ENTREVISTA Os desafios de quem atua na Educação Infantil TÂNIAFORTUNATÂNIAFORTUNATÂNIAFORTUNATÂNIAFORTUNATÂNIAFORTUNA A Educação Infantil é uma das mais importantes fases do desenvolvimento da criança. Saber compreender as necessidades e demandas desse público é importante para garantir uma educação eficiente e saudável. Para a pedagoga Tânia Ramos Fortuna, é por meio da relação inteira com a criança que o educador será capaz de estimulá-la a crescer. Mestre em Psicologia Educacional, professora de Psicologia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Tânia Ramos Fortuna fala com exclusividade para Atividades & Experiências sobre os desafios dessa fase e sua importância para a construção do conhecimento. março 2007 13 “Um educador bom é aquele que não procura sua própria infância na infância de seus alunos.” Atividades & Experiências — Atualmente, quais são as características das crianças da Educação Infantil, em termos de desenvolvimento e aprendizagem? Tânia Fortuna — Hoje em dia não se admite mais falar de infância como uma categoria única. Reconhecido como produto de uma construção social, o conceito de infância só possui potencial explicativo quando considera os diferentes modos e contextos no interior dos quais as crianças se constituem como tal. No caso das crianças das sociedades ocidentais que vivem em grandes centros urbanos, dada a valorização da juventude pela cultura contemporânea, o que se observa é uma juvenilização da infância, isto é, uma intensa pressão para que sejam jovens cada vez mais cedo, e não crianças. Até mesmo os adultos são pressionados para serem jovens. Em termos de características infantis, isso se reflete nos interesses que as crianças demonstram no dia-a-dia: dizem preferir roupas e objetos eletrônicos a brinquedos, mostram-se fortemente preocupadas com a popularidade e o consumo, possuem grande desenvoltura verbal. Habitando pequenos espaços, com a vida precocemente agendada, voltam-se cada vez mais para atividades intelectuais em detrimento de atividades motoras, ao ar livre. Abundantemente estimuladas, apresentam tendência à atenção difusa, do que pode decorrer distratibilidade e dificuldades de aprendizagem. Como para a maioria dos adultos que as cercam, para essas crianças contemporâneas também é mais importante ter e parecer ser, do que ser, propriamente. Por outro lado, ouvindo-as com atenção, percebemos que continuam demandando, como vêm fazendo há séculos, atenção e cuida14 março 2007 do por parte dos adultos, de quem esperam referências, orientação e limites. Anseiam por estabelecer interações criativas e estimulantes através das quais possam ser estimuladas a crescer, sentindo-se amadas e protegidas. Mas, para isso, são necessários adultos em quem possam se inspirar e confiar e que desejem transmitir valores e conhecimento. impulsionar e qualificar sua ação educativa. Não se trata de o adulto ser criança, mas, sim, de ser capaz de estar com a criança. A&E — Qual é o perfil ideal do educador para trabalhar com essa geração? E quais os desafios desse profissional? Tânia — Antes de tudo, é preci- til possui especificidade própria, não devendo ser entendida apenas como etapa prévia e preparatória ao Ensino Fundamental. Estando em “continuum”, tais aprendizagens e necessidades de desenvolvimento interagem entre si ao longo do ciclo vital, de modo que as etapas precedentes influenciam as etapas posteriores do processo evolutivo. Mas conhecimentos, processos e habilidades associados ao desenvolvimento intelectual, social, moral, emocional, físico, psicomotor, da criatividade, da consciência estética e da linguagem da criança em seus primeiros anos de vida requerem uma abordagem pedagógica específica. Essa abordagem baseia-se na oferta de situações desafiadoras, estimulantes, significativas e continentes que propiciem a descoberta do mundo, do outro e de si mesma, através das quais, ciências, matemática, estudos sociais, entre outros conteúdos, sejam aprendidos, enquanto aprende também regras, valores e a conviver. A brincadeira desempenha um papel central nessa abordagem, sobretudo as brincadeiras sensóriomotora e simbólica, pois é o modo predominante de interação e compreensão do mundo nessa fase da vida. Mas ela não deve ser compreendida como exclusiva da etapa de Educação Infantil, já que também podemos – e devemos – continuar a brincar ao longo da vida. so que esse educador disponha-se a oferecer a única coisa que tem, efetivamente, a dar, ou seja, ele mesmo: experiência, carinho, interesse, valores e cuidado. Ao adulto cabe o importante papel de garantir uma herança moral e cultural à criança, mas isso é cada vez mais difícil na contemporaneidade, já que sequer os adultos querem ser