requeridas para uma causa ser
identificada na cena descrita.
No caso, as condições são as seguintes: João é um indivíduo que tem os meios apropriados
para realizar uma ação, a qual provoca uma transferência de posse de um objeto. João faz isso
não através de uma força física, mas por meio de um poder social: o dinheiro. A linguagem
reflete a forma como representamos o mundo.
Analisemos, agora, o enquadramento. Uma mesma cena no mundo pode ser representada de
várias formas diferentes. Cada representação diferente corresponde a um enquadramento
distinto. Pinker (2008, p. 280) cita a diferença entre invadir o Iraque e liberar o Iraque. Essas
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duas sentenças se referem à guerra do Iraque, mas descrevem o evento de forma distinta, sob
a ótica de diferentes enquadramentos. O primeiro enquadramento é o de uma invasão (um
antagonista entra numa região ao superar a resistência de um agonista) e o segundo
enquadramento é o de uma liberação. Nesse segundo enquadramento, como descreve Pinker
(2008, p. 280), “um antagonista remove outro antagonista, que impede o livre movimento do
agonista”.
A sentença (1) enquadra a cena com foco no agente João, que provoca uma mudança no
estado do objeto Ferrari: o carro muda de possuidor. Um enquadramento foca em certos
elementos, e apaga outros elementos da cena. Por exemplo, a sentença (1) apaga o vendedor
da Ferrari, que não recebe expressão sintática.
Compare com a passiva, repetida abaixo:
(2) Uma Ferrari foi comprada pelo João.
Na passiva, o foco recai sobre o veículo, e a mudança de estado sofrida por ele. O agente passa
a uma posição secundária na cena, e poderia até ser apagado.
Com base nessa análise, pode-se concluir que a semântica cognitiva se opõe à semântica
formal também no fato de que as diferenças de significado, na perspectiva do cognitivismo,
não se reduzem às diferenças de condições de verdade. Para a semântica formal, as formas
ativa e passiva, nas sentenças (1) e (2), têm as mesmas condições de verdade, e como tal têm
o mesmo significado. Já para a semântica cognitiva, (1) e (2) correspondem a enquadramentos
distintos da mesma cena, e como tal não possuem o mesmo significado.
Como autores importantes da semântica cognitiva, podemos citar Lakoff (1980), Langacker
(2002) e Talmy (2003). O já citado livro de Pinker (2008) serve como uma introdução
abrangente às questões abordadas pela semântica cognitiva.
3. Substantivos contáveis e incontáveis como categorias conceituais
A distinção entre substantivos contáveis e incontáveis é relativamente simples do ponto de
vista conceitual. Algumas coisas nós podemos isolar e individualizar como entidades contáveis.
Por exemplo, você pode contar quantos livros tem a seu lado no momento em que lê este
texto. Livros são entidades contáveis. Já o vento que talvez esteja soprando nesse momento
não pode ser contado. Vento é uma entidade incontável.
A nossa mente é capaz de apreender e fazer uso dessa distinção cognitiva fundamental:
algumas coisas são percebidas como contáveis, outras são percebidas como incontáveis. Essas
duas formas de perceber equivalem a duas formas distintas de construir categorias.
Vou propor aqui dois testes para determinar se a categoria representada por um substantivo
é contável ou incontável. São duas fórmulas bem simples. As operações aritméticas de soma e
subtração se aplicam aos substantivos contáveis, mas não aos incontáveis. Vamos aplicar os
testes aos substantivos cavalo e água:
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Quadro 4
Identificação de substantivos contáveis. Teste 1: Soma
Cavalo + cavalo = cavalos
Água + água = água
Observe que se você soma uma quantidade de cavalos com outra quantidade de cavalos, o
resultado é uma pluralidade de cavalos. Ainda que você tenha apenas um cavalo, se adicionar
outro cavalo, o resultado é mais de um cavalo. Ou seja, a operação aritmética se aplica
normalmente. Marcamos isso, na língua portuguesa, usando o plural (cavalos) como resultado
da soma de entidades contáveis, como se pode ver no Teste 1 acima.
