DirEiTo CiviL - Portal do Aluno

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DirEiTo CiviL
Parte Geral
2
DirEiTo CiviL
Parte Geral
2015
ISBN 978-85-02-63540-1
Rua Henrique Schaumann, 270, Cerqueira César – São Paulo – SP
CEP 05413-909
PABX: (11) 3613 3000
SAC: 0800 011 7875
De 2ª a 6ª, das 8:30 às 19:30
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Direito civil : parte geral / obra coletiva de autoria da
Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia e
Thaís de Camargo Rodrigues. – São Paulo : Saraiva, 2015.
Direção editorial Luiz Roberto Curia
Gerência editorial Thaís de Camargo Rodrigues
1. Direito civil - I. Curia, Luiz Roberto. II. Rodrigues,
Thaís de Camargo. III. Título.
Coordenação geral Clarissa Boraschi Maria
Preparação de originais Maria Izabel Barreiros Bitencourt Bressan e
Ana Cristina Garcia (coords.)
Projeto gráfico Isabela Agrela Teles Veras
Arte e diagramação Isabela Agrela Teles Veras
Lais Soriano
Revisão de provas Amélia Kassis Ward e
Ana Beatriz Fraga Moreira (coords.)
Rita de Cássia Sorrocha Pereira
Serviços editoriais Elaine Cristina da Silva
Kelli Priscila Pinto
Marília Cordeiro
CDU-347
Índice para catálogo sistemático:
1. Direito Civil
347
Data de fechamento da edição: 16-7-2015
Dúvidas?
Acesse www.editorasaraiva.com.br/direito
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer
meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Saraiva.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n.
9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Sumário
1. O Código Civil Brasileiro, 15
1.1. O que é direito?, 16
1.2. A relação entre o direito e a moral, 17
1.3. Quais as fontes do direito?, 18
1.4. Como se organiza o direito?, 20
1.5. O direito civil, 21
1.6. O fenômeno da codificação, 21
1.7. O Estado Liberal e o Código de Napoleão, 22
1.8. O Código Civil Brasileiro, 24
1.9. A estrutura do Código Civil Brasileiro, 25
1.9.1. Da Evolução Histórica da Codificação Civil, 25
1.9.2. O Sistema Misto – As Cláusulas Gerais e os Conceitos Vagos, 29
1.9.3. Os Princípios Norteadores do Código Civil, 31
1.10. O campo de incidência do Código Civil, 32
1.11. Direito Civil e a Constituição Federal de 1988, 34
1.11.1. O Personalismo Ético e a Dignidade Humana 34
1.12. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, 38
1.12.1. A Interpretação da Norma Jurídica, 38
1.12.2. Prazos para Vigência de Lei, 38
1.12.3. A Revogação da Lei, 39
1.12.4. A Vigência Temporária da Lei, 39
1.12.5. Da Extensão da Revogação da Lei, 39
1.12.6. Da Forma de Revogação da Lei, 40
1.12.7. As Antinomias, 40
1.12.8. A Repristinação da Lei, 41
1.12.9. A Obrigatoriedade das Normas, 41
1.12.10. Da Integração da Norma Jurídica, 41
1.12.11. As Lacunas da Norma Jurídica, 42
1.12.12. Da Interpretação da Norma Jurídica, 43
1.12.13. Da Aplicação da Norma no Tempo, 44
1.12.14. Da Aplicação da Norma no Espaço, 45
2. A pessoa natural, 47
2.1. A pessoa natural, 48
5
2.2. A personalidade jurídica, 48
2.3. A natureza jurídica do nascituro, 48
2.3.1. A Capacidade Civil e suas Classificações, 51
2.4. A incapacidade. As restrições de direito, 52
2.5. O suprimento e a cessação da incapacidade civil, 52
2.5.1. Cessação da Incapacidade Civil, 52
2.5.2. Suprimento da Incapacidade Civil, 53
2.5.3. Extinção da Personalidade Jurídica, 53
2.6. O nome civil, o estado civil e o domicílio civil, 54
2.6.1. Os Modos de Individualização da Pessoa Natural, 54
2.6.2. O Nome Civil, 54
2.6.3. A Classificação do Nome Civil, 54
2.6.4. A Composição do Nome Civil, 55
2.6.5. Da Alteração do Nome Civil, 56
2.6.6. Da Modificação Administrativa, 56
2.6.7. Da Modificação Judicial, 58
2.6.8. O Estado Civil, 61
2.6.9. O Domicílio Civil, 61
2.7. A comoriência e a ausência: caracterização e efeitos jurídicos, 62
2.8. A morte presumida: caracterização, 63
3. pessOa e direitOs da persOnalidade, 65
3.1. Conceito, 66
3.2. Fundamento, 66
3.3. Características dos direitos da personalidade, 67
3.3.1. Direito ao corpo, 71
3.3.1.1. Doação do corpo, 71
3.3.1.2. Direito à recusa ao tratamento médico, 73
3.3.2. Direito ao nome, 73
3.3.2.1. Elementos do nome, 74
3.3.2.2. Pseudônimo, 74
3.3.3. Direito à imagem, 74
3.3.4. Direito à privacidade e direito à intimidade, 76
3.4. Proteção dos direitos da personalidade, 76
3.4.1. Medidas preventivas, 77
3.4.2. Medidas reparatórias, 77
3.4.3. Legitimidade para requerer a proteção e a reparação, 77
6
Direito Civil
4. A Pessoa Jurídica, 79
4.1. Conceito, 80
4.2. Natureza jurídica, 80
4.3. Elementos estruturais (pressupostos existenciais da pessoa jurídica), 81
4.4. Personalidade jurídica, 82
4.4.1. Personalidade jurídica e direitos da personalidade, 82
4.4.2. Início da personalidade, 83
4.4.2.1. Início da personalidade das pessoas jurídicas de direito público, 83
4.4.2.2. Início da personalidade das pessoas jurídicas de direito privado, 83
4.4.3. Ato constitutivo e registro da pessoa jurídica, 84
4.4.3.1. Natureza jurídica do registro das pessoas jurídicas, 85
4.4.3.2. Local do registro, 85
4.4.4. Fim da personalidade, 88
4.5. Representação da pessoa jurídica, 88
4.6. Responsabilidade da pessoa jurídica, 89
4.7. Das diversas classificações das pessoas jurídicas, 90
4.7.1. Classificação quanto à estrutura interna, 90
4.7.2. Classificação quanto à função, 90
4.7.2.1. Pessoas jurídicas de direito público, 90
4.7.2.2. Pessoas jurídicas de direito privado, 91
4.8. Sociedades, 92
4.9. Empresa individual de responsabilidade limitada, 93
4.10. Associações, 93
4.10.1. Constituição de uma associação, 94
4.10.2. Composição da associação, 94
4.10.2.1. Associados, 94
4.10.2.2. Diretoria, 95
4.10.2.3. Assembleia geral, 95
4.10.3. Dissolução da associação, 95
4.11. Fundações, 96
4.11.1. Constituição das fundações, 97
4.11.2. Alteração do estatuto da fundação, 99
4.11.3. Fiscalização, 99
4.11.4. Extinção da fundação, 100
7
4.12. Nacionalidade, 100
4.13. Domicílio da pessoa jurídica, 101
4.13.1. Pessoas jurídicas de direito público, 101
4.13.2. Pessoas jurídicas de direito privado, 101
4.14. Desconsideração da personalidade jurídica, 102
4.14.1. Teorias da desconsideração da personalidade jurídica, 104
5. Os Bens, 107
5.1. Conceito, 108
5.1.1. Bens e coisas: distinção, 108
5.2. Patrimônio, 109
5.3. Das diversas classificações dos bens, 109
5.4. Classificação dos bens de acordo com a mobilidade, 110
5.4.1. Bens imóveis, 110
5.4.2. Bens móveis, 111
5.5. Classificação dos bens de acordo com a fungibilidade, 112
5.5.1. Bens fungíveis, 112
5.5.2. Bens infungíveis, 112
5.6. Classificação dos bens de acordo com a consuntibilidade, 113
5.6.1. Bens consumíveis, 113
5.6.2. Bens inconsumíveis, 113
5.7. Classificação dos bens de acordo com a divisibilidade, 113
5.7.1. Bens divisíveis, 113
5.7.2. Bens indivisíveis, 114
5.8. Classificação dos bens de acordo com a materialidade, 114
5.8.1. Bens materiais (res corporalis), 114
5.8.2. Bens imateriais (res incorporalis), 114
5.9. Classificação dos bens de acordo com a individualidade, 115
5.9.1. Bens singulares, 115
5.9.2. Bens coletivos, 115
5.10. Classificação dos bens de acordo com a dependência ou reciprocidade, 116
5.10.1. Bem principal, 116
5.10.2. Bem acessório, 116
5.10.2.1. Fruto, 117
5.10.2.2. Produtos, 117
5.10.2.3. Benfeitorias, 118
8
Direito Civil
5.10.2.4. Pertenças, 119
5.11. Classificação dos bens de acordo com a titularidade, 119
5.11.1. Bens particulares, 119
5.11.2. Bens públicos, 120
5.11.2.1. Características dos bens públicos, 120
6. Dos Fatos Jurídicos, 123
6.1. Fato jurídico, 124
6.2. Fato jurídico natural, 124
6.2.1. Fato jurídico natural ordinário, 125
6.2.2. Fato jurídico natural extraordinário, 125
6.3. Fato jurídico humano, 125
6.3.1. Fato jurídico humano ilícito, 125
6.3.2. Fato jurídico humano lícito, 126
6.3.2.1. Ato jurídico stricto sensu, 126
6.3.2.2. Negócio jurídico, 127
6.3.2.3. Ato-fato jurídico, 127
7. Dos Negócios Jurídicos, 129
7.1. Teoria geral do negócio jurídico, 130
7.2. Classificações do negócio jurídico, 130
7.2.1. Classificação quanto à manifestação de vontade, 130
7.2.2. Classificação quanto às vantagens para as partes, 130
7. 2.3. Classificação quanto ao momento da produção dos efeitos, 131
7.2.4. Classificação quanto à forma, 131
7.2.5. Classificação quanto à independência ou autonomia, 131
7.2.6. Classificação quanto às condições pessoais dos negociantes, 132
7.2.7. Classificação quanto à causa determinante, 132
7.2.8. Classificação quanto ao momento da eficácia, 132
7.2.9. Classificação quanto à extensão dos efeitos, 132
7.3. Interpretação do negócio jurídico, 133
7.4. Elementos constitutivos do negócio jurídico, 134
7.5. Planos do negócio jurídico, 134
7.5.1. Plano de existência, 135
7.5.2. Plano de validade, 135
7.5.2.1. Partes, 136
9
7.5.2.2. Objeto, 136
7.5.2.3. Forma, 137
7.5.2.4. Vontade, 138
7.5.2.4.1. Reserva mental, 138
7.5.2.4.2. Representação, 139
7.5.3. Plano de eficácia, 140
7.6. Elementos acidentais, 141
7.6.1. Condição, 141
7.6.1.1. Requisitos da condição, 141
7.6.1.2. Classificação da condição quanto à certeza, 142
7.6.1.3. Classificação da condição quanto aos efeitos, 142
7.6.1.4. Classificação da condição quanto à licitude, 143
7.6.1.5. Classificação da condição quanto à possibilidade, 144
7.6.1.6. Classificação da condição quanto à natureza (ou
fonte), 144
7.6.2. Termo, 145
7.6.2.1. Classificação do termo quanto aos efeitos, 145
7.6.2.2. Classificação do termo quanto à certeza, 146
7.6.2.3. Contagem do prazo, 146
7.6.3. Modo ou encargo, 147
8. deFeitOs nOs negóCiOs JurídiCOs, 149
8.1. Introdução, 150
8.2. Erro ou ignorância (Código Civil, arts. 138 a 145), 150
8.2.1. Consequências do erro, 150
8.2.2. Classificação do erro quanto à determinação, 151
8.2.2.1. Erro substancial, 151
8.2.2.2. Erro acidental, 152
8.2.2.3. Erro obstativo, 152
8.2.3. Escusabilidade ou recognoscibilidade, 153
8.3. Dolo, 153
8.3.1. Consequências do dolo, 153
8.3.2. Classificação do dolo quanto à determinação, 154
8.3.2.1. Dolo essencial, 154
8.3.2.2. Dolo acidental, 154
8.3.3. Classificação do dolo quanto à conduta, 154
10
Direito Civil
8.3.3.1. Dolo positivo, 154
8.3.3.2. Dolo negativo, 154
8.3.3.3. Dolo bilateral ou recíproco, 155
8.3.4. Classificação do dolo quanto ao conteúdo, 155
8.3.4.1. Dolo mau, 155
8.3.4.2. Dolo bom, 155
8.3.5. Dolo de terceiro, 155
8.3.6. Dolo do representante, 156
8.4. Coação, 156
8.4.1. Espécies de coação, 156
8.4.1.1. Coação absoluta, 156
8.4.1.2. Coação relativa, 157
8.4.2. Requisitos da coação, 157
8.4.3. Consequências da coação, 159
8.4.4. Coação por terceiro, 159
8.5. Estado de perigo a coação, 159
8.5.1. Requisitos do estado de perigo, 160
8.5.2. Consequências, 161
8.6. Lesão, 161
8.6.1. Requisitos da lesão, 162
8.6.2. Consequências da lesão, 163
8.7. Fraude contra credores, 164
8.7.1. Requisitos para caracterização da fraude contra credores, 164
8.7.2. Hipóteses de fraude contra credores, 166
8.7.3. Consequências da fraude contra credores, 167
8.7.4. Fraude contra credores versus fraude à execução, 168
9. Invalidade dos Negócios Jurídicos, 171
9.1. Invalidade, 172
9.1.1. Invalidade versus inexistência, 172
9.2. Nulidade, 173
9.2.1. Hipóteses de nulidade, 173
9.2.2. Regras da nulidade, 174
9.3. Anulabilidade, 175
9.3.1. Hipóteses de anulabilidade, 175
9.3.2. Consequências da anulabilidade, 176
11
9.4. Simulação, 177
9.4.1. Natureza jurídica, 177
9.4.2. Requisitos da simulação, 178
9.4.3. Consequências da simulação, 178
9.4.4. Classificação da simulação quanto ao seu conteúdo, 179
9.4.4.1. Simulação absoluta, 179
9.4.4.2. Simulação relativa, 180
10. presCriÇÃO e deCadÊnCia, 181
10.1. Introdução, 182
10.2. Prescrição, 182
10.2.1. Conceito de prescrição, 182
10.2.2. Prescrição extintiva e prescrição aquisitiva, 183
10.2.3. Prescrição da exceção, 183
10.2.4. Alegação da prescrição, 184
10.2.5. Renúncia da prescrição, 184
10.2.6. Declaração de ofício da prescrição, 184
10.2.7. Previsão legal da prescrição, 185
10.2.7.1. Prazos especiais, 185
10.2.8. Contagem do prazo de prescrição, 189
10.2.8.1. Prescrição nuclear versus parcelar, 190
10.2.8.2. Continuação do prazo em face de herdeiros, 190
10.2.9. Prescrição intercorrente, 191
10.2.10. Impedimento e suspensão da prescrição, 191
10.2.10.1. Hipóteses de impedimento e suspensão, 192
10.2.10.2. A relação entre a suspensão da prescrição e as obrigações solidárias, 195
10.2.11. Interrupção da prescrição, 195
10.2.11.1. Hipóteses de interrupção da prescrição, 196
10.2.11.2. Efeitos pessoais da interrupção, 197
10.3. Decadência, 198
10.3.1. Conceito de decadência, 198
10.3.2. Alegação da decadência, 199
10.3.3. Espécies de decadência, 199
10.3.3.1. Decadência legal, 199
10.3.3.2. Decadência convencional, 200
12
Direito Civil
10.3.4. Contagem do prazo de decadência, 200
10.3.5. Impedimento, suspensão e interrupção do prazo de decadência, 200
10.3.6. Prazos de decadência, 201
10.3.6.1. Principais prazos de decadência, 201
11. Atos Ilícitos e Responsabilidade Civil, 205
11.1. Conceitos, espécies e distinções necessárias, generalidade civil, 206
11.1.1. Atos ilícitos, 206
11.1.2. Responsabilidade civil e responsabilidade criminal, 206
11.1.3. Elementos da responsabilidade civil, 207
11.1.4. Responsabilidade subjetiva e responsabilidade objetiva, 208
11.1.5. Abuso de direito, 209
13
14
1
O Código Civil Brasileiro
AuTor
Aristóteles (384
a.C. a 322 a. C.)
– Filósofo grego,
nascido em Estagira. Foi aluno
de Platão e professor de Alexandre o Grande.
Entre suas grandes obras, destacam-se pela contribuição ao Direito: A Política e Ética a Nicômaco. Platão, o professor de Aristóteles fora aluno de Sócrates.
Georg Jellinek (1606-1851 a 12-011911) – Juiz e filósofo
do direito, nascido
em Leipzig, Alemanha. Este professor
que lecionou nas
Universidades de Basileia e Heidelberg na Alemanha, foi quem
desenvolveu a “Teoria do Mínimo
Ético. O mínimo ético, segundo
sua teoria, é o conjunto mínimo
de regras morais obrigatórias
para se sobreviver em sociedade.
CiNEmATECA
“Sócrates”, filme de Roberto Rosselline, exibe com clareza o início
do conceito de direito e justiça na
Grécia antiga. Imaginava-se o direito como algo provindo dos deuses. Note que o tribunal de Heliastas, e sua composição como júri
popular, era formado por milhares
de pessoas escolhidas por sorte. O
juiz era um leigo que tomava suas
decisões por meio do costume. Os
crimes contra a polis eram condenados com a morte. Sócrates foi
punido com a morte por questionar racionalmente o conceito de
justiça da polis, segundo eles, “por
perverter a juventude e os bons
costumes”.
Antes de ingressarmos no estudo do Código Civil Brasileiro, é necessário identificar o campo de estudo do direito civil, e para isto é preciso entender com clareza o conceito comum de direito.
1.1
o QuE É DirEiTo?
A palavra direito deriva do latim, directum, que significa “aquilo
que é reto”.
Mas para conceituar o que é direito, torna-se necessário estudarmos a sua origem primária, que é o anseio de satisfação das necessidades
humanas. De fato, faz-se necessário compreender também os fenômenos que são relevantes à existência do homem, a fim de se obter o esclarecimento quanto ao conceito comum do que é o direito.
O pensador grego Aristóteles foi o primeiro a observar que o homem é um ser gregário e que se distingue de todos os outros animais da
Terra por ser o único a experimentar o sentimento do bem e do mal, do
justo e do injusto e das outras qualidades morais. Segundo este pensador grego, a cidade é uma criação natural do homem, a qual precede até
mesmo a família. Para sobreviver e ser feliz, o homem, como ser gregário
e racional, precisa da vida social, necessita da convivência com outros
seres semelhantes (viver em sociedade).
O convívio em sociedade é uma atividade que demanda obrigatório respeito a um “conjunto mínimo de condições essenciais para manutenção da paz e segurança”. Este conjunto de condições, que procura
estabelecer a paz e a segurança entre os homens (o dever ser), é o que
hoje se define por conceito comum de direito.
No mesmo sentido, George Jellinek, com base nos ensinos de Jeremy Bentham, define o direito por este conjunto mínimo de condições
e regras morais obrigatórias para sobrevivência moral e conservação da
paz social, da segurança da vida em sociedade (bem comum).
Assim, para que seja possível viver em sociedade, devem ser observados os limites e restrições morais impostos aos indivíduos, justamente
com a intenção de se manter a paz e a segurança entre todos, pois o
direito nasce e se desenvolve através da sociedade – ubi homo, ibi jus,
a expressão em latim, por tradução livre, que quer dizer “onde está o
homem, está o direito”.
Agora que já estudamos o conceito comum do direito, é preciso entender a dicotomia, a divisão, as semelhanças e diferenças entre o direito
e a moral.
Conceito: Direito é o conjunto mínimo de condições e regras
essenciais morais para manter a paz e a segurança na convivência entre os seres humanos (vida em sociedade).
16
Direito Civil
1.2
A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E A MORAL
Teoria dos círculos concêntricos ou Teoria do mínimo ético:
Como pudemos perceber, George Jellinek, após estudar os apontamentos de Jeremy Bentham, compreendeu o direito como parte da
moral. Sua teoria dos círculos concêntricos ou teoria do mínimo ético ficou conhecida por indicar que o direito (ordenamento jurídico)
estaria contido na moral. A figura abaixo ilustra o entendimento de
Jellinek:
Contudo, existem outras teorias que buscam explicar a relação entre o direito e a moral, vejamos então...
Teoria dos círculos secantes: Para Claude Du Pasquier, o direito e
a moral são independentes, interligando-se em alguns momentos. Com
base neste pensamento, compõe a figura abaixo para representar a teoria
dos círculos secantes:
Teoria dos círculos independentes: Hans Kelsen afirma que o direito possui normatização, enquanto a Moral se refere a atos praticados
com observação de princípios éticos. Pelo direito possuir aspectos morais, não se faz confundir com aquela. Assevera que o direito e a moral
são distintos, compondo sua teoria dos círculos independentes, como
sugere a imagem abaixo:
17
CURIOSIDADE
TEORIA DO MÍNIMO ÉTICO –
Para Jellinek o direito seria o mínimo de moral imposto para que
a sociedade possa viver em harmonia.
AUTOR
Jeremy Bentham
(15-02-1748 a 0606-1832). Filósofo
e jurista inglês,
nasceu em Londres. Foi um dos
últimos iluministas.
Difundiu o utilitarismo ao lado de
John Stuart Mill e James Mill. Seu
importante estudo sobre a moral,
exposto pela teoria dos círculos
concêntricos, possibilitou a Georg
Jellinek a construção do conceito
do direito como o mínimo ético.
Claude Du Pasquier. Para o jurista francês, que
viveu no século
XIX, o direito e
a moral coexistem, não se separam, pois há um
campo comum de competência,
onde existem regras de qualidade jurídica com caráter moral.
Hans Kelsen (1110-1881 a 19-041973) – Jurista e
filósofo austríaco,
nascido em Berkley. Autor da Teoria Pura do Direito, que trouxe relevante contribuição quanto ao estudo do positivismo jurídico, introduzindo os
conceitos de norma fundamental
e justiça. Reconhecido como um
dos maiores teóricos do Direito do
século XX.
AuTor
miguel reale (0611-1910 a 14-042006).
Nascido
em São Bento
do Sul, o filósofo,
jurista, educador
e poeta brasileiro contribuiu significativamente
com os estudos jurídicos, criador
da teoria tridimensional do direito.
Autor de inúmeros livros e obras
jurídicas, ocupou a cadeira 14,
tornando-se imortal da Academia Brasileira de Letras. Responsável pelo Projeto que deu origem
ao Código Civil de 2002.
teoria tridimensional: Miguel Reale, diversamente dos demais,
entende que a moral é apenas um dos vetores que compõem o direito.
Para o jusfilósofo brasileiro, o direito é fato, valor e norma. Fato é o fenômeno que importa ao direito identificar, enquanto valor seria aquele
que abrange o conceito moral relativo àquele fato concreto, e a norma
é como o ordenamento jurídico tratará aquele fato relevante ao direito.
A teoria tridimensional do direito pode ser representada pela ilustração
abaixo:
valor
fato
norma
ponto comum e de divergência: O que existe em comum entre as
normas jurídicas e as morais é o fato de ambas constituírem regras de
comportamento. Contudo, existe uma distinção fundamental entre as
normas jurídicas e as normas morais, pois no caso das primeiras é o
Estado que impõe a sanção.
As normas morais se traduzem na consciência individual de cada
ser humano em relação à sociedade em que vive, são identificadas pelos
costumes estabelecidos pela sociedade.
O estudo dos fundamentados desses valores morais que orientam
o comportamento do homem em sociedade, no uso de sua opção de
escolha, é conhecido como ética.
Uma conduta ética indica que a opção realizada pela pessoa não
ofende os valores morais e normas jurídicas da sociedade, conservando
a paz social.
1.3
QuAiS AS foNTES Do DirEiTo?
Partindo da dicotomia, da distinção entre a moral e o direito, podemos notar que o costume (normas morais) é a fonte primitiva do
direito, de onde nasceram suas normas jurídicas (a lei – o dever ser),
compondo estas duas, a lei e o costume, suas fontes diretas. Foi a partir
do costume que o direito foi evoluindo, surgindo a lei e outras fontes
relevantes ao seu estudo (fontes indiretas), as quais podem ser descritas
na seguinte ordem de importância:
18
Direito Civil
Lei – As normas jurídicas, ou leis, são a fonte direta e primária do
direito. Elas são impostas pelo Estado organizado à obediência de todas
pessoas que estiverem sob sua soberania. Não dependem da vontade dos
cidadãos, sendo impossível alegar sua ignorância. Configura-se como
fonte autêntica do direito, representada por texto expresso, escrito.
Costume – O costume, como já descrito, se configura pela prática
reiterada de comportamento geral aceito na sociedade, observando sempre a continuidade, uniformidade, diuturnidade, moralidade e obrigatoriedade. Embora seja a mais antiga entre as demais fontes do direito,
contemporaneamente é fonte secundária.
Jurisprudência – Como a própria palavra indica, a jurisprudência
é a prudência dos Tribunais, que se constrói pelas decisões de casos semelhantes, entendimento que, aos poucos, vai se tornando pacífico pelas
semelhanças dos casos concretos julgados, servindo tais fundamentos
como fonte secundária do direito, destinada ao estudo e à aplicação prática, a evidenciar também a tendência das correntes jurisprudenciais e
da compreensão prévia sobre cada caso, fornecendo relevantes elementos para aplicação em casos novos análogos, concedendo assim certa
previsibilidade, que muito contribui com a segurança jurídica. Trata-se
de fonte intelectiva do direito muito útil à pesquisa e ao estudo, pois exibe o esforço realizado pelo Poder Judiciário na decisão de conflitos reais,
um acervo de inteligência prévio.
Princípios gerais do direito – Os princípios gerais do direito revestem as condutas mínimas que o Estado espera de cada cidadão. Embora
não estejam escritos, os princípios são conhecidos de todos, pois, como
se fossem mandamentos morais, estão impregnados na consciência individual das pessoas, orientando e informando o direito. São identificados por três condutas básicas, cujas expressões latinas também seguem
abaixo:
a) viver honestamente – honeste vivere;
b) dar a cada um o que é seu – suum cuique tribuere, e
c) não lesar o próximo – alterum non laedere.
Doutrina – A doutrina reflete a construção do intelecto dos estudiosos da ciência jurídica. Os doutrinadores são aqueles que interpretam as leis, levando em conta o comportamento humano e o contexto
social de seu tempo, considerando todos os fenômenos sob os mais
variados aspectos, construindo teorias, conceitos e elementos relevantes ao direito.
Podemos notar que as fontes do direito, sejam elas primárias ou
secundárias, diretas ou indiretas, são os meios pelos quais se formam as
regras jurídicas.
Por questão didática e para facilitar a memorização, trataremos
da aplicação das fontes do direito na formação da norma jurídica mais
adiante, quando estudarmos a LINDB, Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro, no tópico 5 desta Unidade I.
19
ComENTário
O
francês
Augusto Comte
(1789 a 1857) foi o
responsável pela
construção da teoria na sociologia
conhecida como
positivismo. A teoria atribui fatores humanos para explicações
de diversos temas, contrariando o
primado da razão, da teologia e
da metafísica. Em vez de se preocupar com a origem do homem
e sua criação, os positivistas buscam explicar as coisas práticas e
úteis às relações sociais (lei).
CurioSiDADE
O pensamento positivista influenciou nosso país. A frase "Ordem e Progresso" na bandeira
brasileira se inspirou na máxima
ética buscada pelo positivismo
de Augusto Comte: "O amor por
princípio, a ordem por base, o
progresso por fim."
voCABuLário
Erga omnes (latim): Efeito vinculante a todos; oponível a todos; contra todos.
1.4
Como SE orGANiZA o DirEiTo?
O direito se organiza, se classifica ou se divide pelo campo destinado ao seu estudo e aplicação à norma jurídica (lei). O organograma
abaixo descreve as referidas classificações mais comuns na doutrina:
direito natural – O direito natural compreende as regras de convivência humana que foram estabelecidas pela própria natureza. Para os
antigos gregos, havia a crença de que o direito natural se sobrepunha às
leis humanas, evidenciando-se esta compreensão na declaração de Heráclito, quando disse que: “Todas as leis humanas se alimentam de uma,
qual seja a divina; esta manda quando quer, basta a todos e as supera”. Os
Jusnaturalistas são os que compõem a corrente que defende que o direito
esteja ligado a princípios superiores, identificados na natureza racional
e social do homem.
direito positivo – O Estado compõe seu ordenamento jurídico
através das leis vigentes, as quais representam a vontade do povo em
determinada época, por meio de princípios para convivência pacífica. O
ordenamento jurídico é, portanto, o conjunto de todas as leis vigentes
em um país, compondo assim o seu direito positivo.
direito objetivo – O conjunto de normas impostas pelo Estado que
possuem caráter geral (norma agendi), pois obrigam a todos indistintamente através da coerção – dever ser. O direito objetivo é assim chamado por atender ao objetivo do Estado, que é obrigatório, imposto erga
omnes através da lei.
direito subjetivo – Enquanto o direito objetivo impõe uma conduta geral (dever ser), anulando a vontade ou escolha, o direito subjetivo (facultas agendi) protege a vontade, permitindo que qualquer
pessoa física ou jurídica busque o Estado para impelir outrem a um
determinado comportamento, toda vez que houver lesão ou ameaça de
lesão a direitos (vinculando-se à vontade do sujeito quanto ao impulso
da tutela do Estado).
direito público – Esta classificação é anterior ao Direito Romano;
compreende-se do ramo do direito público tudo o que diga respeito à
coisa pública (do Estado), deste modo, poderíamos dizer que o direito
20
Direito Civil
público abrange o estudo do Direito Constitucional, Direito Tributário,
Direito Administrativo, Direito Penal e Processual Penal, Direito Internacional, etc.
Direito privado – Se destinam ao ramo do direito privado todos
os temas de estudo que não abrangidos pelo direito público, ou seja,
aqueles temas que interessam à solução de conflitos entre os particulares e grupos sociais. Exemplos: Direito Civil, Direito Comercial ou
Empresarial.
1.5
o direito civil
O Direito Civil, por sua vez, orienta, regula e estuda a relação entre
os particulares, pessoas físicas ou jurídicas. As relações entre os particulares é campo do Direito Privado, e divide-se em relações pessoais, familiares, patrimoniais e obrigacionais, estando disciplinadas no Código Civil,
conhecido entre os estudiosos por “constituição do homem comum”.
Diante do que estudamos até aqui, podemos notar que a sociedade
requeria muito a organização das leis por meios de códigos, pois se entendia que só este seria o caminho para uniformizar as condutas esperadas dos indivíduos pelo Estado. Surge então o fenômeno da codificação,
a começar pelo direito civil.
1.6
o fenômeno da codificação
A dinâmica, amplitude e complexidade das relações privadas indicavam a necessidade de sua codificação, com vistas a tornar claro e
uniforme a aplicação do direito a cada caso concreto.
Francisco Amaral esclarece que o fenômeno da codificação pretendia
organizar estruturalmente a disciplina das relações privadas para proporcionar igualdade e coordenação, pois expressava o racionalismo do direito,
que era influenciado naquela época pelo pensamento iluminista, o qual
marcou a ciência jurídica da modernidade (séculos XVIII e XIX).
Analisando o processo histórico, é possível identificar a codificação
do direito como uma consequência lógica a que se chegou por razões
políticas, filosóficas e técnicas daquela época. Regular e sistematizar o
tratamento para solução das questões, tanto no âmbito privado quanto
público, realmente apontava ser o melhor caminho para criação de uma
sociedade melhor, mais justa.
Desse modo, a codificação trazia alguns paradigmas de sua cultura, a saber: a influência iluminista; o racionalismo; o individualismo; a
consideração da norma jurídica como comando imperativo lógico-hipotético do Estado; o desenvolvimento do pensamento sistemático na
21
VOCABULÁRIO
Codificação: Processo cultural
e histórico oitocentista que realizou a ordenação e sistematização do direito, proporcionando o seu desenvolvimento
técnico como ciência jurídica, dada sua uniformização e
prescrição abstrata de situações e condutas.
COMENTÁRIO
O Iluminismo, ou Século das
Luzes, marcou o início de uma era
em que o poder da razão buscou
reformar a sociedade, livrando-se
dos arcaicos conceitos impregnados pela Era das Sombras (Idade
Medieval). O conhecimento da
natureza passou a ter um objetivo
mais claro de utilidade ao homem
moderno. Esse movimento cultural
do Século XVIII teve impulso na Europa. Do iluminismo surgiu a ideia
de mecanização, organização e
controle, que influenciou o direito.
Immanuel Kant foi um grande
pensador do iluminismo e contribuiu muito com o direito por suas
obras, das quais destaca-se: “Crítica da Razão Pura”. Ele descreve
o iluminismo assim:
"O iluminismo representa a
saída dos seres humanos de uma
tutelagem que estes mesmos se
impuseram a si. Tutelados são
aqueles que se encontram incapazes de fazer uso da própria razão independentemente da direção de outrem. É-se culpado da
própria tutelagem quando esta
resulta não de uma deficiência do
entendimento mas da falta de resolução e coragem para se fazer
uso do entendimento independentemente da direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem
para fazer uso da tua própria razão! – esse é o lema do iluminismo"
voCABuLário
Subsunção: do latim sumo, assumir, tendo o prefixo sub, em
lugar de. Literalmente, quer
dizer tomar o lugar de. No
contexto de sua leitura, a subsunção do juiz era a atividade
lógica dedutiva, que apenas
adequava o resultado ao fato
já previsto na lei.
ComENTário
Para a teoria monista, o Estado é a fonte única do direito,
porque quem dá vida ao Direito
é o Estado através da “força coativa” de que só ele dispõe. Desse modo, como só existe o Direito quando emanado do Estado,
ambos se confundem em uma só
realidade. Esta concepção ficou
ultrapassada, pois não havendo
norma jurídica que disponha sobre a questão, não poderia o juiz
decidir.
aplicação e interpretação do direito; a teoria monista das fontes do direito, que compreende o direito como sistema unitário, positivo e criado
pelo Estado; a generalidade e abstração como características da lei e das
normas jurídicas, tornando possível a existência de norma antes do caso
concreto por sujeitos descritos pelas condutas previsíveis; a segurança
jurídica, que justificava o formalismo para se identificar a justiça por
todos almejada; a simplificação jurídica e a técnica da ciência jurídica;
a centralidade do Código Civil no sistema das fontes do direito, por sua
posição central em face da política e da filosofia (constituição do homem
comum); a divisão dos papéis e relações entre Estado (Direito Público)
e particulares (Direito Privado); a redução do processo interpretativo,
primando por seguir a previsão do que contido na norma jurídica; e,
por fim, a separação radical entre os conceitos de criação e aplicação
do direito, neste aspecto, transportando por competência à própria lei
dizer, por previsão nela contida, qual a decisão a ser tomada, consistindo
a sua aplicação em atividade meramente mecânica do juiz, que fazia a
subsunção, agindo como “a boca da lei ”.
1.7
o ESTADo LiBErAL E o CÓDiGo DE
NAPoLEÃo
O Direito Civil teve o seu auge no “Estado Liberal”, período histórico marcado pela Revolução Francesa, em 1789, no qual se exaltava
a liberdade e a autonomia dos indivíduos nas relações privadas, sob o
grito de liberdade, igualdade e fraternidade.
ComENTário
Ao examinar as formas de governo, Montesquieu identifica a Monarquia (princípio, a honra), o
Despotismo (princípio, o medo) e a República (princípio, a virtude). Por influência da esquecida Constituição Inglesa, Montesquieu identifica a harmonia da atuação de três poderes, e a necessidade de
respeito quanto ao âmbito de atuação de cada um deles. Para Montesquieu as leis compreendiam
um comando normativo hermético, fechado, em respeito à teoria da tripartição dos poderes e o juiz
tinha a atividade de ser meramente “a boca da lei”. Cabia ao magistrado apenas aplicar a norma
jurídica ao caso concreto previsto na lei. Não podia o juiz interpretar a lei, de modo diverso do que nela
expresso, sob pena de quebrar a harmonia democrática sustentada no que a lei representa (a vontade de todos). Cada Poder deveria, portanto, estar restrito apenas à sua função
própria. A relevância do respeito à norma jurídica como prescrição absoluta e
completa pode ser identificada pela leitura de sua obra “O Espírito das Leis”,
da qual extraímos pequeno trecho abaixo:
“As leis escritas ou não, que governam os povos, não são fruto do capricho
ou do arbítrio de quem legisla. Ao contrário, decorrem da realidade social e da
História concreta própria ao povo considerado. Não existem leis justas ou injustas. O que existe são leis mais ou menos adequadas a um determinado povo e
a uma determinada circunstância de época ou lugar. O autor procura estabelecer a relação das leis com as sociedades, ou ainda, com o espírito dessas.”
22
Charles-louis de secondat,
Barão de Montesquieu
(18-1-1689 a 10-2-1755).
Direito Civil
CURIOSIDADE
A revolução francesa (1789), marcou a divisão entre a Idade Moderna e a Contemporânea. A França
vivia sob o governo absolutista do monarca rei Luís XVI, o qual personificava em si mesmo o Estado, reunindo portanto a autonomia dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A população daquela época na
estrutura do Estado Absolutista se representava por três classes sociais: a) Os bispos de alto Clero, identificados como o primeiro Estado; b) A nobreza, ou aristocracia francesa, identificada como segundo Estado, e
c) Burguesia, que contava com apoio de membros do baixo clero, comerciantes, empresários, banqueiros,
trabalhadores urbanos e camponeses.
O terceiro estado, conhecido por “burguesia”, representava 97% (noventa e sete por cento) da França. Influenciados pelo pensamento iluminista e motivados pela crise financeira, falta de modernização
econômica e desinteresse pelo investimento no setor industrial, os burgueses deflagraram a Revolução,
tomando à força a Bastilha no dia 14 de julho de 1789.
No esforço de combater a Revolução, o Rei Luis XVI pediu apoio à monarquia austríaca e prussiana, sendo que no ano de 1792, a Áustria invadiu a França, quando o Rei declarou guerra. Ocasião em
que a burguesia aproveitou para exterminar a corte, decapitando o rei Luís XVI e sua esposa Maria Antonieta, os quais ostentavam um luxo absurdo com suas festas e gastos incompatíveis e que contribuía
significativamente com a crise econômica. A crise social contribuiu com a crise econômica e culminou
na crise política com a mutação do paradigma de Governo através da Revolução.
Após lograr êxito no golpe do 18 de Brumário (1799), Napoleão
Bonaparte, um ano depois, pela nova Constituição promulgada, assumiu o cargo de cônsul vitalício. Entre seus esforços de unificação do Estado francês reabilitou a Igreja Católica, promovendo reformas no clero,
controlando-a até a instituição do Código Civil (1804).
O Código Civil da era do imperador Napoleão Bonaparte (1804) foi
um avanço estupendo para sua época, tanto que, pela sua complexidade,
serviu de base para o Direito Constitucional e Internacional moderno
em todo mundo.
O referido Código se preocupava muito em garantir a liberdade
ampla e o irrestrito direito de contratar (autonomia de vontade), enfatizando também a defesa ao direito de propriedade. Isto porque naquele
período se compreendia que a lei seria suficiente para demonstrar o desejo do Estado. O contrato, por sua vez, consentido pelas partes, passava
a fazer lei entre elas (pacta sunt servanda).
Para a elaboração do Código francês, os estudiosos juristas de Napoleão buscaram inspiração na inteligência do Código Justiniano, do
Corpus Juris Civilis e das institutas, que apresentam noções gerais, definições e classificações em três temas: pessoas, coisas e ações. Assim,
o Código Napoleão apresentava uma parte preliminar, que tratava das
regras de publicação e da não retroatividade das leis; o livro primeiro,
que tratava das pessoas; o segundo livro, de bens, e o terceiro livro, de
aspectos ligados à aquisição da propriedade.
Como se pode observar, o Estado Liberal marcou profundamente o
Direito Civil por permitir com a codificação sistematizá-lo. Entretanto,
tinha o viés patrimonialista, haja vista a preocupação do Código Civil
francês em estabelecer a máxima liberdade de contratar e a autonomia
na defesa dos bens e da propriedade.
23
BIBLIOTECA
CODE CIVIL DES FRANÇAIS
– Disponível em <http://www.
assemblee-nationale.fr/evenements/code-civil-1804-1.asp>.
Acesso em 26 fev. 2015.
VOCABULÁRIO
pacta sunt servanda: Brocardo
do latim que quer dizer: “os
pactos devem ser respeitados”, “os acordos devem ser
cumpridos”.
COMENTÁRIO
Estado Liberal: O Estado Liberal sucedeu o Estado Absolutista.
O liberalismo se refere ao período
do Estado Liberal, que foi marcado pela liberdade e autonomia
dos indivíduos, que se configurava na defesa dos bens e de sua
propriedade.
ComENTário
ORDENAÇÕES
FILIPINAS – As Ordenações Filipinas,
foram compostas
pela junção das
Ordenações reais,
as quais surgiram
em 1595 no reinado de Felipe I. Contudo só vieram
a entrar em vigor em1603, já no
reinado de Felipe II. As Ordenações Filipinas foram compostas
aproveitando o que já havia nas
Ordenações Reais anteriores, ou
seja, sintetizou de modo a ajustar
os textos das Ordenações Afonsinas de 1446, das Ordenações
Manuelinas de 1521, e outras legislações extravagantes da época do reinado de Felipe. As Ordenações Filipinas não buscavam
inovar, mas consolidar o que já
existia, surgiram como um resultado do domínio castelhano. As
Ordenações Filipinas tratavam de
regular diversos ramos do direito,
incluindo o público e o privado,
dividia-se em cinco livros, dispondo dos temas na seguinte ordem:
Livro I – O Direito Administrativo e
a Organização Judiciária, Livro II –
O Direito dos Eclesiásticos, do Rei,
dos Fidalgos e dos Estrangeiros, Livro III – O Processo Civil, Livro IV – O
Direito Civil e o Direito Comercial e
no Livro V – O Direito Penal e o Direito Processual Penal. Não havia
igualdade entre as pessoas, fato
notório pela existência do Livro II.
1.8
o CÓDiGo CiviL BrASiLEiro
O Brasil, no período colonial, era regido pelo sistema jurídico vigente em Portugal, quando então vigiam as Ordenações Filipinas1 que
tratavam de todos os aspectos jurídicos do país, desde a proclamação da
independência em 1822, até o dia 1º de janeiro de 1917, quando entrou
em vigor o Código Civil (1916) elaborado pelo jurista Clóvis Beviláqua.
Antes do Código Civil de 1916, a Constituição de 1824 previa
a elaboração de um Código Civil, cuja tarefa, de início, fora confiada ao jurista Augusto Teixeira de Freitas, apresentada sob o nome de
“ConSolidação das Leis Civis”2. O referido esboço do Código Civil
continha cinco mil artigos e não foi aceito por críticas da comissão
revisora, que culminaram em desestimular o jurista a continuar. Entretanto, o esboço de Teixeira de Freitas influenciou o Código Civil
Argentino. Com efeito, somente após a proclamação da República do
Brasil (1889) é que foi possível concluir o nosso primeiro Código
Civil (1916), por Clóvis Beviláqua, o qual sofreu forte influência da
Escola dos Pandectas.
O Código Civil (1916) era precedido por uma pequena lei, a LICC,
Lei de Introdução ao Código Civil, que na realidade ao longo de décadas
serviu como parâmetro de interpretação de todas as leis brasileiras. Após
o texto da LICC, o Código Civil surgia trazendo a parte geral, que apresentava princípios gerais aplicáveis aos livros da Parte Especial.
A exposição de motivos do Código Civil (2002) vigente, demonstra
os objetivos da lei na ocasião em que o referido Diploma fora publicado. O direito se realiza, em atenção às necessidades da sociedade de sua
época, por isto é imprescindível que quem estuda o direito busque compreender sua evolução histórica, e sua incidência no espaço e no tempo.
A comissão de juristas foi nomeada em 1967, sob a supervisão de
Miguel Reale, sendo que o projeto do Código Civil veio a ser aprovado somente em 1984, após o cuidadoso debate e estudo de suas 1.063
emendas, apresentando seu texto final consolidado com cerca de 2.046
artigos. Faziam parte da comissão conhecidos e renomados nomes do
direito brasileiro, sendo José Carlos Moreira Alves (São Paulo) destinado a escrever sobre a Parte Geral, Agostinho de Arruda Alvim (São Paulo), Direito das Obrigações, Sylvio Marcondes (São Paulo), Direito de
Empresa, Ebert Vianna Chamoun (Rio de Janeiro), Direito das Coisas,
voCABuLário
Exposição de motivos é a justificativa temporal histórica que
demonstra os pontos importantes da alteração pela legislação introduzida no ordenamento jurídico.
1. BRASIL. SENADO FEDERAL. Biblioteca Digital do Senado. Código Philippino, ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. Disponível em <http://www2.
senado.leg.br/bdsf/handle/id/242733.
2. BRASIL. SENADO FEDERAL. Biblioteca Digital do Senado. FREITAS, Augusto Teixeira de. A consolidação das leis civis. Disponível em <http://www2.
senado.leg.br/bdsf/item/id/242360.
24
Direito Civil
Clóvis do Couto e Silva (Rio Grande do Sul), Direito de Família e Torquato Castro (Pernambuco), Direito das Sucessões.
Os juristas buscaram manter a estrutura e as disposições do Código
Civil anterior (1916), ajustando aos valores sociais e éticos com atenção
à jurisprudência e legislação da época, olhando para o futuro.
Elaborado de modo a facilitar sua compreensão e uso prático, tornou-se muito mais didático que o Código Civil de 1916, desligando-se
também da visão individualista, que brindava o cunho patrimonialista,
inquinando-se a zelar pela socialização e por valorizar mais a dignidade
da pessoa humana.
Entre suas características marcantes, enfaticamente citadas na exposição de motivos da lei, o Código Civil (2002) buscou unificar o direito das obrigações, exclui matéria de ordem processual e adota o sistema
de cláusulas gerais, permitindo ao juiz uma margem mais flexível de interpretação para proferir suas decisões a cada caso em concreto.
A ESTRUTURA DO CÓDIGO CIVIL
BRASILEIRO
1.9
1.9.1.Da Evolução Histórica da Codificação Civil
Observando o quadro abaixo, notamos a evolução histórica da codificação civil no Brasil. As Ordenações Filipinas, que regiam Portugal
desde 1603, regulavam também o Brasil-Colônia, tratando de aspectos
ligados a outras áreas do direito e organização judiciária:
AS ORDENAÇÕES FILIPINAS
LIVRO I
Direito Administrativo e Organização Judiciária
LIVRO II
Direito dos Eclesiásticos, do Rei, dos Fidalgos e dos
Estrangeiros
LIVRO III
O Processo Civil
LIVRO IV
O Direito Civil e o Direito Comercial
LIVRO V
O Direito Penal e o Processo Penal
É possível identificar sem nenhuma dificuldade o alto grau de distinção que se fazia dos indivíduos, e a consolidação do poder da monarquia, no sistema jurídico imposto pelo sistema Brasil-Colonial, pois
25
COMENTÁRIO
A ESCOLA
DAS PANDECTAS
– Na busca de
interpretar o direito,
surgiram
várias escolas.
Pandectas era o nome grego que
se dava ao Digesto, expressão latina que se traduz como “pôr em
ordem”, nome do antigo Corpus
Juris Civilis, código estabelecido
no Direito Romano por Justiniano.
O curioso é que na interpretação
jurídica dos casos, a Alemanha
passou a admitir a aplicação do
direito romano, não através do
Legislativo, mas pelo direito consuetudinário, pela prática comum
de aplicação dos juristas, os pandectas, que se valiam desse regramento para fundamentarem
suas decisões e pareceres.
CiNEmATECA
“Danton, o processo da revolução” (direção de Andrzej
Wajda, 1982). O
filme retrata a
situação econômica da França,
quatro anos após a Revolução
Francesa.
as leis administrativas, a organização judiciária, os direitos do rei, dos
fidalgos, dos estrangeiros e até mesmo os direitos civis, comerciais, o direito penal e o processo penal, ficavam sob o seu comando e supervisão.
Conforme já estudamos, por influência da Revolução Francesa, a
codificação civil brasileira adotou valores do Estado Liberal, inspirando-se Clóvis Beviláqua na estrutura do Código de Napoleão para construção do nosso Código Civil de 1916. O Código de Napoleão, como conhecido ficou o Código Civil Francês (Code Civil des Français), trazia em
sua estrutura quatro livros, sendo o primeiro deles um título preliminar
que procurava descrever o efeito das leis no espaço tempo:
Code Civil des Français 1804 – Código Civil Francês – Código de Napoleão
PRELIMINAR
Arts. 1º a 6º
Da publicação, dos efeitos e da
aplicação das leis em geral
LIVRO I
Arts. 7º a 515
Das pessoas
LIVRO II
Arts. 516 a 710
Dos bens e das modificações da
propriedade
LIVRO III
Arts. 711 a 2302
Dos modos de aquisição da
propriedade
O Código Civil de 1916, Lei n. 3.071/1916, sob a supervisão do jurista Clóvis Beviláqua, sofreu influência do iluminismo, adotando valores do Estado Liberal, com um viés burguês e patrimonialista, por força
da Revolução Francesa, inspirando-se também no Código de Napoleão,
trazia ainda a compreensão oitocentista de que o Código representava o
sistema jurídico em completude (fechado). Tinha três pilares: a família,
a propriedade e o contrato. Antes do seu texto, era precedido pela LICC
– Lei de Introdução ao Código Civil, uma pequena lei de 21 artigos que
identificava o início da vigência, a obrigatoriedade, a integração, a interpretação e aplicação das Normas no Tempo e no Espaço:
CÓDIGO CIVIL 1916 – Clóvis Beviláqua
LICC
Arts. 1º a 21
Introdução
PARTE GERAL
LIVRO I
Arts. 2º a 42
Das Pessoas
LIVRO II
Arts. 43 a 73
Dos Bens
LIVRO III
Arts. 74 a 179
Dos Fatos Jurídicos
PARTE ESPECIAL
LIVRO I
Arts. 180 a 484
Do Direito de Família
LIVRO II
Arts. 485 a 862
Do Direito das Coisas
LIVRO III
Arts. 863 a 1.571
Do Direito das Obrigações
LIVRO IV
Arts. 1.572 a 1.805
Do Direito das Sucessões
Arts. 1.806 e 1.807
Disposições Finais
26
Direito Civil
O Código de 1916 teve influência predominantemente francesa (individualismo quanto conteúdo do Código), além da influência germânica (quanto à estruturação formal do Código). No revogado Código Civil
havia uma parte geral, tal qual a codificação alemã – BGB (O Código dos
franceses não tem parte geral). Aquele Diploma legal adotava a ideia da
codificação total, de completude. Deste modo, o Código Civil era uma
lei considerada completa, não precisava de leis especiais. Ao analisarmos
comparativamente os Códigos Civis de 1916 e 2002, devemos ressaltar
suas diferenças, em razão dos momentos históricos de cada século (XIX
e XX). Houve a influência também da reforma das situações jurídicas,
novos fatores sociais como o advento da Lei do Divórcio (n. 6.515/77);
Lei dos Conviventes (n. 9.278/96) e a Lei do Inquilinato (n. 8.245/91).
E claro, primordialmente, a Constituição Federal de 1988. Reportando-nos ao Código Civil vigente, este conservou sua estrutura semelhante,
tanto na parte geral quanto na especial. Adicionou as obrigações mercantis (comerciais) às cíveis. Prestigiou os microssistemas, cedendo a
diversas influências do Código de Defesa do Consumidor. No tocante a
sua recodificação, prestigiou as matérias e as interpretações consolidadas
a partir do Código Civil de 1916.
O Código Civil de 2002 não foi uma obra solo, mas teve a participação de juristas de diversas regiões do Brasil, que ocuparam diferentes papéis como operadores do direito (magistrados, advogados e
professores de direito), por conta do notável saber jurídico, houve quatro versões iniciais do projeto, publicadas na imprensa oficial (1972,
1973,1974 e 1975).
Sob a supervisão de Miguel Reale, o qual esclareceu que a iniciativa de um novo Código Civil não surgiu de repente, mas foi consequência de duas tentativas anteriores que já demarcaram as condições
que deveriam ser evitadas ou, então, complementadas. Não houve a
intenção de unificar o Direito Privado em um só Código, como erroneamente se pensa; o intento era consolidar e aperfeiçoar o que já era
seguido no país. Se refere à superação do Código Comercial de 1850 e às
questões comerciais que por ele não eram mais abrangidas, o que forçava os juízes a se socorrerem no Código Civil de 1916, situação que provocou a necessidade de adequação da parte que tratava das obrigações.
Então, deixou-se de lado a ideia de fazer um Código das Obrigações em
separado, aproveitando o trabalho já desenvolvido naquele sentido pelos juristas Hahneman Guimarães, Orozimbo Nonato e Philadelpho de
Azevedo, desempenhado no anteprojeto do Código das Obrigações; e,
depois, do trabalho realizado por Orlando Gomes e Caio Mário da Silva Pereira, quando da proposta de elaboração separada de um Código
Civil e de um Código das Obrigações, contando com a colaboração, neste caso, de Silvio Marcondes, Theóphilo de Azevedo Santos e Nehemias
Gueiros. Optar pelo aproveitamento do trabalho já realizado daqueles
juristas foi o motivo da alteração da ordem da matéria.
27
Como bem se pode notar, o Código atual, levou em consideração a
realidade de uma sociedade de natureza agrária, começando a tratar do
Direito de Família, passando pelo Direito de Propriedade e das Obrigações, até chegar ao das Sucessões.
CÓDIGO CIVIL 2002 – Miguel Reale
PARTE GERAL
LIVRO I
Arts. 1º a 78
Pessoas
LIVRO II
Arts. 79 a 103
Bens
LIVRO III
Arts. 104 a 232
Fatos Jurídicos
PARTE ESPECIAL
LIVRO I
Arts. 233 a 965
Direito das Obrigações
LIVRO II
Arts. 966 a 1.195
Direito de Empresa
LIVRO III
Arts. 1.196 a 1.510
Direito das Coisas
LIVRO IV
Arts. 1.511 a 1.783
Direito de Família
LIVRO V
Arts. 1.784 a 2.027
Direito das Sucessões
Livro Complementar
Arts. 2.028 a 2.046
Disposições finais e
transitórias
A antiga LICC – Lei de Introdução ao Código Civil, instituída pelo
Decreto-Lei n. 4.657/42, por muito tempo serviu como tábua rasa de
auxílio a todas as demais normas do direito brasileiro, deixando de se
tratar apenas de introdução ao Código Civil. Passou então a ser chamada de LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por
alteração legislativa introduzida pela Lei n. 12.376/2010, desaparecendo
da parte introdutória do Código Civil novo.
A Parte Geral passou a enunciar os direitos e deveres gerais da pessoa humana e estabelecer pressupostos gerais da vida civil. Na Parte Especial, disciplina as obrigações que emergem dos direitos pessoais. Pode-se dizer que, enunciados os direitos e deveres dos indivíduos, passa-se
a tratar de sua projeção natural, que são as obrigações e os contratos.
O direito obrigacional traz extensa essa disciplina, diante da necessidade de tratar as questões já não abrangidas pelo Código Comercial
de 1850, unificando as obrigações civis com as obrigações empresariais,
termo adotado preferencialmente por Miguel Reale, pois a atividade
econômica não se assinalava mais pelos atos de comércio de outrora,
tendo uma projeção maior, por relevantes aspectos de natureza industrial ou financeira.
Após o Direito das Obrigações, o Código Civil de 2002 trouxe uma
parte nova, que é o Direito de Empresa, também no sentido de atender
às necessidades de uma norma que pudesse regular situações em que as
28
Direito Civil
pessoas se associam e se organizam a fim de, em conjunto, dar eficácia e
realidade ao que pactuam. Sem dúvida nenhuma esta foi uma inovação
inigualável, por não existir codificação semelhante.
O próximo livro trata do Direito das Coisas, trazendo para o Direito Real uma nova forma de identificar o conceito de propriedade, já sob
a influência do princípio constitucional, que empresta função social à
propriedade, abandonando o conceito burguês anterior em que primava o interesse exclusivo do indivíduo, do proprietário ou do possuidor.
Concluído o livro do Direito das Coisas, surge o Livro do Direito de Família, seguido do Livro do Direito das Sucessões. Aqui outro ponto que
merece destaque, pois trouxe alteração relevante na estrutura do código,
a qual não encontra símile na codificação dos demais países.
A Comissão trabalhou no sentido de buscar preservar e respeitar o
trabalho intelectivo do saber jurídico que construiu a estrutura do sistema civil, mantendo a mesma disposição da Parte Geral do Código Civil,
conquistada desde Teixeira de Freitas, organizando a matéria em coerência lógica com as recentes codificações3.
Excluiu a matéria de ordem processual, restringindo-se apenas
aquelas que profundamente ligadas à natureza material.
1.9.2.O Sistema Misto – as Cláusulas Gerais e os
Conceitos Vagos
A estrutura ideal de um sistema jurídico dotado de cláusulas gerais
é aquela que se admite incompleta, aberta e com mobilidade em certas áreas (novo pensamento sistemático). Para que as cláusulas gerais
ocupem sua função, demandam flexibilidade do sistema. Desse modo, o
sistema deve ser aberto ou elástico o suficiente para permitir o melhor
desempenho de suas cláusulas gerais.
Segundo muitos autores, o Código Civil Brasileiro de 2002 seria caracterizado, então, como um sistema misto, eis que constituído por uma
parcela de disposições rígidas, por meio das quais o legislador lançou
mão do método casuístico, que obriga o aplicador da norma a valer-se
do método lógico-subsuntivo, e outra parcela de disposições flexíveis,
típicas de um sistema aberto e móvel, possibilitando a incidência de
cláusulas gerais.
Adotou a possibilidade do uso das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados ou vagos, através da linguagem, como forma
de flexibilização do sistema jurídico, dilatando ao juiz a possibilidade de
interpretação para aplicação da norma ao caso concreto. Desprendendo-
3. BRASIL, SENADO FEDERAL. Biblioteca Digital do Senado. Quadro comparativo entre o novo Código Civil e o Código Civil antigo. Disponível em <
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70309/704509.pdf?sequence=2 > . Acesso em 30 mar. 2015.
29
-se do falso conceito que existia quanto à completude do sistema jurídico positivado em Código, a mudança na técnica legislativa, incluindo
cláusulas gerais e conceitos vagos, permitiu a abertura ao sistema jurídico, tornando-o de fechado em misto, o que quer dizer que não é aberto,
mas apenas permite sua abertura quando diante de um caso concreto aplicável. Esta técnica pós-moderna surgiu das transformações que
ocorreram após a Revolução Industrial; diante das enormes mudanças
ocorridas na sociedade, não havia mais condições de manter a antiga
estrutura tradicional, atendendo muito melhor a integração do sistema
jurídico através das cláusulas gerais.
Judith Martins-Costa descreve como a linguagem empregada permite que a codificação funcione como um sistema aberto, facilitando a
constante incorporação de soluções de novos problemas, pela jurisprudência ou por atividades de complementação legislativa. A jurista afirma
que as cláusulas gerais são como janelas deixadas pelo legislador civil em
razão da mobilidade da vida:
“Estas janelas, bem denominadas por Irti de ‘concetti di collegamento’, com a realidade social são constituídas pelas cláusulas gerais,
técnica legislativa que conforma o meio hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos ainda não expressos legislativamente, de standards , arquétipos
exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não
advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas,
sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos metajurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo.
Nas cláusulas gerais a formulação da hipótese legal é procedida
mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significado
intencionalmente vagos e abertos, os chamados ‘conceitos jurídicos indeterminados’. Por vezes, e aí encontraremos as cláusulas
gerais propriamente ditas – o seu enunciado, em vez de traçar
pontualmente a hipótese e as consequências, é desenhado como
uma vaga moldura, permitindo, pela vagueza semântica que caracteriza os seus termos, a incorporação de princípios e máximas
de conduta originalmente estrangeiros ao corpus codificados, do
que resulta, mediante a atividade de concreção destes princípios,
diretrizes e máximas de conduta, a constante formulação de novas normas”.
A utilização de cláusulas gerais é uma técnica legislativa que permite fazer uso de normas formuladas a partir do uso de conceitos jurídicos indeterminados. A vagueza de conteúdo semântico
possibilita a incorporação, no momento da aplicação do direito, de
valores filosóficos, sociológicos e econômicos.
30
Direito Civil
JURISPRUDÊNCIA
Tribunal de Justiça de Minas Gerais
Segundo Rodrigo Reis Mazzei, existem três espécies de cláusulas gerais no Código Civil de 2002:
1. Cláusulas gerais restritivas – que restringem em certas situações o
âmbito de um conjunto de permissões advindas da regra ou princípio jurídico. Por exemplo: a liberdade de contratar está restrita
à função social do contrato (CC, art. 421)4;
2. Cláusulas gerais regulativas – que regulam com base em um princípio, hipóteses de fato ou não previstas em lei. Por exemplo: a regulação da responsabilidade civil por culpa (CC, arts. 927 e 943), e
3. Cláusulas gerais extensivas – que ampliam a regulação jurídica,
permitindo a introdução de princípios e regras de outros textos
normativos. Por exemplo: O que dispõe o Código de Defesa do
Consumidor (artigo 7º)5.
1.9.3.Os Princípios Norteadores do Código Civil
Miguel Reale também se preocupou em dar ao Código Civil de 2002
princípios norteadores básicos, os quais deverão ser sempre observados,
por serem considerados valores essenciais, são eles:
a) Princípio da Eticidade;
b) Princípio da Socialidade; e
c) Princípio da Operabilidade.
Quanto à eticidade, procurou-se superar o apego ao formalismo
jurídico, conservando as conquistas das técnicas jurídicas (normas genéricas ou cláusulas gerais), sem a preocupação com o rigorismo conceitual, buscando com ênfase proteger a pessoa humana, priorizando a
boa-fé, a justa causa, a equidade e outros critérios éticos. No que tange a
sociabilidade, buscou-se afastar o caráter individualista da lei, priman-
4. Código Civil, art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
5. Código de Defesa do Consumidor, art. 7º – Os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de
que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade. Parágrafo
único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela
reparação dos danos previstos nas normas de consumo.
31
“Neste sentido, NELSON NERY
JÚNIOR e ROSA MARIA ANDRADE
NERY anotam: “A cláusula geral
contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir
e corrigir o contrato segundo a
boa-fé objetiva, entendida como
exigência de comportamento
leal dos contratantes.” (Código
Civil Anotado e legislação extravagante, Saraiva, 2ª Edição, 2003,
p. 340-341). Apelação Cível n.
1.0024.04.262215-9/001, rel. Des.
Tarcísio Martins Costa, j. 6.3.2007).
ComENTário
oS TrÊS TiPoS DE DiáLoGoS
DAS foNTES:
Para o Ministro João Otávio
de Noronha, no entendimento de
Claudia Lima Marques, existem
três tipos de diálogo das fontes
entre o Código Civil e o Código
de Defesa do Consumidor: 1) o
diálogo sistemático de coerência – a aplicação simultânea das
duas leis; 2) a incidência coordenada de duas leis – quando uma
lei pode complementar a aplicação de outra, conforme o caso
concreto, valendo também aos
princípios; 3) o diálogo de influências recíprocas com uma possível
redefinição do campo de aplicação de uma lei. Exemplo: definição de consumidor stricto sensu
e a de consumidor equiparado,
que pode sofrer influência finalística do Código Civil.
NORONHA, João Otávio. Crise de fontes normativas: Código
Civil x Código de Defesa do Consumidor. Disponível em <http://
www.editorajc.com.br/2011/10/
crise-de-fontes-normativas-codigo-civil-x-codigo-de-defesa-doconsumidor-parte-1/>. Acesso em
22 mar. 2015.
do pelo predomínio do social, dos valores coletivos sobre os individuais
(surge então a função social nos direitos: posse, contrato, propriedade,
etc.). A operabilidade busca as soluções simples que se estabeleçam de
modo a facilitar a interpretação e aplicação e dar maior efetividade ao
operador do direito. Característica que permeia o Código Civil, tornando-o mais didático e prático.
