DirEiTo CiviL Parte Geral 2 DirEiTo CiviL Parte Geral 2015 ISBN 978-85-02-63540-1 Rua Henrique Schaumann, 270, Cerqueira César – São Paulo – SP CEP 05413-909 PABX: (11) 3613 3000 SAC: 0800 011 7875 De 2ª a 6ª, das 8:30 às 19:30 www.editorasaraiva.com.br/contato Direito civil : parte geral / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia e Thaís de Camargo Rodrigues. – São Paulo : Saraiva, 2015. Direção editorial Luiz Roberto Curia Gerência editorial Thaís de Camargo Rodrigues 1. Direito civil - I. Curia, Luiz Roberto. II. Rodrigues, Thaís de Camargo. III. Título. Coordenação geral Clarissa Boraschi Maria Preparação de originais Maria Izabel Barreiros Bitencourt Bressan e Ana Cristina Garcia (coords.) Projeto gráfico Isabela Agrela Teles Veras Arte e diagramação Isabela Agrela Teles Veras Lais Soriano Revisão de provas Amélia Kassis Ward e Ana Beatriz Fraga Moreira (coords.) Rita de Cássia Sorrocha Pereira Serviços editoriais Elaine Cristina da Silva Kelli Priscila Pinto Marília Cordeiro CDU-347 Índice para catálogo sistemático: 1. Direito Civil 347 Data de fechamento da edição: 16-7-2015 Dúvidas? Acesse www.editorasaraiva.com.br/direito Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Saraiva. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal. Sumário 1. O Código Civil Brasileiro, 15 1.1. O que é direito?, 16 1.2. A relação entre o direito e a moral, 17 1.3. Quais as fontes do direito?, 18 1.4. Como se organiza o direito?, 20 1.5. O direito civil, 21 1.6. O fenômeno da codificação, 21 1.7. O Estado Liberal e o Código de Napoleão, 22 1.8. O Código Civil Brasileiro, 24 1.9. A estrutura do Código Civil Brasileiro, 25 1.9.1. Da Evolução Histórica da Codificação Civil, 25 1.9.2. O Sistema Misto – As Cláusulas Gerais e os Conceitos Vagos, 29 1.9.3. Os Princípios Norteadores do Código Civil, 31 1.10. O campo de incidência do Código Civil, 32 1.11. Direito Civil e a Constituição Federal de 1988, 34 1.11.1. O Personalismo Ético e a Dignidade Humana 34 1.12. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, 38 1.12.1. A Interpretação da Norma Jurídica, 38 1.12.2. Prazos para Vigência de Lei, 38 1.12.3. A Revogação da Lei, 39 1.12.4. A Vigência Temporária da Lei, 39 1.12.5. Da Extensão da Revogação da Lei, 39 1.12.6. Da Forma de Revogação da Lei, 40 1.12.7. As Antinomias, 40 1.12.8. A Repristinação da Lei, 41 1.12.9. A Obrigatoriedade das Normas, 41 1.12.10. Da Integração da Norma Jurídica, 41 1.12.11. As Lacunas da Norma Jurídica, 42 1.12.12. Da Interpretação da Norma Jurídica, 43 1.12.13. Da Aplicação da Norma no Tempo, 44 1.12.14. Da Aplicação da Norma no Espaço, 45 2. A pessoa natural, 47 2.1. A pessoa natural, 48 5 2.2. A personalidade jurídica, 48 2.3. A natureza jurídica do nascituro, 48 2.3.1. A Capacidade Civil e suas Classificações, 51 2.4. A incapacidade. As restrições de direito, 52 2.5. O suprimento e a cessação da incapacidade civil, 52 2.5.1. Cessação da Incapacidade Civil, 52 2.5.2. Suprimento da Incapacidade Civil, 53 2.5.3. Extinção da Personalidade Jurídica, 53 2.6. O nome civil, o estado civil e o domicílio civil, 54 2.6.1. Os Modos de Individualização da Pessoa Natural, 54 2.6.2. O Nome Civil, 54 2.6.3. A Classificação do Nome Civil, 54 2.6.4. A Composição do Nome Civil, 55 2.6.5. Da Alteração do Nome Civil, 56 2.6.6. Da Modificação Administrativa, 56 2.6.7. Da Modificação Judicial, 58 2.6.8. O Estado Civil, 61 2.6.9. O Domicílio Civil, 61 2.7. A comoriência e a ausência: caracterização e efeitos jurídicos, 62 2.8. A morte presumida: caracterização, 63 3. pessOa e direitOs da persOnalidade, 65 3.1. Conceito, 66 3.2. Fundamento, 66 3.3. Características dos direitos da personalidade, 67 3.3.1. Direito ao corpo, 71 3.3.1.1. Doação do corpo, 71 3.3.1.2. Direito à recusa ao tratamento médico, 73 3.3.2. Direito ao nome, 73 3.3.2.1. Elementos do nome, 74 3.3.2.2. Pseudônimo, 74 3.3.3. Direito à imagem, 74 3.3.4. Direito à privacidade e direito à intimidade, 76 3.4. Proteção dos direitos da personalidade, 76 3.4.1. Medidas preventivas, 77 3.4.2. Medidas reparatórias, 77 3.4.3. Legitimidade para requerer a proteção e a reparação, 77 6 Direito Civil 4. A Pessoa Jurídica, 79 4.1. Conceito, 80 4.2. Natureza jurídica, 80 4.3. Elementos estruturais (pressupostos existenciais da pessoa jurídica), 81 4.4. Personalidade jurídica, 82 4.4.1. Personalidade jurídica e direitos da personalidade, 82 4.4.2. Início da personalidade, 83 4.4.2.1. Início da personalidade das pessoas jurídicas de direito público, 83 4.4.2.2. Início da personalidade das pessoas jurídicas de direito privado, 83 4.4.3. Ato constitutivo e registro da pessoa jurídica, 84 4.4.3.1. Natureza jurídica do registro das pessoas jurídicas, 85 4.4.3.2. Local do registro, 85 4.4.4. Fim da personalidade, 88 4.5. Representação da pessoa jurídica, 88 4.6. Responsabilidade da pessoa jurídica, 89 4.7. Das diversas classificações das pessoas jurídicas, 90 4.7.1. Classificação quanto à estrutura interna, 90 4.7.2. Classificação quanto à função, 90 4.7.2.1. Pessoas jurídicas de direito público, 90 4.7.2.2. Pessoas jurídicas de direito privado, 91 4.8. Sociedades, 92 4.9. Empresa individual de responsabilidade limitada, 93 4.10. Associações, 93 4.10.1. Constituição de uma associação, 94 4.10.2. Composição da associação, 94 4.10.2.1. Associados, 94 4.10.2.2. Diretoria, 95 4.10.2.3. Assembleia geral, 95 4.10.3. Dissolução da associação, 95 4.11. Fundações, 96 4.11.1. Constituição das fundações, 97 4.11.2. Alteração do estatuto da fundação, 99 4.11.3. Fiscalização, 99 4.11.4. Extinção da fundação, 100 7 4.12. Nacionalidade, 100 4.13. Domicílio da pessoa jurídica, 101 4.13.1. Pessoas jurídicas de direito público, 101 4.13.2. Pessoas jurídicas de direito privado, 101 4.14. Desconsideração da personalidade jurídica, 102 4.14.1. Teorias da desconsideração da personalidade jurídica, 104 5. Os Bens, 107 5.1. Conceito, 108 5.1.1. Bens e coisas: distinção, 108 5.2. Patrimônio, 109 5.3. Das diversas classificações dos bens, 109 5.4. Classificação dos bens de acordo com a mobilidade, 110 5.4.1. Bens imóveis, 110 5.4.2. Bens móveis, 111 5.5. Classificação dos bens de acordo com a fungibilidade, 112 5.5.1. Bens fungíveis, 112 5.5.2. Bens infungíveis, 112 5.6. Classificação dos bens de acordo com a consuntibilidade, 113 5.6.1. Bens consumíveis, 113 5.6.2. Bens inconsumíveis, 113 5.7. Classificação dos bens de acordo com a divisibilidade, 113 5.7.1. Bens divisíveis, 113 5.7.2. Bens indivisíveis, 114 5.8. Classificação dos bens de acordo com a materialidade, 114 5.8.1. Bens materiais (res corporalis), 114 5.8.2. Bens imateriais (res incorporalis), 114 5.9. Classificação dos bens de acordo com a individualidade, 115 5.9.1. Bens singulares, 115 5.9.2. Bens coletivos, 115 5.10. Classificação dos bens de acordo com a dependência ou reciprocidade, 116 5.10.1. Bem principal, 116 5.10.2. Bem acessório, 116 5.10.2.1. Fruto, 117 5.10.2.2. Produtos, 117 5.10.2.3. Benfeitorias, 118 8 Direito Civil 5.10.2.4. Pertenças, 119 5.11. Classificação dos bens de acordo com a titularidade, 119 5.11.1. Bens particulares, 119 5.11.2. Bens públicos, 120 5.11.2.1. Características dos bens públicos, 120 6. Dos Fatos Jurídicos, 123 6.1. Fato jurídico, 124 6.2. Fato jurídico natural, 124 6.2.1. Fato jurídico natural ordinário, 125 6.2.2. Fato jurídico natural extraordinário, 125 6.3. Fato jurídico humano, 125 6.3.1. Fato jurídico humano ilícito, 125 6.3.2. Fato jurídico humano lícito, 126 6.3.2.1. Ato jurídico stricto sensu, 126 6.3.2.2. Negócio jurídico, 127 6.3.2.3. Ato-fato jurídico, 127 7. Dos Negócios Jurídicos, 129 7.1. Teoria geral do negócio jurídico, 130 7.2. Classificações do negócio jurídico, 130 7.2.1. Classificação quanto à manifestação de vontade, 130 7.2.2. Classificação quanto às vantagens para as partes, 130 7. 2.3. Classificação quanto ao momento da produção dos efeitos, 131 7.2.4. Classificação quanto à forma, 131 7.2.5. Classificação quanto à independência ou autonomia, 131 7.2.6. Classificação quanto às condições pessoais dos negociantes, 132 7.2.7. Classificação quanto à causa determinante, 132 7.2.8. Classificação quanto ao momento da eficácia, 132 7.2.9. Classificação quanto à extensão dos efeitos, 132 7.3. Interpretação do negócio jurídico, 133 7.4. Elementos constitutivos do negócio jurídico, 134 7.5. Planos do negócio jurídico, 134 7.5.1. Plano de existência, 135 7.5.2. Plano de validade, 135 7.5.2.1. Partes, 136 9 7.5.2.2. Objeto, 136 7.5.2.3. Forma, 137 7.5.2.4. Vontade, 138 7.5.2.4.1. Reserva mental, 138 7.5.2.4.2. Representação, 139 7.5.3. Plano de eficácia, 140 7.6. Elementos acidentais, 141 7.6.1. Condição, 141 7.6.1.1. Requisitos da condição, 141 7.6.1.2. Classificação da condição quanto à certeza, 142 7.6.1.3. Classificação da condição quanto aos efeitos, 142 7.6.1.4. Classificação da condição quanto à licitude, 143 7.6.1.5. Classificação da condição quanto à possibilidade, 144 7.6.1.6. Classificação da condição quanto à natureza (ou fonte), 144 7.6.2. Termo, 145 7.6.2.1. Classificação do termo quanto aos efeitos, 145 7.6.2.2. Classificação do termo quanto à certeza, 146 7.6.2.3. Contagem do prazo, 146 7.6.3. Modo ou encargo, 147 8. deFeitOs nOs negóCiOs JurídiCOs, 149 8.1. Introdução, 150 8.2. Erro ou ignorância (Código Civil, arts. 138 a 145), 150 8.2.1. Consequências do erro, 150 8.2.2. Classificação do erro quanto à determinação, 151 8.2.2.1. Erro substancial, 151 8.2.2.2. Erro acidental, 152 8.2.2.3. Erro obstativo, 152 8.2.3. Escusabilidade ou recognoscibilidade, 153 8.3. Dolo, 153 8.3.1. Consequências do dolo, 153 8.3.2. Classificação do dolo quanto à determinação, 154 8.3.2.1. Dolo essencial, 154 8.3.2.2. Dolo acidental, 154 8.3.3. Classificação do dolo quanto à conduta, 154 10 Direito Civil 8.3.3.1. Dolo positivo, 154 8.3.3.2. Dolo negativo, 154 8.3.3.3. Dolo bilateral ou recíproco, 155 8.3.4. Classificação do dolo quanto ao conteúdo, 155 8.3.4.1. Dolo mau, 155 8.3.4.2. Dolo bom, 155 8.3.5. Dolo de terceiro, 155 8.3.6. Dolo do representante, 156 8.4. Coação, 156 8.4.1. Espécies de coação, 156 8.4.1.1. Coação absoluta, 156 8.4.1.2. Coação relativa, 157 8.4.2. Requisitos da coação, 157 8.4.3. Consequências da coação, 159 8.4.4. Coação por terceiro, 159 8.5. Estado de perigo a coação, 159 8.5.1. Requisitos do estado de perigo, 160 8.5.2. Consequências, 161 8.6. Lesão, 161 8.6.1. Requisitos da lesão, 162 8.6.2. Consequências da lesão, 163 8.7. Fraude contra credores, 164 8.7.1. Requisitos para caracterização da fraude contra credores, 164 8.7.2. Hipóteses de fraude contra credores, 166 8.7.3. Consequências da fraude contra credores, 167 8.7.4. Fraude contra credores versus fraude à execução, 168 9. Invalidade dos Negócios Jurídicos, 171 9.1. Invalidade, 172 9.1.1. Invalidade versus inexistência, 172 9.2. Nulidade, 173 9.2.1. Hipóteses de nulidade, 173 9.2.2. Regras da nulidade, 174 9.3. Anulabilidade, 175 9.3.1. Hipóteses de anulabilidade, 175 9.3.2. Consequências da anulabilidade, 176 11 9.4. Simulação, 177 9.4.1. Natureza jurídica, 177 9.4.2. Requisitos da simulação, 178 9.4.3. Consequências da simulação, 178 9.4.4. Classificação da simulação quanto ao seu conteúdo, 179 9.4.4.1. Simulação absoluta, 179 9.4.4.2. Simulação relativa, 180 10. presCriÇÃO e deCadÊnCia, 181 10.1. Introdução, 182 10.2. Prescrição, 182 10.2.1. Conceito de prescrição, 182 10.2.2. Prescrição extintiva e prescrição aquisitiva, 183 10.2.3. Prescrição da exceção, 183 10.2.4. Alegação da prescrição, 184 10.2.5. Renúncia da prescrição, 184 10.2.6. Declaração de ofício da prescrição, 184 10.2.7. Previsão legal da prescrição, 185 10.2.7.1. Prazos especiais, 185 10.2.8. Contagem do prazo de prescrição, 189 10.2.8.1. Prescrição nuclear versus parcelar, 190 10.2.8.2. Continuação do prazo em face de herdeiros, 190 10.2.9. Prescrição intercorrente, 191 10.2.10. Impedimento e suspensão da prescrição, 191 10.2.10.1. Hipóteses de impedimento e suspensão, 192 10.2.10.2. A relação entre a suspensão da prescrição e as obrigações solidárias, 195 10.2.11. Interrupção da prescrição, 195 10.2.11.1. Hipóteses de interrupção da prescrição, 196 10.2.11.2. Efeitos pessoais da interrupção, 197 10.3. Decadência, 198 10.3.1. Conceito de decadência, 198 10.3.2. Alegação da decadência, 199 10.3.3. Espécies de decadência, 199 10.3.3.1. Decadência legal, 199 10.3.3.2. Decadência convencional, 200 12 Direito Civil 10.3.4. Contagem do prazo de decadência, 200 10.3.5. Impedimento, suspensão e interrupção do prazo de decadência, 200 10.3.6. Prazos de decadência, 201 10.3.6.1. Principais prazos de decadência, 201 11. Atos Ilícitos e Responsabilidade Civil, 205 11.1. Conceitos, espécies e distinções necessárias, generalidade civil, 206 11.1.1. Atos ilícitos, 206 11.1.2. Responsabilidade civil e responsabilidade criminal, 206 11.1.3. Elementos da responsabilidade civil, 207 11.1.4. Responsabilidade subjetiva e responsabilidade objetiva, 208 11.1.5. Abuso de direito, 209 13 14 1 O Código Civil Brasileiro AuTor Aristóteles (384 a.C. a 322 a. C.) – Filósofo grego, nascido em Estagira. Foi aluno de Platão e professor de Alexandre o Grande. Entre suas grandes obras, destacam-se pela contribuição ao Direito: A Política e Ética a Nicômaco. Platão, o professor de Aristóteles fora aluno de Sócrates. Georg Jellinek (1606-1851 a 12-011911) – Juiz e filósofo do direito, nascido em Leipzig, Alemanha. Este professor que lecionou nas Universidades de Basileia e Heidelberg na Alemanha, foi quem desenvolveu a “Teoria do Mínimo Ético. O mínimo ético, segundo sua teoria, é o conjunto mínimo de regras morais obrigatórias para se sobreviver em sociedade. CiNEmATECA “Sócrates”, filme de Roberto Rosselline, exibe com clareza o início do conceito de direito e justiça na Grécia antiga. Imaginava-se o direito como algo provindo dos deuses. Note que o tribunal de Heliastas, e sua composição como júri popular, era formado por milhares de pessoas escolhidas por sorte. O juiz era um leigo que tomava suas decisões por meio do costume. Os crimes contra a polis eram condenados com a morte. Sócrates foi punido com a morte por questionar racionalmente o conceito de justiça da polis, segundo eles, “por perverter a juventude e os bons costumes”. Antes de ingressarmos no estudo do Código Civil Brasileiro, é necessário identificar o campo de estudo do direito civil, e para isto é preciso entender com clareza o conceito comum de direito. 1.1 o QuE É DirEiTo? A palavra direito deriva do latim, directum, que significa “aquilo que é reto”. Mas para conceituar o que é direito, torna-se necessário estudarmos a sua origem primária, que é o anseio de satisfação das necessidades humanas. De fato, faz-se necessário compreender também os fenômenos que são relevantes à existência do homem, a fim de se obter o esclarecimento quanto ao conceito comum do que é o direito. O pensador grego Aristóteles foi o primeiro a observar que o homem é um ser gregário e que se distingue de todos os outros animais da Terra por ser o único a experimentar o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e das outras qualidades morais. Segundo este pensador grego, a cidade é uma criação natural do homem, a qual precede até mesmo a família. Para sobreviver e ser feliz, o homem, como ser gregário e racional, precisa da vida social, necessita da convivência com outros seres semelhantes (viver em sociedade). O convívio em sociedade é uma atividade que demanda obrigatório respeito a um “conjunto mínimo de condições essenciais para manutenção da paz e segurança”. Este conjunto de condições, que procura estabelecer a paz e a segurança entre os homens (o dever ser), é o que hoje se define por conceito comum de direito. No mesmo sentido, George Jellinek, com base nos ensinos de Jeremy Bentham, define o direito por este conjunto mínimo de condições e regras morais obrigatórias para sobrevivência moral e conservação da paz social, da segurança da vida em sociedade (bem comum). Assim, para que seja possível viver em sociedade, devem ser observados os limites e restrições morais impostos aos indivíduos, justamente com a intenção de se manter a paz e a segurança entre todos, pois o direito nasce e se desenvolve através da sociedade – ubi homo, ibi jus, a expressão em latim, por tradução livre, que quer dizer “onde está o homem, está o direito”. Agora que já estudamos o conceito comum do direito, é preciso entender a dicotomia, a divisão, as semelhanças e diferenças entre o direito e a moral. Conceito: Direito é o conjunto mínimo de condições e regras essenciais morais para manter a paz e a segurança na convivência entre os seres humanos (vida em sociedade). 16 Direito Civil 1.2 A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E A MORAL Teoria dos círculos concêntricos ou Teoria do mínimo ético: Como pudemos perceber, George Jellinek, após estudar os apontamentos de Jeremy Bentham, compreendeu o direito como parte da moral. Sua teoria dos círculos concêntricos ou teoria do mínimo ético ficou conhecida por indicar que o direito (ordenamento jurídico) estaria contido na moral. A figura abaixo ilustra o entendimento de Jellinek: Contudo, existem outras teorias que buscam explicar a relação entre o direito e a moral, vejamos então... Teoria dos círculos secantes: Para Claude Du Pasquier, o direito e a moral são independentes, interligando-se em alguns momentos. Com base neste pensamento, compõe a figura abaixo para representar a teoria dos círculos secantes: Teoria dos círculos independentes: Hans Kelsen afirma que o direito possui normatização, enquanto a Moral se refere a atos praticados com observação de princípios éticos. Pelo direito possuir aspectos morais, não se faz confundir com aquela. Assevera que o direito e a moral são distintos, compondo sua teoria dos círculos independentes, como sugere a imagem abaixo: 17 CURIOSIDADE TEORIA DO MÍNIMO ÉTICO – Para Jellinek o direito seria o mínimo de moral imposto para que a sociedade possa viver em harmonia. AUTOR Jeremy Bentham (15-02-1748 a 0606-1832). Filósofo e jurista inglês, nasceu em Londres. Foi um dos últimos iluministas. Difundiu o utilitarismo ao lado de John Stuart Mill e James Mill. Seu importante estudo sobre a moral, exposto pela teoria dos círculos concêntricos, possibilitou a Georg Jellinek a construção do conceito do direito como o mínimo ético. Claude Du Pasquier. Para o jurista francês, que viveu no século XIX, o direito e a moral coexistem, não se separam, pois há um campo comum de competência, onde existem regras de qualidade jurídica com caráter moral. Hans Kelsen (1110-1881 a 19-041973) – Jurista e filósofo austríaco, nascido em Berkley. Autor da Teoria Pura do Direito, que trouxe relevante contribuição quanto ao estudo do positivismo jurídico, introduzindo os conceitos de norma fundamental e justiça. Reconhecido como um dos maiores teóricos do Direito do século XX. AuTor miguel reale (0611-1910 a 14-042006). Nascido em São Bento do Sul, o filósofo, jurista, educador e poeta brasileiro contribuiu significativamente com os estudos jurídicos, criador da teoria tridimensional do direito. Autor de inúmeros livros e obras jurídicas, ocupou a cadeira 14, tornando-se imortal da Academia Brasileira de Letras. Responsável pelo Projeto que deu origem ao Código Civil de 2002. teoria tridimensional: Miguel Reale, diversamente dos demais, entende que a moral é apenas um dos vetores que compõem o direito. Para o jusfilósofo brasileiro, o direito é fato, valor e norma. Fato é o fenômeno que importa ao direito identificar, enquanto valor seria aquele que abrange o conceito moral relativo àquele fato concreto, e a norma é como o ordenamento jurídico tratará aquele fato relevante ao direito. A teoria tridimensional do direito pode ser representada pela ilustração abaixo: valor fato norma ponto comum e de divergência: O que existe em comum entre as normas jurídicas e as morais é o fato de ambas constituírem regras de comportamento. Contudo, existe uma distinção fundamental entre as normas jurídicas e as normas morais, pois no caso das primeiras é o Estado que impõe a sanção. As normas morais se traduzem na consciência individual de cada ser humano em relação à sociedade em que vive, são identificadas pelos costumes estabelecidos pela sociedade. O estudo dos fundamentados desses valores morais que orientam o comportamento do homem em sociedade, no uso de sua opção de escolha, é conhecido como ética. Uma conduta ética indica que a opção realizada pela pessoa não ofende os valores morais e normas jurídicas da sociedade, conservando a paz social. 1.3 QuAiS AS foNTES Do DirEiTo? Partindo da dicotomia, da distinção entre a moral e o direito, podemos notar que o costume (normas morais) é a fonte primitiva do direito, de onde nasceram suas normas jurídicas (a lei – o dever ser), compondo estas duas, a lei e o costume, suas fontes diretas. Foi a partir do costume que o direito foi evoluindo, surgindo a lei e outras fontes relevantes ao seu estudo (fontes indiretas), as quais podem ser descritas na seguinte ordem de importância: 18 Direito Civil Lei – As normas jurídicas, ou leis, são a fonte direta e primária do direito. Elas são impostas pelo Estado organizado à obediência de todas pessoas que estiverem sob sua soberania. Não dependem da vontade dos cidadãos, sendo impossível alegar sua ignorância. Configura-se como fonte autêntica do direito, representada por texto expresso, escrito. Costume – O costume, como já descrito, se configura pela prática reiterada de comportamento geral aceito na sociedade, observando sempre a continuidade, uniformidade, diuturnidade, moralidade e obrigatoriedade. Embora seja a mais antiga entre as demais fontes do direito, contemporaneamente é fonte secundária. Jurisprudência – Como a própria palavra indica, a jurisprudência é a prudência dos Tribunais, que se constrói pelas decisões de casos semelhantes, entendimento que, aos poucos, vai se tornando pacífico pelas semelhanças dos casos concretos julgados, servindo tais fundamentos como fonte secundária do direito, destinada ao estudo e à aplicação prática, a evidenciar também a tendência das correntes jurisprudenciais e da compreensão prévia sobre cada caso, fornecendo relevantes elementos para aplicação em casos novos análogos, concedendo assim certa previsibilidade, que muito contribui com a segurança jurídica. Trata-se de fonte intelectiva do direito muito útil à pesquisa e ao estudo, pois exibe o esforço realizado pelo Poder Judiciário na decisão de conflitos reais, um acervo de inteligência prévio. Princípios gerais do direito – Os princípios gerais do direito revestem as condutas mínimas que o Estado espera de cada cidadão. Embora não estejam escritos, os princípios são conhecidos de todos, pois, como se fossem mandamentos morais, estão impregnados na consciência individual das pessoas, orientando e informando o direito. São identificados por três condutas básicas, cujas expressões latinas também seguem abaixo: a) viver honestamente – honeste vivere; b) dar a cada um o que é seu – suum cuique tribuere, e c) não lesar o próximo – alterum non laedere. Doutrina – A doutrina reflete a construção do intelecto dos estudiosos da ciência jurídica. Os doutrinadores são aqueles que interpretam as leis, levando em conta o comportamento humano e o contexto social de seu tempo, considerando todos os fenômenos sob os mais variados aspectos, construindo teorias, conceitos e elementos relevantes ao direito. Podemos notar que as fontes do direito, sejam elas primárias ou secundárias, diretas ou indiretas, são os meios pelos quais se formam as regras jurídicas. Por questão didática e para facilitar a memorização, trataremos da aplicação das fontes do direito na formação da norma jurídica mais adiante, quando estudarmos a LINDB, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, no tópico 5 desta Unidade I. 19 ComENTário O francês Augusto Comte (1789 a 1857) foi o responsável pela construção da teoria na sociologia conhecida como positivismo. A teoria atribui fatores humanos para explicações de diversos temas, contrariando o primado da razão, da teologia e da metafísica. Em vez de se preocupar com a origem do homem e sua criação, os positivistas buscam explicar as coisas práticas e úteis às relações sociais (lei). CurioSiDADE O pensamento positivista influenciou nosso país. A frase "Ordem e Progresso" na bandeira brasileira se inspirou na máxima ética buscada pelo positivismo de Augusto Comte: "O amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim." voCABuLário Erga omnes (latim): Efeito vinculante a todos; oponível a todos; contra todos. 