Rev Bras Cardiol. 2012;25(6):494-497 novembro/dezembro Relato de Caso 1 Jessen et al. Tempestade Elétrica após Infarto Agudo do Miocárdio Relato de Caso Tempestade Elétrica e Choque Cardiogênico após Infarto Agudo do Miocárdio Electrical Storm and Cardiogenic Shock after Acute Myocardial Infarction Neusa Perina de Jesus Jessen, Régina Limongi Figueiredo, Júlia Paulo Silva, Paola Martins Presta, Ricardo Mourilhe-Rocha Resumo Abstract O infarto agudo do miocárdio (IAM) é a principal causa de choque cardiogênico, que ocorre pela disfunção cardíaca e consequente inadequada perfusão tecidual, com grave expressão clínica. Tempestade elétrica (TE) representa outra importante complicação do IAM. Relatase a ocorrência simultânea dessas complicações num paciente com IAM. Suporte hemodinâmico farmacológico e mecânico associado à angioplastia percutânea primária, cardioversões, associação de antiarrítmicos e implante de cardiodesfibrilador implantável biventricular (CDIBIV) contribuíram para a evolução satisfatória do quadro. Acute myocardial infarction (AMI) is the main cause of cardiogenic shock, due to cardiac dysfunction and the resulting inadequate tissue perfusion, with severe clinical consequences. Electrical storms are another possible complication for AMI. The simultaneous occurrence of these complications is reported in a patient with AMI. Mechanical, pharmacological and hemodynamic support associated with primary percutaneous angioplasty, several cardioversions, combined anti-arrythmics and a biventricular cardio-defibrillator implant all contributed to a satisfactory outcome. Palavras-chave: Tempestade pontual; Choque cardiogênico; Infarto do miocárdio; Taquicardia ventricular Keywords: Point sources storm; Shock, cardiogenic; Myocardial infarction; Tachycardia, ventricular Introdução Relato do Caso O IAM é a principal causa de choque cardiogênico 1 que, por sua vez, representa a maior causa de morte no IAM. O tecido cicatricial do miocárdio infartado constitui substrato anatômico ideal para a ocorrência de arritmias ventriculares. Estas podem se manifestar como TE, uma síndrome clínica quase sempre apresentada como TV sustentada (TVS) monomórfica associada à doença cardíaca estrutural 2, e definida como a ocorrência de três ou mais episódios de TVS, fibrilação ventricular (FV) ou choques apropriados por um cardiodesfibrilador implantado (CDI), num período de 24 horas 3. Homem de 61 anos, revascularizado, hipertenso, dislipidêmico, sedentário e tabagista, é admitido na emergência relatando dor torácica típica. Ao exame físico de admissão, apresentava ritmo cardíaco regular, sem sopros, PA=120x60 mmHg, FC=105 bpm, ausculta pulmonar normal. Eletrocardiograma na admissão: supradesnivelamento do segmento ST em parede anterior (Figura 1). Evoluiu com choque cardiogênico e foi submetido à coronariografia de urgência, que evidenciou: disfunção grave do ventrículo esquerdo, acinesia anterior e inferior, artérias coronária direita ocluída, marginal (Mg) com lesão difusa e descendente anterior Unidade Coronariana - Hospital Pró-Cardíaco - Rio de Janeiro, RJ - Brasil Correspondência: Ricardo Mourilhe Rocha E-mail: [email protected] Rua Gen Polidoro, 192 - Botafogo - 22280-003 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil Recebido em: 25/05/2012 | Aceito em: 01/10/2012 494 Jessen et al. Tempestade Elétrica após Infarto Agudo do Miocárdio Relato de Caso Rev Bras Cardiol. 2012;25(6):494-497 novembro/dezembro Figura 1 ECG de 12 derivações, mostrando supradesnivelamento do segmento ST na parede anterior. (DA) subocluída em stent proximal. Durante o procedimento, foi instalado balão de contrapulsação aórtica (BIA) e realizada angioplastia, com implante de stents farmacológicos na DA e Mg. No quarto dia pós-IAM, apresentou TVS (Figura 2) sem instabilidade hemodinâmica, que reverteu com amiodarona. Após 30min, apresentou nova TVS, porém com instabilidade hemodinâmica, revertida com cardioversão elétrica (CVE) sincronizada. Realizada ressonância magnética cardíaca que não