Deste modo, o sistema jurídico misto brasileiro permite que as
questões cíveis sejam julgadas conforme cada caso concreto. Isto é possível por conta dos conceitos vagos, que para obterem a melhor aplicação
diante de casos em que exista dúvida ou lacuna interpretativa, permite a
aplicação das cláusulas gerais, sempre primando por manter o respeito
aos princípios norteadores do Código Civil.
Ainda estudaremos, logo adiante, as regras de interpretação da norma jurídica para a correta aplicação do direito em cada caso, por meio
da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
1.10
o CAmPo DE iNCiDÊNCiA Do
CÓDiGo CiviL
O campo de incidência do Código Civil se refere a área que abrange
o seu alcance. Conforme pudemos aprender durante o estudo da estrutura do Código Civil, no seu Livro Geral, cuida das situações que
envolvem o direito subjetivo relacionado às pessoas, aos bens e aos fatos jurídicos. Na Parte Especial, desenvolve a regulação do direito das
obrigações, do direito empresarial, do direito das coisas, do direito de
família e, finalmente, do direito das sucessões.
Ao entrar em vigor, o Código Civil de 2002 provocou mudanças
não apenas em relação ao direito das obrigações. Além das mudanças
que já apontamos nos dois últimos tópicos de estudo, Rosa Maria de
Andrade Nery6 esclarece que a legislação civil vigente revogou a Parte
Primeira do Código Comercial (arts. 1º a 456), poupando apenas sua
Segunda Parte (Arts. 457 a 796), que cuida do Comércio Marítimo.
6. NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria
geral do direito privado. Editora RT: São Paulo, 2008, p. 81.
32
Direito Civil
Em razão da vigência anterior do Código de Defesa do Consumidor, cogitou-se uma crise das fontes (Código Civil e Código de Defesa do
Consumidor), contudo a doutrina superou este entendimento ao compreender possível a coexistência de ambas, contribuindo neste sentido o
esclarecimento de Claudia Lima Marques, quando trouxe ao Brasil a teoria do diálogo das fontes de seu orientador e mestre alemão, Erik Jaime7.
Entretanto, não se pode esquecer que o Código Civil de 2002 conserva a possibilidade de servir como fonte subsidiária do direito, ou
seja, trata-se de fonte de integração da norma jurídica, aplicável quando houver alguma lacuna de norma, utilizado como instrumento de integração interpretativa do juiz, ao julgar o caso concreto. Estudaremos
mais detidamente esta atividade do juiz, quando observarmos o contido
na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Como se pode
notar, o uso do Código Civil como fonte de integração da norma jurídica pelo juiz, sem dúvida nenhuma, dilata aumentando ainda mais o seu
campo de incidência.
O Direito Civil, ao longo de sua história no mundo romano-germânico, sempre ocupou um lugar normativo privilegiado, e ao seu lado
as normas do direito civil, como pudemos perceber, são as mais antigas
formas de regulação das relações interpessoais da sociedade, transcendendo as mudanças sociais, políticas e econômicas ao longo dos séculos.
Diante desta condição inegável, que descreve sua robusta e portentosa
composição ao longo dos séculos, o direito civil sempre forneceu as categorias, os conceitos e classificações que consolidaram diversos ramos
do direito público, inclusive o constitucional.
A migração do Estado Liberal para o Estado Social a partir do século XX, pode ser percebida pela intervenção estatal nas relações privadas. No Estado Social, passou a ocorrer uma mitigação da amplitude
da autonomia da vontade, restringindo condicionalmente a autonomia
privada para garantir os interesses dos mais fracos, pela influência dos
direitos fundamentais e direitos humanos que surgiram após a Segunda
Guerra Mundial.
Pessoas, Bens e Fatos Jurídicos
• Arts. 1º a 103 CC
Obrigações, Empresa, Coisas, Família e Sucessões
• Arts. 104 a 2.027 CC
Aplicação Subsidiária
• Fonte de integração
7. NORONHA, João Otávio. Crise de fontes normativas: Código Civil x Código de
Defesa do Consumidor. Disponível em <http://www.editorajc.com.br/2011/10/
crise-de-fontes-normativas-codigo-civil-x-codigo-de-defesa-do-consumidor
-parte-1/>. Acesso em 22 mar. 2015.
33
CINEMATECA
Veja “O mercador de Veneza”
(direção de Michael Radford,
2004);
observe
que no contrato
da época figurava a autonomia
da vontade, não a autonomia
privada. Compare a diferença na
visão de direito no Estado Liberal
para o Estado Social.
CURIOSIDADE
A autonomia da vontade
trazia o conceito de que uma vez
manifestada a vontade, como
por exemplo, em um contrato assinado, deveria ela ser obedecida. Este era o conceito do Estado
Liberal, fazer garantir a liberdade
plena, enquanto, na autonomia
privada, o Estado intervém sempre que a vontade das partes expressa no contrato vier a ofender
o ordenamento jurídico. Desse
modo, se existir um valor resguardado pelo ordenamento, não
podem as partes usar de tal liberdade de contratar para tornarem
válido o contrato. Exemplo: locador que aluga imóvel e faz contrato, sendo o objeto da locação
uso industrial que ofende ao meio
ambiente. Pode o Estado intervir
e tornar sem efeito o contrato,
por ofensa a preceito de ordem
pública.
VOCABULÁRIO
Infraconstitucional: é a legislação
que está abaixo da Constituição.
CINEMATECA
O julgamento de Nuremberg. O filme retrata de modo claro,
com cenas reais, o
motivo que provocou
a existência do personalismo ético.
AUTOR
KARL LARENZ (1903 a
1993). Jurista alemão
que foi professor nas
duas mais importantes universidades da
Alemanha: Kiel e Munique. Dedicava-se ao estudo do Direito Civil,
tendo publicado diversas obras
jurídicas. Entre suas obras mais
importantes, além do estudo da
jurisprudência e valores, trouxe o
conceito de personalismo ético.
CLAUS-WILHELM CANARIS
(01-07-1937).
Notável jurista alemão, nascido em
Liegnitz, que identificou as lacunas na lei.
Professor e doutrinador com 16 livros publicados em diversos países,
além de mais de 180 artigos científicos. Por sua destacada atuação
e contribuição jurídica e filosófica
com o Brasil, recebeu em 2012 o
título de doutor honoris causa pela
Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul. Sobre o tema
sugerimos a leitura de: CANARIS,
Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito
privado na Alemanha, p. 225. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (org). Constituição, Direitos Fundamentais e
Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 206-207.
1.11
O DIREITO CIVIL E A CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988
1.11.1. O Personalismo Ético e a Dignidade
Humana
Após a Segunda Grande Guerra Mundial, em razão da consciência
em defesa da humanidade provocada pela reflexão quanto às atrocidades cometidas contra os seres humanos nos campos de concentração
nazistas, foi proclamada a DUDH – Declaração Universal dos Direitos
Humanos (10-12-1948), através da Assembleia Geral das Nações Unidas, tornando a defesa desses ideais a principal tarefa da ONU – Organização das Nações Unidas, a qual pactuou em consenso com diversos
Estados o esforço comum mundial no sentido de tornar claro que a dignidade é inerente a todos os membros da família humana, e que todo ser
humano tem direitos iguais e inalienáveis à liberdade, à justiça e à paz8.
De acordo com Karl Larenz9, rompe-se assim com o antigo o paradigma
patrimonialista, o qual adotava o contrato e a propriedade como meio
para efetivação dos direitos individuais, passando a firmar-se o direito
das pessoas na sua própria existência, pelo simples fato de se tratar de
pessoa humana, de onde decorre o novo paradigma, conhecido como
personalismo ético.
Portanto, o ordenamento jurídico deslocou o foco de valores do viés
individual patrimonialista, que conservava o Estado Liberal, para o viés
da valorização da pessoa humana, passando o Estado Social a garantir
a preservação do direito à dignidade da pessoa humana como garantia fundamental, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948). Na visão antiga, sob influência do iluminismo, o homem só era
compreendido como um indivíduo. Para o homem exercer seus direitos
privados, tinha maior relevância aquele que tivesse seu direito amparado por um contrato, pela posse ou em razão do direito de propriedade.
Esta nova visão do pensamento jurídico pós-Grande Guerra rompeu definitivamente com o modelo patrimonialista. Claus-Wilhelm Canaris esclarece que, a partir de então, quase todo ordenamento jurídico do
mundo moderno passou a instituir a garantia dos direitos fundamentais
dos cidadãos por meio de Constituições, organizando sua legislação hierarquicamente, passando tais valores a incidirem efeitos no Direito Privado e em toda legislação infraconstitucional e na jurisprudência.
No personalismo ético, todo homem deve ser percebido como pessoa, ser da espécie humana, e por isto digno é de atenção do Estado So-
8. UNESCO. Declaração Universal dos Direito Humanos, 1948. Disponível em
<http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf>. Acesso em
26 fev. 2015.
9. LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Tradução de Miguel Izquierdo y
Macías. Picavea. Madri:Ed. Revista de Derecho Privado, 1978. § 2º.
34
Direito Civil
cial, independentemente de estar questionando judicialmente proteção de
direito contra outra pessoa ou ente privado em defesa de contrato, posse
ou propriedade. A pessoa enquanto ser da espécie humana (personalismo
ético) prevalece sobre o antigo paradigma do ter (patrimonialismo).
Dentro desta compreensão, emergiu como garantia fundamental a
todos cidadãos brasileiros o princípio da dignidade da pessoa humana,
através do qual se contempla a evolução social histórica do personalismo
ético, um dos pilares básicos de nosso Estado Democrático de Direito
(descrito no inciso III do artigo 1º da Carta Magna de 1988).
Com a constitucionalização ocorrendo em diversos países, observa-se que as normas buscam uma natural reorganização, em razão da
mudança dos seus valores fundamentais, no sentido de repor a pessoa
humana como centro do direito civil; esta trajetória de emancipação humana, chamam os doutrinadores de repersonalização dos direitos civis.
Desse modo, o Estado Social passou a dar maior relevância à solidariedade e à função social dos institutos (propriedade, contrato, responsabilidade civil, família e empresas) para atender melhor à tutela dos
mais fracos, delimitando a autonomia privada por meio da intervenção
estatal com aplicação direta e dos direitos fundamentais às relações privadas, sempre que necessário. Por força dessa influência da Constituição
sobre as relações civis, o legislador passou a criar diversas outras normas infraconstitucionais específicas, que tratam com certa autonomia
de questões de ordem pública envolvendo direitos transindividuais (O
Estatuto da Criança e Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor,
o Estatuto do Idoso, etc.).
Paulo Luiz Netto Lobo explica que esta atividade intervencionista
do Estado em defesa dos direitos constitucionais dos cidadãos foi responsável por subtrair do Código Civil matérias inteiras, em alguns casos
transformadas em ramos autônomos do direito, como, por exemplo: o
direito do trabalho, o direito agrário, o direito das águas, o direito da
habitação, o direito da locação de imóveis urbanos, como já citamos, o
estatuto da criança e do adolescente, o direito do consumidor, os direitos
autorais, entre outros. Este movimento legislativo que de certo modo
provocou algum esvaziamento das matérias e do campo de incidência
do Código Civil, movido pelo impulso dos novos valores sociais, na proteção dos direitos da pessoa humana, alguns juristas chamam também
de descodificação do direito civil. Então, este fenômeno também citado
como constitucionalização do direito civil poderia ser visto como uma
elevação dos princípios fundamentais do direito civil, ao plano constitucional, condicionando-os à observância de todos os cidadãos e à aplicação, pelos tribunais, da legislação infraconstitucional.
Nota-se com facilidade que existe de fato um esforço por acomodar
estes novos valores que se pautam na defesa da pessoa humana, o que
tem provocado uma verdadeira reconstrução da regulação das relações
civis, impondo uma nova leitura do Código Civil à luz da Constituição Federal de 1988. São inúmeros os nomes que podem retratar este
fenômeno, entre eles: repersonalização do direito civil, despatrimo35
CURIOSIDADE
Teoria da eficácia horizontal
ou irradiante dos direitos fundamentais.
Os direitos são transindividuais por zelarem por uma classe
específica de cidadãos, independentemente de exprimirem sua
vontade. Por exemplo: o Ministério Público tem legitimidade para
intervir quando existir interesse
das crianças e adolescentes, dos
idosos, dos consumidores etc. A
organização dessas leis infraconstitucionais, quando apresenta
conjunto complexo e capaz de
lhe conceder certa autonomia,
chama a doutrina de microssistema jurídico.
SAIBA MAIS
NETTO LOBO, Paulo Luiz. Constitucionalização do direito civil.
Revista de informação legislativa.
Senado Federal. Brasília, ano 36, n.
141 jan./mar. 1999.
nialização do direito civil, constitucionalização do direito civil. A
doutrina cogita inclusive a criação de uma nova disciplina ou ramo
metodológico do direito, denominada Direito Civil Constitucional,
a qual estuda o direito civil à luz da Constituição Federal, tendo como
eixo norteador os princípios constitucionais (a dignidade da pessoa
humana, Art.1.º, inciso III; a solidariedade social, Art. 3.º, inciso I; a
igualdade substancial, Arts. 3.º, inciso IV, e 5.º, caput; a erradicação
da pobreza e redução das desigualdades sociais, Art. 3.º, incisos III
e IV) (DE FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 19). Nessa linha, temos
no elenco quatro categorias de temas da Constituição Federal que irradiam efeitos sobre os direitos civis, sendo que os três primeiros se
tornaram princípios constitucionais, conhecidos por: a) princípio da
dignidade da pessoa humana; b) princípio da solidariedade, e c) princípio da isonomia ou igualdade. Convém informar que existe projeto
no Senado Federal para erigir a erradicação da pobreza a um princípio também; quando isto ocorrer, poderemos afirmar que o Direito
Civil Constitucional estuda a influência dos princípios constitucionais sobre o direito civil. Isso porque a erradicação da desigualdade
social, de certo modo, já estaria sendo aplicada através da efetividade
do princípio da igualdade substancial.
Então, embora muito mais jovem que o Código Civil, a Constituição Federal de 1988 passou a influenciar diretamente toda a legislação
brasileira, garantindo o exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos. No direito de família, consolidou-se a família núcleo natural e fundamental da sociedade; o princípio da isonomia (igualdade) extirpou
as diferenças que haviam entre homem e mulher, entre os filhos havidos
no casamento e fora dele.
VOCABULÁRIO
equidade: traz consigo a ideia
de distribuição de modo justo,
proporcional e razoável, sob
análise do caso concreto.
Por força e influência da Constituição Federal de 1988, também o
direito passou a estabelecer a função social (da propriedade, do contrato etc.) como meio de controle do Estado Social, garantindo sua intervenção imediata nas relações privadas.
A função social deve ser respeitada e, neste sentido, exige determinadas condutas dos sujeitos nas relações civis, sob pena de invalidação
do negócio jurídico. A função social permite ao juiz seguir as regras ou
cláusulas gerais para resolver a questão através da equidade.No que diz
36
Direito Civil
respeito aos contratos, por exemplo, o Código Civil estabelece no Artigo
421 que as partes devem contratar, obedecidos a razão do contrato e os
limites da sua função social. Isto quer dizer que não pode uma parte
contratar em prejuízo da outra, ou da coletividade, sob pena de abuso de
direito. Logo mais à frente, no Artigo 422, isto se demonstra claramente,
quando o Estado impõe aos contratantes a obrigação de guardar na execução e conclusão do contrato os princípios da probidade e da boa-fé.
Miguel Reale explica que a função social do contrato no Código Civil
existe por derivar da Constituição Federal de 1988, que, em seu Artigo
5.º, incisos XXII e XXIII, descreve que o direito de propriedade atenderá
sempre a sua função social.
As cláusulas gerais do Código Civil, conforme já estudamos, podem
ser a) restritivas; b) regulativas e c) extensivas. Ainda com estas categorias
em mente, examinemos os artigos 112, 113, 114, 421, 422 e 423 do Código Civil. Tais artigos fornecem critérios interpretativos ao magistrado
para que lhe permitam, ao julgar o caso concreto, conservar os princípios
da intencionalidade, da probidade e da boa-fé nas relações negociais.
CLÁUSULAS GERAIS DO CÓDIGO CIVIL
Art.
Texto
PALAVRAS-CHAVE
112
Nas declarações de vontade se atenderá mais
à intenção nelas consubstanciadas do que ao
sentido literal da linguagem.
PRINCÍPIO DA INTENÇÃO
113
Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de
sua celebração.
PRINCÍPIO DA
BOA­-FÉ OBJETIVA E
COSTUMES
114
Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia
interpretam-se estritamente.
INTERPRETAÇÃO
RESTRITA
negócios gratuitos,
doação e renúncia
421
A liberdade de contratar será exercida em
razão e nos limites da função social do contrato.
FUNÇÃO SOCIAL
422
Os contratantes são obrigados a guardar
assim na conclusão do contrato como em
sua execução os princípios da probidade e da
boa-fé.
PRINCÍPIO DA
PROBIDADE E DA
BOA-FÉ OBJETIVA
423
Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas e contraditórias, dever-se-á
adotar a interpretação mais favorável ao
aderente.
INTERPRETAÇÃO
BENÉFICA AO MAIS
FRACO
VOCABULÁRIO
abuso de direito: ocorre quando o titular de um direito, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo
seu fim econômico ou social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes, conforme descreve o
Art. 187 do Código Civil.
COMENTÁRIO
Personalismo Ético: Teoria inspirada no pensamento iluminista
de Kant, desenvolvida por Karl
Larenz, na qual a pessoa deve ser
considerada o fim e não o meio,
pois não possui um preço. Base
fundamental para a construção
do princípio da dignidade da pessoa humana adotado pela Constituição Federal de 1988.
CURIOSIDADE
A aplicação imediata pelo Judiciário dos direitos fundamentais às
relações privadas, a doutrina denomina eficácia horizontal dos direitos
fundamentais.
37
A
influência dos direitos
fundamentais
garantidos pela
Constituição
sobre o Direito
Privado recebe
vários nomes sinônimos pela doutrina, tais como:
constitucionalização do direito
civil ou direito privado; descodificação do direito civil; repersonalização do direito privado ou
dos direitos civis, despatrimonialização etc. Alguns doutrinadores
cogitam ainda o surgimento de
um outro ramo do direito: o Direito Civil Constitucional.
SAIBA MAIS
REALE, Miguel. Função Social
do Contrato, 2003. Disponível em
http://www.miguelreale.com.br/
artigos.
ATENÇÃO
Lei Complementar n. 95/98,
art. 8º – A vigência da Lei será
indicada de forma expressa e
de modo a contemplar prazo razoável, para que dela se tenha
amplo conhecimento, reservada a cláusula "entra em vigor na
data da sua publicação" para as
leis de pequena repercussão. §
1º – A contagem do prazo para
entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância
far-se-á com a inclusão da data
da publicação e do último dia do
prazo, entrando em vigor no dia
subsequente à sua consumação.
1.12
A LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO
DIREITO BRASILEIRO
1.12.1. A Interpretação da Norma Jurídica
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei n.
12.376/2010), antiga Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n.
4.657/1942), embora pequena, com apenas dezenove artigos, apresenta
diversas regras destinadas a orientar o operador e aplicador do direito:
LINDB
Arts. 1º e 2º
Vigência das normas
Art. 3º
Obrigatoriedade das normas
Art. 4º
Integração da norma
Art. 5º
Interpretação da norma
Art. 6º
Aplicação da norma no tempo
Arts. 7º a 19
Aplicação da norma no espaço
A LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
aplica-se na orientação de todas as normas do ordenamento jurídico
brasileiro, seja no âmbito Privado ou Público, inclusive no Direito Internacional.
1.12.2. Prazos para Vigência de Lei
Os prazos para vigência de uma lei são em regra contados a partir
da sua publicação oficial.
Ao lapso temporal entre a publicação e a vigência de uma lei chamamos de vacatio legis. A vacatio legis é o prazo razoável para que ninguém alegue a ignorância da lei. Durante a vacatio, a lei existe mas não é
obrigatória, contudo para garantir o seu texto integral, será considerada
vigente retroativamente desde o dia da sua publicação, após exaurido o
lapso da vacatio, conforme esclarece o Art. 8º, § 1º da LC n. 95/98.
O prazo para vigência de uma lei no Brasil é de quarenta e cinco
dias após sua publicação oficial. Admitindo exceção, quando o próprio
texto de lei expressar disposição contrária. Contudo para vigorar no estrangeiro, se aceita a lei, o prazo é de noventa dias a partir da publicação
oficial.
Toda legislação antes de entrar em vigor passa por um processo,
que envolve cinco fases: a) a elaboração; b) a promulgação; c) a publicação; d) a vacatio legis; e e) a vigência.
Se vier a ocorrer nova publicação da lei, desde que ainda não tenha entrado em vigor e mesmo que exclusivamente para correção de
meros erros materiais, sua obrigatoriedade ficará condicionada a novo
período de vacatio, a contar da última publicação. Se a lei corrigida já
38
Direito Civil
estava em vigor, será considerada a versão corrigida e última como lei
nova (LINDB, Art. 1º, § 4º).
VOCABULÁRIO
revogar: é retirar a eficácia da
lei anterior. A lei nova, em regra, revoga a lei velha.
ATENÇÃO
A lei temporária, em regra,
trará expressamente em seu texto
o prazo da sua duração ou da vigência integral.
ATENÇÃO
LINDB:
1.12.3. A Revogação da Lei
Não se tratando de lei temporária, a vigência de uma lei permanece até que outra a modifique ou revogue, este é o princípio da continuidade das leis.
1.12.4. A Vigência Temporária da Lei
Examinando o Art. 2º, caput, da LINDB é possível verificar que
existem dois tipos de leis, as leis de vigência permanente e as leis de vigência temporária. Em regra, todas as leis são de vigência permanente.
No entanto, serão de vigência temporária quando expressamente delas
constar: a) prazo de duração; b) condição resolutiva; ou c) se é alcançada
sua finalidade. Nestes casos ocorre a caducidade da norma, quando a
circunstância torna a norma sem eficácia.
1.12.5. Da Extensão da Revogação da Lei
A revogação da lei se divide em duas classes, a primeira refere-se à
sua extensão e a segunda quanto à forma de execução.
A revogação quanto à I) extensão, pode ser: a) total ou b) parcial.
A revogação total, também denominada por ab-rogação, configura-se quando o texto da lei nova sepulta por completo a vigência do
texto anterior, sem qualquer ressalva.
A revogação parcial, também chamada de derrogação, afeta apenas
parcialmente a norma anterior, permitindo que ainda vigore parte do
texto legal.
Além das duas situações acima, em que temos a perda de eficácia da
norma jurídica, cumpre salientar também que o Supremo Tribunal Federal pode afastar vigência das leis que julgar inconstitucionais quando
suspensas pelo Senado Federal através do controle difuso de constitucionalidade (art. 52 da CF).
39
– Art. 2º. Não se destinando à
vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou
revogue.
– Art. 2º – § 1º – A lei posterior
revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja
com ela incompatível ou quando
regule inteiramente a matéria de
que tratava a lei anterior.
– Art. 2º – § 2º – A lei nova, que
estabeleça disposições gerais ou
especiais a par das já existentes,
não revoga nem modifica a lei
anterior.
– Art. 4º – Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo
com a analogia, os costumes e os
princípios gerais de direito.
– Art. 5º – Na aplicação da
lei, o juiz atenderá aos fins sociais
a que ela se dirige e às exigências
do bem comum.
– Art. 2º, § 3º – Salvo disposição em contrário, a lei revogada
não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.
– Art. 3º – Ninguém se escusa
de cumprir a lei, alegando que
não a conhece.
VOCABULÁRIO
antinomia: trata-se de conflito de normas. Ocorre quando
duas ou mais normas dispõem
da mesma matéria. Segundo
Maria Helena Diniz, a antinomia
pode ser real ou aparente.
lex derogat legi priori: do latim, lei posterior revoga a lei
anterior.
1.12.6. Da Forma de Revogação da Lei
Quanto à classe de revogação pela forma de II) execução, pode ser:
a) expressa ou b) tácita.
A revogação será expressa quando a lei nova descrever de modo
expresso que revoga a lei anterior, é o que diz a primeira parte do § 1º
do Art. 2º da LINDB.
A revogação de forma tácita exige um maior esforço interpretativo
do aplicador da norma, pois a situação pode apresentar uma antinomia, ou seja, um conflito de normas (antiga e nova), obrigando-o a
adotar certos critérios para a sua solução, como explica Maria Helena
Diniz (DINIZ, Conflito de normas. 2009):
a) critério cronológico – lex derogat legi priori
b) critério hierárquico – lex superior derogat legi inferior, e
c) critério especial – lex specialis derogat legi generali.
a) Critério cronológico, lex derogat legi priori, é aplicável quando a
lei nova for incompatível com a lei anterior ou regule de modo integral
a mesma matéria, como se pode notar da segunda parte do § 1º do Art.
2º da LINDB.
b) Critério hierárquico, lex superior derogat legi inferiori, prevê a
possibilidade de revogação tácita, quando uma lei hierarquicamente inferior cuidar de matéria dita por uma lei de maior grau hierárquico.
Por exemplo: A Constituição Federal revogou de forma tácita diversas
disposições legais de leis infraconstitucionais.
c) Critério Especial – O critério da especialidade ou critério especial, lex specialis derogat legi generali, prevê que a lei especial prevalece
sobre a lei geral, revogando-a. Contudo se a lei nova estabelecer disposições gerais ou especiais, a par das já existentes, não revoga, nem modifica a lei anterior. Isto quer dizer que, se a lei nova nada disser sobre a
conservação do conteúdo existente em lei anterior, e com aquele texto
anterior vier a conflitar sua matéria, poderá ser revogada tacitamente,
pela lei especial, ainda que mais velha (critério da especialidade). A coexistência de normas tratando do mesmo assunto é possível, desde que
não exista entre elas incompatibilidade. Quando esta surgir, competirá
ao aplicador da norma aplicar os critérios para afastar a antinomia.
1.12.7. As Antinomias
Os conflitos de normas, que recebem o nome de antinomias, possuem então três critérios para sua solução, conforme já estudamos no
que era tratado quanto à revogação tácita da norma. Os critérios cronológico, hierárquico e especial obedecem a mesma lógica já exposta. A
antinomia aparente é um conflito que se resolve pelos critérios de modo
simples, não trazendo maiores dificuldades. Enquanto a antinomia real
não se resolve tão somente pela aplicação dos critérios, sendo necessário
aplicar a técnica de integração para lacunas da lei. A antinomia será de
40
Direito Civil
primeiro grau, quando um critério for suficiente à resolução do conflito
e de segundo grau quando envolver mais outro.
1.12.8. A Repristinação da Lei
A repristinação da lei é o fenômeno que permitiria devolver o estado anterior de vigência de uma lei já revogada. Embora nosso ordenamento não permita que uma lei revogada restaure sua vigência, se a lei
nova fizer expressa menção à lei revogada (note o art. 2º, § 3º, o qual diz
"salvo o contrário...") para que o efeito repristinatório se aplique, isto
será possível.
1.12.9. A Obrigatoriedade das Normas
A vacatio legis, que se inicia com o período de publicação de uma
lei, após seu longo trâmite legislativo, tem a função de dar amplo conhecimento da lei, sendo que a partir de sua vigência a lei opera erga omnes
Como se percebe, não se pode alegar ignorância da lei, pois ela
possui eficácia global, pelo princípio da obrigatoriedade. Entretanto, de
acordo com Rene Gustavo Nicolau, quando excepcionalmente em casos
nos quais a ignorância ou errônea compreensão da lei ocorrer, poderá a
pena deixar de ser aplicada, nos moldes do que dispõe o Art. 8º do DL n.
3.688/41 (Lei das Contravenções Penais). Exemplo: emissão de fumaça
que impede o motorista de ver a placa de trânsito ou semáforo.
1.12.10. Da Integração da Norma Jurídica
Conforme pudemos observar, o sistema jurídico para solução dos
conflitos judiciais privados é misto sendo, portanto, possível o uso das
técnicas legislativas de integração da norma jurídica. Estudamos a aplicação das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados, além
da influência dos princípios constitucionais (princípio da dignidade da
pessoa humana, princípio da solidariedade e princípio da isonomia), da
função social e dos princípios norteadores do Código Civil (eticidade,
socialidade e operabilidade), para auxílio do magistrado na decisão do
caso concreto.
Nosso ordenamento jurídico não permite ao juiz invocar a cláusula
non liquet, deste modo, está o magistrado obrigado a julgar todos os
pedidos que receber, ainda que não exista norma jurídica que discipline a matéria. Caso não exista norma (lacuna) ou persistindo dúvida, o
sistema se abre para que o aplicador lance mãos das técnicas de integração da norma, até que, após ponderar, decida, julgando o caso concreto.
Desse modo, o juiz cria através de seu julgamento a norma para aquele
caso, colmatando a lacuna, afastando o conflito, e a coisa julgada, quando emergir, fecha o sistema em relação àquela disputa específica.
A atividade de interpretação das normas jurídicas se destina a fornecer ao juiz subsídios para auxiliá-lo no julgamento da causa, mesmo
quando estiver diante de uma lacuna da lei ou de um conflito de normas.
41
VOCABULÁRIO
Non liquet, do latim, não está
claro. A cláusula non liquet
era muito comum no período
do Estado Liberal, em que se
acreditava que o ordenamento jurídico se resumia no direito
positivado. Era invocado pelos
juízes de tribunais para que estes pudessem deixar de julgar
quando um caso trouxesse
questões obscuras ou sem disciplina clara na lei. Esta cláusula
foi afastada do ordenamento
brasileiro.
VOCABULÁRIO
Analogia é o estudo das semelhanças. No direito a Jurisprudência se compõe de decisões
dos Tribunais referentes a casos
semelhantes. Portanto, quando
a lei dispõe sobre analogia, podemos entender que se trata
de julgamentos análogos sobre
a mesma matéria em estudo.
Temos vários recursos a auxiliarem o magistrado nesta tarefa de
integração da norma, inicialmente o juiz dispõe, como vimos, dos princípios constitucionais, das cláusulas gerais, dos conceitos jurídicos indeterminados e da função social. Não sendo bastantes, seguirá ao estudo
das fontes do direito. Vamos recordar as fontes diretas e indiretas estudadas no início desta obra, conforme ilustração aqui repetida:
1.12.11. As Lacunas da Norma Jurídica
Como o juiz está impedido de deixar de julgar o caso concreto,
quando a lei for omissa, ou seja, existindo uma lacuna da norma, ele
recorrerá as fontes do direito, na seguinte ordem de preferência: a) analogia; b) costumes e c) princípios gerais do direito. Sem dificuldade se
observa pela ilustração abaixo em comparação com a anterior que as
fontes do direito são o recurso primário para integração da norma, em
especial, a jurisprudência (analogia), o costume e os princípios gerais
do direito.
Quando vimos as fontes do direito observamos que a Lei é fonte
primária, e o costume fonte secundária, além de outras fontes supletórias como a Jurisprudência, a Doutrina e os Princípios Gerais do
Direito.
Para aplicação da analogia, é necessário: 1) a constatação da existência da lacuna; 2) a semelhança entre o caso concreto e outra lei ou
julgado; e 3) os fundamentos jurídicos e lógicos devem ser semelhantes ao caso em concreto. Convém salientar que é possível recorrer a
analogia legislativa, situação na qual se busca reger por legislação
diversa caso semelhante, ou analogia jurisprudencial, na qual o juiz
poderá se socorrer de julgados de questões semelhantes analisados
pelos tribunais.
Os costumes são fonte supletória ou secundária, tratam da prática
uniforme, conhecida de todos quanto a determinado ato. Podem ser:
42
Direito Civil
a) Praeter legem – quando aplicáveis subsidiariamente pela omissão de
lei, e b) Secundum legem – quando o próprio legislador determinar. Os
costumes não são aplicáveis quando forem contra legem. Isto porquê a
aplicação dos costumes quando a lei estiver em desuso pode configurar
abuso de direito (art. 187 do CC).
Os princípios gerais do direito, como já vimos quando estudamos as fontes do direito na introdução desta obra, são regras incutidas na consciência dos povos, universalmente aceitas, resumidas em
três categorias: a) viver honestamente – honeste vivere; b) dar a cada
um o que é seu – suum cuique; e c) não lesar o próximo – suun cuique
tribuere.
A equidade é a atividade do aplicador da lei que traz a ideia de
distribuição de modo justo, proporcional e razoável, sob análise do caso
concreto. Embora não se qualifique como elemento de integração da
norma, ocupa espaço para tal finalidade sempre que a própria lei fizer
sua previsão10. Se a lei não expressar sua aplicação para este fim a equidade não deverá ser aplicada11.
1.12.12. Da Interpretação da Norma Jurídica
Interpretar consiste em descobrir sua essência, a ratio legis. Para que
o juiz possa aplicar a lei atendendo aos seus fins sociais e às exigências
do bem comum é necessário que proceda à sua interpretação quanto à
origem, quanto ao método ou quanto ao resultado, considerando seu
contexto social contemporâneo, em harmonia com todo o ordenamento
jurídico, levando em conta o caso concreto através das provas lícitas nele
contidas, valorando-as, e, ao final decidindo por sentença, a pacificação
do conflito, não violando direito alheio12.
Portanto, a aplicação e a interpretação da norma jurídica pelo magistrado se dará quanto: 1) à origem, 2) ao método ou 3) ao resultado.
1) Quanto à origem, pode ser: a) Autêntica – quando decorre
do próprio legislador, pois seu sentido é explicado por outra lei; b)
Doutrinária – quando sua interpretação vier da doutrina, das obras
científicas, e c) Jurisprudencial – quando proveniente da jurisprudência dos tribunais.
2) Quanto ao método, pode ser: a) Gramatical – quando buscar
auxílio nas regras da língua; b) Lógica – quando procura reconstituir o
pensamento do legislador; c) Histórica- busca o momento da criação
da norma; d) Sistemática – quando visa harmonizar o texto ao sistema
10. CPC, Art. 127. O Juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei.
11. Nota Explicativa: O legislador desejou limitar a aplicação da equidade para
evitar sua evocação pelo magistrado em casos nos quais ela não é devida.
12. LINDB, Art. 5º – Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela
se dirige e às exigências do bem comum.
43
VOCABULÁRIO
Desuso e dessuetude são palavras sinônimas.
Ratio Legis, o espírito da lei, seu
objeto, sua razão de existir, seu
sentido e extensão.
jurídico como um todo; e e) Teleológica – quando se apega aos fins para
os quais a lei foi editada.
3) Quanto ao resultado, pode ser: a) Declaratória – quando se
limita a dizer qual é o sentido da norma; b) Restritiva – quando se restringe ao sentido da lei, por ter o legislador dito mais do que deveria
dizer; e c) Ampliativa – quando se amplia a interpretação do sentido da
lei, por ter o legislador dito menos do que deveria dizer.
1.12.13. Da Aplicação da Norma no Tempo
A lei visa atender às situações que ocorrem durante a sua vigência, ou seja, projeta-se ao futuro. Em solução às dúvidas que venham a
surgir, em razão da intertemporalidade, a lei obedece aos critérios das
disposições transitórias e da irretroatividade.
No Código Civil, encontraremos as disposições finais e transitórias,
nos artigos 2.028 a 2.046. Trata-se de critérios que visam facilitar a aplicação da norma no tempo, a fim de evitar conflitos entre normas.
Como vimos, existirá um conflito de normas (antinomia) quando
duas ou mais leis regularem a mesma relação jurídica.
Para compreensão da aplicação da norma no tempo, o estudo da
noção básica do direito intertemporal se faz necessário. Este divide as
relações jurídicas em três hipóteses de ocorrências: a) A retroatividade da lei nova; b) O efeito imediato da lei; e c) Se dá a sobrevida da
lei antiga.
A lei em regra não retroage a fatos anteriores à sua vigência13, a não
ser quando ela formalmente expresse em seu texto esta finalidade e não
ofenda ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada. Também é possível que a lei retroaja em benefício do réu no direito penal14.
A lei nova, conforme já estudamos, produz efeitos imediatos após
seu período de vacatio legis, aplicando-se aos casos passados e futuros.
13. Nota Explicativa: O direito brasileiro aplica o princípio da irretroatividade
da lei. Deste modo a lei vigente aplica-se a partir de sua entrada em vigor a todos
os casos presentes e futuros.
14. Nota Explicativa: Princípio da retroatividade benéfica penal, na Constituição Federal de 1988, Art. 5º, XL, que dispõe que: “A lei penal não retroagirá,
salvo para beneficiar o réu.”
44
Direito Civil
A sobrevida ou manutenção dos efeitos de legislação anterior se
refere a três situações: a) ato jurídico perfeito; b) direito adquirido; e
c) coisa julgada.
A lei antiga continuará emanando seus efeitos sobre relações jurídicas definidas pelas hipóteses acima descritas, em razão de terem se
consubstanciado de modo pleno antes da vigência da lei nova.
a) Ato jurídico perfeito – se consumou de modo cabal anteriormente à lei nova15;
b) Direito adquirido – se incorporou ao patrimônio de seu titular ; e
16
c) Coisa julgada – decisão judicial irrecorrível17.
1.12.14. Da Aplicação da Norma no Espaço
Nos artigos 7º a 19 da LINDB encontraremos a descrição da aplicação da norma no espaço. Trata-se das disposições de Direito Internacional Público e Privado.
O legislador dispõe que é o domicílio da pessoa, em ânimo definitivo, que determinará as regras sobre o início e o fim da personalidade, o
nome, a capacidade e os direitos de família18.
Quanto ao casamento existem algumas regras específicas. Conforme abaixo descrevemos:
Quanto ao local onde é celebrado o casamento, se a questão judicial busca arguir impedimentos ou questões ligadas às formalidades
do casamento, pouco importará se os nubentes não são brasileiros; será
competente o Brasil para apurar a questão, afastando-se a regra do foro
de domicílio19.
15. LINDB, Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados
o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 1º. Reputa-se
ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que
se efetuou.
16. LINDB, Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o
ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 2º. Consideram-se
adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer,
como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.
17. LINDB, Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o
ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 3º. Chama-se coisa
julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.
18. LINDB, Art. 7º, caput. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras
sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de
família.
19. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de
família. § 1º. Realizando-se o casamento no Brasil, será aplicada a lei brasileira,
quanto aos impedimentos dirimentes às formalidades da celebração.
45
Considera-se eficaz o casamento brasileiro feito no estrangeiro, ou
vice-versa, perante autoridades diplomáticas ou consulares de ambos os
nubentes20.
Quando se pleitear a invalidade do casamento, e havendo domicílio
diverso entre os nubentes, restará eficaz a lei que viger no lugar do primeiro domicílio conjugal21.
A lei que regerá o regime de bens no casamento, seja legal ou convencional, será aquela vigente no lugar onde forem domiciliados, ou no
local do primeiro domicílio conjugal22.
Quanto aos bens, aplica-se a lei de onde estiverem localizados, ou
a lei do domicílio de seu proprietário quando este estiver de transporte
para outro lugar23.
As obrigações se cumprirão no local onde foram constituídas24.
Ainda restam alguns poucos artigos os quais não são indispensáveis
ao estudo proposto.
20. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre
o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. § 2º. O casamento de estrangeiros poderá celebrar-se perante autoridades
diplomáticas ou consulares do país de ambos os nubentes.
21. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre
o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. § 3º. Tendo os nubentes domicílio diverso, regerá os casos de invalidade do
matrimônio a lei do primeiro domicílio conjugal.
22. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras
sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de
família. § 4º. O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em
que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio
conjugal.
23. LINDB, Art. 8º. Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados. § 1º. Aplicar-se-á a
lei do país em que for domiciliado o proprietário, quanto aos bens móveis que
ele trouxer ou se destinarem a transporte para outros lugares.
24. LINDB, Art. 9º. Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do
país em que constituírem.
46
2
A pessoa natural
CURIOSIDADE
O estudo da origem da palavra pessoa demonstra que ela
deriva do latim persona, que significa indivíduo, seja homem ou mulher, a personagem. Personagem,
pois a palavra deriva da atuação
dos atores do teatro grego da antiguidade, os quais emprestavam
a voz para dar vida a seus personagens fictícios, sempre representados por máscaras que eram utilizadas para ocultar a identidade
de quem os animava. Então, sob
a atuação sonora que dava vida
aos personagens, surgiu o conceito de pessoa. Pessoa é aquela
que ocupa papel ou papéis na
sociedade, sendo que na acepção jurídica do termo, pessoa é
todo ente físico ou moral, suscetível de direitos e obrigações, sinônimo de sujeito de direitos e sujeito
da relação jurídica.
VOCABULÁRIO
Concepto: concebido, em processo gestacional.
2.1
A PESSOA NATURAL
A etimologia da palavra pessoa indica que os indivíduos possuem
um papel a representar na sociedade. Este papel se expressa pela personalidade de cada ser. Pessoa natural é o nome que o direito civil atribui ao ser da espécie humana, considerado enquanto sujeito de direito
e obrigações1. Para ser pessoa natural, basta existir, enquanto ser da espécie humana.
2.2
A PERSONALIDADE JURÍDICA
Ao desempenho deste papel na sociedade, que permite à pessoa
humana ser sujeito de direitos e obrigações ou deveres, chamamos de
personalidade civil ou jurídica.
A personalidade civil ou jurídica é a aptidão genérica para ser sujeito de direitos e deveres, aptidão esta que poderá ser exercida a partir
do seu nascimento com vida2 e dura até a sua morte. O simples fato de
nascer, constatado pela oxigenação de seus pulmões, é suficiente a lhe
garantir a personalidade jurídica. Contudo, ainda que não nascido, mas
concebido, vivo e aguardando nascimento no ventre materno, garante-lhe o Estado a proteção da personalidade jurídica, pela qualidade de
nascituro, ser humano concepto.
A existência de vida humana, ainda que em estado uterino, é o fato
jurídico que torna o ser apto a ser considerado sujeito de direitos e obrigações na ordem civil. Tal aptidão da pessoa natural abre condições para
que se estabeleçam as relações jurídicas com outros seres semelhantes a
si mesmo (sociedade).
CURIOSIDADE
A nidação ocorre quando se
dá depósito do óvulo fecundado
no útero da mulher. Após a fecundação do óvulo nas trompas, ele
se movimenta até o endométrio,
passando a fixar-se nesta espécie de parede do útero, permitindo que ocorra a gravidez. Neste
momento, desde que possível ser
constatada a gravidez, no entendimento do STF, haveria um
ser potencial, digno de proteção
como pessoa humana.
2.3
A NATUREZA JURÍDICA DO NASCITURO
O nascituro é o ser já concebido, aquele que está por nascer. Nascituro é o ser humano em estágio fetal que se mantém vivo e ligado à
sua mãe, aguardando que ela lhe dê à luz. A potencialidade do seu nascimento com vida deve ser certa, fato que pode ser constatado através
de exames médicos. Não se deve confundir com nascituro, o natimorto,
pois enquanto o primeiro permanece vivo com a expectativa de vida
1. Código Civil, Art. 1º – Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem
civil.
2. Código Civil, Art. 2º – A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
48
Direito Civil
fora do útero, este último já se acha morto, embora ainda ligado ao útero
materno. O natimorto não tem expectativa de deixar o útero materno
com vida, pois o óbito ocorre durante o seu período gestacional.
Descreve claramente o Art. 2º do Código Civil que: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo,
desde a concepção, os direitos do nascituro.”
Como se pode notar pela nossa atual lei civil, a condição de nascituro é que marca o início à aquisição da personalidade civil ou jurídica das pessoas naturais, mas o fato da concepção também é relevante
ao direito. Pois em torno destas peculiaridades, que tornam complexa
a resolução da questão quanto à personalidade jurídica do nascituro, a
doutrina desenvolveu algumas teorias, das quais aqui descreveremos as
três mais recorrentes:
a) TEORIA NATALISTA OU NATIVISTA
A teoria natalista ou nativista defende que o ser humano adquire
personalidade civil ou jurídica somente a partir do seu nascimento com
vida, antes disto o que se tem é mera expectativa de direito. Esta teoria está incorporada ao Direito Civil brasileiro desde o Código Civil de
1916, na ocasião defendida por Silvio Rodrigues, Caio Mario da Silva Pereira, Vicente Ráo e Eduardo Espínola. Para os natalistas o feto enquanto
não nascido é apenas uma extensão do corpo de sua mãe.
Esta teoria também foi adotada em parte pelo Supremo Tribunal
Federal, ao julgar o emblemático caso das células-tronco embrionárias.
Quando do julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade
n. 3.5103, o então Ministro Ayres Brito consignou que a Constituição
Federal de 1988 se refere sempre a dignidade da pessoa humana e aos
direitos da pessoa humana, bem como aos direitos e garantias individuais. No entendimento do Excelentíssimo Ministro, ao lidar com referidas
terminologias o Legislador Constituinte teria deixado claro se tratar de
direitos do indivíduo-pessoa; deste modo, não haveria dúvidas de que a
intenção era proteger um estágio da vida humana, mas a vida que já é
própria de uma pessoa concreta, ou seja, de um indivíduo já personalizado. Tal expectativa, segundo o Ministro Ayres Brito, não se aplicaria
aos embriões excedentários (dos quais seriam colhidas as células-tronco
para fins de pesquisa), pois ainda não chegaram a ser inseminados no
útero materno. Concluiu assim o STF que somente se poderia considerar pessoa humana aquele ser humano concepto, alimentado e vivo
intrauterinamente. Com este entendimento, o STF afastou o entendimento narrado pela teoria concepcionista.
Como se pode observar, para os natalistas ou nativistas, a lei apenas
protege os direitos que o nascituro adquirirá quando nascer com vida,
3. BRASIL, STF. Adin n. 3510. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=611723&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor%20
ADI%20/%203510>. Acesso em 30 mar 2015.
49
COMENTÁRIO
Conforme Maria Helena Diniz,
no direito civil francês e holandês
não basta o nascimento com
vida; é necessário que o recém-nascido seja viável, isto é, apto
para a vida. O direito espanhol
exige que o recém-nascido deve
ter a forma humana e viver pelo
menos 24 horas, para que possa
adquirir a personalidade. No direito português, se condicionava à
vida à figura humana. No argentino e húngaro, a concepção já
dá origem à personalidade. No
direito civil brasileiro, afastaram-se
todas estas hipóteses para evitar
dúvidas, condicionando ao nascimento com vida (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, Teoria Geral do Direito, 1º Vol.
22ª Ed. Saraiva, p. 191-192).
CURIOSIDADE
Células-tronco são
células com
ca­pa­cidade
de regeneração, capazes de originar tipos especializados de células, que formam
diferentes tecidos do corpo humano. As células-tronco embrionárias são as células-tronco dos
embriões que excedem (embriões excedentários) às tentativas
de inseminação artificial. O STF foi
confrontado a decidir se permitia
ou não o uso das células-tronco
embrionárias dos embriões fecundados que se encontravam congelados em laboratórios. A Lei de
Biossegurança estava em questão, para se saber se haveria vida
humana digna de proteção naqueles embriões, ou se poderiam
ser utilizados para a pesquisa.
ATENÇÃO
I JORNADA DE DIREITO CIVIL
Enunciado n. 1
Art. 2.º: a proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto no que concerne
aos direitos da personalidade, tais
como nome, imagem e sepultura.
sendo estes descritos de modo restrito (direito à vida, direito à herança,
posse).
b) TEORIA CONCEPCIONISTA
Para os concepcionistas, é possível o ser humano adquirir a personalidade civil ou jurídica desde a concepção, ou seja, antes de nascer.
A lei ressalva em seu benefício alguns direitos patrimoniais originados
de herança, doação ou legados, os quais ficarão condicionados ao seu
nascimento com vida. Ao contrário do que presume a teoria da personalidade condicional.
Existem diversas situações que demonstram conceder direitos da
personalidade ao nascituro enquanto concepto, os quais passaremos a
elencar alguns: 1) o direito ao reconhecimento de paternidade4; 2) o direito à curatela5; 3) ser donatário6; 4) ter o direito à herança7; 5) direito
à vocação hereditária por indicação em testamento (prole eventual)8;6)
direito à indenização9; 7) direito aos alimentos10; 8) proteção criminal
quanto à vida, entre outros11.
São inúmeros os casos concretos através dos quais podemos notar que o posicionamento da lei e da jurisprudência dão o sentido de
que o nascituro tem o direito da personalidade jurídica ou civil reco-
4. Código Civil, Art. 1.609 – O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito: I – no registro do nascimento; II – por escritura
pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; III – por testamento,
ainda que incidentalmente manifestado; IV – por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e
principal do ato que o contém. Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar
descendentes.
5. Código Civil, Art. 1.779 – Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer
estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar.
6. Código Civil, Art. 542 – A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo
seu representante legal.
7. Código Civil, Art. 1.798 – Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já
concebidas no momento da abertura da sucessão.
8. Código Civil, Art. 1.799 – Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo
testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;
9. CONJUR. STJ concede indenização para nascituro por danos morais. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2008-jun-19/stj_concede_indenizacao_nascituro_danos_morais>. Acesso em 31 mar 2015.
10. Lei de Alimentos Gravídicos. Lei n. 11.804/2008, Art. 6.º – Convencido
da existência de indícios da paternidade, o juiz fixará alimentos gravídicos que
perdurarão até o nascimento da criança, sopesando as necessidades da parte
autora e as possibilidades da parte ré. Parágrafo único. Após o nascimento com
vida, os alimentos gravídicos ficam convertidos em pensão alimentícia em favor
do menor até que uma das partes solicite a sua revisão.
11. Código Penal, Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que
outrem lho provoque: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
50
Direito Civil
nhecido pelo simples fato de ter sido concebido. E ainda que não fosse nascituro, se estivesse morto no útero materno (natimorto), ainda
assim possuiria o resguardo de alguns direitos da personalidade (nome,
imagem e sepultura).
c) TEORIA DA PERSONALIDADE CONDICIONAL
Embora concorde que a personalidade jurídica do nascituro se inicie a partir da concepção, a teoria da personalidade condicional, conhecida como teoria mista, apresentada pela jurista Maria Helena Diniz,
entende que a personalidade do nascituro assume uma condição suspensiva. Tal condição suspensiva ficaria condicionada ao nascimento
com vida do nascituro para sua implementação, e, nascendo este com
vida, retroagiriam os efeitos da personalidade jurídica desde a concepção. Para esta teoria, o nascituro é uma “pessoa condicional”, e por este
motivo a lei lhe garante expectativas de direitos, que dependem do seu
nascimento com vida para que se convalidem.
Deste modo, os direitos patrimoniais do nascituro na teoria da personalidade condicional devem ficar resguardados por seu curador até
o seu nascimento com vida, enquanto os direitos da personalidade são
tutelados desde a concepção.
Concluído o estudo quanto à natureza jurídica e as teorias da personalidade do nascituro, observamos que se torna sujeito de direitos e
deveres a pessoa natural, que é o ser humano que nasce com vida ou
enquanto concepto for representado.
2.3.1.A Capacidade Civil e suas Classificações
Para que o sujeito de direitos possa exercer os poderes inerentes à
personalidade jurídica ou civil, necessita do que o direito chama de capacidade civil. Chamamos de capacidade civil, ou capacidade jurídica,
a medida ou proporção do exercício da personalidade jurídica de cada
pessoa, que pode ser classificada em: a) capacidade de direito; b) capacidade de fato; c) capacidade plena; ou d) capacidade limitada.
a) Capacidade de direito é a capacidade que todas as pessoas possuem, não sendo necessário o implemento de nenhuma condição para
aquisição ou gozo de direitos, basta nascer com vida para possuir capacidade de direito;
b) Capacidade de fato exige uma aptidão descrita na lei, é aquela
que se adquire quando atingida a maioridade civil, aos dezoito anos de
idade completos, ou por escritura de emancipação, passando a poder
exercer por si mesmo todos os atos da vida civil;
c) Capacidade plena se identifica presente quando a pessoa possui
tanto a capacidade de direito quanto a de fato ao mesmo tempo;
d) Capacidade limitada se dá quando uma pessoa possui a capacidade de direito, mas não possui a capacidade de fato.
Como podemos notar, a capacidade civil está ligada à personalidade
jurídica e garante à pessoa o exercício de direitos e obrigações na ordem
51
civil. Contudo, sua ausência também provoca efeitos no ordenamento
jurídico, configurando restrições ao exercício de tais poderes, sendo necessário identificarmos suas hipóteses de incidência.
2.4
A INCAPACIDADE. AS RESTRIÇÕES DE
DIREITO
A incapacidade nada mais é do que a restrição ao exercício dos
direitos e obrigações da pessoa, e pode ser classificada em: a) absoluta
ou b) relativa.
a) Incapacidade absoluta: A prática de um ato por pessoa absolutamente incapaz acarreta a sua nulidade12, pois se trata de proibição
total. Desse modo, para que o absolutamente incapaz possa praticar
algum ato civil, ele deverá ser representado por outra pessoa capaz.
São absolutamente incapazes aqueles descritos no Art. 3.º do Código
Civil.
b) Incapacidade relativa – A lei permite aos relativamente capazes13 que pratiquem os atos da vida civil, desde que assistidos; se praticarem atos sozinhos, o ato será anulável. São relativamente incapazes
aqueles elencados no Art. 4.º do Código Civil.
2.5
O SUPRIMENTO E A CESSAÇÃO DA
INCAPACIDADE CIVIL
2.5.1.CessaçãodaIncapacidadeCivil
A incapacidade civil cessará de modo natural quando a pessoa
adquirir a maioridade civil, completando dezoito anos14, a partir de
quando exercerá a capacidade civil de fato e de direito (capacidade
civil plena).
12. Código Civil, Art. 3.º – São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de dezesseis anos; II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para
a prática desses atos; III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem
exprimir sua vontade.
13. Código Civil, Art. 4.º – São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I – os maiores de dezesseis anos e menores de dezoito anos;
II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental,
tenham o discernimento reduzido; III – os excepcionais, sem desenvolvimento
mental completo; IV – os pródigos. Parágrafo único – A capacidade dos índios
será regulada por legislação especial.
14. Código Civil, Art. 5.º – A menoridade cessa aos dezoito anos completos,
quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
52
Direito Civil
2.5.2.Suprimento da Incapacidade Civil
O suprimento da incapacidade civil ocorrerá por meio da emancipação, sendo que existem três formas de emancipar a capacidade civil da
pessoa natural: a) Emancipação voluntária; b) Emancipação judicial; e
c) Emancipação legal.
A) EMANCIPAÇÃO VOLUNTÁRIA
Esta emancipação ocorre quando os pais, por ato voluntário, reconhecem que o filho adquiriu maturidade suficiente para zelar por sua
pessoa e suas posses, seus bens, não necessitando mais da proteção pelo
Estado na qualidade de incapaz. Esta espécie de emancipação exige que
os pais sejam titulares do poder familiar e é ato unilateral de cada um
deles, lavrado obrigatoriamente por escritura pública, produzindo efeitos apenas após o registro15. Se um dos pais discordar, deverá se buscar a
outorga daquele que se nega por suprimento judicial16.
B) EMANCIPAÇÃO JUDICIAL
Quando completados dezesseis anos, torna-se possível a emancipação da pessoa natural, desde que ouvido o tutor em favor do tutelado17.
Também condicionada a escritura pública e registro para produzir efeitos (CC, Art. 9º, II).
C) EMANCIPAÇÃO LEGAL
A lei descreve determinados fatos em a pessoa natural supre sua incapacidade civil: a) casamento; b) exercício de emprego público efetivo;
c) colação de grau em curso de ensino superior; e d) abertura de estabelecimento civil ou comercial ou relação de emprego, desde que possua
economia própria. Independe de escritura pública e registro, surtindo
efeitos a partir do dia do fato jurídico.
2.5.3. Extinção da Personalidade Jurídica
Extingue-se a personalidade jurídica da pessoa natural quando esta
vier a morrer. A morte da pessoa natural pode ser real ou presumida.
15. Código Civil, Art. 9º – Serão registrados em registro público: I – os nascimentos, casamentos e óbitos; II– a emancipação por outorga dos pais ou por
sentença do juiz;
16. Código Civil, Art. 1.631 – Durante o casamento e a união estável, compete o
poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá
com exclusividade. Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício
do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução
do desacordo.
17. Código Civil, Art. 5º – A menoridade cessa aos dezoito anos completos,
quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil. Parágrafo
único. Cessará, para os menores, a incapacidade: I – pela concessão dos pais, ou
de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o
menor tiver dezesseis anos completos;
53
VOCABULÁRIO
morte cerebral ou encefálica:
quando por laudo médico,
atesta-se que a atividade neural da pessoa não possui mais
condições de reagir.
A morte real ocorre quando cessam as atividades cardíacas ou respiratórias da pessoa, ou quando se dá a morte cerebral ou encefálica.
A personalidade jurídica da pessoa natural também se extingue
quando ocorre a morte presumida, a qual estudaremos logo à frente,
após o instituto da ausência.
2.6
O NOME CIVIL, O ESTADO CIVIL E O
DOMICÍLIO CIVIL
2.6.1.OsModosdeIndividualizaçãodaPessoa
Natural
Para que o sujeito de direitos e deveres seja identificável, torna-se
imprescindível que exista segurança quanto aos modos pelos quais ele
poderá ser encontrando na sociedade. Os principais elementos de individualização da pessoa natural são: a) o nome civil; b) o estado civil; e
c) o domicílio civil.
2.6.2. O Nome Civil
Conforme já estudamos, o homem é um ser gregário, e por necessitar viver em sociedade torna-se imprescindível que seja possível a
individualização para identificar a cada pessoa como titular de direitos
e deveres na sociedade. Os elementos fundamentais de individualização
do homem civil, são o nome, o estado civil e o domicílio.
Toda pessoa natural tem direito à identidade civil, e o nome civil
ocupa o relevante papel de tornar cada pessoa um ser único, integrando ao nome civil sua personalidade pessoal, que permanece viva
durante toda sua existência, e, após a morte, indicando suas origens e
família. O nome civil é um direito da personalidade da pessoa natural.
2.6.3.AClassificaçãodoNomeCivil
A identidade civil, segundo Silmara Juny Chinellato, logo se percebe pelo nome civil da pessoa natural, e se divide ou se classifica em:
pessoal, familiar e profissional, sendo que no âmbito pessoal o nome
civil tem grande relevância, pois é considerado entre os povos mais primitivos como sendo um direito natural. O nome civil é composto por
duas partes, sendo mencionado pelo Código Civil (Código Civil, Lei n.
10.406/2002) em “prenome” e “sobrenome”18.
O direito ao nome é o primeiro da personalidade e tem garantia
constitucional. A República Federativa garante aos nascidos no Brasil o
18. Código Civil, Art. 16 – Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.
54
Direito Civil
nome como identidade civil, isentando de custo o seu registro de nascimento, obrigando os familiares a efetuarem esse documento.
Antes de concluirmos de modo visual a classificação sugerida por
Silmara Juny Chinellato, conforme descrito acima (pessoal, familiar e
profissional) vamos estudar a composição do nome como meio de identidade civil da pessoa natural.
2.6.4. A Composição do Nome Civil
A identificação civil possui como principal finalidade dar segurança jurídica à sociedade, na medida em que não deixa dúvidas quanto à
pessoa natural, facilitando desse modo ao Estado punir os autores de
crimes, bem como aos terceiros interessados (credores), promoverem
ações judiciais para tutelar e salvaguardar os seus interesses.
O nome civil é regido pelo princípio da imutabilidade, o que implica concluir de modo geral que o sistema jurídico não admite requerimentos de mudança do nome, sem uma justificativa legal plausível, em
casos excepcionais, como veremos neste estudo.
A composição do nome obedece, portanto, a um padrão preestabelecido no direito civil. É composto de duas partes distintas: o prenome
e o sobrenome.
O prenome ou nome próprio é o primeiro nome que a pessoa possui, aquele que é dado ao nascer por escolha dos seus pais. Por exemplo:
José da Silva, prenome: José. O prenome pode ser simples ou composto;
no exemplo referido o prenome é simples, pois só existe uma palavra
para indicar o prenome; quando houver mais de uma palavra, teremos
o prenome composto. Por exemplo: José Carlos da Silva, prenome: José
Carlos.
É importante frisar que na escolha do nome pelos pais, a Lei de
Registros Públicos (Lei n. 6.015/73) proíbe que se utilizem de nomes
pejorativos, vexatórios ou ridículos19.
Sobrenome, cognome ou patronímico é o apelido de família,
transmitido na identificação do parentesco sucessório. Por exemplo:
José da Silva, sobrenome: da Silva.
Além destes nomes, temos ainda outros que auxiliam a composição
do nome e maior certeza na identidade civil, são eles o agnome e o nome
vocatório.
19. Lei n. 6.015/73, Art. 55. Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial lançará adiante do prenome escolhido o nome do pai, e, na falta,
o da mãe, se forem conhecidos e não o impedir a condição de ilegitimidade,
salvo reconhecimento no ato. Parágrafo único. Os oficiais do registro civil não
registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo seus portadores. Quando os pais não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão
do Juiz competente.
55
JURISPRUDÊNCIA
Boletim Informativo n. 245 do STJ
TERCEIRA TURMA
RETIFICAÇÃO. REGISTRO CIVIL.
A jurisprudência deste Superior Tribunal autoriza a alteração
do nome civil quando o nome que
a pessoa deseja adotar é aquele
pelo qual ela é conhecida no seu
meio social ou quando a pessoa
quer acrescer ou excluir sobrenome de genitores ou padrastos.
Na espécie, o recorrente não é
conhecido no meio social pelo
prenome que pretende acrescer.
Ademais, o Tribunal a quo reconheceu, com base nas provas,
que o recorrente não se expõe
a circunstâncias vexatórias e de
constrangimento em razão de homônimos existentes. Assim a Turma
não conheceu do recurso. Precedentes citados: REsp 538.187-RJ,
DJ 21/2/2005; REsp 146.558-PR,
DJ 24/2/2003; REsp 213.682-GO,
DJ 2/12/2002; REsp 284.300-SP,
DJ 9/4/2001, e REsp 66.643-SP, DJ
9/12/1997. REsp 647.296-MT, Rel.
Min. Nancy Andrighi, julgado em
3/5/2005.
O agnome serve para diferenciar os membros da mesma família
que possuam o mesmo nome; eles são inseridos ao final da composição
nominal sob a referência de: Filho, Júnior, Neto, Sobrinho, ou ainda por
números ordinais: Primeiro, Segundo, Terceiro, etc. Por exemplo: José
da Silva Júnior, agnome: Júnior.
O nome vocatório ou profissional é a abreviação do nome completo da pessoa, que visa facilitar a identificação. Por exemplo: Marco
Aurélio Mendes de Farias Mello, vocatório: Marco Aurélio (Ministro
do STF). Não se deve confundir o nome vocatório ou profissional com
alcunha ou apelido, estes últimos são conhecidos como variações de
cognome, que são formas pejorativas ou afetivas de se identificar uma
pessoa.
2.6.5.DaAlteraçãodoNomeCivil
A regra geral que subsiste quanto à alteração do nome civil, como
vimos, baseia-se no princípio da imutabilidade do nome civil. Contudo,
este princípio não é absoluto. A possibilidade de alteração do nome civil mostra-se viável quando demonstrado de modo claro e específico o
motivo que fundamenta o pedido. De acordo com a orientação do Superior Tribunal de Justiça, a motivação para alteração do nome é legítima
quando a pessoa: a) deseja acrescer ou excluir sobrenome de genitores
ou padrastos; b) é conhecida no meio social por outro prenome, o qual
pretende acrescer, ou c) provar que esteja sofrendo constrangimentos
ou situações ridicularizantes por homônimo depreciativo . Em tais hipótese, a lei autoriza a modificação do nome civil, o que quanto à forma
pode se dar pela via administrativa ou judicial.
Observamos, então, que apenas nos casos excepcionais, como estudaremos adiante, a jurisprudência prefere sempre que ocorra o acréscimo de um prenome ou sobrenome, mantendo-se os demais existentes,
raríssimas vezes excluindo, e substituindo quando necessário. Em todas
as situações, após demonstrada a efetiva motivação necessária no âmbito administrativo ou judicial.
2.6.6.DaModificaçãoAdministrativa
A Lei de Registros Públicos identifica algumas situações nas quais
é possível iniciar administrativamente o pedido de alteração do nome
pelo próprio interessado ou procurador por meio de requisição direta
ao Oficial do Cartório do Registro Civil onde foi registrado o seu nascimento, independentemente do pagamento de selos e taxas.
a) Maioridade civil – Ao completar os dezoito anos (maioridade
civil) e até o último dia antes de completar dezenove é possível a pessoa natural requerer a alteração do seu nome diretamente ao Oficial do
Cartório do Registro Civil. Esta é a única possibilidade imotivada de
alteração do nome civil. O pedido administrativo poderá ser atendido
desde que não prejudique os apelidos da família, como descreve a Lei
56
Direito Civil
de Registros Públicos20. Nesta oportunidade o interessado pode pedir a
inclusão ou a exclusão do nome de genitores ou padrastos.
