a escola em contextos de vulnerabilidade social

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ISSN 1982 - 0283
A ESCOLA EM CONTEXTOS
DE VULNERABILIDADE
SOCIAL
Ano XXIII - Boletim 22 - NOVEMBRO 2013
A escola em contextos de vulnerabilidade social
SUMÁRIO
Apresentação........................................................................................................................... 3
Rosa Helena Mendonça
Introdução............................................................................................................................... 4
Martina Ahlert
Texto 1: Políticas educacionais de acesso à escola.................................................................. 10
Glícia Gripp
Texto 2: A escola e os territórios vulneráveis das grandes cidades......................................... 16
Antonio Augusto Gomes Batista
Frederica Padilha
Hamilton H. De Carvalho Silva
Luciana Alves
Vanda Ribeiro
Texto 3: A escola e a garantia de aprender.............................................................................27
Martina Ahlert
Nair Cristina da Silva Tuboiti
A escola em contextos de vulnerabilidade social
Apresentação
A publicação Salto para o Futuro
A edição 22 de 2013 traz como tema
complementa as edições televisivas do pro-
A escola em contextos de vulnerabilidade
grama de mesmo nome da TV Escola (MEC).
social e conta com a consultoria de Martina
Este aspecto não significa, no entanto, uma
Ahlert, Doutora em Antropologia Social pela
simples dependência entre as duas versões.
Universidade de Brasília e Professora Subs-
Ao contrário, os leitores e os telespectadores
tituta do Departamento de Antropologia da
– professores e gestores da Educação Bási-
Universidade Federal do Paraná.
ca, em sua maioria, além de estudantes de
cursos de formação de professores, de Fa-
Os textos que integram essa publicação são:
culdades de Pedagogia e de diferentes licenciaturas – poderão perceber que existe uma
1. Políticas educacionais de acesso à escola
interlocução entre textos e programas, pre-
3
servadas as especificidades dessas formas
2. A escola e os territórios vulneráveis das
distintas de apresentar e debater temáticas
grandes cidades
variadas no campo da educação. Na página
eletrônica do programa, encontrarão ainda
3. A escola e a garantia de aprender
outras funcionalidades que compõem uma
rede de conhecimentos e significados que se
efetiva nos diversos usos desses recursos nas
escolas e nas instituições de formação. Os
Boa leitura!
textos que integram cada edição temática,
além de constituírem material de pesquisa e
Rosa Helena Mendonça1
estudo para professores, servem também de
base para a produção dos programas.
1
Supervisora Pedagógica do programa Salto para o Futuro (TV Escola/MEC).
Introdução
A escola em contextos de vulnerabilidade social
Martina Ahlert1
Em 2009, a romancista nigeriana
rotinas de trabalho. Parte-se do pressuposto
Chimamanda Adichie proferiu uma con-
de que a construção de uma sociedade com
ferência2 intitulada O perigo de uma história
maior justiça social passa pela consideração
única. Nela, a escritora lembra a importância
das trajetórias de grupos específicos e pelo
de se contar e escrever muitas histórias, pois
reconhecimento de seus direitos. Respeitar
isso permite conhecer diversos ângulos de
diversidades e diferenças, entretanto, não é
uma mesma situação, restituir a dignidade
tarefa fácil. Como indica Adichie (2009), isso
a determinados grupos e questionar os este-
exige o questionamento das nossas certezas,
reótipos. Os estereótipos, portanto, têm a ver
verdades e concepções de mundo. Exige ain-
com nosso conhecimento restrito sobre os ou-
da que sejamos desejosos de ouvir e contar
tros e, por isso, são sempre incompletos, ten-
muitas histórias. Essa Série do Programa Sal-
dendo a reduzir a diversidade cultural e social
to para o Futuro quer falar sobre uma das
às narrativas daqueles que têm mais poder.
diferenças que, entre outras, se faz presente
no ambiente escolar: a diferença de classe, a
Em virtude do cenário político na-
cional e internacional que tem se colocado
partir das escolas que estão em contextos de
vulnerabilidade social.
nas últimas décadas no Brasil, o respeito à
diversidade e à diferença – de raça e cor, et-
Nos últimos anos, no âmbito das dis-
nia, classe social, gênero, orientação sexual,
cussões sobre as políticas públicas e sociais, o
religião e crença – tem ocupado uma centra-
conceito de classe tem sido pensado em rela-
lidade importante nas nossas legislações e
ção à categoria vulnerabilidade social3. A pers-
1
Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Professora substituta do Departamento
de Antropologia da Universidade Federal do Paraná. Tem desenvolvido pesquisas sobre antropologia, diversidade
cultural, políticas e programas de governo. Consultora desta Edição Temática.
2
A conferência se chama “The danger of a single history” e foi proferida em 2009, está disponível em: http://
www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html
3
Para uma discussão da categoria vulnerabilidade, ver, por exemplo, Castel (2997).
4
pectiva é que a pobreza seja entendida como
ajudar no orçamento doméstico, violência e
um fenômeno que, embora tenha a renda
uso de drogas, desconhecimento dos profis-
como um fator fundamental, é multidimen-
sionais da educação sobre o contexto e a rea-
sional. Desta forma, além de estar conectada
lidade vivida pelos alunos – elementos que se
com a privação material, a situação de pobre-
refletem nos índices de distorção idade/série
za ou vulnerabilidade social está relacionada
e abandono escolar.
ainda com a falta de infraestrutura, com uma
maior exposição ao risco, à violência e às do-
Nesta Série, queremos convidá-los a
enças, com a presença de fatores que impe-
pensar conosco na forma como a escola rece-
çam as pessoas de ocupar espaços de decisão
be os alunos e alunas que vivem em contex-
e voz, e com a ausência de garantia dos direi-
tos de vulnerabilidade social, em como este
tos básicos (CRESPO; GUROVITZ, 2002).
cenário impacta no cotidiano escolar, e em
como garantir, não só o acesso, mas também
A proposta desta Série não é nova.
a permanência na escola. Algumas pesquisas
em 2010 realizamos, no Salto para o Futuro,
chamam nossa atenção para a importância
um debate sobre vulnerabilidade social e
de pensarmos os impactos da vulnerabilida-
educação4. Naquele momento, enfatizamos
de social na escolarização de crianças e ado-
os impactos da vulnerabilidade social na tra-
lescentes, mostrando que essa é uma variável
jetória escolar de um aluno; a relação entre
fundamental para entendermos a reprodu-
escola e família; a intersetorialidade e a rede
ção das desigualdades sociais no Brasil, bem
de proteção que insere a escola em um cená-
como a perpetuação da pobreza em ciclos in-
rio de acompanhamento dos alunos em situ-
tergeracionais (HENRIQUES, 2000; DUARTE,
ação de pobreza. Em conversas com pesqui-
2012). O cruzamento de dados de diferentes
sadores, professores, gestores e estudantes,
pesquisas tem indicado que a renda é a va-
surgiram alusões a aspectos que indicam a
riável que mais impacta na trajetória esco-
relação entre vulnerabilidade social e edu-
lar dos brasileiros5, acarretando abandono e
cação, como dificuldades com o transporte
evasão escolar e lembrando a importância
e deslocamento dos alunos, necessidade de
de determos nosso olhar nesta temática.
crianças e adolescentes trabalharem para
4
A Série Vulnerabilidade Social e Educação foi veiculada em novembro de 2010 e está disponível no endereço:
http://www.tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/11200019-Vulnerabilidade.pdf
5
Na Série de 2010 indicamos que, a partir dos dados da Pnad 2008, podíamos ver que os 25% mais ricos do
Brasil (em 2007) tinham em média 12 anos de escolaridade enquanto os 25% mais pobres tinham em média 06 anos
de escolaridade. Trabalhando com os dados da Pnad de 2011, sabemos que entre o grupo 20% mais pobres de 16
anos, somente 42,8% possuem Ensino Fundamental completo; entre os 20% mais pobres de 19 anos, apenas 29,3%
possuem Ensino Médio completo. Os dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios) podem ser
encontrados em: www.ibge.gov.br.
5
Nesse sentido, sabemos que a educa-
aluno ideal e a existência de um aluno real
ção pública no Brasil, nas últimas décadas,
(CASTRO; REGATTIERI, 2009) – que, por sua
tem passado por diversas transformações
vez, contribuiu para a construção de diver-
que se acentuaram diante do processo de
sos ‘mitos’ que têm justificado e responsa-
ampliação das oportunidades de acesso à
bilizado os alunos e suas famílias pelo fra-
escolarização das crianças em idade escolar.
casso escolar (DUARTE, 2012). Estes ‘mitos’
Entretanto, “A inegável expansão do acesso
sugerem a existência de “famílias desestru-
à escola não correspondeu (...) a uma efetiva
turadas”6 entre os mais pobres e afirmam
democratização da educação nem à oferta
ainda que as condições de privação material
de uma educação de qualidade, elementos
seriam explicações para o não aprendizado
essenciais para garantir tanto a permanên-
de crianças e adolescentes.
cia quanto a conclusão da educação básica
na idade adequada” (CASTRO, 2010, p. 11).