1.4 Como SE orGANiZA o DirEiTo? O direito se organiza, se classifica ou se divide pelo campo destinado ao seu estudo e aplicação à norma jurídica (lei). O organograma abaixo descreve as referidas classificações mais comuns na doutrina: direito natural – O direito natural compreende as regras de convivência humana que foram estabelecidas pela própria natureza. Para os antigos gregos, havia a crença de que o direito natural se sobrepunha às leis humanas, evidenciando-se esta compreensão na declaração de Heráclito, quando disse que: “Todas as leis humanas se alimentam de uma, qual seja a divina; esta manda quando quer, basta a todos e as supera”. Os Jusnaturalistas são os que compõem a corrente que defende que o direito esteja ligado a princípios superiores, identificados na natureza racional e social do homem. direito positivo – O Estado compõe seu ordenamento jurídico através das leis vigentes, as quais representam a vontade do povo em determinada época, por meio de princípios para convivência pacífica. O ordenamento jurídico é, portanto, o conjunto de todas as leis vigentes em um país, compondo assim o seu direito positivo. direito objetivo – O conjunto de normas impostas pelo Estado que possuem caráter geral (norma agendi), pois obrigam a todos indistintamente através da coerção – dever ser. O direito objetivo é assim chamado por atender ao objetivo do Estado, que é obrigatório, imposto erga omnes através da lei. direito subjetivo – Enquanto o direito objetivo impõe uma conduta geral (dever ser), anulando a vontade ou escolha, o direito subjetivo (facultas agendi) protege a vontade, permitindo que qualquer pessoa física ou jurídica busque o Estado para impelir outrem a um determinado comportamento, toda vez que houver lesão ou ameaça de lesão a direitos (vinculando-se à vontade do sujeito quanto ao impulso da tutela do Estado). direito público – Esta classificação é anterior ao Direito Romano; compreende-se do ramo do direito público tudo o que diga respeito à coisa pública (do Estado), deste modo, poderíamos dizer que o direito 20 Direito Civil público abrange o estudo do Direito Constitucional, Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Penal e Processual Penal, Direito Internacional, etc. Direito privado – Se destinam ao ramo do direito privado todos os temas de estudo que não abrangidos pelo direito público, ou seja, aqueles temas que interessam à solução de conflitos entre os particulares e grupos sociais. Exemplos: Direito Civil, Direito Comercial ou Empresarial. 1.5 o direito civil O Direito Civil, por sua vez, orienta, regula e estuda a relação entre os particulares, pessoas físicas ou jurídicas. As relações entre os particulares é campo do Direito Privado, e divide-se em relações pessoais, familiares, patrimoniais e obrigacionais, estando disciplinadas no Código Civil, conhecido entre os estudiosos por “constituição do homem comum”. Diante do que estudamos até aqui, podemos notar que a sociedade requeria muito a organização das leis por meios de códigos, pois se entendia que só este seria o caminho para uniformizar as condutas esperadas dos indivíduos pelo Estado. Surge então o fenômeno da codificação, a começar pelo direito civil. 1.6 o fenômeno da codificação A dinâmica, amplitude e complexidade das relações privadas indicavam a necessidade de sua codificação, com vistas a tornar claro e uniforme a aplicação do direito a cada caso concreto. Francisco Amaral esclarece que o fenômeno da codificação pretendia organizar estruturalmente a disciplina das relações privadas para proporcionar igualdade e coordenação, pois expressava o racionalismo do direito, que era influenciado naquela época pelo pensamento iluminista, o qual marcou a ciência jurídica da modernidade (séculos XVIII e XIX). Analisando o processo histórico, é possível identificar a codificação do direito como uma consequência lógica a que se chegou por razões políticas, filosóficas e técnicas daquela época. Regular e sistematizar o tratamento para solução das questões, tanto no âmbito privado quanto público, realmente apontava ser o melhor caminho para criação de uma sociedade melhor, mais justa. Desse modo, a codificação trazia alguns paradigmas de sua cultura, a saber: a influência iluminista; o racionalismo; o individualismo; a consideração da norma jurídica como comando imperativo lógico-hipotético do Estado; o desenvolvimento do pensamento sistemático na 21 VOCABULÁRIO Codificação: Processo cultural e histórico oitocentista que realizou a ordenação e sistematização do direito, proporcionando o seu desenvolvimento técnico como ciência jurídica, dada sua uniformização e prescrição abstrata de situações e condutas. COMENTÁRIO O Iluminismo, ou Século das Luzes, marcou o início de uma era em que o poder da razão buscou reformar a sociedade, livrando-se dos arcaicos conceitos impregnados pela Era das Sombras (Idade Medieval). O conhecimento da natureza passou a ter um objetivo mais claro de utilidade ao homem moderno. Esse movimento cultural do Século XVIII teve impulso na Europa. Do iluminismo surgiu a ideia de mecanização, organização e controle, que influenciou o direito. Immanuel Kant foi um grande pensador do iluminismo e contribuiu muito com o direito por suas obras, das quais destaca-se: “Crítica da Razão Pura”. Ele descreve o iluminismo assim: "O iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma tutelagem que estes mesmos se impuseram a si. Tutelados são aqueles que se encontram incapazes de fazer uso da própria razão independentemente da direção de outrem. É-se culpado da própria tutelagem quando esta resulta não de uma deficiência do entendimento mas da falta de resolução e coragem para se fazer uso do entendimento independentemente da direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso da tua própria razão! – esse é o lema do iluminismo" voCABuLário Subsunção: do latim sumo, assumir, tendo o prefixo sub, em lugar de. Literalmente, quer dizer tomar o lugar de. No contexto de sua leitura, a subsunção do juiz era a atividade lógica dedutiva, que apenas adequava o resultado ao fato já previsto na lei. ComENTário Para a teoria monista, o Estado é a fonte única do direito, porque quem dá vida ao Direito é o Estado através da “força coativa” de que só ele dispõe. Desse modo, como só existe o Direito quando emanado do Estado, ambos se confundem em uma só realidade. Esta concepção ficou ultrapassada, pois não havendo norma jurídica que disponha sobre a questão, não poderia o juiz decidir. aplicação e interpretação do direito; a teoria monista das fontes do direito, que compreende o direito como sistema unitário, positivo e criado pelo Estado; a generalidade e abstração como características da lei e das normas jurídicas, tornando possível a existência de norma antes do caso concreto por sujeitos descritos pelas condutas previsíveis; a segurança jurídica, que justificava o formalismo para se identificar a justiça por todos almejada; a simplificação jurídica e a técnica da ciência jurídica; a centralidade do Código Civil no sistema das fontes do direito, por sua posição central em face da política e da filosofia (constituição do homem comum); a divisão dos papéis e relações entre Estado (Direito Público) e particulares (Direito Privado); a redução do processo interpretativo, primando por seguir a previsão do que contido na norma jurídica; e, por fim, a separação radical entre os conceitos de criação e aplicação do direito, neste aspecto, transportando por competência à própria lei dizer, por previsão nela contida, qual a decisão a ser tomada, consistindo a sua aplicação em atividade meramente mecânica do juiz, que fazia a subsunção, agindo como “a boca da lei ”. 1.7 o ESTADo LiBErAL E o CÓDiGo DE NAPoLEÃo O Direito Civil teve o seu auge no “Estado Liberal”, período histórico marcado pela Revolução Francesa, em 1789, no qual se exaltava a liberdade e a autonomia dos indivíduos nas relações privadas, sob o grito de liberdade, igualdade e fraternidade. ComENTário Ao examinar as formas de governo, Montesquieu identifica a Monarquia (princípio, a honra), o Despotismo (princípio, o medo) e a República (princípio, a virtude). Por influência da esquecida Constituição Inglesa, Montesquieu identifica a harmonia da atuação de três poderes, e a necessidade de respeito quanto ao âmbito de atuação de cada um deles. Para Montesquieu as leis compreendiam um comando normativo hermético, fechado, em respeito à teoria da tripartição dos poderes e o juiz tinha a atividade de ser meramente “a boca da lei”. Cabia ao magistrado apenas aplicar a norma jurídica ao caso concreto previsto na lei. Não podia o juiz interpretar a lei, de modo diverso do que nela expresso, sob pena de quebrar a harmonia democrática sustentada no que a lei representa (a vontade de todos). Cada Poder deveria, portanto, estar restrito apenas à sua função própria. A relevância do respeito à norma jurídica como prescrição absoluta e completa pode ser identificada pela leitura de sua obra “O Espírito das Leis”, da qual extraímos pequeno trecho abaixo: “As leis escritas ou não, que governam os povos, não são fruto do capricho ou do arbítrio de quem legisla. Ao contrário, decorrem da realidade social e da História concreta própria ao povo considerado. Não existem leis justas ou injustas. O que existe são leis mais ou menos adequadas a um determinado povo e a uma determinada circunstância de época ou lugar. O autor procura estabelecer a relação das leis com as sociedades, ou ainda, com o espírito dessas.” 22 Charles-louis de secondat, Barão de Montesquieu (18-1-1689 a 10-2-1755). Direito Civil CURIOSIDADE A revolução francesa (1789), marcou a divisão entre a Idade Moderna e a Contemporânea. A França vivia sob o governo absolutista do monarca rei Luís XVI, o qual personificava em si mesmo o Estado, reunindo portanto a autonomia dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A população daquela época na estrutura do Estado Absolutista se representava por três classes sociais: a) Os bispos de alto Clero, identificados como o primeiro Estado; b) A nobreza, ou aristocracia francesa, identificada como segundo Estado, e c) Burguesia, que contava com apoio de membros do baixo clero, comerciantes, empresários, banqueiros, trabalhadores urbanos e camponeses. O terceiro estado, conhecido por “burguesia”, representava 97% (noventa e sete por cento) da França. Influenciados pelo pensamento iluminista e motivados pela crise financeira, falta de modernização econômica e desinteresse pelo investimento no setor industrial, os burgueses deflagraram a Revolução, tomando à força a Bastilha no dia 14 de julho de 1789. No esforço de combater a Revolução, o Rei Luis XVI pediu apoio à monarquia austríaca e prussiana, sendo que no ano de 1792, a Áustria invadiu a França, quando o Rei declarou guerra. Ocasião em que a burguesia aproveitou para exterminar a corte, decapitando o rei Luís XVI e sua esposa Maria Antonieta, os quais ostentavam um luxo absurdo com suas festas e gastos incompatíveis e que contribuía significativamente com a crise econômica. A crise social contribuiu com a crise econômica e culminou na crise política com a mutação do paradigma de Governo através da Revolução. Após lograr êxito no golpe do 18 de Brumário (1799), Napoleão Bonaparte, um ano depois, pela nova Constituição promulgada, assumiu o cargo de cônsul vitalício. Entre seus esforços de unificação do Estado francês reabilitou a Igreja Católica, promovendo reformas no clero, controlando-a até a instituição do Código Civil (1804). O Código Civil da era do imperador Napoleão Bonaparte (1804) foi um avanço estupendo para sua época, tanto que, pela sua complexidade, serviu de base para o Direito Constitucional e Internacional moderno em todo mundo. O referido Código se preocupava muito em garantir a liberdade ampla e o irrestrito direito de contratar (autonomia de vontade), enfatizando também a defesa ao direito de propriedade. Isto porque naquele período se compreendia que a lei seria suficiente para demonstrar o desejo do Estado. O contrato, por sua vez, consentido pelas partes, passava a fazer lei entre elas (pacta sunt servanda). Para a elaboração do Código francês, os estudiosos juristas de Napoleão buscaram inspiração na inteligência do Código Justiniano, do Corpus Juris Civilis e das institutas, que apresentam noções gerais, definições e classificações em três temas: pessoas, coisas e ações. Assim, o Código Napoleão apresentava uma parte preliminar, que tratava das regras de publicação e da não retroatividade das leis; o livro primeiro, que tratava das pessoas; o segundo livro, de bens, e o terceiro livro, de aspectos ligados à aquisição da propriedade. Como se pode observar, o Estado Liberal marcou profundamente o Direito Civil por permitir com a codificação sistematizá-lo. Entretanto, tinha o viés patrimonialista, haja vista a preocupação do Código Civil francês em estabelecer a máxima liberdade de contratar e a autonomia na defesa dos bens e da propriedade. 23 BIBLIOTECA CODE CIVIL DES FRANÇAIS – Disponível em <http://www. assemblee-nationale.fr/evenements/code-civil-1804-1.asp>. Acesso em 26 fev. 2015. VOCABULÁRIO pacta sunt servanda: Brocardo do latim que quer dizer: “os pactos devem ser respeitados”, “os acordos devem ser cumpridos”. COMENTÁRIO Estado Liberal: O Estado Liberal sucedeu o Estado Absolutista. O liberalismo se refere ao período do Estado Liberal, que foi marcado pela liberdade e autonomia dos indivíduos, que se configurava na defesa dos bens e de sua propriedade. ComENTário ORDENAÇÕES FILIPINAS – As Ordenações Filipinas, foram compostas pela junção das Ordenações reais, as quais surgiram em 1595 no reinado de Felipe I. Contudo só vieram a entrar em vigor em1603, já no reinado de Felipe II. As Ordenações Filipinas foram compostas aproveitando o que já havia nas Ordenações Reais anteriores, ou seja, sintetizou de modo a ajustar os textos das Ordenações Afonsinas de 1446, das Ordenações Manuelinas de 1521, e outras legislações extravagantes da época do reinado de Felipe. As Ordenações Filipinas não buscavam inovar, mas consolidar o que já existia, surgiram como um resultado do domínio castelhano. As Ordenações Filipinas tratavam de regular diversos ramos do direito, incluindo o público e o privado, dividia-se em cinco livros, dispondo dos temas na seguinte ordem: Livro I – O Direito Administrativo e a Organização Judiciária, Livro II – O Direito dos Eclesiásticos, do Rei, dos Fidalgos e dos Estrangeiros, Livro III – O Processo Civil, Livro IV – O Direito Civil e o Direito Comercial e no Livro V – O Direito Penal e o Direito Processual Penal. Não havia igualdade entre as pessoas, fato notório pela existência do Livro II. 1.8 o CÓDiGo CiviL BrASiLEiro O Brasil, no período colonial, era regido pelo sistema jurídico vigente em Portugal, quando então vigiam as Ordenações Filipinas1 que tratavam de todos os aspectos jurídicos do país, desde a proclamação da independência em 1822, até o dia 1º de janeiro de 1917, quando entrou em vigor o Código Civil (1916) elaborado pelo jurista Clóvis Beviláqua. Antes do Código Civil de 1916, a Constituição de 1824 previa a elaboração de um Código Civil, cuja tarefa, de início, fora confiada ao jurista Augusto Teixeira de Freitas, apresentada sob o nome de “ConSolidação das Leis Civis”2. O referido esboço do Código Civil continha cinco mil artigos e não foi aceito por críticas da comissão revisora, que culminaram em desestimular o jurista a continuar. Entretanto, o esboço de Teixeira de Freitas influenciou o Código Civil Argentino. Com efeito, somente após a proclamação da República do Brasil (1889) é que foi possível concluir o nosso primeiro Código Civil (1916), por Clóvis Beviláqua, o qual sofreu forte influência da Escola dos Pandectas. O Código Civil (1916) era precedido por uma pequena lei, a LICC, Lei de Introdução ao Código Civil, que na realidade ao longo de décadas serviu como parâmetro de interpretação de todas as leis brasileiras. Após o texto da LICC, o Código Civil surgia trazendo a parte geral, que apresentava princípios gerais aplicáveis aos livros da Parte Especial. A exposição de motivos do Código Civil (2002) vigente, demonstra os objetivos da lei na ocasião em que o referido Diploma fora publicado. O direito se realiza, em atenção às necessidades da sociedade de sua época, por isto é imprescindível que quem estuda o direito busque compreender sua evolução histórica, e sua incidência no espaço e no tempo. A comissão de juristas foi nomeada em 1967, sob a supervisão de Miguel Reale, sendo que o projeto do Código Civil veio a ser aprovado somente em 1984, após o cuidadoso debate e estudo de suas 1.063 emendas, apresentando seu texto final consolidado com cerca de 2.046 artigos. Faziam parte da comissão conhecidos e renomados nomes do direito brasileiro, sendo José Carlos Moreira Alves (São Paulo) destinado a escrever sobre a Parte Geral, Agostinho de Arruda Alvim (São Paulo), Direito das Obrigações, Sylvio Marcondes (São Paulo), Direito de Empresa, Ebert Vianna Chamoun (Rio de Janeiro), Direito das Coisas, voCABuLário Exposição de motivos é a justificativa temporal histórica que demonstra os pontos importantes da alteração pela legislação introduzida no ordenamento jurídico. 1. BRASIL. SENADO FEDERAL. Biblioteca Digital do Senado. Código Philippino, ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. Disponível em <http://www2. senado.leg.br/bdsf/handle/id/242733. 2. BRASIL. SENADO FEDERAL. Biblioteca Digital do Senado. FREITAS, Augusto Teixeira de. A consolidação das leis civis. Disponível em <http://www2. senado.leg.br/bdsf/item/id/242360. 24 Direito Civil Clóvis do Couto e Silva (Rio Grande do Sul), Direito de Família e Torquato Castro (Pernambuco), Direito das Sucessões. Os juristas buscaram manter a estrutura e as disposições do Código Civil anterior (1916), ajustando aos valores sociais e éticos com atenção à jurisprudência e legislação da época, olhando para o futuro. Elaborado de modo a facilitar sua compreensão e uso prático, tornou-se muito mais didático que o Código Civil de 1916, desligando-se também da visão individualista, que brindava o cunho patrimonialista, inquinando-se a zelar pela socialização e por valorizar mais a dignidade da pessoa humana. Entre suas características marcantes, enfaticamente citadas na exposição de motivos da lei, o Código Civil (2002) buscou unificar o direito das obrigações, exclui matéria de ordem processual e adota o sistema de cláusulas gerais, permitindo ao juiz uma margem mais flexível de interpretação para proferir suas decisões a cada caso em concreto. A ESTRUTURA DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO 1.9 1.9.1.Da Evolução Histórica da Codificação Civil Observando o quadro abaixo, notamos a evolução histórica da codificação civil no Brasil. As Ordenações Filipinas, que regiam Portugal desde 1603, regulavam também o Brasil-Colônia, tratando de aspectos ligados a outras áreas do direito e organização judiciária: AS ORDENAÇÕES FILIPINAS LIVRO I Direito Administrativo e Organização Judiciária LIVRO II Direito dos Eclesiásticos, do Rei, dos Fidalgos e dos Estrangeiros LIVRO III O Processo Civil LIVRO IV O Direito Civil e o Direito Comercial LIVRO V O Direito Penal e o Processo Penal É possível identificar sem nenhuma dificuldade o alto grau de distinção que se fazia dos indivíduos, e a consolidação do poder da monarquia, no sistema jurídico imposto pelo sistema Brasil-Colonial, pois 25 COMENTÁRIO A ESCOLA DAS PANDECTAS – Na busca de interpretar o direito, surgiram várias escolas. Pandectas era o nome grego que se dava ao Digesto, expressão latina que se traduz como “pôr em ordem”, nome do antigo Corpus Juris Civilis, código estabelecido no Direito Romano por Justiniano. O curioso é que na interpretação jurídica dos casos, a Alemanha passou a admitir a aplicação do direito romano, não através do Legislativo, mas pelo direito consuetudinário, pela prática comum de aplicação dos juristas, os pandectas, que se valiam desse regramento para fundamentarem suas decisões e pareceres. CiNEmATECA “Danton, o processo da revolução” (direção de Andrzej Wajda, 1982). O filme retrata a situação econômica da França, quatro anos após a Revolução Francesa. as leis administrativas, a organização judiciária, os direitos do rei, dos fidalgos, dos estrangeiros e até mesmo os direitos civis, comerciais, o direito penal e o processo penal, ficavam sob o seu comando e supervisão. Conforme já estudamos, por influência da Revolução Francesa, a codificação civil brasileira adotou valores do Estado Liberal, inspirando-se Clóvis Beviláqua na estrutura do Código de Napoleão para construção do nosso Código Civil de 1916. O Código de Napoleão, como conhecido ficou o Código Civil Francês (Code Civil des Français), trazia em sua estrutura quatro livros, sendo o primeiro deles um título preliminar que procurava descrever o efeito das leis no espaço tempo: Code Civil des Français 1804 – Código Civil Francês – Código de Napoleão PRELIMINAR Arts. 1º a 6º Da publicação, dos efeitos e da aplicação das leis em geral LIVRO I Arts. 7º a 515 Das pessoas LIVRO II Arts. 516 a 710 Dos bens e das modificações da propriedade LIVRO III Arts. 711 a 2302 Dos modos de aquisição da propriedade O Código Civil de 1916, Lei n. 3.071/1916, sob a supervisão do jurista Clóvis Beviláqua, sofreu influência do iluminismo, adotando valores do Estado Liberal, com um viés burguês e patrimonialista, por força da Revolução Francesa, inspirando-se também no Código de Napoleão, trazia ainda a compreensão oitocentista de que o Código representava o sistema jurídico em completude (fechado). Tinha três pilares: a família, a propriedade e o contrato. Antes do seu texto, era precedido pela LICC – Lei de Introdução ao Código Civil, uma pequena lei de 21 artigos que identificava o início