Interessante decisão do Superior Tribunal de Justiça, sobre a referida questão, flexibilizou o princípio da imutabilidade do nome civil,
permitindo a um filho abandonado por seu pai, adotar o sobrenome da
avó que o criou desde a infância. O Tribunal de Justiça de São Paulo havia negado o pedido com base no artigo 56 da Lei de Registros Públicos,
entendendo que haveria prejuízo ao apelido de família paterno. Entretanto, a decisão foi reformada pelo STJ, pois não haveria modificação na
sua filiação, tão somente seria alterado o seu nome civil, além de evitar o
constante sofrimento de recordar angústias vividas na infância toda vez
que mencionar seu nome civil.
b) Erros aparentes de grafia – Desde que visivelmente tenha ocorrido um erro na posição das letras do nome, ou a inserção ou escrita er-
20. Lei n. 6.015/73, Art. 56 – O interessado, no primeiro ano após ter atingido
a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o
nome, desde que não prejudique os apelidos da família, averbando-se a alteração que será publicada na imprensa.
COMENTÁRIO
Filho abandonado poderá trocar sobrenome do pai pelo da avó que o criou.
No recurso julgado pela Terceira Turma, o rapaz sustentou que a decisão violou o artigo 56 da Lei
6.015/73, já que estariam presentes todos os requisitos legais exigidos para a alteração do nome no primeiro ano após ele ter atingido a maioridade civil. Argumentou, ainda, que não pediu a modificação
da sua paternidade no registro de nascimento, mas somente a exclusão do sobrenome do genitor, com
quem não desenvolveu nenhum vínculo afetivo.
Posição flexível
Citando vários precedentes, o ministro relator, Paulo de Tarso Sanseverino, ressaltou que o STJ tem
sido mais flexível em relação à imutabilidade do nome civil em razão do próprio papel que o nome desempenha na formação e consolidação da personalidade.
Para o relator, considerando que o nome é elemento da personalidade, identificador e individualizador da pessoa na sociedade e no âmbito familiar, a pretensão do recorrente está perfeitamente
justificada nos autos, pois, abandonado pelo pai desde criança, foi criado exclusivamente pela mãe e
pela avó materna.
“Ademais, o direito da pessoa de portar um nome que não lhe remeta às angústias decorrentes
do abandono paterno e, especialmente, corresponda à sua realidade familiar, parece sobrepor-se ao
interesse público de imutabilidade do nome, já excepcionado pela própria Lei de Registros Públicos” –
ressaltou o ministro em seu voto.
Ao acolher o pedido de retificação, Sanseverino enfatizou que a supressão do sobrenome paterno
não altera a filiação, já que o nome do pai permanecerá na certidão de nascimento. A decisão foi
unânime.
Número do recurso omitido por segredo de Justiça.
Fonte: STJ. Filho abandonado poderá trocar sobrenome do pai pelo da avó que o criou. Disponível
em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/Filho-abandonado-poderá-trocar-sobrenome-do-pai-pelo-da-avó-que-o-criou>. Acesso em 20 mar. 2015.
57
CURIOSIDADE
CASO ANTERIOR À MODIFICAÇÂO
DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS
Em meados de 1995 e 1996,
uma propaganda veiculada em
todo o Brasil pelo Ministério da
Saúde na televisão em combate
à AIDS, popularizou o nome de
Bráulio.
A LRP ainda não tinha sido
modificada pela Lei n. 9.807/99,
obrigando o interessado na modificação do nome ir à Justiça.
O jornalista Bráulio de S., foi
aos tribunais e obteve a modificação do nome para Cláudio Lira,
em virtude da popularização nacional do seu nome, que o colocou em situação constrangedora,
vexatória, expondo-o ao ridículo.
(JTJ – Lex 204/136, Rel. Osvaldo
Caron)
rônea (troca do L pelo R, por exemplo: Cráudia, quando o correto seria
Cláudia), inversão ou outros erros aparentes no nome civil, é possível a
requisição administrativa de sua correção. A Lei de Registros Públicos
requer apenas que seja possível a imediata constatação do erro na grafia
do nome para ser possível o pedido21, o qual será corrigido pelo Oficial
do Cartório de ofício, após manifestação do Ministério Público pelo rito
sumaríssimo.
2.6.7.DaModificaçãoJudicial
a) Nomes ridículos, exóticos ou vexatórios – Como já mencionado nesta obra, a Lei de Registros Públicos proíbe aos pais escolherem
para seus filhos nomes ridículos, vexatórios, que os exponham ao ridículo (LRP, Art. 55, parágrafo único). Contudo, caso tenham surgido
nomes atribuídos à pessoa, que a exponha a tais circunstâncias, poderá
ela requerer a alteração, demonstrada a motivação pela via judicial.
b) Vítimas, réus delatores ou testemunhas de crimes – Admite-se a mudança do nome em proteção às testemunhas (conforme disposições da Lei de Proteção às Testemunhas)22, às vítimas ou aos réus delatores
que colaborem com a Justiça no esclarecimento de atos criminosos, sempre que presente a coação ou ameaça (LRP, Art. 58, parágrafo único)23.
c) Uso prolongado – O uso prolongado e constante de nome diverso que conste do registro de nascimento também justifica a alteração24, pois, o “prenome imutável é aquele que foi posto em uso, embora não
conste do registro” (STJ, REsp 146.558/PR).
21. Lei n. 6.015/73, Art. 110 – Os erros que não exijam qualquer indagação para
a constatação imediata de necessidade de sua correção poderão ser corrigidos de
ofício pelo oficial de registro no próprio cartório onde se encontrar o assentamento, mediante petição assinada pelo interessado, representante legal ou procurador, independentemente de pagamento de selos e taxas, após manifestação
conclusiva do Ministério Público.
22. Lei n. 9.807/99, Art. 9º – Em casos excepcionais e considerando as características e gravidade da coação ou ameaça, poderá o conselho deliberativo encaminhar requerimento da pessoa protegida ao juiz competente para registros
públicos objetivando a alteração do nome completo. § 1º – A alteração de nome
completo poderá estender-se às pessoas mencionadas no § 1º do Art. 2º desta
Lei, inclusive aos filhos menores, e será precedida das providências necessárias
ao resguardo de direito de terceiros.
23. Lei n. 6.015/73, Art. 58 – O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia,
a sua substituição por apelidos públicos notórios. Parágrafo único – A substituição do prenome será ainda admitida em razão de fundada coação ou ameaça
decorrente da colaboração com a apuração de crime, por determinação, em sentença de juiz competente, ouvido o Ministério Público.
24. Lei n. 6.015/73, Art. 57 – A alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida
por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e
publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art. 110 desta
Lei.
58
Direito Civil
d) Alcunha ou apelido – Na mesma compreensão, pelo uso prolongado do nome, constante e habitual, a Lei25 permite a alteração do
nome civil, para inclusão do apelido ou alcunha. Obviamente que a
agregação da alcunha atinge apenas o prenome, ampliando-o. Exemplo:
Maria da Graça Xuxa Meneghel, alcunha inserida: Xuxa.
e) Inclusão do sobrenome de ascendente – Estudamos ser possível a inclusão do nome do ascendente quando o interessado requer, administrativamente, dentro de um ano de quando adquire a maioridade
civil. Entretanto, poderá ainda requer a alteração judicial do sobrenome,
quando superado aquele prazo, pugnando pela inserção do sobrenome
do ascendente, mesmo que este sobrenome não tenha sido usado por
uma ou mais gerações. E após inserto o sobrenome do pai, poderá ainda
requer a inserção do sobrenome da mãe .
f) Inclusão de sobrenome do padrasto ou madrasta – No mesmo
sentido, é possível a inserção do sobrenome do padrasto ou da madrasta
desde que estes concordem26.
g) Homonímia – O simples fato de possuir um nome muito comum ou popular não é sozinho motivação suficiente ao ensejo de alteração do nome civil. Se a intenção de afastar a homonímia for apenas
evitar equívoco ou confusão da pessoa, antes de ingressar com o pedido
para alteração do nome, deve estudar primeiro a possibilidade de afastá-la pelo acréscimo do sobrenome de seus ascendentes, sob pena de
ver indeferido seu pedido. Há que demonstrar o interessado, para que
justifique seu pedido de alteração judicial, os prejuízos e as humilhações
sofridas, os constrangimentos caso permaneça a homonímia. Por isto, a
chamamos de homonímia depreciativa, pois a homonímia para justificar a mudança do nome deve depreciar a pessoa quando pronunciado o
seu nome. Desse modo, só se entende possível o pedido de alteração do
prenome por homonímia quando demonstrado de modo cabal que a tal
homonímia está lhe causando problemas sociais (REsp n. 647.296/MT).
h) Alteração do prenome do adotado – É facultado aos pais da
criança adotada requererem judicialmente a alteração do prenome do
adotando, por disposição do Estatuto da Criança e do Adolescente27.
25. Lei n. 6.015/73, Art. 58 – O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia,
a sua substituição por apelidos públicos e notórios.
26. Lei de Registros Públicos, Art. 57, § 8º – O enteado ou enteada, havendo
motivo ponderável e na forma dos §§ 2º e 7º deste artigo, poderá requerer ao
juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome da família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância
destes, sem prejuízo de seus apelidos de família.
27. Estatuto da Criança e do Adolescente, Art. 47 – O vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que deverá ser inscrita no registro civil mediante
mandado do qual não se fornecerá certidão; § 5º – A sentença conferirá ao adotado o nome do adotante e, a pedido de qualquer deles, poderá determinar a
modificação do prenome.
59
JURISPRUDÊNCIA
Tribunal de Justiça de Minas Gerais
NOME - Acréscimo de sobrenome materno omitido no assento
de nascimento, após o nome do
pai - Admissibilidade por não encontrar qualquer vedação legal
(TJMG) RT 775/345.
VOCABULÁRIO
homonímia: Qualidade do que
é homônimo. Ou seja, nome
idêntico a outro.
JURISPRUDÊNCIA
Boletim Informativo n. 245 do Superior Tribunal de Justiça
RETIFICAÇÃO. REGISTRO CIVIL.
A jurisprudência deste Superior Tribunal autoriza a alteração
do nome civil quando o nome
que a pessoa deseja adotar é
aquele pelo qual ela é conhecida no seu meio social ou quando a pessoa quer acrescer ou
excluir sobrenome de genitores
ou padrastos. Na espécie, o recorrente não é conhecido no
meio social pelo prenome que
pretende acrescer. Ademais, o
Tribunal a quo reconheceu, com
base nas provas, que o recorrente não se expõe a circunstâncias
vexatórias e de constrangimento
em razão de homônimos existentes. Assim a Turma não conheceu
do recurso. Precedentes citados:
REsp 538.187-RJ, DJ 21/2/2005;
REsp 146.558-PR, DJ 24/2/2003;
REsp 213.682-GO, DJ 2/12/2002;
REsp 284.300-SP, DJ 9/4/2001, e
REsp 66.643-SP, DJ 9/12/1997. REsp
647.296-MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 3/5/2005.
COMENTÁRIO
I JORNADA DE DIREITO CIVIL
ENUNCIADO 99
“O Art. 1.525, § 2º, do Código Civil não é norma destinada
apenas às pessoas casadas, mas
também aos casais que vivem
em companheirismo, nos termos
do Art. 226, caput e §§ 3º e 7º, e
não revogou o disposto na Lei nº
9.263/96.”
A Lei n. 9.263/96 se refere ao
planejamento familiar, aplicável
tanto aos casados quanto aos
companheiros, em atenção ao
Art. 226, § 7º, da Constituição Federal de 1988.
i) Tradução de nome estrangeiro – É admitida a alteração do
prenome estrangeiro traduzindo-o para o português com a finalidade de tornar mais clara e precisa sua identidade civil no Brasil (Lei n.
6.815/80 – Estatuto do Estrangeiro)28. Havendo erros materiais, poderão
ser corrigidos de ofício (EE, Art. 43, § 2º).
j) Inclusão ou exclusão do sobrenome do cônjuge – O Código
Civil atual29 permite aos noivos, facultativamente, incluírem o sobrenome do consorte em seu nome civil quando casados. Se ocorrer o divórcio ou a anulação do casamento poderão optar por excluir o nome de
seu ex-cônjuge quando não houver dado causa a extinção do casamento. Reservado ao cônjuge inocente renunciar ao direito de uso do nome
de casado30.
k) Inclusão ou exclusão do sobrenome do companheiro – Os
companheiros são aqueles que vivem em união estável. A união estável31
se equiparou ao casamento, com garantia constitucional, no mesmo
artigo que protege a família32. Não poderia ser diferente, pois a união
estável é entidade familiar que constitui a família, neste sentido já houve
registro do Enunciado n. 99 da I Jornada de Direito Civil .
28. Estatuto do Estrangeiro, Art.43 – O nome do estrangeiro, constante do
registro (art. 30), poderá ser alterado: I – se estiver comprovadamente errado;
II – se tiver sentido pejorativo ou expuser o titular ao ridículo; ou III – se for
de pronunciação e compreensão difíceis e puder ser traduzido ou adaptado à
prosódia da língua portuguesa.
29. Código Civil, Art. 1.565 – Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos
da família. § 1º – Qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o
sobrenome do outro.
30. Código Civil, Art. 1.578 – O cônjuge declarado culpado na ação de separação judicial perde o direito de usar o sobrenome do outro, desde que expressamente requerido pelo cônjuge inocente e se a alteração não acarretar: I
– evidente prejuízo para sua identificação; II – manifesta distinção entre o seu
nome de família e o dos filhos havidos da união dissolvida; III – dano grave
reconhecido na decisão judicial. § 1º – O cônjuge inocente na ação de separação
judicial poderá renunciar, a qualquer momento, ao direito de usar o sobrenome
do outro. § 2º – Nos demais casos caberá a opção pela conservação do nome de
casado.
31. Código Civil, Art. 1.723 – É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com objetivo de constituição de família.
32. Constituição Federal, Art. 226 – A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado. § 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a
união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei
facilitar a sua conversão em casamento. § 7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar
é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais
e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por
parte das instituições oficiais ou privadas.
60
Direito Civil
Devemos lembrar que o Supremo Tribunal Federal interpretou ser
possível a constituição de união estável por pessoas do mesmo sexo, aplicando-se portanto as mesmas possibilidades quanto ao nome civil.
l)Concubinato33 – A lei permite que ao concubina(o) obtenha o
sobrenome do(a) companheiro(a) enquanto durar o concubinato, mas
isto só será possível quando houver concordância mútua, vida em comum por mais de cinco anos ou a existência de filho(s) comum(ns).
Contudo, nenhum deles pode ser casado, embora exista a impossibilidade de se casarem.
m) Transgenitalização – Com a evolução da ciência e da medicina, a mudança de sexo cirúrgica tornou-se uma realidade. Não haveria
nenhuma lógica conservar o nome de homem naquele que por cirurgia
deixou de guardar todas as características masculinas. O Superior Tribunal de Justiça enfrentou o referido caso, dando ao requerente o direito
à modificação de seu nome civil, inclusive determinando que não deveriam constar do teor das novas certidões a referida alteração para evitar
constrangimentos (STJ, REsp 1.008.398/SP; REsp 679.933/RS e REsp
737.993/MG).
2.6.8. O Estado Civil
De acordo com Carlos Roberto Gonçalves, a soma das qualificações
de uma pessoa na sociedade, que indicariam o modo peculiar inerente
à pessoa, constitui o estado civil, ou status como deriva do latim34, e distingue-se na ordem: a) individual – através da descrição física do ser, cor,
altura, sexo, idade, capaz ou incapaz, criança, adolescente ou adulto; b)
familiar – a indicar sua descrição quanto à solteiro, casado, divorciado,
viúvo, bem como graus de parentes e origem da família, e c) política –
quanto a se tratar de brasileiro nato ou estrangeiro. Como o estado está
ligado à pessoa, pode-se afirmar que recebe proteção jurídica por suas
características: indivisível, indisponível e imprescritível.
2.6.9. O Domicílio Civil
A localização certa dos sujeitos de direito é muito relevante, pois
permite o cumprimento das relações jurídicas, concedendo segurança
ao cumprimento das obrigações e facilidade na implementação da paz
social. O domicílio civil é o ponto no qual o sujeito de direitos e obrigações se permite ser localizado, onde reside, ou mora. É no domicílio
que a pessoa se presume presente para dar cumprimento aos seus atos e
negócios jurídicos.
33. Código Civil, Art. 1.727 – As relações não eventuais entre o homem e a
mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.
34. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 1. Esquematizado. Parte Geral,
Obrigações e Contratos. Coord. Pedro Lenza. 1ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
p. 141.
61
COMENTÁRIO
O Supremo Tribunal Federal entendeu, ao julgar a Ação
Declaratória de Inconstitucionalidade (ADIN) 4277 e a Arguição
de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 132, que o
artigo 1.723 do Código Civil abrange o entendimento de se tratar
de união de pessoas e não limitativamente homem e mulher. Com
isto, tornou-se possível a união estável de pessoas do mesmo sexo,
incluindo todos os benefícios previstos às uniões estáveis de sexos
diversos, inclusive a sua conversão
em casamento.
Existem dois elementos que caracterizam o domicílio: o elemento
objetivo, que é o local propriamente dito, a residência da pessoa, e o elemento subjetivo, que se refere ao ânimo definitivo, que é a intenção de
permanecer e ali fixar moradia (domicílio residencial)35 ou exercer sua
atividade central (domicílio profissional)36.
Quanto ao número, o domicílio pode ser único ou plúrimo37.
Quanto à existência, é real ou presumido38. Quanto à liberdade de escolha, pode ser necessário ou voluntário, sendo que o necessário é aquele
descrito por lei39, e o voluntário o que pode ser estipulado pelas partes
em relação jurídica40.
2.7
A COMORIÊNCIA E A AUSÊNCIA: CARACTERIZAÇÃO E EFEITOS JURÍDICOS
DA COMORIÊNCIA – Quando dois ou mais indivíduos vierem a
falecer ao mesmo tempo, havendo dúvidas quanto a quem tenha morrido primeiro, a legislação civil permite a aplicação da presunção de que
tenham morrido ao mesmo tempo41. Esta regra afasta a incidência da
sucessão entre os comorientes.
DA AUSÊNCIA – O instituto da ausência se aplica quando a pessoa
desaparece de seu domicílio sem deixar notícias, tampouco alguém que
o representante. As relações jurídicas e os bens que esta pessoa deixou
necessitam de cuidados e administração. Para garantir a continuidade
das relações jurídicas e manter a segurança jurídica, o Estado permite
a aplicação da morte presumida pela ausência da pessoa, que se pleiteia
em três fases: a) A declaração de ausência; b)A sucessão provisória; e c)
A sucessão definitiva.
A) Declaração de ausência – A requerimento do interessado ou
do representante do Ministério Público, o juiz declarará a ausência
35. Código Civil, Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece sua residência com ânimo definitivo.
36. Código Civil, Art. 72. É também domicílio da pessoa natural, quanto às
relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida.
37. O direito brasileiro adotou o princípio da pluralidade domiciliar, como se
observa nos artigos 71 e 72 do Código Civil.
38. O domicílio real é o físico e indubitável. O presumido é aquele que utiliza a
regra da presunção, conforme o artigo 73 do Código Civil.
39. Código Civil, Art. 76.
40. Código Civil, Art. 78. Por exemplo o foro de eleição nos contratos, a cláusula arbitral, etc.
41. Código Civil, Art. 8º. Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros,
presumir-se-ão simultaneamente mortos.
62
Direito Civil
e nomeará um curador determinando que os bens deixados sejam
arrecadados42. Para garantir a defesa do ausente, são publicados editais por um ano, a cada bimestre43, pondo-se os filhos menores sob
tutela, se houver44.
B) Sucessão provisória – Após um ano do primeiro edital45, poderá ser aberta a sucessão provisória, passando-se aos herdeiros a
posse dos bens, desde que prestem garantia de devolvê-los integralmente caso o ausente apareça46.
C) Sucessão definitiva – Após dez anos da sucessão provisória47,
poderão os interessados requererem a sucessão definitiva levantando as cauções que prestaram ao juízo48. Caso o ausente apareça, nos
dez anos seguintes, receberá os bens no estado em que se encontram49. Se passado o referido prazo não surgir sucessor, o espólio
passará ao Estado por herança jacente50. Aberta a sucessão definitiva, a morte presumida extingue o vínculo conjugal51.
A MORTE PRESUMIDA:
CARACTERIZAÇÃO
2.8
Como já tivemos a oportunidade de estudar, a personalidade jurídica da pessoa natural se inicia a partir do nascimento com vida e se
extingue com a morte, que pode ser real (morte física) ou presumida.
A morte presumida é aplicável em duas situações distintas. Poderá
ser consequência de um processo de declaração de ausência (como vimos anteriormente), ou quando houverem indícios veementes (perigo
de vida, desaparecimento em campanha, feito prisioneiro, não for encontrado após dois anos do término da guerra)52.
42. Código Civil, Art. 22 e Art. 1.159.
43. Código de Processo Civil, Art. 1.161. Feita a arrecadação, o juiz mandará
publicar editais durante 1 (um) ano, reproduzidos de dois em dois meses, anunciando a arrecadação e chamando o ausente a entrar na posse de seus bens.
44. Código Civil, Art. 1.728, I.
45. Código Civil, Art. 26. Ou após três anos se o ausente deixou procurador.
46. Código Civil, Art. 30.
47. Ou caso o ausente tivesse mais de oitenta anos de idade, passados cinco anos
das últimas notícias.
48. As garantias fornecidas para a sucessão provisória poderão ser restituídas.
49. Código Civil, Art. 39.
50. Código Civil, Art. 39, parágrafo único. Entende-se por herança jacente a situação na qual o Município inicia a arrecadação dos bens deixados pelo falecido,
por inexistirem herdeiros.
51. Código Civil, Arts. 6º e 1.571, § 1º.
52. Código Civil, Art. 7º. Pode ser declarada a morte presumida, sem decreta-
63
A sentença que declara a morte presumida dissolve o vínculo conjugal53 e põe fim à sucessão definitiva quanto ao espólio54.
ção de ausência: I – se for extremamente provável a morte de quem estava em
perigo de vida; II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro,
não for encontrado até dois anos após o termino da guerra. § único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de
esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do
falecimento.
53. Código Civil, Art. 1.571, § 1º, e Art. 6º.
54. Código Civil, Art. 37.
64
3
Pessoa e Direitos da
Personalidade
VoCaBUlÁrio
intuito: objetivo, intenção.
3.1
ConCeito
Direitos da personalidade são direitos subjetivos conferidos a todas
as pessoas naturais (seres humanos) com o intuito de proteger a sua integridade física, moral e intelectual. Impõem a todas as pessoas o dever
legal de não causar dano, isto é, de não violar a integridade dos outros.
Por causa da imposição desse dever jurídico todas as pessoas (refletindo
um direito “contra todos” ou, em latim, erga omnes), podemos afirmar
que os direitos da personalidade são do tipo excludendi alios. Isto é,
exclui as outras pessoas. Mas essa obrigação de respeito não é imposta
apenas para terceiros. Também o titular (o “dono”) do direito deve abster-se de (ou seja, deixar de) praticar qualquer ato que possa prejudicar
sua própria integridade.
3.2
FUnDaMento
Todos os direitos da personalidade encontram fundamento no
princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no inciso III
do art. 1º da Constituição Federal de 1988 (“A República Federativa do
CUriosiDaDe
Direitos da personalidade e as pessoas jurídicas
Para a doutrina majoritária, todas as pessoas, naturais ou jurídicas, são detentoras de personalidade jurídica. Consequentemente, também se defende que as pessoas jurídicas são titulares de direitos
da personalidade. Contudo, essas posições não são pacíficas, havendo autores que sustentam que as
pessoas jurídicas não são titulares de direitos da personalidade.
Tal polêmica não foi eliminada pelo legislador, que adotou enigmática redação no art. 52 do Código Civil: “Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”.
A leitura do dispositivo pode resultar em duas conclusões absolutamente distintas: a de que as pessoas
jurídicas teriam direitos da personalidade; e a de que não teriam. Na doutrina podemos encontrar essas
duas correntes:
1ª Corrente (majoritária): defende que as pessoas jurídicas são titulares de direitos da personalidade, por serem detentoras de atributos que a individualizam e que a inserem no meio social, tais como
o nome, identidade, marcas e símbolos que lhes são próprios etc. Para os defensores dessa corrente, o
art. 52 do Código Civil defere direitos da personalidade às pessoas jurídicas.
2ª Corrente (minoritária): defende que as pessoas jurídicas não são detentoras de direitos da personalidade, sendo estes exclusivos das pessoas naturais (físicas). Essa corrente sustenta que todos os
direitos da personalidade têm por objetivo a proteção da dignidade do ser humano, logo, não seria
admissível estender essa proteção às pessoas jurídicas. Nesse sentido, o enunciado 286/CJF prescreve
que “os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de
sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos”. O art. 52 é interpretado da seguinte forma: por não serem as pessoas jurídicas titulares de direitos da personalidade, o ordenamento
confere uma proteção semelhante àquela da qual gozam as pessoas naturais para proteção dos seus
interesses extrapatrimoniais (ou seja, não patrimoniais).
66
Direito Civil
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa humana”). Este
princípio é uma cláusula geral de proteção da pessoa humana, que vincula todas as esferas do Direito e irradia-se por todos os seus ramos. Não
seria diferente em relação ao Direito Civil: a leitura das regras presentes
no Código Civil deve se dar sempre à luz dos preceitos constitucionais
(isto é, das determinações previstas na Constituição).
Características dos direitos da
personalidade
3.3
A doutrina nacional aponta a existência de diversas características comuns aos direitos da personalidade. Em especial, afirma-se que
são inatos, vitalícios, absolutos, ilimitados, extrapatrimoniais, impres­
critíveis, intransmissíveis, indisponíveis ou relativamente disponíveis,
irrenunciáveis e inexpropriáveis. Vejamos uma a uma, a seguir.
a)Inatos: todos os seres humanos, ao nascer, já se encontram dotados de direitos da personalidade. A aquisição é automática
CURIOSIDADE
Dano moral da pessoa jurídica
No estudo dos direitos da personalidade da pessoa jurídica, surge outra questão polêmica: a de
definir se pessoa jurídica pode sofrer dano moral. A indagação é pertinente, pois, atualmente, o dano
moral é definido como toda e qualquer forma de lesão a direito da personalidade, não devendo ser
confundido com suas consequências: dor, tristeza, angústia etc. Desta forma, dependendo da atribuição, ou não, de personalidade jurídica às pessoas jurídicas, abre-se a possibilidade para que estas
sofram dano moral. Sobre a questão podem ser apontadas as seguintes correntes:
1ª Corrente (doutrina majoritária): defende que as pessoas jurídicas podem sofrer dano moral
quando condutas alheias repercutem de forma negativa sobre a sua imagem, abalando a credibilidade conquistada (ofensa à honra objetiva). Podemos afirmar que esse é o posicionamento majoritário
na doutrina e na jurisprudência, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça, que já sumulou a questão
(Súmula 227/STJ: A pessoa jurídica pode sofrer dano moral).
2ª Corrente: defende que a pessoa jurídica não possui direitos da personalidade e, portanto, não
pode sofrer dano moral. Não nega, contudo, o direito à reparação dos danos extrapatrimoniais ou
patrimoniais de difícil liquidação, quando atingida a credibilidade ou reputação da instituição. Na
verdade, o que os defensores dessa corrente propõem é a substituição da expressão dano moral por
dano institucional, reservando a primeira expressão apenas para a caracterização de lesão a direitos
da personalidade dos seres humanos.
3ª Corrente: defende que a pessoa jurídica não pode sofrer dano moral, mas tão só dano patrimonial. Apenas o prejuízo patrimonial demonstrado (danos emergentes e lucros cessantes) pode ser
ressarcido. Esta corrente, minoritária, é muito criticada, pois não consegue solucionar as ofensas extrapatrimoniais dirigidas a uma pessoa jurídica sem intuito lucrativo (p. ex.: associação filantrópica).
67
(quer dizer, independentemente de qualquer ato jurídico). Para
os defensores da teoria natalista, o termo inicial da aquisição
dos direitos da personalidade é o nascimento com vida (art.
2º do Código Civil). Por outro lado, para os defensores da teoria concepcionista, o termo inicial é a concepção (art. 4º do
Pacto de São José da Costa Rica). Devemos destacar que alguns
autores utilizam o termo “inato” para designar que os direitos
da personalidade são direitos naturais, surgindo assim nova
divergência doutrinária:
Jusnaturalistas: defendem que os direitos da personalidade são
inerentes ao ser humano, não dependendo de previsão legal. Dessa forma, os direitos da personalidade são considerados como espécie de direito natural. Nesse sentido: Maria Helena Diniz, Rubens Limongi França, Carlos Alberto Bittar, Rizzato Nunes.
Positivistas: defendem que a existência dos direitos da personalidade depende de previsão específica do ordenamento jurídico. Nesse
sentido: Pietro Perlingieri, Adriano de Cupis, Miguel Reale.
Observação: não se pode afirmar que uma das correntes acima seja
majoritária.
b) Vitalícios: os direitos da personalidade acompanham o ser
humano ao longo da vida. Com a morte, extinguem-se a personalidade jurídica e, consequentemente, os direitos da personalidade. A sucessão causa mortis é capaz de transmitir apenas
direitos patrimoniais. Contudo, se uma pessoa já morta for alvo
de uma ofensa, seus familiares ainda vivos são lesados de forma indireta, podendo exigir em juízo a reparação pelo dano
moral em ricochete. Nesse sentido, o art. 12, parágrafo único,
do Código Civil de 2002 dispõe que, “em se tratando de morto,
terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo
o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou
colateral até o quarto grau”.
c) Absolutos: os direitos da personalidade impõem um dever geral de abstenção a todas as pessoas (sujeição passiva universal);
todas as pessoas devem abster-se de praticar qualquer ato que
possa prejudicar a integridade de um ser humano. O desrespeito a esse dever, ou até mesmo a ameaça de desrespeito, dá ao
ofendido a possibilidade de requerer medidas para prevenção
desse dano ou para sua repressão, conforme previsão do caput
do art. 12 do Código Civil (“Pode-se exigir que cesse a ameaça,
ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”).
O termo “absoluto” só não pode ser utilizado para designar a inexistência de limites no exercício do direito, uma vez que não existe
no ordenamento jurídico nenhum direito absoluto. Nem mesmo os
direitos fundamentais podem ser tidos como absolutos. Os direitos da
personalidade têm seus limites impostos por outros direitos funda68
Direito Civil
mentais, pela lei, pelos bons costumes, pela moral etc. Nesse sentido, o
Enunciado 139 da III Jornada de Direito Civil do CJF/STJ assim afirma: “os direitos da personalidade podem sofrer limitações, ainda que
não especificamente previstas em lei, não podendo ser exercidos com
abuso de direito de seu titular, contrariamente à boa-fé objetiva e aos
bons costumes”.
d)Ilimitados: não há dúvidas de que o rol dos direitos fundamentais listados pelo Código Civil de 2002 e pela Constituição Federal são meramente exemplificativos (ao que se refere a expressão latina numerus apertus). Compete à doutrina e ao trabalho
dos tribunais a identificação e o reconhecimento de novos direitos da personalidade diante da evolução da sociedade, com
seu progresso econômico, cultural, científico etc. Atualmente,
estão positivados (isto é, descritos textualmente) no Código
Civil de 2002 e na Constituição Federal de 1988 os seguintes
direitos da personalidade:
CÓDIGO CIVIL DE 2002
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Direito à imagem (art. 20)
Direito à imagem (art. 5º, V, X e XXVIII)
Direito à honra (art. 20)
Direito à honra (art. 5º, X)
Direito à vida privada (art. 21)
Direito à vida privada (art. 5º, X)
Direito ao próprio corpo (arts. 13
a 15)
Direito à vida (art. 5º, caput)
Direito ao nome (arts. 16 a 19)
Direito à intimidade (art. 5º, X e LX)
Direito à liberdade (art. 5º, caput)
Direito ao sigilo (art. 5º, XII)
Direito autoral (art. 5º, XXVII)
COMENTÁRIO
No que diz respeito às medidas reparatórias (p. ex.: pretensão
de indenização por dano moral),
a doutrina diverge a respeito da
existência ou não de prazo de
prescrição para a propositura da
ação (exercício da pretensão em
juízo), podendo ser apontadas as
seguintes correntes:
1ª Corrente: defende que a
pretensão de reparação de danos morais é sempre imprescritível,
em virtude da natureza dos direitos da personalidade.
2ª Corrente: defende que a
pretensão de reparação de danos morais prescreve no mesmo
prazo que a pretensão de reparação de danos materiais. Se a relação for civil, o prazo de prescrição será de 3 (três) anos, aplicando-se à hipótese o art. 206, § 3º,
V, do CC/2002. Se a relação for
de consumo, o prazo de prescrição será de 5 (cinco) anos para
o consumidor pleitear a indenização, em atenção ao disposto no
art. 27 do Código de Defesa do
Consumidor.
Direito à voz (art. 5º, XXVIII)
e)Extrapatrimoniais: é impossível atribuir valor econômico aos
direitos da personalidade, pois não integram o patrimônio da
pessoa (ou seja, dizem respeito ao ser, e não ao ter). O fato de a
lesão aos direitos da personalidade ser reparada de forma pecuniária (isto é, mediante o pagamento de uma indenização
em dinheiro) não afasta sua extrapatrimonialidade. Entende-se
que a condenação monetária é uma forma de diminuir o dano
causado à vítima e uma forma de evitar repetição do ato pelo
causador do dano (função educativa da condenação), mas nunca
uma valoração, em dinheiro, do direito em si. Também não desvirtua a extrapatrimonialidade o fato de o exercício do direito
da personalidade poder ter repercussão econômica (p. ex.: a remuneração recebida por um artista que autorizou a exploração
de sua imagem).
f)Imprescritíveis: os direitos da personalidade são considerados
imprescritíveis, pois o não exercício pelo seu titular não acarreta
69
ATENÇÃO
Na reparação de danos causados em razão de crime de tortura, o Superior Tribunal de Justiça
tem decidido que a pretensão
indenizatória é imprescritível (REsp
1.002.009/PE, j. 12-2-2008, DJ 21-22008, Rel. Min. Humberto Martins).
a extinção do direito nem o afastamento da proteção dada pelo
ordenamento jurídico. Desse modo, a qualquer momento pode-se exigir que cesse a violação a um direito da personalidade
(medidas preventivas/protetivas).
CoMentÁrio
Também podemos falar em
legítima disponibilidade relativa
quando uma pessoa realiza uma
tatuagem em seu corpo, uma vez
que esta prática revela um costume social.
g) Intransmissíveis: os direitos da personalidade estão ligados de
tal forma à personalidade jurídica de cada ser humano que não
se admite a sua transmissão. Não podem ser transferidos em
vida (inter vivos), mediante contrato, nem após a morte (causa
mortis), por meio de sucessão. É absolutamente inconcebível
que uma pessoa exerça direito da personalidade de outra (p. ex.:
direito à vida). Afirma-se, portanto, que esses direitos surgem e
desaparecem ope legis (por força da lei) com o seu titular.
Quanto à disponibilidade do
corpo humano, o Enunciado 401
da V Jornada de Direito Civil do
CJF/STJ dispõe que “não contraria
os bons costumes a cessão gratuita de direitos de uso de material
biológico para fins de pesquisa
científica, desde que a manifestação de vontade tenha sido livre e
esclarecida e puder ser revogada
a qualquer tempo, conforme as
normas éticas que regem a pesquisa científica e o respeito aos
direitos fundamentais”.
h) Relativamente disponíveis: embora não se admita a transmissão dos direitos da personalidade, nada impede que uma pessoa
disponha de algum aspecto de sua personalidade de forma relativa e temporária. Podemos citar, por exemplo, a possibilidade
de uma pessoa autorizar a exploração de sua imagem para uma
propaganda, de forma gratuita ou onerosa (ou seja, mediante
pagamento).
i) Irrenunciáveis: os titulares dos direitos da personalidade não
podem ser renunciados, pois surgem com o ser humano e o
acompanham ao longo da vida (vitalícios). A cessão de alguns
direitos de forma relativa também não descaracteriza a irrenunciabilidade. Pelo contrário, reforça a ideia da titularidade
do direito e prevê que, no exercício dele, poderão acontecer negócios jurídicos voluntários.
j) Inexpropriáveis: por serem inatos e ligados à pessoa, os direitos da personalidade não podem ser retirados da esfera de seu
titular. Não podem, dessa forma, ser arrematados, adjudicados
ou utilizados com o objetivo de garantir uma obrigação, características estas reforçadas pelo art. 832 do novo CPC: “não estão
sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis
ou inalienáveis”.
Não há consenso na doutrina quanto à taxonomia (classificação)
dos direitos da personalidade. Autores como Pontes de Miranda, Alexandre De Cupis, Orlando Gomes, Francisco Amaral, Rubens Limongi
França e Carlos Alberto Bittar propõem distintas formas de classificação, levando em consideração elementos diversos. Contudo, ainda que
a discussão seja intensa, não há importância prática na adoção de uma
ou outra classificação.
Exatamente por isso, o próprio legislador também se furtou de tal
tarefa ao enumerar alguns dos direitos da personalidade no Código Civil
de 2002 e na Constituição Federal de 1988. Sem a pretensão de esgotar
o estudo de todos os direitos da personalidade existentes, observemos
quais as regras presentes em nosso Código Civil.
70
Direito Civil
3.3.1. Direito ao corpo
ATENÇÃO
Nos termos do art. 13 do Código Civil, “salvo por exigência médica,
é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”. O dispositivo proíbe todo e qualquer ato de disposição do corpo
quando importar diminuição permanente da integridade física (p. ex.:
amputação de membro sem exigência médica) ou contrariar os bons
costumes (p. ex.: prostituição, venda de órgãos humanos etc.). As cirurgias plásticas, reparadoras ou estéticas, são admitidas por não ser, em
regra, prejudiciais à saúde.
Constituem exceções as hipóteses de exigência médica, como, por
exemplo, a amputação de membro gangrenado, a cirurgia de adequação
de sexo do hermafrodita, a cirurgia de mudança de sexo do transexual
etc. Ampliando o conceito de exigência médica, o Enunciado 6 da I Jornada de Direito Civil do CJF propõe que “a expressão ‘exigência médica’,
contida no art. 13, refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-estar psíquico do disponente”.
E quanto aos transexuais, o Enunciado 276 da IV Jornada de Direito Civil do CJF defende que “o art. 13 do Código Civil, ao permitir a
disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias
de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alteração do
prenome e do sexo no Registro Civil”.
3.3.1.1. Doação do corpo
Além das hipóteses de exigência médica, a disposição do corpo
também é admitida para fins de transplante. Nesse sentido, o art. 13,
parágrafo único, do Código Civil dispõe que “o ato previsto neste artigo
será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial”. A doação de partes do corpo humano pode ser feita em vida ou
após a morte.
A doação em vida (inter vivos) de parte do corpo humano por pessoa viva para fins terapêuticos ou para transplantes deve obedecer às
regras presentes no art. 9º da Lei n. 9.434/97, em especial: a) capacidade:
o doador deve ser pessoa juridicamente capaz, mas admite-se a doação
por pessoas incapazes em situações excepcionais mediante autorização
judicial; b) gratuidade: a doação só poder ser realizada gratuitamente;
c) favorecido: se a doação for feita em favor de cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, a autorização deverá ser concedida preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificando o tecido, o órgão ou a parte do corpo objeto da retirada. Se a doação for feita
a pessoas diversas, é necessária autorização judicial, dispensada esta em
relação à medula óssea (art. 9º da Lei n. 9.434/97); d) objeto: só é permitida a doação de órgãos duplos (p. ex.: rins), de partes de órgãos, tecidos
ou partes do corpo, cuja retirada não impeça o organismo do doador
de continuar vivendo sem risco para a sua integridade, não represen71
Transexual é a pessoa que rejeita sua identidade genética e a
própria anatomia de seu gênero,
identificando-se psicologicamente com o gênero oposto. Difere,
portanto, do homossexual, pois
este se sente atraído por pessoas do mesmo sexo, mas não tem
qualquer problema de rejeição
quanto a sua própria anatomia.
VOCABULÁRIO
hermafrodita: ser vivo que possui os órgãos genitais de ambos
os sexos.
transgenitalização: procedimento cirúrgico popularmente conhecido como “mudança de
sexo”.
VoCaBUlÁrio
revogado: tornado sem efeito,
inválido.
altruístico: dotado de amor ao
próximo, desprendido, filantrópico. Altruísmo é termo que se
opõe à ideia de egoísmo.
disposição: uso, emprego.
omisso: aquele que deixa de
manifestar ou de fazer algo.
revogabilidade: possibilidade de
ser desfeito, de ser invalidado.
presumido: admitido como certo ou verdadeiro, algo que se
supõe ou se admite sobre determinado objeto, pessoa ou
situação. Deriva da palavra
“presunção”.
CineMateCa
não me abandone
jamais.
(Direção
de Mark Romanek,
2011) Uma revelação surpreendente
sobre doação de
órgãos muda as vidas de três jovens que cresceram
juntos num internato.
Outros filmes com a mesma
temática:
Feitiço do coração, Um ato
de coragem, sete vidas, Coisas
belas e sujas, tudo sobre minha
mãe, Uma prova de amor, 21
gramas.
te grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental, não
cause mutilação ou deformação inaceitável (p. ex.: leite, sangue, medula
óssea, pele, óvulo, esperma) e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora; e e) revogabilidade: a doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis
legais a qualquer momento antes de sua concretização.
Quanto à doação após a morte (post mortem), o art. 14 do Código
Civil determina que é válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.
O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.
A doação post mortem pode ser feita para fins de transplante ou para
fins científicos (p. ex.: pesquisa de doença, estudo de anatomia etc.), observados os seguintes requisitos: a) gratuidade: os titulares não podem
ser remunerados; b) beneficiário: pode ser indicado para fins científicos
(p. ex.: deixar o corpo para a faculdade de medicina da Santa Casa de
São Paulo), mas não pode ser indicado para fins de transplante, devendo ser respeitada uma lista de espera para esse fim; c) revogabilidade: a
disposição manifestada mediante testamento ou escritura pública pode
ser revogada a qualquer momento (sine die) pelo doador.
Em sua redação original, o art. 4º da Lei n. 9.434/97 estabelecia presunção relativa de que toda pessoa era doadora de órgãos (princípio do
consenso presumido – presumed consent ou opting out). Se esta não
fosse a vontade da pessoa, bastava inscrever na Carteira de Identidade
ou na Carteira de Habilitação que não era doadora de órgãos e tecidos.
Infelizmente, a inovação legislativa não agradou a todos, e o dispositivo foi alterado pela Lei n. 10.211/2001 para determinar que “a
retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para
transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização
do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória,
reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento
subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte” (princípio do consenso afirmativo – affirmative consent ou opting in).
O maior problema da alteração legislativa é que o dispositivo não
confere ao falecido o direito de disposição do corpo, mas, sim, aos seus
parentes. Esse problema foi resolvido com a entrada em vigor do Código
Civil de 2002, que confere à pessoa o direito de dispor sobre seu próprio corpo para após a morte, somente devendo ser respeitada a vontade
de parentes se o falecido foi omisso (vide Enunciado 277/CJF abaixo).
Contudo, observa-se que, na prática, médicos e hospitais têm, equivocadamente, exigido a manifestação de vontade dos parentes do falecido.
Enunciado 277 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “O art. 14 do Código Civil, ao afirmar a validade da disposição gratuita do próprio corpo, com objetivo científico ou altruístico,
para depois da morte, determinou que a manifestação expressa do doador de órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares, portanto, a aplicação do art. 4º da Lei n. 9.434/97 ficou restrita à hipótese de
silêncio do potencial doador”.
72
Direito Civil
3.3.1.2. Direito à recusa ao tratamento médico
VOCABULÁRIO
Todo paciente tem direito de receber as informações sobre o tratamento a que será submetido e, a partir daí, concordar ou não com o
referido tratamento (consentimento informado). Isto porque a pessoa,
tendo ciência dos riscos e consequências que pode sofrer, poderá escolher entre as opções apresentadas a que julgar ser a melhor para si. Tal
consentimento é dispensado nos casos de iminente perigo de vida e de
intervenção necessária e inadiável, como, por exemplo, na hipótese em
que a pessoa fica desacordada após um acidente de trânsito.
Nesse sentido, o art. 31 do Código de Ética Médica determina que é
vedado ao médico “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte” (Resolução 1.931/2009 do Conselho Federal de Medicina).
De acordo com o art. 15 do Código Civil, ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a
intervenção cirúrgica. Interpretando o dispositivo, o Conselho da Justiça
Federal aprovou o Enunciado 403 na V Jornada de Direito Civil, com
o seguinte teor: “o direito à inviolabilidade de consciência e de crença,
previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue,
com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele,
desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena,
excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação
de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito
exclusivamente à própria pessoa do declarante”.
3.3.2. Direito ao nome
O nome da pessoa integra a sua própria personalidade, permitindo
que ela seja identificada e individualizada perante a sociedade. A proteção do nome é matéria de ordem pública, tendo em vista o interesse do
Estado na identificação das pessoas. É por essa razão que impõe diversas
restrições à alteração de qualquer um dos seus elementos (prenome ou
sobrenome).
O Código Civil dispõe sobre a proteção do nome, impedindo sua
divulgação em publicações ou representações que exponham a pessoa ao
desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória, e proibindo sua utilização em propaganda comercial não autorizada (art. 17).
De acordo com o art. 18 do mesmo Código, o nome da pessoa não
pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a
exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória. Consoante determina a Súmula 221 do STJ, “são civilmente responsáveis
pelo ressarcimento do dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto
o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação”.
Além das normas do Código Civil de 2002, a Lei de Registros Públicos também regulamenta o nome nos arts. 54 a 58.
73
inviolabilidade: proibição ou
impossibilidade de violar, infringir, ferir.
intenção difamatória: intenção
de difamar, ofender a reputação de alguém, desacreditar
ou desabonar alguém publicamente.
COMENTÁRIO
“É válida a declaração de
vontade expressa em documento autêntico, também chamado ‘testamento vital’, em que a
pessoa estabelece disposições
sobre o tipo de tratamento de
saúde, ou não tratamento, que
deseja no caso de se encontrar
sem condições de manifestar a
sua vontade” (Enunciado n. 527
aprovado na V Jornada de Direito
Civil).
Ver também a Portaria n.
1995/2012 do Conselho Federal
de Medicina
REFLEXÃO
Há uma colisão de direi­
tos fundamentais, em especial o
direito à vida e o direito à liberdade (o qual engloba as liberdades de crença, religião e culto), na recusa das Testemunhas
de Jeová ao recebimento de
transfusões de sangue? Leia o
artigo disponível em http://jus.
com.br/artigos/27471/as-testemunhas-de-jeova-e-o-direito-fundamental-de-recusa-as-transfusoes-de-sangue-na-constituicao-brasileira-de-1988#ixzz3fImGNwTs e discuta com seus
colegas e professor.
CineMateCa
3.3.2.1. Elementos do nome
a) Prenome: é popularmente conhecido como “primeiro nome”,
e pode ser simples (João, Flávio, Fernando etc.) ou composto
(Maria Clara, João Pedro, Ana Carolina etc.). É escolhido livremente pelos pais, desde que não exponha o filho ao ridículo,
devendo, nessa hipótese, o oficial do Registro Civil se recusar a
registrá-lo e encaminhar a questão ao juiz.
b) Sobrenome: também conhecido como nome, patronímico ou
apelido de família, é o sinal que indica a procedência da pessoa, sua família e filiação. A Lei n. 11.924/2009 (Lei Clodovil)
alterou o § 8º da Lei de Registros Públicos, permitindo que o
enteado ou a enteada acrescente o nome de família do padrasto
ou da madrasta, mediante requerimento judicial.
c) Agnome: é o sinal que distingue membros da família que utilizam o mesmo nome e sobrenome (p. ex.: Filho, Neto, Sobrinho,
Júnior etc.).
d) Partícula: é utilizada entre o prenome e o sobrenome ou entre
os sobrenomes (p. ex.: de, da, dos etc.).
e) Alcunha: também conhecida como cognome ou epíteto, é a
designação atribuída a uma pessoa em razão de alguma particularidade ou características, tais como habilidade, profissão,
aparência, local de nascimento (p. ex.: Aleijadinho, Tiradentes
etc.). Apenas por sentença judicial pode a alcunha passar a fazer
parte do nome da pessoa.
o casamento de
Muriel. (Direção
de P. J. Hogan,
1994) Retrata uma
adolescente que,
ao fugir da casa
de seus pais após
praticar um ilícito,
muda seu nome para não poder
ser localizada e também para viver uma nova experiência. Expõe,
assim, os aspectos jurídicos e psicológicos da alteração do nome.
atenÇÃo
Sob proteção especial por se
tratar de direito da personalidade,
o uso da imagem de uma pessoa
não requer autorização quando
feito no contexto de uma notícia
jornalística, sem exploração comercial e sem identificação de
seus componentes, especialmente se retratar uma coletividade
de pessoas. Já as pessoas publicamente conhecidas (famosos,
celebridades) têm certa restrição
quanto ao direito de reclamar
contra o uso indevido de sua imagem, comparativamente ao de
pessoas “comuns”. Há nesses casos uma presunção de consentimento, devendo-se preservar a
sua vida privada. Sobre o tema,
acesse o artigo disponível em
http://psilvafreitas.jusbrasil.com.
br/artigos/149456872/a-inexistencia-de-autorizacao-no-uso-da
-imagem-do-artista
3.3.2.2. Pseudônimo
O pseudônimo pode ser definido como o nome fictício utilizado
por uma pessoa no exercício de seu trabalho ou profissão. É comumente
utilizado por literatos e artistas, podendo ser citados como exemplos:
Di Cavalcanti (Emiliano de Albuquerque de Melo), Sílvio Santos (Senor
Abravanel) etc.
O pseudônimo não deve ser confundido com o heterônimo, em
que há a criação não só de um nome fictício, mas de uma personalidade
fictícia. É o que ocorria com Fernando Pessoa, que escrevia e assinava
suas poesias em nome próprio e também por meio de seus heterônimos
(Ricardo Reis, Álvaro Campos, Alberto Caeiro etc.), cada qual com seu
estilo, sentimentos e biografias próprias.
Nos termos do art. 19 do Código Civil, “o pseudônimo adotado
para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome”. Embora
exista distinção entre os conceitos, e o art. 19 do Código Civil somente se
refira ao pseudônimo, ambos recebem a mesma proteção conferida ao
nome. Contudo, requisito essencial para a proteção tanto de um quanto
de outro é que sejam utilizados para atividades lícitas.
3.3.3. Direito à imagem
O direito à imagem é o direito da personalidade conferido a todos
os seres humanos para que possam controlar o uso e a exploração de sua
74
Direito Civil
imagem, como a representação fiel de seus aspectos físicos (fotografia,
retratos pintados, gravuras etc.), sua aparência individual e distinguível,
concreta ou abstrata.
Além da Constituição Federal, o Código Civil também veio proteger o direito à imagem ao dispor que, “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública,
a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a
exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe
atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem
a fins comerciais” (art. 20).
VOCABULÁRIO
veracidade: qualidade de verdadeiro, que demonstra corresponder à verdade.
notoriedade: fama, consagração, reconhecimento por todos.
O objetivo do dispositivo é o de proteger o direito à imagem e outros direitos conexos, conferindo ao titular a disponibilidade sobre a
divulgação de escritos, transmissão da palavra e sua publicação, a exposição ou utilização de imagem. Cabe ao indivíduo autorizar ou proibir
a exploração desses aspectos de sua personalidade. Contudo, essa disponibilidade é relativa e cede diante de interesses sociais maiores como a
administração da justiça ou a manutenção da ordem pública.
Segundo o Enunciado 279/CJF, “a proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de
imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as
JURISPRUDÊNCIA
CIVIL. REGISTRO PÚBLICO. NOME CIVIL. PRENOME. RETIFICAÇÃO. POSSIBILIDADE. MOTIVAÇÃO SUFICIENTE. PERMISSÃO LEGAL. LEI 6.015/1973, ART. 57. HERMENÊUTICA. EVOLUÇÃO DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA. RECURSO PROVIDO. I - O NOME PODE SER MODIFICADO DESDE QUE MOTIVADAMENTE
JUSTIFICADO. NO CASO, ALÉM DO ABANDONO PELO PAI, O AUTOR SEMPRE FOI CONHECIDO POR OUTRO PATRONÍMICO. II - A JURISPRUDÊNCIA, COMO REGISTROU BENEDITO SILVERIO RIBEIRO, AO BUSCAR
A CORRETA INTELIGÊNCIA DA LEI, AFINADA COM A “LÓGICA DO RAZOÁVEL”, TEM SIDO SENSÍVEL AO ENTENDIMENTO DE QUE O QUE SE PRETENDE COM O NOME CIVIL É A REAL INDIVIDUALIZAÇÃO DA PESSOA
PERANTE A FAMÍLIA E A SOCIEDADE (STJ, Quarta Turma, Recurso Especial 1995/0025391-7, julgado em
21/10/1997, publicado no DJ em 9/12/1997, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira).
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. CASAMENTO. NOME CIVIL. SUPRESSÃO DO PATRONÍMICO MATERNO. POSSIBILIDADE. JUSTO MOTIVO. DIREITO DA PERSONALIDADE. INTEGRIDADE PSICOLÓGICA. LAÇOS FAMILIARES ROMPIDOS. AUTONOMIA DE VONTADE. 1. Excepcionalmente, desde que preservados os interesses de terceiro e demonstrado justo motivo, é possível a supressão do patronímico
materno por ocasião do casamento. 2. A supressão devidamente justificada de um patronímico em
virtude do casamento realiza importante direito da personalidade, desde que não prejudique a plena
ancestralidade nem a sociedade. 3. Preservação da autonomia de vontade e da integridade psicológica perante a unidade familiar no caso concreto. 4. Recurso especial não provido (STJ, RECURSO
ESPECIAL, Terceira Turma, n. 2014/0022694-1, julgado em 26/5/2015, publicado no DOJe em 2/6/2015,
Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva).
75
CoMentÁrio
exigência prévia de autorizaçãoparabiografias
Por unanimidade, o Plenário
do Supremo Tribunal Federal julgou, em 10/6/2015, procedente
a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815. Seguindo o
voto da relatora, ministra Cármen
Lúcia, a decisão dá interpretação
conforme a Constituição da República aos artigos 20 e 21 do Código Civil, em consonância com
os direitos fundamentais à liberdade de expressão da atividade
intelectual, artística, científica e
de comunicação, independentemente de censura ou licença de
pessoa biografada, relativamente
a obras biográficas literárias ou
audiovisuais (ou de seus familiares,
em caso de pessoas falecidas). O
tema havia sido objeto de audiência pública convocada pela
relatora em novembro de 2013,
com a participação de 17 expositores. Decisão disponível em
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=4815&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M. Acesso em 7-jul-2015.
CineMateCa
o voo. (Direção de
Robert
Zemeckis,
2013) A trama confronta a questão
da honra subjetiva
e da honra objetiva quando um piloto comercial, vivido por Denzel
Washington, com problemas ligados a bebida e drogas, salva vidas após controlar uma pane na
aeronave por ele conduzida.
características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações”.
E, sobre o tema, a Súmula 403 do Superior Tribunal de Justiça determina que independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação
não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais.
3.3.4. Direito à privacidade e direito à intimidade
De acordo com o art. 21 do Código Civil, a vida privada da pessoa
natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as
providências necessárias para impedir ou interromper ato que desrespeite essa norma.
Enquanto alguns autores defendem que os termos privacidade e intimidade são equivalentes, outros, como Maria Helena Diniz, apontam
diferenças. Enquanto a privacidade protege os aspectos externos da vida
humana, como seus hábitos, e-mails, telefones e cartas, a intimidade
refere-se aos aspectos internos da existência humana, como o segredo, o
relacionamento amoroso, as situações de pudor, o sofrimento em razão
de enfermidade ou a perda de uma pessoa próxima.
Privacidade e intimidade são bens jurídicos tutelados não só pelo
Direito Civil, mas pela própria Constituição Federal, em diversos incisos
do art. 5º (V, X, XI, XII e LX). Protege, assim, a vida privada de violações à casa, à correspondência, ao estilo de vida e aos demais aspectos
próprios de cada pessoa em sua individualidade. Essa tutela também é
sentida no Direito Penal, que pune o desrespeito a esses direitos, considerando crimes a violação de correspondência, a violação de domicílio
e a interceptação telefônica, entre outras práticas.
Ao tutelar a privacidade e a intimidade, o art. 20 do Código Civil
também protege a honra das pessoas. De acordo com a doutrina, a honra pode ser dividida em duas espécies, ambas protegidas pelo direito.
Honra subjetiva é o sentimento que a pessoa tem de si mesma, sentimentos internos de autoestima e dignidade. Por sua vez, honra objetiva
é a forma como a pessoa é vista pelas outras pessoas, o seu conceito
perante a sociedade, sua reputação.
Evidente que as ofensas dirigidas a um ser humano podem acarretar a violação tanto da honra subjetiva quanto da objetiva, ensejando
o direito à reparação dos danos. Se as ofensas forem dirigidas a pessoas
jurídicas, com ou sem intuito lucrativo, haverá apenas violação à honra
objetiva, visto que elas não possuem honra subjetiva.
3.4
ProteÇÃo Dos Direitos Da
PersonaliDaDe
Além de regular alguns direitos da personalidade, o Código Civil
também se preocupou em garantir que eles sejam respeitados, estabelecendo um tratamento especial. Em caso de ameaça, o titular do direito
76
Direito Civil
pode se valer de medidas judiciais preventivas; em caso de lesão, o titular
do direito pode buscar a reparação dos danos morais.
3.4.1. Medidas preventivas
As medidas preventivas ou inibitórias têm por objetivo influir de
forma eficaz na vontade daquele que possa vir a violar direitos da personalidade. Essas medidas judiciais podem, inclusive, apresentar-se por
tutela inaudita altera pars (ou seja, antes mesmo de a parte supostamente agressora ser ouvida pelo juiz), visto que a atuação deverá ser efetiva e
primar pela proteção do bem jurídico de maior valor no caso concreto.
O Código de Processo Civil tutela as formas de coibir lesão a direitos prevendo multas, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras
e impedimento de atividade nociva, garantindo inclusive a possibilidade de requisição policial para seu cumprimento (art. 536, § 1º). Como
exemplo concreto de tais medidas, podemos citar a exclusão de sites na
internet contendo fotos não autorizadas.
3.4.2. Medidas reparatórias
As medidas reparatórias têm por objetivo amenizar as consequências da violação ao direito da personalidade (em observância do princípio da satisfação compensatória). Devemos lembrar que o dano moral
é a lesão a qualquer direito da personalidade e não deve ser confundido
com as suas consequências: dor, angústia, tristeza, depressão etc. Embora
não se confundam, o objetivo da reparação do dano moral é justamente
o de afastar as consequências da violação ao direito da personalidade,
proporcionando à vítima algo que amenize o sofrimento suportado.
Na jurisprudência, restou afastada a discussão do passado sobre a
impossibilidade de se pleitear indenização por dano material cumulada
com indenização por dano moral. Na atualidade, o entendimento pela
possibilidade da cumulação é pacífico e sedimentado no STJ. Nesse sentido, a Súmula 37 do STJ dispõe que “são cumuláveis as indenizações
por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato” (publicada
em 17-3-1992).
3.4.3. Legitimidade para requerer a proteção e a
reparação
Quem pode requerer a tutela jurisdicional de proteção ou de reparação a direito da personalidade é o próprio lesado. O lesado direto é a
pessoa que está sofrendo a lesão em seus direitos da personalidade. Além
do lesado direto, o parágrafo único do art. 12 do Código Civil prevê que
lesados indiretos possam pleitear a proteção e a reparação a direitos da
personalidade de pessoa morta, ao dispor que também têm legitimidade, para tal fim, o cônjuge sobrevivente e qualquer parente em linha reta
e colateral até o quarto grau.
De acordo com o Enunciado 398 da V Jornada de Direito Civil
do Conselho da Justiça Federal, “as medidas previstas no art. 12, pará77
JURISPRUDÊNCIA
INDENIZAÇÃO – DANOS MORAIS
– HERDEIROS – LEGITIMIDADE – 1. Os
pais estão legitimados, por terem interesse jurídico, para acionarem o
Estado na busca de indenização por
danos morais sofridos por seu filho,
em razão de atos administrativos praticados por agentes públicos que deram publicidade ao fato de a vítima
ser portadora do vírus HIV. 2. Os autores, no caso, são herdeiros da vítima,
pelo que exigem indenização pela
dor (dano moral) sofrida, em vida,
pelo filho já falecido, em virtude de
publicação de edital, pelos agentes
do Estado réu, referente à sua condição de portador do vírus HIV. 3. O
direito que, na situação analisada,
poderia ser reconhecido ao falecido,
transmite-se, induvidosamente, aos
seus pais. 4. A regra, em nossa ordem
jurídica, impõe a transmissibilidade
dos direitos não personalíssimos, salvo expressão legal. 5. O direito de
ação por dano moral é de natureza
patrimonial e, como tal, transmite-se
aos sucessores da vítima (RSTJ, vol.
71/183). 6. A perda de pessoa querida pode provocar duas espécies de
dano: o material e o moral. 7. “O herdeiro não sucede no sofrimento da
vítima. Não seria razoável admitir-se
que o sofrimento do ofendido se prolongasse ou se entendesse (deve ser
estendesse) ao herdeiro e este, fazendo sua a dor do morto, demandasse
o responsável, a fim de ser indenizado
da dor alheia. Mas é irrecusável que
o herdeiro sucede no direito de ação
que o morto, quando ainda vivo, tinha contra o autor do dano. Se o
sofrimento é algo entranhadamente
pessoal, o direito de ação de indenização do dano moral é de natureza
patrimonial e, como tal, transmite-se
aos sucessores” (Leon Mazeaud, em
magistério publicado no Recueil Critique Dalloz, 1943, p. 46, citado por
Mário Moacyr Porto, conforme referido no acórdão recorrido). 8. Recurso
improvido. (STJ – REsp – 324886 – PR
– 1ª T. – Rel. Min. José Delgado – DJU
03.09.2001 – p. 159)
grafo único, do Código Civil podem ser invocadas por qualquer uma
das pessoas ali mencionadas de forma concorrente e autônoma”. Esse
enunciado tem por objetivo afastar a tese de que haveria uma ordem de
vocação hereditária, semelhante àquela existente no Código Civil para
estabelecer quem são os herdeiros, para pleitear indenização por dano
moral. Afinal, o sofrimento pela ofensa dirigida ao ente querido não tem
qualquer relação com eventual direito hereditário.
Especificamente quanto ao direito de imagem, o art. 20, parágrafo único, do Código Civil dispõe que, “em se tratando de morto ou de
ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os
ascendentes ou os descendentes”. De acordo com o Enunciado 275 do
Conselho da Justiça Federal, “o rol dos legitimados de que tratam os
arts. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, do Código Civil também
compreende o companheiro”.
78
4
A Pessoa Jurídica
VoCaBUlÁrio
ficção: no sentido empregado
nesse texto, fantasia, algo criado artificialmente
aUtor
león Duguit
(1859-1928) foi
um doutrinador
francês que tratou do direito
público e das
limitações ao poder do Estado.
Marcel Ferdinand
Planiol
(1861-1959) foi o
jurista que deu
ao Direito Civil
francês um olhar
diferenciado na
chamada Belle Époque.
rudolf Von
Jhering
(18181892), autor alemão, teve grande
influência
para a ciência
jurídica ocidental. Seu livro “A
Luta pelo Direito” é obra clássica
que introduz a concepção finalista do Direito.
4.1
ConCeito
Denominam-se pessoas jurídicas os entes formados pela coletividade de bens ou de pessoas a quem a lei atribui personalidade jurídica,
com o objetivo de que seja atingida uma determinada finalidade autorizada ou não proibida por Lei (ou seja, lícita). Em outras palavras,
para que a coletividade possa agir como uma unidade, o ordenamento
jurídico confere uma personalidade própria, que não deve ser confundida com a personalidade de cada um de seus integrantes (conforme a
expressão latina universitas distat a singulis).