Se estes argumentos não são razão
Sem ser necessariamente acompanhada por
suficiente para explicar ou justificar índices
uma melhoria das condições de ensino, a
de distorção idade/série e evasão escolar,
ampliação do acesso à escola trouxe, para
também não basta responsabilizar, isolada-
dentro da sala de aula, uma maior diversi-
mente, professores e gestores, pelo enfrenta-
dade de alunos e alunas – com caracterís-
mento de questões relativas à vulnerabilida-
ticas e experiências sociais variadas (raça/
de social, presentes no contexto das escolas
cor, classe social, local de residência, etc.).
onde trabalham. Perceber a pobreza como
Essas transformações nem sempre foram
um fenômeno multifacetado é também re-
acompanhadas de uma mudança na con-
conhecer sua complexidade e entender que
cepção de aluno que fora construída em um
deve ser enfrentada a partir de políticas e
cenário anterior, quando o acesso à escola
programas que sejam intersetoriais, isto é,
ainda era limitado, em grande parte, a alu-
que envolvam diferentes áreas, como, por
nos de classe média. O efeito desse processo
exemplo, a saúde, a educação e a assistên-
levou a um desencontro entre a visão de um
cia social (BRONZO, 2007)7. Neste sentido, a
6
Para desconstruir o conceito “família desestruturada” sugerimos a leitura de textos que indicam como a
noção de família é histórica (ou seja, se transforma com a passagem do tempo) e socialmente construída (tendo
diferentes ‘formatos’ em variados contextos), como o trabalho de Ariés (1981), Bourdieu (1997) e de Claudia Fonseca
(1995).
7
Um exemplo de programa intersetorial é o Programa Bolsa Família. Para enfrentar os múltiplos aspectos da
situação de pobreza, o Programa relaciona diferentes esferas governamentais (governo federal, estados e municípios)
assim como aciona diferentes ministérios - como o Ministério da Educação, o Ministério do Desenvolvimento Social
e o Ministério da Saúde, que fazem a gestão das condicionalidades (que são compromissos que devem ser cumpridos
pelo Estado e pelos beneficiários para que o repasse do benefício aconteça). A condicionalidade na educação exige
que crianças e adolescentes de até 16 anos, de famílias beneficiárias do Programa, tenham 85% de presença em sala
de aula, e adolescentes entre 16 e 18 anos tenham 75% de presença.
6
escola deve estar articulada a uma rede de
ciais, precisamos ouvir e contar muitas his-
proteção social que envolve diversas iniciati-
tórias – elas podem potenciar, reparar a dig-
vas governamentais e não governamentais.
nidade e humanizar (ADICHIE, 2009). Esta
Ela não trabalha sozinha, mas reconhece
Série pretende provocar nossas reflexões e
sua importância como espaço de acolhida e
debates sobre a relação entre educação e
ensino às crianças e adolescentes em situa-
vulnerabilidade social, a fim de perceber-
ção de vulnerabilidade social.
mos as diferenças e a diversidade presentes
no cotidiano escolar.
No panorama das discussões sobre
direitos humanos, educação, diversidade so-
Textos desta edição temática:
cial e cultural, é constantemente reiterada a
relevância de a escola conhecer o contexto
Texto 1: Políticas educacionais de acesso
social de onde provêm os seus alunos e alu-
à escola
nas. No entanto, saber mais sobre suas famílias, suas casas e seus bairros não implica que
O primeiro texto da Série realiza um
a escola deva se responsabilizar por resolver
breve histórico das políticas educacionais
sozinha as dificuldades encontradas nos coti-
no Brasil. Analisando a educação pública
dianos marcados pela vulnerabilidade social.
em diferentes momentos, Glícia Gripp nos
Antes, quer dizer que é possível, e desejável,
apresenta variados cenários da educação
“reconhecer e utilizar as lições da realidade a
pública e de como, em cada um deles, se
favor de sua [da] aprendizagem [dos alunos]”
configura a inclusão ou a exclusão de alu-
(REGATTIERI; CASTRO, 2009, p. 59).
nos e alunas no ambiente escolar. Neste
percurso, mostra como as áreas de conhe-
Conhecer sujeitos e suas realida-
cimento – como a psicologia, a sociologia
des cotidianas, entretanto, é uma atividade
da educação, a gestão escolar – foram cen-
complexa, na medida em que temos o há-
trais na definição de quem poderia ou deve-
bito de entender a alteridade e a diferença
ria ter acesso à escola. A análise da autora
a partir das nossas categorias, dos nossos
chega ao momento atual, quando o acesso
desejos, das nossas próprias escolhas de
à escola é visto como um direito de todos e
vida. Por isso, respeitar diversidades e dife-
todas, e a educação é percebida como ele-
renças – na escola e também fora dela – não
mento fundamental para a redução da po-
é apenas um ato de boas intenções, mas um
breza e das desigualdades sociais.
processo constante de vigilância dos nossos
próprios preconceitos e estereótipos. Para
conhecermos alunos, alunas e contextos so-
7
Texto 2: A escola e os territórios vulneráveis
práticas profissionais, têm desafiado estas
das grandes cidades
narrativas de fracasso e demonstrado que
todos os alunos e alunas podem aprender.
O segundo texto foi escrito por uma
Recupera, nesse sentido, a importância da
equipe de pesquisadores do CENPEC – Centro
escola como um espaço de conhecimento
de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultu-
formal, mas também de conhecimento do
ra e Ação Comunitária, a partir de uma pes-
aluno e de suas experiências, se tornando
quisa realizada em escolas públicas da sub-
uma referência nos seus planos e desejos
prefeitura de São Miguel Paulista, localizada
para o futuro.
na extrema Zona Leste de São Paulo. A partir
deste contexto, os pesquisadores chegaram
a conclusões que permitem analisar outras
situações, análogas, que também falam sobre a relação entre a escola e a vulnerabilidade social. Partindo de duas perguntas: (i)
A vulnerabilidade social do território ou da
vizinhança da escola influencia, de fato, sua
8
qualidade? (ii) Se sim, essa influência se realiza de que modo, por meio de quais mecanismos? – a pesquisa apresentada buscou analisar as situações concretas vividas por alunos,
famílias e também professores e gestores.
Texto 3: A escola e a garantia de aprender
O terceiro texto da Série apresenta o
atual cenário nacional como um momento
em que diversas legislações reforçam a importância do acesso à escola. Diante disso,
as autoras – Nair Tuboiti e Martina Ahlert –
se perguntam sobre impressões e mitos que
têm justificado o não aprendizado de crianças e adolescentes provenientes de contextos de vulnerabilidade social. O texto lembra
que pesquisadores e professores, em suas
REFERÊNCIAS
ADICHIE, Chimamanda. The danger of a single story. Conferência, 2009. Disponível no link:
http://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html
ARIÉS, Phillipe. A história social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
BOURDIEU, Pierre. O espírito da família. Razões práticas. Sobre a teoria da ação. Campinas:
Papirus, 1997.
BRONZO, Carla. Intersetorialidade como princípio e prática nas políticas públicas: reflexões a
partir do tema do enfrentamento da pobreza. In: XII Congreso do CLAD - Centro Latinoamericano
de Administracion para el Desarrollo. Santo Domingo. Anais do CLAD, 2007.
CASTEL, Robert. A dinâmica dos processos de marginalização: da vulnerabilidade à desfiliação.
Caderno CRH, Salvador, n. 26/27, p. 19-40, jan./dez. 1997.
CASTRO, Jane Margareth. Educação e pobreza: provocações ao debate. Série Vulnerabilidade Social e Educação – TV Escola. Ano XX, Boletim 19, novembro de 2010, p. 11-14. Disponível no link:
http://www.tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/11200019-Vulnerabilidade.pdf
CRESPO, Antônio Pedro Albernaz. GUROVITZ, Elaine. A pobreza como um fenômeno multidimensional. RAE, vol. 1, número 2, jul-dez/2002. Disponível em: http://www.rae.com.br/eletronica/index.cfm?FuseAction=Artigo&ID=1178&Secao=PÚBLICA&Volume=1&Numero=2&Ano=2002.
DUARTE, Natália de Souza. Política Social: um estudo sobre educação e pobreza. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Política Social. Universidade de Brasília. Brasília, 2012.
FONSECA, Claudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995.
HENRIQUES, Ricardo. Desigualdade e pobreza no Brasil. Brasília: IPEA, 2000.
REGATTIERI, Marilza. CASTRO, Jane Margareth. (orgs.). Interação escola família: subsídios para
práticas escolares. Brasília: UNESCO, MEC, 2009.