da vigência, a obrigatoriedade, a integração, a interpretação e aplicação das Normas no Tempo e no Espaço: CÓDIGO CIVIL 1916 – Clóvis Beviláqua LICC Arts. 1º a 21 Introdução PARTE GERAL LIVRO I Arts. 2º a 42 Das Pessoas LIVRO II Arts. 43 a 73 Dos Bens LIVRO III Arts. 74 a 179 Dos Fatos Jurídicos PARTE ESPECIAL LIVRO I Arts. 180 a 484 Do Direito de Família LIVRO II Arts. 485 a 862 Do Direito das Coisas LIVRO III Arts. 863 a 1.571 Do Direito das Obrigações LIVRO IV Arts. 1.572 a 1.805 Do Direito das Sucessões Arts. 1.806 e 1.807 Disposições Finais 26 Direito Civil O Código de 1916 teve influência predominantemente francesa (individualismo quanto conteúdo do Código), além da influência germânica (quanto à estruturação formal do Código). No revogado Código Civil havia uma parte geral, tal qual a codificação alemã – BGB (O Código dos franceses não tem parte geral). Aquele Diploma legal adotava a ideia da codificação total, de completude. Deste modo, o Código Civil era uma lei considerada completa, não precisava de leis especiais. Ao analisarmos comparativamente os Códigos Civis de 1916 e 2002, devemos ressaltar suas diferenças, em razão dos momentos históricos de cada século (XIX e XX). Houve a influência também da reforma das situações jurídicas, novos fatores sociais como o advento da Lei do Divórcio (n. 6.515/77); Lei dos Conviventes (n. 9.278/96) e a Lei do Inquilinato (n. 8.245/91). E claro, primordialmente, a Constituição Federal de 1988. Reportando-nos ao Código Civil vigente, este conservou sua estrutura semelhante, tanto na parte geral quanto na especial. Adicionou as obrigações mercantis (comerciais) às cíveis. Prestigiou os microssistemas, cedendo a diversas influências do Código de Defesa do Consumidor. No tocante a sua recodificação, prestigiou as matérias e as interpretações consolidadas a partir do Código Civil de 1916. O Código Civil de 2002 não foi uma obra solo, mas teve a participação de juristas de diversas regiões do Brasil, que ocuparam diferentes papéis como operadores do direito (magistrados, advogados e professores de direito), por conta do notável saber jurídico, houve quatro versões iniciais do projeto, publicadas na imprensa oficial (1972, 1973,1974 e 1975). Sob a supervisão de Miguel Reale, o qual esclareceu que a iniciativa de um novo Código Civil não surgiu de repente, mas foi consequência de duas tentativas anteriores que já demarcaram as condições que deveriam ser evitadas ou, então, complementadas. Não houve a intenção de unificar o Direito Privado em um só Código, como erroneamente se pensa; o intento era consolidar e aperfeiçoar o que já era seguido no país. Se refere à superação do Código Comercial de 1850 e às questões comerciais que por ele não eram mais abrangidas, o que forçava os juízes a se socorrerem no Código Civil de 1916, situação que provocou a necessidade de adequação da parte que tratava das obrigações. Então, deixou-se de lado a ideia de fazer um Código das Obrigações em separado, aproveitando o trabalho já desenvolvido naquele sentido pelos juristas Hahneman Guimarães, Orozimbo Nonato e Philadelpho de Azevedo, desempenhado no anteprojeto do Código das Obrigações; e, depois, do trabalho realizado por Orlando Gomes e Caio Mário da Silva Pereira, quando da proposta de elaboração separada de um Código Civil e de um Código das Obrigações, contando com a colaboração, neste caso, de Silvio Marcondes, Theóphilo de Azevedo Santos e Nehemias Gueiros. Optar pelo aproveitamento do trabalho já realizado daqueles juristas foi o motivo da alteração da ordem da matéria. 27 Como bem se pode notar, o Código atual, levou em consideração a realidade de uma sociedade de natureza agrária, começando a tratar do Direito de Família, passando pelo Direito de Propriedade e das Obrigações, até chegar ao das Sucessões. CÓDIGO CIVIL 2002 – Miguel Reale PARTE GERAL LIVRO I Arts. 1º a 78 Pessoas LIVRO II Arts. 79 a 103 Bens LIVRO III Arts. 104 a 232 Fatos Jurídicos PARTE ESPECIAL LIVRO I Arts. 233 a 965 Direito das Obrigações LIVRO II Arts. 966 a 1.195 Direito de Empresa LIVRO III Arts. 1.196 a 1.510 Direito das Coisas LIVRO IV Arts. 1.511 a 1.783 Direito de Família LIVRO V Arts. 1.784 a 2.027 Direito das Sucessões Livro Complementar Arts. 2.028 a 2.046 Disposições finais e transitórias A antiga LICC – Lei de Introdução ao Código Civil, instituída pelo Decreto-Lei n. 4.657/42, por muito tempo serviu como tábua rasa de auxílio a todas as demais normas do direito brasileiro, deixando de se tratar apenas de introdução ao Código Civil. Passou então a ser chamada de LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por alteração legislativa introduzida pela Lei n. 12.376/2010, desaparecendo da parte introdutória do Código Civil novo. A Parte Geral passou a enunciar os direitos e deveres gerais da pessoa humana e estabelecer pressupostos gerais da vida civil. Na Parte Especial, disciplina as obrigações que emergem dos direitos pessoais. Pode-se dizer que, enunciados os direitos e deveres dos indivíduos, passa-se a tratar de sua projeção natural, que são as obrigações e os contratos. O direito obrigacional traz extensa essa disciplina, diante da necessidade de tratar as questões já não abrangidas pelo Código Comercial de 1850, unificando as obrigações civis com as obrigações empresariais, termo adotado preferencialmente por Miguel Reale, pois a atividade econômica não se assinalava mais pelos atos de comércio de outrora, tendo uma projeção maior, por relevantes aspectos de natureza industrial ou financeira. Após o Direito das Obrigações, o Código Civil de 2002 trouxe uma parte nova, que é o Direito de Empresa, também no sentido de atender às necessidades de uma norma que pudesse regular situações em que as 28 Direito Civil pessoas se associam e se organizam a fim de, em conjunto, dar eficácia e realidade ao que pactuam. Sem dúvida nenhuma esta foi uma inovação inigualável, por não existir codificação semelhante. O próximo livro trata do Direito das Coisas, trazendo para o Direito Real uma nova forma de identificar o conceito de propriedade, já sob a influência do princípio constitucional, que empresta função social à propriedade, abandonando o conceito burguês anterior em que primava o interesse exclusivo do indivíduo, do proprietário ou do possuidor. Concluído o livro do Direito das Coisas, surge o Livro do Direito de Família, seguido do Livro do Direito das Sucessões. Aqui outro ponto que merece destaque, pois trouxe alteração relevante na estrutura do código, a qual não encontra símile na codificação dos demais países. A Comissão trabalhou no sentido de buscar preservar e respeitar o trabalho intelectivo do saber jurídico que construiu a estrutura do sistema civil, mantendo a mesma disposição da Parte Geral do Código Civil, conquistada desde Teixeira de Freitas, organizando a matéria em coerência lógica com as recentes codificações3. Excluiu a matéria de ordem processual, restringindo-se apenas aquelas que profundamente ligadas à natureza material. 1.9.2.O Sistema Misto – as Cláusulas Gerais e os Conceitos Vagos A estrutura ideal de um sistema jurídico dotado de cláusulas gerais é aquela que se admite incompleta, aberta e com mobilidade em certas áreas (novo pensamento sistemático). Para que as cláusulas gerais ocupem sua função, demandam flexibilidade do sistema. Desse modo, o sistema deve ser aberto ou elástico o suficiente para permitir o melhor desempenho de suas cláusulas gerais. Segundo muitos autores, o Código Civil Brasileiro de 2002 seria caracterizado, então, como um sistema misto, eis que constituído por uma parcela de disposições rígidas, por meio das quais o legislador lançou mão do método casuístico, que obriga o aplicador da norma a valer-se do método lógico-subsuntivo, e outra parcela de disposições flexíveis, típicas de um sistema aberto e móvel, possibilitando a incidência de cláusulas gerais. Adotou a possibilidade do uso das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados ou vagos, através da linguagem, como forma de flexibilização do sistema jurídico, dilatando ao juiz a possibilidade de interpretação para aplicação da norma ao caso concreto. Desprendendo- 3. BRASIL, SENADO FEDERAL. Biblioteca Digital do Senado. Quadro comparativo entre o novo Código Civil e o Código Civil antigo. Disponível em < http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70309/704509.pdf?sequence=2 > . Acesso em 30 mar. 2015. 29 -se do falso conceito que existia quanto à completude do sistema jurídico positivado em Código, a mudança na técnica legislativa, incluindo cláusulas gerais e conceitos vagos, permitiu a abertura ao sistema jurídico, tornando-o de fechado em misto, o que quer dizer que não é aberto, mas apenas permite sua abertura quando diante de um caso concreto aplicável. Esta técnica pós-moderna surgiu das transformações que ocorreram após a Revolução Industrial; diante das enormes mudanças ocorridas na sociedade, não havia mais condições de manter a antiga estrutura tradicional, atendendo muito melhor a integração do sistema jurídico através das cláusulas gerais. Judith Martins-Costa descreve como a linguagem empregada permite que a codificação funcione como um sistema aberto, facilitando a constante incorporação de soluções de novos problemas, pela jurisprudência ou por atividades de complementação legislativa. A jurista afirma que as cláusulas gerais são como janelas deixadas pelo legislador civil em razão da mobilidade da vida: “Estas janelas, bem denominadas por Irti de ‘concetti di collegamento’, com a realidade social são constituídas pelas cláusulas gerais, técnica legislativa que conforma o meio hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos ainda não expressos legislativamente, de standards , arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos metajurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo. Nas cláusulas gerais a formulação da hipótese legal é procedida mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significado intencionalmente vagos e abertos, os chamados ‘conceitos jurídicos indeterminados’. Por vezes, e aí encontraremos as cláusulas gerais propriamente ditas – o seu enunciado, em vez de traçar pontualmente a hipótese e as consequências, é desenhado como uma vaga moldura, permitindo, pela vagueza semântica que caracteriza os seus termos, a incorporação de princípios e máximas de conduta originalmente estrangeiros ao corpus codificados, do que resulta, mediante a atividade de concreção destes princípios, diretrizes e máximas de conduta, a constante formulação de novas normas”. A utilização de cláusulas gerais é uma técnica legislativa que permite fazer uso de normas formuladas a partir do uso de conceitos jurídicos indeterminados. A vagueza de conteúdo semântico possibilita a incorporação, no momento da aplicação do direito, de valores filosóficos, sociológicos e econômicos. 30 Direito Civil JURISPRUDÊNCIA Tribunal de Justiça de Minas Gerais Segundo Rodrigo Reis Mazzei, existem três espécies de cláusulas gerais no Código Civil de 2002: 1. Cláusulas gerais restritivas – que restringem em certas situações o âmbito de um conjunto de permissões advindas da regra ou princípio jurídico. Por exemplo: a liberdade de contratar está restrita à função social do contrato (CC, art. 421)4; 2. Cláusulas gerais regulativas – que regulam com base em um princípio, hipóteses de fato ou não previstas em lei. Por exemplo: a regulação da responsabilidade civil por culpa (CC, arts. 927 e 943), e 3. Cláusulas gerais extensivas – que ampliam a regulação jurídica, permitindo a introdução de princípios e regras de outros textos normativos. Por exemplo: O que dispõe o Código de Defesa do Consumidor (artigo 7º)5. 1.9.3.Os Princípios Norteadores do Código Civil Miguel Reale também se preocupou em dar ao Código Civil de 2002 princípios norteadores básicos, os quais deverão ser sempre observados, por serem considerados valores essenciais, são eles: a) Princípio da Eticidade; b) Princípio da Socialidade; e c) Princípio da Operabilidade. Quanto à eticidade, procurou-se superar o apego ao formalismo jurídico, conservando as conquistas das técnicas jurídicas (normas genéricas ou cláusulas gerais), sem a preocupação com o rigorismo conceitual, buscando com ênfase proteger a pessoa humana, priorizando a boa-fé, a justa causa, a equidade e outros critérios éticos. No que tange a sociabilidade, buscou-se afastar o caráter individualista da lei, priman- 4. Código Civil, art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 5. Código de Defesa do Consumidor, art. 7º – Os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade. Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo. 31 “Neste sentido, NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA ANDRADE NERY anotam: “A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como exigência de comportamento leal dos contratantes.” (Código Civil Anotado e legislação extravagante, Saraiva, 2ª Edição, 2003, p. 340-341). Apelação Cível n. 1.0024.04.262215-9/001, rel. Des. Tarcísio Martins Costa, j. 6.3.2007). ComENTário oS TrÊS TiPoS DE DiáLoGoS DAS foNTES: Para o Ministro João Otávio de Noronha, no entendimento de Claudia Lima Marques, existem três tipos de diálogo das fontes entre o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor: 1) o diálogo sistemático de coerência – a aplicação simultânea das duas leis; 2) a incidência coordenada de duas leis – quando uma lei pode complementar a aplicação de outra, conforme o caso concreto, valendo também aos princípios; 3) o diálogo de influências recíprocas com uma possível redefinição do campo de aplicação de uma lei. Exemplo: definição de consumidor stricto sensu e a de consumidor equiparado, que pode sofrer influência finalística do Código Civil. NORONHA, João Otávio. Crise de fontes normativas: Código Civil x Código de Defesa do Consumidor. Disponível em <http:// www.editorajc.com.br/2011/10/ crise-de-fontes-normativas-codigo-civil-x-codigo-de-defesa-doconsumidor-parte-1/>. Acesso em 22 mar. 2015. do pelo predomínio do social, dos valores coletivos sobre os individuais (surge então a função social nos direitos: posse, contrato, propriedade, etc.). A operabilidade busca as soluções simples que se estabeleçam de modo a facilitar a interpretação e aplicação e dar maior efetividade ao operador do direito. Característica que permeia o Código Civil, tornando-o mais didático e prático. Deste modo, o sistema jurídico misto brasileiro permite que as questões cíveis sejam julgadas conforme cada caso concreto. Isto é possível por conta dos conceitos vagos, que para obterem a melhor aplicação diante de casos em que exista dúvida ou lacuna interpretativa, permite a aplicação das cláusulas gerais, sempre primando por manter o respeito aos princípios norteadores do Código Civil. Ainda estudaremos, logo adiante, as regras de interpretação da norma jurídica para a correta aplicação do direito em cada caso, por meio da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. 1.10 o CAmPo DE iNCiDÊNCiA Do CÓDiGo CiviL O campo de incidência do Código Civil se refere a área que abrange o seu alcance. Conforme pudemos aprender durante o estudo da estrutura do Código Civil, no seu Livro Geral, cuida das situações que envolvem o direito subjetivo relacionado às pessoas, aos bens e aos fatos jurídicos. Na Parte Especial, desenvolve a regulação do direito das obrigações, do direito empresarial, do direito das coisas, do direito de família e, finalmente, do direito das sucessões. Ao entrar em vigor, o Código Civil de 2002 provocou mudanças não apenas em relação ao direito das obrigações. Além das mudanças que já apontamos nos dois últimos tópicos de estudo, Rosa Maria de Andrade Nery6 esclarece que a legislação civil vigente revogou a Parte Primeira do Código Comercial (arts. 1º a 456), poupando apenas sua Segunda Parte (Arts. 457 a 796), que cuida do Comércio Marítimo. 6. NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado. Editora RT: São Paulo, 2008, p. 81. 32 Direito Civil Em razão da vigência anterior do Código de Defesa do Consumidor, cogitou-se uma crise das fontes (Código Civil e Código de Defesa do Consumidor), contudo a doutrina superou este entendimento ao compreender possível a coexistência de ambas, contribuindo neste sentido o esclarecimento de Claudia Lima Marques, quando trouxe ao Brasil a teoria do diálogo das fontes de seu orientador e mestre alemão, Erik Jaime7. Entretanto, não se pode esquecer que o Código Civil de 2002 conserva a possibilidade de servir como fonte subsidiária do direito, ou seja, trata-se de fonte de integração da norma jurídica, aplicável quando houver alguma lacuna de norma, utilizado como instrumento de integração interpretativa do juiz, ao julgar o caso concreto. Estudaremos mais detidamente esta atividade do juiz, quando observarmos o contido na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Como se pode notar, o uso do Código Civil como fonte de integração da norma jurídica pelo juiz, sem dúvida nenhuma, dilata aumentando ainda mais o seu campo de incidência. O Direito Civil, ao longo de sua história no mundo romano-germânico, sempre ocupou um lugar normativo privilegiado, e ao seu lado as normas do direito civil, como pudemos perceber, são as mais antigas formas de regulação das relações interpessoais da sociedade, transcendendo as mudanças sociais, políticas e econômicas ao longo dos séculos. Diante desta condição inegável, que descreve sua robusta e portentosa composição ao longo dos séculos, o direito civil sempre forneceu as categorias, os conceitos e classificações que consolidaram diversos ramos do direito público, inclusive o constitucional. A migração do Estado Liberal para o Estado Social a partir do século XX, pode ser percebida pela intervenção estatal nas relações privadas. No Estado Social, passou a ocorrer uma mitigação da amplitude da autonomia da vontade, restringindo condicionalmente a autonomia privada para garantir os interesses dos mais fracos, pela influência dos direitos fundamentais e direitos humanos que surgiram após a Segunda Guerra Mundial. Pessoas, Bens e Fatos Jurídicos • Arts. 1º a 103 CC Obrigações, Empresa, Coisas, Família e Sucessões • Arts. 104 a 2.027 CC Aplicação Subsidiária • Fonte de integração 7. NORONHA, João Otávio. Crise de fontes normativas: Código Civil x Código de Defesa do Consumidor. Disponível em <http://www.editorajc.com.br/2011/10/ crise-de-fontes-normativas-codigo-civil-x-codigo-de-defesa-do-consumidor -parte-1/>. Acesso em 22 mar. 2015. 33 CINEMATECA Veja “O mercador de Veneza” (direção de Michael Radford, 2004); observe que no contrato da época figurava a autonomia da vontade, não a autonomia privada. Compare a diferença na visão de direito no Estado Liberal para o Estado Social. CURIOSIDADE A autonomia da vontade trazia o conceito de que uma vez manifestada a vontade, como por exemplo, em um contrato assinado, deveria ela ser obedecida. Este era o conceito do Estado Liberal, fazer garantir a liberdade plena, enquanto, na autonomia privada, o Estado intervém sempre que a vontade das partes expressa no contrato vier a ofender o ordenamento jurídico. Desse modo, se existir um valor resguardado pelo ordenamento, não podem as partes usar de tal liberdade de contratar para tornarem válido o contrato. Exemplo: locador que aluga imóvel e faz contrato, sendo o objeto da locação uso industrial que ofende ao meio ambiente. Pode o Estado intervir e tornar sem efeito o contrato, por ofensa a preceito de ordem pública. VOCABULÁRIO Infraconstitucional: é a legislação que está abaixo da Constituição. CINEMATECA O julgamento de Nuremberg. O filme retrata de modo claro, com cenas reais, o motivo que provocou a existência do personalismo ético. AUTOR KARL LARENZ (1903 a 1993). Jurista alemão que foi professor nas duas mais importantes universidades da Alemanha: Kiel e Munique. Dedicava-se ao estudo do Direito Civil, tendo publicado diversas obras jurídicas. Entre suas obras mais importantes, além do estudo da jurisprudência e valores, trouxe o conceito de personalismo ético. CLAUS-WILHELM CANARIS (01-07-1937). Notável jurista alemão, nascido em Liegnitz, que identificou as lacunas na lei. Professor e doutrinador com 16 livros publicados em diversos países, além de mais de 180 artigos científicos. Por sua destacada atuação e contribuição jurídica e filosófica com o Brasil, recebeu em 2012 o título de doutor honoris causa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Sobre o tema sugerimos a leitura de: CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha, p. 225. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 206-207. 1.11 O DIREITO CIVIL E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 1.11.1. O Personalismo Ético e a Dignidade Humana Após a Segunda Grande Guerra Mundial, em razão da consciência em defesa da humanidade provocada pela reflexão quanto às atrocidades cometidas contra os seres humanos nos campos de concentração nazistas, foi proclamada a DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos (10-12-1948), através da Assembleia Geral das Nações Unidas, tornando a defesa desses ideais a principal tarefa da ONU – Organização das Nações Unidas, a qual pactuou em consenso com diversos Estados o esforço comum mundial no sentido de tornar claro que a dignidade é inerente a todos os membros da família humana, e que todo ser humano tem direitos iguais e inalienáveis à liberdade, à justiça e à paz8. De acordo com Karl Larenz9, rompe-se assim com o antigo o paradigma patrimonialista, o qual adotava o contrato e a propriedade como meio para efetivação dos direitos individuais, passando a firmar-se o direito das pessoas na sua própria existência, pelo simples fato de se tratar de pessoa humana, de onde decorre o novo paradigma, conhecido como personalismo ético. Portanto, o ordenamento jurídico deslocou o foco de valores do viés individual patrimonialista, que conservava o Estado Liberal, para o viés da valorização da pessoa humana, passando o Estado Social a garantir a preservação do direito à dignidade da pessoa humana como garantia fundamental, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Na visão antiga, sob influência do iluminismo, o homem só era compreendido como um indivíduo. Para o homem exercer seus direitos privados, tinha maior relevância aquele que tivesse seu direito amparado por um contrato, pela posse ou em razão do direito de propriedade. Esta nova visão do pensamento jurídico pós-Grande Guerra rompeu definitivamente com o modelo patrimonialista. Claus-Wilhelm Canaris esclarece que, a partir de então, quase todo ordenamento jurídico do mundo moderno passou a instituir a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos por meio de Constituições, organizando sua legislação hierarquicamente, passando tais valores a incidirem efeitos no Direito Privado e em toda legislação infraconstitucional e na jurisprudência. No personalismo ético, todo homem deve ser percebido como pessoa, ser da espécie humana, e por isto digno é de atenção do Estado So- 8. UNESCO. Declaração Universal dos Direito Humanos, 1948. Disponível em <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf>. Acesso em 26 fev. 2015. 9. LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Tradução de Miguel Izquierdo y Macías. Picavea. Madri:Ed. Revista de Derecho Privado, 1978. § 2º. 34 Direito Civil cial, independentemente de estar questionando judicialmente proteção de direito contra outra pessoa ou ente privado em defesa de contrato, posse ou propriedade. A pessoa enquanto ser da espécie humana (personalismo ético) prevalece sobre o antigo paradigma do ter (patrimonialismo). Dentro desta compreensão, emergiu como garantia fundamental a todos cidadãos brasileiros o princípio da dignidade da pessoa humana, através do qual se contempla a evolução social histórica do personalismo ético, um dos pilares básicos de nosso Estado Democrático de Direito (descrito no inciso III do artigo 1º da Carta Magna de 1988). Com a constitucionalização ocorrendo em diversos países, observa-se que as normas buscam uma natural reorganização, em razão da mudança dos seus valores fundamentais, no sentido de repor a pessoa humana como centro do direito civil; esta trajetória de emancipação humana, chamam os doutrinadores de repersonalização dos direitos civis. Desse modo, o Estado Social passou a dar maior relevância à solidariedade e à função social dos institutos (propriedade, contrato, responsabilidade civil, família e empresas) para atender melhor à tutela dos mais fracos, delimitando a autonomia privada por meio da intervenção estatal com aplicação direta e dos direitos fundamentais às relações privadas, sempre que necessário. Por força dessa influência da Constituição sobre as relações civis, o legislador passou a criar diversas outras normas infraconstitucionais específicas, que tratam com certa autonomia de questões de ordem pública envolvendo direitos transindividuais (O Estatuto da Criança e Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso, etc.). Paulo Luiz Netto Lobo explica que esta atividade intervencionista do Estado em defesa dos direitos constitucionais dos cidadãos foi responsável por subtrair do Código Civil matérias inteiras, em alguns casos transformadas em ramos autônomos do direito, como, por exemplo: o direito do trabalho, o direito agrário, o direito das águas, o direito da habitação, o direito da locação de imóveis urbanos, como já citamos, o estatuto da criança e do adolescente, o direito do consumidor, os direitos autorais, entre outros. Este movimento legislativo que de certo modo provocou algum esvaziamento das matérias e do campo de incidência do Código Civil, movido pelo impulso dos novos valores sociais, na proteção dos direitos da pessoa humana, alguns juristas chamam também de descodificação do direito civil. Então, este fenômeno também citado como constitucionalização do direito civil poderia ser visto como uma elevação dos princípios fundamentais do direito civil, ao plano constitucional, condicionando-os à observância de todos os cidadãos e à aplicação, pelos tribunais, da legislação infraconstitucional. Nota-se com facilidade que existe de fato um esforço por acomodar estes novos valores que se pautam na defesa da pessoa humana, o que tem provocado uma verdadeira reconstrução da regulação das relações civis, impondo uma nova leitura do Código Civil à luz da Constituição Federal de 1988. São inúmeros os nomes que podem retratar este fenômeno, entre eles: repersonalização do direito civil, despatrimo35 CURIOSIDADE Teoria da eficácia horizontal ou irradiante dos direitos fundamentais. Os direitos são transindividuais por zelarem por uma classe específica de cidadãos, independentemente de exprimirem sua vontade. Por exemplo: o Ministério Público tem legitimidade para intervir quando existir interesse das crianças e adolescentes, dos idosos, dos consumidores etc. A organização dessas leis infraconstitucionais, quando apresenta conjunto complexo e capaz de lhe conceder certa autonomia, chama a doutrina de microssistema jurídico. SAIBA MAIS NETTO LOBO, Paulo Luiz. Constitucionalização do direito civil. Revista de informação legislativa. Senado Federal. Brasília, ano 36, n. 141 jan./mar. 1999. nialização do direito civil, constitucionalização do direito civil. A doutrina cogita inclusive a criação de uma nova disciplina ou ramo metodológico do direito, denominada Direito Civil Constitucional, a qual estuda o direito civil à luz da Constituição Federal, tendo como eixo norteador os princípios constitucionais (a dignidade da pessoa humana, Art.1.º, inciso III; a solidariedade social, Art. 3.º, inciso I; a igualdade substancial, Arts. 3.º, inciso IV, e 5.º, caput; a erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais, Art. 3.º, incisos III e IV) (DE FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 19). Nessa linha, temos no elenco quatro categorias de temas da Constituição Federal que irradiam efeitos sobre os direitos civis, sendo que os três primeiros se tornaram princípios constitucionais, conhecidos por: a) princípio da dignidade da pessoa humana; b) princípio da solidariedade, e c) princípio da isonomia ou igualdade. Convém informar que existe projeto no Senado Federal para erigir a erradicação da pobreza a um princípio também; quando isto ocorrer, poderemos afirmar que o Direito Civil Constitucional estuda a influência dos princípios constitucionais sobre o direito civil. Isso porque a erradicação da desigualdade social, de certo modo, já estaria sendo aplicada através da efetividade do princípio da igualdade substancial. Então, embora muito mais jovem que o Código Civil, a Constituição Federal de 1988 passou a influenciar diretamente toda a legislação brasileira, garantindo o exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos. No direito de família, consolidou-se a família núcleo natural e fundamental da sociedade; o princípio da isonomia (igualdade) extirpou as diferenças que haviam entre homem e mulher, entre os filhos havidos no casamento e fora dele. VOCABULÁRIO equidade: traz consigo a ideia de distribuição de modo justo, proporcional e razoável, sob análise do caso concreto. Por força e influência da Constituição Federal de 1988, também o direito passou a estabelecer a função social (da propriedade, do contrato etc.) como meio de controle do Estado Social, garantindo sua intervenção imediata nas relações privadas. A função social deve ser respeitada e, neste sentido, exige determinadas condutas dos sujeitos nas relações civis, sob pena de invalidação do negócio jurídico. A função social permite ao juiz seguir as regras ou cláusulas gerais para resolver a questão através da equidade.No que diz 36 Direito Civil respeito aos contratos, por exemplo, o Código Civil estabelece no Artigo 421 que as partes devem contratar, obedecidos a razão do contrato e os limites da sua função social. Isto quer dizer que não pode uma parte contratar em prejuízo da outra, ou da coletividade, sob pena de abuso de direito. Logo mais à frente, no Artigo 422, isto se demonstra claramente, quando o Estado impõe aos contratantes a obrigação de guardar na execução e conclusão do contrato os princípios da probidade e da boa-fé. Miguel Reale explica que a função social do contrato no Código Civil existe por derivar da Constituição Federal de 1988, que, em seu Artigo 5.º, incisos XXII e XXIII, descreve que o direito de propriedade atenderá sempre a sua função social. As cláusulas gerais do Código Civil, conforme já estudamos, podem ser a) restritivas; b) regulativas e c) extensivas. Ainda com estas categorias em mente, examinemos os artigos 112, 113, 114, 421, 422 e 423 do Código Civil. Tais artigos fornecem critérios interpretativos ao magistrado para que lhe permitam, ao julgar o caso concreto, conservar os princípios da intencionalidade, da probidade e da boa-fé nas relações negociais. CLÁUSULAS GERAIS DO CÓDIGO CIVIL Art. Texto PALAVRAS-CHAVE 112 Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem. PRINCÍPIO DA INTENÇÃO 113 Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. PRINCÍPIO DA BOA­-FÉ OBJETIVA E COSTUMES 114 Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente. INTERPRETAÇÃO RESTRITA negócios gratuitos, doação e renúncia 421 A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. FUNÇÃO SOCIAL 422 Os contratantes são obrigados a guardar assim na conclusão do contrato como em sua execução os princípios da probidade e da boa-fé. PRINCÍPIO DA PROBIDADE E DA BOA-FÉ OBJETIVA 423 Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas e contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente. INTERPRETAÇÃO BENÉFICA AO MAIS FRACO VOCABULÁRIO abuso de direito: ocorre quando o titular de um direito, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, conforme descreve o Art. 187 do Código Civil. COMENTÁRIO Personalismo Ético: Teoria inspirada no pensamento iluminista de Kant, desenvolvida por Karl Larenz, na qual a pessoa deve ser considerada o fim e não o meio, pois não possui um preço. Base fundamental para a construção do princípio da dignidade da pessoa humana adotado pela Constituição Federal de 1988. CURIOSIDADE A aplicação imediata pelo Judiciário dos direitos fundamentais às relações privadas, a doutrina denomina eficácia horizontal dos direitos fundamentais. 37 A influência dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição sobre o Direito Privado recebe vários nomes sinônimos pela doutrina, tais como: constitucionalização do direito civil ou direito privado; descodificação do direito civil; repersonalização do direito privado ou dos direitos civis, despatrimonialização etc. Alguns doutrinadores cogitam ainda o surgimento de um outro ramo do direito: o Direito Civil Constitucional. SAIBA MAIS REALE, Miguel. Função Social do Contrato, 2003. Disponível em http://www.miguelreale.com.br/ artigos. ATENÇÃO Lei Complementar n. 95/98, art. 8º – A vigência da Lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável, para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula "entra em vigor na data da sua publicação" para as leis de pequena repercussão. § 1º – A contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subsequente à sua consumação. 1.12 A LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO 1.12.1. A Interpretação da Norma Jurídica A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei n. 12.376/2010), antiga Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n. 4.657/1942), embora pequena, com apenas dezenove artigos, apresenta diversas regras destinadas a orientar o operador e aplicador do direito: LINDB Arts. 1º e 2º Vigência das normas Art. 3º Obrigatoriedade das normas Art. 4º Integração da norma Art. 5º Interpretação da norma Art. 6º Aplicação da norma no tempo Arts. 7º a 19 Aplicação da norma no espaço A LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro aplica-se na orientação de todas as normas do ordenamento jurídico brasileiro, seja no âmbito Privado ou Público, inclusive no Direito Internacional. 1.12.2. Prazos para Vigência de Lei Os prazos para vigência de uma lei são em regra contados a partir da sua publicação oficial. Ao lapso temporal entre a publicação e a vigência de uma lei chamamos de vacatio legis. A vacatio legis é o prazo razoável para que ninguém alegue a ignorância da lei. Durante a vacatio, a lei existe mas não é obrigatória, contudo para garantir o seu texto integral, será considerada vigente retroativamente desde o dia da sua publicação, após exaurido o lapso da vacatio, conforme esclarece o Art. 8º, § 1º da LC n. 95/98. O prazo para vigência de uma lei no Brasil é de quarenta e cinco dias após sua publicação oficial. Admitindo exceção, quando o próprio texto de lei expressar disposição contrária. Contudo para vigorar no estrangeiro, se aceita a lei, o prazo é de noventa dias a partir da publicação oficial. Toda legislação antes de entrar em vigor passa por um processo, que envolve cinco fases: a) a elaboração; b) a promulgação; c) a publicação; d) a vacatio legis; e e) a vigência. Se vier a ocorrer nova publicação da lei, desde que ainda não tenha entrado em vigor e mesmo que exclusivamente para correção de meros erros materiais, sua obrigatoriedade ficará condicionada a novo período de vacatio, a contar da última publicação. Se a lei corrigida já 38 Direito Civil estava em vigor, será considerada a versão corrigida e última como lei nova (LINDB, Art. 1º, § 4º). VOCABULÁRIO revogar: é retirar a eficácia da lei anterior. A lei nova, em regra, revoga a lei velha. ATENÇÃO A lei temporária, em regra, trará expressamente em seu texto o prazo da sua duração ou da vigência integral. ATENÇÃO LINDB: 1.12.3. A Revogação da Lei Não se tratando de lei temporária, a vigência de uma lei permanece até que outra a modifique ou revogue, este é o princípio da continuidade das leis. 1.12.4. A Vigência Temporária da Lei Examinando o Art. 2º, caput, da LINDB é possível verificar que existem dois tipos de leis, as leis de vigência permanente e as leis de vigência temporária. Em regra, todas as leis são de vigência permanente. No entanto, serão de vigência temporária quando expressamente delas constar: a) prazo de duração; b) condição resolutiva; ou c) se é alcançada sua finalidade. Nestes casos ocorre a caducidade da norma, quando a circunstância torna a norma sem eficácia. 1.12.5. Da Extensão da Revogação da Lei A revogação da lei se divide em duas classes, a primeira refere-se à sua extensão e a segunda quanto à forma de execução. A revogação quanto à I) extensão, pode ser: a) total ou b) parcial. A revogação total, também denominada por ab-rogação, configura-se quando o texto da lei nova sepulta por completo a vigência do texto anterior, sem qualquer ressalva. A revogação parcial, também chamada de derrogação, afeta apenas parcialmente a norma anterior, permitindo que ainda vigore parte do texto legal. Além das duas situações acima, em que temos a perda de eficácia da norma jurídica, cumpre salientar também que o Supremo Tribunal Federal pode afastar vigência das leis que julgar inconstitucionais quando suspensas pelo Senado Federal através do controle difuso de constitucionalidade (art. 52 da CF). 39 – Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. – Art. 2º – § 1º – A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. – Art. 2º – § 2º – A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. – Art. 4º – Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. – Art. 5º – Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. – Art. 2º, § 3º – Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência. – Art. 3º – Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece. VOCABULÁRIO antinomia: trata-se de conflito de normas. Ocorre quando duas ou mais normas dispõem da mesma matéria. Segundo Maria Helena Diniz, a antinomia pode ser real ou aparente. lex derogat legi priori: do latim, lei posterior revoga a lei anterior. 1.12.6. Da Forma de Revogação da Lei Quanto à classe de revogação pela forma de II) execução, pode ser: a) expressa ou b) tácita. A revogação será expressa quando a lei nova descrever de modo expresso que revoga a lei anterior, é o que diz a primeira parte do § 1º do Art. 2º da LINDB. A revogação de forma tácita exige um maior esforço interpretativo do aplicador da norma, pois a situação pode apresentar uma antinomia, ou seja, um conflito de normas (antiga e nova), obrigando-o a adotar certos critérios para a sua solução, como explica Maria Helena Diniz (DINIZ, Conflito de normas. 2009): a) critério cronológico – lex derogat legi priori b) critério hierárquico – lex superior derogat legi inferior, e c) critério especial – lex specialis derogat legi generali. a) Critério cronológico, lex derogat legi priori, é aplicável quando a lei nova for incompatível com a lei anterior ou regule de modo integral a mesma matéria, como se pode notar da segunda parte do § 1º do Art. 2º da LINDB. b) Critério hierárquico, lex superior derogat legi inferiori, prevê a possibilidade de revogação tácita, quando uma lei hierarquicamente inferior cuidar de matéria dita por uma lei de maior grau hierárquico. Por exemplo: A Constituição Federal revogou de forma tácita diversas disposições legais de leis infraconstitucionais. c) Critério Especial – O critério da especialidade ou critério especial, lex specialis derogat legi generali, prevê que a lei especial prevalece sobre a lei geral, revogando-a. Contudo se a lei nova estabelecer disposições gerais ou especiais, a par das já existentes, não revoga, nem modifica a lei anterior. Isto quer dizer que, se a lei nova nada disser sobre a conservação do conteúdo existente em lei anterior, e com aquele texto anterior vier a conflitar sua matéria, poderá ser revogada tacitamente, pela lei especial, ainda que mais velha (critério da especialidade). A coexistência de normas tratando do mesmo assunto é possível, desde que não exista entre elas incompatibilidade. Quando esta surgir, competirá ao aplicador da norma aplicar os critérios para afastar a antinomia. 1.12.7. As Antinomias Os conflitos de normas, que recebem o nome de antinomias, possuem então três critérios para sua solução, conforme já estudamos no que era tratado quanto à revogação tácita da norma. Os critérios cronológico, hierárquico e especial obedecem a mesma lógica já exposta. A antinomia aparente é um conflito que se resolve pelos critérios de modo simples, não trazendo maiores dificuldades. Enquanto a antinomia real não se resolve tão somente pela aplicação dos critérios, sendo necessário aplicar a técnica de integração para lacunas da lei. A antinomia será de 40 Direito Civil primeiro grau, quando um critério for suficiente à resolução do conflito e de segundo grau quando envolver mais outro. 1.12.8. A Repristinação da Lei A repristinação da lei é o fenômeno que permitiria devolver o estado anterior de vigência de uma lei já revogada. Embora nosso ordenamento não permita que uma lei revogada restaure sua vigência, se a lei nova fizer expressa menção à lei revogada (note o art. 2º, § 3º, o qual diz "salvo o contrário...") para que o efeito repristinatório se aplique, isto será possível. 1.12.9. A Obrigatoriedade das Normas A vacatio legis, que se inicia com o período de publicação de uma lei, após seu longo trâmite legislativo, tem a função de dar amplo conhecimento da lei, sendo que a partir de sua vigência a lei opera erga omnes Como se percebe, não se pode alegar ignorância da lei, pois ela possui eficácia global, pelo princípio da obrigatoriedade. Entretanto, de acordo com Rene Gustavo Nicolau, quando excepcionalmente em casos nos quais a ignorância ou errônea compreensão da lei ocorrer, poderá a pena deixar de ser aplicada, nos moldes do que dispõe o Art. 8º do DL n. 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais). Exemplo: emissão de fumaça que impede o motorista de ver a placa de trânsito ou semáforo. 1.12.10. Da Integração da Norma Jurídica Conforme pudemos observar, o sistema jurídico para solução dos conflitos judiciais privados é misto sendo, portanto, possível o uso das técnicas legislativas de integração da norma jurídica. Estudamos a aplicação das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados, além da influência dos princípios constitucionais (princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da solidariedade e princípio da isonomia), da função social e dos princípios norteadores do Código Civil (eticidade, socialidade e operabilidade), para auxílio do magistrado na decisão do caso concreto. Nosso ordenamento jurídico não permite ao juiz invocar a cláusula non liquet, deste modo, está o magistrado obrigado a julgar todos os pedidos que receber, ainda que não exista norma jurídica que discipline a matéria. Caso não exista norma (lacuna) ou persistindo dúvida, o sistema se abre para que o aplicador lance mãos das técnicas de integração da norma, até que, após ponderar, decida, julgando o caso concreto. Desse modo, o juiz cria através de seu julgamento a norma para aquele caso, colmatando a lacuna, afastando o conflito, e a coisa julgada, quando emergir, fecha o sistema em relação àquela disputa específica. A atividade de interpretação das normas jurídicas se destina a fornecer ao juiz subsídios para auxiliá-lo no julgamento da causa, mesmo quando estiver diante de uma lacuna da lei ou de um conflito de normas. 41 VOCABULÁRIO Non liquet, do latim, não está claro. A cláusula non liquet era muito comum no período do Estado Liberal, em que se acreditava que o ordenamento jurídico se resumia no direito positivado. Era invocado pelos juízes de tribunais para que estes pudessem deixar de julgar quando um caso trouxesse questões obscuras ou sem disciplina clara na lei. Esta cláusula foi afastada do ordenamento brasileiro. VOCABULÁRIO Analogia é o estudo das semelhanças. No direito a Jurisprudência se compõe de decisões dos Tribunais referentes a casos semelhantes. Portanto, quando a lei dispõe sobre analogia, podemos entender que se trata de julgamentos análogos sobre a mesma matéria em estudo. Temos vários recursos a auxiliarem o magistrado nesta tarefa de integração da norma, inicialmente o juiz dispõe, como vimos, dos princípios constitucionais, das cláusulas gerais, dos conceitos jurídicos indeterminados e da função social. Não sendo bastantes, seguirá ao estudo das fontes do direito. Vamos recordar as fontes diretas e indiretas estudadas no início desta obra, conforme ilustração aqui repetida: 1.12.11. As Lacunas da Norma Jurídica Como o juiz está impedido de deixar de julgar o caso concreto, quando a lei for omissa, ou seja, existindo uma lacuna da norma, ele recorrerá as fontes do direito, na seguinte ordem de preferência: a) analogia; b) costumes e c) princípios gerais do direito. Sem dificuldade se observa pela ilustração abaixo em comparação com a anterior que as fontes do direito são o recurso primário para integração da norma, em especial, a jurisprudência (analogia), o costume e os princípios gerais do direito. Quando vimos as fontes do direito observamos que a Lei é fonte primária, e o costume fonte secundária, além de outras fontes supletórias como a Jurisprudência, a Doutrina e os Princípios Gerais do Direito. Para aplicação da analogia, é necessário: 1) a constatação da existência da lacuna; 2) a semelhança entre o caso concreto e outra lei ou julgado; e 3) os fundamentos jurídicos e lógicos devem ser semelhantes ao caso em concreto. Convém salientar que é possível recorrer a analogia legislativa, situação na qual se busca reger por legislação diversa caso semelhante, ou analogia jurisprudencial, na qual o juiz poderá se socorrer de julgados de questões semelhantes analisados pelos tribunais. Os costumes são fonte supletória ou secundária, tratam da prática uniforme, conhecida de todos quanto a determinado ato. Podem ser: 42 Direito Civil a) Praeter legem – quando aplicáveis subsidiariamente pela omissão de lei, e b) Secundum legem – quando o próprio legislador determinar. Os costumes não são aplicáveis quando forem contra legem. Isto porquê a aplicação dos costumes quando a lei estiver em desuso pode configurar abuso de direito (art. 187 do CC). Os princípios gerais do direito, como já vimos quando estudamos as fontes do direito na introdução desta obra, são regras incutidas na consciência dos povos, universalmente aceitas, resumidas em três categorias: a) viver honestamente – honeste vivere; b) dar a cada um o que é seu – suum cuique; e c) não lesar o próximo – suun cuique tribuere. A equidade é a atividade do aplicador da lei que traz a ideia de distribuição de modo justo, proporcional e razoável, sob análise do caso concreto. Embora não se qualifique como elemento de integração da norma, ocupa espaço para tal finalidade sempre que a própria lei fizer sua previsão10. Se a lei não expressar sua aplicação para este fim a equidade não deverá ser aplicada11. 