Quando o agrupamento é de pessoas, afirma-se que a pessoa jurídica é intersubjetiva, podendo assumir a forma de uma associação ou de
uma sociedade. Quando é resultado do agrupamento de bens, a pessoa
jurídica é patrimonial, sendo denominada fundação. Excepcionalmente, o ordenamento jurídico também confere personalidade a entidades
sem coletividade, podendo ser citada como exemplo a Eireli (Empresa
Individual de Responsabilidade Limitada).
4.2
natUreZa JUríDiCa
É pacífico o entendimento na atualidade de que as pessoas jurídicas
devem ser classificadas como sujeitos de direito, justamente por serem
entes dotados de capacidade e personalidade jurídica própria. Entretanto, por muito tempo não houve consenso com relação à natureza jurídica das pessoas jurídicas. No passado, não foram poucos os autores que
negaram a qualidade de sujeito de direito à pessoa jurídica (Duguit, Planiol, Berthélemy, Ihering, Wieland, Bolze etc.). Consideravam a pessoa
jurídica uma forma especial de patrimônio (mera forma de condomínio
ou propriedade coletiva), em que as decisões eram tomadas pelos seus
proprietários de forma coletiva.
Paulatinamente, as teorias negativistas da pessoa jurídica foram
sendo rebatidas e hoje a posição majoritária é no sentido de que as pessoas jurídicas têm personalidade jurídica própria. Contudo, os autores divergem sobre a tese que fundamentara a personalidade. Dentre as diversas teorias afirmativistas da pessoa jurídica, destacam-se as seguintes:
a) Teoria da equiparação: baseia-se na ideia de que a pessoa jurídica é um patrimônio que recebe do ordenamento jurídico, por
equiparação, o mesmo tratamento dispensado às pessoas naturais (seres humanos). Por tratar bens como sujeitos de direitos,
essa teoria é muito criticada pela doutrina, havendo até mesmo
quem entenda que pertença ao grupo das teorias negativistas
da pessoa jurídica. Dentre os defensores dessa teoria, destacam-se Windscheid e Brinz.
b) Teoria da ficção legal: para essa teoria, a pessoa jurídica é uma
mera abstração legal, isto é, uma criação artificial do legislador.
A crítica recai sobre o fato de que esta teoria reconhece apenas a
80
Direito Civil
existência ideal da pessoa jurídica, negando sua existência real
e colocando a lei como força criativa, e não como uma força
confirmativa da personalidade jurídica. Além disso, se a personalidade das pessoas jurídicas é fruto de ficção, fictício será o
direito que dela deriva. O desenvolvimento da teoria de ficção
legal é atribuído a Savigny, sendo defendida também por Orlando Gomes. Importante salientar a existência de outra teoria,
decorrente dela, que defende que a personalidade da pessoa jurídica é resultado de invenção dos estudiosos do direito (teoria
da ficção doutrinária). Trata-se de posicionamento pouco difundido, e que é alvo das mesmas críticas acima mencionadas.
c)Teoria da realidade objetiva: a teoria da realidade objetiva,
também conhecida como teoria da realidade orgânica, teoria
orgânica ou teoria organicionista, defende exatamente o oposto da teoria da ficção legal. As pessoas jurídicas são, portanto,
entes de existência real (detentoras de identidade organizacional própria), cuja personalidade jurídica independe do reconhecimento legal. Reconhece-se a dimensão sociológica das
pessoas jurídicas ao considerá-las um organismo social vivo. A
formulação dessa teoria é atribuída a Gierke e Zitelmann.
d)Teoria da realidade técnica: mesclando as ideias das teorias anteriores, a teoria da realidade técnica defende que a personalidade
da pessoa jurídica é resultado de sua existência real aliada à sua
existência ideal. Reconhece, desta feita, a importância da dimensão social e legal das pessoas jurídicas, sem ignorar o lado fictício
da pessoa jurídica (criação legal). Assim sendo, a personalidade
jurídica seria conferida pela lei a qualquer agrupamento suscetível de ter uma vontade própria e de defender seus próprios interesses. Defende essa posição Caio Mário da Silva Pereira.
Elementos estruturais (pressupostos
existenciais da pessoa jurídica)
4.3
Para que a pessoa jurídica possa ser constituída de forma válida,
são exigidos diversos requisitos. Importante observar que a doutrina
está longe de chegar a um consenso com relação ao tema. Contudo, entendemos que os principais pressupostos gerais são: a vontade humana
criadora; a coletividade de pessoas ou de bens; e a finalidade lícita. E
diz-se “gerais” porque, além destes, deverão ser observados outros exigidos pela lei, a depender do tipo específico de pessoa jurídica que será
constituída. A título de exemplo podemos citar: a elaboração do estatuto
ou contrato social; a inscrição do ato constitutivo; a autorização prévia
do Poder Executivo exigida em hipóteses excepcionais (p. ex.: instituições bancárias e seguradoras) etc.
Vejamos, agora, de forma detalhada, os três principais requisitos:
81
AUTOR
Friedrich Carl
von Savigny (17791861) foi um jurista
alemão de grande
influência nos países de tradição jurídica romano-germânica, além de
ter sido o grande nome da Escola
Histórica do Direito e ter tratado
em sua obra de conceitos como
relação jurídica e fato jurídico.
Orlando
Gomes (19091988), brasileiro
de
Salvador,
Bahia, foi jurista
de grande importância para
o Direito Civil.
Tratou de todos
os temas da disciplina e consolidou vários dos seus conceitos fundamentais no Brasil.
CineMateCa
a Firma. (Direção
de Sydney Pollack, 1993) Retrata
uma sociedade
de
advogados
cuja
finalidade
é a lavagem de
dinheiro de uma
organização criminosa, demonstrando a falta de liceidade da
pessoa jurídica.
1º Requisito: vontade humana criadora
A vontade humana criadora é sempre um requisito essencial para a
constituição da pessoa jurídica formada, não importando se é composta pela coletividade de pessoas ou de bens. Nas pessoas jurídicas intersubjetivas, há uma conversão de vontades de todos os participantes do
grupo para que os fins comuns sejam alcançados. Nas pessoas jurídicas
patrimoniais, o fundador manifesta a sua vontade para que a coletividade de bens adquira personalidade jurídica (vontade heterônoma). A
vontade humana criadora deve ser manifestada de forma livre e consciente por pessoa capaz ou devidamente representada.
2º Requisito: coletividade de pessoas ou bens
A coletividade de pessoas (nas sociedades e nas associações) ou a
coletividade de bens (nas fundações) é a base estrutural da pessoa jurídica. Excepcionalmente, o ordenamento jurídico confere personalidade
jurídica a entes despidos de coletividade, como ocorre com a Eireli (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada).
3º Requisito: finalidade lícita (liceidade)
Uma pessoa jurídica sempre será constituída com o fim de alcançar
uma finalidade específica, seja lucrativa (p. ex.: sociedade) ou não (p.
ex.: associação filantrópica, educativa, recreativa, política, religiosa etc.).
Qualquer que seja esse objetivo, certo é que não poderá estar desconforme o ordenamento jurídico, devendo respeitar a lei, a moral, a ordem
pública e os bons costumes.
Caso tenha sido constituída com finalidade lícita e durante sua
existência se desvirtuado, o Ministério Público poderá requerer sua dissolução. Cite-se como exemplo, aqui, o episódio envolvendo algumas
torcidas organizadas de clubes de futebol do Estado de São Paulo.
4.4
PersonaliDaDe JUríDiCa
Já se estudou que, no que concerne às pessoas naturais, todos os
seres humanos são dotados de personalidade jurídica e, por isso, podem
titularizar relações jurídicas. O mesmo ocorre com as pessoas jurídicas: assim como a lei confere personalidade jurídica às pessoas naturais,
também a confere às pessoas jurídicas, permitindo que sejam titulares
de direitos e deveres. Daí resulta que as pessoas jurídicas também são
detentoras de capacidade jurídica, podendo praticar diversos atos da
vida civil, como, por exemplo, celebrar contratos, adquirir bens móveis
e imóveis, receber herança etc. Contudo, não se pode afirmar que as
pessoas jurídicas podem praticar todos os atos da vida civil, pois alguns
são reservados aos seres humanos, como a adoção, o casamento, a celebração de testamento etc.
4.4.1. Personalidade jurídica e direitos da
personalidade
Com relação à titularidade de direitos da personalidade, vimos no
82
Direito Civil
capítulo anterior (Direitos da Personalidade) que a posição doutrinária majoritária é no sentido de que as pessoas jurídicas possuem alguns
direitos da personalidade, tais como o direito à imagem e à honra objetiva. Nesse sentido, o art. 52 do Código Civil determina: “aplica-se às
pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”. Por serem detentoras de direitos da personalidade, podem sofrer
dano moral, como, aliás, prevê a Súmula 227/STJ. Recomendamos a
leitura da Unidade anterior para conferir as posições doutrinárias sobre o tema.
JURISPRUDÊNCIA
Súmula 227 – STJ:
“A pessoa jurídica pode sofrer dano moral".
4.4.2. Início da personalidade
Já estudamos as diversas teorias existentes quanto à determinação
do momento em que os seres humanos adquirem personalidade jurídica
(se a partir do nascimento ou da concepção). Com relação às pessoas jurídicas, a questão também não é simples, mas, diferentemente da pessoa
física, que surge de um fato jurídico natural (biológico), a pessoa jurídica surge a partir de um fato jurídico humano: a vontade.
Para determinação do momento do surgimento da personalidade
da pessoa jurídica, deve ser feita a distinção entre as pessoas jurídicas de
direito público e as pessoas jurídicas de direito privado.
4.4.2.1. Início da personalidade das pessoas
jurídicas de direito público
BIBLIOTECA
As pessoas jurídicas de direito público são normalmente constituídas por lei e, desta forma, adquirem personalidade no exato momento em que a lei instituidora entrar em vigor. Excepcionalmente, a lei
assume papel secundário, autorizando que o chefe do Poder Executivo
(municipal, estadual ou federal) crie uma pessoa jurídica por força de
decreto, adquirindo personalidade a partir da vigência deste. Além da
criação por força de lei e por força de decreto, as pessoas jurídicas também podem ser constituídas por meio da promulgação de uma nova
constituição, de um fato histórico ou de um tratado internacional.
Vale lembrar que os tratados internacionais são normalmente utilizados
para a criação de pessoas jurídicas de direito público externo – ONU,
OIT, OMS etc.
4.4.2.2. Início da personalidade das pessoas
jurídicas de direito privado
O legislador brasileiro adotou como regra o sistema das disposições normativas ao exigir a observância de determinados requisitos legais, dentre eles o registro (a inscrição) do ato constitutivo. De acordo
com o art. 45 do Código Civil, a existência legal das pessoas jurídicas de
direito privado começa com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação
do Poder Executivo. Antes da análise detalhada do registro de cada uma
83
O sexto membro permanente: o Brasil e a criação da ONU,
de Eugênio Vargas Garcia, que
discorre, especialmente em seus
capítulos iniciais, sobre o planejamento político que culminou na
criação da organização supranacional que sobrevive até os dias
atuais.
Oswaldo Aranha – uma biografia, de Stanley Hilton, sobre o
brasileiro que viveu à época da
criação da ONU e participou da
sua Assembleia Geral, em que
aprovou-se, no ano de 1947, a divisão do território palestino em um
Estado judeu e outro árabe, por
meio da Resolução n. 181.
das pessoas jurídicas, devemos verificar cada um dos sistemas que tratam da existência das pessoas jurídicas:
Sistema da livre formação: foi o sistema adotado no Brasil até
setembro de 1983, contudo era atacado por diversas críticas. Defende
que a existência da pessoa jurídica tem início a partir da simples manifestação de vontade dos membros que a compõem, bastando, assim,
a elaboração do ato constitutivo. Ao dispensar o registro do ato, não
oferece qualquer segurança para as pessoas que contratam com a pessoa
jurídica.
Sistema do reconhecimento: defende que a pessoa jurídica somente existe a partir do momento em que o Estado a reconhece, mediante
um decreto de reconhecimento. Esse sistema, que tem suas origens no
direito romano, ainda é adotado na Itália, França e Portugal.
Sistema das disposições normativas: sistema atualmente adotado
no Brasil, representa uma posição intermediária entre os dois anteriores,
ao estabelecer que a existência da pessoa jurídica não depende do reconhecimento ou da autorização estatal, mas do cumprimento de certos
requisitos legais (p. ex.: o registro). Em situações excepcionais, exige-se
no nosso país prévia autorização do Estado para criação da pessoa jurídica (p. ex.: instituições financeiras).
4.4.3. ato constitutivo e registro da pessoa jurídica
As pessoas jurídicas passam por duas fases quando de sua criação:
a primeira, consistente na elaboração do ato constitutivo; e a segunda,
representada pelo registro do ato constitutivo. O ato constitutivo de
uma sociedade é denominado contrato social; já o de uma associação
ou de uma fundação é chamando estatuto. De acordo com o art. 46
do Código Civil, o registro deverá mencionar os seguintes requisitos:
I – a denominação, os fins, a sede, o tempo de duração e o fundo social,
quando houver; II – o nome e a individualização dos fundadores ou instituidores, e dos diretores; III – o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente; IV – se o ato
constitutivo é reformável no tocante à administração, e de que modo; V
– se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações
sociais; VI – as condições de extinção da pessoa jurídica e o destino do
seu patrimônio, nesse caso.
A Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/73 – art. 115) também
estabelece regras para a constituição da pessoa jurídica, proibindo o seu
registro “quando o seu objeto ou circunstâncias relevantes indiquem
destino ou atividade ilícitos, ou contrários, nocivos ou perigosos ao bem
público, à segurança do Estado e da coletividade, à ordem pública ou social, à moral e aos bons costumes”. Caso um estatuto ou contrato social
seja levado a registro e o oficial que o receber perceber que se trata de
pessoa jurídica cujo objeto a lei proíbe, deverá sobrestar o feito, de ofício
ou por provocação de qualquer autoridade, e suscitar dúvida para que
o juiz decida.
84
Direito Civil
Em regra, a constituição de uma pessoa jurídica não depende de
prévia autorização do Poder Executivo, somente exigida em situações
excepcionais, como, por exemplo, para entidades financeiras (que requerem autorização do Banco Central), e seguradoras (as quais dependem
de autorização da SUSEP).
4.4.3.1. N
atureza jurídica do registro das pessoas
jurídicas
Diferentemente do que acontece com as pessoas físicas, em que o
registro tem natureza meramente declaratória (retroagindo ao momento do nascimento/concepção – portanto, dotadas de eficácia ex tunc),
o registro das pessoas jurídicas tem natureza constitutiva, pois a personalidade somente é adquirida a partir dele. Dessa forma, podemos
afirmar que o registro das pessoas jurídicas tem eficácia ex nunc, não
legitimando ou convalidando atos pretéritos. Essa é a posição majoritária na doutrina, mas devemos destacar que alguns autores do direito empresarial, como Fábio Ulhoa Coelho, defendem que o registro é
declaratório e que a pessoa jurídica existe desde o momento em que o
contrato social é celebrado.
Denominam-se entes despersonalizados as sociedades de fato (inexiste o ato constitutivo) e as sociedades irregulares (que possuem ato
constitutivo, mas este não se encontra devidamente registrado). Ambas
recebem o mesmo tratamento jurídico e dentre os diversos problemas
enfrentados por uma sociedade despersonificada podemos destacar os
seguintes:
• Responsabilidade pessoal, solidária e ilimitada dos sócios em face
de quem contratou com a pessoa jurídica e de terceiros lesados.
• Impossibilidade de obter número de inscrição no Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas – CNPJ, perante a Receita Federal.
• Impossibilidade de participar de uma licitação ou de obter empréstimos ou financiamentos bancários.
• Impossibilidade de ingressar em juízo em face de terceiros (em
regra).
4.4.3.2. Local do registro
A determinação do local onde deve ser levado a registro o ato constitutivo varia de acordo com o tipo de pessoa jurídica que se pretende
registrar. A questão nem sempre é simples, pois, além das leis federais
sobre a matéria (p. ex.: Lei de Registros Públicos), as Corregedorias dos
Tribunais de Justiça estaduais estabelecem normas sobre competência
registral.
a) Junta comercial (Registro Público de Empresa): nas Juntas
Comerciais Estaduais devem ser registradas as sociedades empresárias
(antigamente denominadas de sociedades mercantis), conforme dispõe
a Lei n. 8.934/94. Também são registradas na Junta Comercial:
85
JURISPRUDÊNCIA
CARTÓRIO. ENTE DESPERSONALIZADO. ILEGITIMIDADE ATIVA
AD CAUSAM. RESOLUÇÃO SEM
MÉRITO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CABIMENTO. Na condição
de ente despersonalizado e desprovido de patrimônio próprio, a
serventia extrajudicial não possui
personalidade jurídica nem judiciária que lhe permita figurar
no polo ativo ou passivo de uma
demanda judicial. TRF-3 - APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO APELREE 63639 SP 1999.03.99.0636397 (TRF-3). Data de publicação:
17/02/2011.
Seguradoras: o ato constitutivo das seguradoras deve ser registrado na Junta Comercial do Estado em que se constituírem. Esse registro
somente é possível após prévia autorização da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, consoante Resolução 166/2007 do Conselho
Nacional de Segurados Privados – CNSP.
Operadoras de plano de saúde: a constituição de uma operadora
de plano privado de assistência à saúde depende de registro na Junta
Comercial, na Agência Nacional de Saúde – ANS, bem como de registro
nos Conselhos Regionais de Medicina e Odontologia, conforme o caso,
em cumprimento ao disposto no art. 1º da Lei n. 6.839, de 30 de outubro
de 1980, e conforme o disposto no art. 8º da Lei n. 9.656/98.
Instituições financeiras: a existência legal das instituições financeiras também depende do registro de seus atos constitutivos na Junta
Comercial. Para que o registro seja promovido, exige-se prévia autorização do Banco Central, consoante determinação da Lei n. 4.595/64, que
instituiu o Conselho Monetário Nacional.
b) Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (CRCPJ):
para que possam ser consideradas regularmente constituídas, as associações e fundações deverão ter seus estatutos devidamente registrados no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (“Livro A”) do
município onde se estabelecerem. No mesmo local também deverão
ser levados a registro os contratos sociais das sociedades simples (conforme art. 114 da Lei de Registros Públicos – Lei n. 6.015/77). Além das
associações, fundações e sociedades simples, devem ser destacadas as
seguintes entidades:
Sociedades de profissionais liberais: devem ser registradas no Cartório de Registro Civil das Pessoas jurídicas por desenvolverem atividade
intelectual. De acordo com o art. 966 do Código Civil de 2002, “não
se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares
ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento
de empresa”. Como exemplo, podemos citar as sociedades de médicos,
dentistas, engenheiros, contadores etc. Além do registro no CRCPJ, essas sociedades também devem ser registradas na respectiva entidade de
classe (CRM, CRO, CREA, CRC etc.).
Partidos políticos: devem ter seus estatutos registrados no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas do Distrito Federal e, posteriormente, no Tribunal Superior Eleitoral (Constituição Federal, art. 17,
§ 2º; Lei n. 9.096/95, arts. 7º e 8º e Lei de Registros Públicos, art. 114, III).
Sindicatos: o registro do sindicato deve ser feito no Cartório de
Registro Civil das Pessoas Jurídicas no “Livro A” (Constituição Federal,
art. 8º, I e Lei de Registros Públicos, art. 114, I). Nos termos do art. 518
e seguintes da CLT, o sindicato também deverá ser cadastrado no Ministério do Trabalho. De acordo com a jurisprudência do STJ o sindicato
adquire sua personalidade jurídica a partir do registro no CRCPJ, sendo
desnecessário o registro junto ao Ministério do Trabalho. Contudo, para
86
Direito Civil
o Supremo Tribunal Federal, a constituição válida dos sindicatos depende do duplo registro.
Cooperativas: existe divergência doutrinária a respeito do local
onde devem ser registradas as atas das assembleias constitutivas das cooperativas, podendo ser apontadas duas correntes. A primeira corrente
defende que as cooperativas devem ser registradas na Junta Comercial,
de acordo com as Leis ns. 5.764/71 (Lei das Cooperativas) e 8.934/94
(art. 32, II). A segunda corrente defende que as cooperativas devem ser
registradas no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, pois
teriam sido tratadas como sociedades simples pelo Código Civil de 2002
(arts. 982, II; 1.093 e seguintes). A questão é bem polêmica, e podemos
afirmar que na prática tem prevalecido a primeira corrente, tendo a Receita Federal recusado a emissão de CNPJ para cooperativas registradas
no CRCPJ.
ONGs: as Organizações Não Governamentais são entidades filantrópicas que adquirem personalidade jurídica a partir do registro dos
seus estatutos no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas. Para
ATENÇÃO
Adequação das pessoas jurídicas ao Código Civil de 2002
O art. 2.031 do Código Civil dispõe que “as associações, sociedades e fundações, constituídas na
forma das leis anteriores, bem como os empresários, deverão se adaptar às disposições deste Código
até 11 de janeiro de 2007”. Em sua redação original, o prazo era de um ano, depois foi dilatado para
dois anos (pela Lei n. 10.838/2004) e, finalmente, para quatro anos – 11-1-2007 (Lei n. 11.127/2005). O
parágrafo único do art. 2.031 (incluído pela Lei n. 10.825/2003) ressalvou as organizações religiosas e os
partidos políticos, dispensando-os de promover qualquer regularização.
A aplicabilidade do caput do art. 2.031 do Código Civil é objeto de controvérsia doutrinária, pois
estabelece uma obrigação para pessoas jurídicas já constituí­das. Sobre a questão podem ser apresentadas duas correntes:
1ª Corrente: defende que o caput do art. 2.031 do Código Civil é válido e que as pessoas jurídicas
constituídas anteriormente devem se adequar ao novo diploma. Essa é a corrente majoritária. O problema é que o CC/2002 não estabeleceu qual seria a consequência da inobservância do dispositivo.
Entendemos que a melhor solução é a equiparação das pessoas jurídicas que não se adequaram
às sociedades irregulares, suportando as consequências desse tratamento. Assim, enquanto não se
regularizarem, não poderão participar de licitações; não poderão obter empréstimos bancários; não
poderão receber verba pública etc.
2ª Corrente: defende que o dispositivo é inconstitucional por violar a proteção do ato jurídico perfeito, em afronta ao art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. Essa corrente é minoritária.
Quanto às fundações, o art. 2.032 determina que aquelas instituídas segundo a legislação anterior,
inclusive as de fins diversos dos previstos no parágrafo único do art. 62, subordinam-se, quanto ao seu
funcionamento, ao disposto no Código Civil de 2002.
Salvo o disposto em lei especial, as modificações dos atos constitutivos das pessoas jurídicas referidas no art. 44 (p. ex.: sociedades, associações, fundações etc.), bem como a sua transformação, incorporação, cisão ou fusão, regem-se desde logo por esse Código (art. 2.033). Diversamente, a dissolução
e a liquidação dessas mesmas pessoas jurídicas, quando iniciadas antes da vigência do Código Civil
de 2002, obedecerão ao disposto nas leis anteriores.
87
VoCaBUlÁrio
decurso: esgotamento ou término (de um prazo).
que possam receber o Certificado de Fins Filantrópicos, devem ser inscritas no Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, que é o órgão responsável pela regulamentação da política nacional de assistência
social. A inscrição das entidades no CNAS somente é possível após a
inscrição no Conselho Municipal da localidade em que exercem suas
atividades (art. 9º, § 3º, da Lei n. 8.742/93 – Lei Orgânica da Assistência
Social). Caso o município ainda não tenha instituído o Conselho Municipal de Assistência Social, a entidade deverá inscrever-se no Conselho
Estadual do estado em que estiver localizada sua sede.
Empresas de comunicação: de acordo com o disposto nos arts. 116,
II, e 122 e seguintes da Lei de Registros Públicos, o registro de jornais, oficinas impressoras, empresas de radiodifusão e agências de notícias deverá
ser feito no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (no “Livro
B”). De acordo com o art. 125 da Lei de Registros Públicos, considera-se clandestino o jornal, ou outra publicação periódica, não matriculado
(registrado) nos termos do art. 122 ou de cuja matrícula não constem os
nomes e as qualificações do diretor ou redator e do proprietário.
c) Outros locais: algumas pessoas jurídicas são registradas em outros locais, como, por exemplo, as sociedades de advogados, que devem
ser registradas exclusivamente na Ordem dos Advogados do Brasil, no
Conselho Seccional em cuja base territorial tiverem sede, conforme dispõe o art. 15, § 1º, do Estatuto da OAB.
4.4.4. Fim da personalidade
Assim como ocorre com as pessoas naturais, a extinção da pessoa
jurídica determina o fim de sua personalidade jurídica. Deve ser lembrado que a extinção nunca é instantânea, pois, seja qual for a hipótese,
deverá ser feita sua liquidação, com a realização do ativo (créditos) e
o pagamento do passivo (débitos). Encerrada a liquidação, poderá ser
requerido o cancelamento da inscrição da pessoa jurídica.
Como hipóteses de extinção, podemos citar o decurso do prazo de
sua duração; a sua dissolução; a deliberação dos sócios; a falta de pluralidade dos sócios; uma determinação legal; um ato governamental; a
dissolução judicial; a morte de sócio etc.
Com a extinção da pessoa jurídica, deve ser dado um destino aos
bens remanescentes. Nas sociedades, os bens remanescentes vão para os
sócios. Nas associações e nas fundações, os bens devem ser destinados,
em regra, a outra instituição com fins semelhantes, como veremos nos
respectivos tópicos mais à frente.
4.5
rePresentaÇÃo Da Pessoa JUríDiCa
A forma pela qual será representada a pessoa jurídica deve constar do ato constitutivo no momento do registro. A representação é feita
pelos administradores nomeados, nos limites dos poderes conferidos
88
Direito Civil
(Código Civil, art. 47). De acordo com o Enunciado 145 da III Jornada
de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, “o art. 47 não afasta a
aplicação da teoria da aparência”, nos casos de responsabilização do sócio por atos praticados em nome da pessoa jurídica.
Se a administração da pessoa jurídica for coletiva, as decisões serão
tomadas pela maioria dos votos dos presentes, salvo se o ato constitutivo
dispuser de modo diverso. Podem ser anuladas no prazo decadencial de
3 (três) anos as decisões tomadas pela maioria em caso de violação do
estatuto ou lei, erro, dolo, simulação ou fraude. Se a administração da
pessoa jurídica vier a faltar, o juiz, a requerimento de qualquer interessado, nomear-lhe-á administrador provisório (ad hoc).
Responsabilidade da pessoa
jurídica
4.6
ATENÇÃO
Logo após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, surgiu divergência sobre qual seria
o prazo de prescrição aplicável
à pretensão indenizatória exercida em face do Estado: o prazo
de 3 anos, previsto no art. 206, §
3º, V, do Código Civil de 2002 ou
o prazo de 5 anos, previsto no art.
1º do Decreto n. 20.910/32. Na jurisprudência do Superior Tribunal
de Justiça, prevaleceu o entendimento de que deve ser aplicado o prazo previsto no referido
decreto.
Por serem detentoras de personalidade jurídica própria, as pessoas
jurídicas de direito privado respondem com seu próprio patrimônio pelos danos que causarem a terceiros (responsabilidade extracontratual) e
pelas obrigações assumidas pelos seus administradores, nos limites estabelecidos em seus estatutos (responsabilidade contratual).
Os atos praticados por administradores que extrapolem os poderes
definidos no estatuto, bem como os atos praticados por falsos administradores, em regra, não geram responsabilidade para as pessoas jurídicas. Excepcionalmente, a pessoa jurídica poderá ser chamada a responder por esses atos diante da aplicação da teoria da aparência (boa-fé subjetiva). Exemplo: uma empresa pode ser obrigada a honrar um contrato
celebrado por um administrador que foi demitido se o fornecedor não
tinha conhecimento da demissão (agiu de boa-fé).
Nos termos do art. 53 do Código Civil, as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes
que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa
ou dolo. Em outras palavras, as pessoas jurídicas de direito público interno têm, em regra, responsabilidade objetiva pelos danos causados a
terceiros. Em situações excepcionais, relacionadas a conduta omissiva, a
responsabilidade será subjetiva.
Quanto às pessoas jurídicas de direito privado, a responsabilidade
civil também é, em princípio, do tipo objetiva, pela incidência dos arts.
932 e 933 do Código Civil de 2002, que determinam que, ainda que não
haja culpa de sua parte, o empregador responde pelos atos de seus empregados, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele.
Essa afirmação é reforçada por outros dispositivos, como o art. 927
do Código Civil, que estabelece responsabilidade objetiva quando a atividade desenvolvida implicar risco aos direitos de outrem (atividade de
89
CINEMATECA
Erin Brockovich
– Uma Mulher
de Talento. (Direção de Steven Soderbergh, 2000) Narra
a história verídica da mulher
que lutou contra a empresa de
energia Pacific Gas and Electric
Company (PG&E), que contamina o ambiente de uma comunidade de moradores próximos às
suas instalações, causando-lhes
câncer. Aborda a questão da responsabilidade civil objetiva das
pessoas jurídicas.
atenÇÃo
Sociedades de economia
mista e empresas públicas são
consideradas pessoas jurídicas de
direito privado, em que pese integrarem a administração indireta,
conforme art. 4º do Decreto-lei n.
200/67.
risco – art. 927, parágrafo único). Também será objetiva pelos danos
causados pelos produtos postos em circulação (art. 931), bem como pelos acidentes de consumo na prestação de serviços e fornecimento de
produtos no mercado de consumo (Código de Defesa do Consumidor,
arts. 12 a 17).
4.7
Das DiVersas ClassiFiCaÇões Das
Pessoas JUríDiCas
As pessoas jurídicas podem ser classificadas levando-se em consideração a sua nacionalidade, a estrutura interna, ou a função a que se
submetem. Vejamos cada uma dessas classificações e as principais consequências:
4.7.1.Classificaçãoquantoàestruturainterna
Quanto à estrutura interna, as pessoas jurídicas podem ser divididas em corporações (universitas personarum) e fundações (universitas
bonorum). Corporações são pessoas jurídicas formadas pela reunião de
pessoas, podendo assumir a forma de sociedade ou de associação. Fundações são pessoas jurídicas formadas pela coletividade de bens. O estudo das sociedades, das associações e das fundações é realizado de forma
detalhada mais à frente nesta obra.
4.7.2.Classificaçãoquantoàfunção
Classificadas em atenção à função que desempenham, as pessoas
jurídicas podem ser divididas em pessoas jurídicas de direito público e pessoas jurídicas de direito privado. Esta é a principal forma de
classificação das pessoas jurídicas e foi adotada nos arts. 40 a 44 do
Código Civil.
4.7.2.1. Pessoas jurídicas de direito público
As pessoas jurídicas de direito público são aquelas reguladas por
normas de direito público e estudadas pelo Direito Administrativo, podendo ser divididas em pessoas jurídicas de direito público externo e
interno:
a) Pessoas jurídicas de direito público externo: de acordo com
o art. 42 do Código Civil, são consideradas pessoas jurídicas
de direito público externo os Estados estrangeiros e todas as
pessoas regidas pelo direito internacional público (ONU,
OIT, OMC, FMI, OEA, UNESCO, INTERPOL, Santa Sé, Cruz
Vermelha, MERCOSUL, ALCA, União Europeia etc.).
b) Pessoas jurídicas de direito público interno: de acordo com o
art. 41 do Código Civil, são pessoas jurídicas de direito público
90
Direito Civil
interno: I – a União; II – os Estados, o Distrito Federal e os Territórios; III – os Municípios; IV – as autarquias, inclusive as associações públicas (redação dada pela Lei n. 11.107, de 2005); e
V – as demais entidades de caráter público criadas por lei. Salvo
disposição em contrário, as pessoas jurídicas de direito público,
a que se tenha dado estrutura de direito privado, regem-se, no
que couber, quanto ao seu funcionamento, pelas normas desse
Código.
Portanto, são consideradas pessoas jurídicas de direito público interno:
NIÃO, ESTADOS, DISTRITO FEDERAL, TERRITÓRIOS E MUU
NICÍPIOS: a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
compõem a administração direta, enquanto os Territórios Federais
são considerados entes da administração indireta.
UTARQUIAS, INCLUSIVE AS ASSOCIAÇÕES PÚBLICAS: as
A
autarquias e as associações públicas compõem a administração indireta. Como exemplo de autarquias podemos citar: USP, INCRA,
INPI, INSS, IPHAN, CADE, as agências reguladoras (Anatel, Aneel,
Anvisa, ANP) e as agências executivas também (Lei n. 9.649/98).
EMAIS ENTIDADES DE CARÁTER PÚBLICO CRIADAS POR
D
LEI: como exemplo, podemos citar os consórcios públicos formados por pessoas jurídicas de direito público interno que compõem
a administração i­ ndireta.
4.7.2.2. Pessoas jurídicas de direito privado
As pessoas jurídicas de direito privado são aquelas reguladas por
normas de direito privado, tais como o Código Civil e a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho. Nos termos do art. 44 do Código Civil, são
pessoas jurídicas de direito privado: I – as associações; II – as sociedades;
III – as fundações; IV – as organizações religiosas (incluído pela Lei n.
10.825, de 22-12-2003); V – os partidos políticos (incluído pela Lei n.
10.825, de 22-12-2003); e VI – as empresas individuais de responsabilidade limitada (Eireli).
De acordo com o Enunciado 144 da III Jornada de Direito Civil do
Conselho da Justiça Federal, “a relação das pessoas jurídicas de direito
privado estabelecida no art. 44, I a V, do Código Civil, não é exaustiva”.
E, segundo o Enunciado 142 da mesma Jornada, “os partidos políticos,
sindicatos e associações religiosas possuem natureza associativa, aplicando-lhes o Código Civil”.
São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público
negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento. Os partidos políticos serão organizados
e funcionarão conforme o disposto em lei específica (Lei n. 9.096/95).
91
VoCaBUlÁrio
cláusulas de incomunicabilidade e inalienabilidade: regras,
em geral previstas em um contrato, que determinam que um
bem não pode ser objeto de
comunhão ou compartilhamento (incomunicável) nem
pode ser alienado, isto é, ter
sua propriedade transferida a
outra pessoal (inalienável).
Como não há dispositivos do Código Civil regulando os partidos
políticos e as entidades religiosas, não iremos aprofundar aqui o estudo
dessas pessoas jurídicas.
4.8
soCieDaDes
São pessoas jurídicas de direito privado formadas pela união de pessoas (universitas personarum), que se organizam para desenvolver uma
atividade econômica com intuito lucrativo. Antigamente as sociedades
eram reguladas pelo Código Comercial de 1850. Com a introdução do
Código Civil de 2002 as obrigações civis e comerciais foram unificadas
em um mesmo diploma e a matéria passou a ser tratada em seus arts.
981 e seguintes.
No Código Comercial de 1850 as sociedades eram classificadas em
civis e comerciais. Essas expressões foram substituídas por sociedades
simples e empresárias. Embora não exista perfeita correspondência, podemos dizer que, em geral, as sociedades simples correspondem às civis,
e as sociedades empresárias correspondem às comerciais.
As sociedades simples são aquelas sem fins comerciais que visam
ao lucro mediante prestação de serviços relativos a determinada profissão ou serviços técnicos. Como exemplos podemos citar uma sociedade em escritório de advocacia, uma cooperativa, uma empresa de
consultoria etc.
As sociedades empresárias são aquelas com fins comerciais. Visam
ao lucro mediante o exercício de atividade econômica organizada para
a produção ou circulação de bens ou serviços. Para ser empresária, exigem-se o requisito material (atividade empresarial) e o requisito formal
(registro na Junta Comercial), conforme previsão dos arts. 982 e 967 do
Código Civil. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e simples a cooperativa.
Conforme determinação dos arts. 1.039 a 1.092 do Código Civil
de 2002, as sociedades empresárias podem assumir diversas formas:
sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples, sociedade em comandita por ações, sociedade limitada, sociedade anônima
ou por ações.
Sociedade entre cônjuges: os cônjuges podem contratar sociedade,
entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da
comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória. Independentemente do regime de bens, o empresário casado pode, sem necessidade de outorga conjugal, alienar os imóveis que integrem o patrimônio
da empresa ou gravá-los de ônus real (Código Civil, arts. 977 e 978).
Serão arquivados e averbados no Registro Civil e no Registro Público de Empresas Mercantis os pactos e declarações antenupciais do
empresário, o título de doação, herança, ou legado, de bens clausulados
de incomunicabilidade ou inalienabilidade.
92
Direito Civil
Empresa individual de
responsabilidade limitada
CURIOSIDADE
4.9
A Lei n. 12.441/2011 acrescentou mais uma modalidade de pessoa
jurídica de direito privado ao rol do art. 44 do Código Civil: a empresa
individual de responsabilidade limitada. Suas regras estão estabelecidas
no art. 980-A.
A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída
por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário
mínimo vigente no País. O nome empresarial deverá ser formado pela
inclusão da expressão “Eireli” após a firma ou a denominação social da
empresa individual de responsabilidade limitada. A pessoa natural que
constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade.
A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá
resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num
único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração. Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade
limitada constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a
remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou
de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa
jurídica, vinculados à atividade profissional.
Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no
que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.
4.10Associações
As associações são pessoas jurídicas de direito privado formadas
pela união de pessoas (universitas personarum) que se organizam para
desenvolver uma atividade lícita que não seja econômica, isto é, que não
tenha intuito lucrativo. Podem, portanto, desenvolver atividade educacional, pia (isto é, filantrópica), religiosa, esportiva, científica, literária,
recreativa, política etc. (exemplos: sindicatos, grêmios estudantis, escolas
de samba, clubes esportivos). Diferenciam-se das fundações por serem
formadas pela coletividade de pessoas, e não de bens, e diferenciam-se
das sociedades por não terem finalidade lucrativa.
Entretanto, a ausência de intuito lucrativo não as impede de ter patrimônio e desenvolver atividades visando arrecadar valores para que
possam atingir seus fins (p. ex.: uma associação filantrópica pode realizar bingos; uma associação educacional pode cobrar mensalidades etc.).
Desta forma, o lucro pode ser um meio, mas nunca o fim de uma associação, sendo absolutamente vedada (proibida) qualquer repartição de
receita (valores recebidos) entre os associados.
93
Microempreendedor Individual (MEI) é a pessoa que trabalha por conta própria e que se
legaliza como pequeno empresário. Para ser um microempreendedor individual, é necessário faturar
no máximo até R$ 60.000,00 por
ano e não ter participação em
outra empresa como sócio ou titular. O MEI também pode ter um
empregado contratado que receba o salário mínimo ou o piso
da categoria. A Lei Complementar nº 128, de 19/12/2008, criou
condições especiais para que o
trabalhador conhecido como informal possa se tornar um MEI legalizado. Entre as vantagens oferecidas por essa lei está o registro
no Cadastro Nacional de Pessoas
Jurídicas (CNPJ), o que facilita a
abertura de conta bancária, o pedido de empréstimos e a emissão
de notas fiscais. Além disso, o MEI
será enquadrado no Simples Nacional e ficará isento dos tributos
federais (Imposto de Renda, PIS,
Cofins, IPI e CSLL). Assim, pagará
apenas o valor fixo mensal de R$
40,40 (comércio ou indústria), R$
44,40 (prestação de serviços) ou
R$ 45,40 (comércio e serviços),
que será destinado à Previdência
Social e ao ICMS ou ao ISS. Essas
quantias serão atualizadas anualmente, de acordo com o salário
mínimo. Com essas contribuições,
o Microempreendedor Individual
tem acesso a benefícios como
auxílio-maternidade, auxílio-doença, aposentadoria, entre outros.
Caso o empreendedor não tenha
a intenção de possuir sócios e sua
atividade não se enquadre nos
requisitos legais do MEI, poderá
ele optar pela abertura da EIRELI
(Fonte: http://www.portaldoempreendedor.gov.br/mei-microempreendedor-individual, acesso em
7-7-2015).
VoCaBUlÁrio
órgãos deliberativos: grupos
ou conselhos que examinam e
discutem questões dentro de
uma determinada instituição,
tomando decisões que passam
a ser obrigatórias sobre os assuntos tratados.
4.10.1. Constituição de uma associação
Em capítulo anterior vimos que a associação somente adquire personalidade jurídica por meio do registro do seu ato constitutivo (estatuto) no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas. A criação de uma
associação não depende de prévia autorização do Poder Executivo por
ser um direito fundamental da pessoa humana (princípio da liberdade
de associação – Constituição Federal, art. 5º, XVII).
O estatuto de uma associação deve ser feito por escrito (mediante
instrumento público ou particular) e, de acordo com o art. 54 do Código Civil, deverá indicar, sob pena de nulidade: I – a denominação, os
fins e a sede da associação; II – os requisitos para a admissão, demissão
e exclusão dos associados; III – os direitos e deveres dos associados; IV –
as fontes de recursos para sua manutenção; V – o modo de constituição
e de funcionamento dos órgãos deliberativos; VI – as condições para a
alteração das disposições estatutárias e para a dissolução; e VII – a forma
de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas.
4.10.2. Composição da associação
A análise da estrutura interna de uma associação revela a existência
de três órgãos em sua composição: a assembleia geral, os órgãos deliberativos e os associados. De acordo com a jurisprudência do STJ, as associações são “dotadas de autonomia de organização e funcionamento”.
Vejamos, então, as principais características de cada um dos órgãos que
compõem a associação:
4.10.2.1. Associados
Os associados devem ter iguais direitos, mas o estatuto poderá instituir categorias com vantagens especiais (Código Civil, art. 55), seja
em razão de serviços prestados, tempo de associação, mérito, ou qualquer outro fundamento que não constitua forma de preconceito em razão de raça, sexo, orientação sexual etc. É em virtude dessa possibilidade
de distinção de categorias entre os associados que surgem expressões
como: sócio-fundador, sócio-remido, sócio-proprietário, sócio-benemérito etc. O estatuto não poderá estabelecer direitos e obrigações
recíprocos entre os associados (art. 53, parágrafo único), mas poderá
estabelecer outras obrigações, como o pagamento de uma quantia para
ingresso na associação, o pagamento de contribuições periódicas ou o
cumprimento de determinadas atividades.
Do princípio da liberdade de associação extrai-se que “ninguém
poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”
(Constituição Federal, art. 5º, XX). Isso não significa, contudo, que o
associado não possa ser excluído da associação. De acordo com o art. 57
do Código Civil, a exclusão do associado só é admissível havendo justa
causa, assim reconhecida em procedimento que assegure a este direito
de defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto.
94
Direito Civil
Deve ser lembrado que a qualidade de associado é intransmissível
(gratuita ou onerosamente), salvo disposição em sentido contrário no
estatuto (Código Civil, art. 56). Se o associado for titular de quota ou
fração ideal do patrimônio da associação, a transferência daquela não
importará, por si só, na atribuição da qualidade de associado ao adquirente ou ao herdeiro, salvo orientação contrária do estatuto.
Por fim, o art. 58 do Código Civil assegura a invulnerabilidade dos
direitos individuais dos associados ao estabelecer que nenhum associado poderá ser impedido de exercer direito (p. ex.: direito à presidência)
ou função que lhes tenham sido legitimamente conferidos, a não ser nos
casos e pela forma previstos na lei ou no estatuto.
4.10.2.2. Diretoria
Compete à diretoria o dever de regular o funcionamento da associação e de cobrar o cumprimento das normas previstas no estatuto,
podendo impor sanções disciplinares, como multas, suspensão ou até
mesmo a expulsão dos associados que violarem o estatuto, sempre respeitando o direito de defesa. Os membros que irão compor a diretoria
devem ser eleitos de acordo com as regras estipuladas no estatuto. Com a
nomeação, os administradores (diretores) passam a ser mandatários da
associação, podendo representá-la judicial ou extrajudicialmente.
4.10.2.3. Assembleia geral
A assembleia geral é considerada o órgão máximo dentro da associação, podendo, dentre outras deliberações, de forma privativa, destituir
os administradores e promover a alteração do estatuto (Código Civil,
art. 59). Qualquer alteração do estatuto sem determinação da assembleia
geral é considerada nula. A convocação dos órgãos deliberativos será
feita na forma do estatuto, garantido a 1/5 (um quinto) dos associados
o direito de promovê-la (art. 60). A lei não exige requisitos específicos
para as deliberações em geral, mas para a destituição de administradores
ou alteração estatutária a assembleia deverá ter sido convocada especialmente para esse fim.
Em atenção ao art. 48 do Código Civil, as deliberações assembleares
são tomadas pela maioria simples dos presentes, salvo se o ato constitutivo dispuser de modo diverso. O estatuto poderá, desta forma, determinar quorum especial para certas deliberações, como, por exemplo,
a de alteração do estatuto. Aprovada a deliberação, todos os associados
deverão a ela se submeter, inclusive os dissidentes, restando-lhes, apenas,
o direito de retirar-se da entidade.
4.10.3. Dissolução da associação
Em caso de dissolução de uma associação, o caput do art. 61 do
Código Civil determina que os bens remanescentes do seu patrimônio
líquido, depois de deduzidas, se for o caso, as quotas ou frações ideais
95
VOCABULÁRIO
invulnerabilidade: impossibilidade de ser atacado, blindagem, proteção contra possíveis
ameaças ou danos a direitos.
sanções disciplinares: penas
(“castigos”) aplicadas para
correção de comportamento,
previstas previamente em leis,
estatutos ou contratos, buscando evitar que atitudes indesejadas ocorram ou se repitam (ex.:
multa, suspensão etc.).
mandatário: representante com
poderes para agir em nome de
alguém.
quorum: número mínimo de
pessoas presentes exigido por
uma Constituição, lei, estatuto
ou regulamento para que as
decisões por elas tomadas sejam válidas (termo latino).
referidas no parágrafo único do art. 56, serão destinados à entidade de
fins não econômicos designada no estatuto, ou, omisso este, por deliberação dos associados, à instituição municipal, estadual ou federal, de fins
idênticos ou semelhantes.
Por cláusula do estatuto ou, no seu silêncio, por deliberação dos
associados, podem estes, antes da destinação do remanescente referida nesse artigo, receber em restituição, atualizado o respectivo valor, as
contribuições que tiverem prestado ao patrimônio da associação (Código Civil, art. 61, § 1º).
Essas quotas ou frações ideais a que se refere o caput do art. 61
dizem respeito ao valor eventualmente pago para aquisição do título,
como é comum em clubes esportivos, e correspondem a uma fração do
patrimônio da associação. Nada mais justo do que recuperar o capital
eventualmente investido na aquisição das cotas e nas contribuições prestadas. Mas deve ser destacado que os associados não podem retirar outros valores, como, por exemplo, aqueles obtidos por doações de outras
pessoas ou arrecadados em campanhas.
Não existindo no Município, no Estado, no Distrito Federal ou no
Território, em que a associação tiver sede, instituição nas condições indicadas nesse artigo, o que remanescer do seu patrimônio se devolverá à
Fazenda do Estado, do Distrito Federal ou da União.
4.11
FUnDaÇões
As fundações são pessoas jurídicas de direito privado formadas por
um patrimônio, uma coletividade de bens (universitas bonorum) para
desenvolver uma atividade lícita que não seja econômica, isto é, que não
tenha intuito lucrativo. Diferenciam-se das associações por serem formadas pela coletividade de bens, e não de pessoas, mas, assim como as
associações, não possuem finalidade lucrativa.
Outra característica marcante das fundações é a fiscalização realizada pelos Ministérios Públicos Estaduais, pelas respectivas curadorias das
fundações. Ao contrário das sociedades e das associações, as fundações
não possuem sócios nem associados para fiscalizar o cumprimento
de suas normas e de seus fins sociais, justificando a legitimidade do
Ministério Público.
As fundações foram concebidas originalmente como pessoas
jurídicas de direito privado, mas na atualidade o Estado também pode
constituir fundações. As fundações privadas são aquelas constituídas
por particulares (pessoas naturais ou jurídicas) e regidas pelos arts. 62
a 69 do Código Civil. As fundações públicas são aquelas instituídas pelo
Estado (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios) e são reguladas
por normas próprias de direito administrativo. Contudo, iremos aqui
analisar apenas as fundações privadas, pois são as únicas afeitas ao Direito Civil.
96
Direito Civil
4.11.1. Constituição das fundações
Para que uma fundação possa ser regularmente constituída, é
necessário percorrer quatro etapas. Vejamos:
1ª ETAPA – Manifestação de vontade do instituidor: para criar
uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina,
e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la (art. 62, parágrafo
único). Da norma extrai-se que a fundação pode ser instituída mediante
manifestação de vontade em vida (inter vivos) por escritura pública ou
mediante declaração de última vontade (causa mortis) por testamento
de qualquer espécie (público, cerrado ou particular). Essa manifestação
de vontade possui dois requisitos essenciais (dotação de bens e indicação
da finalidade) e um dispensável (a forma de administração). Vejamos,
então, os requisitos essenciais:
a)Finalidade: as fundações têm como finalidade um bem social,
de interesse da própria sociedade, não podendo ter fins lucrativos. Compete ao instituidor definir a finalidade a ser cumprida
e, uma vez determinada, esta é imutável. Nos termos do art. 62,
parágrafo único, “a fundação somente poderá constituir-se para
fins religiosos, morais, culturais ou de assistência”.
O uso do termo “somente” conduz a uma interpretação de que o rol
presente no dispositivo é taxativo (numerus clausus), contudo o entendimento majoritário na doutrina é no sentido de que ele é meramente
exemplificativo (numerus apertus). Nesse sentido, Maria Helena Diniz
defende que a finalidade da fundação deve apenas ser nobre, isto é, lícita,
social (interesse público) e não lucrativa.
Corroboram esse entendimento: o Enunciado 8 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “a constituição de fundação
para fins científicos, educacionais ou de promoção do meio ambiente
está compreendida no CC, art. 62, parágrafo único”; e o Enunciado 9
da mesma Jornada: “o art. 62, parágrafo único, deve ser interpretado de
modo a excluir apenas as fundações de fins lucrativos”.
b)Dotação de bens livres e suficientes: a escritura pública ou o
testamento devem especificar os bens livres e suficientes que
irão constituir a fundação: podem ser móveis, imóveis, fungíveis, infungíveis, créditos etc. Bens livres são aqueles sobre
os quais não se apresenta qualquer constrição jurídica (p. ex.:
penhora, arresto, hipoteca etc.). Também devem ser observadas as regras que protegem a legítima dos herdeiros necessários
(descendentes, ascendentes e cônjuges). Bens suficientes são os
exigidos para que possa ser cumprida a finalidade da fundação,
pois a ideia é de que esses bens possam produzir renda mensal
suficiente para que sejam alcançados os objetivos da fundação.
Se os bens forem insuficientes para constituir a fundação, deverão
ser incorporados em outra fundação que se proponha a fim igual ou
97
VoCaBUlÁrio
mandado judicial: ordem judicial expedida por meio de um
despacho em processo, para
que alguém faça, entregue ou
deixe de fazer algo.
compulsoriedade: obrigatoriedade.
denegação: recusa, negação,
indeferimento.
homologação judicial: validação judicial, aprovação por
um juiz que torna válido ou oficial determinado ato ou documento.
semelhante, salvo se o instituidor dispuser de forma diversa. Constituída
a fundação por negócio jurídico entre vivos, o instituidor é obrigado a
transferir-lhe a propriedade, ou outro direito real, sobre os bens dotados, e, se não o fizer, serão registrados, em nome dela, por mandado
judicial (Código Civil, art. 64).
A norma supracitada estabelece que nas instituições inter vivos o
instituidor não poderá revogar a sua doação, pois os bens serão adjudicados compulsoriamente à fundação que está sendo instituída. Se instituída mortis causa (por testamento), a manifestação de vontade poderá ser revogada. Não haverá a compulsoriedade do registro, pois nada
impede que o testamento (cerrado, público ou particular) venha a ser
revogado por qualquer motivo, ocasionando assim a revogabilidade dos
bens doados para a constituição da fundação.
2ª ETAPA – Elaboração do estatuto: a celebração do estatuto
pode ser direta ou própria, quando feita pelo próprio instituidor, ou
fiduciária, quando o instituidor destina terceira pessoa de confiança,
para que esta realize a elaboração do estatuto. Nos termos do art. 65,
caput, do Código Civil, “aqueles a quem o instituidor cometer a aplicação do patrimônio, em tendo ciência do encargo, formularão logo,
de acordo com as suas bases (art. 62), o estatuto da fundação projetada,
submetendo-o, em seguida, à aprovação da autoridade competente, com
recurso ao juiz”.
Caso o estatuto não venha a ser elaborado no prazo estabelecido,
ou quando o instituidor não designar pessoa de sua confiança para realizá-lo, transcorrido 180 (cento e oitenta) dias competirá ao Ministério
Público realizar a sua elaboração.
3ª ETAPA – Aprovação do estatuto: para que o estatuto da fundação possa ser registrado, é necessário que seja devidamente aprovado
pelo Ministério Público estadual (ou distrital) da localidade em que será
registrado. O Ministério Público, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá
adotar uma das seguintes medidas: a) aprovar o estatuto, dando a devida autorização para seu registro; b) indicar as modificações que compreender necessárias; ou c) denegar a aprovação.
Se o interessado na instituição da fundação entender como incabíveis as modificações propostas ou a denegação da aprovação, poderá
solicitar o suprimento do magistrado. Devemos destacar que o juiz também tem poder para requerer as alterações ou para diretamente alterar
as cláusulas do estatuto, requerendo modificações. Da decisão de procedência ou improcedência caberá recurso de apelação. Quando o estatuto
é elaborado pelo Ministério Público também deverá ser submetido à
homologação judicial.
4ª ETAPA – Registro: o registro da fundação deverá ser realizado
no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas. É considerado como
ato essencial, pois somente com o registro é que a fundação adquirirá a
personalidade, passando a ter existência legal (arts. 114 a 121 da Lei de
Registros Públicos).
98
Direito Civil
4.11.2. Alteração do estatuto da fundação
Se for necessária qualquer alteração nas disposições presentes no
estatuto da fundação, será essencial que este passe por aprovação do
Ministério Público. De acordo com o art. 67 do Código Civil, para que
se possa alterar o estatuto da fundação, é mister que a reforma: I – seja
deliberada por dois terços dos competentes para gerir e representar a
fundação; II – não contrarie ou desvirtue o fim desta; III – seja aprovada
pelo órgão do Ministério Público, e, caso este a denegue, poderá o juiz
supri-la, a requerimento do interessado.
Quando a alteração não houver sido aprovada por votação unânime,
os administradores da fundação, ao submeterem o estatuto ao órgão do
Ministério Público, requererão que se dê ciência à minoria vencida para
impugná-la, se quiser, em dez dias. As alterações não podem abranger a
finalidade da fundação, pois esta é imutável.
Em princípio, também não é possível a alienação dos bens que compõem o patrimônio da fundação. Entretanto, essa inalienabilidade pode
ser afastada mediante autorização judicial desde que seja comprovada a
necessidade da venda dos bens. O produto obtido com a alienação deve
ser aplicado na aquisição de outros bens necessários ao funcionamento
da fundação. A alienação, sem autorização judicial, dos bens que compõem a fundação deve ser considerada nula.
4.11.3. Fiscalização
Como já mencionado anteriormente, compete ao Ministério Público a fiscalização das fundações. Velará pelas fundações o Ministério
Público do Estado onde situadas. Se estenderem a atividade por mais de
um Estado, caberá o encargo, em cada um deles, ao respectivo Ministério
Público.
De acordo com o art. 66, § 1º, do Código Civil, se as fundações
funcionarem no Distrito Federal, ou em Território, caberá o encargo
ao Ministério Público Federal. Esse dispositivo foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (ADIn 2.794-8), pois a competência é do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, conforme prescreve a Constituição Federal.
Se a fundação for de natureza previdenciária, sua fiscalização não
compete ao Ministério Público.
Em se tratando de fundação pública (aquela constituída pelo Estado com personalidade jurídica de direito público), deverá ser fiscalizada
pelo Tribunal de Contas, conforme dispõe o art. 71, II, da Constituição
Federal. Mas tal fiscalização não afasta a competência do Ministério Público para investigar eventuais ilícitos. Se a fundação pública for instituída pela União, a competência será do Ministério Público Federal e, se for
instituída por Estado, Município ou pelo Distrito Federal, a competência será do respectivo Ministério Público Estadual ou pelo Ministério
Público do Distrito Federal, na última hipótese.
99
Durante a III Jornada de Direito Civil do CJF foi aprovado o Enunciado 147 dispondo que “a expressão ‘por mais de um Estado’, contida
no § 2º do art. 66, não exclui o Distrito Federal e os Territórios. A atribuição de velar pelas fundações, prevista no art. 66 e seus parágrafos,
ao Ministério Público local – isto é, dos Estados ou do Distrito Federal,
onde situadas – não exclui a necessidade de fiscalização de tais pessoas
jurídicas pelo Ministério Público Federal, quando se tratar de fundações
instituídas ou mantidas pela União, autarquia ou empresa pública federal, ou que destas recebam verbas, nos termos da Constituição, da Lei
Complementar n. 75/93 e da Lei de Improbidade”.
4.11.4. extinção da fundação
Tornando-se ilícita, impossível ou inútil a finalidade a que visa a
fundação, ou vencido o prazo de sua existência, o órgão do Ministério
Público, ou qualquer interessado, promoverá sua extinção, incorporando-se o seu patrimônio, salvo disposição em contrário no ato constitutivo, ou no estatuto, em outra fundação, designada pelo juiz, que se
proponha a fim igual ou semelhante.
A finalidade da fundação se torna ilícita quando o seu objeto passa
a ser contrário ao ordenamento jurídico, afrontando a lei, a moral, os
bons costumes ou a ordem pública. A impossibilidade é verificada quando a fundação não possuir mais meios para sua manutenção (ex.: falta
de recursos financeiros, falta de voluntários, falta de profissionais especializados para tratamento de pessoas portadoras de deficiência física
etc.). A inutilidade é normalmente verificada quando o objetivo pretendido com a constituição da fundação já foi alcançado (p. ex.: erradicação
de uma determinada doença).
A extinção da fundação pelo decurso do tempo é hipótese excepcional, pois são raras as fundações em que o seu instituidor estabelece
prazo de duração. Se este não foi estabelecido, não poderá ser presumido, e a fundação somente poderá ser extinta se se tornar ilícita, impossível ou inútil a finalidade a que visava.
A extinção da fundação por qualquer um dos motivos elencados
poderá ser solicitada por qualquer interessado ou pelo representante do
Ministério Público.
4.12
naCionaliDaDe
A ideia de nacionalidade da pessoa jurídica leva em consideração a
ordem jurídica a que se submetem, não importando a nacionalidade dos
membros que a compõem ou a origem do controle financeiro. De acordo com o art. 11 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro,
“as organizações destinadas a fins de interesse coletivo, como as sociedades e as fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem”.
Assim, classificadas quanto à nacionalidade, as pessoas jurídicas podem
100
Direito Civil
ser divididas em nacionais e estrangeiras. Pessoas jurídicas nacionais
são aquelas constituídas à luz do ordenamento jurídico brasileiro e que
mantêm aqui a sede de sua administração (Código Civil, art. 1.126). Não
basta, portanto, que a pessoa jurídica tenha sido constituída no Brasil
(teoria da constituição), exigindo-se que mantenha aqui a sua sede. Por
outro lado, as pessoas jurídicas estrangeiras são aquelas constituídas
fora do Brasil ou que, mesmo constituídas no Brasil, mantêm a sua sede
fora do País. Independentemente de qual seja o seu objeto (isto é, seu
ramo de atividade), as sociedades estrangeiras somente poderão funcionar no País com autorização do Poder Executivo (Código Civil, art.
1.134).
4.13
Domicílio da pessoa jurídica
O domicílio da pessoa natural é, em regra, determinado pela
residência com o animus (ou seja, sua vontade) de permanência. Como
a pessoa jurídica não tem residência, seu domicílio é determinado, em
regra, pela sua sede ou estabelecimento, por ser o local onde costuma
celebrar seus negócios jurídicos. Com base no art. 75 do Código Civil
podem ser extraídas as seguintes regras sobre o domicílio das pessoas
jurídicas:
4.13.1. Pessoas jurídicas de direito público
As pessoas jurídicas de direito público interno que compõem a
administração direta têm como domicílio a sede de seu governo: o
domicílio da União é o Distrito Federal; o domicílio dos Estados e Territórios são as respectivas capitais; e o domicílio dos Municípios é o
lugar onde funcionar a administração municipal.
O Código Civil estabelece apenas regras sobre domicílio, e não sobre o foro competente para a propositura de ações. Exemplificando: o
Código Civil de 2002 estabelece que o domicílio da União é o Distrito
Federal, mas a União deve propor ações no foro do domicílio da outra
parte. Quando a União for ré, a ação poderá ser proposta no foro do
domicílio do autor, no local dos fatos, no local onde situa­do o bem ou
Distrito Federal (Constituição Federal, art. 109, §§ 1º e 2º).
Quanto às pessoas jurídicas de direito público que compõem a administração indireta (as autarquias), o entendimento doutrinário é no
sentido de que o seu domicílio é determinado pelo ente a que estão subordinadas (União, Estado, Distrito Federal ou Município).
4.13.2. Pessoas jurídicas de direito privado
Após dispor sobre o domicílio das pessoas jurídicas de direito público, o caput do art. 75 do Código Civil determina que o domicílio das
demais pessoas jurídicas é o lugar onde funcionarem as respectivas di101
retorias e administrações, ou onde elegerem domicílio especial no seu
estatuto ou atos constitutivos (domicílio de eleição). De acordo com a
Súmula 363/STF, “a pessoa jurídica de direito privado pode ser demandada no domicílio da agência ou estabelecimento em que se praticou o ato”.
Se a pessoa jurídica tiver diversos estabelecimentos em lugares diferentes (p. ex.: filiais), cada um deles será considerado domicílio para os
atos nele praticados, facilitando a vida das pessoas que litigarem com
as pessoas jurídicas. Como essa pluralidade de domicílio é estabelecida
em favor da pessoa que precisar litigar contra a pessoa jurídica, admite-se
que o demandante opte pelo domicílio da sede.
Se a administração, ou diretoria, tiver a sede no estrangeiro, haver-se-á por domicílio da pessoa jurídica, no tocante às obrigações contraídas por suas agências, o lugar do estabelecimento, sito no Brasil, a
que ela corresponder (Código Civil, art. 75, § 2º). O objetivo da norma
é a proteção das pessoas que litigarem contra as pessoas jurídicas de
direito privado estrangeiras, que não precisarão ingressar com ações
em outros países.
4.14
DesConsiDeraÇÃo Da
PersonaliDaDe JUríDiCa
A responsabilidade civil das pessoas jurídicas incide diretamente
sobre o seu próprio patrimônio. Entretanto, em determinadas situações
a responsabilidade pode ser ampliada ao patrimônio dos seus sócios ou
administradores pelo instituto da desconsideração da personalidade jurídica, como veremos neste tópico.
Vimos que na atualidade é indiscutível que as pessoas jurídicas
possuem personalidade jurídica própria. Isso significa que as pessoas
jurídicas têm aptidão para serem titulares de direitos e deveres distintos
dos direitos e deveres de seus sócios ou administradores. Como a soma
de direitos e deveres de uma pessoa é denominada patrimônio, podemos
afirmar que as pessoas jurídicas possuem um patrimônio distinto dos
membros que as compõem.
Essa distinção estava prevista no art. 20 do Código Civil de 1916,
que estabelecia o denominado princípio da separação patrimonial,
consagrado na parêmia societatis distat a singulis. Embora não exista
dispositivo semelhante no Código Civil de 2002, entende-se que a regra
continua existindo de forma implícita no nosso ordenamento jurídico,
pois negar a existência dessa regra significaria negar a própria existência
da pessoa jurídica.
Excepcionalmente, admite-se que seja decretada a desconsideração
da personalidade jurídica para que os sócios ou administradores de uma
pessoa jurídica sejam responsabilizados pelas obrigações desta.
A desconsideração da personalidade jurídica pode ser definida
como a simples medida processual em que o juiz determina a inclusão
102
Direito Civil
dos sócios ou administradores de uma pessoa jurídica no polo passivo
da demanda para que respondam com seu patrimônio particular pelas
dívidas dela.
Devemos alertar que a desconsideração não determina a extinção
da pessoa jurídica, nem mesmo sua liquidação, dissolução ou anulação
dos atos constitutivos. Seus efeitos são restritos ao plano processual e
não afetam a existência ou o funcionamento da pessoa jurídica. Tecnicamente, a desconsideração não afeta em nada a pessoa jurídica, mas tão
só seus sócios ou administradores.