Mas o resultado é diferente com o substantivo água. Nesse caso, a soma de uma
quantidade de água, com outra quantidade de água, resulta em água, no singular, e não numa
pluralidade (águas). A operação aritmética não pode ser aplicada, ou dá um resultado
diferente do esperado (como se você somasse 1 + 1, e o resultado fosse 1, e não 2!).
Isso ocorre porque água é percebida como uma substância incontável, não isolada em
entidades discretas, separadas. Qualquer porção de água é categorizada como sendo água.
Uma pocinha de água e o oceano são igualmente instâncias da substância água. Logo, para
categorizar algo como sendo água, a quantidade não é um fator relevante. Assim, se
adicionamos uma porção de água a uma outra porção de água, o resultado continua sendo
água, no singular. E isso é um resultado muito diferente do que ocorre com o substantivo
cavalo, que é um substantivo contável. Vejamos agora o segundo teste para identificar se um
substantivo é contável ou incontável:
Quadro 5
Identificação de substantivos contáveis. Teste 2: Subtração
(um) cavalo – (um) cavalo = zero
Água – água = água
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Quando você faz a subtração (um cavalo menos um cavalo), o resultado é zero. É uma conta
simples: cavalo é um termo contável.
Agora veja o caso de água. Se você subtrai de uma quantidade de água uma porção dessa
substância, o resultado será ainda água. Assim, se você retira um balde de água de uma
piscina, o resultado será ainda água. Água menos água não é igual a zero (a não ser, claro,
que você retire toda a água de um determinado recipiente). A diferença é que pensamos em
termos de porções de água, mas não em termos de porções de cavalo. Veja que se você retirar
de um pobre cavalo partes dele, você não terá mais um cavalo completo, mas um cavalo sem
pernas ou sem cabeça... Agora se você retira porções de água, a substância água continua
intacta.
Esses dois testes nos mostram que, conceitualmente, como falantes do português, sabemos
distinguir substantivos contáveis de substantivos incontáveis, ainda que em português essa
distinção não esteja gramaticalizada através de morfemas ou sintagmas específicos. O
português não possui marcas gramaticais que identifiquem a distinção do que é contável e do
que é incontável. No português, fazemos essa distinção basicamente em termos cognitivos,
quer dizer, nossa forma de categorizar e classificar as coisas implica essa distinção. Outras
línguas, como é o caso do inglês, gramaticalizam a distinção (cf. Pinker, 2008).
4. O papel das construções gramaticais na identificação das categorias contável e
incontável
Mas a distinção cognitiva não é suficiente para se possa fazer uma boa descrição do que
ocorre no português. Devemos levar em conta também as construções gramaticais em que
aparecem os substantivos, para identificar se funcionam como contáveis ou incontáveis.
Apesar de a distinção contável e incontável não ser gramaticalizada de forma estável no
português, há construções gramaticais que favorecem uma ou outra dessas interpretações. No
português, a classificação de um substantivo como contável não depende apenas do léxico,
pois essa classificação só se define, em última instância, no plano de enunciado (cf. NEVES,
2000, p. 73).
Um exemplo dessa preponderância da sentença sobre o léxico pode ser averiguada no uso
dos classificadores partitivos, que tornam contáveis substantivos que, no léxico, são
categorizados como incontáveis, como é o caso de vento e água:
(10)Rajadas de vento.
(11)Copos de água.
Rajadas e copos são classificadores partitivos nos exemplos acima, pois servem para
quantificar porções (partes) de vento e água, de acordo com uma medida determinada. Assim,
se o conceito de água é incontável, com o uso de classificadores partitivos podemos contar
porções dessa substância. Temos uma enorme quantidade de classificadores partitivos que
podem ser antepostos ao substantivo água, no português: copo, balde, medida, caixa, garrafa,
litro, colher, etc. Note que, ao dizer copos de água, na verdade não contamos a água em si,
13
mas porções de água, que é dividida em partes (ABREU, 2010, p. 95). O que importa, portanto,
é a identificação de partes que podem ser contadas. Para o substantivo vento, não temos
tantos classificadores partitivos, mas há alguns que podemos citar: rajada, lufada, sopro.