1.12.12. Da Interpretação da Norma Jurídica Interpretar consiste em descobrir sua essência, a ratio legis. Para que o juiz possa aplicar a lei atendendo aos seus fins sociais e às exigências do bem comum é necessário que proceda à sua interpretação quanto à origem, quanto ao método ou quanto ao resultado, considerando seu contexto social contemporâneo, em harmonia com todo o ordenamento jurídico, levando em conta o caso concreto através das provas lícitas nele contidas, valorando-as, e, ao final decidindo por sentença, a pacificação do conflito, não violando direito alheio12. Portanto, a aplicação e a interpretação da norma jurídica pelo magistrado se dará quanto: 1) à origem, 2) ao método ou 3) ao resultado. 1) Quanto à origem, pode ser: a) Autêntica – quando decorre do próprio legislador, pois seu sentido é explicado por outra lei; b) Doutrinária – quando sua interpretação vier da doutrina, das obras científicas, e c) Jurisprudencial – quando proveniente da jurisprudência dos tribunais. 2) Quanto ao método, pode ser: a) Gramatical – quando buscar auxílio nas regras da língua; b) Lógica – quando procura reconstituir o pensamento do legislador; c) Histórica- busca o momento da criação da norma; d) Sistemática – quando visa harmonizar o texto ao sistema 10. CPC, Art. 127. O Juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei. 11. Nota Explicativa: O legislador desejou limitar a aplicação da equidade para evitar sua evocação pelo magistrado em casos nos quais ela não é devida. 12. LINDB, Art. 5º – Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. 43 VOCABULÁRIO Desuso e dessuetude são palavras sinônimas. Ratio Legis, o espírito da lei, seu objeto, sua razão de existir, seu sentido e extensão. jurídico como um todo; e e) Teleológica – quando se apega aos fins para os quais a lei foi editada. 3) Quanto ao resultado, pode ser: a) Declaratória – quando se limita a dizer qual é o sentido da norma; b) Restritiva – quando se restringe ao sentido da lei, por ter o legislador dito mais do que deveria dizer; e c) Ampliativa – quando se amplia a interpretação do sentido da lei, por ter o legislador dito menos do que deveria dizer. 1.12.13. Da Aplicação da Norma no Tempo A lei visa atender às situações que ocorrem durante a sua vigência, ou seja, projeta-se ao futuro. Em solução às dúvidas que venham a surgir, em razão da intertemporalidade, a lei obedece aos critérios das disposições transitórias e da irretroatividade. No Código Civil, encontraremos as disposições finais e transitórias, nos artigos 2.028 a 2.046. Trata-se de critérios que visam facilitar a aplicação da norma no tempo, a fim de evitar conflitos entre normas. Como vimos, existirá um conflito de normas (antinomia) quando duas ou mais leis regularem a mesma relação jurídica. Para compreensão da aplicação da norma no tempo, o estudo da noção básica do direito intertemporal se faz necessário. Este divide as relações jurídicas em três hipóteses de ocorrências: a) A retroatividade da lei nova; b) O efeito imediato da lei; e c) Se dá a sobrevida da lei antiga. A lei em regra não retroage a fatos anteriores à sua vigência13, a não ser quando ela formalmente expresse em seu texto esta finalidade e não ofenda ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada. Também é possível que a lei retroaja em benefício do réu no direito penal14. A lei nova, conforme já estudamos, produz efeitos imediatos após seu período de vacatio legis, aplicando-se aos casos passados e futuros. 13. Nota Explicativa: O direito brasileiro aplica o princípio da irretroatividade da lei. Deste modo a lei vigente aplica-se a partir de sua entrada em vigor a todos os casos presentes e futuros. 14. Nota Explicativa: Princípio da retroatividade benéfica penal, na Constituição Federal de 1988, Art. 5º, XL, que dispõe que: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.” 44 Direito Civil A sobrevida ou manutenção dos efeitos de legislação anterior se refere a três situações: a) ato jurídico perfeito; b) direito adquirido; e c) coisa julgada. A lei antiga continuará emanando seus efeitos sobre relações jurídicas definidas pelas hipóteses acima descritas, em razão de terem se consubstanciado de modo pleno antes da vigência da lei nova. a) Ato jurídico perfeito – se consumou de modo cabal anteriormente à lei nova15; b) Direito adquirido – se incorporou ao patrimônio de seu titular ; e 16 c) Coisa julgada – decisão judicial irrecorrível17. 1.12.14. Da Aplicação da Norma no Espaço Nos artigos 7º a 19 da LINDB encontraremos a descrição da aplicação da norma no espaço. Trata-se das disposições de Direito Internacional Público e Privado. O legislador dispõe que é o domicílio da pessoa, em ânimo definitivo, que determinará as regras sobre o início e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família18. Quanto ao casamento existem algumas regras específicas. Conforme abaixo descrevemos: Quanto ao local onde é celebrado o casamento, se a questão judicial busca arguir impedimentos ou questões ligadas às formalidades do casamento, pouco importará se os nubentes não são brasileiros; será competente o Brasil para apurar a questão, afastando-se a regra do foro de domicílio19. 15. LINDB, Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 1º. Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. 16. LINDB, Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 2º. Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. 17. LINDB, Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 3º. Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso. 18. LINDB, Art. 7º, caput. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. 19. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. § 1º. Realizando-se o casamento no Brasil, será aplicada a lei brasileira, quanto aos impedimentos dirimentes às formalidades da celebração. 45 Considera-se eficaz o casamento brasileiro feito no estrangeiro, ou vice-versa, perante autoridades diplomáticas ou consulares de ambos os nubentes20. Quando se pleitear a invalidade do casamento, e havendo domicílio diverso entre os nubentes, restará eficaz a lei que viger no lugar do primeiro domicílio conjugal21. A lei que regerá o regime de bens no casamento, seja legal ou convencional, será aquela vigente no lugar onde forem domiciliados, ou no local do primeiro domicílio conjugal22. Quanto aos bens, aplica-se a lei de onde estiverem localizados, ou a lei do domicílio de seu proprietário quando este estiver de transporte para outro lugar23. As obrigações se cumprirão no local onde foram constituídas24. Ainda restam alguns poucos artigos os quais não são indispensáveis ao estudo proposto. 20. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. § 2º. O casamento de estrangeiros poderá celebrar-se perante autoridades diplomáticas ou consulares do país de ambos os nubentes. 21. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. § 3º. Tendo os nubentes domicílio diverso, regerá os casos de invalidade do matrimônio a lei do primeiro domicílio conjugal. 22. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. § 4º. O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio conjugal. 23. LINDB, Art. 8º. Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados. § 1º. Aplicar-se-á a lei do país em que for domiciliado o proprietário, quanto aos bens móveis que ele trouxer ou se destinarem a transporte para outros lugares. 24. LINDB, Art. 9º. Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que constituírem. 46 2 A pessoa natural CURIOSIDADE O estudo da origem da palavra pessoa demonstra que ela deriva do latim persona, que significa indivíduo, seja homem ou mulher, a personagem. Personagem, pois a palavra deriva da atuação dos atores do teatro grego da antiguidade, os quais emprestavam a voz para dar vida a seus personagens fictícios, sempre representados por máscaras que eram utilizadas para ocultar a identidade de quem os animava. Então, sob a atuação sonora que dava vida aos personagens, surgiu o conceito de pessoa. Pessoa é aquela que ocupa papel ou papéis na sociedade, sendo que na acepção jurídica do termo, pessoa é todo ente físico ou moral, suscetível de direitos e obrigações, sinônimo de sujeito de direitos e sujeito da relação jurídica. VOCABULÁRIO Concepto: concebido, em processo gestacional. 2.1 A PESSOA NATURAL A etimologia da palavra pessoa indica que os indivíduos possuem um papel a representar na sociedade. Este papel se expressa pela personalidade de cada ser. Pessoa natural é o nome que o direito civil atribui ao ser da espécie humana, considerado enquanto sujeito de direito e obrigações1. Para ser pessoa natural, basta existir, enquanto ser da espécie humana. 2.2 A PERSONALIDADE JURÍDICA Ao desempenho deste papel na sociedade, que permite à pessoa humana ser sujeito de direitos e obrigações ou deveres, chamamos de personalidade civil ou jurídica. A personalidade civil ou jurídica é a aptidão genérica para ser sujeito de direitos e deveres, aptidão esta que poderá ser exercida a partir do seu nascimento com vida2 e dura até a sua morte. O simples fato de nascer, constatado pela oxigenação de seus pulmões, é suficiente a lhe garantir a personalidade jurídica. Contudo, ainda que não nascido, mas concebido, vivo e aguardando nascimento no ventre materno, garante-lhe o Estado a proteção da personalidade jurídica, pela qualidade de nascituro, ser humano concepto. A existência de vida humana, ainda que em estado uterino, é o fato jurídico que torna o ser apto a ser considerado sujeito de direitos e obrigações na ordem civil. Tal aptidão da pessoa natural abre condições para que se estabeleçam as relações jurídicas com outros seres semelhantes a si mesmo (sociedade). CURIOSIDADE A nidação ocorre quando se dá depósito do óvulo fecundado no útero da mulher. Após a fecundação do óvulo nas trompas, ele se movimenta até o endométrio, passando a fixar-se nesta espécie de parede do útero, permitindo que ocorra a gravidez. Neste momento, desde que possível ser constatada a gravidez, no entendimento do STF, haveria um ser potencial, digno de proteção como pessoa humana. 2.3 A NATUREZA JURÍDICA DO NASCITURO O nascituro é o ser já concebido, aquele que está por nascer. Nascituro é o ser humano em estágio fetal que se mantém vivo e ligado à sua mãe, aguardando que ela lhe dê à luz. A potencialidade do seu nascimento com vida deve ser certa, fato que pode ser constatado através de exames médicos. Não se deve confundir com nascituro, o natimorto, pois enquanto o primeiro permanece vivo com a expectativa de vida 1. Código Civil, Art. 1º – Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. 2. Código Civil, Art. 2º – A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. 48 Direito Civil fora do útero, este último já se acha morto, embora ainda ligado ao útero materno. O natimorto não tem expectativa de deixar o útero materno com vida, pois o óbito ocorre durante o seu período gestacional. Descreve claramente o Art. 2º do Código Civil que: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” Como se pode notar pela nossa atual lei civil, a condição de nascituro é que marca o início à aquisição da personalidade civil ou jurídica das pessoas naturais, mas o fato da concepção também é relevante ao direito. Pois em torno destas peculiaridades, que tornam complexa a resolução da questão quanto à personalidade jurídica do nascituro, a doutrina desenvolveu algumas teorias, das quais aqui descreveremos as três mais recorrentes: a) TEORIA NATALISTA OU NATIVISTA A teoria natalista ou nativista defende que o ser humano adquire personalidade civil ou jurídica somente a partir do seu nascimento com vida, antes disto o que se tem é mera expectativa de direito. Esta teoria está incorporada ao Direito Civil brasileiro desde o Código Civil de 1916, na ocasião defendida por Silvio Rodrigues, Caio Mario da Silva Pereira, Vicente Ráo e Eduardo Espínola. Para os natalistas o feto enquanto não nascido é apenas uma extensão do corpo de sua mãe. Esta teoria também foi adotada em parte pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar o emblemático caso das células-tronco embrionárias. Quando do julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 3.5103, o então Ministro Ayres Brito consignou que a Constituição Federal de 1988 se refere sempre a dignidade da pessoa humana e aos direitos da pessoa humana, bem como aos direitos e garantias individuais. No entendimento do Excelentíssimo Ministro, ao lidar com referidas terminologias o Legislador Constituinte teria deixado claro se tratar de direitos do indivíduo-pessoa; deste modo, não haveria dúvidas de que a intenção era proteger um estágio da vida humana, mas a vida que já é própria de uma pessoa concreta, ou seja, de um indivíduo já personalizado. Tal expectativa, segundo o Ministro Ayres Brito, não se aplicaria aos embriões excedentários (dos quais seriam colhidas as células-tronco para fins de pesquisa), pois ainda não chegaram a ser inseminados no útero materno. Concluiu assim o STF que somente se poderia considerar pessoa humana aquele ser humano concepto, alimentado e vivo intrauterinamente. Com este entendimento, o STF afastou o entendimento narrado pela teoria concepcionista. Como se pode observar, para os natalistas ou nativistas, a lei apenas protege os direitos que o nascituro adquirirá quando nascer com vida, 3. BRASIL, STF. Adin n. 3510. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=611723&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor%20 ADI%20/%203510>. Acesso em 30 mar 2015. 49 COMENTÁRIO Conforme Maria Helena Diniz, no direito civil francês e holandês não basta o nascimento com vida; é necessário que o recém-nascido seja viável, isto é, apto para a vida. O direito espanhol exige que o recém-nascido deve ter a forma humana e viver pelo menos 24 horas, para que possa adquirir a personalidade. No direito português, se condicionava à vida à figura humana. No argentino e húngaro, a concepção já dá origem à personalidade. No direito civil brasileiro, afastaram-se todas estas hipóteses para evitar dúvidas, condicionando ao nascimento com vida (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, Teoria Geral do Direito, 1º Vol. 22ª Ed. Saraiva, p. 191-192). CURIOSIDADE Células-tronco são células com ca­pa­cidade de regeneração, capazes de originar tipos especializados de células, que formam diferentes tecidos do corpo humano. As células-tronco embrionárias são as células-tronco dos embriões que excedem (embriões excedentários) às tentativas de inseminação artificial. O STF foi confrontado a decidir se permitia ou não o uso das células-tronco embrionárias dos embriões fecundados que se encontravam congelados em laboratórios. A Lei de Biossegurança estava em questão, para se saber se haveria vida humana digna de proteção naqueles embriões, ou se poderiam ser utilizados para a pesquisa. ATENÇÃO I JORNADA DE DIREITO CIVIL Enunciado n. 1 Art. 2.º: a proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como nome, imagem e sepultura. sendo estes descritos de modo restrito (direito à vida, direito à herança, posse). b) TEORIA CONCEPCIONISTA Para os concepcionistas, é possível o ser humano adquirir a personalidade civil ou jurídica desde a concepção, ou seja, antes de nascer. A lei ressalva em seu benefício alguns direitos patrimoniais originados de herança, doação ou legados, os quais ficarão condicionados ao seu nascimento com vida. Ao contrário do que presume a teoria da personalidade condicional. Existem diversas situações que demonstram conceder direitos da personalidade ao nascituro enquanto concepto, os quais passaremos a elencar alguns: 1) o direito ao reconhecimento de paternidade4; 2) o direito à curatela5; 3) ser donatário6; 4) ter o direito à herança7; 5) direito à vocação hereditária por indicação em testamento (prole eventual)8;6) direito à indenização9; 7) direito aos alimentos10; 8) proteção criminal quanto à vida, entre outros11. São inúmeros os casos concretos através dos quais podemos notar que o posicionamento da lei e da jurisprudência dão o sentido de que o nascituro tem o direito da personalidade jurídica ou civil reco- 4. Código Civil, Art. 1.609 – O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito: I – no registro do nascimento; II – por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; III – por testamento, ainda que incidentalmente manifestado; IV – por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém. Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes. 5. Código Civil, Art. 1.779 – Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar. 6. Código Civil, Art. 542 – A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal. 7. Código Civil, Art. 1.798 – Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. 8. Código Civil, Art. 1.799 – Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; 9. CONJUR. STJ concede indenização para nascituro por danos morais. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2008-jun-19/stj_concede_indenizacao_nascituro_danos_morais>. Acesso em 31 mar 2015. 10. Lei de Alimentos Gravídicos. Lei n. 11.804/2008, Art. 6.º – Convencido da existência de indícios da paternidade, o juiz fixará alimentos gravídicos que perdurarão até o nascimento da criança, sopesando as necessidades da parte autora e as possibilidades da parte ré. Parágrafo único. Após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos ficam convertidos em pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes solicite a sua revisão. 11. Código Penal, Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos. 50 Direito Civil nhecido pelo simples fato de ter sido concebido. E ainda que não fosse nascituro, se estivesse morto no útero materno (natimorto), ainda assim possuiria o resguardo de alguns direitos da personalidade (nome, imagem e sepultura). c) TEORIA DA PERSONALIDADE CONDICIONAL Embora concorde que a personalidade jurídica do nascituro se inicie a partir da concepção, a teoria da personalidade condicional, conhecida como teoria mista, apresentada pela jurista Maria Helena Diniz, entende que a personalidade do nascituro assume uma condição suspensiva. Tal condição suspensiva ficaria condicionada ao nascimento com vida do nascituro para sua implementação, e, nascendo este com vida, retroagiriam os efeitos da personalidade jurídica desde a concepção. Para esta teoria, o nascituro é uma “pessoa condicional”, e por este motivo a lei lhe garante expectativas de direitos, que dependem do seu nascimento com vida para que se convalidem. Deste modo, os direitos patrimoniais do nascituro na teoria da personalidade condicional devem ficar resguardados por seu curador até o seu nascimento com vida, enquanto os direitos da personalidade são tutelados desde a concepção. Concluído o estudo quanto à natureza jurídica e as teorias da personalidade do nascituro, observamos que se torna sujeito de direitos e deveres a pessoa natural, que é o ser humano que nasce com vida ou enquanto concepto for representado. 2.3.1.A Capacidade Civil e suas Classificações Para que o sujeito de direitos possa exercer os poderes inerentes à personalidade jurídica ou civil, necessita do que o direito chama de capacidade civil. Chamamos de capacidade civil, ou capacidade jurídica, a medida ou proporção do exercício da personalidade jurídica de cada pessoa, que pode ser classificada em: a) capacidade de direito; b) capacidade de fato; c) capacidade plena; ou d) capacidade limitada. a) Capacidade de direito é a capacidade que todas as pessoas possuem, não sendo necessário o implemento de nenhuma condição para aquisição ou gozo de direitos, basta nascer com vida para possuir capacidade de direito; b) Capacidade de fato exige uma aptidão descrita na lei, é aquela que se adquire quando atingida a maioridade civil, aos dezoito anos de idade completos, ou por escritura de emancipação, passando a poder exercer por si mesmo todos os atos da vida civil; c) Capacidade plena se identifica presente quando a pessoa possui tanto a capacidade de direito quanto a de fato ao mesmo tempo; d) Capacidade limitada se dá quando uma pessoa possui a capacidade de direito, mas não possui a capacidade de fato. Como podemos notar, a capacidade civil está ligada à personalidade jurídica e garante à pessoa o exercício de direitos e obrigações na ordem 51 civil. Contudo, sua ausência também provoca efeitos no ordenamento jurídico, configurando restrições ao exercício de tais poderes, sendo necessário identificarmos suas hipóteses de incidência. 2.4 A INCAPACIDADE. AS RESTRIÇÕES DE DIREITO A incapacidade nada mais é do que a restrição ao exercício dos direitos e obrigações da pessoa, e pode ser classificada em: a) absoluta ou b) relativa. a) Incapacidade absoluta: A prática de um ato por pessoa absolutamente incapaz acarreta a sua nulidade12, pois se trata de proibição total. Desse modo, para que o absolutamente incapaz possa praticar algum ato civil, ele deverá ser representado por outra pessoa capaz. São absolutamente incapazes aqueles descritos no Art. 3.º do Código Civil. b) Incapacidade relativa – A lei permite aos relativamente capazes13 que pratiquem os atos da vida civil, desde que assistidos; se praticarem atos sozinhos, o ato será anulável. São relativamente incapazes aqueles elencados no Art. 4.º do Código Civil. 2.5 O SUPRIMENTO E A CESSAÇÃO DA INCAPACIDADE CIVIL 2.5.1.CessaçãodaIncapacidadeCivil A incapacidade civil cessará de modo natural quando a pessoa adquirir a maioridade civil, completando dezoito anos14, a partir de quando exercerá a capacidade civil de fato e de direito (capacidade civil plena). 12. Código Civil, Art. 3.º – São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de dezesseis anos; II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. 13. Código Civil, Art. 4.º – São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I – os maiores de dezesseis anos e menores de dezoito anos; II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV – os pródigos. Parágrafo único – A capacidade dos índios será regulada por legislação especial. 14. Código Civil, Art. 5.