9
texto
1
Políticas educacionais de acesso à escola
Glícia Gripp1
“(…) A nação não sabe ler. Há só 30%
As políticas públicas constituem fó-
dos indivíduos residentes neste país que
runs nos quais os diferentes atores sociais
podem ler; desses, uns 9% não leem letra
constroem e exprimem a maneira pela qual
de mão. 70% jazem em profunda ignorân-
percebem o mundo real, o lugar que nele ocu-
cia. Não saber ler é ignorar o Sr. Meireles
pam e o como ele deveria ser, em sua cons-
Queles; é não saber o que ele vale, o que
tituição ideal. Assim, a ação pública possui
ele pensa, o que ele quer; nem se realmen-
características cognitivas e normativas, pois
te pode querer ou pensar. 70% dos cida-
essas duas dimensões do mundo, a da expli-
dãos votam do mesmo modo que respi-
cação e a da colocação em normas, estão li-
ram: sem saber porque nem o quê. Votam
gadas pelo processo de se atribuir sentido ao
como vão à festa da Penha – por diverti-
real. As políticas públicas servem para cons-
mento. A Constituição é para eles uma
truir interpretações da realidade e definir mo-
coisa inteiramente desconhecida. Estão
delos normativos de ação.
prontos para tudo: uma revolução ou um
golpe de Estado. (…) As instituições exis-
tem, mas por e para 30% dos cidadãos”
passa, então, pela produção de interpretações
Machado de Assis , 15 de agosto de 1876.
causais e normativas. Desse modo, pode-se
2
Essa atribuição de sentido ao mundo
dizer que o objeto das políticas públicas é o
Já em 1876, Machado de Assis tratava
“futuro” das sociedades: uma política pública
da questão da exclusão. A partir dos dados di-
pode ser analisada como um espaço no qual
vulgados sobre o analfabetismo no país, ele,
uma sociedade se projeta no futuro, derivan-
com o humor característico de suas crônicas,
do daí a importância das ferramentas de in-
apresenta as consequências políticas e institu-
terpretação da realidade social.
cionais de alarmantes dados. Ao longo do período republicano, muito se escreveu sobre esse
tema, muito se debateu e muitas políticas fo-
ciais fundamentais. Em primeiro lugar, as
ram projetadas para sanar esse problema.
políticas públicas nascem do debate e da luta
Temos então algumas questões ini-
1
Professora da Universidade Federal de Ouro Preto.
2
Machado de Assis, Joaquim Maria. Obra completa, vol. 3, p. 345. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
10
entre grupos sociais diversos. Em segundo lu-
representou uma inovação em política edu-
gar, elas são criadas a partir de interpretações
cacional. A partir de então, novos aspectos
da realidade, que se utilizam das ferramentas
se incorporaram à dimensão da política
interpretativas de cada época. Feitos esses es-
pública, tal como a exigência de índices or-
clarecimentos, passemos à análise, breve, das
çamentários mínimos para o financiamen-
políticas públicas de inclusão social, especifi-
to educacional, além das regulamentações
camente do campo educacional.
qualificadoras do processo educativo.
A instituição do setor educacional
Subjacente à política – e constituin-
como importante política social, a partir dos
te do debate anterior a ela – estavam duas
anos de 1930, é parte do projeto de recons-
áreas do conhecimento: a filosofia e a psi-
trução do Estado, no qual se projetava a obra
cologia - a filosofia de Dewey e a psicologia
de modernização. Ao Estado caberia o papel
científica, principalmente a dos testes psico-
de realizar as obras de “civilização” e de cons-
lógicos. Junto a isso, a urbanização e a inci-
trução da nação. O núcleo central do grande
piente industrialização levavam aspirações
projeto político a ser materializado no Estado
educacionais a novos setores da população.
passava pela construção da nacionalidade e
pela valorização da brasilidade. Estavam em
questão a identidade do trabalhador e a cons-
ções, essa política se traduziu por uma seg-
trução de um homem novo para um Estado
mentação da educação. A institucionaliza-
que se pretendia novo. Uma das estratégias
ção dos testes de inteligência nas escolas e a
para o avanço desse programa nacional era
consequente classificação dos alunos, para
a educação. Para isto, o Estado deveria cons-
efeito de quem deveria seguir o caminho es-
truir um projeto centralizado de padroniza-
colar e de quem não deveria - que tomou lu-
ção do ensino e das atividades escolares pela
gar nas escolas brasileiras nos anos de 1930
defesa da unidade de programas, de material
- teve um efeito de regulação. Embora incor-
didático, etc. A esta intervenção denominou-
porasse parcelas da população ao processo
-se a “questão da nacionalização do ensino”,
de escolarização, havia as escolhas de quem
mencionada e incluída na pauta de discus-
seguiria até o fim desse processo, através
sões e avaliações desde o início do século
dos testes psicológicos. Acreditava-se, à épo-
(SCHWARTZMAN, BOMENY; COSTA, 1984) .
ca, que se deveria formar uma elite dirigente
3
No âmbito das escolas e das institui-
que guiaria as massas, as quais teriam aces
A institucionalização progressiva do
so à educação básica e a uma formação ope-
ensino básico no aparato governamental
rária e/ou técnica. Somente à elite estariam
da União, trazida pela possibilidade cons-
reservados os estudos superiores:
titucional de se fazer política para o setor,
3
Ver, especialmente, capítulo 5.
11
Haveria um “ensino comum”, “anterior
Nos conturbados anos de 1960, foram
a qualquer especialização”, e que iria do
a sociologia e a psicologia social, de um lado,
pré-primário ao secundário. Ao lado des-
e as ciências econômicas, por outro, que esta-
te, um ensino especializado, que iria do ní-
beleceram o debate educacional. As ciências
vel elementar ao superior, orientado, até
sociais traziam resultados de pesquisa que
o nível médio, para os que ficassem fora
tornavam pública a questão da reprodução
do sistema secundário: seu objetivo era
social e das desigualdades de acesso. No pla-
ministrar “cultura de aplicação imediata
no social, se observou a aspiração de certos
à vida prática” ou preparar “para as pro-
movimentos sociais a uma maior justiça em
fissões técnicas de artífices, tendo sempre
relação à educação. Do lado da economia, o
em vista a alta dignidade do trabalho e o
papel da educação estava claro: atrelada à
respeito devido ao trabalhador”. O ensino
política econômica, ela seria capaz de distri-
superior, sempre especializado, se divida
buir renda. A mobilidade social deveria ser
em três grandes ramos: o de “caráter cul-
estimulada por meio da “hierarquização pelo
tural puro”, para o desenvolvimento da
mérito”, estabelecida à base da democratiza-
pesquisa e do “ensino artístico, literário,
ção das oportunidades, que minimizaria o evi-
científico e filosófico de ordem especu-
dente desperdício das potencialidades de uma
lativa”; o de “caráter cultural aplicado”,
parcela da população jovem do país. A ideia
que era o de ensino das profissões liberais
era a de formação de “capital humano”. As-
regulamentadas; e o “de caráter técnico”,
sim, a consolidação dos recursos humanos no
que era uma forma de aprofundamento
país estava ligada às implicações econômicas
de conhecimentos obtidos nos cursos se-
do processo educativo.
cundário e profissional médio. Segundo
o plano, o ensino pré-primário seria uma
atribuição da família e de escolas priva-
principalmente nas séries iniciais, da educa-
das, com participação eventual dos pode-
ção básica nas décadas de 1970 e 1980. Na dé-
res públicos, voltado principalmente para
cada de 1980, os debates continuaram, agora
crianças pobres ou cujas mães tenham
com um novo arcabouço analítico. A socio-
que trabalhar (...) Existiam várias seções
logia, a psicologia social e a economia con-
e subseções do plano (...) A diferença era
tinuaram informando o debate, mas surge a
quanto aos propósitos a que deveriam
questão da eficiência e da eficácia e, assim,
servir, à qual se acrescentavam as dife-
da gestão educacional.
Houve uma expressiva expansão,
renças de origem social dos alunos, de
exigências de qualificação dos professo-
res, e de apoio efetivo para que os cursos
majoritária era a de que a população brasileira
realmente funcionassem. (SCHARTZMAN,
era pouco educada devido à incapacidade das
BOMENY; COSTA, 1984).
crianças ficarem na escola até terminar sua
Antes da década de 1980, a opinião
educação. Esse fenômeno, a evasão escolar,
12
era atribuído a vários fatores, passando pela
pobreza e pela desnutrição até a carência
terizam por um importante investimento na
cultural e a desestruturação das famílias. A
tarefa de modernizar a gestão dos sistemas
baixa educação da população seria causada
de educação pública, oferecer oportunida-
pela pobreza, pela má distribuição de renda
des iguais de acesso a uma educação de qua-
e por outros males sociais. Durante a década
lidade para todos, fortalecer a profissão do-
de 1980, alguns pesquisadores, como Sérgio
cente e aproximar os sistemas educacionais
Costa Ribeiro, Ruben Klein e Philip Fletcher
e de ensino às necessidades da sociedade.