É muito comum também o uso de construções com classificadores partitivos que estão
apagados:
(12)Três cervejas.
O que está sendo contado neste exemplo não é a substância cerveja, mas classificadores
partitivos dessa substância. O numeral três, na sentença acima, se aplica a um classificador
partitivo que está apagado e que pode ser lata, garrafa, copo, etc. O que está sendo contado
são estes classificadores, e não a substância em si.
Agora vejamos o caso inverso. Em certas circunstâncias, um substantivo contável pode ser
interpretado como substantivo incontável, como ocorre na construção abaixo:
(13)Depois do acidente, tinha coelho por toda a estrada.
O substantivo coelho é normalmente contável. No entanto, na sentença (13) acima, coelho se
transforma numa espécie de substância, uma pasta de coelho espalhada pela estrada. Aí não é
mais o caso de se contar o número de coelhos, pois coelho passou a ser um termo incontável.
Esse tipo de modificação do sentido é denominado de trituração (grinding, em inglês), pois é
como se entidades contáveis tivessem sido trituradas e virassem uma massa incontável (cf.
COPESTAKE & BRISCOE, 1992). Essa é uma operação semântica que ocorre em muitas línguas,
não só no português.
No entanto, nem sempre uma construção gramatical do tipo da sentença (13) recebe uma
interpretação de trituração, ou seja, transformação de um substantivo contável em incontável.
Veja a sentença abaixo:
(14)Depois do vendaval, tinha laranja por todo o depósito.
Essa sentença é ambígua entre duas interpretações distintas: uma incontável e outra
contável. Na primeira interpretação, na qual se aplica a operação semântica de trituração, as
laranjas são vistas como uma substância incontável, ou seja, há pedaços de laranja espalhados
pelo depósito, e não faz sentido contar quantas laranjas há ali. Nesse caso, a interpretação da
sentença (14) é similar à da sentença (13): em ambas, substantivos contáveis viraram
incontáveis.
No entanto, (14) também pode significar que laranjas inteiras estão espalhadas pelo chão do
depósito. Nessa interpretação, as laranjas continuam sendo entidades contáveis.
O que podemos concluir da análise da sentença (14) é que a construção gramatical contida
nela pode favorecer a interpretação de trituração, mas que essa interpretação, associada à
forma gramatical, não é necessariamente a única. Fatores pragmáticos e contextuais podem
manter a interpretação contável do substantivo. Quais seriam esses fatores, especificamente?
Em primeiro lugar, conhecimento enciclopédico sobre os termos e sobre a situação envolvida.
Em (13), se o veículo que transporta coelhos sofreu um acidente, a interpretação mais normal
14
é a que eles tenham sido esmagados (embora, por sorte, também seja possível que alguns
coelhos tenham escapado inteiros!). Já no caso das laranjas, em (14), um vendaval pode
simplesmente espalhar laranjas inteiras no chão do depósito...
Note também que o caráter contável ou não é muito relevante do ponto de vista prático: o
dono do depósito não terá nenhum interesse em contar os pedaços de laranja esmagada, pois
elas estão perdidas de todo jeito, mas terá todo o interesse em contar as laranjas inteiras
espalhadas, pois elas poderão ser aproveitadas. Ou seja, contar ou não depende também de
interesses práticos, no âmbito de contextos específicos. Não é só uma questão de construção
gramatical, embora a estrutura gramatical possa favorecer uma determinada interpretação.
Ao analisar a significação linguística, devemos sempre levar em conta esses usos específicos.
Vamos examinar agora outra estrutura gramatical e ver como ela afeta a interpretação do
substantivo. O singular nu é um sintagma nominal em que não há nenhum determinante
anteposto ao substantivo que aparece no singular, como nos exemplos abaixo (as ocorrências
de singular nu estão marcadas em itálico):
(15) Elefante é um bicho perigoso.