A desconsideração da personalidade não pode ser confundida com
a despersonalização, pois esta importa na dissolução da pessoa jurídica
ou na cassação da autorização para o seu funcionamento.
JURISPRUDÊNCIA
DIREITO CIVIL. LIMITES À APLICABILIDADE DO ART. 50 DO CC.
O encerramento das atividades da sociedade ou sua dissolução, ainda que irregulares, não são
causas, por si sós, para a desconsideração da personalidade jurídica a que se refere o art. 50 do CC.
Para a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade social – adotada pelo CC –,
exige-se o dolo das pessoas naturais que estão por trás da sociedade, desvirtuando-lhe os fins institucionais e servindo-se os sócios ou administradores desta para lesar credores ou terceiros. É a intenção ilícita
e fraudulenta, portanto, que autoriza, nos termos da teoria adotada pelo CC, a aplicação do instituto
em comento. Especificamente em relação à hipótese a que se refere o art. 50 do CC, tratando-se de
regra de exceção, de restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, deve-se
restringir a aplicação desse disposto legal a casos extremos, em que a pessoa jurídica tenha sido instrumento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio da finalidade institucional ou a confusão
patrimonial. Dessa forma, a ausência de intuito fraudulento afasta o cabimento da desconsideração
da personalidade jurídica, ao menos quando se tem o CC como o microssistema legislativo norteador
do instituto, a afastar a simples hipótese de encerramento ou dissolução irregular da sociedade como
causa bastante para a aplicação do disregard doctrine. Ressalte-se que não se quer dizer com isso
que o encerramento da sociedade jamais será causa de desconsideração de sua personalidade, mas
que somente o será quando sua dissolução ou inatividade irregulares tenham o fim de fraudar a lei,
com o desvirtuamento da finalidade institucional ou confusão patrimonial. Assim é que o enunciado
146, da III Jornada de Direito Civil, orienta o intérprete a adotar exegese restritiva no exame do artigo
50 do CC, haja vista que o instituto da desconsideração, embora não determine a despersonalização
da sociedade – visto que aplicável a certo ou determinado negócio e que impõe apenas a ineficácia
da pessoa jurídica frente ao lesado –, constitui restrição ao princípio da autonomia patrimonial. Ademais, evidenciando a interpretação restritiva que se deve dar ao dispositivo em exame, a IV Jornada
de Direito Civil firmou o Enunciado 282, que expressamente afasta o encerramento irregular da pessoa
jurídica como causa para desconsideração de sua personalidade: "O encerramento irregular das atividades da pessoa jurídica, por si só, não basta para caracterizar abuso da personalidade jurídica".
Entendimento diverso conduziria, no limite, em termos práticos, ao fim da autonomia patrimonial da
pessoa jurídica, ou seja, regresso histórico incompatível com a segurança jurídica e com o vigor da
atividade econômica. Precedentes citados: AgRg no REsp 762.555-SC, Quarta Turma, DJe 25/10/2012;
e AgRg no REsp 1.173.067/RS, Terceira Turma, DJe 19/6/2012. EREsp 1.306.553-SC, Rel. Min. Maria Isabel
Gallotti, julgado em 10/12/2014, DJe 12/12/2014.
103
Nos termos do art. 50 do Código Civil, “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela
confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou
do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os
efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos
aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
Além da tradicional desconsideração da personalidade jurídica, a
doutrina e a jurisprudência apontam a possibilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica, consistente na responsabilização
da pessoa jurídica pelas dívidas pessoais de seus sócios ou administradores. Nesse sentido, o Enunciado 283 do CJF aponta que “é cabível a
desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para
alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou
desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”.
4.14.1. teorias da desconsideração da
personalidade jurídica
A primeira lei brasileira a consagrar o instituto da desconsideração
da personalidade jurídica foi o Código Tributário Nacional, que em seu
art. 135 permitia a responsabilização pessoal dos diretores, gerentes ou
representantes de pessoas jurídicas de direito privado por créditos correspondentes às obrigações tributárias. Posteriormente, também trouxeram previsões do instituto o Código de Defesa do Consumidor (Lei n.
8.078/90), a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 9.605/98)
e o Código Civil em vigor.
Mas antes da previsão legal a desconsideração da personalidade já
era aplicada por nossos Tribunais pela construção de diversas teorias.
Aliás, o termo “teoria” refere-se justamente a uma construção doutrinária. A partir do momento em que a lei consagra essa construção, podemos nos referir simplesmente a “instituto”. Não obstante, o estudo
das teorias da desconsideração, também conhecidas como teorias da
penetração ou disregard doctrine, auxilia a compreensão do instituto
e da ratio legis.
a) Teoria Maior da Desconsideração: é aquela que exige um motivo para que ocorra a desconsideração da personalidade, não
bastando a simples inexistência ou insuficiência de bens da pessoa jurídica executada. A teoria maior se subdivide em subjetiva
e objetiva:
Teoria Maior Subjetiva: o motivo para que seja deferida a desconsideração repousa na conduta dos sócios ou administradores. Como
exemplo de fatos atribuíveis a estes, podem ser citados a fraude e o abuso
de direito. Essa teoria é defendida em nosso país por Rubens Requião.
Teoria Maior Objetiva: para que ocorra a desconsideração, basta o
desvio de função (disfunção), caracterizado quando ocorre o desvio de
finalidade ou a confusão patrimonial entre controlador (sócio ou administrador) e controlado (pessoa jurídica). No direito americano, fala-se
104
Direito Civil
em comingling of funds (= promiscuidade de fundos). Essa teoria é defendida em nosso país por Fábio Konder Comparato, que foi o redator
do art. 50 do Código Civil.
b)Teoria Menor da Desconsideração: é aquela que não exige motivos para que seja decretada a desconsideração, bastando a inexistência ou insuficiência de bens da pessoa jurídica executada.
A teoria menor da desconsideração está presente no § 5º do art.
28 do Código de Defesa do Consumidor: “Também poderá ser
desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade
for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados aos consumidores”.
ATENÇÃO
Sobre a desconsideração da
personalidade jurídica existem interessantes Enunciados do Conselho
da Justiça Federal, além daqueles
já analisados acima. Vejamos:
Enunciado 7/CJF: só se aplica
a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios
que nela hajam incorrido.
Enunciado 51/CJF: a teoria da
desconsideração da personalidade
jurídica – disregard doctrine – fica
positivada no novo Código Civil,
mantidos os parâmetros existentes
nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema.
Enunciado 146/CJF: nas relações civis, interpretam-se restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica
previstos no art. 50 (desvio de finalidade social ou confusão patrimonial). (Este enunciado não prejudica o Enunciado n. 7.)
Enunciado 281/CJF: a aplicação da teoria da desconsideração,
descrita no art. 50 do Código Civil,
prescinde da demonstração de insolvência da pessoa jurídica.
Enunciado 282/CJF: o encerramento irregular das atividades da
pessoa jurídica, por si só, não basta
para caracterizar abuso de personalidade jurídica.
Enunciado 284/CJF: as pessoas
jurídicas de direito privado sem fins
lucrativos ou de fins não econômicos estão abrangidas no conceito
de abuso da personalidade jurídica.
Enunciado 285/CJF: a teoria da
desconsideração, prevista no art. 50
do Código Civil, pode ser invocada
pela pessoa jurídica em seu favor.
Enunciado 406/CJF: a desconsideração da personalidade jurídica alcança os grupos de sociedade
quando presentes os pressupostos
do art. 50 do Código Civil e houver
prejuízo para os credores até o limite transferido entre as sociedades.
105
106
5
Os Bens
aUtor
silvio
rodrigues
(19172004), advogado
e professor paulista, cuja obra
completa sobre
Direito Civil consistiu num marco
para o ensino jurídico no Brasil.
Com ideias liberais e sempre arrojadas, seu nome logrou repercussão também no exterior.
Caio Mário
da silva Pereira (1913-2004),
natural de Belo
Horizonte, Minas
Gerais, deixou
como principal
legado suas Instituições de Direito Civil, com grande impacto
na doutrina da disciplina.
reFleXÃo
“Filosoficamente, bem é tudo
quanto pode proporcionar ao homem qualquer satisfação. Nesse
sentido se diz que a saúde é um
bem, que a amizade é um bem,
que Deus é o sumo bem. Mas, se
filosoficamente, saúde, amizade e
Deus são bens, na linguagem jurídica não podem receber tal qualificação” (Washington de Barros
Monteiro).
5.1
ConCeito
Bens são todos os objetos materiais e imateriais existentes na natureza, que proporcionam uma utilidade às pessoas. O estudo dos bens
é importante, pois são considerados objetos de direitos nas relações
jurídicas, cujos titulares são as pessoas (sujeitos de direitos). A matéria
tem implicações no Direito Civil, Penal, Administrativo, Tributário e em
vários outros ramos do ordenamento jurídico.
Embora toda relação jurídica subjetiva exija um objeto, nem sempre este será algo material (p. ex.: um livro). Também podem ser considerados objeto de relações jurídicas os direitos (direito autoral, direito
de crédito etc.) e as obrigações (de dar, de fazer, de não fazer).
5.1.1. Bens e coisas: distinção
Existe forte divergência doutrinária sobre a definição de bens
e coisas. Como são infinitas as posições doutrinárias sobre o tema,
procuramos reproduzir abaixo quatro correntes consideradas principais. Vejamos:
1ª Corrente: defende que coisas são todos os objetos existentes na
natureza, com exceção das pessoas. Ao passo que bens são apenas aquelas coisas que têm valor econômico e que são suscetíveis de apropriação
(animais, livros, automóveis etc.). Em síntese, defende que coisa é o gênero do qual bem é uma espécie. Esta é a posição de Maria Helena Diniz,
Agostinho Alvim, Silvio Rodrigues e Francisco Amaral.
2ª Corrente: aponta exatamente o oposto da primeira corrente ao
defender que coisas são os objetos materiais suscetíveis de valoração
econômica. Já os bens têm acepção mais ampla, abrangendo os objetos
dotados ou não de conteúdo patrimonial. Para essa corrente, bem seria
o gênero; e coisa, a espécie. Esta é a posição de Orlando Gomes.
3ª Corrente: bens podem ser considerados em sentido amplo ou
estrito. Amplo ou genérico, o termo bens representa tudo aquilo que
pode ser objeto da relação jurídica, sem distinção da materialidade ou
da patrimonialidade. Em sentido estrito, são os imateriais (aqueles que
não podem ser tocados – p. ex.: o direito de crédito) e as coisas (os materiais – aqueles que podem ser tocados – p. ex.: um livro). Esta é a posição
de Caio Mário da Silva Pereira.
4ª Corrente: a distinção tem por base o conteúdo jurídico: bens
jurídicos são todos os bens da vida submetidos à tutela jurídica. Ao passo que as coisas, em sua acepção comum, representam o elemento material do conceito jurídico de bem (noção pré-jurídica). Esta é a posição
de Gustavo Tepedino.
Com relação à divergência doutrinária exposta, entendemos que a
posição mais adequada é a esposada na primeira corrente, que, a propósito, é majoritária. Contudo, no âmbito legal, é de notar que o legislador
108
Direito Civil
parece ter adotado a segunda corrente no Código Civil de 2002, pois na
parte geral há um capítulo dedicado aos bens (abrangendo os materiais
e os imateriais) e, na parte especial, um capítulo dedicado ao direito das
coisas, para tratar da posse e dos direitos reais que incidem sobre alguns
bens (as coisas).
5.2
Patrimônio
É o complexo de relações jurídico-materiais (valoráveis economicamente) de uma pessoa física ou jurídica, abrangendo os direitos reais
e obrigacionais (pessoais). A noção de patrimônio tem íntima relação
com a de personalidade jurídica, pois representa o conjunto de bens
(universalidade de direito) sobre o qual incide as relações jurídicas
econômicas.
O estudo do tema tem especial importância na matéria de responsabilidade civil e no direito processual civil, pois é o patrimônio de uma
pessoa, atual e futuro, que responde por suas dívidas (Código Civil, art.
391 e Código de Processo Civil de 2015, art. 789).
A classificação do patrimônio pode se dar:
Patrimônio global: é o patrimônio que abrange todas as relações
jurídicas de conteúdo econômico de uma pessoa. Engloba créditos e
débitos.
Patrimônio ativo: restringe-se às relações jurídicas em que a
pessoa é credora (sujeito ativo). Aplica-se somente aos casos em que
a pessoa tenha um crédito a receber. Pode ser subdividido em bruto
(soma de todos os créditos de uma pessoa) e líquido (composto pelo
resultado de todos os créditos, subtraídos os débitos e as obrigações de
uma pessoa).
Das diversas classificações dos
bens
5.3
A classificação dos bens tem por objetivo facilitar o trabalho dos
operadores do Direito, permitindo a aplicação das mesmas regras
jurídicas àqueles que se apresentem com características semelhantes.
Com esse propósito o legislador do Código Civil de 2002 classificou os
bens de acordo com três critérios: a) bens considerados em si mesmos
(imóveis e móveis; fungíveis e infungíveis; consumíveis e inconsumíveis;
divisíveis e indivisíveis; materiais e imateriais; singulares e coletivos); b)
bens reciprocamente considerados (principais e acessórios); e c) considerados em relação ao titular (particulares e públicos). Vejamos cada
uma destas classificações:
109
5.4
ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De
aCorDo CoM a MoBiliDaDe
5.4.1. Bens imóveis
Bens imóveis ou bens de raiz são aqueles que não podem ser transportados, sem destruição, de um lugar para outro. A remoção causaria
alteração de sua substância ou de sua forma. O conceito legal de bem
imóvel, conferido pelo Código Civil, compreende o solo e tudo quanto
lhe for incorporado de maneira natural ou artificial (art. 79).
Na doutrina, apresentam-se diversas espécies de bens imóveis:
a) Por natureza (ou por essência): trata-se do solo e tudo quanto
lhe for incorporado de forma natural (p. ex.: árvores, frutos, pedras etc.).
Compreende também o espaço aéreo e o subsolo, mas os arts. 1.229 e
1.230 do Código Civil apresentam limitações ao direito de propriedade
sobre estes.
b) Por acessão física artificial: são todos os bens que as pessoas
incorporam ao solo de forma artificial e permanente – não podem ser retirados, em regra, sem destruição, modificação, fratura ou dano. De acordo com o art. 81 do Código Civil, não perdem a característica de bens
imóveis:
As edificações que, separadas do solo, mas conservando a sua unidade, forem removidas para outro local. Exemplo: o deslocamento de
uma casa de madeira ou mesmo de alvenaria de um lugar para outro.
Os materiais provisoriamente separados de um prédio, para nele
se reempregarem: para o Direito Civil, prédio é toda construção que
tem a característica de imóvel. Pode ser uma casa, um galpão, uma ponte etc. Se o prédio for demolido para reconstrução, os materiais continuarão sendo tratados como imóveis. Se a demolição não tiver esse
propósito, os materiais passarão à condição de móveis.
c) Por acessão intelectual (ou por destinação): são todos os bens
móveis que o proprietário mantém empregados de forma duradoura e
intencional na exploração industrial, aformoseamento (embelezamento) ou comodidade do bem imóvel. Para que ocorra a acessão, o bem
móvel deve pertencer ao proprietário do imóvel e estar à disposição do
bem imóvel, e não da pessoa. Essa imobilização pode cessar a qualquer
momento, bastando manifestação de vontade do proprietário.
Como exemplos de bens imóveis por acessão intelectual, a doutrina costumeiramente aponta os ornamentos (vasos, estátuas nos jardins,
cortinas etc.), máquinas agrícolas, animais e materiais utilizados para
plantação, escadas de emergência justapostas nos edifícios, geradores,
aquecedores, aparelhos de ar-condicionado etc.
No Código Civil de 1916, o art. 43, III, consagrava expressamente
os bens imóveis por acessão intelectual, que foram retirados do rol dos
bens imóveis no Código Civil de 2002 (art. 79), fazendo a doutrina questionar a continuidade desta classificação:
110
Direito Civil
1ª Corrente: defende que a classificação persiste no Código Civil
de 2002, pois o legislador apenas deslocou o tema para um dispositivo
à parte – o art. 93, que trata das pertenças. Para os defensores desta corrente, os bens imóveis por acessão intelectual e as pertenças devem ser
tratados como sinônimos. Vale dizer que a redação é semelhante entre os
arts. 43, III, do Código Civil de 1916 e 93 do Código Civil de 2002. Esta é
posição de Maria Helena Diniz, com quem concordamos.
2ª Corrente: defende que a categoria de bens imóveis por acessão
intelectual foi eliminada do sistema e não deve ser confundida com as
pertenças, pois estas não constituem partes integrantes do imóvel. Além
do que, em regra, as pertenças não seguem o destino do principal. Nesse
sentido, o Enunciado 11 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da
Justiça Federal, Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes.
d) Por determinação legal: são os bens considerados imóveis
por força da lei para receber maior proteção jurídica, consistente, em
regra, na exigência de escritura pública para a disposição de direitos. É
o caso da herança (direito à sucessão aberta – Código Civil, art. 80, I),
considerada bem imóvel ainda que composta só de bens móveis. Para
a cessão de direitos hereditários, é exigida a escritura pública (Código
Civil, art. 1.793).
Também são considerados imóveis por determinação legal os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram (Código Civil, art. 80,
II). Portanto, podem ser considerados bens imóveis os seguintes direitos
constituídos sobre imóveis: propriedade, superfície, servidão, usufruto,
uso, habitação, direito do promitente comprador, hipoteca e anticrese.
Com relação às ações que asseguram os direitos reais (ação reivindicatória, hipotecária, negatória de servidão, anulatória ou declaratória de
nulidade de negócio etc.), entendemos que não são propriamente bens e
que a referência legal é equivocada, mas tal posição é minoritária.
Devemos, ainda, destacar os seguintes pontos:
Navios e aeronaves: embora sejam registrados e transmitidos da
mesma forma que os bens imóveis (podendo inclusive ser oferecido em
hipoteca – Código Civil, art. 1.473, VI e VII), são classificados como bens
móveis. O tratamento de imóvel é utilizado como uma forma de compensar a instabilidade existente em razão do constante deslocamento
desses bens com a estabilidade do registro.
Penhor agrícola: o Código anterior definia o penhor agrícola como
bem imóvel (art. 44, I). O Código atual não o inclui entre os bens
imóveis, mas determina que o penhor rural (que compreende o agrícola
e o pecuário) deva ser registrado no Cartório de Registro de Imóveis
(art. 1.438).
5.4.2. Bens móveis
São aqueles que podem ser movidos de um local para outro sem que
seja alterada a substância ou a destinação econômico-social. A remoção
111
de um lugar a outro pode ocorrer por força própria (semoventes), no
caso dos animais, ou por força alheia, que são os móveis propriamente
ditos (p. ex.: livro, caneta, fruta etc.). Os bens móveis podem ser classificados em:
a) Por natureza: compreendem tanto os semoventes (aqueles que
se movem por força própria – exemplo: os animais) como as coisas inanimadas que possam ser transportadas de um lugar a outro, sem que se
destruam, isto é, sem que ocorra alteração de sua substância ou de sua
destinação social (Código Civil, art. 82) – exemplos: carro, lápis, cadeira
etc. O bem móvel por natureza é sempre uma coisa corpórea.
b) Por antecipação: são aqueles mobilizados (transformados em
bens móveis) pelos seres humanos em atenção a sua finalidade econômica (p. ex.: fruta colhida, madeira cortada, pedra extraída, casa vendida
para ser demolida etc.). Por receberem o tratamento de bens móveis,
não exigem escritura pública para sua alienação e dispensam a vênia
conjugal (autorização do cônjuge).
atenÇÃo
Tenha corporalidade (como
o gás) ou não (como a corrente
elétrica), toda energia dotada de
valor econômico é considerada
bem móvel, nos termos do art. 83,
I, do Código Civil. O mesmo ocorre no Direito Penal, para o qual a
energia com valor econômico é
equiparada à coisa móvel (Código Penal, art. 155, § 3º).
c) Por determinação legal: são: a) as energias que têm valor econômico: elétrica, térmica, solar, nuclear, eólica, radioativa, radiante, sonora,
da água represada etc.; b) os direitos reais sobre bens móveis (direito de
propriedade, usufruto, penhor e propriedade fiduciária) e as ações correspondentes; c) os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas
ações: direitos obrigacionais, também denominados de crédito; d) os direitos autorais: nos termos do art. 3º da Lei n. 9.610/98; e e) a propriedade
industrial: nos termos do art. 5º da Lei n. 9.279/96.
5.5
ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De
aCorDo CoM a FUnGiBiliDaDe
5.5.1. Bens fungíveis
São os móveis passíveis de substituição por outros da mesma espécie (gênero), qualidade e quantidade. Como exemplo de bens fungíveis,
podemos citar dinheiro, milho, água etc.
A fungibilidade é uma característica natural dos bens móveis, mas
as partes podem transformar, mediante simples manifestação de vontade (contrato), um bem fungível em infungível. Como exemplo, podemos citar o empréstimo ad pompam vel ostentationem de uma garrafa de
vinho para exposição com a obrigação de ser restituída ao final.
5.5.2. Bens infungíveis
São os bens que não podem ser substituídos por outros em razão
de determinadas qualidades individuais e específicas. A infungibilidade
é uma característica própria dos bens imóveis, mas também se encontra
presente em alguns bens móveis, como os veículos automotores (indi112
Direito Civil
vidualizados por seu chassi, placa etc.), obras de arte (p. ex.: a escultura
O pensador, de Rodin). A infungibilidade pode resultar da natureza do
bem ou da vontade das partes.
Classificação dos bens de
acordo com a consuntibilidade
5.6
5.6.1. Bens consumíveis
Bens consumíveis são os destinados à satisfação de necessidades e
interesses das pessoas. Os bens consumíveis podem ser de duas espécies:
a) Consumíveis de fato: são os bens cujo uso importa na destruição imediata da própria substância ou na sua extinção – a consuntibilidade é natural – p. ex.: frutas, verduras etc.;
b) Consumíveis de direito: são os bens destinados à alienação – a
consuntibilidade (característica dos bens consumíveis) é jurídica – ex.:
livros e automóveis à venda em uma loja (Código Civil, art. 86).
5.6.2. Bens inconsumíveis
São os que podem ser usados de forma contínua e reiterada, sem
que isso importe na sua destruição imediata. Os bens inconsumíveis caracterizam-se pela possiblidade de retirada de suas utilidades, sem que
seja atingida sua integridade.
As partes podem transformar um bem consumível em inconsumível por meio de disposição contratual. Exemplo: com o contrato
de empréstimo ad pompam vel ostentationem que impede a alienação e
o consumo do bem (p. ex.: o empréstimo de uma garrafa de vinho para
exposição).
Classificação dos bens de
acordo com a divisibilidade
5.7
A classificação dos bens de acordo com a divisibilidade tem impacto em diversos dispositivos do Código Civil: capacidade civil (art. 105),
compra e venda (art. 504), depósito (art. 639), transação (art. 844), condomínio (art. 1.322), condomínio edilício (arts. 1.331 e 1.336) e legado
(art. 1.968, § 1º).
5.7.1. Bens divisíveis
Os bens divisíveis são os que podem ser fracionados em partes homogêneas e distintas, sem alteração na sua substância, diminuição considerável de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam (Código
Civil, art. 87).
113
ATENÇÃO
É possível transformar um bem
inconsumível em consumível. Isso
ocorre, por exemplo, quando um
automóvel é comercializado em
uma revenda e passa a ser considerado consumível de direito.
REFLEXÃO
A classificação dos bens
como consumíveis está apoiada
em seu sentido econômico. Com
o Código de Defesa do Consumidor, criado em 1990, deu-se
grande destaque a esta classe
de bens, em função do papel por
eles desempenhado na economia de massa ante a necessidade
imperiosa de se proteger a figura
do consumidor.
ATENÇÃO
A maior parte dos bens fungíveis são também consumíveis,
mas nem por isso fungibilidade e
consuntibilidade se confundem.
Há bens industriais que são fungíveis, porém não consumíveis,
como é o caso, por exemplo, do
mobiliário de uma residência.
VoCaBUlÁrio
usucapião: aquisição da propriedade de um bem por meio
da posse pacífica e ininterrupta deste por um determinado
período de tempo, implicando,
consequentemente, a perda
deste mesmo bem por seu anterior proprietário.
Para que o bem possa ser considerado divisível, cada fração autônoma deve manter as mesmas utilidades e qualidades essenciais do todo.
Exemplo: um saco de feijão é divisível, pois pode ser fracionado em duas
ou mais partes, mantendo as suas características originais.
Os bens naturalmente divisíveis podem tornar-se indivisíveis por
determinação legal ou por vontade das partes.
5.7.2. Bens indivisíveis
São naturalmente indivisíveis os bens que não podem ser fracionados, sob pena de perderem sua utilidade, valor ou qualidades essenciais.
A indivisibilidade de um bem pode ser de três espécies:
a) Por sua natureza: são os bens que não podem ser divididos sob
pena de alterarem sua substância, perderem sua utilidade ou reduzirem
consideravelmente o seu valor. Exemplos: touro reprodutor, automóvel,
obra de arte etc.
b) Por determinação legal: são os bens considerados indivisíveis
por força de dispositivo legal expresso. A lei rotula o bem como indivisível.
Exemplos: o direito à sucessão aberta/herança, que é considerado indivisível até o momento da partilha (Código Civil, art. 1.791, parágrafo
único); as servidões prediais (Código Civil, art. 1.386); o direito de hipoteca (art. 1.421); o condomínio forçado instituído pela usucapião coletiva (Lei n. 10.251/2001, art. 10, § 4º) etc.
c) Por vontade das partes: são os bens divisíveis transformados
em indivisíveis por força da vontade manifestada em contrato (exercício
da autonomia privada), deixando seu aspecto de divisibilidade para trás.
Temos duas hipóteses legais previstas no Código Civil que bem retratam
a indivisibilidade por vontade das partes: quando duas ou mais pessoas
forem proprietárias de um mesmo bem (ou seja, o tiverem em condomínio), poderão contratar a indivisibilidade por prazo não superior a
cinco anos, suscetível de prorrogação ulterior (Código Civil, art. 1.320, §
1º); a indivisibilidade também poderá ser imposta pelo doador ou pelo
testador por prazo não superior a cinco anos, sem possibilidade de prorrogação (art. 1.320, § 2º).
5.8
ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De
aCorDo CoM a MaterialiDaDe
5.8.1. Bens materiais (res corporalis)
Também denominados bens corpóreos ou tangíveis, são aqueles que
têm existência material, podendo ser percebidos por nossos sentidos.
Exemplos: armários, lâmpadas, telefones celulares, livros etc.
5.8.2. Bens imateriais (res incorporalis)
Também denominados bens incorpóreos ou intangíveis, são todos
os bens que possuem existência abstrata, não podendo ser sentidos/toca114
Direito Civil
dos fisicamente pelos seres humanos. São bens que consistem em direitos.
Somente existem porque a lei assim determina, por força de determinação jurídica. Exemplo: direitos autorais de quem escreveu um livro,
direitos de crédito, direito à herança, invenções, direitos reais, direitos
obrigacionais etc.
O Código Civil atual não prevê a classificação dos bens quanto à
tangibilidade. A classificação continua relevante, mesmo não expressa
em lei, pois somente os bens corpóreos podem ser objeto de posse e,
portanto, de proteção possessória (interditos possessórios). Somente os
bens corpóreos podem ser objeto de tradição (entrega) e de aquisição
por usucapião.
Classificação dos bens de
acordo com a individualidade
5.9
Vejamos agora a classificação dos bens de acordo com a individualidade no atual Código Civil:
5.9.1. Bens singulares
Bens singulares ou individuais são aqueles que, embora reunidos, se
consideram de per si, independentemente dos demais (Código Civil, art.
89). Em regra os bens são singulares. Somente serão considerados coletivos quando houver determinação legal ou determinação das partes. Os
bens singulares podem ser de duas espécies:
a) Bens singulares simples: são os bens cujas partes formam um
todo homogêneo e estão agrupadas em razão da sua própria natureza (a
coesão é natural). Podem ser materiais (p. ex.: árvore) ou imateriais (p.
ex.: crédito).
b) Bens singulares compostos: são aqueles bens que, reunidos,
formam um só todo, mas sem desaparecer a condição jurídica de cada
parte (a coesão é artificial – p. ex.: navios, materiais utilizados na construção de uma casa etc.).
5.9.2. Bens coletivos
Bens coletivos ou universais são aqueles formados por vários bens
singulares que, reunidos, passam a formar uma coisa só (individualidade
incomum), mas sem que desapareça a condição jurídica de cada parte
(autonomia funcional).
Dessa forma, o titular dos bens pode contratar sobre a coletividade
dos bens (p. ex.: vender uma biblioteca) ou sobre um dos bens de forma
individualizada (p. ex.: alienar apenas um livro de uma biblioteca). A
coletividade aqui mencionada pode ser de duas espécies:
a) Universalidade de fato (universitas rerum): é a pluralidade de
bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação
115
unitária (Código Civil, art. 90). A universalidade de fato é formada pela
coletividade de bens singulares, corpóreos e homogêneos, pertencentes a
uma mesma pessoa. Exemplos: rebanho, biblioteca, pinacoteca, frota,
floresta, cardume etc. Como visto acima, nada impede que os bens singulares que formam a universalidade de fato sejam objeto de relações
jurídicas próprias, podendo ser alienados separadamente.
b) Universalidade de direito (universitas iuri): complexo de relações jurídicas de uma mesma pessoa, dotadas de valor econômico
(Código Civil, art. 91). É formada pela coletividade de bens singulares
incorpóreos (direitos) e, eventualmente, entre estes e bens corpóreos heterogêneos (na verdade, reúne os direitos existentes sobre os bens corpóreos).
Exemplo: herança, patrimônio, massa falida.
5.10
ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De
aCorDo CoM a DePenDÊnCia oU
reCiProCiDaDe
Reciprocamente considerados, os bens são classificados em principais e acessórios. Os bens acessórios são subdivididos em frutos, produtos, benfeitorias e pertenças.
5.10.1. Bem principal
Considera-se bem principal todo aquele que tem sua existência independente de qualquer outro. O bem principal existe sobre si mesmo,
abstrata ou concretamente (Código Civil, art. 92), enquanto o acessório
depende de outro para sua existência.
Quanto aos imóveis, o solo é o bem principal e tudo que se incorpora nele de forma permanente é acessório. Quanto aos móveis, bem
principal é aquele para o qual os outros bens se destinam (para enfeitar,
permitir o uso ou servir como complemento). Exemplos: a caneta é o
principal, a tampa é o acessório; o computador é o principal, o teclado é
o acessório; o automóvel é o principal, o pneu é o acessório; o capital é
o principal, os juros são acessórios etc.
5,10.2. Bem acessório
Bem acessório é aquele cuja existência pressupõe a do principal,
isto é, sua existência é subordinada à existência de outro bem considerado
principal (vide exemplos acima). A maior consequência que se extrai da
distinção é o princípio da gravitação jurídica: o acessório segue o principal (acessorium sequitur principale). Embora essa seja a regra, ela não
é absoluta, podendo haver disposição das partes ou da própria lei em
sentido contrário (como ocorre com as pertenças – Código Civil, arts.
93 e 94). De acordo com a doutrina, os bens acessórios podem ser classificados em naturais, civis e industriais.
116
Direito Civil
Naturais: aqueles que aderem naturalmente ao bem principal (p.
ex.: árvores e frutos – ainda que venha a existir atividade humana voltada a melhoria ou aumento de produção).
Civis: aqueles que aderem ao bem por determinação legal (abstração jurídica), não dependendo de vinculação material (p. ex.: aluguel,
juros, dividendos, ônus reais em relação à coisa gravada etc.).
Industriais: aqueles que aderem ao bem principal por força do engenho humano (p. ex.: prédio erigido sobre um lote, um vestido costurado com uso de um tecido, um desenho sobre a folha de papel, uma
escultura desenvolvida a partir da argila etc.).
Os bens acessórios também podem ser de diversas espécies: frutos,
produtos, benfeitorias e pertenças. Vejamos, então, as regras aplicáveis a
cada um desses bens acessórios:
5.10.2.1. Fruto
Fruto é toda utilidade que um bem produz de forma periódica e cuja
percepção mantém intacta a substância do bem que a produziu. Embora
sejam bens acessórios, podem ser objeto de relação jurídica independentemente do bem principal. Em relação à sua natureza, os frutos podem
ser classificados em: naturais ou verdadeiros (p. ex.: frutas), civis (p. ex.:
aluguel) e industriais (p. ex.: canetas fabricadas). Os frutos também podem ser classificados de acordo com a vinculação com o bem principal e
o seu estado em:
Percebidos ou colhidos: aqueles que já foram colhidos, isto é, já foram destacados do bem principal. Se o fruto for natural ou industrial,
reputa-se colhido e percebido logo que é separado do bem principal. Se o
fruto for civil, reputa-se percebido dia por dia (Código Civil, art. 1.215).
Pendentes: aqueles que ainda estão unidos naturalmente ao bem
principal (p. ex.: uma fruta que está ligada à árvore que a produziu).
Percipiendos: aqueles que deveriam ter sido colhidos, mas não o
foram.
Estantes: são os frutos que já foram colhidos e encontram-se armazenados ou acondicionados para venda.
Consumidos: são os frutos que não mais existem em razão de seu
destino normal (consumo), ou que pereceram.
Os frutos naturais e industriais reputam-se colhidos e percebidos,
logo que são separados; os civis reputam-se percebidos dia por dia. O possuidor de má-fé responde por todos os frutos colhidos e percebidos, bem
como pelos que, por culpa sua, deixou de perceber, desde o momento em
que se constituiu de má-fé; tem direito às despesas da produção e custeio.
5.10.2.2. Produtos
Embora seja comum a utilização das expressões frutos e produtos
como sinônimas, existe uma distinção entre os termos que deve ser observada. Enquanto os frutos são bens que se reproduzem periodicamente,
117
ATENÇÃO
A distinção entre os frutos
percebidos e pendentes tem importância na determinação dos
efeitos da posse exercida sobre
o bem (Código Civil, arts. 1.214 a
1.216). O possuidor de boa-fé tem
direito, enquanto ela durar, aos
frutos percebidos. Os frutos pendentes ao tempo em que cessar a
boa-fé devem ser restituídos, depois de deduzidas as despesas da
produção e custeio; devem ser
também restituí­dos os frutos colhidos com antecipação.
atenÇÃo
A classificação das benfeitorias em necessárias, úteis e voluptuárias tem importância no estudo
das consequências do exercício
da posse sobre o bem (Código Civil, arts. 1.219 a 1.222).
os produtos são bens que se retiram da coisa desfalcando a sua substância
e diminuindo a sua quantidade. As frutas colhidas de um pomar são
frutos, pois nascem e renascem de forma periódica. Os cereais colhidos
de uma plantação de arroz, assim como os minerais extraídos de uma
jazida e o petróleo extraído de um poço, são produtos, por não se renovarem. Assim como os frutos, os produtos também pode ser objeto de
negócio jurídico autônomo.
Carlos Roberto Gonçalves compreende que os minerais foram
transformados em bens principais em razão do art. 176 da Constituição
Federal, que dispõe que as jazidas pertencem à União, constituindo propriedade distinta da do solo para efeito de exploração ou aproveitamento industrial, sendo assegurada ao proprietário do solo participação nos
resultados da lavra.
5.10.2.3. Benfeitorias
Benfeitoria é toda espécie de despesa ou obra (melhoramento) realizada em um bem, com o objetivo de evitar sua deterioração (benfeitoria
necessária), aumentar seu uso (benfeitoria útil), ou dar mais comodidade
(benfeitoria voluptuária). Os melhoramentos ou acréscimos sobrevindos
ao bem sem a intervenção do proprietário, possuidor ou detentor, não
devem ser considerados como benfeitorias (Código Civil, art. 97).
Assim, não são consideradas benfeitorias as acessões naturais, isto
é, as melhorias e acréscimos produzidos pela natureza (p. ex.: alusão,
aluvião etc.). Também não são benfeitorias as acessões artificiais, isto é,
as obras que criam uma coisa nova que adere a outra já existente (p. ex.:
a construção de uma casa, uma plantação etc.). A benfeitoria não cria
uma coisa nova, apenas incrementa. É por essa razão que a pintura em
relação à tela e a escultura em relação à matéria-prima não podem ser
consideradas benfeitorias.
Sobre o tema preparamos o seguinte quadro comparativo:
OBJETIVO
CONSEQUÊNCIAS
Conservar a coisa ou evitar
que se deteriore (p. ex.: conBENFEITORIAS
serto de telhado, porta, encaNECESSÁRIAS
namento, muro etc.).
O possuidor de boa-fé tem
direito à indenização e à
retenção. O de má-fé tem
direito à indenização, mas
não à retenção.
Aumentar ou facilitar o uso
da coisa (p. ex.: construção
BENFEITORIAS
de um quarto ou garagem,
ÚTEIS
ampliação de um galpão
etc.).
O possuidor de boa-fé tem
direito à indenização e retenção. O de má-fé não tem
direito à indenização (não
tem direito a nada).
Deleite ou recreio. Tornar o
uso da coisa mais agradável e
cômoda (p. ex.: piscina, sauBENFEITORIAS na, churrasqueira em uma
VOLUPTUÁRIAS casa, decoração luxuosa ou
pintura).
O possuidor de boa-fé não
tem direito a cobrar indenização. Se esta não for paga
espontaneamente, poderá
levantar (retirar) a benfeitoria. O de má-fé não tem
direito à indenização (não
tem direito a nada).
118
Direito Civil
Valor da indenização: se o possuidor for de boa-fé, o reivindicante será obrigado a indenizar as benfeitorias pelo valor atual delas. Se o
possuidor for de má-fé, o reivindicante tem o direito de optar entre o
seu valor atual e o de seu custo (Código Civil, art. 1.222). Em ambas
as hipóteses, as benfeitorias podem ser compensadas com os danos e
só obrigam ao ressarcimento se ao tempo da evicção ainda existirem
(art. 1.221).
5.10.2.4. Pertenças
Pertenças são os bens que, não constituindo partes integrantes, destinam-se, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento
de outro (p. ex.: trator em uma fazenda, cama, mesa ou armários de uma
casa, o ar-condicionado de uma loja etc.). Em regra, são bens móveis
que servem a um imóvel, mas, excepcionalmente, um bem imóvel também pode ser pertença. São consideradas coisas anexadas (res annexa)
ao bem principal, embora não o integrem.
Conforme prescreve o art. 94 do Código Civil, os negócios jurídicos
que dizem respeito ao bem principal não abrangem as pertenças, salvo
se o contrário resultar da lei, da manifestação de vontade ou das circunstâncias do caso.
Classificação dos bens de
acordo com a titularidade
5.11
O Código Civil realiza a classificação dos bens públicos e particulares utilizando o critério da titularidade em razão de sua simplicidade.
Todavia, a doutrina é unânime em criticar a permanência dessa classificação no Código Civil de 2002, principalmente na parte em que disciplina o regime dos bens públicos, por se tratar de matéria estranha
ao Direito Civil (é matéria de Direito Constitucional e Administrativo).
Em que pese a crítica doutrinária, traçaremos algumas linhas sobre o
assunto.
Além dos bens particulares e públicos, existem aqueles que não pertencem a ninguém, por nunca terem sido apropriados (res nullius) ou por
terem sido abandonados (res derelictae). Exemplos: animais selvagens,
conchas na praia, águas pluviais não captadas etc. Devemos lembrar que
os bens imóveis nunca serão res nullius, pois, se forem abandonados,
serão arrecadados como bens vagos e incorporados ao patrimônio do
Município ou do Distrito Federal.
5.11.1. Bens particulares
O conceito de bens particulares é extraído por exclusão do conceito
de bens públicos, tendo em vista que o Código Civil de 2002 limitou-se a
definir apenas estes últimos. Assim, são bens particulares todos aqueles
119
IMPORTANTE
A distinção entre as benfeitorias necessárias, úteis e voluptuárias também tem importância no
estudo do Direito das Obrigações
(Código Civil, arts. 453, 578 e 878),
do condomínio (art. 1.322), do Direito de Família (art. 1.660, IV), do
Direito das Sucessões (art. 2.004, §
2º), da Locação de imóveis urbanos (Lei n. 8.245/91, arts. 35 e 36).
VoCaBUlÁrio
bens afetados: bens públicos
sendo utilizados para determinado fim, não podendo ser alienados enquanto se mantenha
tal situação.
que não forem públicos, isto é, que não pertencerem às pessoas jurídicas
de direito público interno.
5.11.2. Bens públicos
São públicos os bens de domínio nacional, pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno, como os de propriedade da
União, Estados e Municípios. Os bens públicos podem ser classificados
em três tipos:
Bens públicos de uso comum do povo: aqueles bens que, embora
pertencentes a uma pessoa jurídica de direito público, podem ser utilizados por qualquer pessoa do povo. O domínio é da entidade de direito
público e o uso é do povo (p. ex.: mares, rios, estradas, ruas, praças etc.).
Importante ressaltar que os bens públicos não perdem a sua característica ainda que a administração pública limite ou suspenda o seu uso ou
imponha o pagamento de retribuição (p. ex.: cobrança de pedágio etc.),
conforme previsão do art. 103 do Código Civil.
Bens públicos de uso especial são os bens que as pessoas jurídicas
de direito público interno destinam aos seus serviços ou outros fins determinados. Como exemplos, podem ser citados os imóveis onde estão
instalados prefeituras, escolas, creches, hospitais, quartéis, museus e teatros públicos e os móveis utilizados na realização dos serviços públicos
(radar, caneta, computador etc.). De acordo com o Código Civil, abrangem não só aqueles destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, como também os de
suas autarquias (art. 99, II).
Bens públicos dominicais: também conhecidos como patrimoniais, são aqueles que compõem o patrimônio das pessoas jurídicas de
direito público interno, como objeto de direito pessoal ou real, de cada
uma dessas entidades (Código Civil, art. 99, III). Não dispondo a lei
em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito
privado. Admite-se, assim, que a lei instituidora dessas pessoas jurídicas
qualifique seus bens como públicos ou particulares. Os bens dominicais
consideram-se desafetados, enquanto os de uso comum e os de uso especial são bens afetados.
5.11.2.1. Características dos bens públicos
a) Inalienabilidade: é uma característica dos bens afetados, logo os
bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação (Código Civil, art. 100).
Por outro lado, os bens públicos desafetados, também denominados
como bens dominicais, podem ser alienados (art. 101), observadas as
exigências da lei: em regra, deve haver prévia avaliação e a alienação deve
ser realizada mediante licitação (Lei n. 8.666/93, arts. 17 e 19). Deve ser
lembrado que os bens públicos afetados podem ser desafetados mediante
120
Direito Civil
disposição expressa de lei ordinária. No que diz respeito às terras indígenas, o art. 231, § 4º, da Constituição Federal impõe a inalienabilidade e a
indisponibilidade.
b) Imprescritibilidade: são imprescritíveis as pretensões da administração pública com relação aos bens públicos. Como efeito da imprescritibilidade, os bens públicos também não podem ser adquiridos por
usucapião. Embora os bens desafetados possam ser alienados, o Código
Civil de 2002, em consonância com os arts. 183, § 3º, e 191, parágrafo
único, da Constituição Federal, dispôs que os bens públicos (afetados ou
desafetados) não estão sujeitos a usucapião (art. 102). Essa proibição se
justifica pelo descaso da administração pública na conservação de seu
patrimônio. Todavia, alguns autores ainda defendem a possibilidade de
usucapião de bens dominicais, sobretudo de terras devolutas (terras que
não pertencem a particulares e não estão sendo destinadas a qualquer
uso público).
c) Impenhorabilidade: a impenhorabilidade dos bens públicos
decorre de sua inalienabilidade. Desta forma, os bens públicos não podem ser dados em garantia e não podem ser objeto de execução judicial
(adjudicação ou arrematação).
JURISPRUDÊNCIA
SÚMULA 340 do STF: desde a
vigência do Código Civil (1916),
os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem
ser adquiridos por usucapião.
VOCABULÁRIO
indisponibilidade: impossibilidade da pessoa usar de maneira completamente ilimitada
ou de dispor (vender, alugar,
transferir, emprestar a terceiros)
algum objeto ou algum direito
que lhe pertence.
imprescritibilidade: impossibilidade de um direito prescrever,
ou seja, de seu titular (proprietário desse direito) perder o direito de ação. Também se aplica
a crimes que não prescrevem
(não deixam de ser penalizados por decurso do prazo para
a propositura da ação penal).
bens desafetados: bens públicos sem utilização, podendo
ser alienados enquanto assim
se encontrarem. O mesmo que
bens dominicais.
impenhorabilidade: impossibilidade de ser dado como garantia de uma dívida, apreendido, executado, confiscado.
121
122
6
Dos Fatos Jurídicos
VoCaBUlÁrio
irrelevante: sem importância,
cuja existência ou opinião é indiferente para os demais.
aUtor
Um dos maiores juristas brasileiros, natural de
Alagoas, Francisco
Cavalcanti Pontes
de Miranda (18921979) escreveu uma obra vastíssima sobre os mais variados temas,
entre eles o direito privado. A partir da influência alemã e do diálogo com outras ciências, como,
por exemplo, a Física Clássica,
aproximou vários ramos do nosso
Direito a conceitos completamente inéditos no estudo da disciplina
até então.
6.1.
Fato JUríDiCo
A distinção entre os fatos jurídicos e os fatos não jurídicos é razão
de controvérsia entre os autores. Para alguns, fato jurídico (lato sensu) é
todo fato que produz efeitos jurídicos, seja pela criação, modificação,
extinção ou conservação de direitos e deveres. Para outros, fato jurídico
é aquele que estabelece uma relação jurídica. Não é necessária a efetiva
produção de efeitos jurídicos, bastando que o fato seja capaz de produzir efeitos jurídicos. Assim, a incidência de regras jurídicas sobre um
determinado evento já seria suficiente para caracterização dele como
um fato jurídico.
Essa segunda posição, defendida por Pontes de Miranda, apresenta
perfeita compatibilidade com a teoria que desenvolveu, distinguindo os
planos de existência, validade e eficácia do negócio jurídico, como veremos mais adiante.
De outro lado, o fato não jurídico, também conhecido como fato
material ou fato ajurídico, é definido como aquele irrelevante para o
Direito, por não acarretar consequências jurídicas. Portanto, para determinar se o fato é jurídico, ou não, deve ser observado se este tem importância para o Direito. Assim, um simples evento como a chuva pode ou
não ser um fato jurídico.
Definido o que é um fato jurídico, resta observar que este comporta
algumas classificações. De acordo com a função na relação jurídica, os
fatos jurídicos podem ser classificados em: a) constitutivos: são os fatos
que criam uma relação jurídica; b) extintivos: os fatos que põem fim
a uma relação jurídica; ou c) modificativos: aqueles que alteram uma
relação jurídica já existente.
Todavia, a principal classificação dos fatos jurídicos continua sendo
a que leva em consideração a natureza do fato, isto é, se o evento foi um
fato humano (p. ex.: a celebração de um contrato) ou um fato da natureza (p. ex.: a aluvião – forma de aquisição originária de propriedade
imóvel). Assim, o fato jurídico em sentido amplo (lato sensu) divide-se
em fato natural e fato humano.
6.2.
Fato JUríDiCo natUral
O fato jurídico natural, também conhecido como fato jurídico em
sentido estrito (stricto sensu), é todo evento capaz de provocar consequências jurídicas que independem da vontade humana. Ressalte-se,
contudo, que o fato jurídico natural não é estranho aos seres humanos,
pois a eles interessam na qualidade de sujeitos de direitos.
Os fatos jurídicos naturais podem ser devidos em duas espécies: os
ordinários e os extraordinários:
124
Direito Civil
6.2.1. Fato jurídico natural ordinário
COMENTÁRIO
Considera-se fato jurídico natural ordinário todo fato comum da
vida que tem importância para o Direito. Como exemplos, podemos citar: a concepção e o nascimento, que determinam o início da personalidade jurídica; a morte, que põe fim à mesma personalidade; a maioridade, que confere à pessoa capacidade civil plena.
Da mesma forma, podemos considerar a prescrição e a decadência
como exemplos de fatos jurídicos naturais ordinários, pois o simples decurso do tempo produz consequências jurídicas: a prescrição extingue a
pretensão, e a decadência extingue o direito.
6.2.2. Fato jurídico natural extraordinário
Os fatos jurídicos naturais extraordinários são os fatos incomuns
da vida, isto é, os fatos do acaso: caso fortuito e força maior. Questão
complexa é a distinção entre esses dois institutos. Tamanha é a confusão
entre eles que concordamos com os autores que defendem a ideia de que
devem ser tratados como sinônimos.
Com efeito, não existe razão para promover a distinção entre eles
se a importância para o Direito é a mesma: tanto o caso fortuito como a
força maior são excludentes de responsabilidade civil. Exemplos: raios,
terremotos, tsunamis, tempestades etc.
6.3.
Fato jurídico humano
O fato jurídico humano, também conhecido como fato jurídico
voluntário ou fato jurígeno, é toda conduta humana (comissiva ou
omissiva) que gera consequências jurídicas. É caracterizado, portanto,
pela presença da vontade humana (elemento volitivo). O fato jurídico
humano é classificado de acordo com a sua compatibilidade com o ordenamento jurídico em lícito e ilícito.
6.3.1. Fato jurídico humano ilícito
Também conhecido como ato ilícito, é todo comportamento humano contrário ao ordenamento jurídico: lei, moral, ordem pública e
bons costumes. No Direito Penal, a importância do ato ilícito está na caracterização do crime e sua punição. No Direito Civil, a preocupação do
estudioso do Direito está na apuração da responsabilidade patrimonial
pelos danos causados.
A definição do ato ilícito civil está presente no art. 186 do Código
Civil, que dispõe: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito”. O dispositivo corresponde
parcialmente ao art. 159 do Código Civil de 1916, mas substitui o ter125
A prescrição e a decadência serão objetos de estudo mais
adiante. Esses institutos estão disciplinados nos artigos 189 a 211
do Código Civil.
CURIOSIDADE
O STJ analisa, caso a caso, se
é a força maior ou o caso fortuito que está na raiz dos acidentes
que geram a maioria dos pedidos
de indenização.
ATENÇÃO
Apesar da confusão que as
expressões possam causar na prática, especialmente por causa de
suas consequências serem idênticas, alguns autores esforçam-se
por diferenciar os conceitos de
caso fortuito e de força maior. Entre eles, Yussef Said Cahali afirma
que a força maior decorre de um
fato externo, estranho ao objeto
do negócio, o caso fortuito provém do mau funcionamento desse mesmo objeto. Por isso, é defensável a exclusão da responsabilidade no caso de força maior,
subsistindo, entretanto, no caso
fortuito, por estar incluído este último no risco assumido pelas partes
ao contratarem.
VOCABULÁRIO
conduta comissiva: ato de realizar algo indevido, ter uma
ação efetiva.
conduta omissiva: Não realização de algo que era devido,
deixar de fazer uma ação determinada.
mo “ou” por “e” (grifado acima), com o propósito de pôr fim à antiga
discussão doutrinária quanto ao conceito de ato ilícito. Discutia-se se o
dano era um requisito necessário à caracterização do ato ilícito.
O legislador do Código Civil de 2002 inovou, igualmente, ao introduzir o conceito de abuso de direito no art. 187: “também comete ato
ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente
os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou
pelos bons costumes”.
O abuso de direito é uma espécie de ato ilícito, mas não se confunde
com o ato ilícito previsto no art. 186. O ato ilícito previsto no art. 186
é duplamente ilícito: ilícito em seu conteúdo (viola direito) e em sua
consequência (causa dano a outrem). Por sua vez, o abuso de direito é
parcialmente ilícito: é lícito em seu conteúdo (há um direito legítimo),
mas ilícito em suas consequências (causa dano a outrem).
Nos termos do art. 188 do Código Civil, não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um
direito reconhecido; e II – a deterioração ou destruição da coisa alheia,
ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. No caso do inciso
II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para
a remoção do perigo.
O estudo aprofundado do ato ilícito e dos arts. 186 a 188 do Código
Civil é objeto de outra parte do Direito Civil, a da chamada Responsabilidade Civil.
6.3.2. Fato jurídico humano lícito
atenÇÃo
Ato jurídico stricto sensu - efeitos jurídicos não decorrem de manifestação da vontade, mas diretamente da lei.
Classificação: 1. atos materiais:
mera atuação da vontade (ex.:
ocupação, achado de tesouro, especificação); 2. participações: declarações para ciência ou comunicação de intenções ou tratos (ex.:
intimação, interpelação).
VoCaBUlÁrio
perfilhação: reconhecimento
voluntário de filho/a.
Fato jurídico humano lícito ou ato jurídico em sentido amplo (lato
sensu) é toda ação humana (manifestação de vontade) que, estando de
acordo com o ordenamento, é capaz de produzir efeitos na órbita jurídica. Devemos destacar que há quem entenda que o ato jurídico em
sentido amplo pode ser lícito ou ilícito, mas de acordo com a doutrina
majoritária só pode ser lícito.
O ato jurídico em sentido amplo pode ser dividido em três espécies:
ato jurídico stricto sensu, negócio jurídico e ato-fato jurídico.
6.3.2.1. Ato jurídico “stricto sensu”
O ato jurídico em sentido estrito (stricto sensu) é todo comportamento humano lícito capaz de gerar consequências jurídicas impostas
por lei. Na verdade, tanto o conteúdo do ato como as suas consequências
estão predeterminados na lei. No ato jurídico stricto sensu, a vontade humana não tem o condão de determinar ou modificar os efeitos previstos
na lei, daí a afirmação de que sua eficácia é ex lege (por força da lei).
Como exemplos de atos jurídicos stricto sensu, podemos citar a perfilhação, a notificação para constituição em mora, a fixação de domicílio
voluntário e o pagamento.
126
Direito Civil
6.3.2.2. Negócio jurídico
CINEMATECA
Negócio jurídico é todo comportamento humano lícito capaz de
gerar consequências jurídicas permitidas pela lei e desejadas pela pessoa. Tanto o conteúdo do negócio como os seus efeitos são determinados
pela vontade das partes, gozando, portanto, de eficácia ex voluntate.
É justamente no negócio jurídico que a autonomia privada se
manifesta em sua plenitude, criando um instituto jurídico próprio
voltado à composição do interesse das partes, que buscam alcançar um
objetivo (finalidade) permitido pela lei. Como exemplos de negócios
jurídicos, podemos citar os contratos, a promessa de recompensa, o
testamento etc.
6.3.2.3. Ato-fato jurídico
Para refletir
acerca dos comportamentos humanos e das suas
consequências jurídicas, sugere-se o
filme "O Presente".
Ano de lançamento: 2006. Direção: Michael O. Sajbel.
BIBLIOTECA
O ato-fato jurídico é uma espécie de fato jurídico qualificado pela
conduta humana sem se levar em consideração a vontade de praticar
o ato ou não. Em outras palavras, no ato-fato jurídico não importa a
intenção da pessoa que realizou o ato (se houve, ou não, vontade de praticá-lo), tendo relevância apenas os efeitos que o ato produziu.
Assim como no Código Civil de 1916, no Código Civil de 2002
não há regramento específico sobre o ato-fato jurídico, mas podem ser
encontrados exemplos como a caça, a pesca, a comissão, o achado do
tesouro, a especificação etc. Procurando facilitar a compreensão do instituto, podemos imaginar uma criança de 10 anos de idade que pescou
um peixe no mar. Ela será a dona do peixe, não tendo qualquer relevância o fato de ser absolutamente incapaz.
127
MELLO, Marcos Bernardes.
Teoria do fato jurídico. Plano da
eficácia. 9. ed. São Paulo: Saraiva,
2014.
MELLO, Marcos Bernardes.
Teoria do fato jurídico. Plano da
existência. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
128
7
Dos Negócios Jurídicos
BiBlioteCa
AZEVEDO, Antonio Junqueira
de. Negócio Jurídico – Existência,
Validade e Eficácia. 4. ed. São
Paulo: Saraiva, 2002.
JUrisPrUDÊnCia
7.1
teoria Geral Do neGóCio JUríDiCo
De todas as espécies de atos jurídicos, o mais importante é o negócio jurídico. Essa importância resta evidente da análise do Código Civil
de 2002, que na parte geral dedicou os arts. 104 a 184 para tratar do
negócio jurídico. Aos demais atos jurídicos reservou apenas o art. 185
do Código Civil, dispondo que “aos atos jurídicos lícitos, que não sejam
negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título
anterior” (o título anterior é o que trata do negócio jurídico). Vejamos
então as principais regras envolvendo o negócio jurídico.
Unilateral
DIREITO CIVIL E SUCESSÓRIO. APLICAÇÃO DA ANALOGIA
COMO MÉTODO INTEGRATIVO.
TESTAMENTO. VALIDADE. PARENTES
DE LEGATÁRIO QUE FIGURARAM
COMO TESTEMUNHAS DO ATO DE
DISPOSIÇÃO. INTERPRETAÇÃO DO
ARTIGO 1.650 DO CÓDIGO CIVIL.
(...) 2.o testamento é um negócio
jurídico, unilateral, personalíssimo,
solene, revogável, que possibilita
à pessoa dispor de seus bens para
depois de sua morte. Justamente
por essas características, tanto se
faz necessário observar o preenchimento de todos os seus requisitos egais para conceder-lhe validade. (stJ, resp 176473-sP)
Bilateral
TRIBUTÁRIO. CONTRATO DE
CONCESSÃO DE USO. IPTU. INEXIGÊNCIA. 1. o contrato de concessão de uso é negócio jurídico
bilateral de natureza pessoal. (stJ,
resp 681406-rJ)
7.2
ClassiFiCaÇões Do neGóCio
JUríDiCo
7.2.1.Classificaçãoquantoàmanifestaçãode
vontade
Unilaterais: são os negócios jurídicos formados pela declaração de
vontade de apenas uma pessoa (p. ex.: testamento, renúncia de crédito,
promessa de recompensa). Subdividem-se em: a) receptícios: aqueles
em que a declaração de vontade deve ser levada ao conhecimento do
destinatário para que produza efeitos (p. ex.: promessa de recompensa);
e b) não receptícios: aqueles em que o conhecimento do destinatário é
irrelevante (p. ex.: testamento).
Bilaterais: aqueles em que há duas manifestações de vontade. Os
contratos, por exemplo, exigem, ao menos, dois contratantes, duas manifestações de vontade.
Plurilaterais: são os negócios jurídicos em que há mais de duas
pessoas com interesses coincidentes. Essa situação é comumente verificada em alguns contratos, como o de incorporação imobiliária.
7.2.2.Classificaçãoquantoàsvantagenspara
as partes
Gratuitos: são os negócios jurídicos representados por atos de liberalidade, isto é, atos que outorgam vantagens sem exigir uma contraprestação.
Exemplos: contrato de doação pura, contrato de comodato, testamento etc.
Onerosos: são aqueles negócios que envolvem sacrifícios e vantagens patrimoniais para todos os envolvidos. Exemplos: contrato de
compra e venda, contrato de locação etc.
Bifrontes: são os negócios jurídicos que, de acordo com a vontade
das partes, podem ser gratuitos ou onerosos. Exemplos: contrato de depósito, contrato de mútuo, contrato de mandato etc.
Neutros: são aqueles que não podem ser enquadrados na categoria
de gratuitos nem de onerosos. Os negócios jurídicos neutros caracteri130
Direito Civil
zam-se pela ausência de atribuição patrimonial. Exemplos: instituição
de bem de família (Código Civil, arts. 1.711 a 1.722), cláusula de inalienabilidade, incomunicabilidade ou impenhorabilidade etc.
7.2.3.Classificação quanto ao momento da
produção dos efeitos
VOCABULÁRIO
décuplo: dez vezes.
CINEMATECA
Inter vivos: são os negócios jurídicos que têm por objetivo a produção de efeitos durante a vida dos participantes. Como exemplos de
negócios inter vivos, podem ser citados os contratos, a promessa de recompensa, o pacto antenupcial. Eventualmente, podem continuar produzindo efeitos após a morte, como ocorre com alguns contratos.
Mortis causa: são aqueles que somente produzem efeitos após a
morte da pessoa que manifestou a vontade. A morte é considerada requisito de eficácia do negócio jurídico. Exemplos: testamento e codicilo (ato
simplificado de última vontade, para as disposições de pequena monta).
7.2.4.Classificação quanto à forma
Solenes ou formais: são os negócios jurídicos que devem seguir
uma solenidade ou formalidade imposta pela lei para que sejam válidos.
Há quem faça distinção entre os termos formalidade (exigência de forma escrita) e solenidade (exigência de instrumento público). Quando
são requisitos de validade, diz-se que a solenidade ou a formalidade são
do tipo ad solemnitatem ou ad substantiam. A sua não observância determina a nulidade do negócio jurídico, conforme previsão do art. 166
do Código Civil (p. ex.: testamentos, contrato de compra e venda ou
doação de imóvel com valor superior a trinta salários mínimos). Quando são exigidas apenas para a prova do ato, são consideradas ad probationem tantum (o art. 227 do Código Civil determina que, salvo os
casos expressos, a prova exclusivamente testemunhal só se admite nos
negócios jurídicos cujo valor não ultrapasse o décuplo do maior salário
mínimo vigente no País ao tempo em que foram celebrados).
Não solenes ou informais: são os negócios jurídicos que têm forma
livre. No Direito Civil, os negócios são, em regra, não solenes e informais.
Nesse sentido, o art. 107 do Código Civil dispõe que “a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a
lei expressamente a exigir”. Exemplo: os contratos de comodato (contrato
unilateral e gratuito, pelo qual alguém (comodante) entrega a outrem (comodatário) coisa infungível, para ser usada temporariamente e retituída
no tempo combinado) e de locação podem ser celebrados verbalmente.
7.2.5.Classificação quanto à independência ou
autonomia
Principais (ou independentes): são os negócios jurídicos que têm
existência própria, não dependendo de qualquer outro para que tenham validade ou eficácia. A locação é um exemplo clássico de contrato principal.
131
Para refletir
sobre a promessa de recompensa e a licitude no negócio,
sugere-se o filme
"A Recompensa". Ano de lançamento: 2014. Direção: Richard
Shepard.
VoCaBUlÁrio
cláusula penal: consequência
negativa, prevista em contrato,
a ser sofrida pela parte que descumprir o que havia prometido.
fiança:contrato pelo qual o fiador compromete-se a cumprir
a obrigação prometida pelo
devedor a um credor.
hipoteca: garantia real representada pela entrega ao credor do próprio bem imóvel que
é objeto de uma dívida, no
caso desta não ser paga.
penhor: garantia real de pagamento representada por um
bem móvel (ex.: uma joia, um
equipamento, o salário de uma
pessoa) para o caso de determinada dívida não ser paga.
anticrese: garantia real pela
qual o devedor entrega ao credor um bem imóvel para que os
frutos provenientes deste amortizem uma determinada dívida.
comodato: empréstimo de um
bem infungível. Difere do mútuo, que é o empréstimo de um
bem fungível.
contrato estimatório: popularmente conhecido como “venda em consignação”, é o negócio pelo qual uma pessoa
entrega um bem à outra para
que esta o venda, restituindo
o valor recebido ou o próprio
bem ao final de um prazo determinado.
Acessórios (ou dependentes): são aqueles cuja existência está subordinada a outro negócio jurídico. Exemplos: a cláusula penal e os contratos de fiança, hipoteca, penhor e anticrese.
7.2.6.Classificaçãoquantoàscondições
pessoais dos negociantes
Impessoais: são os negócios jurídicos que independem da condição pessoal dos envolvidos. Se uma das partes não cumprir a obrigação assumida, outra pessoa poderá cumpri-la. Essa situação é comum
em diversos contratos: na compra e venda, por exemplo, havendo a
morte de um dos contratantes, seus herdeiros são obrigados a cumprir o contrato.
Pessoais: também conhecidos como personalíssimos ou intuitu
personae, são os negócios jurídicos que dependem de condição pessoal
dos negociantes, havendo obrigação infungível (insubstituível). Em caso
de morte, os herdeiros não são obrigados a cumprir o contrato (p. ex.:
contrato de prestação de serviço e contrato de fiança).
7.2.7.Classificação quanto à causa
determinante
Causais (ou materiais): são os negócios jurídicos em que o motivo
consta expressamente do seu conteúdo. Exemplo: termo de separação
ou divórcio.