º – A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil. 52 Direito Civil 2.5.2.Suprimento da Incapacidade Civil O suprimento da incapacidade civil ocorrerá por meio da emancipação, sendo que existem três formas de emancipar a capacidade civil da pessoa natural: a) Emancipação voluntária; b) Emancipação judicial; e c) Emancipação legal. A) EMANCIPAÇÃO VOLUNTÁRIA Esta emancipação ocorre quando os pais, por ato voluntário, reconhecem que o filho adquiriu maturidade suficiente para zelar por sua pessoa e suas posses, seus bens, não necessitando mais da proteção pelo Estado na qualidade de incapaz. Esta espécie de emancipação exige que os pais sejam titulares do poder familiar e é ato unilateral de cada um deles, lavrado obrigatoriamente por escritura pública, produzindo efeitos apenas após o registro15. Se um dos pais discordar, deverá se buscar a outorga daquele que se nega por suprimento judicial16. B) EMANCIPAÇÃO JUDICIAL Quando completados dezesseis anos, torna-se possível a emancipação da pessoa natural, desde que ouvido o tutor em favor do tutelado17. Também condicionada a escritura pública e registro para produzir efeitos (CC, Art. 9º, II). C) EMANCIPAÇÃO LEGAL A lei descreve determinados fatos em a pessoa natural supre sua incapacidade civil: a) casamento; b) exercício de emprego público efetivo; c) colação de grau em curso de ensino superior; e d) abertura de estabelecimento civil ou comercial ou relação de emprego, desde que possua economia própria. Independe de escritura pública e registro, surtindo efeitos a partir do dia do fato jurídico. 2.5.3. Extinção da Personalidade Jurídica Extingue-se a personalidade jurídica da pessoa natural quando esta vier a morrer. A morte da pessoa natural pode ser real ou presumida. 15. Código Civil, Art. 9º – Serão registrados em registro público: I – os nascimentos, casamentos e óbitos; II– a emancipação por outorga dos pais ou por sentença do juiz; 16. Código Civil, Art. 1.631 – Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade. Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo. 17. Código Civil, Art. 5º – A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil. Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade: I – pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos; 53 VOCABULÁRIO morte cerebral ou encefálica: quando por laudo médico, atesta-se que a atividade neural da pessoa não possui mais condições de reagir. A morte real ocorre quando cessam as atividades cardíacas ou respiratórias da pessoa, ou quando se dá a morte cerebral ou encefálica. A personalidade jurídica da pessoa natural também se extingue quando ocorre a morte presumida, a qual estudaremos logo à frente, após o instituto da ausência. 2.6 O NOME CIVIL, O ESTADO CIVIL E O DOMICÍLIO CIVIL 2.6.1.OsModosdeIndividualizaçãodaPessoa Natural Para que o sujeito de direitos e deveres seja identificável, torna-se imprescindível que exista segurança quanto aos modos pelos quais ele poderá ser encontrando na sociedade. Os principais elementos de individualização da pessoa natural são: a) o nome civil; b) o estado civil; e c) o domicílio civil. 2.6.2. O Nome Civil Conforme já estudamos, o homem é um ser gregário, e por necessitar viver em sociedade torna-se imprescindível que seja possível a individualização para identificar a cada pessoa como titular de direitos e deveres na sociedade. Os elementos fundamentais de individualização do homem civil, são o nome, o estado civil e o domicílio. Toda pessoa natural tem direito à identidade civil, e o nome civil ocupa o relevante papel de tornar cada pessoa um ser único, integrando ao nome civil sua personalidade pessoal, que permanece viva durante toda sua existência, e, após a morte, indicando suas origens e família. O nome civil é um direito da personalidade da pessoa natural. 2.6.3.AClassificaçãodoNomeCivil A identidade civil, segundo Silmara Juny Chinellato, logo se percebe pelo nome civil da pessoa natural, e se divide ou se classifica em: pessoal, familiar e profissional, sendo que no âmbito pessoal o nome civil tem grande relevância, pois é considerado entre os povos mais primitivos como sendo um direito natural. O nome civil é composto por duas partes, sendo mencionado pelo Código Civil (Código Civil, Lei n. 10.406/2002) em “prenome” e “sobrenome”18. O direito ao nome é o primeiro da personalidade e tem garantia constitucional. A República Federativa garante aos nascidos no Brasil o 18. Código Civil, Art. 16 – Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome. 54 Direito Civil nome como identidade civil, isentando de custo o seu registro de nascimento, obrigando os familiares a efetuarem esse documento. Antes de concluirmos de modo visual a classificação sugerida por Silmara Juny Chinellato, conforme descrito acima (pessoal, familiar e profissional) vamos estudar a composição do nome como meio de identidade civil da pessoa natural. 2.6.4. A Composição do Nome Civil A identificação civil possui como principal finalidade dar segurança jurídica à sociedade, na medida em que não deixa dúvidas quanto à pessoa natural, facilitando desse modo ao Estado punir os autores de crimes, bem como aos terceiros interessados (credores), promoverem ações judiciais para tutelar e salvaguardar os seus interesses. O nome civil é regido pelo princípio da imutabilidade, o que implica concluir de modo geral que o sistema jurídico não admite requerimentos de mudança do nome, sem uma justificativa legal plausível, em casos excepcionais, como veremos neste estudo. A composição do nome obedece, portanto, a um padrão preestabelecido no direito civil. É composto de duas partes distintas: o prenome e o sobrenome. O prenome ou nome próprio é o primeiro nome que a pessoa possui, aquele que é dado ao nascer por escolha dos seus pais. Por exemplo: José da Silva, prenome: José. O prenome pode ser simples ou composto; no exemplo referido o prenome é simples, pois só existe uma palavra para indicar o prenome; quando houver mais de uma palavra, teremos o prenome composto. Por exemplo: José Carlos da Silva, prenome: José Carlos. É importante frisar que na escolha do nome pelos pais, a Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/73) proíbe que se utilizem de nomes pejorativos, vexatórios ou ridículos19. Sobrenome, cognome ou patronímico é o apelido de família, transmitido na identificação do parentesco sucessório. Por exemplo: José da Silva, sobrenome: da Silva. Além destes nomes, temos ainda outros que auxiliam a composição do nome e maior certeza na identidade civil, são eles o agnome e o nome vocatório. 19. Lei n. 6.015/73, Art. 55. Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial lançará adiante do prenome escolhido o nome do pai, e, na falta, o da mãe, se forem conhecidos e não o impedir a condição de ilegitimidade, salvo reconhecimento no ato. Parágrafo único. Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo seus portadores. Quando os pais não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz competente. 55 JURISPRUDÊNCIA Boletim Informativo n. 245 do STJ TERCEIRA TURMA RETIFICAÇÃO. REGISTRO CIVIL. A jurisprudência deste Superior Tribunal autoriza a alteração do nome civil quando o nome que a pessoa deseja adotar é aquele pelo qual ela é conhecida no seu meio social ou quando a pessoa quer acrescer ou excluir sobrenome de genitores ou padrastos. Na espécie, o recorrente não é conhecido no meio social pelo prenome que pretende acrescer. Ademais, o Tribunal a quo reconheceu, com base nas provas, que o recorrente não se expõe a circunstâncias vexatórias e de constrangimento em razão de homônimos existentes. Assim a Turma não conheceu do recurso. Precedentes citados: REsp 538.187-RJ, DJ 21/2/2005; REsp 146.558-PR, DJ 24/2/2003; REsp 213.682-GO, DJ 2/12/2002; REsp 284.300-SP, DJ 9/4/2001, e REsp 66.643-SP, DJ 9/12/1997. REsp 647.296-MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 3/5/2005. O agnome serve para diferenciar os membros da mesma família que possuam o mesmo nome; eles são inseridos ao final da composição nominal sob a referência de: Filho, Júnior, Neto, Sobrinho, ou ainda por números ordinais: Primeiro, Segundo, Terceiro, etc. Por exemplo: José da Silva Júnior, agnome: Júnior. O nome vocatório ou profissional é a abreviação do nome completo da pessoa, que visa facilitar a identificação. Por exemplo: Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, vocatório: Marco Aurélio (Ministro do STF). Não se deve confundir o nome vocatório ou profissional com alcunha ou apelido, estes últimos são conhecidos como variações de cognome, que são formas pejorativas ou afetivas de se identificar uma pessoa. 2.6.5.DaAlteraçãodoNomeCivil A regra geral que subsiste quanto à alteração do nome civil, como vimos, baseia-se no princípio da imutabilidade do nome civil. Contudo, este princípio não é absoluto. A possibilidade de alteração do nome civil mostra-se viável quando demonstrado de modo claro e específico o motivo que fundamenta o pedido. De acordo com a orientação do Superior Tribunal de Justiça, a motivação para alteração do nome é legítima quando a pessoa: a) deseja acrescer ou excluir sobrenome de genitores ou padrastos; b) é conhecida no meio social por outro prenome, o qual pretende acrescer, ou c) provar que esteja sofrendo constrangimentos ou situações ridicularizantes por homônimo depreciativo . Em tais hipótese, a lei autoriza a modificação do nome civil, o que quanto à forma pode se dar pela via administrativa ou judicial. Observamos, então, que apenas nos casos excepcionais, como estudaremos adiante, a jurisprudência prefere sempre que ocorra o acréscimo de um prenome ou sobrenome, mantendo-se os demais existentes, raríssimas vezes excluindo, e substituindo quando necessário. Em todas as situações, após demonstrada a efetiva motivação necessária no âmbito administrativo ou judicial. 2.6.6.DaModificaçãoAdministrativa A Lei de Registros Públicos identifica algumas situações nas quais é possível iniciar administrativamente o pedido de alteração do nome pelo próprio interessado ou procurador por meio de requisição direta ao Oficial do Cartório do Registro Civil onde foi registrado o seu nascimento, independentemente do pagamento de selos e taxas. a) Maioridade civil – Ao completar os dezoito anos (maioridade civil) e até o último dia antes de completar dezenove é possível a pessoa natural requerer a alteração do seu nome diretamente ao Oficial do Cartório do Registro Civil. Esta é a única possibilidade imotivada de alteração do nome civil. O pedido administrativo poderá ser atendido desde que não prejudique os apelidos da família, como descreve a Lei 56 Direito Civil de Registros Públicos20. Nesta oportunidade o interessado pode pedir a inclusão ou a exclusão do nome de genitores ou padrastos. Interessante decisão do Superior Tribunal de Justiça, sobre a referida questão, flexibilizou o princípio da imutabilidade do nome civil, permitindo a um filho abandonado por seu pai, adotar o sobrenome da avó que o criou desde a infância. O Tribunal de Justiça de São Paulo havia negado o pedido com base no artigo 56 da Lei de Registros Públicos, entendendo que haveria prejuízo ao apelido de família paterno. Entretanto, a decisão foi reformada pelo STJ, pois não haveria modificação na sua filiação, tão somente seria alterado o seu nome civil, além de evitar o constante sofrimento de recordar angústias vividas na infância toda vez que mencionar seu nome civil. b) Erros aparentes de grafia – Desde que visivelmente tenha ocorrido um erro na posição das letras do nome, ou a inserção ou escrita er- 20. Lei n. 6.015/73, Art. 56 – O interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos da família, averbando-se a alteração que será publicada na imprensa. COMENTÁRIO Filho abandonado poderá trocar sobrenome do pai pelo da avó que o criou. No recurso julgado pela Terceira Turma, o rapaz sustentou que a decisão violou o artigo 56 da Lei 6.015/73, já que estariam presentes todos os requisitos legais exigidos para a alteração do nome no primeiro ano após ele ter atingido a maioridade civil. Argumentou, ainda, que não pediu a modificação da sua paternidade no registro de nascimento, mas somente a exclusão do sobrenome do genitor, com quem não desenvolveu nenhum vínculo afetivo. Posição flexível Citando vários precedentes, o ministro relator, Paulo de Tarso Sanseverino, ressaltou que o STJ tem sido mais flexível em relação à imutabilidade do nome civil em razão do próprio papel que o nome desempenha na formação e consolidação da personalidade. Para o relator, considerando que o nome é elemento da personalidade, identificador e individualizador da pessoa na sociedade e no âmbito familiar, a pretensão do recorrente está perfeitamente justificada nos autos, pois, abandonado pelo pai desde criança, foi criado exclusivamente pela mãe e pela avó materna. “Ademais, o direito da pessoa de portar um nome que não lhe remeta às angústias decorrentes do abandono paterno e, especialmente, corresponda à sua realidade familiar, parece sobrepor-se ao interesse público de imutabilidade do nome, já excepcionado pela própria Lei de Registros Públicos” – ressaltou o ministro em seu voto. Ao acolher o pedido de retificação, Sanseverino enfatizou que a supressão do sobrenome paterno não altera a filiação, já que o nome do pai permanecerá na certidão de nascimento. A decisão foi unânime. Número do recurso omitido por segredo de Justiça. Fonte: STJ. Filho abandonado poderá trocar sobrenome do pai pelo da avó que o criou. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/Filho-abandonado-poderá-trocar-sobrenome-do-pai-pelo-da-avó-que-o-criou>. Acesso em 20 mar. 2015. 57 CURIOSIDADE CASO ANTERIOR À MODIFICAÇÂO DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS Em meados de 1995 e 1996, uma propaganda veiculada em todo o Brasil pelo Ministério da Saúde na televisão em combate à AIDS, popularizou o nome de Bráulio. A LRP ainda não tinha sido modificada pela Lei n. 9.807/99, obrigando o interessado na modificação do nome ir à Justiça. O jornalista Bráulio de S., foi aos tribunais e obteve a modificação do nome para Cláudio Lira, em virtude da popularização nacional do seu nome, que o colocou em situação constrangedora, vexatória, expondo-o ao ridículo. (JTJ – Lex 204/136, Rel. Osvaldo Caron) rônea (troca do L pelo R, por exemplo: Cráudia, quando o correto seria Cláudia), inversão ou outros erros aparentes no nome civil, é possível a requisição administrativa de sua correção. A Lei de Registros Públicos requer apenas que seja possível a imediata constatação do erro na grafia do nome para ser possível o pedido21, o qual será corrigido pelo Oficial do Cartório de ofício, após manifestação do Ministério Público pelo rito sumaríssimo. 2.6.7.DaModificaçãoJudicial a) Nomes ridículos, exóticos ou vexatórios – Como já mencionado nesta obra, a Lei de Registros Públicos proíbe aos pais escolherem para seus filhos nomes ridículos, vexatórios, que os exponham ao ridículo (LRP, Art. 55, parágrafo único). Contudo, caso tenham surgido nomes atribuídos à pessoa, que a exponha a tais circunstâncias, poderá ela requerer a alteração, demonstrada a motivação pela via judicial. b) Vítimas, réus delatores ou testemunhas de crimes – Admite-se a mudança do nome em proteção às testemunhas (conforme disposições da Lei de Proteção às Testemunhas)22, às vítimas ou aos réus delatores que colaborem com a Justiça no esclarecimento de atos criminosos, sempre que presente a coação ou ameaça (LRP, Art. 58, parágrafo único)23. c) Uso prolongado – O uso prolongado e constante de nome diverso que conste do registro de nascimento também justifica a alteração24, pois, o “prenome imutável é aquele que foi posto em uso, embora não conste do registro” (STJ, REsp 146.558/PR). 21. Lei n. 6.015/73, Art. 110 – Os erros que não exijam qualquer indagação para a constatação imediata de necessidade de sua correção poderão ser corrigidos de ofício pelo oficial de registro no próprio cartório onde se encontrar o assentamento, mediante petição assinada pelo interessado, representante legal ou procurador, independentemente de pagamento de selos e taxas, após manifestação conclusiva do Ministério Público. 22. Lei n. 9.807/99, Art. 9º – Em casos excepcionais e considerando as características e gravidade da coação ou ameaça, poderá o conselho deliberativo encaminhar requerimento da pessoa protegida ao juiz competente para registros públicos objetivando a alteração do nome completo. § 1º – A alteração de nome completo poderá estender-se às pessoas mencionadas no § 1º do Art. 2º desta Lei, inclusive aos filhos menores, e será precedida das providências necessárias ao resguardo de direito de terceiros. 23. Lei n. 6.015/73, Art. 58 – O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios. Parágrafo único – A substituição do prenome será ainda admitida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime, por determinação, em sentença de juiz competente, ouvido o Ministério Público. 24. Lei n. 6.015/73, Art. 57 – A alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art. 110 desta Lei. 58 Direito Civil d) Alcunha ou apelido – Na mesma compreensão, pelo uso prolongado do nome, constante e habitual, a Lei25 permite a alteração do nome civil, para inclusão do apelido ou alcunha. Obviamente que a agregação da alcunha atinge apenas o prenome, ampliando-o. Exemplo: Maria da Graça Xuxa Meneghel, alcunha inserida: Xuxa. e) Inclusão do sobrenome de ascendente – Estudamos ser possível a inclusão do nome do ascendente quando o interessado requer, administrativamente, dentro de um ano de quando adquire a maioridade civil. Entretanto, poderá ainda requer a alteração judicial do sobrenome, quando superado aquele prazo, pugnando pela inserção do sobrenome do ascendente, mesmo que este sobrenome não tenha sido usado por uma ou mais gerações. E após inserto o sobrenome do pai, poderá ainda requer a inserção do sobrenome da mãe . f) Inclusão de sobrenome do padrasto ou madrasta – No mesmo sentido, é possível a inserção do sobrenome do padrasto ou da madrasta desde que estes concordem26. g) Homonímia – O simples fato de possuir um nome muito comum ou popular não é sozinho motivação suficiente ao ensejo de alteração do nome civil. Se a intenção de afastar a homonímia for apenas evitar equívoco ou confusão da pessoa, antes de ingressar com o pedido para alteração do nome, deve estudar primeiro a possibilidade de afastá-la pelo acréscimo do sobrenome de seus ascendentes, sob pena de ver indeferido seu pedido. Há que demonstrar o interessado, para que justifique seu pedido de alteração judicial, os prejuízos e as humilhações sofridas, os constrangimentos caso permaneça a homonímia. Por isto, a chamamos de homonímia depreciativa, pois a homonímia para justificar a mudança do nome deve depreciar a pessoa quando pronunciado o seu nome. Desse modo, só se entende possível o pedido de alteração do prenome por homonímia quando demonstrado de modo cabal que a tal homonímia está lhe causando problemas sociais (REsp n. 647.296/MT). h) Alteração do prenome do adotado – É facultado aos pais da criança adotada requererem judicialmente a alteração do prenome do adotando, por disposição do Estatuto da Criança e do Adolescente27. 25. Lei n. 6.015/73, Art. 58 – O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos e notórios. 26. Lei de Registros Públicos, Art. 57, § 8º – O enteado ou enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2º e 7º deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome da família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família. 27. Estatuto da Criança e do Adolescente, Art. 47 – O vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que deverá ser inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão; § 5º – A sentença conferirá ao adotado o nome do adotante e, a pedido de qualquer deles, poderá determinar a modificação do prenome. 59 JURISPRUDÊNCIA Tribunal de Justiça de Minas Gerais NOME - Acréscimo de sobrenome materno omitido no assento de nascimento, após o nome do pai - Admissibilidade por não encontrar qualquer vedação legal (TJMG) RT 775/345. VOCABULÁRIO homonímia: Qualidade do que é homônimo. Ou seja, nome idêntico a outro. JURISPRUDÊNCIA Boletim Informativo n. 245 do Superior Tribunal de Justiça RETIFICAÇÃO. REGISTRO CIVIL. A jurisprudência deste Superior Tribunal autoriza a alteração do nome civil quando o nome que a pessoa deseja adotar é aquele pelo qual ela é conhecida no seu meio social ou quando a pessoa quer acrescer ou excluir sobrenome de genitores ou padrastos. Na espécie, o recorrente não é conhecido no meio social pelo prenome que pretende acrescer. Ademais, o Tribunal a quo reconheceu, com base nas provas, que o recorrente não se expõe a circunstâncias vexatórias e de constrangimento em razão de homônimos existentes. Assim a Turma não conheceu do recurso. Precedentes citados: REsp 538.187-RJ, DJ 21/2/2005; REsp 146.558-PR, DJ 24/2/2003; REsp 213.682-GO, DJ 2/12/2002; REsp 284.300-SP, DJ 9/4/2001, e REsp 66.643-SP, DJ 9/12/1997. REsp 647.296-MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 3/5/2005. COMENTÁRIO I JORNADA DE DIREITO CIVIL ENUNCIADO 99 “O Art. 1.525, § 2º, do Código Civil não é norma destinada apenas às pessoas casadas, mas também aos casais que vivem em companheirismo, nos termos do Art. 226, caput e §§ 3º e 7º, e não revogou o disposto na Lei nº 9.263/96.” A Lei n. 9.263/96 se refere ao planejamento familiar, aplicável tanto aos casados quanto aos companheiros, em atenção ao Art. 226, § 7º, da Constituição Federal de 1988. i) Tradução de nome estrangeiro – É admitida a alteração do prenome estrangeiro traduzindo-o para o português com a finalidade de tornar mais clara e precisa sua identidade civil no Brasil (Lei n. 6.815/80 – Estatuto do Estrangeiro)28. Havendo erros materiais, poderão ser corrigidos de ofício (EE, Art. 43, § 2º). j) Inclusão ou exclusão do sobrenome do cônjuge – O Código Civil atual29 permite aos noivos, facultativamente, incluírem o sobrenome do consorte em seu nome civil quando casados. Se ocorrer o divórcio ou a anulação do casamento poderão optar por excluir o nome de seu ex-cônjuge quando não houver dado causa a extinção do casamento. Reservado ao cônjuge inocente renunciar ao direito de uso do nome de casado30. k) Inclusão ou exclusão do sobrenome do companheiro – Os companheiros são aqueles que vivem em união estável. A união estável31 se equiparou ao casamento, com garantia constitucional, no mesmo artigo que protege a família32. Não poderia ser diferente, pois a união estável é entidade familiar que constitui a família, neste sentido já houve registro do Enunciado n. 99 da I Jornada de Direito Civil . 28. Estatuto do Estrangeiro, Art.43 – O nome do estrangeiro, constante do registro (art. 30), poderá ser alterado: I – se estiver comprovadamente errado; II – se tiver sentido pejorativo ou expuser o titular ao ridículo; ou III – se for de pronunciação e compreensão difíceis e puder ser traduzido ou adaptado à prosódia da língua portuguesa. 29. Código Civil, Art. 1.565 – Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. § 1º – Qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro. 30. Código Civil, Art. 1.578 – O cônjuge declarado culpado na ação de separação judicial perde o direito de usar o sobrenome do outro, desde que expressamente requerido pelo cônjuge inocente e se a alteração não acarretar: I – evidente prejuízo para sua identificação; II – manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos havidos da união dissolvida; III – dano grave reconhecido na decisão judicial. § 1º – O cônjuge inocente na ação de separação judicial poderá renunciar, a qualquer momento, ao direito de usar o sobrenome do outro. § 2º – Nos demais casos caberá a opção pela conservação do nome de casado. 