evidenciou isquemia em curso, apenas áreas de necrose miocárdica. Ainda com amiodarona, ocorreu nova TVS com instabilidade, revertida com CVE e instalação de infusão de lidocaína. Apresentou em seguida diversos episódios de taquicardia ventricular não sustentada (TVNS). Com a estabilização do quadro, iniciou-se desmame da lidocaína, porém ocorreu nova TVS que evoluiu com parada cardiorrespiratória. Realizadas manobras de ressuscitação, com sucesso. Em seguida, apresentou diversos episódios de TVS necessitando retorno à lidocaína associada à sedação com propofol. Perante o quadro de instabilidade hemodinâmica, com miocárdio friável após IAM extenso, optou-se, num primeiro momento, pelo implante do CDI-BIV, mesmo na fase aguda do IAM, o qual transcorreu sem intercorrências. Cursou com melhora clínica, sendo suspensa lidocaína após 24 horas do implante do CDI, sem ocorrência de novos episódios de arritmia, recebendo alta no 24º dia de hospitalização, em uso regular de amiodarona e betabloqueador. No seguimento de três meses, o paciente se encontrava em classe funcional I da NYHA, sem registro de qualquer terapia antitaquicardia ou choque pelo CDI. Discussão Choque cardiogênico isquêmico é um processo patológico autoperpetuador e complexo que, com frequência, causa morte independentemente do tratamento médico instituído4. Por outro lado, a TE pode se apresentar clinicamente de forma dramática, com parada cardíaca ou múltiplos episódios de arritmias potencialmente fatais3, que deprimem ainda mais a função cardíaca. A arritmia que surge da isquemia miocárdica na fase aguda é quase sempre TV polimórfica. Nas primeiras 72 horas de infarto, a TV monomórfica não é usual, seu mecanismo mais frequentemente é reentrada de correntes de onda elétrica à volta de uma barreira anatômica fixa, representada pelo tecido cicatricial no miocárdio infartado3, o qual cria áreas que bloqueiam a condução, cercadas de bandas de miofibrilas que sobreviveram, e que se tornam zonas de condução lenta, criando uma via para reentrada elétrica estável. Qualquer estímulo inofensivo em outra situação, como uma despolarização ventricular precoce, é suficiente para iniciar a TV monomórfica3. Betabloqueadores e amiodarona possuem papel central no manejo da TE. Segundos alguns autores, o propranolol é o betabloqueador de escolha, e sua combinação com amiodarona melhora as taxas de sobrevida3; porém o propranolol pode exacerbar a IC em pacientes com disfunção sistólica. 495 Rev Bras Cardiol. 2012;25(6):494-497 novembro/dezembro Jessen et al. Tempestade Elétrica após Infarto Agudo do Miocárdio Relato de Caso Figura 2 ECG: Taquicardia ventricular monomórfica com padrão de BRE. A lidocaína tem suas propriedades antiarrítmicas aumentadas em condições celulares que são comuns na TV isquêmica, como o pH reduzido3. Estresse físico e emocional que os pacientes experimentam devido à TE e às múltiplas cardioversões elétricas, perpetua arritmias. Esses pacientes devem ser sedados, preferindo-se anestésicos de curta ação3. Mapeamento intracardíaco com ablação por RF pode alterar o substrato miocárdico para reentrada, porém a ablação da TV logo após IAM representa um desafio 3. A realização de ablação da TV nas tempestades elétricas pode ser indicada, entretanto, no caso relatado, foi considerado procedimento inadequado em virtude da extensa área de fibrose miocárdica do paciente. 496 Para este paciente, optou-se por instalar ressincronizador cardíaco por apresentar disfunção ventricular grave (FE<20%), CF III (NYHA), QRS 120-150ms, dissincronismo ao ecocardiograma, com dificuldade em otimizar medicações por bradicardia, QT prolongado e fenômeno R sobre T, ocorrendo sempre que a lidocaína venosa era suspensa. Reperfusão inadequada e grandes áreas de infarto aumentam o impacto das arritmias ventriculares3 e perpetuam o choque cardiogênico. Sobrevivência depende então do reconhecimento precoce do choque, seguido de tratamento agressivo para prevenir disfunção orgânica, elevando a pressão arterial média através de inotrópicos