Abstratos (ou formais): são aqueles em que a razão não está inserida no conteúdo. Exemplo: termo de transmissão da propriedade; simples emissão de título de crédito etc.
7.2.8.Classificaçãoquantoaomomentoda
eficácia
Consensuais: são os negócios jurídicos que se consideram formados a partir do momento em que há acordo de vontades. Exemplo: compra e venda pura.
Reais: são os negócios que somente se aperfeiçoam após a entrega
do objeto. Exemplos: contrato de comodato, contrato de depósito e contrato estimatório.
7.2.9.Classificaçãoquantoàextensãodos
efeitos
Constitutivos: são os negócios jurídicos que geram efeitos ex nunc
(não retroativos), a partir de sua celebração para o futuro. Em geral os
contratos têm eficácia constitutiva.
Declarativos: são aqueles que produzem efeitos ex tunc (retroativos), a partir do momento em que ocorreu o fato que constitui seu
objeto. Como exemplo de negócio declarativo, temos a partilha de bens
na sucessão de uma pessoa, que retroage ao momento da morte.
132
Direito Civil
Interpretação do negócio
jurídico
VOCABULÁRIO
7.3
Assim como as leis, os contratos também devem ser interpretados para que possam ser cumpridos corretamente, afinal ambos criam
normas jurídicas. As leis criam normas jurídicas gerais e os contratos
criam normas jurídicas individuais, que devem ser observadas pelos
contratantes.
Interpretar é buscar o sentido e o alcance das normas ou, no caso,
das cláusulas contratuais. Trata-se de tarefa indispensável para identificar a real vontade dos contratantes, que muitas vezes está escondida na
redação de cláusulas confusas, ambíguas, complexas etc. É por essa razão
que o art. 112 do Código Civil determina que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido
literal da linguagem”.
A redação do dispositivo exige cautela: a intenção que deve ser observada não é aquela presente na mente do contratante no momento
em que celebrou o contrato, mas aquela manifesta no contrato. Por essa
razão, a norma utiliza o termo “consubstanciada” em vez de “imaginada”.
Na sequência, o art. 113 do Código Civil declara que “os negócios
jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar
de sua celebração”. Esse dispositivo é considerado como um dos mais
importantes do Código Civil de 2002 por Miguel Reale. Ao dispor que
deve ser observada a boa-fé (objetiva) e também os usos do lugar de sua
celebração (costumes), a norma permite que o intérprete aplique a teoria tridimensional do direito, conjugando os valores ao lado do fato e
da norma para definir o direito no caso concreto.
Conforme o Enunciado 409 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, “os negócios jurídicos devem ser interpretados
não só conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, mas também de acordo com as práticas habitualmente adotadas entre as partes”.
Por fim, o art. 114 determina que “os negócios jurídicos benéficos e
a renúncia interpretam-se estritamente”. Os negócios benéficos, também
denominados gratuitos, são aqueles em que uma das partes pratica uma
liberalidade a favor de outra pessoa sem que exista uma contraprestação
(p. ex.: doação pura). A renúncia consiste na manifestação de vontade
de abdicar, independentemente de motivo, de um direito titularizado.
Como não existem vantagens ou contraprestações para quem pratica ato benéfico e para quem renuncia a direitos, a lógica impõe que esses
atos sejam interpretados restritivamente. Em outras palavras, na dúvida,
tais atos devem ser interpretados a favor de quem praticou a liberalidade, e não de quem foi beneficiado por ela.
Na Parte Especial do Código Civil de 2002 ainda podem ser encontradas outras normas restringindo a interpretação de negócios jurídicos:
a) art. 423: “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas
133
liberalidade: concessão espontânea e gratuita de alguma vantagem, bem ou direito.
reFleXÃo
É válido o negócio que ocorre no filme “Proposta indecente”?
Ano de lançamento: 1993. Direção: Adrian Lyne. Cumprimento
ou não cumprimento poderiam
ensejar alguma medida judicial?
ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao
aderente”; b) art. 819: “a fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva”; c) art. 843: “a transação interpreta-se restritivamente, e por ela não se transmitem, apenas se declaram ou reconhecem
direitos”; e d) art. 1.899: “quando a cláusula testamentária for suscetível
de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador”.
7.4
eleMentos ConstitUtiVos Do
neGóCio JUríDiCo
Desde o direito romano o negócio jurídico é estudado a partir da
análise de três elementos: os elementos essenciais (essentialia negotii), os
elementos naturais (naturalia negotii) e os elementos acidentais (acidentalia negotii).
Os elementos essenciais são aqueles que conferem a estrutura do
negócio jurídico. São os requisitos indispensáveis à existência e à validade do negócio celebrado. Os elementos essenciais podem ser divididos em gerais e especiais. Gerais são os elementos mínimos exigidos em
todos os negócios jurídicos (p. ex.: objeto lícito) e correspondem aos
requisitos que compõem os planos de existência e validade na teoria de
Pontes de Miranda, como veremos adiante. Especiais são aqueles exigidos somente para determinados negócios (p. ex.: na compra e venda são
elementos essenciais a coisa, o preço e o consentimento).
Os elementos naturais são as regras comuns a determinados negócios jurídicos, sem que seja necessária sua previsão expressa no contrato.
Da própria natureza do negócio celebrado, podem ser extraídas algumas
consequências determinadas pela lei. Como exemplo de elemento natural, podemos citar a responsabilidade pelo vício redibitório (prevista
nos arts. 441 e seguintes do Código Civil) nos contratos comutativos (p.
ex.: contratos de compra e venda).
Elementos acidentais são cláusulas que as partes podem inserir nos
negócios jurídicos com o objetivo de alterar a sua eficácia natural. Normalmente, o negócio jurídico produz efeitos imediatamente após a sua
formação. Então, quando as partes desejam postergar o início da produção dos efeitos ou determinar o momento em que cessarão os efeitos
de um negócio, podem (porque se trata de uma faculdade) inserir um
elemento acidental. Como exemplos destes, temos a condição, o termo e
o modo/encargo, que serão analisados mais adiante.
7.5
Planos Do neGóCio JUríDiCo
Com base no direito romano e no direito alemão, Pontes de Miranda dividiu o estudo do negócio jurídico em três planos distintos:
134
Direito Civil
existência, validade e eficácia. Muitas vezes, esses termos são utilizados
pelos estudiosos do Direito como sinônimos, mas não podem ser confundidos. Cada um desses planos possui significado distinto e elementos
específicos a ser analisados. E, seguindo as lições de Giselda Hironaka,
podemos visualizar o estudo dos planos do negócio jurídico como se
estes formassem uma escada:
A ideia de visualizar os planos no formato de uma escada facilita
muito a compreensão da matéria. Assim como subimos uma escada degrau por degrau, devemos estudar o negócio jurídico plano por plano.
Se não forem preenchidos os requisitos de existência, o negócio jurídico
será inexistente. Se não forem preenchidos os requisitos de validade,
o negócio será inválido, podendo ser nulo ou anulável, a depender da
situação específica. E se não forem preenchidos os requisitos de eficácia,
o negócio será ineficaz.
Antes de proceder à análise de cada um desses planos, devemos
alertar que o legislador do Código Civil de 2002 não adotou integralmente a teoria de Pontes de Miranda, pois referiu-se apenas à validade e
à eficácia dos negócios jurídicos, deixando de fora o plano de existência.
7.5.1.Plano de existência
O plano de existência compreende os elementos mais básicos do
negócio jurídico: agente, objeto, vontade e forma. Esses elementos (substantivos) serão adjetivados (ou seja, têm suas qualidades examinadas)
somente no plano de validade. No plano de existência exige-se apenas
que o negócio contenha esses elementos e, caso não estejam presentes, o
negócio jurídico deverá ser considerado inexistente. Se necessário, poderá ser proposta ação declaratória de inexistência.
A teoria dos atos inexistentes foi construída na França para justificar a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Entendia-se
que a diferença de sexo seria um requisito tão essencial para o casamento
que, se não fosse verificada, não existiria casamento.
7.5.2.Plano de validade
O plano de validade é a continuação do plano de existência, pois,
a partir dos elementos do negócio, impõe a análise dos seus requisitos.
Indaga-se, desta forma, o que cada um dos elementos do negócio deve
conter para que seja válido: os requisitos são as qualidades dos elementos.
135
COMENTÁRIO
Contudo, em nosso país, a
união estável e o casamento entre pessoas do mesmo sexo são
admitidos desde 2012, a partir de
julgamentos do Supremo Tribunal
Federal e do Superior Tribunal de
Justiça. São negócios existentes,
válidos e eficazes desde que respeitadas as demais regras aplicáveis aos institutos.
O art. 104 do Código Civil inaugura o estudo do negócio jurídico,
dispondo que a validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz;
II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma
prescrita ou não defesa em lei.
Procederemos à análise dos requisitos existentes na lei inserindo
outros de natureza doutrinária, com o propósito de acrescentar novos
elementos ao exame da matéria.
7.5.2.1. Partes
Para que o negócio jurídico exista, vimos que deve conter agente
(parte, sujeito etc.) e, para que seja válido, o agente deve ser capaz e
legitimado. A capacidade exigida é, em princípio, a plena, que decorre
das somas da capacidade de direito/gozo (que todas as pessoas têm) com
a capacidade de fato/exercício/ação (que decorre do discernimento e é
normalmente adquirida com a maioridade).
Se o agente for incapaz, também poderá ser praticado o ato desde
que suprida a incapacidade. Os absolutamente incapazes (rol do art. 3º
do Código Civil) devem ser representados nos atos da vida civil, sob
pena de nulidade; o negócio será considerado nulo e deverá ser proposta ação declaratória de nulidade. Os relativamente incapazes (rol do
art. 4º) devem ser assistidos nos atos da vida civil, sob pena de anulabilidade: o negócio será anulável (ou seja, poderá ou não ser considerado
nulo), devendo ser proposta ação anulatória.
Em situações excepcionais, a lei confere capacidade civil plena a
quem não completou a idade mínima para a prática de certos negócios
jurídicos. Exemplo: no contrato de mandato, o maior de dezesseis e menor de dezoito anos não emancipado pode ser mandatário (Código Civil, art. 666). Também com dezesseis anos de idade é possível casar com
autorização dos pais (art. 1.517) e realizar testamento sem assistência,
mesmo não estando emancipado (art. 1.860, parágrafo único).
Embora o art. 104 do Código Civil mencione apenas a capacidade
do agente, a legitimidade também dever ser verificada para que o negócio seja válido. A legitimidade é uma capacidade especial exigida para a
prática de certos negócios jurídicos. Exemplificando: uma pessoa maior
de dezoito anos tem capacidade para celebrar contratos de compra e
venda de imóvel. Mas, se for casada, dependerá, em regra, de autorização
do outro cônjuge – exemplo de legitimidade.
7.5.2.2. Objeto
Todo negócio jurídico possui um objeto, seja ele material ou imaterial, fungível ou infungível, com conteúdo econômico ou não. Para que
o negócio seja válido, exige-se apenas que o objeto seja lícito, possível,
determinado ou determinável. Se o objeto for ilícito, impossível ou indeterminado, o negócio será considerado nulo, devendo ser proposta
ação declaratória de nulidade.
136
Direito Civil
Objeto lícito é aquele que está de acordo com o ordenamento jurídico, pois não ofende a lei, a moral, a ordem pública e os bons costumes.
O negócio que tem objeto ilícito, além de ser nulo, pode gerar outras
consequências, como a propositura de ação de reparação de danos. Também permite a aplicação do princípio geral de direito pelo qual ninguém
pode se valer da própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem
allegans), proibindo, por exemplo, a alegação do dolo recíproco ou bilateral (Código Civil, art. 150), e o pedido de repetição de pagamento feito
para obter fim ilícito ou imoral (art. 883).
Objeto possível é aquele que pode ser realizado do ponto de vista
físico e jurídico. A possibilidade física é examinada sob a luz das leis da
natureza. Somente a impossibilidade física absoluta (aquela que atinge a
todas as pessoas no universo) determina a nulidade do negócio. Exemplos: construir uma ponte ligando a Terra à lua; colocar toda a água do
rio São Francisco em um copo etc.
Se a impossibilidade for relativa (atingir o devedor, mas não outras
pessoas), em princípio o negócio será válido. Conforme o art. 106 do
Código Civil, a impossibilidade inicial do objeto não invalida o negócio
jurídico se for relativa, ou se cessar antes de realizada a condição a que
ele estiver subordinado. Se a impossibilidade não cessar até o momento
do cumprimento da obrigação ou até o implemento da condição, o negócio será nulo.
Além da possibilidade física, alguns autores também se referem à
possibilidade jurídica como um requisito de validade do negócio. O objeto possível juridicamente é aquele que não está proibido pelo ordenamento jurídico. Como exemplo de objeto impossível juridicamente podemos citar a proibição de contratar tendo por objeto herança de pessoa
viva (Código Civil, art. 426). Todavia, entendemos que a impossibilidade
jurídica está compreendida na noção de licitude, estudada acima.
Objeto determinado é aquele que está individualizado no negócio
jurídico. No estudo das obrigações o objeto determinado é o conteúdo
da obrigação de dar coisa certa (Código Civil, art. 232). Objeto determinável é aquele que será individualizado no futuro, contendo, de início,
ao menos a indicação do gênero e da qualidade. No direito das obrigações o objeto determinável é o conteúdo da obrigação de dar coisa
incerta (art. 243). Se faltar a indicação do gênero ou da quantidade, a
obrigação e o negócio jurídico serão nulos.
7.5.2.3. Forma
A forma é o meio pelo qual se revela a manifestação de vontade do
agente. Para que o negócio jurídico seja válido, a forma deve ser aquela
prescrita ou não defesa (não proibida) em lei. Contudo, no Direito Civil,
a regra é a forma livre e somente em situações excepcionais é exigida formalidade (forma escrita) ou solenidade (instrumento público). De acordo
com o art. 107 do Código Civil, a validade da declaração de vontade não
dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.
137
VOCABULÁRIO
dolo recíproco ou bilateral:
dolo simultâneo de ambas as
partes envolvidas num negócio
de forma que nenhuma delas
poderá alegá-lo, com o objetivo de anulá-lo ou de reclamar
indenização.
Diversamente, será nulo o negócio jurídico que não revestir a forma prescrita em lei ou se for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade (Código Civil, art. 166, IV e V). Não
dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade
dos negócios jurídicos que visem constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta
vezes o maior salário mínimo vigente no país (art. 108).
De acordo com o Enunciado 289 da IV Jornada de Direito Civil do
Conselho da Justiça Federal, “o valor de 30 salários mínimos constante
no art. 108 do Código Civil brasileiro, em referência à forma pública ou
particular dos negócios jurídicos que envolvam bens imóveis, é o atribuído pelas partes contratantes e não qualquer outro valor arbitrado pela
Administração Pública com finalidade tributária”.
Algumas vezes as próprias partes podem determinar que o negócio
só será válido se for observada determinada forma. É o que se denomina
forma contratual e está prevista no art. 109 do Código Civil: “no negócio jurídico celebrado com a cláusula de não valer sem instrumento
público, este é da substância do ato”.
A forma também pode ser classificada em ad solemnitatem e ad probationem, como vimos ao estudar as classificações do negócio jurídico.
A forma ad solemnitatem, também conhecida como ad substantiam, é
aquela exigida como requisito de validade do negócio (p. ex.: Código
Civil, arts. 166, 108 e 109). A forma ad probationem tantum é aquela
exigida para a prova do ato em juízo (p. ex.: arts. 227 e 1.536).
7.5.2.4. Vontade
O negócio jurídico é uma manifestação de vontade que está de
acordo com o ordenamento jurídico e produz efeitos desejados pelo
agente. Entretanto, para que o negócio seja válido, a vontade deve ser
manifestada de forma livre.
Vontade livre é aquela manifestada de forma consciente e sem
qualquer um dos defeitos ou vícios do negócio jurídico: erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão, fraude contra credores e simulação. Os cinco
primeiros são denominados vícios da vontade ou do consentimento e
contaminam a formação da vontade. Os dois últimos são denominados
vícios sociais e contaminam a manifestação da vontade. O estudo dos
vícios do negócio jurídico será realizado em capítulo próprio, adiante.
Devemos lembrar que o silêncio importa anuência (concordância),
quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária
a declaração de vontade expressa (Código Civil, art. 111). Portanto, não
se pode afirmar que o direito tenha acolhido por completo o ditado popular “quem cala, consente”.
7.5.2.4.1. Reserva mental
De acordo com o art. 110 do Código Civil, “a manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não
138
Direito Civil
querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento”. A reserva mental é a emissão de uma vontade não desejada em seu
conteúdo nem em suas consequências.
Quando o negócio jurídico é celebrado sem que a outra parte tenha
conhecimento da reserva mental do agente, o negócio será válido. Com
efeito, nesta hipótese a reserva mental será irrelevante para o direito,
subsistindo a vontade declarada no negócio. Contudo, se a outra parte
tiver conhecimento da reserva mental, o negócio não subsistirá.
Não é simples, entretanto, determinar exatamente qual a conse­
quência que atingirá o negócio quando a reserva mental é conhecida
da outra parte. Alguns autores, como Moreira Alves, defendem que não
existirá a declaração de vontade, logo o negócio não será formado (plano
de existência). Contudo, vimos que o Código Civil de 2002 não adotou o
plano de existência do negócio. Parece-nos, então, que a melhor solução
na hipótese seria apontar a nulidade do negócio jurídico.
7.5.2.4.2. Representação
Representação é a legitimidade conferida a uma pessoa para praticar atos em nome de outra. A pessoa que atua é denominada representante e a pessoa em nome de quem são praticados atos é denominada
representado. Os poderes de representação conferem-se por lei ou pelo
interessado.
A representação legal é aquela conferida pela lei aos pais, tutores,
curadores, síndicos, administradores etc. Trata-se de um munus público
e somente pode ser exercida no interesse do representado. Na verdade,
os únicos representantes legais são os pais, tutores e curadores. Síndicos
e administradores da falência ou da recuperação são representantes judiciais, contudo o Código Civil de 2002 unificou o tratamento das duas
espécies sob o título de representação legal.
A representação convencional, também denominada voluntária, é
aquela conferida mediante o contrato de mandato. Opera-se o mandato
quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar
atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato (Código Civil, art. 653).
Diversamente da representação legal, em que o representante só
pode agir no interesse do representante, na representação voluntária
podem ser conferidos poderes para que o representante atue em causa
própria (procuração em causa própria).
Tanto na representação legal como na convencional exige-se que
o mandatário tenha capacidade civil plena (capacidade de direito/gozo
+ capacidade de fato/exercício/ação). Apesar disso, permite que o menor com dezesseis ou dezessete anos e não emancipado seja nomeado
mandatário, mas o mandante não tem ação contra ele, senão segundo as
regras gerais, aplicáveis às obrigações contraídas por menores (Código
Civil, art. 655).
139
VOCABULÁRIO
múnus: encargo, função que
compreende a outorga de poderes e deveres a quem a recebe.
JUrisPrUDÊnCia
Embora o Código Civil de
2002 não tenha fixado limites para
o autocontrato, a jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça tem
pontuado que a validade do negócio depende da ausência de
conflito de interesses. Neste sentido, a Súmula 60 do STJ determina
que “é nula a obrigação cambial
assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutuante, no
exclusivo interesse deste”.
Também em ambas as formas de representação compete ao representante provar às pessoas, com quem tratar em nome do representado,
a sua qualidade e a extensão de seus poderes, sob pena de, não o fazendo,
responder pelos atos que a estes excederem.
De acordo com o art. 116 do Código Civil, a manifestação de vontade pelo representante, nos limites de seus poderes, produz efeitos em relação ao representado. O representante tem o dever de agir estritamente
de acordo com os poderes conferidos pelo representado. Se o representante ultrapassar os limites definidos, será considerado mero gestor de
negócios, enquanto o mandante não lhe ratificar os atos (Código Civil,
arts. 665 e 861 a 875).
É anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse
ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo, se não existir autorização legal ou do representado. Para esse efeito, tem-se como celebrado
pelo representante o negócio realizado por aquele em quem os poderes
houverem sido substabelecidos (art. 117).
Esse dispositivo admite a celebração do autocontrato ou contrato
consigo mesmo desde que presente autorização da lei ou do mandante.
O exemplo mais comum desta figura negocial é o mandato em causa
própria, em que o mandante transfere poderes ao mandatário para alienar determinado bem, por certo preço, a terceiros ou a si próprio (art.
685).
O art. 119 do Código Civil dispõe que é anulável o negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se
tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou.
A ação anulatória deve ser proposta no prazo decadencial de cento e
oitenta dias, a contar da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade.
A invalidade do negócio concluído pelo representante em conflito
de interesses com o representado não deve ser confundida com a invalidade do negócio concluído por pessoa incapaz sem a devida representação. Se a pessoa absolutamente incapaz celebrar negócio jurídico sem
estar representada, este será nulo, devendo ser proposta ação declaratória de nulidade (a qual não tem prazo para ser proposta). E se pessoa relativamente incapaz celebrar negócio sem assistência, este será anulável,
devendo ser proposta ação anulatória no prazo de quatro anos, contados
a partir do dia em que cessar a incapacidade (Código Civil, art. 178, III).
Conforme dispõe o art. 120 do Código Civil, os requisitos e os efeitos da representação legal são os estabelecidos nas normas respectivas
(p. ex.: Código Civil, arts. 3º e 4º; Lei de Falências etc.); os da representação voluntária são os da Parte Especial do Código (arts. 653 a 692).
7.5.3.Planodeeficácia
Em regra, o negócio jurídico que existe e é válido tem eficácia imediata, devendo as partes cumprir as obrigações assumidas logo após a
140
Direito Civil
sua formação. Contudo, nada impede que as partes insiram no negócio
jurídico uma cláusula acessória para modificar ou limitar os efeitos que
seriam produzidos ou até mesmo para determinar o surgimento de um
direito. Essas cláusulas acessórias são denominadas elementos acidentais (acidentalia negotii), pois o negócio subsistiria e produziria efeitos
mesmo sem eles.
7.6Elementos acidentais
Os elementos acidentais mais comuns são a condição, o termo e o
modo ou encargo, mas nada impede que as partes criem outras formas
de elementos acidentais, exigindo-se, apenas, que sejam lícitos (ou seja,
que estejam de acordo com a lei, a moral, a ordem pública e os bons costumes). Os negócios jurídicos em geral admitem a aposição de elemento
acidental. Contudo, alguns negócios jurídicos e atos jurídicos stricto sensu não admitem elementos acidentais, como aqueles que dizem respeito
ao estado das pessoas, os direitos de família puros e outros. Exemplos:
emancipação, casamento, adoção, reconhecimento de filho, aceitação e
renúncia da herança etc.
7.6.1.Condição
Condição é a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade
das partes, subordina a eficácia do negócio jurídico a um evento futuro
e incerto (Código Civil, art. 121). É normalmente inserida nos negócios
jurídicos pelos termos se ou enquanto (p. ex.: compro o seu guarda-chuva se chover amanhã) e pode subordinar tanto o surgimento do direito (condição suspensiva) como a sua extinção (condição resolutiva).
Normalmente, atua apenas no plano de eficácia, mas em determinadas
situações atinge o plano de validade do negócio jurídico (p. ex.: a condição ilícita gera a invalidade do negócio), conforme estudaremos adiante.
A condição pode ser identificada sob três formas: a) pendente: é
o estado da condição que ainda se verificou ou frustrou; b) verificada
(implemento): é a condição em que se averiguou o seu cumprimento, não importando se é suspensiva ou resolutiva; e c) frustrada: é a
condição que não foi verificada. Reputa-se verificada (isto é, considerase ocorrida), quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento
(ocorrência) for maliciosamente obstado (ocultado) pela parte a quem
desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verificada a condição
maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento (Código Civil, art. 129).
7.6.1.1. Requisitos da condição
Do conceito básico da condição podemos extrair os seus três requisitos: a voluntariedade, a futuridade e a incerteza. Vejamos:
141
a) Voluntariedade: a condição deve ser resultado da manifestação
de vontade das partes (vontade unilateral ou bilateral). Deve ter sido
inserida voluntariamente e expressamente no negócio jurídico, não se
admitindo condição tácita ou presumida. Esta é a verdadeira condição,
também denominada condição própria, e está regulada nos arts. 121
a 130 do Código Civil. Não deve ser confundida com a condição imprópria (também denominada condição legal ou conditio iuris), que
nada mais é do que uma exigência legal (um requisito) para validade ou
eficácia de um ato jurídico (p. ex.: a exigência de que o absolutamente
incapaz seja representado nos atos da vida civil; a exigência de que o
pacto antenupcial seja feito mediante escritura pública etc.).
b) Futuridade: o segundo requisito da condição é que o evento do
qual dependerá a eficácia do negócio jurídico seja futuro, isto é, seja um
fato posterior à celebração do negócio. Se o evento for presente ou pretérito (conditio in praesens vel in preteritum collata) ou for apenas desconhecido do agente (incerteza subjetiva), não há condição. Se o evento já
houver ocorrido, o negócio é considerado plenamente desenvolvido. Se
não, o negócio não se formou.
c) Incerteza: este último requisito permite a distinção entre a condição (evento futuro e incerto) e o termo (evento futuro e certo). De
acordo com a doutrina, a incerteza que caracteriza a condição deve ter
natureza objetiva, isto é, deve ser um evento incerto no plano dos fatos,
independentemente da pessoa que celebra o negócio.
7.6.1.2. Classificação da condição quanto à
certeza
a) Condição incerta (incertus an incertus quando): é aquela em
que as partes não sabem se o evento ocorrerá nem quando poderá ocorrer. Exemplo: “vou te dar um capacete quando o Rubinho ganhar uma
corrida de Fórmula 1” (não se sabe se irá ganhar nem quando irá ganhar).
b) Condição certa (incertus an certus quando): é aquela em que
não se sabe se o evento ocorrerá, mas, se ocorrer, deverá ser em um momento determinado. Exemplo: “vou te dar um capacete se o Rubinho
ganhar a corrida do dia 15 do mês que vem” (não se sabe se irá ganhar,
mas, se ganhar, a condição só vale para aquela corrida determinada).
Também é exemplo de condição certa a maioridade de um ser humano,
pois não se sabe se o menor estará vivo (incertus an) até o dia do seu
aniversário de dezoito anos (certus quando).
7.6.1.3. Classificação da condição quanto aos
efeitos
a) Condição suspensiva: é a condição que suspende o exercício e a
aquisição do direito até o seu implemento. Portanto, a condição suspensiva impede que o negócio jurídico produza efeitos desde o momento
142
Direito Civil
de sua celebração. A venda a contento (aprovação ad gustum – Código
Civil, art. 125) é um bom exemplo de condição suspensiva.
A condição suspensiva gera expectativa de direito (spes debitum
iri), mas este já é objeto de proteção, podendo o seu titular se valer de
medidas conservatórias (p. ex.: inscrição do título no registro, interrupção da prescrição etc.). A menção que o art. 130 faz à condição resolutiva
é uma impropriedade, já que ociosa. Se a pessoa já está no exercício de
um direito, é óbvio que pode reclamar sua proteção (p. ex.: ação para
garantir a existência jurídica da prestação, reclamação das perdas e danos etc.).
Embora sob condição suspensiva, o negócio está formado e a relação jurídica, criada, podendo, inclusive, ser transmitido inter vivos
ou mortis causa (elemento ativo in fieri do patrimônio). Evidente que
a transmissão do negócio mantém a condição prevista (nemo ad alium
plus iuris tranferre potest quam ipse habet).
A condição suspensiva tem, em regra, eficácia retroativa, mas, em
alguns negócios em que se exige tradição da coisa ou registro, não retroage. Se a coisa perecer ou se deteriorar de forma não culposa e pendente
condição suspensiva, o alienante sofre a perda (regra res perit domino).
b) Condição resolutiva: é aquela que, quando verificada, põe fim
aos efeitos do negócio. A aquisição do direito ocorre desde a formação
do negócio, que produz todos os efeitos enquanto a condição não se
verificar (art. 127). Verificada a condição resolutiva, extingue-se, para
todos os efeitos, o direito a que ela se opõe, mas, se aposta em negócio de
execução continuada ou diferida, não tem eficácia com relação aos atos
já praticados de boa-fé.
Questão interessante é a de determinar se a condição resolutiva
opera de pleno direito ou se depende de reconhecimento judicial. Entendemos que, em regra, a resolução é automática, mas em algumas hipóteses será necessária a decisão judicial. Isto ocorre, por exemplo, no
compromisso de compra e venda com cláusula resolutiva, que exige a
propositura de ação judicial para que seja decretada a resolução.
7.6.1.4. C
lassificação da condição quanto à
licitude
a) Condição lícita: é a condição que está de acordo com o ordenamento jurídico (lei, moral, ordem pública e bons costumes – Código
Civil, art. 122) e, consequentemente, é validada. Numa perspectiva civil-constitucional, a licitude da condição deve ser verificada também
de acordo com os valores do ordenamento, em especial à luz dos princípios fundamentais (dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade etc.).
b) Condição ilícita: é aquela contrária ao ordenamento jurídico,
por ofender a lei, a moral, a ordem pública ou os bons costumes. Exemplo: prometer um prêmio a uma pessoa que atropelar outra. A condição ilícita gera a nulidade do negócio jurídico, não importando se ela
143
CURIOSIDADE
A perspectiva civil-constitucional pode ser descrita, em
linhas muito gerais, como a elevação ao plano constitucional dos
princípios norteadores do Direito
Civil. Assim, a interpretação dos
institutos civis passa a ser feita a
partir de parâmetros da Constituição, tais como a dignidade da
pessoa humana, a solidariedade
social e a igualdade substancial.
Segundo os autores que abraçam esta orientação, ela representa uma mudança de modelo
teórico ocorrida com o advento
da Constituição Federal de 1988,
que forçou o abandono do espírito individualista e patrimonialista
do então vigente Código Civil de
1916 e passou a examiná-lo sob a
ótica da promoção do bem comum e da supremacia do interesse coletivo sobre o privado.
é suspensiva ou resolutiva. De acordo com o art. 122 do Código Civil,
são ilícitas as seguintes condições: I) condições perplexas ou contraditórias: aquelas que privam de todo o efeito o negócio. Exemplo de
Francisco Amaral: Instituo “A” meu herdeiro universal se “B” for meu
herdeiro universal; e II) condições puramente potestativas: aquelas que
sujeitam a eficácia do negócio ao puro arbítrio de uma das partes.
7.6.1.5. Classificação da condição quanto à
possibilidade
a) Condição possível: é a condição que pode ser cumprida tanto
do ponto de vista físico como do jurídico. A possibilidade física é analisada a partir das leis da natureza. A possibilidade jurídica tem por base
o ordenamento jurídico. As condições possíveis são válidas.
b) Condição impossível: a conditio impossibilis é aquela que não
pode ser cumprida. Pode ser impossível fisicamente (se nenhuma pessoa puder cumprir a condição) ou juridicamente (se a conduta atentar contra o ordenamento jurídico). Diferentemente do que se costuma
imaginar, nem sempre a condição impossível determinará a nulidade do
negócio. Se a condição impossível for suspensiva, o negócio será considerado nulo. Entretanto, se for resolutiva, a condição será considerada
inexistente, e o negócio, válido.
7.6.1.6. Classificação da condição quanto à
natureza (ou fonte)
a) Condição casual: é a condição que fundamenta em um evento
alheio à vontade das partes. Dependem do acaso e do fortuito sem possibilidade de intervenção dos interessados. Por essa razão os eventos da
natureza podem ser bons exemplos de condições casuais (p. ex.: prometo doar um guarda-chuva a uma pessoa se chover amanhã em São Paulo). Também são condições casuais aquelas que subordinam a eficácia
do negócio ao comportamento de terceiros (p. ex.: prometo doar um
carro a um amigo se Vitor Belfort vencer a próxima luta contra Anderson Silva).
b) Condição potestativa: é aquela que depende da vontade de
um dos contratantes, que pode provocar ou impedir o seu implemento. Pode ser classificada em simplesmente potestativa e puramente potestativa:
Simplesmente ou meramente potestativa: é a condição cujo implemento depende da vontade intercalada de duas pessoas – uma das
partes impõe a condição e a outra deve cumpri-la (p. ex.: será dado
um carro a quem der uma volta correndo no quarteirão). As condições
simplesmente ou meramente potestativas são lícitas. No Código Civil
também podem ser encontrados exemplos de condições simplesmente
potestativas: I) art. 420: trata do direito de arrependimento; II) art. 505:
dispõe sobre a cláusula de retrovenda; III) art. 509: trata da venda a contento; e IV) art. 513: dispõe sobre o direito de arrependimento.
144
Direito Civil
Puramente potestativa: é a condição que subordina a eficácia do
negócio jurídico ao arbítrio de uma das partes. O implemento da condição depende da vontade da própria pessoa que a impôs. As condições
puramente potestativas consagram a cláusula si voluero (se me aprouver
– exemplo: doarei um relógio amanhã se eu quiser) e, por essa razão,
são consideradas ilícitas, gerando a nulidade do negócio. No direito das
obrigações, Caio Mário da Silva Pereira aponta que a indeterminação
potestativa da prestação (p. ex.: deixar de indicar a quantidade do objeto a ser entregue) é uma espécie de condição potestativa pura. A potestatividade do negócio se desloca da sua realização para a estimativa do res
debita. Pagar quanto quiser (quantum volam) é a mesma coisa que pagar
se quiser (si volam).
c) Condição mista: é a condição que depende, ao mesmo tempo,
da conduta (vontade) de uma das partes e de um ato que não depende
da vontade das partes (depende do acaso ou da vontade de um terceiro).
Exemplo: prometo doar uma televisão a um amigo se ele se casar com
determinada pessoa – observe que a celebração do casamento depende
não só da vontade de meu amigo, mas também da vontade da outra pessoa. As condições mistas são válidas desde que resultem da combinação
de uma condição casual com outra simplesmente potestativa (como no
exemplo acima).
7.6.2.Termo
É a cláusula que subordina a eficácia do negócio jurídico a um evento futuro e certo. Ao contrário da condição, que somente pode ser criada
pela vontade das partes, o termo pode ser introduzido no negócio pelas
partes (termo convencional) ou pode ser estipulado pela lei (termo legal
ou termo de direito). O termo também não deve ser confundido com
prazo, que é o lapso temporal existente entre o termo inicial e o termo
final. O prazo pode ser contado em minutos, horas, dias, meses ou anos.
7.6.2.1. C
lassificação do termo quanto aos
efeitos
a) Termo suspensivo: também conhecido como termo inicial ou
dies a quo, é aquele que, quando verificado, determina o início dos efeitos
negociais. Em outras palavras, o termo suspensivo suspende o exercício,
mas não a aquisição do direito, gerando direito adquirido. Não se confunde, portanto, com a condição suspensiva, que suspende o exercício e
a aquisição do direito, gerando simples expectativa de direito. Exemplo
de termo suspensivo: alugarei uma casa a partir do dia 1º de janeiro do
próximo ano.
b) Termo resolutivo: também conhecido como termo final ou dies
ad quem, é aquele que, quando verificado, põe fim aos efeitos do negócio
jurídico. Exemplo de termo resolutivo: o contrato de locação vencerá no
dia 30 do próximo mês. Diante das semelhanças existentes entre o termo
e a condição, o art. 135 do Código Civil prescreve que “ao termo inicial
145
e final aplicam-se, no que couber, as disposições relativas à condição
suspensiva e resolutiva”.
7.6.2.2. Classificação do termo quanto à certeza
a) Termo certo (certus an certus quando): é o termo certo que
ocorrerá e se sabe quando ocorrerá. No termo certo o evento é uma
decorrência da lei da natureza. Assim, toda data futura é um exemplo
de termo certo (p. ex.: no dia 1º de janeiro do ano que vem lhe darei um
carro).
b) Termo incerto (certus an incertus quando): é o termo certo
que ocorrerá, mas não se sabe quando. O melhor exemplo de termo incerto é a morte de uma pessoa – sabemos que todos morreremos, mas
não sabemos quando.
7.6.2.3. Contagem do prazo
Prazo é o lapso temporal existente entre um termo inicial e um termo final. Também pode ser conceituado como o lapso de tempo entre
a declaração de vontade e a superveniência do termo (inicial ou final).
Salvo disposição legal ou convencional em contrário, a contagem do
prazo deve ser feita com a exclusão do dia do começo, e com a inclusão
do dia do vencimento (Código Civil, art. 132, caput).
Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o seguinte dia útil (Código Civil, art. 132, § 1º). Há
entendimento doutrinário no sentido de que a mesma regra deve ser
aplicada aos domingos, mas não aos sábados. Entretanto, para as obrigações bancárias, se o vencimento ocorrer no sábado ou no domingo, o
prazo será prorrogado até o dia útil seguinte.
Nos termos do art. 132, § 2º, do Código Civil, meado considera-se,
em qualquer mês, o seu décimo quinto dia. Desta forma, não importando se o mês tem vinte e oito (fevereiro), vinte e nove (fevereiro em
ano bissexto), trinta ou trinta e um dias, o meado será sempre o décimo
quinto dia.
Os prazos de meses e anos expiram no dia de igual número do de
início, ou no imediato, se faltar exata correspondência (Código Civil,
art. 132, § 3º). Entendemos que a aplicação dessa regra ocorre de forma
autônoma ao caput do art. 132. Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça podem ser encontradas decisões nesse sentido e também
aplicando o § 3º simultaneamente com o caput do art. 132. Se os prazos
forem fixados por hora, deverão ser contados de minuto a minuto.
Nos testamentos, presume-se o prazo em favor do herdeiro, e, nos
contratos, em proveito do devedor, salvo, quanto a esses, se do teor do
instrumento, ou das circunstâncias, resultar que se estabeleceu a benefício do credor, ou de ambos os contratantes (art. 133 do CC).
Esse dispositivo estabelece uma presunção absoluta (jure et jure/
iuris et de iure) a favor dos herdeiros, permitindo que cumpram encar146
Direito Civil
gos antes do prazo estabelecido pelo testador. Também permite que o
herdeiro antecipe o pagamento do legado. Quanto aos devedores, o dispositivo estabelece presunção relativa (juris tantum), dispondo que são
presumidos ao seu favor os prazos para cumprimento das obrigações,
salvo se das disposições contratuais ou das circunstâncias do negócio resultar que o prazo foi estabelecido em benefício do credor ou de ambos.
Essa presunção permite, por exemplo, que o devedor pague uma dívida antes do seu vencimento. Em se tratando de relação de consumo, o
consumidor devedor sempre tem o direito de liquidar antecipadamente
seu débito, não importando se o prazo foi estabelecido a favor dele ou
do fornecedor e credor (Código de Defesa do Consumidor, art. 52, § 2º).
Os negócios jurídicos sem prazo, celebrados entre pessoas vivas (p.
ex.: contrato por prazo indeterminado), têm vencimento imediato, salvo
se o negócio tiver de ser cumprido em lugar diverso do contratado ou
exigir tempo para sua execução. Nessas hipóteses, o prazo para o cumprimento da obrigação deve ser interpretado de acordo com a natureza
e as condições do negócio.
7.6.3.Modo ou encargo
O modo ou encargo é a cláusula que impõe uma obrigação a quem
é beneficiado por uma liberalidade. Como elemento acidental do negócio jurídico, é normalmente identificado pelo uso das expressões “para
que” ou “com o fim de” e normalmente tem por objetivo dar relevância
aos interesses particulares do autor da liberalidade. Exemplos: uma doação de terreno feita ao município de Avaré para que nele seja construída
uma escola (doação modal – Código Civil, art. 540); a nomeação de uma
pessoa como herdeira em um testamento com a obrigação de cuidar de
um animal de estimação.
A obrigação imposta pelo encargo pode ser de qualquer espécie
(dar, fazer ou não fazer) e o seu cumprimento pode ser exigido em juízo mediante a propositura de execução, quando houver título executivo
extrajudicial (p. ex.: contrato assinado por duas testemunhas), ou mediante ação de obrigação, quando não houver título executivo (p. ex.:
contrato sem a presença de testemunhas).
Essa obrigatoriedade é reforçada pelo art. 553 do Código Civil, que
dispõe que o donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação,
caso forem a benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral. Se
desta última espécie for o encargo, o Ministério Público poderá exigir
sua execução, depois da morte do doador, se este não tiver feito.
Além da possibilidade de exigir em juízo o cumprimento do encargo, também é possível requerer a revogação da liberalidade, exigindo, por exemplo, a devolução do bem que foi doado. Consoante prevê
o art. 562 do Código Civil, “a doação onerosa pode ser revogada por
inexecução do encargo, se o donatário incorrer em mora. Não havendo
prazo para o cumprimento, o doador poderá notificar judicialmente o
donatário, assinando-lhe prazo razoável para que cumpra a obrigação
assumida”.
147
Nos termos do art. 136 do Código Civil, “o encargo não suspende
nem a aquisição nem o exercício do direito, salvo quando expressamente
imposto no negócio jurídico pelo disponente, como condição suspensiva”. Assim, ainda que a pessoa que praticou o ato venha a falecer ou
se tornar incapaz, a liberalidade não será atingida. Diversamente, se se
tratar de condição suspensiva, o negócio perderá sua eficácia.
Se o encargo for ilícito ou impossível, será considerado não escrito,
salvo se constituir o motivo determinante da liberalidade, caso em que
se invalida o negócio jurídico. Normalmente o motivo é irrelevante para
o direito. Contudo, quando é aposto como razão determinante, passa a
integrar o conteúdo do próprio negócio, tornando ilícito o seu objeto.
Esta é a razão pela qual o negócio jurídico deverá, em tais casos, ser
considerado nulo.
148
8
Defeitos nos negócios
jurídicos
VOCABUlÁRIO
diligência: cuidado, zelo, presteza.
8.1
INTRODUçãO
Conforme estudado anteriormente, a vontade humana é requisito
essencial para a existência dos negócios jurídicos. E, para que o negócio
seja considerado válido, vimos que a vontade não pode estar viciada,
isto é, deve ser manifestada de forma livre e consciente. Contudo, como
veremos, nem sempre isso ocorre, havendo inúmeras situações em que a
vontade é formada ou declarada de maneira defeituosa.
Quando o problema é interno, isto é, na formação da vontade,
fala-se em vício da vontade, também denominado defeito do consentimento, existindo cinco espécies no Código Civil de 2002: erro ou ignorância, dolo, coação, estado de perigo e lesão. Quando o problema é
externo, isto é, na declaração da vontade, fala-se em vício social, sendo
exemplos deste a fraude contra credores e a simulação.
Outro fator de distinção entre os vícios é a pessoa prejudicada. Nos
vícios da vontade o prejudicado é sempre um dos contratantes. Quando
o vício é social, o prejudicado é um terceiro, isto é, uma pessoa que não
participou da relação contratual, mas foi atingida por ela.
8.2
ERRO OU IgNORÂNCIA (CÓDIgO
CIVIl, ARTS. 138 A 145)
O erro é a falsa representação da realidade, isto é, a falsa percepção
sobre um elemento determinante na realização de um negócio jurídico.
Já a ignorância é o completo desconhecimento da realidade. Embora
exista diferença conceitual (a ignorância é um erro mais acentuado), o
regramento conferido aos institutos é o mesmo, devendo estes ser tratados como sinônimos.
De acordo com o art. 138 do Código Civil, são anuláveis os negócios
jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial
que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das
circunstâncias do negócio.
COMENTÁRIO
Decisão do STJ estabelece
que, no caso de bem imóvel, a
ação anulatória tem como termo
inicial a data de registro do ato
ou contrato no cartório imobiliário
(REsp 1.205.147 - AgRg).
8.2.1. Consequências do erro
Quando presente o erro ou a ignorância, o negócio jurídico é considerado anulável, devendo ser proposta ação anulatória no prazo decadencial de quatro anos, a contar da data da celebração do negócio jurídico (Código Civil, art. 178, II). A ação somente pode ser proposta pela
parte prejudicada pelo erro, não pela beneficiada.
A transmissão errônea da vontade é anulável, seja quando ocorre
por meio direto (p. ex.: pessoalmente), como também por meios interpostos, como, por exemplo, um meio de comunicação (internet, e-mail,
fax etc.), ou por um intermediário (Código Civil, art. 141).
150
Direito Civil
Conforme determina o art. 144 do Código Civil, o erro não prejudica a validade do negócio jurídico quando a pessoa, a quem a manifestação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la na conformidade
da vontade real do manifestante. Tal dispositivo consagra o princípio da
conservação do contrato, que decorre do princípio da função social do
contrato, ao preferir a revisão do contrato à anulação.
Para que o erro torne o negócio jurídico anulável, deverá ser substancial e real (deve causar verdadeiro prejuízo para o interessado). Se
o erro for acidental, o negócio jurídico será válido, conforme veremos.
8.2.2. Classificação do erro quanto à
determinação
8.2.2.1. Erro substancial
Erro substancial (error in substantia) ou erro essencial é aquele que
recai sobre aspecto determinante (relevante) do negócio, incidindo sobre o núcleo essencial da declaração. Se a pessoa tivesse conhecimento
da realidade, o negócio não teria sido celebrado. Quando o erro é substancial, o negócio jurídico é anulável.
O próprio Código Civil determina, em seu art. 139, que o erro é
substancial quando:
I – interessa à natureza do negócio (error in negotio – p. ex.: a pessoa aluga uma casa, mas achava que a estava emprestando), ao objeto
principal da declaração (error in corpore – p. ex.: a pessoa acredita que
está comprando um determinado carro e na verdade adquire outro),
ou a alguma das qualidades a ele essenciais (error in qualitate ou in
substantia – p. ex.: a pessoa compra um relógio de latão, achando que
é de ouro);
II – concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a
quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta
de modo relevante (error in persona – p. ex.: a pessoa acha que está contratando uma banda famosa, mas acaba contratando uma homônima);
III – sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for
o motivo único ou principal do negócio jurídico (error iuris).
O erro de direito (error iuris) é aquele em que a pessoa desconhece o conteúdo ou a consequência de um dever jurídico imposto por lei
ou assumido mediante acordo de vontade. Podemos afirmar que há um
falso conhecimento ou uma falsa interpretação sobre o direito. Para que
o erro de direito possa conduzir à anulação do negócio, devem estar presentes dois requisitos:
a) Motivo determinante: a pessoa deve ter declarado a vontade
somente porque teve uma errônea compreensão da norma jurídica.
b) Não pode implicar recusa à aplicação da lei: quando se estuda o erro de direito, é muito comum a indagação se não haveria uma
antinomia (isto é, um conflito) entre o art. 139, III, do Código Civil de
151
COMENTÁRIO
Em decisão do TJSP (Ap.
0011043-31.2013.8.26.0566), verificamos caso emblemático de defeito do negócio jurídico. O autor
da ação recebeu uma carta do
INSS informando-lhe a respeito de
diferença derivada de revisão em
seus benefícios previdenciários.
Procurou auxílio do réu, que lhe
ofereceu serviços para intermediação junto ao órgão público,
cobrando-lhe o equivalente a
30% do montante a ser levantado.
Contudo, este deixou de informar
que seus serviços não seriam necessários, já que bastaria comparecer diretamente para receber
os valores.
JURISPRUDÊNCIA
A jurisprudência (TJSP, Ap.
0036433-36.2010.8.26.0007) fornece a resolução de um caso bem
comum de ocorrer: o autor da
ação alega divergência entre o
veículo automotor efetivamente
adquirido e o indicado no contrato de financiamento. O erro não
foi apto a invalidar este negócio
jurídico, descabendo a anulação
e a devolução do bem financiado. O tribunal estabeleceu a adequação à real vontade das partes, tendo alterado as cláusulas
contratuais relativas à descrição
do bem e ao valor financiado.
VOCABUlÁRIO
colimado: objetivado, desejado
COMENTÁRIO
Exemplo extraído de decisão do TJSP (Ap. 001674947.2011.8.26.0248): duas pessoas
fizeram contrato de compra e
venda de um imóvel. O valor
ajustado de compra foi de R$
19.000,00. Contudo, foi estipulado
que o comprador deveria pagar
24 parcelas de R$ 200,00, o que
se mostra equivocado, pois o certo seria R$ 791,66. Assim, houve
mero erro de cálculo do valor da
parcela mensal, o que autorizaria
apenas a retificação do cálculo.
2002 e o art. 3º da LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro, que proíbe a alegação de ignorância para descumprimento
da lei (ignorantia legis neminem excusat), conhecido como princípio da
obrigatoriedade. A resposta, a nosso ver, é negativa. O art. 3º da LINDB
proíbe a alegação do erro de direito para afastar a norma jurídica geral,
a lei. O art. 139, III, do Código Civil admite a alegação do erro de direito
para afastar a norma jurídica individual, o contrato. Como se vê, são
situações distintas.
8.2.2.2. Erro acidental
É aquele que recai sobre aspecto secundário, ou seja: a pessoa tem
uma falsa percepção sobre um elemento que não é determinante para
a concretização do negócio jurídico. Por essa razão, afirma-se que o
negócio viciado por erro acidental não é anulável.
O art. 142 do Código Civil contempla o erro acidental ao dispor que
“o erro de indicação da pessoa ou da coisa, a que se referir a declaração
de vontade, não viciará o negócio, quando, por seu contexto e pelas circunstâncias, se puder identificar a coisa ou pessoa cogitada”. Todavia,
se as qualidades secundárias da pessoa ou da coisa forem consideradas
como razões determinantes do negócio, se estará diante de hipótese de
erro substancial, permitindo a anulação.
O erro que incide sobre a qualidade acessória do objeto (error in
qualitate) ou sobre sua medida, peso ou quantidade (error in quantitate)
é considerado acidental desde que não importe efetivo prejuízo ao contratante.
O erro sobre o motivo ou erro quanto ao fim colimado, em regra,
não permite a anulação do negócio. Os motivos que levam uma pessoa
a agir de determinada forma normalmente não têm importância para
o direito. Todavia, quando o motivo passa a ser expresso como razão
determinante de um negócio jurídico, entende-se que ele passa a incorporar o próprio conteúdo do negócio, contaminando-o, quando falso.
O erro sobre o cálculo também pode ser apontado como exemplo
de erro acidental, pois não contamina o negócio jurídico e, portanto,
não permite a sua anulação. É uma espécie de erro material retificável,
daí por que o art. 143 do Código Civil apenas autoriza a retificação da
declaração de vontade, isto é, o recálculo, consagrando o princípio da
conservação do contrato.
8.2.2.3. Erro obstativo
O erro obstativo, obstáculo ou impróprio é aquele de exagerada importância, constituindo uma profunda divergência entre as partes
contratantes de tal modo que não haveria vontade negocial. Por essa
razão, explica Carlos Roberto Gonçalves, as doutrinas alemã, francesa
e italiana defendem que essa espécie de erro conduz à inexistência do
negócio jurídico. Como exemplos de erros obstativos nesses países, po152
Direito Civil
dem ser apontados aqueles que incidem sobre a natureza do negócio ou
sobre o objeto principal da declaração.
Entretanto, no direito brasileiro o legislador não fez distinção entre
o erro obstativo e o erro substancial, acolhendo todas as hipóteses como
erro substancial e, portanto, anuláveis.
8.2.3.Escusabilidade ou recognoscibilidade
Na vigência do Código Civil de 1916, a doutrina entendia que o
erro deveria ser escusável para que o negócio pudesse ser anulado. Erro
escusável é aquele perdoável, justificável, desculpável, isto é, aquele que
qualquer pessoa poderia incidir com o emprego da diligência comum.
Com a introdução do Código Civil de 2002, autores passaram a divergir sobre o conteúdo do art. 138: “São anuláveis os negócios jurídicos,
quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que
poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio”.
Para a doutrina majoritária, o dispositivo não exige mais a escusabilidade como um requisito para a anulação do negócio jurídico, mas,
sim, a recognoscibilidade ou cognoscibilidade. Enquanto a escusabilidade consiste na análise do comportamento da parte prejudicada, a recognoscibilidade consiste na verificação da conduta do outro contratante,
que, percebendo o erro da outra parte, quedou-se inerte.
Nesse sentido, aliás, o Enunciado 12 da I Jornada de Direito Civil
do Conselho da Justiça Federal dispõe que, “na sistemática do art. 138,
é irrelevante ser ou não escusável o erro, porque o dispositivo adota o
princípio da confiança”.
8.3Dolo
É o artifício (manobra, maquinação) utilizado com o propósito de
enganar uma pessoa para que ela celebre determinado negócio. Para que
o negócio seja anulável, não se exige a demonstração de efetivo prejuízo,
sendo suficiente a intenção de prejudicar. O dolo não deve ser confundido com o erro. No erro há um equívoco espontâneo do celebrante e
no dolo a pessoa é induzida a errar pelo outro contratante ou por um
terceiro.
8.3.1.Consequências do dolo
Assim como o erro, o dolo também torna o negócio anulável. A
parte enganada poderá propor ação anulatória no prazo decadencial de
quatro anos, a contar da data da celebração do negócio jurídico (Código
Civil, art. 178, II). Porém, deverá ser identificada a espécie de dolo de
que se está diante, pois algumas determinam a anulabilidade do negócio
e outras não, como veremos.
153
COMENTÁRIO
O STJ apresenta decisão
(REsp 664.499) em que restou caracterizado o dolo, tornando o
negócio anulável. O autor pediu
rescisão do contrato por omissão
dolosa do vendedor do imóvel,
que escondeu a existência de
ação demolitória em curso na
época da transação.
8.3.2.Classificaçãododoloquantoà
determinação
8.3.2.1. Dolo essencial
O dolo essencial, também conhecido como dolo principal ou
dolus causam, é aquele que contamina o negócio jurídico, permitindo
a sua anulação pelo fato de ter sido a sua causa, isto é, a pessoa somente
realizou o negócio jurídico por ter sido enganada. Se o contratante tivesse conhecimento da realidade, o negócio não seria anulado. Conforme o
art. 145 do Código Civil, “são os negócios jurídicos anuláveis por dolo,
quando este for a sua causa”.
COMENTÁRIO
Veja-se caso de dolo acidental trazido pela jurisprudência (TJSP,
Ap. 9208874-22.2009.8.26.0000): o
autor da ação requereu a anulação da partilha homologada
em ação de reconhecimento e
dissolução de sociedade de fato,
alegando omissão dolosa da informação de que um dos imóveis
integrantes da partilha era objeto
de disputa judicial possessória. O
Tribunal considerou que o silêncio,
ainda que intencional, do apelado constitui dolo acidental, já que
a partilha – negócio jurídico que
se pretendia anular – teria sido realizada de qualquer maneira, ainda que por outro modo.
8.3.2.2. Dolo acidental
O dolo acidental (dolus incidens) não constitui vício de consentimento, por não influir diretamente na realização do ato, que se teria
praticado independentemente do emprego de artifícios pelo outro contratante. Essa espécie de dolo não acarreta a anulação do ato, obrigando
apenas à satisfação de perdas e danos ou a uma redução proporcional da
prestação contratada.
De acordo com o art. 146 do Código Civil, “o dolo acidental só
obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo”.
8.3.3.Classificaçãododoloquantoàconduta
8.3.3.1. Dolo positivo
Dolo positivo ou comissivo é aquele consistente em uma ação voltada a enganar uma das partes contratantes, permitindo, consequentemente, a anulação do negócio jurídico. Exemplo: uma pessoa vende um
relógio para outra afirmando que é feito de ouro, quando na verdade é
feito de latão.
8.3.3.2. Dolo negativo
É aquele que consiste na omissão (silêncio) de um aspecto relevante para realização do negócio, permitindo a sua anulação. Para que
ocorra dolo negativo ou omissivo, a pessoa deve omitir informação
de que tinha conhecimento. Se não tinha conhecimento, não haverá
dolo. Exemplo: uma pessoa vende um relógio para outra afirmando
não saber qual o material com que ele é feito, mas tendo ciência de que
se trata de latão.
De acordo com o art. 147 do Código Civil, nos negócios jurídicos bilaterais (aqueles que estabelecem obrigações para ambos os contratantes), o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato
ou qualidade que a outra parte haja ignorado constitui omissão dolosa,
provando-se que sem ela o negócio não se teria celebrado.
154
Direito Civil
8.3.3.3. Dolo bilateral ou recíproco
COMENTÁRIO
Ocorre quando ambos os contratantes agem com dolo. Como ninguém pode se valer da própria malícia (nemo auditur propriam turpitudinem allegans), o dolo bilateral não permite a anulação do negócio nem
pedido de reparação de danos, quando o prejuízo de uma das partes for
maior que o da outra.
O dolo de uma parte sempre compensa o da outra parte, não importando o tipo de dolo. Desta forma, mesmo que uma das partes tenha
agido com dolo essencial e a outra com dolo acidental, não será possível
a anulação do negócio jurídico nem o pedido de reparação de danos
proporcional.
8.3.4.Classificação do dolo quanto ao conteúdo
Exemplo de dolo bilateral proveniente da jurisprudência (TJSP,
Ap. 0006138-85.2010.8.26.0081): o
autor da ação aderiu a grupo de
consórcio sob promessa de que
seria contemplado de imediato,
o que não ocorreu. Contudo, ele
tinha conhecimento de como
funciona o contrato de consórcio
e que deveria esperar por um sorteio eventual.
8.3.4.1. Dolo mau
O dolo mau (dolus malus) consiste no emprego de manobras astuciosas destinadas a prejudicar alguém. Por ser utilizado para iludir e
prejudicar a outra parte, acaba por viciar o negócio jurídico, tornando-o
anulável, em regra.
8.3.4.2. Dolo bom
A doutrina aponta dois sentidos para o dolo bom (dolus bonus).
Num primeiro é entendido como um comportamento lícito e tolerado
no comércio, consistente em reticências, exageros nas boas qualidades
ou dissimulações de defeitos (p. ex.: quando o vendedor fala que uma
TV é a melhor do mundo). Observe-se que, se houver abuso ou prejuízo,
o negócio poderá ser anulado. Nas relações de consumo, essa espécie de
dolo não é tolerada, pois caracteriza propaganda enganosa e induz o
consumidor a erro.
Num segundo sentido, fala-se em dolus bonus quando uma pessoa
engana a outra com o objetivo de beneficiar a pessoa enganada (p. ex.:
uma pessoa que compra um relógio de um amigo pagando um preço
mais caro com o objetivo de ajudar). No caso, o artifício não tem a finalidade de prejudicar.
Independentemente do sentido adotado, o dolus bonus não gera a
anulabilidade do negócio.
8.3.5.Dolo de terceiro
Normalmente na caracterização do dolo temos uma das partes sendo levada a erro pela outra parte, mas também é possível que um terceiro (pessoa estranha ao negócio jurídico) realize a indução. De acordo
com o art. 148, “pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo
de terceiro, se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou”.
155
COMENTÁRIO
O TJRS julgou caso em que
restou configurado o dolus bonus (Ap. 71.002.727.139): Não
configura propaganda enganosa a divulgação, por parte da
financeira, de que opera com
as melhores taxas do mercado.
Tal mensagem publicitária, para
qualquer cidadão com o mínimo
de discernimento, apenas exerce
a força atrativa a que se propõe
toda propaganda, jamais tendo
o condão de ludibriar o consumidor ou gerar vício no consentimento. Outrossim, o dolus bonus,
evidentemente presente na hipótese, não vicia o negócio, sendo
aceito socialmente. Trata-se de
mecanismo muito utilizado como
técnica de publicidade, inexistindo qualquer ilicitude no realce do
produto, com finalidade de atrair
os clientes. Improcedência do pedido mantida.
VOCABUlÁRIO
ação de regresso: aquela promovida pela pessoa condenada ao pagamento de indenização por um ato ilícito que,
agora na condição de autora,
volta-se contra aquele que entende ser o verdadeiro responsável pelo dano.
constrangimento:
imposição
de força, violência.
Assim, o dolo de terceiro pode ocorrer com a cumplicidade da parte
a quem aproveita; com mero conhecimento da parte a quem aproveita;
e, ainda, exclusivamente por conta do terceiro, sem que dele tenha conhecimento a parte favorecida. As duas primeiras hipóteses são passíveis
de anulação. Na última hipótese, o negócio persiste, mas o autor do dolo
(o terceiro) responde pelas perdas e danos em razão do ilícito praticado.
8.3.6. Dolo do representante
O dolo do representante legal obriga o representado a responder
civilmente até a importância do proveito que tirou. Entretanto, tratando-se de representação convencional (aquela em que o representado escolhe e nomeia o seu representante, aceitando todos os riscos que assim
corre), o representado responderá solidariamente pelas perdas e danos
(Código Civil, art. 149). Se for chamado a reparar os danos, o representado terá direito à ação de regresso em face do representante.
A distinção promovida pelo art. 149 do Código Civil entre a representação legal e convencional é coerente, pois na representação legal
(pais, tutores e curadores) o representado não escolhe quem será o seu
representante, devendo ser mais protegido. Na representação convencional, a escolha do representante decorre da vontade do representado.
Se escolheu mal, deverá reparar o dano causado por seu representante.
Tanto na hipótese de dolo do representante legal como na de dolo
do representante convencional, o negócio será anulável se o dolo for
substancial e não será anulável se o dolo for acidental.
8.4
COAçãO
A coação é qualquer forma de ameaça injusta (física ou moral) com
o objetivo de forçar uma pessoa a realizar determinado negócio jurídico.
Quem exerce a coação é denominado coator, e quem sofre é denominado coato, coagido ou paciente. Não necessariamente quem exerce a
coação é quem dela se beneficia, como veremos no estudo da coação por
terceiro.
8.4.1.Espéciesdecoação
Desde o direito romano, a coação é dividida em duas espécies:
coação absoluta (vis absoluta) e coação relativa (vis compulsiva). Essa
distinção não foi consagrada nem no Código Civil de 1916 nem no de
2002, mas a doutrina continua defendendo a sua importância diante dos
efeitos que cada uma produz:
8.4.1.1. Coação absoluta
A coação absoluta, também denominada física ou vis absoluta, é
o constrangimento corporal que retira toda a capacidade de manifes156
Direito Civil
tação de vontade, implicando ausência total de consentimento. Exemplos: forçar uma pessoa sob a mira de uma arma de fogo a assinar um
contrato; pressionar a digital de um analfabeto em um contrato contra
a vontade dele etc.
Essa espécie de coação não está prevista no Código Civil de 2002,
mas, de acordo com a doutrina majoritária, tem como consequência a
inexistência do negócio jurídico. Se necessário for, deverá ser proposta
ação declaratória de inexistência. Com efeito, a coação absoluta não
deixa opção ao coagido para que possa exercer um ato de escolha manifestando a sua vontade. Há um ato mecânico, não uma manifestação
de vontade viciada. Por essa razão, a coação absoluta não é considerada
vício da vontade ou do consentimento.
8.4.1.2. Coação relativa
Também conhecida como coação moral, psicológica ou vis compulsiva, é aquela que está presente no Código Civil de 2002, art. 151, e
funda-se no temor (receio, medo) de dano iminente e considerável à pessoa do negociante, aos seus bens ou à sua família. Ao contrário da coação
absoluta, a coação relativa deixa opção ao coagido, que prefere celebrar
o negócio a sofrer o dano. É espécie de vício do consentimento, pois contamina a formação da vontade e gera a anulabilidade do negócio, como
veremos adiante. Aliás, como o Código Civil de 2002 previu apenas essa
espécie de coação, iremos nos ater a ela nos próximos tópicos.
8.4.2.Requisitos da coação
Conforme prescreve o art. 151 do Código Civil, a coação, para viciar
a declaração da vontade, há de ser tal que desperte ao paciente temor
de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus
bens (caput). Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do
paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação
(parágrafo único). Da norma podem ser extraídos os requisitos para
caracterização da coação:
a)A ameaça deve ser grave: a ameaça somente caracterizará
coação se for grave e causar fundado temor de dano iminente
ao coagido. A análise desse requisito não deve levar em consideração o homem médio, mas, sim, a vítima em concreto da
coação. Por essa razão o art. 152 determina que, “no apreciar a
coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o
temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que
possam influir na gravidade dela”. A ameaça que pode ser grave
para uma idosa que mora sozinha pode não ser grave para um
homem adulto.
Em caso de simples temor reverencial, não haverá coação, já que não
há ameaça grave. Temor reverencial é o receio de desagradar uma pessoa
a quem devemos respeito e obediência. Exemplos: o respeito que os filhos
têm pelos pais; os empregados pelos empregadores; o soldado pelo ca157
JURISPRUDÊNCIA
Decisão que dispõe sobre os
requisitos da coação (TJRS, Ap.
70.060.217.379): “CONTRATOS AGRÁRIOS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. NEGÓCIO JURÍDICO. DISTRATO DE
CONTRATO DE ARRENDAMENTO.