31. Código Civil, Art. 1.723 – É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com objetivo de constituição de família. 32. Constituição Federal, Art. 226 – A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento. § 7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte das instituições oficiais ou privadas. 60 Direito Civil Devemos lembrar que o Supremo Tribunal Federal interpretou ser possível a constituição de união estável por pessoas do mesmo sexo, aplicando-se portanto as mesmas possibilidades quanto ao nome civil. l)Concubinato33 – A lei permite que ao concubina(o) obtenha o sobrenome do(a) companheiro(a) enquanto durar o concubinato, mas isto só será possível quando houver concordância mútua, vida em comum por mais de cinco anos ou a existência de filho(s) comum(ns). Contudo, nenhum deles pode ser casado, embora exista a impossibilidade de se casarem. m) Transgenitalização – Com a evolução da ciência e da medicina, a mudança de sexo cirúrgica tornou-se uma realidade. Não haveria nenhuma lógica conservar o nome de homem naquele que por cirurgia deixou de guardar todas as características masculinas. O Superior Tribunal de Justiça enfrentou o referido caso, dando ao requerente o direito à modificação de seu nome civil, inclusive determinando que não deveriam constar do teor das novas certidões a referida alteração para evitar constrangimentos (STJ, REsp 1.008.398/SP; REsp 679.933/RS e REsp 737.993/MG). 2.6.8. O Estado Civil De acordo com Carlos Roberto Gonçalves, a soma das qualificações de uma pessoa na sociedade, que indicariam o modo peculiar inerente à pessoa, constitui o estado civil, ou status como deriva do latim34, e distingue-se na ordem: a) individual – através da descrição física do ser, cor, altura, sexo, idade, capaz ou incapaz, criança, adolescente ou adulto; b) familiar – a indicar sua descrição quanto à solteiro, casado, divorciado, viúvo, bem como graus de parentes e origem da família, e c) política – quanto a se tratar de brasileiro nato ou estrangeiro. Como o estado está ligado à pessoa, pode-se afirmar que recebe proteção jurídica por suas características: indivisível, indisponível e imprescritível. 2.6.9. O Domicílio Civil A localização certa dos sujeitos de direito é muito relevante, pois permite o cumprimento das relações jurídicas, concedendo segurança ao cumprimento das obrigações e facilidade na implementação da paz social. O domicílio civil é o ponto no qual o sujeito de direitos e obrigações se permite ser localizado, onde reside, ou mora. É no domicílio que a pessoa se presume presente para dar cumprimento aos seus atos e negócios jurídicos. 33. Código Civil, Art. 1.727 – As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato. 34. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 1. Esquematizado. Parte Geral, Obrigações e Contratos. Coord. Pedro Lenza. 1ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 141. 61 COMENTÁRIO O Supremo Tribunal Federal entendeu, ao julgar a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADIN) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, que o artigo 1.723 do Código Civil abrange o entendimento de se tratar de união de pessoas e não limitativamente homem e mulher. Com isto, tornou-se possível a união estável de pessoas do mesmo sexo, incluindo todos os benefícios previstos às uniões estáveis de sexos diversos, inclusive a sua conversão em casamento. Existem dois elementos que caracterizam o domicílio: o elemento objetivo, que é o local propriamente dito, a residência da pessoa, e o elemento subjetivo, que se refere ao ânimo definitivo, que é a intenção de permanecer e ali fixar moradia (domicílio residencial)35 ou exercer sua atividade central (domicílio profissional)36. Quanto ao número, o domicílio pode ser único ou plúrimo37. Quanto à existência, é real ou presumido38. Quanto à liberdade de escolha, pode ser necessário ou voluntário, sendo que o necessário é aquele descrito por lei39, e o voluntário o que pode ser estipulado pelas partes em relação jurídica40. 2.7 A COMORIÊNCIA E A AUSÊNCIA: CARACTERIZAÇÃO E EFEITOS JURÍDICOS DA COMORIÊNCIA – Quando dois ou mais indivíduos vierem a falecer ao mesmo tempo, havendo dúvidas quanto a quem tenha morrido primeiro, a legislação civil permite a aplicação da presunção de que tenham morrido ao mesmo tempo41. Esta regra afasta a incidência da sucessão entre os comorientes. DA AUSÊNCIA – O instituto da ausência se aplica quando a pessoa desaparece de seu domicílio sem deixar notícias, tampouco alguém que o representante. As relações jurídicas e os bens que esta pessoa deixou necessitam de cuidados e administração. Para garantir a continuidade das relações jurídicas e manter a segurança jurídica, o Estado permite a aplicação da morte presumida pela ausência da pessoa, que se pleiteia em três fases: a) A declaração de ausência; b)A sucessão provisória; e c) A sucessão definitiva. A) Declaração de ausência – A requerimento do interessado ou do representante do Ministério Público, o juiz declarará a ausência 35. Código Civil, Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece sua residência com ânimo definitivo. 36. Código Civil, Art. 72. É também domicílio da pessoa natural, quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida. 37. O direito brasileiro adotou o princípio da pluralidade domiciliar, como se observa nos artigos 71 e 72 do Código Civil. 38. O domicílio real é o físico e indubitável. O presumido é aquele que utiliza a regra da presunção, conforme o artigo 73 do Código Civil. 39. Código Civil, Art. 76. 40. Código Civil, Art. 78. Por exemplo o foro de eleição nos contratos, a cláusula arbitral, etc. 41. Código Civil, Art. 8º. Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos. 62 Direito Civil e nomeará um curador determinando que os bens deixados sejam arrecadados42. Para garantir a defesa do ausente, são publicados editais por um ano, a cada bimestre43, pondo-se os filhos menores sob tutela, se houver44. B) Sucessão provisória – Após um ano do primeiro edital45, poderá ser aberta a sucessão provisória, passando-se aos herdeiros a posse dos bens, desde que prestem garantia de devolvê-los integralmente caso o ausente apareça46. C) Sucessão definitiva – Após dez anos da sucessão provisória47, poderão os interessados requererem a sucessão definitiva levantando as cauções que prestaram ao juízo48. Caso o ausente apareça, nos dez anos seguintes, receberá os bens no estado em que se encontram49. Se passado o referido prazo não surgir sucessor, o espólio passará ao Estado por herança jacente50. Aberta a sucessão definitiva, a morte presumida extingue o vínculo conjugal51. A MORTE PRESUMIDA: CARACTERIZAÇÃO 2.8 Como já tivemos a oportunidade de estudar, a personalidade jurídica da pessoa natural se inicia a partir do nascimento com vida e se extingue com a morte, que pode ser real (morte física) ou presumida. A morte presumida é aplicável em duas situações distintas. Poderá ser consequência de um processo de declaração de ausência (como vimos anteriormente), ou quando houverem indícios veementes (perigo de vida, desaparecimento em campanha, feito prisioneiro, não for encontrado após dois anos do término da guerra)52. 42. Código Civil, Art. 22 e Art. 1.159. 43. Código de Processo Civil, Art. 1.161. Feita a arrecadação, o juiz mandará publicar editais durante 1 (um) ano, reproduzidos de dois em dois meses, anunciando a arrecadação e chamando o ausente a entrar na posse de seus bens. 44. Código Civil, Art. 1.728, I. 45. Código Civil, Art. 26. Ou após três anos se o ausente deixou procurador. 46. Código Civil, Art. 30. 47. Ou caso o ausente tivesse mais de oitenta anos de idade, passados cinco anos das últimas notícias. 48. As garantias fornecidas para a sucessão provisória poderão ser restituídas. 49. Código Civil, Art. 39. 50. Código Civil, Art. 39, parágrafo único. Entende-se por herança jacente a situação na qual o Município inicia a arrecadação dos bens deixados pelo falecido, por inexistirem herdeiros. 51. Código Civil, Arts. 6º e 1.571, § 1º. 52. Código Civil, Art. 7º. Pode ser declarada a morte presumida, sem decreta- 63 A sentença que declara a morte presumida dissolve o vínculo conjugal53 e põe fim à sucessão definitiva quanto ao espólio54. ção de ausência: I – se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o termino da guerra. § único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento. 53. Código Civil, Art. 1.571, § 1º, e Art. 6º. 54. Código Civil, Art. 37. 64 3 Pessoa e Direitos da Personalidade VoCaBUlÁrio intuito: objetivo, intenção. 3.1 ConCeito Direitos da personalidade são direitos subjetivos conferidos a todas as pessoas naturais (seres humanos) com o intuito de proteger a sua integridade física, moral e intelectual. Impõem a todas as pessoas o dever legal de não causar dano, isto é, de não violar a integridade dos outros. Por causa da imposição desse dever jurídico todas as pessoas (refletindo um direito “contra todos” ou, em latim, erga omnes), podemos afirmar que os direitos da personalidade são do tipo excludendi alios. Isto é, exclui as outras pessoas. Mas essa obrigação de respeito não é imposta apenas para terceiros. Também o titular (o “dono”) do direito deve abster-se de (ou seja, deixar de) praticar qualquer ato que possa prejudicar sua própria integridade. 3.2 FUnDaMento Todos os direitos da personalidade encontram fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no inciso III do art. 1º da Constituição Federal de 1988 (“A República Federativa do CUriosiDaDe Direitos da personalidade e as pessoas jurídicas Para a doutrina majoritária, todas as pessoas, naturais ou jurídicas, são detentoras de personalidade jurídica. Consequentemente, também se defende que as pessoas jurídicas são titulares de direitos da personalidade. Contudo, essas posições não são pacíficas, havendo autores que sustentam que as pessoas jurídicas não são titulares de direitos da personalidade. Tal polêmica não foi eliminada pelo legislador, que adotou enigmática redação no art. 52 do Código Civil: “Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”. A leitura do dispositivo pode resultar em duas conclusões absolutamente distintas: a de que as pessoas jurídicas teriam direitos da personalidade; e a de que não teriam. Na doutrina podemos encontrar essas duas correntes: 1ª Corrente (majoritária): defende que as pessoas jurídicas são titulares de direitos da personalidade, por serem detentoras de atributos que a individualizam e que a inserem no meio social, tais como o nome, identidade, marcas e símbolos que lhes são próprios etc. Para os defensores dessa corrente, o art. 52 do Código Civil defere direitos da personalidade às pessoas jurídicas. 2ª Corrente (minoritária): defende que as pessoas jurídicas não são detentoras de direitos da personalidade, sendo estes exclusivos das pessoas naturais (físicas). Essa corrente sustenta que todos os direitos da personalidade têm por objetivo a proteção da dignidade do ser humano, logo, não seria admissível estender essa proteção às pessoas jurídicas. Nesse sentido, o enunciado 286/CJF prescreve que “os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos”. O art. 52 é interpretado da seguinte forma: por não serem as pessoas jurídicas titulares de direitos da personalidade, o ordenamento confere uma proteção semelhante àquela da qual gozam as pessoas naturais para proteção dos seus interesses extrapatrimoniais (ou seja, não patrimoniais). 66 Direito Civil Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa humana”). Este princípio é uma cláusula geral de proteção da pessoa humana, que vincula todas as esferas do Direito e irradia-se por todos os seus ramos. Não seria diferente em relação ao Direito Civil: a leitura das regras presentes no Código Civil deve se dar sempre à luz dos preceitos constitucionais (isto é, das determinações previstas na Constituição). Características dos direitos da personalidade 3.3 A doutrina nacional aponta a existência de diversas características comuns aos direitos da personalidade. Em especial, afirma-se que são inatos, vitalícios, absolutos, ilimitados, extrapatrimoniais, impres­ critíveis, intransmissíveis, indisponíveis ou relativamente disponíveis, irrenunciáveis e inexpropriáveis. Vejamos uma a uma, a seguir. a)Inatos: todos os seres humanos, ao nascer, já se encontram dotados de direitos da personalidade. A aquisição é automática CURIOSIDADE Dano moral da pessoa jurídica No estudo dos direitos da personalidade da pessoa jurídica, surge outra questão polêmica: a de definir se pessoa jurídica pode sofrer dano moral. A indagação é pertinente, pois, atualmente, o dano moral é definido como toda e qualquer forma de lesão a direito da personalidade, não devendo ser confundido com suas consequências: dor, tristeza, angústia etc. Desta forma, dependendo da atribuição, ou não, de personalidade jurídica às pessoas jurídicas, abre-se a possibilidade para que estas sofram dano moral. Sobre a questão podem ser apontadas as seguintes correntes: 1ª Corrente (doutrina majoritária): defende que as pessoas jurídicas podem sofrer dano moral quando condutas alheias repercutem de forma negativa sobre a sua imagem, abalando a credibilidade conquistada (ofensa à honra objetiva). Podemos afirmar que esse é o posicionamento majoritário na doutrina e na jurisprudência, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça, que já sumulou a questão (Súmula 227/STJ: A pessoa jurídica pode sofrer dano moral). 2ª Corrente: defende que a pessoa jurídica não possui direitos da personalidade e, portanto, não pode sofrer dano moral. Não nega, contudo, o direito à reparação dos danos extrapatrimoniais ou patrimoniais de difícil liquidação, quando atingida a credibilidade ou reputação da instituição. Na verdade, o que os defensores dessa corrente propõem é a substituição da expressão dano moral por dano institucional, reservando a primeira expressão apenas para a caracterização de lesão a direitos da personalidade dos seres humanos. 3ª Corrente: defende que a pessoa jurídica não pode sofrer dano moral, mas tão só dano patrimonial. Apenas o prejuízo patrimonial demonstrado (danos emergentes e lucros cessantes) pode ser ressarcido. Esta corrente, minoritária, é muito criticada, pois não consegue solucionar as ofensas extrapatrimoniais dirigidas a uma pessoa jurídica sem intuito lucrativo (p. ex.: associação filantrópica). 67 (quer dizer, independentemente de qualquer ato jurídico). Para os defensores da teoria natalista, o termo inicial da aquisição dos direitos da personalidade é o nascimento com vida (art. 2º do Código Civil). Por outro lado, para os defensores da teoria concepcionista, o termo inicial é a concepção (art. 4º do Pacto de São José da Costa Rica). Devemos destacar que alguns autores utilizam o termo “inato” para designar que os direitos da personalidade são direitos naturais, surgindo assim nova divergência doutrinária: Jusnaturalistas: defendem que os direitos da personalidade são inerentes ao ser humano, não dependendo de previsão legal. Dessa forma, os direitos da personalidade são considerados como espécie de direito natural. Nesse sentido: Maria Helena Diniz, Rubens Limongi França, Carlos Alberto Bittar, Rizzato Nunes. Positivistas: defendem que a existência dos direitos da personalidade depende de previsão específica do ordenamento jurídico. Nesse sentido: Pietro Perlingieri, Adriano de Cupis, Miguel Reale. Observação: não se pode afirmar que uma das correntes acima seja majoritária. b) Vitalícios: os direitos da personalidade acompanham o ser humano ao longo da vida. Com a morte, extinguem-se a personalidade jurídica e, consequentemente, os direitos da personalidade. A sucessão causa mortis é capaz de transmitir apenas direitos patrimoniais. Contudo, se uma pessoa já morta for alvo de uma ofensa, seus familiares ainda vivos são lesados de forma indireta, podendo exigir em juízo a reparação pelo dano moral em ricochete. Nesse sentido, o art. 12, parágrafo único, do Código Civil de 2002 dispõe que, “em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau”. c) Absolutos: os direitos da personalidade impõem um dever geral de abstenção a todas as pessoas (sujeição passiva universal); todas as pessoas devem abster-se de praticar qualquer ato que possa prejudicar a integridade de um ser humano. O desrespeito a esse dever, ou até mesmo a ameaça de desrespeito, dá ao ofendido a possibilidade de requerer medidas para prevenção desse dano ou para sua repressão, conforme previsão do caput do art. 12 do Código Civil (“Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”). O termo “absoluto” só não pode ser utilizado para designar a inexistência de limites no exercício do direito, uma vez que não existe no ordenamento jurídico nenhum direito absoluto. Nem mesmo os direitos fundamentais podem ser tidos como absolutos. Os direitos da personalidade têm seus limites impostos por outros direitos funda68 Direito Civil mentais, pela lei, pelos bons costumes, pela moral etc. Nesse sentido, o Enunciado 139 da III Jornada de Direito Civil do CJF/STJ assim afirma: “os direitos da personalidade podem sofrer limitações, ainda que não especificamente previstas em lei, não podendo ser exercidos com abuso de direito de seu titular, contrariamente à boa-fé objetiva e aos bons costumes”. d)Ilimitados: não há dúvidas de que o rol dos direitos fundamentais listados pelo Código Civil de 2002 e pela Constituição Federal são meramente exemplificativos (ao que se refere a expressão latina numerus apertus). Compete à doutrina e ao trabalho dos tribunais a identificação e o reconhecimento de novos direitos da personalidade diante da evolução da sociedade, com seu progresso econômico, cultural, científico etc. Atualmente, estão positivados (isto é, descritos textualmente) no Código Civil de 2002 e na Constituição Federal de 1988 os seguintes direitos da personalidade: CÓDIGO CIVIL DE 2002 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Direito à imagem (art. 20) Direito à imagem (art. 5º, V, X e XXVIII) Direito à honra (art. 20) Direito à honra (art. 5º, X) Direito à vida privada (art. 21) Direito à vida privada (art. 5º, X) Direito ao próprio corpo (arts. 13 a 15) Direito à vida (art. 5º, caput) Direito ao nome (arts. 16 a 19) Direito à intimidade (art. 5º, X e LX) Direito à liberdade (art. 5º, caput) Direito ao sigilo (art. 5º, XII) Direito autoral (art. 5º, XXVII) COMENTÁRIO No que diz respeito às medidas reparatórias (p. ex.: pretensão de indenização por dano moral), a doutrina diverge a respeito da existência ou não de prazo de prescrição para a propositura da ação (exercício da pretensão em juízo), podendo ser apontadas as seguintes correntes: 1ª Corrente: defende que a pretensão de reparação de danos morais é sempre imprescritível, em virtude da natureza dos direitos da personalidade. 2ª Corrente: defende que a pretensão de reparação de danos morais prescreve no mesmo prazo que a pretensão de reparação de danos materiais. Se a relação for civil, o prazo de prescrição será de 3 (três) anos, aplicando-se à hipótese o art. 206, § 3º, V, do CC/2002. Se a relação for de consumo, o prazo de prescrição será de 5 (cinco) anos para o consumidor pleitear a indenização, em atenção ao disposto no art. 27 do Código de Defesa do Consumidor. Direito à voz (art. 5º, XXVIII) e)Extrapatrimoniais: é impossível atribuir valor econômico aos direitos da personalidade, pois não integram o patrimônio da pessoa (ou seja, dizem respeito ao ser, e não ao ter). O fato de a lesão aos direitos da personalidade ser reparada de forma pecuniária (isto é, mediante o pagamento de uma indenização em dinheiro) não afasta sua extrapatrimonialidade. Entende-se que a condenação monetária é uma forma de diminuir o dano causado à vítima e uma forma de evitar repetição do ato pelo causador do dano (função educativa da condenação), mas nunca uma valoração, em dinheiro, do direito em si. Também não desvirtua a extrapatrimonialidade o fato de o exercício do direito da personalidade poder ter repercussão econômica (p. ex.: a remuneração recebida por um artista que autorizou a exploração de sua imagem). f)Imprescritíveis: os direitos da personalidade são considerados imprescritíveis, pois o não exercício pelo seu titular não acarreta 69 ATENÇÃO Na reparação de danos causados em razão de crime de tortura, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido que a pretensão indenizatória é imprescritível (REsp 1.002.009/PE, j. 12-2-2008, DJ 21-22008, Rel. Min. Humberto Martins). a extinção do direito nem o afastamento da proteção dada pelo ordenamento jurídico. Desse modo, a qualquer momento pode-se exigir que cesse a violação a um direito da personalidade (medidas preventivas/protetivas). CoMentÁrio Também podemos falar em legítima disponibilidade relativa quando uma pessoa realiza uma tatuagem em seu corpo, uma vez que esta prática revela um costume social. g) Intransmissíveis: os direitos da personalidade estão ligados de tal forma à personalidade jurídica de cada ser humano que não se admite a sua transmissão. Não podem ser transferidos em vida (inter vivos), mediante contrato, nem após a morte (causa mortis), por meio de sucessão. É absolutamente inconcebível que uma pessoa exerça direito da personalidade de outra (p. ex.: direito à vida). Afirma-se, portanto, que esses direitos surgem e desaparecem ope legis (por força da lei) com o seu titular. Quanto à disponibilidade do corpo humano, o Enunciado 401 da V Jornada de Direito Civil do CJF/STJ dispõe que “não contraria os bons costumes a cessão gratuita de direitos de uso de material biológico para fins de pesquisa científica, desde que a manifestação de vontade tenha sido livre e esclarecida e puder ser revogada a qualquer tempo, conforme as normas éticas que regem a pesquisa científica e o respeito aos direitos fundamentais”. h) Relativamente disponíveis: embora não se admita a transmissão dos direitos da personalidade, nada impede que uma pessoa disponha de algum aspecto de sua personalidade de forma relativa e temporária. Podemos citar, por exemplo, a possibilidade de uma pessoa autorizar a exploração de sua imagem para uma propaganda, de forma gratuita ou onerosa (ou seja, mediante pagamento). i) Irrenunciáveis: os titulares dos direitos da personalidade não podem ser renunciados, pois surgem com o ser humano e o acompanham ao longo da vida (vitalícios). A cessão de alguns direitos de forma relativa também não descaracteriza a irrenunciabilidade. Pelo contrário, reforça a ideia da titularidade do direito e prevê que, no exercício dele, poderão acontecer negócios jurídicos voluntários. j) Inexpropriáveis: por serem inatos e ligados à pessoa, os direitos da personalidade não podem ser retirados da esfera de seu titular. Não podem, dessa forma, ser arrematados, adjudicados ou utilizados com o objetivo de garantir uma obrigação, características estas reforçadas pelo art. 832 do novo CPC: “não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis”. Não há consenso na doutrina quanto à taxonomia (classificação) dos direitos da personalidade. Autores como Pontes de Miranda, Alexandre De Cupis, Orlando Gomes, Francisco Amaral, Rubens Limongi França e Carlos Alberto Bittar propõem distintas formas de classificação, levando em consideração elementos diversos. Contudo, ainda que a discussão seja intensa, não há importância prática na adoção de uma ou outra classificação. Exatamente por isso, o próprio legislador também se furtou de tal tarefa ao enumerar alguns dos direitos da personalidade no Código Civil de 2002 e na Constituição Federal de 1988. Sem a pretensão de esgotar o estudo de todos os direitos da personalidade existentes, observemos quais as regras presentes em nosso Código Civil. 