(16) Brasileiro adora churrasco com cerveja.
(17) O menino quer maçã.
Todos os substantivos em itálico, na forma de singular nu, são interpretados como genéricos.
Expressões genéricas são aquelas que denotam espécies e não entidades individualizadas (cf.
MÜLLER, 2003). O que parece ser relevante, nos exemplos acima, é o próprio conceito de
elefante ou brasileiro, e não a referência a elefantes ou brasileiros específicos. Assim, podemos
dizer que o singular nu se aplica a termos genéricos, e que os termos genéricos são
incontáveis. De novo, temos uma associação entre uma determinada forma gramatical e uma
determinada interpretação do substantivo, categorizado como termo incontável.
No entanto, mais uma vez o contexto de uso é muito importante para autorizar ou não a
interpretação associada à forma gramatical. Veja as duas sentenças abaixo:
(18) Eu quero bicicleta!
(19) Eu quero Playstation!
Nesses usos, é difícil dizer que o falante (uma criança, por exemplo) esteja se referindo
apenas à espécie e não a objetos contáveis. O falante claramente quer exprimir o desejo de
possuir um objeto que pertence à classe das bicicletas ou que seja um Playstation. Ele não está
se referindo ao gênero, mas às entidades contáveis, e na verdade está implícito na sentença
que o falante está pedindo apenas um objeto da classe referida. Podemos assim dizer que uma
sentença como (18) é sinônima de uma sentença como (20), abaixo:
(20) Eu quero uma bicicleta!
As sentenças (18) e (20) exprimem o desejo de que, dentre a classe das bicicletas, o falante
quer uma bicicleta não especificada. Ou seja, apesar do singular nu, a ideia de que se pode
15
contar as entidades está bem presente na sentença, ao contrário do que ocorre com as
sentenças (15) a (17) acima.
Na sentença (15) Elefante é um bicho perigoso, por exemplo, não faz sentido dizer que o
falante está se referindo a algum animal que possa ser individualizado: ele está se referindo à
classe dos elefantes como um todo.
É muito interessante observar que os substantivos genéricos, como nas sentenças (15) a (17),
não apenas não envolvem a contagem de indivíduos específicos, como também as
propriedades indicadas nas sentenças e aplicadas às espécies, não dependem da instanciação
de entidades particulares.
Vamos explicar melhor. Quando alguém afirma que Elefante é um bicho perigoso, ele está se
referindo à classe dos elefantes. Se o ouvinte advertir que já viu um elefante específico que
não era nada perigoso, a sentença (15) não se torna falsa, pois o falante estava se referindo à
classe dos elefantes como um todo. Genéricos remetem à ideia de generalização: a sentença
(15) afirma que, de um modo geral, elefantes são perigosos. Se alguns indivíduos dessa classe
não obedecem a essa generalização, são considerados exceções à regra. Você pode ser
brasileiro e não gostar de churrasco com cerveja, mas isso não invalida a afirmação de que o
brasileiro apresenta essa característica ou, ao menos, o estereótipo de brasileiro apresenta
essa característica. Genéricos estão ligados a estereótipos (cf. PUTNAM, 1975).
Vimos que nem sempre o singular nu favorece a interpretação incontável. As sentenças (18)
e (19) podem receber uma interpretação contável, similar à de um artigo indefinido, como na
sentença (20).
A mesma ambiguidade ocorre com os plurais nus. A estrutura do plural nu é a mesma do
singular nu. O plural nu não apresenta determinante e também favorece a interpretação
genérica e incontável, como em (21) e (22) abaixo (os plurais nus estão marcados em itálico):
(21) Brasileiros gostam de futebol.
(22) Maria odeia dicionários.
Mas nem sempre os plurais nus remetem a termos incontáveis. Por exemplo, a sentença (23)
abaixo tem uma interpretação referencial e não genérica, e autoriza a contagem dos animais
envolvidos:
(23) Cachorros estão latindo na rua.