ALEGAÇÃO DE VÍCIO DO CONSENTIMENTO. COAÇÃO. A declaração de vontade é viciada pela
coação se esta for séria, grave,
atual, injusta e motivadora do
ato. CC, art. 151. A coação deve
ser cabalmente comprovada nos
autos”.
pitão etc. Assim, quando um pai fala para seu filho vender o automóvel,
em princípio não se poderá alegar coação. Escrevemos “em princípio”
porque se, em vez do respeito, existir verdadeira ameaça grave, a coação
estará configurada. Exemplo: um pai condenado por cinco homicídios é
solto e ameaça matar a filha se ela não lhe doar a casa em que mora.
b) A ameaça deve ser de dano iminente: deve ser um dano atual
que não pode ser evitado pelo coagido. Entretanto, dano iminente não significa dano imediato. O importante é que a ameaça cause prontamente fundado temor de dano ao coagido. Por
outro lado, se o dano puder ser evitado pelo agente, sozinho ou
com ajuda de terceiros, a ameaça não caracteriza a coação. Também não existirá coação se o mal for impossível.
c) A ameaça deve ser injusta: somente haverá coação se a ameaça
consistir na prática de um ato contrário ao ordenamento jurídico, um ato ilícito (p. ex.: uma pessoa ameaça agredir outra se
uma dívida não for paga). De acordo com o art. 153 do Código Civil, se a ameaça corresponder ao exercício regular de um
direito, não haverá coação (p. ex.: uma pessoa ameaça protestar o cheque devolvido sem fundos no Cartório de Protesto de
Títulos). Se consistir em ameaça de abuso de direito, também
haverá coação porque é espécie de ato ilícito (p. ex.: uma pessoa
ameaça colocar um outdoor de cobrança na frente da casa do
devedor se a dívida não for paga).
d) A ameaça deve recair sobre a pessoa, seus familiares ou seus
bens: o art. 151 do Código Civil determina que a ameaça deve
ser dirigida ao próprio coagido, à sua família, ou aos seus bens
(p. ex.: ameaça incendiar o automóvel do coagido). Interessante
observar que o legislador utilizou o termo “família” em vez de
“parentes” com o propósito de ampliar as possibilidades (p. ex.:
o filho do cunhado não é parente, mas pode ser considerado
familiar). E, mesmo que a pessoa não pertença à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, poderá decidir se
houve coação, conforme dispõe o parágrafo único do art. 151
(p. ex.: noivos, namorados, amigos íntimos etc.). Questão interessante é a hipótese em que o coator dirige a ameaça a si
próprio para coagir outra pessoa a realizar um negócio (p. ex.:
o filho ameaça se matar se o pai não lhe doar um automóvel).
Entendemos que se a ameaça for séria e real nada impede o
reconhecimento da coação pelo juiz, em que pese a omissão
legislativa.
e) A ameaça deve ser a causa da celebração do negócio: o negócio
jurídico só será anulado por coação se a ameaça foi o fator determinante para sua celebração. Assim como na responsabilidade civil, deve estar presente um nexo de causalidade entre o
fato (a ameaça) e o dano (o negócio celebrado). Se o coagido
celebrasse o negócio mesmo sem a ameaça, não haveria coação.
158
Direito Civil
8.4.3.Consequências da coação
De acordo com o Código Civil de 2002, a coação determina a anulabilidade do negócio jurídico. A ação cabível é a anulatória, devendo
ser ajuizada no prazo decadencial de quatro anos a contar do dia em que
cessar a coação. A legitimidade para a propositura da ação é da pessoa
coagida. Na parte especial (Direito de Família), o Código Civil estabelece
o prazo de quatro anos para anulação do casamento por coação, contado
o prazo da data da celebração (art. 1.560, IV).
Além da anulabilidade do negócio, a parte prejudicada pela coação
também poderá pleitear o ressarcimento pelas perdas e danos, cumulando a ação anulatória com pedido de reparação de danos (materiais,
morais etc.).
8.4.4.Coação por terceiro
Se outra pessoa realizar a coação em vez do contratante, o negócio
será anulável desde que o contratante beneficiado tivesse ou devesse ter
conhecimento da coação realizada. Nessa hipótese, além da anulabilidade do negócio, o terceiro e o contratante que se aproveitou da coação
responderão solidariamente pelos danos causados ao coagido.
No entanto, se a coação decorrer de terceiro, sem que a parte a que
aproveite dela tivesse ou devesse ter conhecimento, o negócio não será
anulável, mas o autor da coação responderá por todas as perdas e danos
que houver causado ao coato.
8.5
Estado de perigo A coação
O estado de perigo consiste na celebração de um negócio jurídico
com onerosidade excessiva porque o agente estava premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido
pela outra parte. Esse vício do consentimento não estava previsto no
Código Civil de 1916 e foi incluído no Código Civil de 2002, no art. 156.
Como exemplos de estado de perigo, podemos citar: a) a pessoa que
dá um cheque caução de alto valor em um hospital para garantir a internação de um familiar doente; b) a pessoa que aceita pagar a um médico
o dobro do valor normalmente cobrado por uma cirurgia para salvar a
vida do filho atropelado; c) a pessoa que vende uma casa a um amigo por
um preço irrisório para pagar o resgate do sequestro de seu irmão etc.
O estado de perigo não se confunde com a coação, uma vez que
nesta o outro contratante compele o agente a contratar. No estado de
perigo, há uma situação que força o agente a celebrar o negócio. Além
disso, no estado de perigo deve estar presente a onerosidade excessiva
(requisito objetivo), enquanto na coação não importa se o coagido sofreu prejuízo ou não.
159
ATENçãO
A onerosidade excessiva exigida no estado de perigo é concomitante à celebração do negócio e não deve ser confundida,
portanto, com a teoria da imprevisão (cláusula rebus sic stantibus),
que é baseada na onerosidade
excessiva superveniente e fundamenta pretensão de revisão ou
resolução contratual (arts. 317 e
478 a 480, CC).
8.5.1. Requisitos do estado de perigo
Para configuração do estado de perigo, devem estar presentes um
requisito objetivo (onerosidade excessiva) e dois requisitos subjetivos
(situação de perigo e dolo de aproveitamento):
a) Onerosidade excessiva: para que o negócio possa ser anulado
por estado de perigo, será necessário que a obrigação assumida seja exorbitante, isto é, que gere onerosidade excessiva
para o agente. O Código Civil não estabelece qualquer porcentagem para a caracterização da onerosidade, deixando o
seu reconhecimento a cargo do juiz, que irá analisar as circunstâncias do caso concreto e decidir com base na equidade.
Essa onerosidade deve ser avaliada no momento da celebração do
negócio, não importando se o objeto do contrato sofreu redução ou majoração de valor no futuro. Assim, se uma pessoa vender uma casa por
um preço justo para pagar o tratamento de saúde de um filho e dois
anos após a venda a casa dobrar de valor, não será possível a anulação
do negócio.
b) Situação de perigo: para caracterização do estado de perigo, o
agente deve ter assumido a obrigação excessivamente onerosa com o objetivo de livrar a si próprio, um familiar ou uma
pessoa próxima de uma situação iminente de perigo de vida
(morte) ou grave dano moral (integridade física, moral ou intelectual). A situação de perigo é a razão de a pessoa contratar
em condições desfavoráveis.
De acordo com o caput do art. 156, a situação de perigo pode acometer o próprio agente que realizou o negócio jurídico ou alguém de sua
família: filhos, netos, bisnetos, pais, avós bisavós, irmãos, tios, sobrinhos,
primos, sobrinhos-netos etc. Como o dispositivo se referiu a familiares, e
não a parentes, podem ser contempladas outras pessoas que não são parentes, como os filhos dos cunhados ou os tios do cônjuge. Além disso,
devemos lembrar que cônjuge e companheiro não são parentes, embora
exista parentesco com os parentes destes (parentesco por afinidade).
Não bastasse isso, o parágrafo único do art. 156 dispõe que “tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá
segundo as circunstâncias”. Admite-se, assim, que o estado de perigo seja
reconhecido quando o agente praticar o ato para salvar um grande amigo, a namorada, a noiva etc.
c) Dolo de aproveitamento: como último requisito para caracterização do negócio jurídico, o art. 156 do Código Civil exige
que a situação de perigo que levou o agente a contratar seja
conhecida do agente que se beneficiou. Exemplo: a pessoa que
comprou a casa por preço irrisório sabia que a outra estava vendendo para salvar a vida do filho.
A expressão dolo de aproveitamento representa corretamente o seu
conteúdo: intenção de se aproveitar. Em algumas situações, esse requisito
pode ressaltar da própria circunstância que envolve o negócio jurídico
160
Direito Civil
(p. ex.: o hospital que exige o cheque caução para aceitar internar um
enfermo), mas em geral deverá ser objeto de prova específica no processo.
8.5.2.Consequências
Conforme determinação do art. 178, II, do Código Civil, o estado
de perigo determina a anulabilidade do negócio, devendo ser proposta
ação anulatória no prazo decadencial de quatro anos a contar da celebração do negócio. A legitimidade para a propositura da ação é da parte
prejudicada pelo negócio com onerosidade excessiva.
Nos termos do Enunciado 148, da III Jornada de Direito Civil do
Conselho da Justiça Federal, “ao estado de perigo (art. 156) aplica-se, por
analogia, o disposto no § 2º do art. 157”. E, de acordo com o art. 157, §
2º, do Código Civil, “não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a
redução do proveito”.
Tal dispositivo consagra o princípio da conservação dos contratos,
que encontra suas raízes no princípio da função social, para privilegiar
a subsistência do contrato com revisão do seu conteúdo, em vez da
anulação. A aplicação analógica dessa regra prevista para a lesão ao estado de perigo é justificada pela semelhança entre os institutos, como
veremos adiante.
Embora o Código Civil preveja apenas a anulabilidade como consequência do estado de perigo, há entendimento doutrinário no sentido de
que a parte prejudicada pode optar pela propositura de ação de revisão
contratual, com base nos mesmos princípios: conservação dos contratos
e função social. Concordamos com esse entendimento, até porque em
muitas situações não será possível às partes retornar ao status quo ante,
isto é, ao estado anterior à realização do negócio.
8.6Lesão
É a celebração de um negócio jurídico com onerosidade excessiva
porque o agente se encontrava em uma situação de premente necessidade ou de inexperiência. Nesse sentido, o art. 157, caput, do Código
Civil dispõe que “ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente
desproporcional ao valor da prestação oposta”.
Esses dispositivos consagram a lesão subjetiva, porquanto exigem
para sua caracterização a análise dos motivos que levaram a pessoa a
contratar com onerosidade. Não se confundem, desta forma, com a lesão
objetiva, também conhecida como lesão enorme (laesio enormis). A lesão objetiva se caracteriza, simplesmente, pelo grave desequilíbrio entre
as prestações assumidas pelas partes em um contrato, sem investigação
dos motivos que levaram as partes a contratar.
161
COMENTÁRIO
Assim como o estado de perigo, a lesão também não estava
prevista no Código Civil de 1916,
mas a Lei da Economia Popular
(Lei n. 1.521/51) já previa essa modalidade de lesão subjetiva ao
considerar crime de usura pecuniária ou real “obter, ou estipular,
em qualquer contrato, abusando
da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que
exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou
prometida”.
COMENTÁRIO
III Jornada de Direito Civil
Enunciado 150 do CEJ: “A lesão
de que trata o art. 157 do Código
Civil não exige dolo de aproveitamento”.
Não é demais lembrar que a lesão pode estar presente em qualquer
contrato bilateral, também denominado sinalagmático (p. ex.: compra
e venda, locação, prestação de serviço, empreitada, transporte etc.), com
qualquer espécie de obrigação (dar, fazer ou não fazer).
8.6.1.Requisitosdalesão
O reconhecimento da lesão exige a presença de um requisito objetivo (onerosidade excessiva) e outro subjetivo (premente necessidade ou
inexperiência). Ao contrário do estado de perigo, na lesão não precisa
ser provado o dolo de aproveitamento, isto é, que o outro contratante
tinha conhecimento da situação de necessidade ou inexperiência em
que se encontrava a parte prejudicada (nesse sentido, o Enunciado 150
da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal).
a) Onerosidade excessiva: o simples fato de contratar sob premente necessidade ou por inexperiência não permite a anulação do negócio jurídico. Para que tal ocorra, é necessário que o
agente assuma obrigação com prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta (onerosidade excessiva). Como o Código Civil não estabelece uma porcentagem a
ser observada, cabe ao juiz analisar se a desproporção entre as
prestações é excessiva.
Assim como no estado de perigo, a onerosidade deve ser avaliada
no momento da celebração do negócio. Nesse sentido, o § 1º do art. 157
do Código Civil estabelece: “aprecia-se a desproporção das prestações
segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio
jurídico”. Sobre a questão o Enunciado 290 da IV Jornada de Direito
Civil do Conselho da Justiça Federal dispõe que “a lesão acarretará a
anulação do negócio jurídico quando verificada, na formação deste, a
desproporção manifesta entre as prestações assumidas pelas partes, não
se presumindo a premente necessidade ou a inexperiência do lesado”.
Se o desequilíbrio entre as prestações for provocado por fato futuro
(p. ex.: alta no preço dos imóveis, inflação, alta do dólar etc.), não poderá
ser invocada a lesão para a anulação do negócio jurídico. Nesse caso, a
parte prejudicada poderá se valer da revisão contratual por onerosidade
excessiva superveniente, mas deverá comprovar que o fato que provocou
o desequilíbrio é extraordinário e imprevisível (Código Civil, arts. 317
e 478 a 480).
b) Premente necessidade ou inexperiência: o que distingue essencialmente a lesão do estado de perigo é o motivo que levou
o agente a contratar (indaga-se o que levou alguém a contratar
em condições tão desfavoráveis). Nesse ponto, o requisito subjetivo da lesão pode ser a situação de premente necessidade ou
de inexperiência (basta uma delas).
A premente necessidade a que se refere o art. 157 do Código Civil
não é necessariamente econômica, embora seja a mais comum. Segundo
Caio Mário da Silva Pereira, a premente necessidade é a contratual, isto
162
Direito Civil
é, a necessidade de contratar, que independe da condição financeira do
contratante. A necessidade de contratar é a situação que se revela quando o agente está impossibilitado de evitar o contrato. Como exemplo,
podemos citar uma agência de turismo que venda passagens aéreas nacionais, que não terá como evitar os contratos impostos pelas poucas
companhias aéreas brasileiras.
A inexperiência exigida para o reconhecimento da lesão deve ser
verificada de acordo com o conteúdo do contrato celebrado, pois se refere à falta de conhecimentos específicos quanto à natureza do negócio.
Essa inexperiência pode ser técnica, negocial, jurídica, financeira etc.
Como não se refere à falta de cultura, toda pessoa pode ser considerada
inexperiente (p. ex.: um juiz de direito pode ser considerado inexperiente em um contrato de compra e venda de safra futura).
Quanto à inexperiência, o Enunciado 410 da V Jornada de Direito
Civil do Conselho da Justiça Federal propõe que “a inexperiência a que
se refere o art. 157 não deve necessariamente significar imaturidade ou
desconhecimento em relação à prática de negócios jurídicos em geral,
podendo ocorrer também quando o lesado, ainda que estipule contratos costumeiramente, não tenha conhecimento específico sobre o negócio em causa”.
8.6.2.Consequências da lesão
O art. 178, II, do Código Civil estabelece que o negócio jurídico
viciado pela lesão é anulável, devendo ser proposta ação anulatória no
prazo decadencial de quatro anos, a contar da celebração do negócio
jurídico. A legitimidade para propositura da ação é apenas da parte prejudicada.
A anulação do negócio jurídico poderá ser evitada se o réu da ação
anulatória (a parte favorecida) oferecer suplemento suficiente ou concordar com a redução do proveito. Essa regra, prevista no art. 157, §
2º, do Código Civil, decorre do princípio da conservação contratual.
Exemplo: se uma pessoa, por inexperiência, vender uma casa que valia
um milhão de reais pela metade do preço e propuser ação anulatória, o
comprador evitará a anulação se oferecer a outra metade do valor.
Sobre o tema, o Enunciado 149 da III Jornada de Direito Civil do
Conselho da Justiça Federal prevê que “em atenção ao princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre
que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação,
sendo dever do magistrado incitar os contratantes a seguir as regras do
art. 157, § 2º, do Código Civil de 2002”.
Mais interessante, ainda, é o conteúdo do Enunciado 291 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Nas hipóteses de
lesão previstas no art. 157 do Código Civil, pode o lesionado optar por
não pleitear a anulação do negócio jurídico, deduzindo, desde logo, pretensão com vista à revisão judicial do negócio por meio da redução do
proveito do lesionador ou do complemento do preço”.
163
É certo que o Código Civil de 2002 não previu essa solução, mas
entendemos que pode ser adotada com base nos princípios da função
social e da conservação dos contratos: a revisão mantém o contrato vivo.
Além disso, a anulação do negócio pode não ser uma solução possível
para a parte prejudicada pela lesão porque a sentença determinará às
partes o retorno ao status quo ante. Imaginemos, então, um contrato
de compra e venda com lesão: com a anulação o comprador beneficiado deverá devolver o bem e o vendedor prejudicado deverá devolver a
quantia recebida. Se o vendedor tiver gastado o dinheiro, não terá como
pleitear a anulação, mas poderá requerer a revisão contratual para receber a diferença do preço.
8.7
FRAUDE CONTRA CREDORES
A fraude contra credores é o ato do devedor insolvente ou próximo da insolvência alienar (vender ou desfazer-se de algum outro modo)
de um bem com o objetivo de prejudicar o credor, em virtude da diminuição do seu patrimônio. Exemplo: uma pessoa está devendo cem
mil reais e, sem quitar a dívida, doa para um amigo o único bem que
poderia ser utilizado para pagá-la.
A fraude contra credores representa, portanto, uma violação ao
princípio da responsabilidade patrimonial, pelo qual o patrimônio
de uma pessoa responde por suas obrigações. O devedor se antecipa à
reação de seus credores, alienando ou onerando seus bens que poderiam
ser objeto de expropriação judicial.
A fraude contra credores integra, ao lado da simulação, o grupo
dos vícios sociais: atuam na manifestação da vontade e o prejudicado é
sempre uma pessoa que não participou do negócio jurídico (terceiro).
Os cinco vícios já estudados (erro, dolo, coação, estado de perigo e lesão)
são considerados vícios da vontade ou do consentimento, pois atuam
na formação da vontade e o prejudicado é sempre um dos contratantes.
8.7.1.Requisitosparacaracterizaçãodafraude
contra credores
O reconhecimento da fraude contra credores depende do reconhecimento de três requisitos: evento danoso, anterioridade do crédito e
conluio fraudulento (ou ciência da fraude). Os dois primeiros requisitos
têm natureza objetiva e devem ser provados em todas as hipóteses de
fraude. O último requisito, de natureza subjetiva, deverá ser provado em
algumas situações e em outras será presumido.
a) Evento danoso (eventus damni): o credor deverá provar que
o ato de alienação tachado de fraudulento reduziu o devedor à
condição de insolvente. O requisito do evento danoso depende,
164
Direito Civil
portanto, da análise do patrimônio do devedor (créditos e débitos) no momento em que aliena o bem.
É evidente que o instituto da fraude contra credores não impede
que a pessoa que tenha dívidas aliene os seus bens. Só haverá fraude
no ato de alienação ou oneração se for maliciosa e desfalcar o patrimônio global do devedor a ponto de não conseguir responder pelas suas
obrigações.
b)Anterioridade do crédito: para caracterização da fraude contra credores o autor da ação pauliana deverá provar que já era
credor do réu no momento em que ele alienou ou onerou os
bens. A anterioridade do crédito não leva em consideração o
momento do vencimento dele, mas, sim, da sua origem.
Nesse sentido, o Enunciado 292 da IV Jornada de Direito Civil do
Conselho da Justiça Federal propõe que “para os efeitos do art. 158, § 2º,
a anterioridade do crédito é determinada pela causa que lhe dá origem,
independentemente de seu reconhecimento por decisão judicial”.
Em se tratando de responsabilidade civil contratual, o crédito
reputa-se constituído no momento da formação do contrato. Exemplo:
se uma pessoa recebeu dinheiro emprestado em 2013, alienou bens em
2014 e não pagou o empréstimo no momento do seu vencimento em
2015, terá agido em fraude, uma vez que já era devedora desde 2013.
Na hipótese de responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, o crédito considerar-se-á constituído desde o momento em que foi
praticado o ato ilícito. Exemplo: se uma pessoa atropelou outra em 2012,
alienou bens em 2013, foi processada em 2014 e condenada em 2015 a
reparar os danos causados, terá agido em fraude porque já era devedora
desde 2012.
c)Conluio fraudulento (consilium fraudis) ou ciência da fraude
(scientia fraudis): o credor deverá provar que o adquirente do
bem agiu em conluio com o devedor ou que tinha ciência da situação de insolvência do devedor. Em outras palavras, deverá ser
provada a má-fé do adquirente. A prova do conluio ou da ciência
da fraude pode ser feita por todos os meios admissíveis no processo civil, inclusive indícios e presunções. Como exemplos de
forte indício de fraude, podemos apontar a aquisição de bens por
preço vil e a aquisição de bens por parentes próximos.
No entanto, ao contrário dos demais requisitos, esse último nem
sempre precisará ser provado. Se a alienação de bens pelo devedor for
gratuita (p. ex.: doação), a má-fé do adquirente será presumida (presunção absoluta). Se a alienação de bens for onerosa (p. ex.: compra e
venda), em regra será necessário provar a má-fé do adquirente (que agiu
em conluio ou que tinha ciência da fraude).
Por fim o art. 164 do Código Civil estabelece que “presumem-se,
porém, de boa-fé e valem os negócios ordinários indispensáveis à manutenção de estabelecimento mercantil, rural, ou industrial, ou à subsistência do devedor e de sua família”. O objetivo da norma é, primeiro,
165
VOCABULÁRIO
Ação pauliana: também denominada revocatória, é aquela que visa desfazer a fraude
contra credores, de modo que
os bens alienados fraudulentamente pelo devedor retornem
ao seu patrimônio por determinação judicial, a fim de que sejam usados pelo credor para a
satisfação da dívida.
VOCABUlÁRIO
credor quirografário: aquele
que não possui uma garantia
real como a hipoteca, o penhor ou a anticrese.
evitar que a situação do devedor seja agravada com a paralisação da
sua atividade econômica. Assim, o comerciante que estiver insolvente
poderá continuar vendendo os produtos de sua loja (negócio ordinário),
mas incorrerá em fraude se alienar o próprio estabelecimento (negócio
extraordinário).
O segundo objetivo da norma é a garantia da subsistência do devedor e de sua família, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa
humana. Seria absurdo proteger o crédito de uma pessoa em detrimento
da sobrevivência de outra.
8.7.2. Hipóteses de fraude contra credores
O Código Civil apresenta expressamente quatro hipóteses em que
poderá ser reconhecida a fraude contra credores:
a) Atos de transmissão gratuita, remissão de dívidas ou renúncia de direitos (Código Civil, art. 158): ocorre quando um devedor insolvente cede parte de seu patrimônio reduzido, abrindo mão do que indiretamente pertence a seus credores. Nessas
hipóteses não importa a ciência da insolvência do doador pelo
donatário, pois o interesse do credor prevalece sobre o interesse
do donatário. É mais justo proteger o devedor para que não
fique com prejuízo do que proteger o lucro do donatário. Essa é
a razão pela qual a prova do conluio fraudulento é dispensada.
Aplica-se o mesmo raciocínio para a remissão (perdão) de dívidas ou remissão de direitos, já que, quando o devedor perdoa
alguma dívida ou renuncia a algum direito, estará reduzindo
o patrimônio ou direito que poderia ser executado pelos seus
credores.
b) Alienações onerosas quando a insolvência é notória ou de
conhecimento do outro contraente (Código Civil, art. 159):
nessa hipótese existe um conflito entre o credor do alienante
(devedor) e o adquirente de boa-fé. Se o adquirente não tem
ciência da insolvência do devedor, seu interesse é que vai prevalecer sobre o do credor. Porém, se o adquirente sabia da insolvência do devedor ou se a insolvência é notória (p. ex.: tem
títulos protestados) e agiu de má-fé, o negócio será anulável.
O art. 160 do Código Civil determina que, se o adquirente dos bens
do devedor insolvente ainda não tiver pago o preço e este for, aproximadamente, o corrente, desobrigar-se-á depositando-o em juízo, com
a citação de todos os interessados. Porém, se for inferior, o adquirente,
para conservar os bens, poderá depositar o preço que lhes corresponda
ao valor real.
c) Pagamento antecipado de dívida a credor quirografário
(Código Civil, art. 162): se o devedor paga dívidas vencidas, age
licitamente. Porém, se paga débitos que ainda não venceram,
age de maneira anormal, que já revela o propósito fraudulento.
Nessa hipótese, o art. 162 do Código Civil dispõe que o credor
166
Direito Civil
quirografário (aquele sem preferência no crédito), que receber
do devedor insolvente o pagamento da dívida ainda não vencida, ficará obrigado a repor, em proveito do acervo sobre que se
tenha de efetuar o concurso de credores.
d)Outorga fraudulenta de garantias reais (Código Civil, art.
163): nos termos do art. 163, presumem-se fraudatórias dos direitos dos outros credores as garantias de dívidas que o devedor
insolvente tiver dado a algum credor. O devedor insolvente que
presta qualquer forma de garantia real (hipoteca, penhor, anticrese ou propriedade fiduciária – alienação fiduciária) a um de
seus credores quirografários acaba prejudicando os demais em
razão da preferência estabelecida. Se a garantia prestada for pessoal/fidejussória (fiança ou aval), não haverá fraude, pois estas
não geram preferência e por isso não prejudicam os demais credores. O art. 163 estabelece uma presunção legal absoluta (juris
et de jure) de fraude, acarretando a anulabilidade da garantia.
Com a anulação da garantia (não do crédito) o credor retornará
à condição de credor quirografário (sem preferência).
8.7.3.Consequências da fraude contra credores
Ignorando forte crítica doutrinária, o legislador manteve no Código Civil de 2002 a mesma consequência para a fraude contra credores
que já estava prevista no diploma de 1916: a anulabilidade do negócio
jurídico. Concordamos com os autores que se posicionam diversamente
à solução adotada defendendo que a consequência adequada seria a ineficácia relativa do negócio: o ato fraudulento é ineficaz perante os credores prejudicados, mas válido e eficaz entre as partes. Em questões de
concursos públicos recomendamos que seja gabaritada a jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça, que tem optado pela anulabilidade em
vez da ineficácia.
Para que o negócio jurídico seja anulado, o credor prejudicado
deverá propor ação revocatória, também denominada ação pauliana
(recebe esse nome porque foi inventada pelo pretor Paulo, no direito
romano), no prazo decadencial de quatro anos a contar da celebração
do negócio jurídico. De acordo com a jurisprudência, a fraude contra
credores não pode ser reconhecida em sede de embargos de terceiro, devendo ser proposta a ação pauliana para tanto.
A legitimidade ativa (ou seja, para propor a ação) é das pessoas que
já eram credoras no momento em que a fraude foi praticada. Quanto
à legitimidade passiva (ou seja, para ser processado, figurando como
réu) o art. 161 do Código Civil determina que, “nos casos dos arts. 158
e 159, a ação poderá ser intentada contra o devedor insolvente, a pessoa
que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros
adquirentes que hajam procedido de má-fé”. O termo poderá foi utilizado de forma equivocada pelo legislador. Na verdade, a ação deverá ser
proposta em face do devedor e do outro contratante que participou da
fraude. Nesse sentido, aliás, é a jurisprudência do STJ.
167
8.7.4. Fraude contra credores versusfraudeà
execução
É muito comum a confusão entre a fraude contra credores e a
fraude à execução. Na fraude à execução, instituto de direito processual civil, o devedor já tem contra si processo judicial capaz de reduzi-lo
à insolvência e, ainda assim, atua ilicitamente, alienando ou onerando
seus bens em prejuízo não só dos seus credores, mas também do próprio
processo, caracterizando reprovável atitude de desrespeito à justiça.
Caracteriza-se principalmente como ato de rebeldia à autoridade
estatal exercida pelo juiz, pois alienar bens na pendência deste e reduzir-se à insolvência significaria tornar inútil o exercício da jurisdição e
impossível a imposição do poder sobre o patrimônio do devedor.
Por outro lado, na fraude contra credores, instituto de direito civil,
o devedor não se insurge contra o processo ou a autoridade judicial.
Procura apenas se desfazer do seu patrimônio executável para que não
responda pelas obrigações anteriormente assumidas em contrato ou impostas pela lei.
A fraude à execução conduz à ineficácia do negócio jurídico e o seu
reconhecimento não depende de propositura de ação específica, podendo ser alegada incidentalmente mediante simples petição no processo,
resultando em decisão interlocutória. Diversamente, a fraude contra
credores determina a anulabilidade do negócio e exige a propositura
da ação pauliana para o seu reconhecimento. De acordo com a Súmula 195 do STJ, “em embargos de terceiro não se anula ato jurídico, por
fraude contra credores”.
O grande problema é identificar a partir de que momento a
alienação de bens pelo devedor deixa de ser fraude contra credores e
passa a ser fraude à execução. A doutrina majoritária defende que o momento que separa os institutos é o da propositura da ação (de conhecimento ou execução). Se o bem foi vendido antes, haverá fraude contra
credores e, se o bem foi vendido após, haverá fraude à execução.
Adiantamos que esta é a posição mais justa, pois, a partir da propositura da ação, o nome do devedor passará a constar dos distribuidores
cíveis, dos quais qualquer pessoa tem acesso aos dados ao requerer certidão (a cobrança se torna pública, impedindo a alegação de desconhecimento da dívida pelo adquirente do bem).
Entretanto, na jurisprudência dos tribunais tem prevalecido a tese
de que somente haverá fraude à execução a partir do momento em que
o devedor foi citado da ação. Essa posição permite favorecer o devedor
de má-fé que pretenda dilapidar seu patrimônio e prejudica o credor
que deverá propor outra ação para tentar recuperar seu crédito. É muito
mais difícil e custoso anular a venda por fraude contra credores do que
declará-la ineficaz em razão da fraude à execução.
Outro fator de distinção entre os institutos, apontado pela doutrina, é a necessidade de prova da má-fé do adquirente na fraude contra
168
Direito Civil
credores (salvo quando a alienação é gratuita), enquanto na fraude à
execução haveria uma presunção absoluta de má-fé por parte do adquirente. Entretanto, no início de 2009, o Superior Tribunal de Justiça
editou a Súmula 375 dispondo que “o reconhecimento da fraude à
execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova
de má-fé do terceiro adquirente”.
Entendemos que esta súmula representa verdadeiro retrocesso por
confundir os requisitos da fraude contra credores com os da fraude à
execução e, principalmente, por estabelecer uma proteção exagerada do
devedor e do terceiro adquirente em detrimento do credor.
Quanto aos efeitos da decisão que reconhece os institutos, temos
que a fraude contra credores beneficia todos os credores, enquanto na
fraude à execução a decisão judicial beneficia apenas o credor do processo em que foi praticado o ato fraudulento.
169
170
9
Invalidade dos
Negócios Jurídicos
9.1
INValIdade
Após tratar dos vícios do negócio jurídico, o Código Civil de 2002
dispõe sobre a nulidade e anulabilidade no Capítulo V (“Da invalidade
do negócio jurídico”), em seus arts. 166 a 184. Invalidade, em sentido
amplo, é expressão utilizada para designar o negócio que não produz as
consequências desejadas pelas partes. É gênero do qual decorrem duas
espécies: a nulidade (negócio jurídico nulo); e a anulabilidade (negócio
jurídico anulável).
No Código Civil de 1916 o legislador utilizava a expressão nulidade
absoluta para se referir ao negócio jurídico nulo e nulidade relativa
para se referir ao negócio jurídico anulável. No Código Civil de 2002
as expressões foram eliminadas, mas continuam sendo utilizadas pela
doutrina e jurisprudência.
A escolha do legislador por uma ou outra sanção (consequência a
ser aplicada) decorre da análise do interesse envolvido. Quando há ofensa a princípios básicos do ordenamento jurídico e, consequentemente,
lesão a interesse da coletividade (hipóteses mais graves), o legislador
impõe a nulidade. Quando o interesse é particular (hipóteses menos
graves), a sanção escolhida é a anulabilidade.
JuRIsPRudÊNCIa
(STJ, 3ª T., Resp 981.750, Min.
Nancy Andrighi, j. 13.4.2010, DJ
23.4.2010).
Nos termos do art. 184 do Código Civil, “respeitada a intenção das
partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na
parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal
implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal”.
A aplicabilidade dessa norma se dá tanto às hipóteses de nulidade
como às de anulabilidade, preservando, se possível for, parte do negócio
jurídico que não esteja contaminado pela invalidade. Trata-se de reconhecimento do princípio da conservação dos contratos.
9.1.1. Invalidade versus inexistência
Ao estudarmos os planos do negócio jurídico, vimos que a ausência dos elementos que compõem o plano de existência (partes, objeto,
forma e vontade) determina sua inexistência. Já a invalidade decorre da
não observância dos requisitos exigidos pelo plano de validade.
É certo que o Código Civil de 2002 não adotou a teoria dos atos
existentes e inexistentes, concebida no século XIX, para impedir o casamento entre pessoas do mesmo sexo (entendia-se que a diferença de
sexo seria um pressuposto tão elementar do casamento que, se não verificada, não existiria casamento). Entretanto, não são poucos os autores
que defendem a importância do plano de existência no estudo dos negócios jurídicos (Pontes de Miranda, Caio Mário da Silva Pereira, Renan
Lotufo, Sílvio Venosa, Francisco Amaral etc.).
O ato inexistente é aquele que não preenche os elementos essenciais à sua constituição. Ao contrário dos atos inválidos, o ato inexistente
172
Direito Civil
é considerado um simples fato que não tem força para produzir efeitos
jurídicos. Desta forma, em princípio, não é sequer necessária a propositura de ação judicial para reconhecer o ato como inexistente (o ato existe
no mundo dos fatos, mas não no do direito).
No entanto, a prática revela que muitas vezes será necessária a propositura de ação declaratória de inexistência. Isso faz com que desapareça o principal fator de distinção entre a inexistência e a nulidade: a
necessidade de declaração judicial.
9.2Nulidade
Nulidade em sentido amplo é a sanção legal que determina a privação de efeitos jurídicos do negócio praticado em desacordo ao ordenamento jurídico. Pode ser de dois tipos: a nulidade e a anulabilidade. A
nulidade em sentido estrito decorre da violação de preceitos de ordem
pública que consagram interesses sociais. A anulabilidade será estudada
mais à frente e decorre da violação de interesses privados.
A nulidade textual é aquela em que a própria norma jurídica dispõe expressamente que o ato será nulo (p. ex.: Código Civil, art. 166). A
nulidade virtual ou implícita é aquela deduzida de expressões utilizadas pelo legislador com o fim de proibir a prática de determinados atos
(p. ex.: “não pode”, “não se admite” etc.).
9.2.1 Hipóteses de nulidade
O art. 166 do Código Civil contém sete hipóteses em que o negócio
jurídico será considerado nulo. Será nulo o negócio quando:
I – celebrado por pessoa absolutamente incapaz: quando a pessoa é
absolutamente incapaz sua vontade é desprezada pelo ordenamento
jurídico, devendo ser representada (a vontade é substituída) nos atos
da vida civil sob pena de nulidade do ato. O rol dos absolutamente
incapazes está previsto no art. 3º do Código Civil.
II – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto: o negócio
será nulo se o objeto for: a) ilícito: aquele que viola o ordenamento
jurídico (lei, moral, ordem pública ou bons costumes); b) impossível: aquele que não pode ser cumprido em razão dos limites físicos
dos seres humanos (impossibilidade física) ou dos limites jurídicos
(impossibilidade jurídica); c) indeterminável: aquele que não permite individualização (p. ex.: falta do gênero ou da quantidade em uma
obrigação de dar).
III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito: o
motivo que leva uma pessoa a realizar um negócio jurídico em regra
não tem relevância para análise da validade deste. Contudo, quando
o motivo for a razão determinante do negócio, há relevância jurídica
na sua análise, determinando a nulidade do ato.
173
IV – não revestir a forma prescrita em lei: em regra o direito civil
não exige formalidade para a validade dos negócios jurídicos (Código Civil, art. 107). Contudo, quando esta é exigida e não for cumprida, o negócio será nulo.
V – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial
para a sua validade: embora alguns autores utilizem as expressões
“solenidade” e “formalidade” como sinônimas, entendemos que a
formalidade diz respeito à exigência de forma escrita, enquanto a solenidade é a exigência de instrumento público (p. ex.: Código Civil,
art. 108). A invalidade do instrumento não induz a do negócio jurídico sempre que este puder provar-se por outro meio.
VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa: deve ser considerado
nulo o negócio jurídico que tenha por objetivo violar norma jurídica
considerada de ordem pública (aquelas que não podem ser afastadas
pelo exercício da autonomia privada).
VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática,
sem cominar sanção: o negócio jurídico será nulo se a lei assim o
determinar (nulidade textual ou expressa) ou se proibir a prática do
ato sem estabelecer sanção específica (nulidade virtual ou implícita).
Além das hipóteses do art. 166, o art. 167 do Código Civil dispõe
que “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”. O legislador do novel
diploma considerou a simulação como simples causa de nulidade diante
das inúmeras formas que ela pode revestir, mas a doutrina majoritária
continua considerando-a como vício social. Um vício social que determina a nulidade do negócio jurídico.
9.2.2. Regras da nulidade
Quando o negócio jurídico é considerado nulo, deve ser proposta ação declaratória de nulidade. Qualquer interessado ou até mesmo
o Ministério Público têm legitimidade para requerer a declaração de
nulidade do negócio jurídico nas hipóteses previstas nos arts. 166 e 167
do Código Civil. Segundo Caio Mário da Silva Pereira, o legislador do
Código Civil de 2002 se afastou do antigo princípio francês do pas de
nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo), abandonando o critério do prejuízo para a declaração de nulidade do negócio.
COmeNTÁRIO
I Jornada de direito Civil
enunciado 13 do CeJ: “O aspecto objetivo da convenção requer
a existência do suporte fático no
negócio a converter-se”. (sobre
o art. 170 do CC)
Por envolver interesse público, as nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz (decretação de ofício), quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido
supri-las, ainda que a requerimento das partes (Código Civil, art. 168,
parágrafo único).
Portanto, o negócio jurídico nulo não pode ser suprido, sanado
ou convalidado, mas pode ser objeto de conversão, nos termos do art.
170 do Código Civil: “se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os
requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes
permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade”.
174
Direito Civil
Como exemplo de conversão, podemos citar a celebração de um
contrato de compra e venda de um imóvel com valor superior a trinta
salários mínimos mediante instrumento particular. Por força do disposto nos arts. 108 e 166, V, do Código Civil, o negócio jurídico será nulo,
mas qualquer uma das partes poderá requerer em juízo a conversão dele
em um compromisso de compra e venda que, independentemente do
valor, pode se valer do instrumento particular.
O art. 169 do Código Civil ainda determina que o negócio jurídico
nulo não convalesce pelo decurso do tempo. Não se tem dúvidas de que
referido dispositivo consagrou a imprescritibilidade do negócio jurídico nulo, mas na doutrina podemos encontrar as seguintes correntes
sobre o tema:
1ª Corrente: defende a imprescritibilidade da ação declaratória de
nulidade, nos termos da redação do art. 169 (Silvio Rodrigues). Esta é a
posição mais segura para quem for prestar concursos públicos.
2ª Corrente: defende a inexistência de direitos patrimoniais imprescritíveis. Desta forma, a ação declaratória de nulidade deve respeitar
o prazo geral de prescrição de dez anos, previsto no art. 205 do Código
Civil (Caio Mário da Silva Pereira).
3ª Corrente: defende que a ação declaratória de nulidade é imprescritível, mas pondera que as consequências do ato só podem ser desfeitas
dentro do prazo geral de prescrição de dez anos (Pablo Stolze e Rodolfo
Pamplona Filho).
9.3anulabilidade
A anulabilidade é a sanção imposta pela lei quando presente violação de interesses particulares. Ao contrário da nulidade, que apresenta
um estado fixo (o negócio já nasce nulo), a anulabilidade revela um estado mutável (o negócio nasce com a possibilidade de ser anulado). É por
essa razão que o negócio jurídico nulo não produz efeitos, e o negócio
jurídico anulável produz efeitos até ser anulado.
9.3.1.Hipóteses de anulabilidade
O art. 171 do Código Civil prevê que, além dos casos expressamente
declarados na lei, é anulável o negócio jurídico:
I – por incapacidade relativa do agente: os relativamente incapazes
devem ser assistidos nos atos da vida civil, sob pena de anulabilidade
do negócio. De acordo com o art. 4º do Código Civil, são relativamente incapazes: a) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; b)
os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência
mental, tenham o discernimento reduzido; c) os excepcionais, sem
desenvolvimento mental completo; e d) os pródigos.
II – por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores: o legislador consagrou o princípio
175
VOCABULÁRIO
pródigo: pessoa portadora de
distúrbio mental que a impede
de controlar seus gastos e manter seu patrimônio, o que acarreta incapacidade para determinados atos da vida civil.
ATENÇÃO
Nulidade: é o negócio jurídico considerado nulo.
Anulabilidade: é a sanção
imposta ao negócio quando presentes os vícios. Produz efeitos até
ser anulado.
da operabilidade ao uniformizar o tratamento conferido aos vícios
do negócio jurídico no Código Civil de 2002: todos determinam a
anulabilidade do negócio e ação deve ser proposta no prazo decadencial de quatro anos. A simulação não seguiu o mesmo padrão, pois o
legislador entendeu que ela não seria vício do negócio.
CuRIOsIdade
Defeitos dos negócios jurídicos:
a) erro: “(...) quando a pessoa
manifesta sua vontade negocial em
razão de determinada pessoa ou de
determinada coisa, mas fazendo com
outra pessoa ou coisa aparentes”.
b) dolo: “(...) a malícia ou o artifício inspirado na má-fé para induzir a
outra parte a realizar o negócio jurídico, em seu prejuízo”.
Além das hipóteses previstas no art. 171, o Código Civil apresenta
diversas outras hipóteses de anulabilidade: arts. 117, 119, 141, 496, 533,
II, 1.550, 1.558, 1.649 e 2.027.
9.3.2. Consequências da anulabilidade
c) coação: “(...) a ameaça à
pessoa ou à família da outra parte capaz de incutir medo de dano pessoal
ou material caso não realize o negócio jurídico pretendido pelo coator”.
Para que o negócio seja anulado, a parte interessada deverá propor
ação anulatória. A legitimidade ativa é exclusiva da parte prejudicada
pelo ato e os seus efeitos só aproveitam aos que a alegarem, salvo o caso
de solidariedade ou indivisibilidade do objeto.
d) lesão: “(...) o defeito do negócio jurídico caracterizado pela vantagem desproporcional de uma das
partes, que age de má-fé, aproveitando-se da situação de vulnerabilidade
da outra”.
A anulabilidade não pode ser pronunciada de ofício pelo juiz e
produz efeito antes de julgada por sentença. Essa sentença tem natureza desconstitutiva e eficácia ex nunc consoante doutrina majoritária.
Entretanto, há quem entenda que a eficácia seria ex tunc em razão do
disposto no art. 182 do Código Civil: “anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo
possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente”.
O negócio jurídico anulável pode ser confirmado pelas partes, retroagindo à data em que foi celebrado o ato. Essa confirmação do ato
não será possível se prejudicar direito de terceiro de boa-fé. O ato de
confirmação pode ser expresso ou tácito. Se a confirmação for expressa,
deverá conter a substância do negócio celebrado e a vontade expressa
de mantê-lo. Também deverá ser observada a solenidade se esta for da
substância do ato.
A confirmação tácita pode ser verificada em duas hipóteses: a primeira decorre do fim do prazo decadencial para a anulação do negócio;
a segunda resulta do cumprimento parcial do negócio pelo devedor,
quando ciente do vício que o inquinava (o art. 174 dispõe que é escusada – ou seja, dispensada – a confirmação expressa nesta situação).
A confirmação expressa, ou a execução voluntária de negócio anulável, nos termos dos arts. 172 a 174, importa a extinção de todas as
ações, ou exceções, de que contra ele dispusesse o devedor (art. 175).
Quando a anulabilidade do ato resultar da falta de autorização de terceiro, será validado se este a der posteriormente (art. 176).
A ação anulatória deverá ser proposta no prazo decadencial de quatro anos, contado: I – no caso de coação, do dia em que ela cessar; II – no
de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia
em que se realizou o negócio jurídico; e III – no de atos de incapazes, do
dia em que cessar a incapacidade.
e) estado de perigo: “(...) espécie
do gênero lesão, caracterizado pelo
fato de que a pessoa prejudicada
tem consciência da desvantagem ou
iniquidade provocadas pelo negócio
jurídico, mas o realiza ante a situação
peculiar da necessidade de salvar-se
ou de salvar alguém de sua família”.
f) fraude contra credores: “Credor e devedor, agindo de má-fé, utilizam-se da aparência de determinado
negócio jurídico, que esconde a real
intenção, ou seja, de impedir que o
terceiro, credor de um deles, possa
ter satisfeito ou garantido, patrimonialmente, o seu crédito”.
FONTE: LÔBO, Paulo. Direito Civil.
Parte geral. São Paulo: Saraiva, 2015.
p. 259-278.
VOCabulÁRIO
Efeito ex tunc: é aquele que retroage à época em que se formou a
relação jurídica.
Efeito ex nunc: começa a atuar a
partir da prolação da sentença,
preservando os efeitos negociais
já produzidos.
Se a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer
prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data
da conclusão do ato (Código Civil, art. 179). Esse prazo, por exemplo,
176
Direito Civil
deve ser observado na ação anulatória de venda de ascendente a descendente, sem autorização dos demais descendentes (art. 496).
O art. 180 do Código Civil consagra a regra pela qual a malícia
supre a incapacidade, ao dispor que “o menor, entre dezesseis e dezoito
anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se
dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato
de obrigar-se, declarou-se maior”.
Por fim, o art. 181 do Código Civil dispõe que “ninguém pode reclamar o que, por uma obrigação anulada, pagou a um incapaz, se não
provar que reverteu em proveito dele a importância paga”.
9.4simulação
A simulação é uma declaração enganosa da vontade com o objetivo
de provocar uma ilusão no público, seja por não existir negócio de fato,
seja por existir um negócio diferente daquele que se aparenta. Há, portanto, um desacordo intencional entre a vontade interna (intenção) e a
vontade externa (manifestação), com o objetivo de iludir terceiro.
Como requisito da simulação figura, assim, um acordo (simulatório) entre as partes com objetivo de declarar perante terceiros um negócio jurídico aparente (negócio simulado), podendo, igualmente, haver
um negócio verdadeiro entre as partes contratantes (negócio dissimulado). Percebe-se, dessa forma, que o propósito do negócio aparente é o de
enganar a coletividade, e não o outro contraente.
Consoante prescreve o art. 167, § 1º, do Código Civil, haverá simulação nos negócios jurídicos quando: I – aparentarem conferir ou
transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II – contiverem declaração, confissão, condição
ou cláusula não verdadeira; ou III – os instrumentos particulares forem
antedatados, ou pós-datados.
A simulação é quase sempre verificada em negócios jurídicos bilaterais (normalmente contratos), mas também pode estar presente em
negócios jurídicos unilaterais, se houver ajuste simulatório entre a pessoa que pratica o ato simulado e a outra que suportará as consequências
do ato.
9.4.1.Natureza jurídica
No Código Civil de 1916 a simulação era tratada juntamente com
os demais vícios do negócio jurídico, mas no Código Civil de 2002 foi
deslocada para o capítulo que trata da invalidade do negócio jurídico,
deixando dúvida se continua a ser espécie de vício ou se passou a simples
hipótese de nulidade absoluta.
Entendemos que o deslocamento da matéria não alterou a natureza do instituto, devendo ser tratada como espécie de vício social, pois,
177
CINEMATECA
A
Proposta
(The Proposal,
2009).
Neste
filme,
Margaret, uma
imigrante canadense, descobre que poderá enfrentar
acusações por deportação em
função de seu visto estar expirando. Disposta a manter sua função
como chefe-executiva em uma
Editora, Margaret convence seu
assistente a atuar como seu marido até que ela resolva seus problemas de visto, no entanto, com
o passar do tempo, a relação dos
dois vai se intensificando. Entende-se que a relação dos dois foi
um negócio simulado, pela relação afetiva não existir de fato.
VOCabulÁRIO
conluio: ação combinada entre duas ou mais pessoas com
o objetivo de lesar um terceiro,
obter vantagem ilícita ou furtar-se ao cumprimento de uma
obrigação imposta por Lei.
COmeNTÁRIO
III Jornada de direito Civil
enunciado 152 do CeJ: “Toda simulação, inclusive a inocente, é
invalidante”.
assim como a fraude contra credores, a simulação apresenta defeito na
manifestação da vontade e tem por objetivo prejudicar terceiros que
não participaram do negócio.
9.4.2. Requisitos da simulação
a) Conluio das partes envolvidas: na simulação os contratantes
agem de forma conjunta e combinada. Nesse aspecto, a simulação não deve ser confundida com a reserva mental, embora
nas duas figuras o sujeito declare conscientemente algo diverso
do que na verdade pretende, com o fim de enganar alguém. Na
reserva mental a pessoa envolvida no negócio não tem conhecimento do fato e das intenções da outra parte, sendo vítima das
pretensões do sujeito; na simulação a vítima é um terceiro que
não participa do ato simulado. Além disso, ao estudarmos os
requisitos de validade do negócio jurídico no capítulo anterior,
vimos que a reserva mental, em regra, não gera a invalidade do
negócio (Código Civil, art. 110).
b) Propósito de iludir e enganar: a simulação é realizada com o
objetivo de produzir um efeito diverso do ostensivamente indicado, que vicia o ato desde o seu nascimento. Sobre a aparência
de um ato lícito pretende-se prejudicar terceiros ou violar a lei.
Essa é a razão pela qual a simulação não deve ser confundida
com o dolo: na simulação as partes desejam prejudicar terceiros, no dolo uma parte quer prejudicar outra.
c) Divergência consciente entre a vontade declarada e a vontade
real: as partes não se enganam de forma involuntária na simulação. A diferença entre a vontade interna (intenção) e a vontade externa (manifestação) é sempre consciente e desejada.
9.4.3. Consequências da simulação
Diversamente dos demais vícios do negócio jurídico que determinam a anulabilidade (o negócio jurídico é anulável), a simulação gera a
nulidade (o negócio jurídico é nulo). Nesse sentido, o art. 167, caput, do
Código Civil determina que “é nulo o negócio jurídico simulado, mas
subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”.
Ao dispor que subsistirá o que se dissimulou, o dispositivo permite que a
pena de nulidade seja aplicada de forma distinta a depender do tipo de
simulação. Conforme veremos no próximo tópico, na simulação absoluta a nulidade atinge todo o negócio, enquanto na simulação relativa a
nulidade atingirá apenas a parte viciada do negócio.
Para que seja reconhecida a simulação, deverá ser proposta a ação
declaratória de nulidade a qualquer tempo, pois, de acordo com o art.
169 do Código Civil, o negócio jurídico nulo não convalesce pelo decurso do tempo (é imprescritível).
Por ser causa de nulidade, a ação pode ser proposta por qualquer
interessado, inclusive pelo Ministério Público, quando lhe couber in178
Direito Civil
tervir (interesses de menores ou de incapazes, ou quando entender necessária a intervenção para proteção de interesses metaindividuais ou
individuais relativos à dignidade da pessoa humana).
Em que pese a declaração de nulidade absoluta, são preservados os
efeitos gerados pelo negócio aparente em relação a terceiros de boa-fé
(aqueles que desconheciam a divergência entre a vontade real e a declaração dos contratantes). Com a intenção de proteger a confiança imprescindível entre os agentes, a ordem jurídica ressalva os direitos de terceiros de boa-fé que acreditaram e fundamentaram suas ações na aparência
do negócio jurídico a eles apresentado (Código Civil, art. 167, § 2º).
9.4.4.Classificação da simulação quanto ao seu
conteúdo
9.4.4.1. Simulação absoluta
É aquela em que a declaração de vontade viciada não visa a produção de qualquer efeito jurídico. As partes procuram transmitir a terceiros uma impressão enganosa de que teriam convencionado determinado negócio jurídico (aparente), mas na realidade não desejam realizar
qualquer negócio. Quando a simulação é absoluta, o negócio jurídico é
completamente nulo por não existir nada de verdadeiro na manifestação
de vontade.
Abaixo transcrevemos interessantes exemplos de simulação absoluta apresentados pela professora Maria Helena Diniz:
a) o proprietário de uma casa alugada que, com a intenção de facilitar a ação de despejo contra seu inquilino, finge vendê-la a terceiro que, residindo em imóvel alheio, terá maior possibilidade
de vencer a referida demanda (RT, 177:250, 439:92);
b) a emissão de títulos de crédito, que não representam qualquer
negócio, feita pelo marido, em favor de amigo, antes da separação judicial, para prejudicar a mulher na partilha de bens (RT,
255:451, 307:376, 441:276, 317:155 e 179:844);
c) a alegação de uma situação patrimonial inexistente, quando, p.
ex., o proprietário de uma pedreira que explodiu, causando graves prejuízos a terceiros, declara que é devedor de enormes quantias a um amigo seu, a quem dá garantia real, com a finalidade de,
mediante a preferência concedida, ilidir a execução que lhe seria
movida pelas vítimas do referido acidente (RF, 40:546);
d) o devedor que finge vender seus bens para evitar a penhora;
e) a pessoa que, ante o incessante pedido de parentes para que venha a prestar fiança ou aval, transfere, para pôr fim àquele “assédio”, seus bens para um amigo, fazendo com que não haja em seu
nome lastro patrimonial, tornando-lhe impossível a prestação de
qualquer garantia real ou fidejussória.
179
COMENTÁRIO
IV Jornada de Direito Civil
Enunciado 294 do CEJ: “Sendo a
simulação uma causa de nulidade do negócio jurídico, pode ser
alegada por uma das partes contra a outra”.
COmeNTÁRIO
III Jornada de direito Civil
enunciado 153 do CeJ: “Na simulação relativa, o negócio simulado (aparente) é nulo, mas o dissimulado será válido se não ofender a lei nem causar prejuízos a
terceiros”.
IV Jornada de direito Civil
enunciado 293 do CeJ: “Na simulação relativa, o aproveitamento
do negócio jurídico dissimulado não decorre tão somente do
afastamento do negócio jurídico
simulado, mas do necessário preenchimento de todos os requisitos
substanciais e formais de validade
daquele”.
9.4.4.2. Simulação relativa
A simulação relativa, também conhecida como dissimulação, é
aquela em que há um negócio jurídico falso (negócio simulado) encobrindo outro verdadeiro (negócio dissimulado). Visa-se com o negócio
simulado produzir efeitos diferentes daqueles que seriam naturais ao
negócio. O negócio aparente, na simulação relativa, é um meio de realização do ato dissimulado, desejado. Ao contrário da simulação absoluta,
na simulação relativa a nulidade atingirá apenas a parte falsa do negócio,
desde que a restante preencha os demais requisitos de validade (conteúdo e forma) do negócio jurídico.
A simulação relativa pode ser classificada como subjetiva ou objetiva. Simulação relativa subjetiva é aquela em que o elemento falso
do negócio é o sujeito, isto é, a pessoa com quem se pretende contratar.
Por não poder contratar diretamente com determinada pessoa, o agente
celebra o negócio jurídico com outra (interposta pessoa). Exemplo: a
pessoa que doa um imóvel à mãe de sua amante com o objetivo de burlar
a proibição legal de beneficiar diretamente sua amante (Código Civil,
art. 550).
Simulação relativa objetiva é aquela em que o elemento falso do
contrato diz respeito a algum elemento objetivo. Pode ser quanto ao objeto (p. ex.: afirma que está vendendo um bem e na verdade é outro), à
natureza jurídica (p. ex.: o contrato é de compra e venda, mas pretende
a doação do bem), à data (p. ex.: o contrato é assinado hoje com data
futura ou pretérita), ao preço (p. ex.: a escritura pública de compra e
venda apresenta um valor abaixo do verdadeiro para que as partes paguem menos impostos) etc.
180
10
Prescrição e
decadência
10.1
INTRODUÇÃO
Com o objetivo de garantir a estabilidade social e a segurança das
relações jurídicas, o legislador estabelece prazos para que as pessoas
possam buscar seus direitos em juízo, afinal, dormientibus non sucurrit jus (o direito não socorre quem dorme). Esses prazos, denominados
prescrição e decadência, permitem a consolidação das situações jurídicas, impedindo que o exercício de um direito fique pendente de forma
indefinida no tempo. No Código Civil de 2002, observa-se a preocupação do legislador em distinguir as hipóteses e os prazos de prescrição e
decadência, facilitando o trabalho do profissional do direito em consagração ao princípio da operabilidade.
Na vigência do Código Civil de 1916 era muito comum a confusão
entre os institutos: em parte devido ao tratamento legislativo da matéria
e, em parte, devido à falta de consenso doutrinário sobre a definição dos
institutos. Nesse sentido era comum a lição de que “a prescrição põe
fim a ação e a decadência ao direito”. Atualmente, compreende-se como
absolutamente equivocada a afirmação de que a prescrição põe fim à
ação, pois o direito de ação é o direito público, abstrato e indisponível
que toda pessoa tem de ter acesso ao Poder Judiciário.
Esse direito de peticionar é garantido pelo princípio constitucional
da inafastabilidade do provimento jurisdicional (Constituição Federal,
art. 5º) e não está sujeito a qualquer prazo. Não deve ser confundido,
evidentemente, com o conteúdo da ação, isto é, com o direito pleiteado
em juízo que pode estar sujeito a um prazo de prescrição ou de decadência, conforme veremos.
10.2
PRESCRIÇÃO
10.2.1. Conceito de prescrição
Na atualidade a prescrição pode ser definida como a perda da pretensão de reparação do direito violado em virtude da inércia de seu titular, no prazo previsto em lei. Nesse sentido, o art. 189 do Código Civil de
2002 determina que, violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a
qual se extingue pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e
206. E o que vem a ser a pretensão?
Pretensão é o poder de exigir de outrem, coercitivamente, o cumprimento de um dever jurídico previsto em lei ou em contrato. A pretensão é, portanto, o poder de exigir o cumprimento de um direito
subjetivo patrimonial em juízo. Como exemplo de pretensão, podemos
citar: o direito de cobrar uma dívida vencida e não paga; o direito de
cobrar indenização em virtude de danos causados; o direito de cobrar
aluguéis atrasados etc.
182
Direito Civil
De outra forma, podemos afirmar que o conceito de prescrição está
diretamente relacionado à estrutura da obrigação civil, composta por
débito e responsabilidade civil. O débito é o dever jurídico de cumprir
espontaneamente uma prestação de dar, fazer ou não fazer. A responsabilidade civil é a consequência patrimonial do descumprimento do
débito – permitindo que o credor ingresse em juízo pleiteando o cumprimento forçado da prestação ou a reparação pelo dano causado. Assim, a prescrição fulmina a responsabilidade civil, nunca o débito. É
por essa razão que o pagamento de uma dívida prescrita não autoriza
pedido de repetição do indébito (o débito existia, apenas não podia ser
exigido em juízo).
10.2.2. P
rescrição extintiva e prescrição
aquisitiva
Na doutrina é comum a referência a dois tipos de prescrição: a extintiva e a aquisitiva. A prescrição extintiva é tratada na Parte Geral do
Código Civil de 2002 e se refere à perda de um direito. Por outro lado, a
prescrição aquisitiva, também denominada usucapião, se refere à aquisição de um direito e vem regulada na Parte Especial do Código.
Para alguns autores, a expressão prescrição aquisitiva é inapropriada para se referir à usucapião. Contudo, a proximidade entre os institutos é tamanha que o próprio legislador estabeleceu que na usucapião se
estende ao possuidor o disposto quanto ao devedor, acerca das causas
que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição (art. 1.244). Neste
capítulo trataremos apenas da prescrição extintiva, deixando o estudo
da aquisitiva para o capítulo que trata do direito das coisas.
10.2.3. Prescrição da exceção
A palavra exceção possui diversos significados, mas, em geral, representa uma forma de defesa apresentada pelo réu em contraposição
ao direito do autor. Essa defesa não pode ser apresentada a qualquer
momento, pois, de acordo com o art. 190 do Código Civil, a exceção
prescreve no mesmo prazo em que a pretensão. Em que pese a omissão
do legislador, a correta interpretação do dispositivo exige a distinção entre duas modalidades de exceção: as dependentes e as independentes.
As exceções dependentes, também denominadas não autônomas,
são aquelas diretamente relacionadas a uma pretensão, isto é, um direito
que o réu poderia cobrar do autor mediante uma ação própria (além de
servirem como meio de defesa, constituem um meio de ataque). Como
exemplo, podemos citar a exceção de compensação em que o réu alega ser
credor do devedor. Se esse crédito já estava prescrito e não poderia ser
cobrado judicialmente por meio de uma pretensão, também não pode
ser alegado como exceção. Portanto, o art. 190 do Código Civil tem aplicabilidade quanto às exceções dependentes.
As exceções independentes, também denominadas autônomas,
são aquelas que não estão relacionadas a uma pretensão que o réu tem
contra o autor (não servem como meio de ataque, mas apenas de defe183
ATENÇÃO
Não confundir prescrição com:
Preclusão: é a perda da faculdade ou direito processual em
virtude da inércia do interessado
(p. ex.: a perda do prazo para recorrer de uma decisão judicial).
Perempção: é a perda do
direito ativo de processar uma
pessoa, em razão da extinção
do processo por três vezes sem
julgamento do mérito (art. 267 do
CPC), pelo abandono imputável
à parte que deveria promover-lhe
a tramitação.
sa). Desta forma, as exceções independentes representam fatos que apenas têm o poder de impedir o sucesso da pretensão do autor e podem
ser alegadas em qualquer momento (não prescrevem). Como exemplo
de exceções independentes, podemos citar a alegação pelo réu de que a
dívida já foi paga (exceção de pagamento); de que há coisa julgada; de
que a pretensão do autor está prescrita etc.
10.2.4. Alegação da prescrição
O art. 193 do Código Civil dispõe que a prescrição pode ser alegada
em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita. Admite-se,
portanto, a alegação da prescrição em qualquer fase do processo durante
a instância ordinária (primeira ou na segunda instância): na contestação, em embargos, apelação etc. Contudo, se não foi alegada na instância
ordinária, não pode ser alegada em instância extraordinária (Recurso
Especial ao STJ ou Recurso Extraordinário ao STF), em razão do requisito do prequestionamento (Súmulas 282 e 356/STF e 211/STJ). Também
não pode ser alegada: a) na fase de liquidação de sentença (durante a
execução só é admitida a alegação de prescrição intercorrente); b) em
ação rescisória, se não foi arguida na ação que se pretende rescindir a
sentença.
Ainda que seja comum a alegação da prescrição na contestação sob
a forma de preliminar, a sentença judicial que reconhece a prescrição
provoca a extinção do processo com julgamento do mérito (Código de
Processo Civil, art. 487, I). Isto ocorre, pois a prescrição é uma preliminar de mérito, isto é, um assunto que diz respeito ao mérito, mas que,
devido à sua importância, deve ser analisado antes dos demais pontos
controversos quanto ao mérito.
10.2.5. Renúncia da prescrição
A renúncia é o ato unilateral pelo qual o devedor de uma obrigação
abre mão do direito de alegar a prescrição da pretensão. É unilateral,
pois a validade e a eficácia do ato não estão sujeitas à anuência do credor.
A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita. A renúncia tácita
é aquela que se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a
prescrição (p. ex.: pagamento voluntário da dívida prescrita). Para que a
renúncia seja válida, deve preencher dois requisitos: 1º) o prazo já deve
estar consumado (isto é, não é admitida renúncia prévia da prescrição);
e 2º) não pode prejudicar terceiros. É por essa razão que não é admitida
a renúncia da prescrição por parte do devedor insolvente, impedindo
assim o prejuízo de outros credores.