4
As décadas de 1990 e 2000 se carac-
mostraram que a evasão era, na realidade,
uma repetência escondida, já que havia o
hábito de se enviar, de volta para casa, as
1970 e, especialmente, após os anos de 1990,
crianças que não iriam passar de ano, tan-
houve um avanço na questão educacional
to para liberá-las para outras atividades,
no país. O relatório do Unicef – Fundo das
quanto para reduzir o número de alunos em
Nações Unidas para a Infância – Situação da
sala de aula. As crianças desistiam da escola
infância e adolescência Brasileira 2009 con-
após sucessivas repetências e sua decorren-
cluiu que o país obteve importantes avanços
te frustração. Assim, os autores mostraram
nos indicadores de acesso, aprendizagem,
que era a cultura da repetência, - portanto, o
permanência e conclusão do Ensino Básico.
funcionamento interno das escolas - a prin-
Mas ainda temos problemas. Na publicação,
cipal responsável pelo baixo desempenho
o UNICEF analisa as desigualdades educacio-
educacional brasileiro.
nais no Brasil – especialmente as regionais,
Sem dúvida, a partir da década de
étnico-raciais e socioeconômicas, e as rela
Nas décadas de 1970 e 1980, o fator
cionadas à inclusão de crianças com defici-
orientador das decisões educacionais foi a
ência. Essas desigualdades impediriam que
expansão quantitativa da oferta de ensi-
as parcelas mais vulneráveis da população
no. Nesse período, os sistemas educativos
brasileira tenham garantido seu direito de
esforçaram-se para garantir o princípio da
aprender. Assim, em fins da década de 2000,
equidade ou igualdade de oportunidades de
cerca de 27 milhões de estudantes, ou seja,
acesso à educação formal. Isto se justificava
97,6% das crianças e adolescentes entre 7
pelas baixas taxas de escolaridade existen-
e 14 anos estavam matriculados na escola.
tes, provocadas pela falta de vagas e pelo
Mas 2,4% representam 680 mil crianças fora
pressuposto de que o ingresso na escola po-
da escola. E desse total de crianças fora da
deria garantir a inserção dos educandos nos
escola, 66% (450 mil) eram negras. Da mes-
processos sociais que caracterizavam o cres-
ma forma, havia desigualdades regionais: o
cimento econômico.
número de crianças fora da escola na Região
Norte era duas vezes maior do que na Região
4
Klein e Ribeiro (1991); Ribeiro (1991); Fletcher e Ribeiro (1989).
13
Sudeste. Articulando diferentes áreas, como
fissionais quanto nos múltiplos aspectos
a assistência social, a saúde e a educação,
do exercício da cidadania. (SECADI/MEC,
vários programas sociais estão em andamen-
Brasília, 31 de janeiro de 2013).
to para tentar superar esses problemas, ainda
agora existentes. Entre eles, cabe destacar o
“Bolsa Família”, programa de transferên-
finais. A sociologia da educação deixou uma
Mas cabem algumas considerações
cia de renda voltado às
contribuição
crianças,
tante: a exigência de se
adolescentes
e jovens em situação de
vulnerabilidade social:
O programa Bolsa Família (PBF)
tem como objetivo
contribuir para a
superação e a quebra da transmissão
Nós ainda temos
enormes problemas
educacionais,
que precisam ser
enfrentados se
quisermos realmente
promover a inclusão.
impor-
considerar como uma
questão
sociologica-
mente pertinente e politicamente
relevante,
não somente a distribuição social dos fluxos
de entrada e saída no
sistema
educacional,
mas também a nature-
intergeracional da
za dos processos que se
pobreza no Brasil.
desenrolam no interior
A educação é, nessa
deste sistema, a saber:
perspectiva, estratégia para alcançar esse
o conteúdo, a organização dos saberes, a for-
objetivo. As famílias que se encontram
ma das relações sociais que aí se desenvolvem
em circunstâncias de pobreza e extrema
e os valores que aí se negociam (FORQUIN,
pobreza têm apresentado, ao longo das
1993, p. 172). Nesse sentido, nós ainda temos
décadas, maiores dificuldades para que
enormes problemas educacionais, que preci-
suas crianças, adolescentes e jovens te-
sam ser enfrentados se quisermos realmente
nham acesso à escola e nela permaneçam
promover a inclusão: a baixa qualidade da es-
até a conclusão do Ensino Fundamental e
cola pública (não basta colocar as crianças na
Médio, em razão, muitas vezes, da inser-
escola), os problemas de recrutamento e for-
ção no mercado de trabalho, formal ou in-
mação de professores, além da questão mais
formal, de modo precoce. O insucesso na
técnica dos conteúdos e métodos adequados
trajetória da Educação Básica pode acar-
de ensino. Esses desafios chamam nossa aten-
retar também menor acesso a direitos
ção para a necessidade de continuarmos de-
básicos, acabando por reproduzir o ciclo
batendo as políticas públicas e educacionais,
de pobreza da geração anterior. A educa-
bem como a relação entre as desigualdades
ção exerce, certamente, papel fundamen-
sociais e a educação.
tal no rompimento desse ciclo, gerando
e ampliando oportunidades, tanto pro-
14
REFERÊNCIAS
ASSIS, M. Joaquim Maria. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006. v. 3.
FLETCHER, P. & RIBEIRO, S. C. Modeling Education System Performance with demography data: an
introduction to the Profluxo model. Paris: Unesco, 1989.
FORQUIN, J. Sociologia da Educação. Petrópolis: Vozes, 1993.
KLEIN, R. RIBEIRO, S. C. O Censo Educacional e o Modelo de Fluxo: o problema da repetência.
Revista Brasileira de Estatística, Rio de Janeiro, v. 52, n. 197/198, p. 1 – 123, 1991
RIBEIRO, S. C. A pedagogia da repetência. Estudos Avançados. Revista da USP, São Paulo, v. 12, n.
5, p. 7-21, 1991.
SCHWARTZMAN, S., BOMENY, H., COSTA, V. M. R. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra, 1984.
SENARC/MDS. SECADI/MEC. Nota Técnica n. 34. Brasília, 31 de janeiro de 2013.
UNICEF. O Direito de Aprender: Potencializar avanços e reduzir desigualdades. (Coordenação
geral: SILVA, Maria de Salete; ALCÂNTARA, Pedro Ivo). Desenvolvido pela UNICEF, Brasília: 2009.
Disponível em: http://www.unicef.org/brazil/pt/siab_capitulos.pdf. Acesso em 09/06/2013.
15
texto
2
A
escola e os territórios vulneráveis das
grandes cidades
Antônio Augusto Gomes Batista1
Frederica Padilha2
Hamilton H. de Carvalho-Silva3
Luciana Alves4
Vanda Ribeiro5
No Brasil e em outros países, as gran-
As escolas localizadas nesses territórios
des cidades, apesar de ricas, econômica e cultu-
têm números do Indicador de Desenvolvimento
ralmente, apresentam indicadores de qualidade
da Educação Básica (Ideb) mais baixos que os
educacional mais baixos do que as cidades mé-
das escolas localizadas nas áreas mais centrais
dias. A explicação para isso se encontra na for-
das metrópoles. Tais áreas são também aque-
te segregação espacial e social que ocorre nas
les que possuem os indicadores mais altos de
metrópoles, que concentram, em geral, gran-
vulnerabilidade social (CARVALHO; LACERDA,
des grupos de sua população em bairros afas-
2010). São as regiões que mais expõem as fa-
tados e isolados dos centros. Nesses bairros,
mílias a riscos. Numa cidade como São Paulo,
as famílias costumam ter menores chances de
por exemplo, a localização da moradia em bair-
acesso ao trabalho, a equipamentos públicos,
ros localizados na extrema periferia, somada às
serviços de saúde, à segurança e cultura, bem
dificuldades de mobilidade urbana, torna mais
como à educação – enfim, aos direitos básicos.
difícil o acesso a emprego, ao atendimento em
Além disso, elas tendem a ser estigmatizadas
grandes hospitais ou mesmo a bens. São tam-
pelo local de moradia, associado a um conjunto
bém lugares de ocupação mais recente, ainda
de significados negativos, como a ausência de
não urbanizados e nos quais as condições de
‘cultura’, o tráfico, a incivilidade, o rompimen-
moradia são precárias, que não contam, mui-
to com a coesão social e com a lei, etc.
tas vezes, com sistemas de tratamento de
1
Professor do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFMG e bolsista do CNPq.
2
Mestre em Economia Internacional e Desenvolvimento pela Université Paris Dauphine e pesquisadora do
Centro de Estudos e Pesquisa em Educação e Ação Comunitária.
3
Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
4
Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em
Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC).
5
Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USP.