Na sentença (23), o número de cachorros que estão latindo é indefinido, mas claramente eles
podem ser contados, desde que se tenha acesso a essa informação. Assim, podemos dizer que
o plural nu, na interpretação referencial, denota uma pluralidade indefinida de indivíduos.
Já na sentença (21) Brasileiros gostam de futebol, o plural nu brasileiros não denota uma
quantidade que possa ser contada, pois aciona a leitura genérica.
5. Diferentes formas de contar os seres
16
Não há uma única maneira de contar os seres, na língua portuguesa. Podem ser identificados
quatro tipos diferentes de contagem.
O primeiro modo de contar é o mais corriqueiro: contamos os indivíduos separadamente,
como em três alunos, quatro árvores, dois amigos.
O segundo modo de contar é fazer referência a uma quantidade indefinida de indivíduos. A
língua portuguesa dispõe de uma série expressões para indicar pluralidade indefinida, como
pode ser visto nas sentenças abaixo (as expressões de pluralidade indefinida estão marcadas
em itálico):
(24) Um monte de amigos meus veio para a festa.
(25) Muitos torcedores se envolveram na confusão.
(26) Tenho uma pilha de tarefas para fazer.
Uma outra forma interessante de marcar a pluralidade indefinida é o uso dos coletivos, como
abaixo:
(27) Um bando de pássaros sobrevoou a casa.
(28) O cardume de tainhas passou perto da costa.
Os coletivos marcam a pluralidade indefinida de seres que são iguais entre si, mas a língua
dispõe também de termos que denotam uma pluralidade de entidades que não são iguais
entre si, embora tenham características comuns:
(29) A mobília foi colocada no caminhão.
(30) O maquinário dessa indústria é moderno.
Mobília e maquinário são hiperônimos, ou seja, indicam classes de coisas que podem ser
divididas em classes menores ou subclasses. Por exemplo, mobília é um termo que denota as
subclasses das cadeiras, mesas, armários, etc. Termos como mobília e maquinário denotam
um conjunto de coisas que têm alguma característica comum, mas que não são iguais. E
servem para denotar pluralidades indefinidas dessas coisas, ou seja, uma sentença como (29)
não define quantos móveis foram colocados no caminhão, mas esses móveis que compõem a
mobília podem ser, em tese, contados, como pode se averiguar na sentença abaixo:
(31) Uma mobília, contendo trinta itens, foi colocada no caminhão.
17
Para efeitos comunicativos, às vezes é mais relevante indicar apenas uma pluralidade
indefinida de coisas, embora a princípio elas pudessem ser individualmente contadas. Quando
falamos de pássaros no céu ou móveis num caminhão, pensamos num conjunto de entidades,
e não em cada entidade considerada isoladamente.
Pinker (2008:199) argumenta que os hiperônimos são incontáveis, da mesma forma que os
substantivos que denotam substâncias, como água e madeira. No entanto, os substantivos
incontáveis não funcionam como os hiperônimos. Ao nos referirmos ao conceito de água, não
pensamos em partes discretas que compõem essa substância. Já no caso dos hiperônimos, os
conjuntos são formados de entidades que são diferentes entre si e que podem ser facilmente
contados. A questão é que não parece ser relevante contar essas entidades, de forma que nos
referimos a um conjunto cujo número de itens é indefinido. Com os termos de substância, por
sua vez, não faz sequer sentido falar em conjunto, pois a substância é homogênea, não sendo
constituída de unidades diferentes entre si (como é o caso de água, arroz, tecido, etc.)
Além de hiperônimos, coletivos e quantificadores como muitos e poucos, a língua portuguesa
dispõe ainda de plurais nus, em uso referencial, para indicar pluralidades indefinidas. A
sentença (23), que repetimos abaixo, é um exemplo desse tipo de uso. O plural nu cachorros,
na sentença abaixo, indica uma pluralidade, que pode ser contada:
(23) Cachorros estão latindo na rua.