10.2.6. Declaração de ofício da prescrição
Em sua redação original, o art. 194 do Código Civil de 2002 não
admitia a declaração de ofício da prescrição, salvo se favorecesse pessoa
absolutamente incapaz. Contudo, com o advento da Lei n. 11.280/2006,
a regra presente no art. 194 do Código Civil foi revogada e a prescrição
184
Direito Civil
passou a ser decretável de ofício pelo juiz (Código de Processo Civil de
1973, art. 219, § 5º, sem correspondente no diploma de 2015). A mudança legislativa criou um conflito interno na estrutura da prescrição,
chegando alguns autores a questionar se ainda seria possível a renúncia
da prescrição. Com o tempo, a doutrina se pacificou no sentido de que
o direito de renúncia prevalece sobre a possibilidade de declaração de
ofício (Enunciado 295/CJF: “A revogação do art. 194 do Código Civil
pela Lei n. 11.280/2006, que determina ao juiz o reconhecimento de
ofício da prescrição, não retira do devedor a possibilidade de renúncia
admitida no art. 191 do texto codificado”), devendo o juiz promover a
intimação prévia das partes para se manifestarem: o réu, para que possa,
eventualmente, renunciar à prescrição; o autor, para que possa alegar
e demonstrar alguma causa suspensiva ou interruptiva da prescrição.
Quanto à exigência da intimação das partes, podemos identificar as seguintes correntes doutrinárias:
1ª Corrente: defende que ambas as partes devem ser intimadas: o
réu, para, se desejar, exercer o direito de renúncia da prescrição; o autor,
para apresentar algum fato que afaste o reconhecimento da prescrição
(p. ex.: equívoco no cômputo do prazo, causa suspensiva, causa interruptiva etc.). Entendemos que essa é a melhor posição a ser adotada pelos juízes.
2ª Corrente: defende que só o autor deve ser intimado. A intimação
do réu não seria necessária, pois a renúncia da prescrição poderia ser
manifestada posteriormente mediante ação declaratória ou incidentalmente em outro processo.
3ª Corrente: defende que o juiz deve declarar de ofício a prescrição
tão logo a verifique no processo (p. ex.: ao despachar a inicial), independentemente da intimação das partes.
10.2.7. Previsão legal da prescrição
Os prazos de prescrição estão expressos no Código Civil de 2002
e não podem ser criados nem alterados pela vontade das partes. Desse modo, ao contrário da decadência, que pode ser legal ou contratual,
a prescrição só pode ter origem legal. O art. 206 do Código Civil traz
expressos os prazos especiais de prescrição, isto é, os prazos específicos
para determinadas situações concretas (prazos de 1, 2, 3, 4 e 5 anos). E
o art. 205 do Código Civil traz expresso o prazo geral de prescrição de
10 anos (também conhecido como prazo ordinário ou comum), devendo ser aplicado subsidiariamente quando a situação sub judice não se
encaixar nos prazos especiais do art. 206. O Código atual eliminou a dualidade de prazos gerais existente no Código Civil de 1916 (um para as
ações pessoais/obrigacionais e outro para as ações reais), estabelecendo
um prazo geral único.
10.2.7.1. Prazos especiais
O art. 206 do Código Civil contém cinco parágrafos, contemplando
185
COMENTÁRIO
São imprescritíveis as ações que
versem sobre:
l
l
l
l
l
ireitos da personalidade: vida,
d
integridade, honra, nome, imagem, intimidade;
estado da pessoa: como filiao
ção (p. ex.: investigação de paternidade), condição conjugal,
cidadania;
ções declaratórias de nulidade
a
absoluta (por envolverem questões de ordem pública);
ireito de família, no que cond
cerne a regime de bens, alimentos, vida conjugal, nulidades,
separação, divórcio, e reconhecimento e dissolução de união
estável;
ens públicos de qualquer natub
reza.
prazos especiais de prescrição que variam de um a cinco anos. Esse rol
é meramente exemplificativo, pois no ordenamento jurídico são encontrados diversos outros prazos especiais, como, por exemplo: Constituição Federal, art. 7º, XXIX; art. 27 da Lei n. 8.078/90; Código Tributário
Nacional, art. 168; art. 21 da Lei n. 4.717/65 (ação popular – 5 anos) etc.
Contudo, iremos nos ater apenas à análise dos prazos previstos no art.
206 do Código Civil:
a) Prescreve em um ano:
I – a pretensão dos hospedeiros ou fornecedores de víveres destinados a consumo no próprio estabelecimento, para o pagamento da
hospedagem ou dos alimentos: o Código Civil de 2002 eliminou a distinção existente no Código Civil de 1916 entre as modalidades de hospedagem, estabelecendo um prazo único de um ano. Contudo foi omisso
quanto ao termo inicial do prazo, apontando a doutrina a necessidade
de aplicação das regras previstas para a mora (Código Civil, art. 397) e
para o penhor legal (arts. 1.467, I, e 1.470).
II – a pretensão do segurado contra o segurador, ou a deste contra aquele, contado o prazo: a) para o segurado, no caso de seguro de
responsabilidade civil, da data em que é citado para responder à ação
de indenização proposta pelo terceiro prejudicado, ou da data que a
este indeniza, com a anuência do segurador; b) quanto aos demais seguros, da ciência do fato gerador da pretensão: o Código Civil de 2002
unificou o prazo para exercício da pretensão do segurado contra o segurador, eliminando a distinção existente no Código Civil de 1916 quanto
ao local do fato que deu origem à indenização (se em nosso país ou no
exterior). A única distinção existente é quanto ao termo inicial do prazo:
no seguro de responsabilidade civil o prazo deve ser contado a partir
da citação se o segurado foi demandado por terceiro prejudicado ou da
data em que segurado paga o terceiro prejudicado com a anuência do
segurador; nos demais seguros o prazo de um ano deve ser contado da
ciência do fato gerador da pretensão. Se o titular da pretensão não for o
segurado, mas, sim, o beneficiário, o prazo de um ano não será aplicável.
No caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório, o beneficiário
tem prazo de três anos para exercer sua pretensão contra o segurador
(art. 206, § 3º, IX).
III – a pretensão dos tabeliães, auxiliares da justiça, serventuários
judiciais, árbitros e peritos, pela percepção de emolumentos, custas e
honorários: compreende-se que este dispositivo deve ser aplicado também para a pretensão dos delegatários do foro extrajudicial (Constituição Federal, art. 236). Como o legislador não especificou o termo inicial,
compreendemos que deve ser considerado o momento da conclusão dos
serviços, em analogia ao art. 206, § 5º, II, do Código Civil.
IV – a pretensão contra os peritos, pela avaliação dos bens que entraram para a formação do capital de sociedade anônima, contado da
publicação da ata da assembleia que aprovar o laudo: este inciso traz
regra restritiva que só deve ser aplicada para regular a pretensão indenizatória dos prejudicados em face do perito responsável pela avaliação
186
Direito Civil
dos bens na formação do capital da sociedade anônima.
V – a pretensão dos credores não pagos contra os sócios ou acionistas e os liquidantes, contado o prazo da publicação da ata de encerramento da liquidação da sociedade: os credores (sócios ou não) da
sociedade dissolvida poderão cobrar os valores devidos no prazo de um
ano da publicação da ata de encerramento da liquidação da sociedade.
b) Prescreve em dois anos:
I – a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data
em que se vencerem: o direito a alimentos é imprescritível, podendo ser
exercido em qualquer momento que o ser humano passe por necessidade. Esse direito de pedir alimentos (ação de alimentos) não deve ser
confundido com o direito de cobrar alimentos vencidos e não pagos
(execução de alimentos), cuja pretensão prescreve no prazo de 2 anos,
contados retroativamente a partir da propositura da ação (prescrição
parcelar).
c) Prescreve em três anos:
I – a pretensão relativa a aluguéis de prédios urbanos ou rústicos:
o Código Civil de 2002 reduziu o prazo de cinco para três anos para que
o locador cobre o locatário do pagamento do aluguel. Consoante entendimento doutrinário, esse prazo não se aplica à cobrança dos encargos
da locação nem à cobrança dos débitos condominiais.
II – a pretensão para receber prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias: o dispositivo estabelece prazo de três anos para
cobrança das prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias
(previstas nos arts. 803 a 813).
III – a pretensão para haver juros, dividendos ou quaisquer prestações acessórias, pagáveis, em períodos não maiores de um ano, com
capitalização ou sem ela: o prazo de três anos para cobrança de juros,
dividendos ou quaisquer prestações acessórias referidas nesse inciso
deve ser contado a partir do respectivo vencimento.
IV – a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa:
de acordo com entendimento doutrinário, o prazo de três anos para o
ressarcimento de enriquecimento sem causa deve ser contado a partir
da verificação do locupletamento. Como os prazos específicos devem
ser interpretados restritivamente, o inciso não deve ser utilizado para a
pretensão relativa a pagamento indevido (Código Civil, arts. 876 a 883).
V – a pretensão de reparação civil: a pretensão de reparação de danos que, durante a vigência do Código Civil de 1916, se submetia a prazo
geral, passou a ser hipótese de prazo especial no Código Civil de 2002.
Esse prazo, de três anos, é aplicável a toda e qualquer forma de dano
(material, moral ou estético), mas deve ser destacado que em algumas
situações excepcionais os tribunais têm reconhecido a imprescritibilidade da pretensão (p. ex.: indenização por danos morais em razão de
tortura). Se o dano for causado em virtude de prestação de serviços ou
fornecimento de produtos em relação de consumo, deverá ser observado o prazo de cinco anos previsto no Código de Defesa do Consumidor
187
(art. 27). Se o dano for decorrente de acidente de trabalho ou doença profissional, o entendimento do TST é no sentido de que deve ser
aplicada a prescrição trabalhista, com prazo de dois anos (RR 23720096.2006.5.02.0315 – julgado em 2010).
VI – a pretensão de restituição dos lucros ou dividendos recebidos de má-fé, correndo o prazo da data em que foi deliberada a distribuição: o pagamento de lucros e dividendos nas sociedades por ações é
regulamentado pela Lei n. 6.404/76, que atribui responsabilidade solidária dos administradores e fiscais em caso de pagamento com inobservância do disposto no art. 201 da citada lei.
VII – a pretensão contra as pessoas em seguida indicadas por violação da lei ou do estatuto, contado o prazo: a) para os fundadores,
da publicação dos atos constitutivos da sociedade anônima; b) para
os administradores, ou fiscais, da apresentação, aos sócios, do balanço referente ao exercício em que a violação tenha sido praticada, ou
da reunião ou assembleia geral que dela deva tomar conhecimento;
c) para os liquidantes, da primeira assembleia semestral posterior à
violação: o dispositivo estabelece o prazo de três anos para as pretensões
exercidas em face dos fundadores, administradores, fiscais e liquidantes
fundamentadas na violação da lei ou do estatuto (desvio de valores, desmandos, excesso de mandato etc.). A matéria também é regulamentada
pela Lei n. 6.404/76.
VIII – a pretensão para haver o pagamento de título de crédito,
a contar do vencimento, ressalvadas as disposições de lei especial: o
prazo de três anos previsto no dispositivo é para a pretensão de execução do título de crédito. Caso esgotado o prazo, ainda resta ao credor
cobrar a dívida por meio da ação monitória (Código de Processo Civil,
art. 700), no prazo de cinco anos, consoante entendimento jurisprudencial do STJ fundado no art. 206, § 5º, I, do Código Civil. Por fim,
deve ser destacado que o prazo de 3 anos previsto nesse inc. VIII, do §
3º, tem aplicação subsidiária: só deve ser invocado se inexistente prazo
específico em lei extravagante. Não se aplica, por exemplo, à execução de
cheque, que tem prazo de seis meses contados da expiração do prazo de
apresentação (art. 59 da Lei n. 7.357/85 – Lei do Cheque).
IX – a pretensão do beneficiário contra o segurador, e a do terceiro prejudicado, no caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório: como exemplo de seguro de responsabilidade civil obrigatório
podemos citar o DPVAT, que já foi objeto de controvérsia no Superior
Tribunal de Justiça quanto à aplicabilidade do prazo de três anos (prazo
especial), previsto nesse inciso, ou de dez anos (prazo geral), previsto
no art. 205 do Código Civil. Atualmente a jurisprudência daquela Corte
está pacificada em três anos. O seguro DPVAT é regulamentado pelas
Leis n. 6.194/74 e 8.441/92, prevendo cobertura para eventos como lesão
corporal ou óbito em acidentes de trânsito.
d) Prescreve em quatro anos:
I – a pretensão relativa à tutela, a contar da data da aprovação
188
Direito Civil
das contas: o Código Civil impõe aos tutores o dever de apresentar um
balanço anual de sua gestão e o dever de prestar contas a cada dois anos e
ao fim da tutela (arts. 1.755 e 1.762), sendo estes submetidos à aprovação
judicial. A partir desta começa a correr o prazo de 4 anos para exercício
de pretensão relativa à tutela.
e) Prescreve em cinco anos:
I – a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular: a regra prevista neste dispositivo tem
caráter subsidiário e só deve ser aplicada se não existir outra específica
nos incisos anteriores ou em leis extravagantes. Além disso, o inciso em
comento exige que a dívida a ser cobrada seja líquida, isto é, certa quanto
à sua existência e determinada quanto ao seu objeto/valor.
II – a pretensão dos profissionais liberais em geral, procuradores judiciais, curadores e professores pelos seus honorários, contado
o prazo da conclusão dos serviços, da cessação dos respectivos contratos ou mandato: o prazo de cinco anos previsto no inciso também
tem aplicabilidade quanto às sociedades de profissionais liberais no
exercício da respectiva atividade (p. ex.: sociedade de médicos em um
consultório médico). Quanto aos advogados, o Estatuto da Advocacia
(Lei n. 8.906/94) já previa o mesmo prazo de cinco anos para cobrança
dos honorários.
III – a pretensão do vencedor para haver do vencido o que despendeu em juízo: este último inciso trata da cobrança dos ônus sucumbenciais, previstos no art. 20 do Código de Processo Civil. O prazo de
cinco anos deve ser contado a partir do trânsito em julgado da sentença
e deve ser observado tanto pelo vencedor como pelo advogado, que tem
direito autônomo de cobrar os honorários sucumbenciais (art. 23, Lei
n. 8.906/94).
10.2.8. Contagem do prazo de prescrição
Determinar a forma como deve ser contado o prazo de prescrição
não é tarefa fácil, a começar pela definição do seu termo inicial. De acordo com a concepção objetiva, o prazo de prescrição deve ser contado a
partir do momento em que foi violado o direito, surgindo para o titular
a pretensão (nesse sentido, é regra prevista no art. 189 do Código Civil).
Para a concepção subjetiva (teoria da actio nata), o prazo só deve ser
contado a partir do momento em que a pessoa tem ciência da violação
do direito ou das consequências. Essa posição foi adotada pelo Código
Civil no art. 206, § 1º, II, a e b.
Podemos afirmar, então, que como regra o Código Civil de 2002
adota a concepção objetiva e, em caráter excepcional, a concepção subjetiva. Contudo, na doutrina e na jurisprudência o tema é controverso,
havendo muitos julgados favoráveis à aplicabilidade da teoria da actio
nata em hipóteses não consagradas expressamente no Código Civil.
Definido o termo inicial, resta saber como deve ser contado o prazo de prescrição. Com esse propósito o art. 132, caput, do Código Civil
189
CURIOSIDADE
A título de exemplo, em ação
indenizatória por erro médico o
STJ já decidiu que o termo a quo
do prazo prescricional deve ser o
dia em que a vítima tomou conhecimento de que instrumentos
cirúrgicos foram deixados dentro
do seu corpo (REsp 1.020.801/SP,
Rel. Min. João Otávio de Noronha,
julgado em 26-4-2011).
determina que, salvo disposição legal ou convencional em contrário,
computam-se os prazos, excluído o dia do começo, e incluído o do vencimento.
Como os prazos de prescrição são contados em anos (1, 2, 3, 4, 5 e
10 anos), deve ser aplicada a regra presente no § 3º: “os prazos de meses
e anos expiram no dia de igual número do de início, ou no imediato,
se faltar exata correspondência”. Entendemos que esse dispositivo deve
ser aplicado sem o caput do art. 132. Assim, se um acidente de trânsito
ocorreu no dia 31 de dezembro de 2013, o último dia para ser proposta
a ação será o dia 31 de dezembro de 2016.
Se não existir o dia correspondente no ano seguinte, deverá ser considerado o dia imediato (isso ocorre em caso de ano bissexto). Se o dia
do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até
o dia útil seguinte (Código Civil, art. 132, § 1º). Entendemos que essa
regra também vale para sábados e domingos, em razão de os fóruns estarem fechados. Vale dizer que esse é o entendimento do Superior Tribunal
de Justiça.
10.2.8.1. Prescrição nuclear versus parcelar
Prescrição nuclear ou de fundo de direito é aquela que atinge a
exigibilidade do direito como um todo. Exemplificando: quando uma
pessoa agride outra, causando diversos danos, o direito de exigir a reparação de todos os danos prescreve no mesmo momento – três anos
após a agressão. Por sua vez, prescrição parcelar é aquela que não atinge
o direito como um todo, mas somente as suas parcelas. Exemplificando: a pretensão de cobrar prestações alimentícias vencidas e não pagas
prescreve em dois anos. Assim, ainda que exista débito superior a dois
anos, quando da propositura da demanda, o prazo de dois anos deve ser
contado regressivamente.
10.2.8.2. Continuação do prazo em face de
herdeiros
Conforme determina o art. 196 do Código Civil, a prescrição iniciada contra uma pessoa continua a correr contra os seus sucessores: sejam
eles sucessores universais (herdeiros) ou sucessores singulares (legatários). A regra se justifica pelo fato de que a sucessão opera a transmissão
de todos os direitos patrimoniais do falecido, incluindo as pretensões
que o falecido tinha em face de terceiros. Exemplificando: se João, credor
de uma obrigação líquida prevista em instrumento público, vier a falecer
um ano após o vencimento da dívida, seus herdeiros ainda terão quatro
anos para cobrá-la (prazo total: 5 anos – Código Civil, art. 206, § 5º).
Conquanto a Parte Geral do Código Civil não diferencie a contagem
do prazo de prescrição (extintiva) entre sucessores universais e singulares, a Parte Especial conferiu tratamento distinto ao regular a prescrição
aquisitiva (usucapião), dispondo que o sucessor universal (herdeiro)
continua de direito a posse do seu antecessor (sucessio possessionis) e
190
Direito Civil
que ao sucessor singular (legatário) é facultado unir sua posse à do antecessor (acessio possessionis), para os efeitos legais. Isso significa que,
quanto aos herdeiros, a posse do antecessor deve obrigatoriamente ser
computada junto à sua; e que, quanto aos legatários, estes podem escolher se desejam computar a posse do antecessor. A doutrina não é pacífica sobre o tema.
10.2.9. Prescrição intercorrente
Denomina-se prescrição intercorrente aquela computada durante o curso da ação, diante da inércia do autor em promover o andamento do processo. Ao propor uma ação, o autor tem o dever de realizar
os atos necessários ao seu curso para que esta não se arraste de forma
indefinida no tempo. Deve, portanto, peticionar, produzir provas, requerer diligências, expedição de ofícios etc. Se desta forma não procede,
a sua inércia não deve ser acobertada pelo ordenamento jurídico (dormientibus non sucurrit ius – o direito não socorre quem dorme), não
se podendo permitir que o processo fique abandonado por um prazo
superior àquele exigido para a propositura da ação (leia-se: para o exercício da pretensão em juízo). Embora o tema ainda desperte muitas
dúvidas na doutrina, o próprio legislador se preocupou em regulamentar a prescrição intercorrente no art. 202, parágrafo único, do Código
Civil ao dispor que “a prescrição interrompida recomeça a correr da
data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a
interromper”.
10.2.10. Impedimento e suspensão da prescrição
Em algumas situações específicas o ordenamento jurídico determina que o prazo de prescrição não corre em razão da situação ou condição em que se encontra o titular do direito violado (situação pessoal,
profissional, familiar etc.). Os arts. 197, 198 e 199 do Código Civil de
2002 retratam causas que podem ser tanto de impedimento como de
suspensão. Se a causa já existia quando do surgimento da pretensão, a hipótese é de IMPEDIMENTO e o prazo de prescrição começará a correr
quando esta desaparecer. Se a causa só veio a existir depois do surgimento da pretensão, a hipótese é de SUSPENSÃO e o prazo voltará a correr
quando esta desaparecer.
Exemplificando: o art. 197, I, do Código Civil, determina que a
prescrição não corre entre os cônjuges na constância da sociedade conjugal. Assim, se um cônjuge causar dano ao outro durante o casamento,
o prazo de prescrição ficará impedido de correr; dissolvida a sociedade
conjugal, o prazo começará a correr do zero. Por outro lado, se o dano foi
causado antes do casamento, celebrado este, o prazo será imediatamente
suspenso; dissolvida a sociedade conjugal, o prazo voltará a correr pelo
período restante.
191
10.2.10.1. Hipóteses de impedimento e
suspensão
JURISPRUDÊNCIA
Súmula 229- STJ:
“O pedido do pagamento
de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até
que o segurado tenha ciência da
decisão”.
O Código Civil de 2002 agrupou as hipóteses de impedimento e
suspensão em três artigos, cada qual com três incisos. Por representarem
exceções à contagem do prazo de prescrição, devem ser interpretadas
restritivamente, compreendendo a doutrina majoritária que o rol dos
arts. 197, 198 e 199 do Código Civil é taxativo (recomendamos que essa
posição seja gabaritada em fase objetiva). Contudo, concordamos com
forte corrente doutrinária que sustenta que o rol pode ser ampliado pela
regra contra non valentem agere non currit praescriptios: a prescrição não
corre contra quem estiver impossibilitado de agir. A taxatividade do rol
impede a analogia, não a interpretação extensiva. Como exemplo dessas
situações, podemos citar: a paralisação da justiça por caso fortuito ou
força maior, a ocultação dolosa do débito pelo devedor, pedido de pagamento de indenização à seguradora (Súmula 229/STJ) etc.
Vejamos, agora, quais são as hipóteses de impedimento e suspensão
da prescrição que estão previstas no Código Civil de 2002:
a) Entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal (art.
197, I – impedimento e suspensão): a hipótese se justifica pela
necessidade de se proteger a convivência harmônica entre os
cônjuges durante o casamento, evitando que sejam propostas
ações entre eles. Deve ser destacado que o Código Civil de 2002
substitui a expressão matrimônio, presente no Código Civil de
1916, por sociedade conjugal, uma vez que somente durante a
existência desta é que persiste a comunhão plena de vida (afeto e patrimônio). Dissolvida a sociedade conjugal pela separação, divórcio, viuvez etc., o prazo começará ou voltará a correr.
Quanto à separação de fato, entendemos que esta deve ser equiparada à separação judicial em seus efeitos, permitindo que a
prescrição corra. Em caso de anulação ou decretação de nulidade do casamento, o cônjuge de boa-fé deve ser considerado
protegido até o fim da sociedade conjugal; quanto ao de má-fé, não haverá suspensão nem interrupção do prazo. A questão
mais polêmica diz respeito à aplicação analógica do dispositivo
à união estável:
1ª Corrente: defende que o dispositivo deve ser aplicado por
analogia. Compreendemos que essa é a posição mais coerente em razão da obrigação constitucional que o Estado tem
de proteger a família, formada seja pelo casamento, seja pela
união estável (Constituição Federal, art. 226). Esse também
é o posicionamento do Conselho da Justiça Federal, nos
termos do Enunciado 296: “Não corre a prescrição entre os
companheiros, na constância da união estável”.
2ª Corrente: defende que não há impedimento ou suspensão
do prazo de prescrição na constância da união estável em
razão da omissão legislativa. Em fase objetiva de concursos
públicos que sigam a literalidade da lei, recomendamos que
192
Direito Civil
essa posição seja gabaritada. Já em fase subjetiva deve ser gabaritada a primeira corrente.
b)Entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar
(art. 197, II – impedimento e suspensão): assim como o dispositivo anterior, o objetivo da norma é a proteção da unidade familiar formada pelos pais e filhos, evitando o litígio entre
eles durante o exercício do poder familiar (antigo pátrio poder). Cessado o poder familiar, por meio da maioridade ou da
emancipação, o prazo voltará ou começará a correr. Há quem
entenda que o dispositivo retrata unicamente causa de impedimento, mas compreendemos que também pode servir como
causa de suspensão, por exemplo, se o poder familiar foi estabelecido posteriormente à violação do direito, mediante adoção.
Cessado o poder familiar (por meio da maioridade, morte ou
destituição), o prazo de prescrição começará ou voltará a correr. Se em vez da destituição (que é definitiva) ocorrer simples
suspensão do poder familiar (que é temporária), o prazo de
prescrição não correrá.
c)Entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores
durante a tutela ou curatela (art. 197, III – impedimento/suspensão): também sob o fundamento de preservação da convivência harmônica entre determinadas pessoas, o ordenamento
jurídico impede o transcurso da prescrição entre tutores e tutelados e entre curadores e curatelados. Se houver a remoção do
tutor ou curador, mas permanecer a tutela ou curatela, o prazo
de prescrição poderá correr entre o incapaz e o tutor/curador
removido. No entanto, em se tratando de absolutamente incapaz, deve ser observada a regra do art. 198, I do Código Civil.
d)Contra os incapazes de que trata o art. 3º (art. 198, I – impedimento/suspensão): de acordo com o dispositivo, não corre prazo de prescrição contra os absolutamente incapazes de exercer
pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de 16 anos;
II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem
o necessário discernimento para a prática desses atos; e III – os
que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua
vontade. O prazo só não corre contra o absolutamente incapaz,
isto é, quando este é o titular do direito violado (o incapaz é o
autor da ação). Se, por outro lado, o absolutamente incapaz for
o violador do direito de outrem, o prazo de prescrição fluirá
normalmente a favor dele, que será beneficiado pela inércia do
titular do direito (o incapaz é o réu da ação). Devemos destacar
que a hipótese do art. 198, I, do Código Civil, refere-se apenas
aos absolutamente incapazes. Em se tratando de incapacidade
relativa (art. 4º), o prazo flui normalmente consoante determinação do art. 195.
e)Contra os ausentes do País em serviço público da União, dos
Estados ou dos Municípios (art. 198, II – impedimento/sus193
pensão): como a norma não especifica o tipo de serviço público, a doutrina tem admitido sua aplicabilidade para proteger
toda pessoa que preste, fora do País, serviços de utilidade para
a União, Estados ou Municípios: agentes diplomáticos; agentes
consulares; adidos militares; delegados em missões oficiais; comissionados para estudos ou pesquisas no exterior etc. Não se
exige que sejam servidores públicos em sentido estrito, basta
que exerçam atividade assim qualificada, a favor da administração direta ou indireta.
Outros ausentes: embora não exista dispositivo legal regulando o impedimento e a suspensão da prescrição em favor dos
ausentes (pessoas que desaparecem de seu domicílio sem deixar
notícias – Código Civil, arts. 22 a 39), há enunciado do Conselho da Justiça Federal no sentido de que “desde o termo inicial
do desaparecimento, declarado em sentença, não corre a prescrição contra o ausente” (Enunciado 156/CJF).
f) Contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em
tempo de guerra (art. 198, III – impedimento/suspensão): a
norma deve ser interpretada de forma a proteger as pessoas que
compõem as Forças Armadas durante períodos de guerra, estejam cumprindo função dentro ou fora do País. Protege, também, os membros das Forças Armadas que integram as forças
de paz da ONU.
Observação: todos os incisos dos arts. 197 e 198 do Código Civil
(acima analisados) retratam hipóteses subjetivas de suspensão
E impedimento da prescrição. Diversamente, todos os incisos
do art. 199 do Código Civil (abaixo analisados) representam
hipóteses objetivas de suspensão OU impedimento da prescrição.
g) Pendendo condição suspensiva (art. 199, I – causa impeditiva): a regra é explicada pela natureza da condição suspensiva:
suspende o exercício e a aquisição do direito, gerando mera expectativa de direito. Como o direito condicional não é exercitável, não há falar em prazo de prescrição para o exercício do
direito em juízo.
Súmula 229 do STJ: “pedido de pagamento de indenização à
seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado
tenha ciência da decisão”.
h) Não estando vencido o prazo (art. 199, II – causa impeditiva):
as mesmas razões invocadas para justificar o dispositivo anterior se aplicam a essa hipótese, pois o direito submetido a um
prazo, embora integre o patrimônio do seu titular (direito adquirido), não é exercitável antes do implemento do termo certo
(evento futuro e certo).
i) Pendendo ação de evicção (art. 199, III – causa impeditiva):
denomina-se ação de evicção aquela que pode resultar na con194
Direito Civil
denação de uma pessoa à perda de um bem com base em motivo jurídico anterior à sua aquisição (p. ex.: a ação pauliana).
Procedente a ação, o evictor toma o bem do evicto, restando a
este ingressar com ação de regresso contra o alienante. O prazo para ser proposta essa ação só começa a correr a partir do
trânsito em julgado da ação de evicção, pois é a partir desse
momento que surge a pretensão ressarcitória do evicto em face
do alienante.
j)Quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no
juízo criminal, antes da respectiva sentença definitiva (art.
200 – causa suspensiva): embora a responsabilidade civil tenha
certa independência da responsabilidade criminal (vide art. 935
do Código Civil), o legislador determinou que a prescrição para
ser exercida pretensão civil não deve correr enquanto não existir sentença penal com trânsito em julgado. Entendemos que
a hipótese não é de impedimento, mas, sim, de suspensão da
prescrição a partir do início da ação penal (recebimento da denúncia ou da queixa) até o advento da sentença definitiva, seja
condenatória ou absolutória.
10.2.10.2. A relação entre a suspensão da
prescrição e as obrigações solidárias
De acordo com o art. 201 do Código Civil, suspensa a prescrição a
favor de um dos credores solidários, só aproveitam os outros se a obrigação for indivisível. Isto ocorre, pois a suspensão e o impedimento estão fundamentados em uma situação pessoal (p. ex.: o absolutamente
incapaz, o casado, o tutelado etc.), não havendo motivo para se estender
a exceção aos outros credores. A única exceção é a hipótese em que a
obrigação solidária tem por conteúdo uma prestação indivisível: é impossível separar a parte não prescrita da prescrita.
10.2.11. Interrupção da prescrição
Diversamente da suspensão da prescrição, em que o prazo volta
a ser contado de onde parou, na interrupção o prazo recomeça a ser
contado por inteiro, independentemente do tempo já transcorrido. A
prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper. Na vigência
do Código Civil de 1916, não havia limite para o número de interrupções. Atualmente, com a introdução do Código Civil de 2002, a interrupção da prescrição somente poderá ocorrer uma vez (Código Civil,
art. 202, caput). De acordo com a doutrina, a única exceção a essa regra
diz respeito à hipótese em que a prescrição é interrompida por uma
das causas previstas nos incisos II a VI do art. 202, e posteriormente é
proposta a ação e ordenada a citação (inciso I), devendo ser admitida
essa segunda interrupção.
195
10.2.11.1.Hipóteses de interrupção da prescrição
O Código Civil de 2002 prevê no art. 2002 seis hipóteses em que a
prescrição é interrompida. Além dessas, podem ser encontradas diversas outras na legislação extravagante: art. 66, V, da Lei n. 6.435/77; art.
174, parágrafo único, do Código Tributário Nacional; art. 17, parágrafo
único, do Decreto-lei n. 204/67 etc. Procurando nos ater aos objetivos
desta obra, analisaremos detidamente apenas as hipóteses previstas no
Código Civil:
a) Por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a
citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da
lei processual (art. 202, I): essa é a hipótese mais polêmica de
interrupção da prescrição diante do conflito existente entre o
dispositivo e o art. 219 do Código de Processo Civil, que determina que a interrupção da prescrição ocorre com a citação
válida, retroagindo à data da propositura da ação. Para tanto,
a citação deve ser promovida no prazo de 10 dias subsequentes
ao despacho que a ordenar, prorrogáveis até o máximo de 90
dias. Como o autor não é prejudicado pela demora imputável
exclusivamente ao serviço judiciário, se a citação não for efetuada nos prazos mencionados, haver-se-á por interrompida a
prescrição (Código de Processo Civil, art. 240 e Súmula 106/
STJ). Deve ser destacado que, ainda que a norma processual
(Código de Processo Civil) estabeleça a interrupção com a citação válida e a norma material (Código Civil) com o despacho
do juiz que ordenar a citação, não há um conflito relevante
entre as normas pelo fato de que a eficácia da segunda hipótese
foi condicionada pelo legislador civilista à realização da citação
válida (“...se o interessado a promover no prazo e na forma da
lei processual”), sempre retroagindo à data da propositura da
ação. Por fim, devemos destacar que a interrupção da prescrição ocorrerá ainda que o juiz seja absoluta ou relativamente
incompetente.
b) Por protesto, nas condições do inciso antecedente (art. 202,
II): o protesto a que se refere esse dispositivo é o protesto judicial, regulado no Código de Processo Civil no art. 719 e seguintes, utilizado, em regra, para garantir a conservação de um
direito. Na ação de protesto, o despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação irá interromper a prescrição, se o
interessado a promover no prazo e na forma da lei processual.
c) Por protesto cambial (art. 202, III): o protesto cambiário ou
extrajudicial é aquele realizado no Cartório de Protesto de Títulos e Documentos. Desde o advento da Lei n. 9.492/97, que
regulamentou o protesto cambiário, deve ser considerada superada a Súmula 153 do Supremo Tribunal Federal, pela qual o
“simples protesto cambiário não interrompe a prescrição”.
d) Pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário
ou em concurso de credores (art. 202, IV): o credor de uma
196
Direito Civil
pessoa que faleceu deve peticionar no juízo do inventário requerendo o reconhecimento do seu título de crédito. Da mesma
forma, em caso de falência ou de insolvência civil o credor deve
peticionar requerendo o reconhecimento do seu direito junto ao
concurso de credores. Em todas essas situações, a apresentação
do título de crédito configura o exercício da pretensão (comportamento ativo), justificando a interrupção da prescrição.
e)Por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor
(art. 202, V): com redação genérica, o dispositivo abrange
todo comportamento judicial ativo por parte do credor que
constitua o devedor em mora (em atraso) no cumprimento da
obrigação. Como exemplos desses comportamentos, podemos
citar as notificações e interpelações judiciais. A propositura de
ação pauliana também já foi considerada ato suficiente para
interrupção da prescrição. Também com base na redação do
inciso, temos que o legislador não quis conferir o mesmo efeito interruptivo a atos extrajudiciais praticados pelo credor
como cartas de cobrança enviadas pelo correio ou notificações
extrajudiciais.
f)Por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor (art. 202, VI):
enquanto os incisos anteriores interrompem a prescrição a partir do comportamento ativo do credor, o último inciso do art.
202 do Código Civil exige o comportamento ativo por parte do
devedor. Qualquer ato realizado por este, judicial ou extrajudicial, verbal ou por escrito, que importe em reconhecimento
do direito (da dívida) será hábil para interromper a prescrição.
Exemplos: requerimento de parcelamento da dívida, requerimento de moratória (prorrogação do prazo para pagar), reconhecimento da dívida, pagamento parcial ou total da dívida ou
da cláusula penal etc.
Quem pode interromper? O art. 203 do Código Civil de 2002
determina que a prescrição pode ser interrompida por qualquer interessado. Assim, além do próprio titular do direito,
devem ser considerados interessados: os assistentes dos relativamente incapazes, os representantes das pessoas jurídicas, os
representantes convencionais (mandatários), os herdeiros do
credor, os credores do credor, fiadores, avalistas etc.
10.2.11.2. Efeitos pessoais da interrupção
Os efeitos da interrupção da prescrição são, em regra, pessoais
(personalíssimos), logo, a interrupção por um credor não aproveita
aos outros cocredores, assim como a operada contra o devedor, ou seu
herdeiro, não prejudica os demais codevedores (regra latina: persona ad
personam non fit interruptio). Excepcionalmente, o art. 204 do Código
Civil apresenta 3 exceções em seus parágrafos:
197
Credores ou devedores solidários (art. 204, § 1º): a interrupção da
prescrição por um dos credores solidários aproveita aos outros, assim
como a interrupção efetuada contra o devedor solidário prejudica
os demais e seus herdeiros. Para aplicação da regra, não importa se
a obrigação é divisível ou não. Deve ser lembrado também que a solidariedade é uma situação excepcional e nunca deve ser presumida
(resulta da lei ou da vontade das partes – Código Civil, art. 265).
Herdeiros do devedor solidário (art. 204, § 2º): a interrupção operada
contra um dos herdeiros do devedor solidário não prejudica os outros
herdeiros ou devedores, senão quando se trate de obrigações e direitos
indisponíveis. O legislador nada dispôs quanto à interrupção da prescrição promovida por um dos herdeiros do credor solidário, devendo
ser compreendido que esta não aproveita aos demais credores.
Fiador (art. 204, § 3º): em decorrência do princípio da gravitação
jurídica, também conhecido como princípio da acessoriedade, a interrupção produzida contra o principal devedor (o afiançado) prejudica o fiador (o acessório segue a sorte do principal). O contrário
não ocorre: se a interrupção for realizada contra o fiador, o devedor
não será prejudicado. Embora inexista previsão expressa quanto ao
contrato de aval, deverá ser aplicada a regra prevista no § 1º do art.
204, diante da solidariedade obrigacional estabelecida por este (art.
43, Decreto n. 2.044/1908).
10.3
DECADÊNCIA
Vimos que a distinção entre prescrição e decadência pela afirmação de que a primeira põe fim à ação e a segunda ao direito deve ser
tida por superada na atualidade, diante dos equívocos já apresentados.
O elemento que diferencia os institutos é na verdade a natureza do direito a que estão vinculados: a prescrição está relacionada aos direitos
subjetivos patrimoniais, enquanto a decadência está atrelada a direitos
potestativos. Vejamos:
10.3.1. Conceito de decadência
Decadência é a perda efetiva de um direito potestativo, pela falta
de seu exercício, no período previsto na lei (decadência legal), ou pela
vontade das partes (decadência convencional). Portanto, a compreensão
do sentido de decadência exige do estudioso do direito o conhecimento
da estrutura dos direitos potestativos, que podem ser definidos como
aqueles que conferem ao seu titular o poder de provocar mudanças na
esfera jurídica de outrem de forma unilateral, sem que exista um dever
jurídico correspondente, mas tão somente um estado de sujeição.
Diferem essencialmente dos direitos subjetivos, pois, nestes, a existência do direito para uma pessoa gera para outra um dever jurídico,
enquanto os direitos potestativos não geram deveres jurídicos para a
outra parte. São considerados direitos sem pretensão, logo, não podem
198
Direito Civil
ser inadimplidos nem executados. O sujeito passivo do direito potestativo se encontra apenas em uma situação de sujeição à vontade (poder) do
sujeito ativo, o titular do direito. Para facilitar a compreensão do tema,
podemos citar como exemplo de direito potestativo o direito de anular
um contrato por vício da vontade: a parte que foi prejudicada tem o
poder de exigir em juízo a anulação do negócio jurídico.
Os direitos potestativos podem ser constitutivos (p. ex.: o direito do dono de prédio encravado exigir que o dono do prédio vizinho
lhe conceda passagem) ou desconstitutivos (p. ex.: o direito de desfazer
a compra de um automóvel em razão de vício redibitório). Contudo,
nem todos os direitos potestativos estão sujeitos a um prazo de decadência para serem exercidos (p. ex.: o direito de pedir divórcio, direito
de requerer a desconsideração da personalidade jurídica), prevalecendo
o princípio da inesgotabilidade ou da perpetuidade se o legislador não
fixar um prazo determinado. Como exceção a essa regra, o art. 179 do
Código Civil prevê prazo geral de 2 anos para as ações anulatórias quando omissa a lei.
10.3.2. Alegação da decadência
Assim como a prescrição, a decadência pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita. Claro que essa alegação deve ser feita durante a instância ordinária (primeira ou segunda
instância). Se a decadência não foi alegada na instância ordinária, não
poderá ser alegada nas instâncias extraordinárias (STJ ou STF), em razão do requisito do prequestionamento.
Embora seja comum a alegação da decadência sob a forma de preliminar em uma contestação, a sentença judicial que a reconhece põe fim
ao processo com julgamento do mérito (Código de Processo Civil, art.
487, I). Isto ocorre, pois, assim como a prescrição, a decadência é uma
preliminar de mérito, isto é, um assunto que diz respeito ao mérito, mas
que, devido à sua importância, deve ser analisado antes dos demais pontos controversos quanto ao mérito.
10.3.3. Espécies de decadência
Diferentemente da prescrição, que só pode ter origem legal, a decadência pode ser prevista tanto pela lei (decadência legal) como em contrato (decadência convencional). A distinção entre as modalidades de
decadência tem especial importância na determinação das regras quanto
a possibilidade de renúncia e declaração de ofício.
10.3.3.1. Decadência legal
Decadência legal (ex vi legis) é aquela prevista em lei, havendo entendimento do STJ no sentido de que a decadência não pode ser criada
por decreto, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade, insculpido
no art. 5º, II, da CF/88 (REsp 526.015). Quando o juiz está diante de
199
decadência legal, deve declará-la de ofício, consoante determina o art.
210 do Código Civil. De forma coerente, o legislador também dispôs
que a decadência legal não pode ser renunciada (nem antes nem depois de consumada). A explicação para tanto é simples: a decadência
legal envolve questões consideradas de ordem pública (interesse geral
da coletividade), daí não se admitir que, diante de um interesse público,
a parte possa abrir mão do prazo imposto pelo legislador. Pela mesma
razão não se admite que os prazos de decadência legal sejam alterados
(aumentados ou diminuídos) pelas partes.
10.3.3.2. Decadência convencional
A decadência é considerada convencional (ex vi voluntatis) quando resulta da manifestação de vontade das partes em uma determinada
relação jurídica. Pode ser estabelecida de forma unilateral ou bilateral.
Ao contrário do que ocorre com a decadência legal, a convencional diz
respeito a matéria de ordem privada (direitos disponíveis). Essa é a razão pela qual a decadência pode ser renunciada pelas partes e não pode
ser declarada de ofício pelo juiz (Código Civil, art. 210) nem provocada
pelo Ministério Público. Como o Código Civil não estabeleceu as regras
para a renúncia da decadência convencional, a doutrina aponta como
solução a analogia aos requisitos para renúncia da prescrição (art. 191):
o prazo deve estar consumado e não deve haver prejuízo de terceiro. O
exemplo mais comum de decadência convencional é o prazo de garantia
estabelecido entre as partes em um contrato de compra e venda. Toda
garantia contratual é um prazo de decadência convencional.
10.3.4. Contagem do prazo de decadência
Entendemos que a contagem do prazo de decadência deve ser feita
da mesma forma que a contagem do prazo de prescrição: excluindo-se
o dia do começo e incluindo o do vencimento (Código Civil, art. 132).
Contudo devemos ressaltar que antigamente era comum a distinção
quanto ao termo final da prescrição e da decadência, no sentido de que,
quanto à primeira, se o prazo caísse em dia que não fosse útil, a prática
do ato seria possível no dia útil subsequente e que, quanto à decadência,
o prazo não poderia ser prorrogado, devendo o ato ser praticado antecipadamente. Essa distinção tinha por base a analogia às regras do direito
penal quanto à prescrição e à decadência. Com a evolução do estudo da
matéria no direito civil, a distinção foi superada. Assim, à semelhança do
que ocorre com a prescrição, se o prazo decadencial para o exercício do
direito se esgotar em dia que não seja útil, o ato poderá ser praticado até
o dia útil subsequente.
10.3.5. Impedimento, suspensão e interrupção
do prazo de decadência
Diferentemente do que ocorre com a prescrição, a decadência normalmente corre para todos e contra todos. Enquanto a prescrição está
200
Direito Civil
relacionada à violação de um direito, a decadência está associada ao
exercício de um direito que depende exclusivamente da iniciativa do interessado. Essa é a razão pela qual, em regra, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição.
Essa regra é excepcionada em algumas situações pela norma jurídica.
Como exemplo de exceção, podemos citar: a) art. 208 do Código Civil,
que dispõe que não corre prazo de decadência contra o absolutamente
incapaz (hipótese de impedimento e suspensão); b) o art. 501, parágrafo único, do Código Civil (hipótese de impedimento); c) art. 26, § 2º,
do Código de Defesa do Consumidor, que determina que a reclamação
comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de
produtos e serviços obsta a decadência até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca (hipótese de
impedimento e suspensão).
10.3.6. Prazos de decadência
Procurando facilitar a compreensão e a distinção dos institutos da
prescrição e da decadência, o legislador adotou uma solução geográfica
dispondo sobre os prazos de prescrição apenas nos arts. 205 e 206 do
Código Civil. Todos os demais prazos encontrados em outros artigos do
Código Civil foram considerados pelo legislador como prazos decadenciais. Os prazos de decadência são especiais, com exceção do art. 179, que
traz um prazo geral de 4 anos, a contar da data da conclusão do ato, para
as hipóteses em que o legislador determinar a anulabilidade de um ato
sem estabelecer prazo específico.
10.3.6.1. Principais prazos de decadência
3 dias: para o vendedor exercer o direito de preferência e readquirir
a coisa móvel, a contar da data da notificação promovida pelo comprador (Código Civil, art. 516).
10 dias: para a minoria vencida impugnar a alteração do estatuto da
fundação, a contar da ciência promovida pelo Ministério Público
(Código Civil, art. 68).
30 dias: para que o adquirente de bem móvel reclame de vício redibitório de fácil constatação, a contar da tradição da coisa (Código
Civil, art. 445); para o consumidor reclamar do produto/serviço
não durável adquirido com defeito, a contar da tradição ou do conhecimento do defeito (Código de Defesa do Consumidor, art. 26).
60 dias: para o vendedor exercer o direito de preferência e readquirir a coisa imóvel, a contar da data da notificação promovida pelo
comprador (Código Civil, art. 516).
90 dias: para o credor prejudicado requerer a anulação de atos relacionados à incorporação, fusão ou cisão de uma pessoa jurídica, a
contar da data da publicação do ato (Código Civil, art. 1.122); para
o consumidor reclamar do produto/serviço durável adquirido com
defeito, a contar da tradição ou do conhecimento do defeito (Código de Defesa do Consumidor, art. 26).
201
120 dias: para o interessado impetrar mandado de segurança (art.
18 da Lei n. 1.533/51 e Súmula 632 do STF); para o transportador
reclamar indenização pelo prejuízo que sofrer em caso de informação inexata ou falsa descrição, a contar do ato (Código Civil,
art. 745).
180 dias: para anular negócio concluído pelo representante em
conflito de interesses com o representado, a contar da conclusão
do negócio ou da cessação da incapacidade (Código Civil, art. 119);
para o adquirente de bem imóvel reclamar de vício redibitório de
difícil constatação (art. 445); para o condômino preterido em seu
direito de preferência haver para si a parte vendida por outro condômino a estranho (art. 504); para o vendedor exercer o direito de
preferência contratual na alienação de coisa móvel (art. 513); para o
prejudicado reclamar da solidez e segurança da obra na empreitada
de edifícios ou outras construções consideráveis, a contar do aparecimento do defeito (art. 618); para anulação do casamento por
diversas razões (arts. 1.555 e 1.560).
1 ano: para o adquirente de bem imóvel reclamar de vício redibitório de fácil ou difícil constatação, a contar da tradição ou da constatação (Código Civil, art. 445); para o adquirente reclamar complemento da área ou para o alienante reclamar devolução, na compra
e venda ad mensuram, a contar da transcrição do título (art. 501);
para o doador pleitear a revogação da doação, a contar do conhecimento do fato que autoriza a revogação (art. 559).
1 ano e 1 dia: para o proprietário exigir que se desfaça janela, sacada, terraço ou goteira sobre o seu prédio (art. 1.302); para o possuidor pleitear liminar em ação possessória.
2 anos: para anular negócio jurídico, não havendo prazo específico,
a contar da celebração (Código Civil, art. 179); para o vendedor
exercer o direito de preferência contratual na alienação de coisa
imóvel (art. 513); para anular aprovação do balanço (art. 1.078, §
4º); para anulação do casamento celebrado por autoridade incompetente (art. 1.560); para anulação de negócio realizado por cônjuge sem a devida vênia (autorização) conjugal, a contar da extinção
da sociedade conjugal (art. 1.649); para o interessado requerer a
rescisão de julgado (Código de Processo Civil, art. 975).
3 anos: para anular a constituição de pessoa jurídica de direito privado por desrespeito aos requisitos legais (Código Civil, art. 45, parágrafo único); para anulação de decisões tomadas por maioria de
votos com violação de lei ou estatuto ou se viciadas por erro, dolo,
simulação ou fraude (art. 48, parágrafo único); para o vendedor de
coisa imóvel recobrá-la na compra e venda celebrada com cláusula
de reversão (art. 505); para anulação do casamento em razão de
erro essencial quanto à pessoa do cônjuge (art. 1.560, III).
4 anos: para anular negócio jurídico viciado por erro, dolo, estado
de perigo, lesão ou fraude contra credores, a contar da celebração
202
Direito Civil
do negócio (Código Civil, art. 178); para anular negócio jurídico
viciado por coação, a contar do dia em que cessar a coação (art.
178); para anular casamento viciado por coação (art. 1.560, IV);
para requerer exclusão do herdeiro ou legatário, a contar da abertura da sucessão (art. 1.815, parágrafo único); para anular disposição
testamentária viciada por erro, dolo ou coação, contado da ciência
do vício (art. 1.909, parágrafo único).
5 anos: prazo para impugnar o testamento, a contar da data do registro (art. 1.859).
ATENÇÃO
Em duas situações, entendemos
que o legislador se equivocou ao
tratar como prazos de decadência hipóteses que revelam pretensões de direitos patrimoniais:
Art. 618 do Código Civil: “Nos contratos de empreitada de edifícios
ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e
execução responderá, durante o
prazo irredutível de cinco anos,
pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo. Parágrafo
único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra
que não propuser a ação contra
o empreiteiro, nos cento e oitenta
dias seguintes ao aparecimento
do vício ou defeito”. Entendemos
que esse prazo de cinco anos é
de prescrição, pois está relacionado à pretensão de reparação
de danos (exercício de direito
subjetivo patrimonial).
Art. 745 do Código Civil: “Em caso
de informação inexata ou falsa
descrição no documento a que
se refere o artigo antecedente,
será o transportador indenizado
pelo prejuízo que sofrer, devendo
a ação respectiva ser ajuizada
no prazo de cento e vinte dias,
a contar daquele ato, sob pena
de decadência”. Esse prazo é de
prescrição, e não de decadência,
pois o dispositivo também se refere a uma pretensão indenizatória
(direito subjetivo patrimonial).
203
11
Atos Ilícitos e
Responsabilidade Civil
ATENÇÃO
Os artigos abaixo, todos do
Código Civil, são fundamentais
para o entendimento da matéria:
Art. 186. Aquele que, por
ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar
direito e causar dano a outrem,
ainda que exclusivamente moral,
comete ato ilícito.
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes
de caso fortuito ou força maior, se
expressamente não se houver por
eles responsabilizado. Parágrafo
único. O caso fortuito ou de força
maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível
evitar ou impedir.
Art. 927. Aquele que, por
ato ilícito (Arts. 186 e 187), causar
dano a outrem, fica obrigado a
repará-lo.
Art. 935. A responsabilidade
civil é independente da criminal,
não se podendo questionar mais
sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.
Art. 936. O dono, ou detentor,
do animal ressarcirá o dano por
este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior.
Art. 937. O dono de edifício
ou construção responde pelos
danos que resultarem de sua ruína, se esta provier de falta de
reparos, cuja necessidade fosse
manifesta.
Art. 938. Aquele que habitar
prédio, ou parte dele, responde
pelo dano proveniente das coisas
que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido.
Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
11.1
CONCEITO, ESPÉCIES E DISTINÇÕES
NECESSÁRIAS, GENERALIDADE CIVIL
O Estado Democrático de Direito garante a todos os cidadãos a ordem e a paz estabelecendo entre as garantias fundamentais da Constituição Federal de 1988 a apreciação pelo Poder Judiciário sempre que
houver lesão ou ameaça a direito.1
Quando o legislador constituinte se refere à proteção sempre que
houver lesão ou ameaça a direito, subentende o dever legal de não causar
dano a outrem.
11.1.1. ATOS ILÍCITOS
O ato ilícito é a conduta, a ação ou a omissão do agente que gerou o dano, o prejuízo a outrem. Recebe o nome de ilícito porquê
interrompe, ofende, invade a direito alheio, provocando resultado indesejado, sem consentimento prévio ou autorização legal. A vítima
simplesmente é constrangida aos efeitos danosos causados pelo ato
ilícito do agente.
O ato ilícito civil é um fato jurídico relevante para o direito civil,
pois acontece por ação ou omissão do agente, resultando em dano patrimonial (material) ou extrapatrimonial (moral) sobre o direito de outrem, que injustamente o suporta, assistindo-lhe por esta razão, o direito
à reparação. A vítima de danos cíveis busca que o Poder Judiciário condene o autor do fato à reparação do seu estado anterior ao dano (status
quo ante).
Onde estiver o ato ilícito aí estará a infração ao dever legal de não
lesar a outrem.
11.1.2. RESPONSABILIDADE CIVIL E
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
Por outro lado, o ato ilícito penal consiste em ação ou omissão do
agente, cujo fato é previamente tipificado por norma penal de direito
público. O interesse lesado é da sociedade e a sua forma de reparação se
dá através de punição, que pode ser desde uma pena pecuniária (multa
ou fiança) até restrição total da liberdade da pessoa (reclusão ou detenção – conforme a gravidade do tipo penal). O agente responderá por
1. CF, Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes: XXXV – A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito.
206
Direito Civil
dolo ou culpa pela responsabilidade penal do ato ilícito criminal a que
der causa, desde que maior e garantido o seu direito à ampla defesa e
contraditório (CF, art. 5º: (...) LV – aos litigantes, em processo judicial
ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.). Portanto,
a responsabilidade criminal, visa punir aqueles que ofenderem à sociedade por descumprimento à norma penal pública. Embora as responsabilidades civil e criminal tenham instrução em foros diversos, quando
houver sentença penal irrecorrível, os fatos ali narrados, bem como a
autoria deles, se tornam inquestionáveis no cível.
VOCABULÁRIO
Dolo: quando o agente tinha a
intenção de causar o dano.
Culpa: quando o agente não
tinha a intenção de causar o
dano, mas age com imprudência, negligência ou imperícia.
Na responsabilidade civil o legislador civil impõe àquele que causar
dano (ainda que moral), o dever de indenizar a vítima. Então, pode-se
dizer que o ato ilícito civil é também fonte de obrigação.
A ação ou omissão que provoca a lesão ao direito induz à responsabilidade civil que, por sua vez, é uma reação provocada pela infração
a um direito preexistente. Entretanto, não haverá direito à indenização
quando ocorrer violação a direito e ao mesmo tempo não ocorrer um
dano ou efetivo prejuízo (ainda que tenha havido culpa ou dolo do agente), pois para que haja direito à reparação ou indenização devem ocorrer
simultaneamente a violação ao direito e o dano (material ou moral).
Violação
Ação / Omissão
Dano / Prejuízo
• Dever legal
• Dolo
• Material
• Não lesar a outrem
• Culpa
• Moral
= RESPONSABILIDADE CIVIL
nexo causal
11.1.3. ELEMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL
Assim, podemos concluir que a responsabilidade civil se compõe
dos seguintes elementos: a) ação ou omissão do agente; b) dolo ou culpa
do agente; c) nexo causal e d) dano (material ou moral)
a) ação ou omissão do agente – o agente poderá responder quando
for autor direto do fato, ou por este derivar de ato próprio; ou de ato de
terceiro que esteja sob sua guarda; ou de animais e coisas de sua propriedade ou posse.
b) dolo ou culpa do agente – o dolo demonstra a intenção do
agente em causar o dano, uma violação deliberada do dever de não
lesar a outrem. Enquanto a culpa opera com a conduta não diligente, pouco cuidadosa, que por sua imprudência, negligência ou imperícia culmina no dano a outrem. A culpa pode ser classificada em: a)
contratual; b) extracontratual; c) in cometendo (aquela que resulta de
uma ação. Exemplo: motorista avança o sinal vermelho); d) in omitindo (aquela que resulta da negligência ou omissão. Exemplo: motorista
deveria ter trocado as pastilhas de freio do automóvel); e) in vigilando
(aquela que decorre do dever de vigilância. Exemplo: patrão quanto
aos empregados, pais em relação aos filhos); f) in elegendo (aquela que
207
ATENÇÃO
De acordo com o art. 942 do
Código Civil, a responsabilidade
por ato praticado por terceiro
é de responsabilidade solidária. Equivale dizer que todas as
pessoas que estejam envolvidas
com a causa do evento danoso
responderão solidariamente pelos prejuízos sofridos, podendo a
vítima os eleger a teor do que dispõe ainda o art. 932 do mesmo
diploma legal.
ATENÇÃO
A culpa aquiliana ou strictu
sensu é a culpa extracontratual
do agente; é aquela que se pauta
em sua imprudência, negligência
ou imperícia. A culpa contratual
viola um dever jurídico prescrito
no acordo entre as partes.
O dano moral pode ser, ainda, direto, como se dá pela inscrição indevida do nome no cadastro de inadimplentes, uma ofensa
aos direitos da personalidade. E o
dano moral indireto ou ricochete,
no qual se dá um desfalque patrimonial e por reflexo, atinge um
valor da personalidade. Exemplo:
o violino que pertencia ao seu bisavô e estava em sua companhia
há mais de 30 anos foi roubado. O
violino tem um valor material (patrimônio) e um valor inestimável
(extrapatrimonial).
O risco apresenta diversas modalidades: risco proveito,
quando quem colhe os bônus
suporta os ônus; risco profissional,
que se relaciona ao trabalho; risco excepcional, atividades que
envolvem grau elevado de perigo, e risco integral, quando o
grau de perigo é tão alto que não
admite exclusão da responsabilidade.
resulta da escolha inadequada. Exemplo: empresa contrata motorista sem carteira de habilitação para o caminhão); e e) in custodiando
(aquela que decorre da guarda e conservação de coisas ou bens. Exemplo: depositário, locatário etc.).
c) nexo causal – trata-se da relação existente entre a causa (conduta
do agente) e o efeito (dano a ser reparado). O nexo de causalidade demonstra quem deu causa ao dano, ao prejuízo sofrido injustamente, o
qual deverá indenizar a vítima.
No entanto, caso esteja presente uma das hipóteses abaixo, estará
excluída a ilicitude do ato, por romperem o nexo de causalidade: I) culpa
exclusiva da vítima; II) caso fortuito; e III) força maior.
d) dano (material ou moral) – deverá haver prova de dano efetivo, seja patrimonial (material) ou extrapatrimonial (moral). Os danos
materiais e morais possuem meios técnicos para sua quantificação (CC,
arts. 944 a 954). A pretensão de reparação não subsistirá se não houver
demonstração do prejuízo. Em regra, deverá a vítima provar a existência do dano e quantificá-lo para obter a reparação. Isto porque o pedido
deve permitir a ampla defesa e o contraditório. Contudo, existem muitas
hipóteses aceitas na jurisprudência em que se permite a aplicação da presunção de existência de dano moral (dano in re ipsa), como por exemplo
decidiu o Superior Tribunal de Justiça nos casos de: a) inscrição indevida
do nome no cadastro de inadimplentes; b) talões de cheques extraviados
do Banco e utilizados por terceiros; c) atrasos de voo; d) impedimento
do exercício da profissão por diploma sem reconhecimento no MEC; e)
multas de trânsito lavradas por erro administrativo; e f) publicação do
nome de médico que não pertence a convênio.
11.1.4. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA E
RESPONSABILIDADE OBJETIVA
Com fundamento na teoria clássica, a responsabilidade subjetiva é
aquela que busca a prova da culpa do agente a fim de com ela lhe imputar o dever de indenizar a vítima. Na responsabilidade subjetiva, se não
encontrada a culpa, em sentido amplo (dolo ou culpa) não responderá
por perdas e danos causados o agente.
São excludentes de responsabilidade civil subjetiva: I) legítima
defesa; II) estado de necessidade; III) o exercício regular de um direito; IV) o estrito cumprimento do dever legal; V) o caso fortuito; e VI)
a força maior.
A responsabilidade objetiva não exige que se prove a culpa do agente; basta provar a existência do dano e do nexo causal. A admissibilidade
da responsabilidade sem culpa se justifica em razão de estar prevista na
lei (ex.: é responsabilidade objetiva dos pais (CC, art. 932, I) os atos praticados por seus filhos incapazes (CC, art. 933), ou por força do risco
inerente à atividade do autor e a natureza do risco.
A teoria subjetiva foi adotada como regra geral para imputação da
responsabilidade em nosso Código Civil.
208
Direito Civil
Para que seja possível imputar o dano ao agente, deverá ele possuir capacidade de discernimento. Então como fica a responsabilidade
daqueles que não possuem condições mínimas para exercerem o discernimento?
O responsável será aquele que os representar (pai, tutor, curador
etc.); nestes casos, a responsabilidade objetiva decorre da previsão legal.
E se o representado possuir patrimônio, este responderá, desde que se
faça por equidade (não permitindo que prive o incapaz e as pessoas que
dele dependerem para seu sustento).
11.1.5. ABUSO DE DIREITO
O abuso de direito é um ato ilícito que se configura quando o titular do direito, ao exercê-lo, excede os limites impostos pelo ordenamento jurídico (ignorando a finalidade social do seu direito subjetivo). O
agente se desvia dos fins sociais estabelecidos para harmonizarem-se ao
ordenamento jurídico como um todo.
Entre os casos mais típicos de abuso de direito, estão as questões
envolvendo o direito de vizinhança, como, por exemplo, o uso indevido
do direito de propriedade, que terminam por afetar a saúde, o sossego e
a segurança alheios. E, ainda, demandar por dívida antes de vencida ou
por dívida já paga.
Na aplicação da lei, como já estudamos, o juiz deverá levar em conta
os fins sociais e as exigências do bem comum aos quais ela se dirige.
Considerando que um contrato de financiamento de veículo com
36 (trinta e seis) parcelas seja executado por inadimplemento, quando
restavam apenas três, não parece que a ação judicial atenda à boa-fé e
aos fins sociais. Neste caso, poderá o magistrado, com força no art. 5º da
LINDB, aplicar a teoria do adimplemento substancial (Enunciado 361
da IV Jornada de Direito Civil ).
Ao lado da teoria do abuso de direito, existem alguns desdobramentos: a) venire contra factum proprium; b)supressio, surrectio e tu quoque.
a)Venire contra factum proprium – Fundamentando-se no princípio da solidariedade, esta teoria compreende que as partes durante a
relação contratual admitem um comportamento que permite certa previsibilidade ou coerência habitual, provocando uma expectativa que não
deve ser contrariada repentinamente, em razão da boa-fé e da necessária conduta leal e ética entre as partes. Para que se configure a conduta
contraditória, a parte deverá desde o início da relação manter sempre
determinada conduta (factum proprium). Por exemplo, um locador cujo
locatário sempre atrasa o pagamento do aluguel, nunca cobrou multa,
até que, quando faltavam dois meses para o término do contrato, passou
a cobrá-las todas de uma vez. Aqui houve quebra do factum proprium
identificado na conduta inicial de não ter cobrado as multas.
b) Supressio, surrectio e tu quoque – A supressio é a supressão, a
perda de determinada faculdade jurídica no decurso do tempo. Esta
teoria compreende ser inadmissível o exercício de um direito por seu
209
ATENÇÃO
Enunciado 361 da IV Jornada
de Direito Civil: “361 – Arts. 421,
422 e 475. O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer
preponderar a função social do
contrato e o princípio da boa-fé
objetiva, balizando a aplicação
do art. 475”.
ATENÇÃO
Enunciado 412 da V Jornada
de Direito Civil. Art. 187: As diversas hipóteses de exercício inadmissível de uma situação jurídica
subjetiva, tais como supressio, tu
quoque, surrectio e venire contra
factum proprium, são concreções
da boa-fé objetiva.
retardamento desleal. A omissão gera na outra parte uma expectativa legítima, fazendo nascer para ela um novo direito subjetivo. Na surrectio é
o contrário, o surgimento de uma situação de vantagem para alguém em
razão do não exercício por outrem de um determinado direito; admite a
aquisição de um direito subjetivo.
Desdobramento do princípio da boa-fé objetiva, ligado à regra de
proibir um comportamento contraditório (venire contra factum proprium ), o tu quoque, será invocado para afastar o comportamento abusivo de uma das partes que buscaria surpreender a outra em situação de
desvantagem (Enunciado 412 da V Jornada de Direito Civil).
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