e vasopressores, porém geralmente à custa de elevação da frequência cardíaca, consumo miocárdico de oxigênio e extensão da isquemia5. Jessen et al. Tempestade Elétrica após Infarto Agudo do Miocárdio Relato de Caso A estratégia de revascularização precoce ao restabelecer o fluxo limita o dano na área infartada, aumentando a sobrevida. Estimou-se, no seguimento a longo termo da coorte do SHOCK trial, que ao fim de seis anos ocorra melhora absoluta em cerca de 13% e relativa de 67% na sobrevida, quando comparado com tratamento médico isolado2. O suporte circulatório mecânico, como o BIA, reduz a pós-carga e o trabalho cardíaco, melhora o desempenho cardíaco, aumenta a pressão de perfusão miocárdica e assim alivia o substrato isquêmico, suprimindo arritmias malignas6. Apesar de o implante de CDI com menos de 40 dias do IAM não estar respaldado na literatura, neste c a s o , o p a c i e n t e a p re s e n t a v a t a q u i c a rd i a s ventriculares monomórficas, provavelmente relacionadas a um infarto antigo e disfunção ventricular grave prévia ao IAM7. De acordo com a atualização da Diretriz Brasileira de Insuficiência Cardíaca Crônica de 2012 8 , o implante de CDI é classe I nível de evidência A para pacientes com cardiopatia isquêmica, sobreviventes d e p a r a d a c a rd í a c a d e v i d o à F V / T V c o m instabilidade hemodinâmica. É notório que o paciente relatado se beneficiou do procedimento, tendo-se verificado que logo após a ressincronização deixou de ocorrer R sobre T, com melhoria da CF e da FE, sem ter necessitado de nenhuma terapia do CDI. Conclui-se que utilização de estratégias de reperfusão precoce e dispositivos de assistência circulatória são fundamentais para o manejo de pacientes com IAM e suas complicações, sendo necessárias novas pesquisas para melhor entendimento dos mecanismos subjacentes à TE e possível concepção de intervenções profiláticas para esse problema dramático e de tão difícil manejo Rev Bras Cardiol. 2012;25(6):494-497 novembro/dezembro Potencial Conflito de Interesses Declaro não haver conflitos de interesses. Fontes de Financiamento O presente estudo não teve fontes de financiamento. Vinculação Acadêmica O presente estudo está vinculado ao programa de Pósgraduação em Cardiologia do Hospital Pró-Cardíaco. Referências 1. Wong SC, Sanborn T, Sleeper LA, Webb JG, Pilchik R, Hart D, et al. Angiographic findings and clinical correlates in patients with cardiogenic shock complicating acute myocardial infarction: a report from the SHOCK Trial Registry. SHould we emergently revascularize Occluded Coronaries for cardiogenic shocK? J Am Coll Cardiol. 2000;36(3 Suppl A):1077-83. 2. Hochman JS, Sleeper LA, Webb JG, Dzavik V, Buller CE, Aylward P, et al; SHOCK Investigators. Early revascularization and long-term survival for cardiogenic shock complicating acute myocardial infarction. JAMA. 2006;295(21):2511-5. 3. Eifling M, Razavi M, Massumi A. The evaluation and management of electrical storm. Tex Heart Inst J. 2011;38(2):111-21. 4. Westaby S, Kharbanda R, Banning AP. Cardiogenic shock in ACS. Part 1: prediction, presentation and medical therapy. Nat Rev Cardiol. 2011;9(3):158-71. 5. Dorian P, Cass D. An overview of the management of electrical storm. Can J Cardiol. 1997;13 Suppl A:13A-7A. 6. Mueller H, Ayres SM, Conklin EF, Giannelli S Jr, Mazzara JT, Grace WT, et al. The effects of intra-aortic counterpulsation on cardiac performance and metabolism in shock associated with acute myocardial infarction. J Clin Invest. 1971;50(9):1885-900. 7. Hohnloser SH, Kuck KH, Dorian P, Roberts RS, Hampton JR, Hatala R, et al; DINAMIT Investigators. Prophylactic use of an implantable cardioverter-defibrillator after a c u t e m y o c a rd i a l i n f a rc t i o n . N E n g l J M e d . 2004;351(24):2481-8. 8. Bocchi EA, Marcondes-Braga FG, Bacal F, Ferraz AS, Albuquerque D, Rodrigues D, et al; Sociedade Brasileira de Cardiologia. Atualização da Diretriz brasileira de insuficiência cardíaca crônica – 2012. Arq Bras Cardiol. 2012;98(1 supl.1):1-33. 497