Talvez a própria terminologia que classifica os substantivos em contáveis e incontáveis não
seja a mais adequada. De fato, tudo pode ser contado. A questão é como fazemos a contagem.
Chegamos, agora, ao terceiro modo de contar. No caso dos substantivos como água e
madeira, as substâncias não podem ser divididas em partes distintas. Não há partes discretas
que possam ser identificadas numa substância, de modo que nos referimos a um todo que não
pode ser contado. Mas, se separamos essa substância em partes iguais, com base em alguma
medida, aí podemos contar a substância. E isso constitui o terceiro modo de contar.
Uma substância como água não tem partes diferentes (água só é formada de... água), mas ela
pode ser dividida em partes iguais, por exemplo, baldes de água. O recipiente balde serve para
dividir a substância água em partes iguais, e aí podemos contar não a água em si, mas as
porções de água que correspondem ao conteúdo de um balde.
Finalmente, um quarto modo de contar é rotular partes da substância e contar essas partes
identificáveis. Podemos então ter pingos de água, lascas de madeira e felpas de tecido. Nesse
caso, contamos partes identificáveis das substâncias. Também podemos contar partes de seres
individualizados: duas pernas de mulher, duas telas de monitor, uma capa de livro, parágrafos
de um texto. Essa relação semântica (parte de uma entidade) é chamada de meronímia.
Assim, temos pelo menos quatro formas de contar as coisas:
(I) Contamos entidades individuais e discretas: três alunos, quatro árvores, dois amigos.
18
(II) Contamos quantidades indefinidas de entidades: cardumes de peixe, monte de amigos,
mobília, maquinário, muitos torcedores.
(III) Contamos partes iguais de uma substância a partir de uma medida determinada:
baldes de água, metros cúbicos de madeira, quilos de arroz, latas de cerveja, rolos de
papel.
(IV) Contamos partes identificáveis de uma substância ou de uma entidade: três pingos de
água, duas lascas de madeira, uma felpa de tecido, duas pernas de mulher, uma capa
de livro.
6. Ser ou não ser contável
Pensar num conceito como contável ou não depende de como representamos a sua estrutura
conceptual. As coisas não são contáveis ou incontáveis por natureza. Depende de como
pensamos nelas, até porque somos capazes de contar qualquer entidade, desde que seja
relevante fazê-lo.
Basta comparar línguas para ver que coisas contáveis numa língua podem ser incontáveis em
outras. Notícia e torrada são contáveis em português, mas incontáveis em inglês (news e
toast). Dentro de uma mesma língua, uma palavra pode se comportar ora como contável, ora
como incontável.
Considere a palavra estrada, por exemplo. Normalmente, podemos considerá-la como sendo
contável. No entanto, na sentença (32) abaixo, esse substantivo não é contável:
(32) Vou pegar a estrada.
Em (32), o falante está se referindo genericamente a um tipo de via de transporte (estrada), e
não a uma entidade que possa ser individualizada e contada.
Em alguns casos, é muito difícil identificar se uma palavra no português é contável ou
incontável: depende do contexto. Veja as duas sentenças abaixo, com o substantivo cabelo:
(33) O cabelo de Maria cresce rápido.
(34) Tem um cabelo na minha sopa!
Em (33), cabelo é incontável e denota uma entidade homogênea que é formada por partes
iguais, como ocorre com substantivos como madeira ou tecido. Já em (34), cabelo é contável.
Trata-se de uma diferença de conceptualização (entidade incontável em (33) e fios de cabelo
contáveis em (34)) que reflete aspectos práticos de nossa forma de lidar com o mundo. Em
(33), a quantidade de fios de cabelo não é um dado relevante, já em (34), a quantidade de fios
19
é muito relevante (três fios de cabelo na sua sopa já deixariam você completamente
revoltado!).
É interessante notar que a marcação de plural, no português, não ajuda muito na
identificação do caráter contável ou não do substantivo. Dessa forma, podemos ter tanto (35),
com o substantivo no plural, quanto (36), com o substantivo no singular. Nas duas sentenças, a
interpretação é a mesma - o substantivo é interpretado como incontável:
(35) Ela penteou os cabelos.