16
água, adequada iluminação e esgotos. Soma-
Buscamos responder a essas pergun-
-se a tudo isso a própria vulnerabilidade das
tas, primeiramente, movidos por uma fina-
famílias, que é relacionada, entre outros fa-
lidade prática: quando se conhece melhor
tores, à renda, à saúde, à idade, ao trabalho
a realidade das escolas localizadas em con-
infantil, à violência doméstica e ao nível de
textos vulneráveis, podem ser estabelecidas
escolaridade.
diretrizes para políticas públicas e para a
ação da comunidade
Há, assim, uma
relação
entre
indicadores
baixos
educacio-
nais – que, mesmo que
de modo incompleto,
sinalizam a baixa qualidade da educação – e
os territórios vulneráveis. Para alguns, essa
relação
explicaria
indicadores
os
educacio-
nais insatisfatórios das
grandes
metrópoles,
pois, apesar de sua ri-
Quando se conhece
melhor a realidade das
escolas localizadas em
contextos vulneráveis,
podem ser estabelecidas
diretrizes para políticas
públicas e para a ação
da comunidade escolar
e da sociedade civil
para modificar essa
realidade.
escolar e da sociedade civil para modificar
essa realidade. Esse conhecimento, com certeza, mostra parte dos
limites
enfrentados
por essas escolas, mas
aponta também para
possibilidades e potencialidades: aponta para
a mudança. Buscamos
ainda
explorar
um
campo teórico. Trata-se do conjunto de es-
queza, elas, ao mesmo
tudos que se volta, na
tempo, concentrariam
área de investigações
em áreas vulneráveis e
sobre as desigualdades
isoladas parte expressiva de sua população
educacionais, para o chamado “efeito de
escolar. Compreender essa relação entre es-
território” ou de “vizinhança”. A expressão
colas e territórios vulneráveis, em grandes
designa o impacto do local de residência e
metrópoles, foi o objetivo da pesquisa que
das características sociais de sua população
apresentamos aqui. Ela buscou responder a
sobre a trajetória social e escolar de seus
duas perguntas: (i) A vulnerabilidade social
habitantes. A expressão designa também,
do território ou da vizinhança da escola in-
como foi no caso da pesquisa, o impacto do
fluencia, de fato, sua qualidade? (ii) Se sim,
território sobre as oportunidades educacio-
essa influência se realiza de que modo, por
nais oferecidas pela escola nele localizada6.
meio de quais mecanismos?
6
Ver, a respeito, especialmente: BOURDIEU (1997), MALOUTAS (2011), TORRES; FERREIRA; GOMES (2005) e
ÉRNICA; BATISTA (2012)
17
COMO A PESQUISA FOI REALIZADA?
de que modo, por meio de quais mecanismos? Ambas permitiram, assim, responder
A investigação foi realizada em duas
etapas principais, acrescida de uma segunda
à indagação: por meio de que mecanismos o
efeito de território é construído?
fase, complementar. Uma primeira etapa,
de pesquisa quantitativa, analisou dados de
Posteriormente, realizaram-se, de
todas as escolas públicas da subprefeitura
modo complementar, duas investigações
de São Miguel Paulista, localizada na extre-
exploratórias para examinar, de modo mais
ma Zona Leste de São Paulo7. Em um segun-
detido, aspectos das conclusões da pesqui-
do momento, uma etapa qualitativa anali-
sa. A primeira delas foi sobre processos de
sou dados do cotidiano de cinco escolas da
seleção de alunos à margem da legislação,
subprefeitura, bem como as relações de um
por meio de entrevistas com secretários de
grupo de doze mães, moradoras de um ter-
escolas públicas. A segunda teve como re-
ritório vulnerável, com a escolarização de
corte as relações entre aspectos socioespa-
seus filhos.
ciais e a escolha de escolas por professores
em concursos de remoção. Para essa última
A primeira etapa – a quantitativa –
investigação, foram utilizados, de modo
permitiu responder à primeira pergunta: a
central, dados do Diário Oficial da Prefeitura
vulnerabilidade social do território da vizi-
do Município de São Paulo8.
nhança da escola influencia sua qualidade?
Ou, dizendo em outros termos, observa-se
um “efeito do território” vulnerável, limi-
AS PRINCIPAIS CONCLUSÕES DA
PESQUISA
tando as oportunidades educacionais oferecidas pelas escolas nele localizadas?
A análise dos dados permite afirmar
que se verifica, de fato, um efeito do territó
Tanto a primeira quanto a segunda
rio vulnerável, limitando as oportunidades
etapa – a quantitativa e a qualitativa – permi-
educacionais oferecidas pelas escolas nele
tiram responder à segunda pergunta da pes-
localizadas. O que mostra esse efeito do ter-
quisa: essa influência do território se realiza
ritório?
7
Esses dados dizem respeito: i) à vulnerabilidade do entorno da escola, medida pelo Índice Paulista de
Vulnerabilidade Social (IPVS); ii) às características dos alunos, tendo em vista seus recursos culturais familiares,
medida a partir de um conjunto de indicadores, como escolaridade da mãe, obtidos por meio do questionário da
Prova Brasil; iii) à maior ou menor heterogeneidade do corpo discente dos alunos, tendo em vista seus recursos
culturais familiares, medida por um construto chamado IH, ou Índice de Heterogeneidade; esse construto nos
permitiu saber se determinada escola recebe alunos homogêneos ou heterogêneos do ponto de vista cultural e se
essa concentração é de estudantes com maiores ou menores recursos culturais familiares; iv) ao Ideb das escolas; e
v) às notas de seus alunos na Prova Brasil.
8
Para os resultados das diferentes etapas da pesquisa, ver ÉRNICA; BATISTA (2012); CARVALHO-SILVA (2012);
CARVALHO-SILVA; BATISTA; ALVES (2012); ALVES; BATISTA (2012); ALVES; BATISTA; ÉRNICA (2012); ALVES et al. (2013).
18
Com poucas exceções, as escolas lo-
Nesse
sentido,
estudantes
com
calizadas nos territórios de alta vulnerabili-
maiores recursos culturais também pioram
dade social tendem a ter um Ideb expressi-
seu desempenho na Prova Brasil quando es-
vamente mais baixo. As que se localizam em
tudam em escolas cuja vizinhança é mais
vizinhanças não vulneráveis tendem a ter
vulnerável e melhoram quando seu entorno
um Ideb expressivamente mais alto. A evi-
é menos vulnerável.
dência mais importante, porém, do efeito do
território, é apontada pelos gráficos 1 e 2. A
Gráfico 2: Vulnerabilidade social do entorno
literatura sociológica mostra que os recursos
da escola e nível de proficiência em leitura
culturais familiares dos alunos, como o nível
dos alunos de 4a série com mais altos recur-
de escolaridade dos pais, por exemplo, são
sos culturais familiares na Prova Brasil –2007
um dos mais fortes fatores que influenciam
seu desempenho escolar. Nossa pesquisa,
porém, mostrou que o peso dos recursos culturais familiares tende a ser reduzido pela localização da escola, de forma que estudantes
com menores recursos culturais familiares
melhoram seu desempenho na Prova Brasil
19
quando estudam em escolas cujo entorno é
menos vulnerável e pioram quando seu en-
Fonte: Fundação Seade (2004); Inep (2007a; 2007b).
torno é mais vulnerável:
Com certeza, os dados evidenciam
Gráfico 1: Vulnerabilidade social do entorno
as limitações das escolas que estão locali-
da escola e nível de proficiência em leitura,
zadas em territórios de alta vulnerabilidade
dos alunos de 4a série, com baixos recursos
social. Ao mesmo tempo, porém, eles desfa-
culturais familiares, na Prova Brasil – 2007
zem um mito. Trata-se da ideia de que crianças de meios desfavorecidos não reúnem as
condições necessárias para aprender, seja
por que viriam de “famílias desestruturadas”, seja porque não teriam um bom acompanhamento em casa, seja ainda, porque
não teriam interesse, ou os recursos culturais necessários para uma escolarização de
sucesso. Os dados mostram que, quando
Fonte: Fundação Seade (2004); Inep ( 2007a; 2007b).
lhes são dadas condições mais adequadas,
as crianças de meios desfavorecidos, com
baixos recursos culturais, aprendem tanto
exemplo, e termina por encontrar fortes di-
quanto as demais. Eles evidenciam, assim,
ficuldades para realizar suas tarefas especí-
que todas as crianças são capazes de apren-
ficas: educar e ensinar. A título de exemplo,
der e que a escola é capaz de ensinar a to-
apresentamos abaixo o relato de uma situa-
dos, independentemente da origem social e
ção testemunhada por nós em uma de nos-
da bagagem cultural com que os estudantes
sas experiências presenciais junto a escolas
chegam à escola. Esse é um achado muito
com essas características:
importante da pesquisa, pois, com certeza,
apesar de mostrar limites, mostra também
Uma
as potencialidades da escola.