adultos. Afinal, como afirmei antes, todos querem ser jovens! É através do estabelecimento de uma relação inteira com a criança que o educador será capaz, ao mesmo tempo, de contê-la e estimulála a crescer. Para tanto, o adulto deve ser capaz de compreender a criança que tem diante de si, o que, por sua vez, só é possível, como preconizava Freud, se for capaz de reconciliar-se com sua própria infância, não para reencontrá-la na infância de seus alunos, mas para compreender suas próprias motivações e atitudes. Um educador bom o bastante – para usar a expressão consagrada por Winnicott acerca da mãe suficientemente boa – é aquele que consegue distinguir a criança real daquela imaginada; não procura sua própria infância na infância de seus alunos, mas emprega a própria experiência para A&E — Como as escolas podem valorizar o trabalho com a Educação Infantil sem transformar esse espaço em um “curso preparatório” para o Ensino Fundamental? Tânia — A Educação Infan- TÂNIAFORTUNATÂNIAFORTUNATÂNIAFORTUNATÂNIAFORTUNATÂNIAFORTUNA A&E — Que atitudes, estratégias e procedimentos da escola favorecem o pleno desenvolvimento das crianças? Tânia — É preciso, urgente- mente, superar a dicotomia que mantem separadas e em oposição a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, expressa na idéia de que “Ensino Fundamental é lugar de estudar, de aprender” e “Educação Infantil é lugar de brincar”. Se a brincadeira é o tipo de atividade predominante na Educação Infantil, isso não quer dizer que não haja aprendizagem nessa etapa, tampouco compromisso dos educadores com a promoção do crescimento e desenvolvimento das crianças. Por outro lado, o fato de o Ensino Fundamental organizar-se em torno de conteúdos curriculares específicos não deve excluir a presença da brincadeira, ou mesmo relegá-la a um plano inferior, propiciada apenas quando “sobra tempo”. Essa discussão adquire contornos novos no momento em que o Ensino Fundamental se inicia aos seis anos de idade e passa a ter nove anos, pois exige de seu professor não só conhecimentos específicos sobre a criança dessa faixa etária, mas também abordagem pedagógica consentânea às suas necessidades e possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento. A&E — Em relação à ampliação para nove anos do Ensino Fundamental, qual é a sua opinião? Tânia — Estou apreensiva, mas otimista. Penso que este é o momento de a Educação Infantil, como área de conhecimento e prática profissional específica, influenciar decisivamente no Ensino Fundamental, indicando aos educadores as necessidades e os modos de trabalho com crianças de “É através do estabelecimento de uma relação inteira com a criança que o educador será capaz, ao mesmo tempo, de contê-la e estimulá-la a crescer.” seis anos. Por outro lado, creio que essa medida confronta a Educação Infantil com a necessidade de refletir sobre a evitação do trabalho com conteúdos curriculares que a caracterizou, ao longo dos anos, recusando-se, muitas vezes, a admitir que também se aprende e se ensina nessa etapa. A&E — Para finalizar, fale-nos sobre o papel do brincar na Educação Infantil. Tânia — Desejo concluir enfatizando a importância da brincadeira. Todo lugar é lugar de brincar, e toda hora é hora de brincar, em qualquer idade, quando o ato de brincar é entendido como uma forma de afirmar e renovar a vida, pois a brincadeira é tanto condição para que a vida aconteça, quanto meio para que se expresse, seja compreendida e transformada. Brincar ou jogar (não importa, aqui, distinguir estes termos, senão captar o sentido que têm em comum) é uma atividade fundamental no ser humano, a começar porque funda o humano em nós: aquilo que define o ser humano – inteligência, criatividade, simbolismo, emoção e imaginação, para listar apenas alguns de seus atributos – constitui-se pelo jogo e pelo jogo se expressa. A criação de universos inteiros de realidade nos jogos e brincadeiras constitui-se como um passaporte para a construção da subjetividade, o conhecimento do mundo, a relação com os outros, a experiência de processos internos de prazer e/ou dor e, em definitivo, uma oportunidade para se desenvolver e viver. Para tanto, é preciso garantir o direito à brincadeira, o que implica oferecer meios e momentos propícios, e o que requer educadores preparados para brincar e fazer brincar. Não basta que esse educador, quando criança, tenha brincado, tampouco é suficiente que “deixe” seus alunos brincarem. A abordagem lúdica da Educação supõe preparação específica, na qual vivência e observação de brincadeiras se combinam com o estudo teórico sobre o brincar, pois só assim a brincadeira pode ser guindada ao justo lugar a que tem direito na escola e em nossa vida. março 2007 15