(36) Ela penteou o cabelo.
Em outras línguas, a marcação do número define a interpretação. Em inglês, usa-se o
singular hair (cabelo) para marcar a interpretação incontável; já em francês, é o plural cheveux
(cabelos) que serve para marcar a interpretação incontável. No português, a oposição
morfológica singular/plural não basta para identificar se um termo é contável ou incontável.
NEVES (2000:84) observa que construções no plural recebem interpretação contável quando
se pode identificar mais de uma unidade discreta. No entanto, essa quantificação só é possível
porque se usam determinantes que marcam o caráter contável do plural, como nas expressões
todas as paisagens e poucas pessoas, em que os determinantes todas e poucas impõem uma
interpretação contável aos substantivos no plural. Portanto, não é exatamente o plural que
marca o caráter contável, mas a combinação do plural com um determinante que serve de
quantificador.
Há casos interessantes de diferenças de conceptualização em substantivos que pertencem a
um mesmo campo semântico. Essas diferenças parecem derivar do conhecimento
enciclopédico dos falantes em relação aos conceitos.
Por exemplo, considere os substantivos macarrão e lasanha. O primeiro é categorizado como
incontável; já lasanha pode ser categorizada como contável. A razão dessa diferença entre
esses dois termos tão próximos, é que macarrão não denota um referente de contornos
definidos; trata-se de uma substância homogênea. Já lasanha denota uma entidade com
contornos definidos, que possui forma retangular e é estruturada em camadas. Esse
conhecimento sobre lasanha nos leva a perceber esse substantivo como contável, já que uma
lasanha é facilmente separável de outra. Assim, conhecimento enciclopédico sobre os termos
pode favorecer a interpretação contável ou incontável.
Conclusão
Ao estudar um aspecto semântico das línguas naturais, é preciso atentar para três fatores
distintos e complementares: a) as estruturas conceptuais subjacentes; b) as construções
gramaticais que servem para representar as estruturas conceptuais e c) os contextos de uso
que definem como se dá a conexão entre estrutura conceitual e estrutura gramatical.
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Esses três fatores foram objeto de análise das quatro teorias semânticas que estudamos na
seção 2. As estruturas conceptuais subjacentes constituem o objeto principal da semântica
cognitiva, e também são muito importantes para a semântica lexical. As construções
gramaticais são um dos focos principais da semântica formal, e os contextos de uso são objeto
de análise da semântica argumentativa.
Não se trata aqui de querer fundir todos os modelos semânticos numa mesma teoria, pois isso
é impraticável, já que os modelos possuem diferenças irredutíveis. Por exemplo, condições de
verdade são essenciais para a semântica formal, e irrelevantes para a semântica argumentativa
e também para a semântica cognitiva. A questão é que os diferentes modelos focaram
aspectos do significado que não podem ser esquecidos numa boa análise semântica.
Esse artigo assume que a distinção entre contável e incontável é de natureza conceptual, e
como tal se enquadra na perspectiva da semântica cognitiva. No entanto, isso não impede que
se reconheça a importância de fatores pragmáticos no uso dessa distinção.
Além disso, fatores gramaticais são também importantes para essa distinção. Por exemplo, o
plural nu favorece a interpretação genérica e incontável. No entanto, há contextos em que o
plural nu é interpretado como se referindo a um termo contável. Podemos, então, concluir que
a combinação de gramática e contexto de uso define a interpretação contável ou incontável
associada a uma dada forma gramatical.
Outra conclusão desse artigo é que a rigor não existe entidade que não se possa contar; o que
há são formas diferentes de contar e quantificar. A conceptualização do caráter contável
reflete a forma como interagimos com as coisas do mundo. Uma mesma coisa pode ser
categorizada como contável ou incontável, dependendo da representação conceptual que dela
fazemos e dos fins que desejamos atingir ao representá-la de uma forma ou outra.
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