Tenho uma reunião com a diretora.
manhã
com
uma
diretora
Antes de entrarmos para sua sala, ela
QUE MECANISMOS PRODUZEM O
EFEITO DE TERRITÓRIO?
encontra os pais de uma aluna, a quem
manda buscar. A menina está com uma
espécie de grande quisto no rosto. Os
A segunda pergunta que a pesquisa
se propôs a responder diz respeito aos mecanismos sociais e escolares que produzem
o efeito de território. É que o simples fato
de se localizar num território vulnerável não
afeta, por si só, a escola, como num passe de
mágica. Algo se passa para que a vulnerabilidade do território afete a escola. Como e por
pais não conseguiam marcar atendimento e cirurgia. A menina estava sendo
alvo de zombaria dos colegas. A diretora
e a coordenadora conseguem marcar intervenção cirúrgica para aquele dia. Os
pais tinham ido buscá-la para isso. A diretora nos explica depois o quanto isso
é comum e como, obrigatoriamente, os
postos de saúde têm de atender crianças
que ocorre esse efeito? Os dados mostraram
encaminhadas pela escola, muitas mães
cinco mecanismos atuando na produção do
mandam os filhos doentes para a escola,
mesmo:
pedindo que sejam enviados para atendimento. Caso fossem levados pelas fa-
1. A escola está isolada no território. A es-
mílias, o atendimento demoraria muito.
cola é um dos poucos, senão o único, equipamento da área social presente nos terri-
2. A matrícula na Educação Infantil tende a
tórios de mais alta vulnerabilidade. Tende a
ser reduzida nos territórios vulneráveis. No
ser, por isso, tomada como o equipamento
período da pesquisa, a oferta da matrícula
público de referência para a população. A
em Educação Infantil, especialmente na Pré-
escola acaba, assim, recebendo uma for-
-Escola, era fortemente reduzida nos terri-
te demanda para a resolução de diferentes
problemas da vizinhança, como nas áreas
de saúde, segurança, assistência social, por
tórios mais vulneráveis. A implicação disso
é que os alunos ingressavam no Ensino Fundamental sem familiarização com o universo
20
escolar. Segundo diferentes estudos, a frequ-
descimento das normas), identificado pelos
ência a uma Educação Infantil de qualidade
alunos, ou uma desistência da imposição de
tem um grande impacto na alfabetização
regras diante da forte resistência do grupo
e no aprendizado ao longo dessa etapa da
de pares. Ao mesmo tempo, a homogeneida-
educação básica (CAMPOS et al, 2011).
de do corpo discente, associada à vulnerabilidade do território, favorece a construção
3. As escolas localizadas nos territórios vulne-
de estigmas em relação à escola e a seus alu-
ráveis têm corpo discente fortemente homo-
nos. Esses estigmas e preconceitos são com-
gêneo no que diz respeito aos recursos cul-
partilhados pelas escolas vizinhas, e, muitas
turais familiares. Quando a composição do
vezes, pelos próprios educadores que atuam
corpo discente de uma escola é muito homo-
na escola situada em meio vulnerável e aca-
gênea, sendo muito uniforme no que diz res-
bam por ser, em certos casos, internalizados
peito à posse de recursos culturais familiares
pelos estudantes e por suas famílias.
afastados daqueles que a escola deve transmitir, a instituição escolar encontra grandes
O ESTIGMA E A ESCOLA
dificuldades para fazer valer seu modo de
organização, bem como para transmitir seus
valores e sua cultura.
res que desenvolvem trabalhos de formação
Segundo o depoimento dos educado-
de professores na escola que atende ao terri
Isto se explica por um fenômeno
tório X (onde moram as mães pesquisadas),
social conhecido como “efeito de pares”,
as explicações para o fracasso escolar reca-
em que o poder coercitivo que o grupo de
em sempre sobre os alunos e suas famílias:
alunos exerce sobre cada aluno em particu-
“são alunos que vêm de famílias desestru-
lar, seja sob o ponto de vista cognitivo, seja
turadas e muitos são filhos de bandidos”;
sob o ponto de vista atitudinal, em aspectos
“é só filho de nordestino”. Os educadores
como, por exemplo, a disposição, maior ou
afirmaram ter presenciado falas extrema-
menor, para o estudo, a valorização da aqui-
mente desanimadoras dirigidas aos alunos:
sição da língua padrão, a leitura de obras
“vocês podem desistir porque não vão dar
literárias ou o maior ou menor reconheci-
em nada!”.
mento do professor como uma autoridade
ou uma liderança importante. Na maior par-
“Vou pra reunião e os professores di-
te das escolas pesquisadas, encontrou-se um
zem que os pais não vão para reunião. A
duplo padrão: de um lado, uma forte resis-
professora fala na reunião que as crian-
tência dos estudantes às normas escolares
ças não parecem crianças, que elas pare-
e à sua cultura (muitas delas identificadas
cem um monte de animais. Quem vai pra
como uma “prisão”); de outro, por parte dos
reunião pra ouvir desaforo?” (Mãe 1).
educadores, ou um acentuado movimento
de reforço a essa característica (via recru-
21
Também pode acontecer a internalização do
cursos culturais familiares, as famílias com
estigma pelas mães:
maiores aspirações educacionais e informações sobre o funcionamento do sistema de
[A escola não é] tão ruim quanto as pes-
ensino buscam evitar a matrícula de seus
soas dizem. Eu pensava que a pior esco-
filhos nos estabelecimentos de ensino loca-
la era o X [nome da escola]. Todo mundo
lizados nos meios mais vulneráveis, utilizan-
falava mal. Quando eu conheci a escola,
do-se, para isso, na época da pesquisa, de
vi que não era tão ruim assim. Ela é um
seu capital de relações sociais. As escolas
pouco desorganizada, mas tem professor
em posição de vantagem, por sua vez, ten-
bom. O problema são os jovens.” (Mãe 3).
dem a evitar, mesmo após a instituição da
compatibilização automática da matrícu-
4. As escolas situadas nos territórios mais
la, alunos que consideram inadequados a
vulneráveis tendem a estar, na concorrência
suas expectativas, seja negando a matrícula
por profissionais e alunos, em desvantagem
quando solicitada, seja realizando processos
frente a escolas vizinhas. Embora isoladas
de transferência compulsória, sem necessa-
nos territórios, as escolas vizinhas mantêm
riamente assegurar a vaga do aluno numa
relações umas com as outras, especialmen-
escola vizinha.
te de concorrência por melhores condições
de gestão, mesmo que de forma não delibe-
A externalização de alunos por meio
rada e intencional. As escolas situadas em
da seleção e da “expulsão” foi tema dos de-
regiões menos vulneráveis estão em posição
poimentos de secretárias. Quando indaga-
de vantagem, atraindo profissionais com
das sobre se aceitam a matrícula de alunos
maior experiência e condições de trabalho.
de um determinado bairro, as secretarias
As situadas em territórios mais vulneráveis,
respondem:
ao contrário, tendem a atrair os profissionais em início de carreira ou com contrato
“De lá de perto [a escola em que ela tra-
precário. Esses profissionais, muitas vezes,
balhava] era uma das melhores; tinha es-
encaram o período de trabalho nessas esco-
cola pior. Era tudo assim de esquina, uns
las como um tempo “de passagem”, até que
200-300 metros. Tinha uma da Prefeitura,
consigam a remoção para escolas localiza-
atrás tinha outra da Prefeitura, na es-
das em outras regiões. Por essa razão, essas
quina dessa rua tinha outra do Estado, e
escolas têm dificuldades para manter um
delas ali a melhorzinha era essa onde eu
corpo de profissionais estável e mais com-
estava. [Pesquisadora: do Estado?] Sim.
prometido, a longo prazo, com a melhoria
A melhorzinha era essa do Estado. Tinha
de suas condições de organização e ensino.
essa preterição: quando o aluno veio de
tal, tal e tal, veio das três lá e vem cair
Dados os problemas advindos da for-
te concentração de alunos com menores re-
aqui [...]... Daí não tem vaga” (Rita).
22
Sobre o perfil dos alunos “convidados” a se
ponder às exigências do modelo de escola
retirar da escola, outra secretária responde:
existente. Ela passa a enfrentar maiores pro-
“Em termos de idade, vai desde o fun-
blemas de indisciplina, a ter maiores índices
damental até o médio, está bem equili-
de absenteísmo docente e discente; maior
brado, tem de todas as idades. Em geral,
dificuldade para fazer valer os tempos de
são alunos que são mais carentes, tem
aula, de organização didática e de trabalho
muita favela na região e em geral são
coletivo. Ao mesmo tempo, não se coloca em
mais carentes, a situação familiar… é...
questionamento o modelo escolar tradicio-
Não existe aquela família pai-mãe-filho,
nal: pressupõe-se que os alunos sejam iguais
é padrasto, madrasta, só pai, só mãe, a
aos de qualquer escola, que vivam num bair-
mãe foi embora ou o pai foi embora, o
ro com todos os serviços sociais implanta-
pai está preso…” (Luana).
dos, que tiveram acesso à pré-escola, que a
matrícula pode seguir os mesmos princípios
Ocorre assim, tendo em vista os pro-
para o restante da rede, formando escolas
fissionais ou os alunos com o perfil desejado,
fortemente homogêneas. Tudo isso explica
um processo de externalização-decantação:
a razão por que os indicadores de qualidade
as escolas em posição de vantagem buscam
educacional dessas escolas se tornam mais
externalizar os “problemas” que dificultam o
baixos. Trata-se de uma construção social,
bom andamento de sua gestão para escolas
que precisa ser desfeita.
que “decantam” esses problemas; a boa gestão de uma escola é, assim, assegurada, por
meio da diminuição dos desafios de gestão.
23
COISAS POR QUE LUTAR: ALGUMAS LIÇÕES APRENDIDAS COM A PESQUISA
sa
Com a pesquiaprendemos
que o efeito de território não pode
ser
visto
como
algo circunscrito
ou limitado à relação entre a escola
e o território e a
população que o
habita. Não pode
ser pensado como
5. Todos os mecanismos anteriores levam a
uma suposta “degradação” da escola por sua
escola localizada nos territórios vulneráveis
vizinhança ou entorno, conclusão que já ou-
a apresentar grandes dificuldades para res-
vimos de outras pessoas ao apresentarmos e
discutirmos esta pesquisa. Como esperamos
que leva em conta os territórios prejudica forte-
ter mostrado, o efeito de território decorre de
mente as escolas de meios vulneráveis. Trata-se
dois fenômenos relacionados.
da setorização da matrícula, por meio da qual se
Primeiramente, de uma desigual dis-
tribuição de bens e de acesso a direitos: a escola está isolada nos territórios vulneráveis,
assim como a população a que atende, porque outros equipamentos sociais e porque as
matrículas em Educação Infantil estão concentradas em áreas mais ricas. As escolas possuem um corpo discente muito homogêneo
do ponto de vista dos recursos culturais mais
designa a matrícula de cada criança pelo local
de moradia. É ela o elo que liga segregação socioespacial e segregação escolar, acabando por
criar verdadeiras escolas de gueto, aquelas que,
para as escolas vizinhas e localizadas em meios
menos vulneráveis, são chamadas de “escolas
depósito”, espaço dos alunos “impossíveis” e de
uma educação “difícil”. Em suma, concretizam-se como verdadeiras formas de exclusão.
baixos – isto é, há uma segregação escolar –
porque estão situadas em um território fruto
para orientação de diretrizes para políticas pú-
da segregação de um grupo social em deter-
blicas e para a ação da comunidade escolar e
minado espaço afastado e isolado. Em síntese:
da sociedade civil para modificar essa realida-
o efeito do território é, na verdade, resultante
de. As que nos parecem mais importantes são:
das acentuadas desigualdades socioespaciais
que caracterizam as metrópoles e da segregação socioespacial e dos estigmas que ela gera.
Seria mais adequado dizer, assim, que se trata,
A pesquisa também buscou elementos
1. As escolas em territórios de alta vulnerabilidade demandam políticas focalizadas em razão
das especificidades de seus desafios.
não de um efeito de território, mas de um efei-
2. As políticas educacionais necessitam ser
to das desigualdades socioespaciais.
pensadas de modo integrado com o conjunto
O segundo fenômeno que entrelaça a
vulnerabilidade do território às limitações das
oportunidades educacionais está relacionado à
própria escola e às relações de interdependên-
das políticas da área social no território, assumindo uma natureza intersetorial. Uma das
formas interessantes para realizar essa integração na escola é a educação integral.
cia que as unidades escolares mantêm entre si,
3. As intervenções precisam levar em conta as
no território. No plano da gestão, as políticas
relações de interdependência entre as escolas,
educacionais se voltam para a administração da
fortalecendo as relações de cooperação entre es-
unidade ou para a rede, desconsiderando essas
tabelecimentos de ensino próximos. A setoriza-
relações de interdependência territorial. Como
ção da matrícula é uma importante alternativa
pudemos apreender, são relações fortemente
à livre escolha de estabelecimentos de ensino,
competitivas, que visam atrair alunos “me-
mas ela deve propiciar a criação de escolas mais
lhores” e criar condições mais adequadas para
heterogêneas, evitando a segregação escolar.
garantir profissionais com maior experiência.
Como também pudemos apreender, isto se dá
4. As escolas em meios vulneráveis precisam
às custas daquelas escolas que, localizadas em
de uma organização tal que permita o aten-
meios mais vulneráveis, estão em desvantagem
dimento do seu público real em vez de pres-
nessa competição. A única regulação das redes
supor um público idealizado.
24
REFERÊNCIAS
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seleção e evitação de alunos em escolas públicas. Informes de Pesquisa, São Paulo: Cenpec, n.
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26
texto
3
A escola e a garantia de aprender
Martina Ahlert1
Nair Cristina da Silva Tuboiti2
No universo dos debates que enfocam
princípio da igualdade, ao preconizar que to-
os direitos fundamentais e os direitos huma-
dos os cidadãos têm o direito a tratamento
nos, as mobilizações sociais e reivindicações
idêntico pela lei. Reconheceu ainda proces-
populares tiveram participação importante
sos históricos de grupos específicos e bus-
no surgimento de legislações e documentos
cou constituir princípios para transformar
que buscam garantir uma vida digna aos su-
as situações de exclusão nas quais estes por-
jeitos. No século XX, a Declaração dos Direi-
ventura se encontrem. Em seu texto, o do-
tos das Crianças (DDC) - proclamada em 1959
cumento reconhece, como direitos sociais, a
(BRASIL, 2011a) - e a Convenção sobre os Di-
educação, a saúde, a alimentação, o traba-
reitos da Criança (CDC) - ratificada pelo Bra-
lho, a moradia, o lazer, a segurança, a previ-
sil em 1990 (BRASIL, 2011b) - marcaram um
dência social, a proteção à maternidade e à
novo rumo para as políticas públicas com
infância, e a assistência aos desamparados.
foco na infância. Igualmente, a Lei 8.069-90,
que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
No âmbito das discussões sobre edu-
Adolescente (ECA) e que regulamenta o arti-
cação, essas legislações contribuíram para o
go 227 da Constituição Federal, tem por base
fortalecimento da universalização do acesso
a proteção integral dos direitos da criança e
à escola, de forma que, como lembra Castro
do adolescente (BRASIL, 2011c).
“se 16% das crianças de 7 a 14 anos estavam
fora da escola em 1988, esse índice caiu para
No Brasil, o impulso para uma agen-
4% uma década depois” (CASTRO, 2010, p. 11).
da em torno dos direitos humanos se inten-
Atualmente, ainda que este acesso universal
sificou com a promulgação da Constituição
tenha sido alcançado nos últimos anos do
Federal de 1988. A Carta Magna reafirmou o
Ensino Fundamental (em torno de 97%), há
1
Doutora em Antropologia (Universidade de Brasília). Professora substituta na Universidade Federal do Paraná.
2
Mestre em Psicologia – Universidade Católica de Brasília. Professora alfabetizadora – Secretaria de Educação
do DF. Colaboradora em cursos e assessorias na formação de professores alfabetizadores junto ao Grupo de Estudos
sobre Educação Metodologia de Pesquisa e Ação – Geempa.
27
muito que se fazer quanto à evasão, ao aban-
dá pelo olhar que fisga, que provoca, que dire-
dono, à repetência, à reprovação e aos altos
ciona, que instaura uma cumplicidade. Desta
índices de analfabetismo que ainda encontra-
forma, esse contato impulsiona o sujeito em
mos na sociedade brasileira .
suas conquistas e construções.
3
Assim, temos o desafio de fazer valer
Estar engajado na perspectiva de ga-
os direitos instituídos às crianças e aos ado-
rantir a aprendizagem de todos e todas tem
lescentes no que diz respeito à sua aprendiza-
como alicerce uma postura profissional, res-
gem e à nossa caminhada rumo a uma educa-
ponsável, ética e sustentada no desejo, com-
ção de qualidade para todos. Em vista disso, a
prometida com a humanização a ponto de
produção de saberes no contexto escolar deve
transgredir e romper com seus próprios limi-
permitir aos sujeitos cognoscentes ocupar um
tes, com a clareza de que todos têm potencial
lugar no mundo e caminhar sozinhos, com o
para aprender. Nesse sentido, este texto é um
sentimento de pertencimento instaurado -
convite para pensarmos a escola como um es-
sentimento de que se apropriam ao construir
paço de conhecimento – não apenas do saber
conhecimento na interlocução com o outro
instituído – mas de convivência entre sujeitos
(VIGOTSKI, 2000) em um espaço de convivên-
e suas experiências, na perspectiva de que a
cia construída ao longo do ano letivo.
aprendizagem é um fenômeno social. Por isso
ela é um espaço que oportuniza a interlocu-
Nosso desejo, neste texto, é sugerir
ção sociocultural, pois, como nos diz Grossi
que a escola, como um espaço que instrui,
(1995, p. 17) “o conhecimento é essencialmen-
também seja um espaço para a vida, que
te social e socializante”.
emancipa. Nesse sentido, ela oportuniza relações de diversas perspectivas, pois no campo das produções de saberes, os atores dessa cena estão em constante relação consigo,
A APRENDIZAGEM E AS ESCOLAS
EM CONTEXTO DE VULNERABILIDADE SOCIAL
com o outro, com o saber e com o mundo,
em um diálogo que permite uma elaboração
conjunta. O desconhecimento “exerce a fun-
que vivem em contextos de vulnerabilidade
ção de membrana entre o conhecimento e o
social encontram maiores dificuldades em
desejo” (PAIN, 1999, p. 11) e pensar a produção
permanecer nas escolas. Nas nossas trajetó-
de saberes na escola implica o contato que se
rias como professoras e pesquisadoras, e em
No Brasil, alunos e alunas de famílias
3
No que diz respeito a este último aspecto, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE – dados de 2010), ainda existem 14,5% de analfabetos
na faixa etária acima de 10 anos. Quanto à alfabetização nos 2º e 3º anos do Ensino Fundamental, o Brasil alcançou,
em 2011, percentuais de 53,3% na escrita, 56,1% na leitura e 42,8% na matemática. Sabemos ainda que apenas 63,4%
dos jovens brasileiros de 16 anos concluíram o Ensino Fundamental no ano de 2010 e 50,2% na faixa etária de 19 anos
concluíram o Ensino Médio. Disponível em: http://www.todospelaeducacao.org.br/educacao-no-brasil/numeros-dobrasil/brasil/ Acesso em: 21 de abril de 2012.
28
cursos de formação de professores, ouvimos
É sobre esse segundo aspecto – a
diversas considerações sobre estas dificulda-
nossa leitura que leva à construção dos es-
des e sobre como elas se constituem como
tereótipos sobre crianças, adolescentes e
um empecilho para a garantia do direito à
suas famílias - que pensamos ser importan-
aprendizagem de crianças e adolescentes.
te refletir quando enfatizamos a importân-
Dentre uma lista de aspectos que são asso-
cia de conhecer a realidade de onde provêm
ciados à não aprendizagem, encontramos al-
nossos alunos e alunas. Lidar com as situa-
guns relacionados diretamente às situações
ções que surgem fora da escola, mas que in-
de pobreza compartilhadas por alunos e suas
gressam nela juntamente com os discentes,
famílias. Nesse sentido, a fome, a desnutri-
pode ser um ganho para a aprendizagem, na
ção, a “sujeira”, as condições de infraestrutu-
medida em que permite discutir e adequar
ra do local onde os alunos vivem, a violência
nossos planejamentos e nossos currículos. A
e o que tem sido costumeiramente chamado
partir da possibilidade de conhecer nossos
de “famílias desestruturadas” são apontados
alunos, questionamos também a nossa liga-
como empecilhos para a perspectiva de que
ção e o nosso envolvimento com o mundo
todos podem aprender.
e com suas construções, pensamos e nos
apropriamos da nossa história, provocamos
Diversos pesquisadores e professores,
a reflexão e a reconstrução do espaço do
em suas práticas profissionais, têm questio-
aprendizado para que haja apropriação do
nado a afirmação de que estes elementos im-
saber. Nesse sentido, conhecer nossos alu-
possibilitam a aprendizagem . Evidentemente,
nos (e a partir deles, suas famílias, seus bair-
eles percebem que as condições de vida ligadas
ros, seus cotidianos), e, assim, desconstruir
à pobreza são sérias e impactam no cotidiano.
nossos estereótipos, é também conhecer a
Entretanto, sugerem que, quando elegemos
nós mesmos e nossa forma de entender nos-
essas razões explicativas, acabamos por ende-
so papel como professores e pesquisadores.
reçar aos próprios sujeitos a responsabilidade
Igualmente, permite-nos pensar a função da
da não aprendizagem. Ou seja, se por um lado,
educação e da escola em contextos de vulne-
reconhecemos as condições de privação mate-
rabilidade social, uma vez que todos têm po-
rial que configuram a desigualdade social no
tencial para aprender, cabendo assim ações
Brasil, por outro, fazemos uma leitura moral,
didáticas e pedagógicas de qualidade que vão
de transferência de responsabilidades e de jul-
ao encontro do processo de cada estudante.
4
gamento de valor sobre esses alunos.
4
Ver, por exemplo, a edição da Série do Salto para o Futuro sobre Vulnerabilidade e Educação, veiculada em
2010. Disponível em: http://tvescola.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=742:salto-para-ofuturo-serie-vulnerabilidade-social-e-educacao&catid=71:destaque
29
A ESCOLA E O DESEJO DOS/AS
ALUNOS/AS
dos alunos e alunas pesquisados. Neste sentido, elas contrapunham a noção compartilhada pelo senso comum que preconizava que
este público não tinha interesse na escola. A
Há alguns anos atrás, conhecemos o
pesquisa foi, neste sentido, um locus de escurelato de uma pesquisa sobre alunos e alunas
ta e de conhecer os/as alunos/as, possibilitande escola pública, que,
do um espaço em que eles
devido a sua condição
podiam falar por eles/as
de vulnerabilidade soQuando a escola se
mesmos/as e assim, aprecial, eram beneficiásentar sua própria comconstrói como um
rios de um programa
preensão de mundo.
local que congrega os
social de transferência
de renda5. Para conhedesejos dos alunos e dos
A escola, caracterizacer e conversar com
professores, se torna um
da como um microcosmo
esses/as alunos/as, no
da sociedade, espaço de
espaço de produção, onde
âmbito da pesquisa,
diversidade e de diferenforam visitadas esa história surge articulada
ça, é um lugar privilegiacolas em todo o país.
às aprendizagens que
do para o conhecimento
Recorrentemente, os
- em seus mais diversos
rompem com as profecias
pesquisadores ouviam
sentidos, desde o saber
histórias sobre como
de fracasso, inserindo
instituído até a possibias crianças e os adoos sujeitos no mundo
lidade de descortinar os
lescentes de classes
sentidos que os próprios
letrado e garantindo a
sociais baixas não tisujeitos concedem às
nham desejo de aprenaprendizagem de todos.
suas experiências. Essas
der e não possuíam
possibilidades de conheplanos para o futuro.
cimento podem nos disPara ouvir a opinião
tanciar daquelas explicações simplistas que
de um grupo de alunos, foi desenvolvido um
conjecturam razões para o não aprendizado
instrumento de coleta de dados que consistia
de crianças e adolescentes (e tendem a resem uma ficha de frases, que eram completaponsabilizá-las, junto com suas famílias, por
das pelas crianças e adolescentes. A última
isso). Quando a escola se constrói como um
pergunta questionava os alunos sobre seus
local que congrega os desejos dos alunos e
desejos para o futuro. As respostas esboçadas
dos professores, se torna um espaço de proforam as mais diversas e remeteram a desejos
dução, onde a história surge articulada às
de ser professor(a), advogado (a), jogador(a)
aprendizagens que rompem com as profecias
de futebol, astronauta.
de fracasso, inserindo os sujeitos no mundo
letrado e garantindo a aprendizagem de todos
O interessante das respostas é que
por meio de ações pautadas na força criativa
muitas delas traziam consigo uma leitura da
do desejo que ultrapassa aquilo que se apreimportância da escola nos projetos de futuro
senta como impossível.
4
Entre 2009 e 2010, a SECADI (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão),
por intermédio da DEAVE (Diretoria de Estudos e Acompanhamento das Vulnerabilidades Educacionais) realizou
uma série de pesquisas com o intuito de avaliar e melhorar o acompanhamento da frequência de alunos,
especialmente dos beneficiários do Programa Bolsa Família, cuja frequência escolar é uma das condicionalidades
para o recebimento do benefício.
30
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Presidência da República
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Básica
TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO
Supervisão Pedagógica
Rosa Helena Mendonça
Acompanhamento pedagógico
Soraia Bruno
Coordenação de Utilização e Avaliação
Mônica Mufarrej
Fernanda Braga
Copidesque e Revisão
Milena Campos Eich
Diagramação e Editoração
Bruno Nin
Valeska Mendes
Consultora especialmente convidada
Martina Ahlert
E-mail: [email protected]
Home page: www.tvbrasil.org.br/salto
Rua da Relação, 18, 4o andar – Centro.
CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ)
NOVEMBRO 2013
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