70 Direito Civil 3.3.1. Direito ao corpo ATENÇÃO Nos termos do art. 13 do Código Civil, “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”. O dispositivo proíbe todo e qualquer ato de disposição do corpo quando importar diminuição permanente da integridade física (p. ex.: amputação de membro sem exigência médica) ou contrariar os bons costumes (p. ex.: prostituição, venda de órgãos humanos etc.). As cirurgias plásticas, reparadoras ou estéticas, são admitidas por não ser, em regra, prejudiciais à saúde. Constituem exceções as hipóteses de exigência médica, como, por exemplo, a amputação de membro gangrenado, a cirurgia de adequação de sexo do hermafrodita, a cirurgia de mudança de sexo do transexual etc. Ampliando o conceito de exigência médica, o Enunciado 6 da I Jornada de Direito Civil do CJF propõe que “a expressão ‘exigência médica’, contida no art. 13, refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-estar psíquico do disponente”. E quanto aos transexuais, o Enunciado 276 da IV Jornada de Direito Civil do CJF defende que “o art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil”. 3.3.1.1. Doação do corpo Além das hipóteses de exigência médica, a disposição do corpo também é admitida para fins de transplante. Nesse sentido, o art. 13, parágrafo único, do Código Civil dispõe que “o ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial”. A doação de partes do corpo humano pode ser feita em vida ou após a morte. A doação em vida (inter vivos) de parte do corpo humano por pessoa viva para fins terapêuticos ou para transplantes deve obedecer às regras presentes no art. 9º da Lei n. 9.434/97, em especial: a) capacidade: o doador deve ser pessoa juridicamente capaz, mas admite-se a doação por pessoas incapazes em situações excepcionais mediante autorização judicial; b) gratuidade: a doação só poder ser realizada gratuitamente; c) favorecido: se a doação for feita em favor de cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, a autorização deverá ser concedida preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificando o tecido, o órgão ou a parte do corpo objeto da retirada. Se a doação for feita a pessoas diversas, é necessária autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea (art. 9º da Lei n. 9.434/97); d) objeto: só é permitida a doação de órgãos duplos (p. ex.: rins), de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo, cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade, não represen71 Transexual é a pessoa que rejeita sua identidade genética e a própria anatomia de seu gênero, identificando-se psicologicamente com o gênero oposto. Difere, portanto, do homossexual, pois este se sente atraído por pessoas do mesmo sexo, mas não tem qualquer problema de rejeição quanto a sua própria anatomia. VOCABULÁRIO hermafrodita: ser vivo que possui os órgãos genitais de ambos os sexos. transgenitalização: procedimento cirúrgico popularmente conhecido como “mudança de sexo”. VoCaBUlÁrio revogado: tornado sem efeito, inválido. altruístico: dotado de amor ao próximo, desprendido, filantrópico. Altruísmo é termo que se opõe à ideia de egoísmo. disposição: uso, emprego. omisso: aquele que deixa de manifestar ou de fazer algo. revogabilidade: possibilidade de ser desfeito, de ser invalidado. presumido: admitido como certo ou verdadeiro, algo que se supõe ou se admite sobre determinado objeto, pessoa ou situação. Deriva da palavra “presunção”. CineMateCa não me abandone jamais. (Direção de Mark Romanek, 2011) Uma revelação surpreendente sobre doação de órgãos muda as vidas de três jovens que cresceram juntos num internato. Outros filmes com a mesma temática: Feitiço do coração, Um ato de coragem, sete vidas, Coisas belas e sujas, tudo sobre minha mãe, Uma prova de amor, 21 gramas. te grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental, não cause mutilação ou deformação inaceitável (p. ex.: leite, sangue, medula óssea, pele, óvulo, esperma) e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora; e e) revogabilidade: a doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização. Quanto à doação após a morte (post mortem), o art. 14 do Código Civil determina que é válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo. A doação post mortem pode ser feita para fins de transplante ou para fins científicos (p. ex.: pesquisa de doença, estudo de anatomia etc.), observados os seguintes requisitos: a) gratuidade: os titulares não podem ser remunerados; b) beneficiário: pode ser indicado para fins científicos (p. ex.: deixar o corpo para a faculdade de medicina da Santa Casa de São Paulo), mas não pode ser indicado para fins de transplante, devendo ser respeitada uma lista de espera para esse fim; c) revogabilidade: a disposição manifestada mediante testamento ou escritura pública pode ser revogada a qualquer momento (sine die) pelo doador. Em sua redação original, o art. 4º da Lei n. 9.434/97 estabelecia presunção relativa de que toda pessoa era doadora de órgãos (princípio do consenso presumido – presumed consent ou opting out). Se esta não fosse a vontade da pessoa, bastava inscrever na Carteira de Identidade ou na Carteira de Habilitação que não era doadora de órgãos e tecidos. Infelizmente, a inovação legislativa não agradou a todos, e o dispositivo foi alterado pela Lei n. 10.211/2001 para determinar que “a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte” (princípio do consenso afirmativo – affirmative consent ou opting in). O maior problema da alteração legislativa é que o dispositivo não confere ao falecido o direito de disposição do corpo, mas, sim, aos seus parentes. Esse problema foi resolvido com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, que confere à pessoa o direito de dispor sobre seu próprio corpo para após a morte, somente devendo ser respeitada a vontade de parentes se o falecido foi omisso (vide Enunciado 277/CJF abaixo). Contudo, observa-se que, na prática, médicos e hospitais têm, equivocadamente, exigido a manifestação de vontade dos parentes do falecido. Enunciado 277 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “O art. 14 do Código Civil, ao afirmar a validade da disposição gratuita do próprio corpo, com objetivo científico ou altruístico, para depois da morte, determinou que a manifestação expressa do doador de órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares, portanto, a aplicação do art. 4º da Lei n. 9.434/97 ficou restrita à hipótese de silêncio do potencial doador”. 72 Direito Civil 3.3.1.2. Direito à recusa ao tratamento médico VOCABULÁRIO Todo paciente tem direito de receber as informações sobre o tratamento a que será submetido e, a partir daí, concordar ou não com o referido tratamento (consentimento informado). Isto porque a pessoa, tendo ciência dos riscos e consequências que pode sofrer, poderá escolher entre as opções apresentadas a que julgar ser a melhor para si. Tal consentimento é dispensado nos casos de iminente perigo de vida e de intervenção necessária e inadiável, como, por exemplo, na hipótese em que a pessoa fica desacordada após um acidente de trânsito. Nesse sentido, o art. 31 do Código de Ética Médica determina que é vedado ao médico “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte” (Resolução 1.931/2009 do Conselho Federal de Medicina). De acordo com o art. 15 do Código Civil, ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. Interpretando o dispositivo, o Conselho da Justiça Federal aprovou o Enunciado 403 na V Jornada de Direito Civil, com o seguinte teor: “o direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante”. 3.3.2. Direito ao nome O nome da pessoa integra a sua própria personalidade, permitindo que ela seja identificada e individualizada perante a sociedade. A proteção do nome é matéria de ordem pública, tendo em vista o interesse do Estado na identificação das pessoas. É por essa razão que impõe diversas restrições à alteração de qualquer um dos seus elementos (prenome ou sobrenome). O Código Civil dispõe sobre a proteção do nome, impedindo sua divulgação em publicações ou representações que exponham a pessoa ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória, e proibindo sua utilização em propaganda comercial não autorizada (art. 17). De acordo com o art. 18 do mesmo Código, o nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória. Consoante determina a Súmula 221 do STJ, “são civilmente responsáveis pelo ressarcimento do dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação”. Além das normas do Código Civil de 2002, a Lei de Registros Públicos também regulamenta o nome nos arts. 54 a 58. 73 inviolabilidade: proibição ou impossibilidade de violar, infringir, ferir. intenção difamatória: intenção de difamar, ofender a reputação de alguém, desacreditar ou desabonar alguém publicamente. COMENTÁRIO “É válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado ‘testamento vital’, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade” (Enunciado n. 527 aprovado na V Jornada de Direito Civil). Ver também a Portaria n. 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina REFLEXÃO Há uma colisão de direi­ tos fundamentais, em especial o direito à vida e o direito à liberdade (o qual engloba as liberdades de crença, religião e culto), na recusa das Testemunhas de Jeová ao recebimento de transfusões de sangue? Leia o artigo disponível em http://jus. com.br/artigos/27471/as-testemunhas-de-jeova-e-o-direito-fundamental-de-recusa-as-transfusoes-de-sangue-na-constituicao-brasileira-de-1988#ixzz3fImGNwTs e discuta com seus colegas e professor. CineMateCa 3.3.2.1. Elementos do nome a) Prenome: é popularmente conhecido como “primeiro nome”, e pode ser simples (João, Flávio, Fernando etc.) ou composto (Maria Clara, João Pedro, Ana Carolina etc.). É escolhido livremente pelos pais, desde que não exponha o filho ao ridículo, devendo, nessa hipótese, o oficial do Registro Civil se recusar a registrá-lo e encaminhar a questão ao juiz. b) Sobrenome: também conhecido como nome, patronímico ou apelido de família, é o sinal que indica a procedência da pessoa, sua família e filiação. A Lei n. 11.924/2009 (Lei Clodovil) alterou o § 8º da Lei de Registros Públicos, permitindo que o enteado ou a enteada acrescente o nome de família do padrasto ou da madrasta, mediante requerimento judicial. c) Agnome: é o sinal que distingue membros da família que utilizam o mesmo nome e sobrenome (p. ex.: Filho, Neto, Sobrinho, Júnior etc.). d) Partícula: é utilizada entre o prenome e o sobrenome ou entre os sobrenomes (p. ex.: de, da, dos etc.). e) Alcunha: também conhecida como cognome ou epíteto, é a designação atribuída a uma pessoa em razão de alguma particularidade ou características, tais como habilidade, profissão, aparência, local de nascimento (p. ex.: Aleijadinho, Tiradentes etc.). Apenas por sentença judicial pode a alcunha passar a fazer parte do nome da pessoa. o casamento de Muriel. (Direção de P. J. Hogan, 1994) Retrata uma adolescente que, ao fugir da casa de seus pais após praticar um ilícito, muda seu nome para não poder ser localizada e também para viver uma nova experiência. Expõe, assim, os aspectos jurídicos e psicológicos da alteração do nome. atenÇÃo Sob proteção especial por se tratar de direito da personalidade, o uso da imagem de uma pessoa não requer autorização quando feito no contexto de uma notícia jornalística, sem exploração comercial e sem identificação de seus componentes, especialmente se retratar uma coletividade de pessoas. Já as pessoas publicamente conhecidas (famosos, celebridades) têm certa restrição quanto ao direito de reclamar contra o uso indevido de sua imagem, comparativamente ao de pessoas “comuns”. Há nesses casos uma presunção de consentimento, devendo-se preservar a sua vida privada. Sobre o tema, acesse o artigo disponível em http://psilvafreitas.jusbrasil.com. br/artigos/149456872/a-inexistencia-de-autorizacao-no-uso-da -imagem-do-artista 3.3.2.2. Pseudônimo O pseudônimo pode ser definido como o nome fictício utilizado por uma pessoa no exercício de seu trabalho ou profissão. É comumente utilizado por literatos e artistas, podendo ser citados como exemplos: Di Cavalcanti (Emiliano de Albuquerque de Melo), Sílvio Santos (Senor Abravanel) etc. O pseudônimo não deve ser confundido com o heterônimo, em que há a criação não só de um nome fictício, mas de uma personalidade fictícia. É o que ocorria com Fernando Pessoa, que escrevia e assinava suas poesias em nome próprio e também por meio de seus heterônimos (Ricardo Reis, Álvaro Campos, Alberto Caeiro etc.), cada qual com seu estilo, sentimentos e biografias próprias. Nos termos do art. 19 do Código Civil, “o pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome”. Embora exista distinção entre os conceitos, e o art. 19 do Código Civil somente se refira ao pseudônimo, ambos recebem a mesma proteção conferida ao nome. Contudo, requisito essencial para a proteção tanto de um quanto de outro é que sejam utilizados para atividades lícitas. 3.3.3. Direito à imagem O direito à imagem é o direito da personalidade conferido a todos os seres humanos para que possam controlar o uso e a exploração de sua 74 Direito Civil imagem, como a representação fiel de seus aspectos físicos (fotografia, retratos pintados, gravuras etc.), sua aparência individual e distinguível, concreta ou abstrata. Além da Constituição Federal, o Código Civil também veio proteger o direito à imagem ao dispor que, “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais” (art. 20). VOCABULÁRIO veracidade: qualidade de verdadeiro, que demonstra corresponder à verdade. notoriedade: fama, consagração, reconhecimento por todos. O objetivo do dispositivo é o de proteger o direito à imagem e outros direitos conexos, conferindo ao titular a disponibilidade sobre a divulgação de escritos, transmissão da palavra e sua publicação, a exposição ou utilização de imagem. Cabe ao indivíduo autorizar ou proibir a exploração desses aspectos de sua personalidade. Contudo, essa disponibilidade é relativa e cede diante de interesses sociais maiores como a administração da justiça ou a manutenção da ordem pública. Segundo o Enunciado 279/CJF, “a proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as JURISPRUDÊNCIA CIVIL. REGISTRO PÚBLICO. NOME CIVIL. PRENOME. RETIFICAÇÃO. POSSIBILIDADE. MOTIVAÇÃO SUFICIENTE. PERMISSÃO LEGAL. LEI 6.015/1973, ART. 57. HERMENÊUTICA. EVOLUÇÃO DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA. RECURSO PROVIDO. I - O NOME PODE SER MODIFICADO DESDE QUE MOTIVADAMENTE JUSTIFICADO. NO CASO, ALÉM DO ABANDONO PELO PAI, O AUTOR SEMPRE FOI CONHECIDO POR OUTRO PATRONÍMICO. II - A JURISPRUDÊNCIA, COMO REGISTROU BENEDITO SILVERIO RIBEIRO, AO BUSCAR A CORRETA INTELIGÊNCIA DA LEI, AFINADA COM A “LÓGICA DO RAZOÁVEL”, TEM SIDO SENSÍVEL AO ENTENDIMENTO DE QUE O QUE SE PRETENDE COM O NOME CIVIL É A REAL INDIVIDUALIZAÇÃO DA PESSOA PERANTE A FAMÍLIA E A SOCIEDADE (STJ, Quarta Turma, Recurso Especial 1995/0025391-7, julgado em 21/10/1997, publicado no DJ em 9/12/1997, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira). RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. CASAMENTO. NOME CIVIL. SUPRESSÃO DO PATRONÍMICO MATERNO. POSSIBILIDADE. JUSTO MOTIVO. DIREITO DA PERSONALIDADE. INTEGRIDADE PSICOLÓGICA. LAÇOS FAMILIARES ROMPIDOS. AUTONOMIA DE VONTADE. 1. Excepcionalmente, desde que preservados os interesses de terceiro e demonstrado justo motivo, é possível a supressão do patronímico materno por ocasião do casamento. 2. A supressão devidamente justificada de um patronímico em virtude do casamento realiza importante direito da personalidade, desde que não prejudique a plena ancestralidade nem a sociedade. 3. Preservação da autonomia de vontade e da integridade psicológica perante a unidade familiar no caso concreto. 4. Recurso especial não provido (STJ, RECURSO ESPECIAL, Terceira Turma, n. 2014/0022694-1, julgado em 26/5/2015, publicado no DOJe em 2/6/2015, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva). 75 CoMentÁrio exigência prévia de autorizaçãoparabiografias Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou, em 10/6/2015, procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815. Seguindo o voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, a decisão dá interpretação conforme a Constituição da República aos artigos 20 e 21 do Código Civil, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença de pessoa biografada, relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas). O tema havia sido objeto de audiência pública convocada pela relatora em novembro de 2013, com a participação de 17 expositores. Decisão disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=4815&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M. Acesso em 7-jul-2015. CineMateCa o voo. (Direção de Robert Zemeckis, 2013) A trama confronta a questão da honra subjetiva e da honra objetiva quando um piloto comercial, vivido por Denzel Washington, com problemas ligados a bebida e drogas, salva vidas após controlar uma pane na aeronave por ele conduzida. características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações”. E, sobre o tema, a Súmula 403 do Superior Tribunal de Justiça determina que independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais. 3.3.4. Direito à privacidade e direito à intimidade De acordo com o art. 21 do Código Civil, a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou interromper ato que desrespeite essa norma. Enquanto alguns autores defendem que os termos privacidade e intimidade são equivalentes, outros, como Maria Helena Diniz, apontam diferenças. Enquanto a privacidade protege os aspectos externos da vida humana, como seus hábitos, e-mails, telefones e cartas, a intimidade refere-se aos aspectos internos da existência humana, como o segredo, o relacionamento amoroso, as situações de pudor, o sofrimento em razão de enfermidade ou a perda de uma pessoa próxima. Privacidade e intimidade são bens jurídicos tutelados não só pelo Direito Civil, mas pela própria Constituição Federal, em diversos incisos do art. 5º (V, X, XI, XII e LX). Protege, assim, a vida privada de violações à casa, à correspondência, ao estilo de vida e aos demais aspectos próprios de cada pessoa em sua individualidade. Essa tutela também é sentida no Direito Penal, que pune o desrespeito a esses direitos, considerando crimes a violação de correspondência, a violação de domicílio e a interceptação telefônica, entre outras práticas. Ao tutelar a privacidade e a intimidade, o art. 20 do Código Civil também protege a honra das pessoas. De acordo com a doutrina, a honra pode ser dividida em duas espécies, ambas protegidas pelo direito. Honra subjetiva é o sentimento que a pessoa tem de si mesma, sentimentos internos de autoestima e dignidade. Por sua vez, honra objetiva é a forma como a pessoa é vista pelas outras pessoas, o seu conceito perante a sociedade, sua reputação. Evidente que as ofensas dirigidas a um ser humano podem acarretar a violação tanto da honra subjetiva quanto da objetiva, ensejando o direito à reparação dos danos. Se as ofensas forem dirigidas a pessoas jurídicas, com ou sem intuito lucrativo, haverá apenas violação à honra objetiva, visto que elas não possuem honra subjetiva. 3.4 ProteÇÃo Dos Direitos Da PersonaliDaDe Além de regular alguns direitos da personalidade, o Código Civil também se preocupou em garantir que eles sejam respeitados, estabelecendo um tratamento especial. Em caso de ameaça, o titular do direito 76 Direito Civil pode se valer de medidas judiciais preventivas; em caso de lesão, o titular do direito pode buscar a reparação dos danos morais. 3.4.1. Medidas preventivas As medidas preventivas ou inibitórias têm por objetivo influir de forma eficaz na vontade daquele que possa vir a violar direitos da personalidade. Essas medidas judiciais podem, inclusive, apresentar-se por tutela inaudita altera pars (ou seja, antes mesmo de a parte supostamente agressora ser ouvida pelo juiz), visto que a atuação deverá ser efetiva e primar pela proteção do bem jurídico de maior valor no caso concreto. O Código de Processo Civil tutela as formas de coibir lesão a direitos prevendo multas, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, garantindo inclusive a possibilidade de requisição policial para seu cumprimento (art. 536, § 1º). Como exemplo concreto de tais medidas, podemos citar a exclusão de sites na internet contendo fotos não autorizadas. 3.4.2. Medidas reparatórias As medidas reparatórias têm por objetivo amenizar as consequências da violação ao direito da personalidade (em observância do princípio da satisfação compensatória). Devemos lembrar que o dano moral é a lesão a qualquer direito da personalidade e não deve ser confundido com as suas consequências: dor, angústia, tristeza, depressão etc. Embora não se confundam, o objetivo da reparação do dano moral é justamente o de afastar as consequências da violação ao direito da personalidade, proporcionando à vítima algo que amenize o sofrimento suportado. Na jurisprudência, restou afastada a discussão do passado sobre a impossibilidade de se pleitear indenização por dano material cumulada com indenização por dano moral. Na atualidade, o entendimento pela possibilidade da cumulação é pacífico e sedimentado no STJ. Nesse sentido, a Súmula 37 do STJ dispõe que “são cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato” (publicada em 17-3-1992). 3.4.3. Legitimidade para requerer a proteção e a reparação Quem pode requerer a tutela jurisdicional de proteção ou de reparação a direito da personalidade é o próprio lesado. O lesado direto é a pessoa que está sofrendo a lesão em seus direitos da personalidade. Além do lesado direto, o parágrafo único do art. 12 do Código Civil prevê que lesados indiretos possam pleitear a proteção e a reparação a direitos da personalidade de pessoa morta, ao dispor que também têm legitimidade, para tal fim, o cônjuge sobrevivente e qualquer parente em linha reta e colateral até o quarto grau. De acordo com o Enunciado 398 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, “as medidas previstas no art. 12, pará77 JURISPRUDÊNCIA INDENIZAÇÃO – DANOS MORAIS – HERDEIROS – LEGITIMIDADE – 1. Os pais estão legitimados, por terem interesse jurídico, para acionarem o Estado na busca de indenização por danos morais sofridos por seu filho, em razão de atos administrativos praticados por agentes públicos que deram publicidade ao fato de a vítima ser portadora do vírus HIV. 2. Os autores, no caso, são herdeiros da vítima, pelo que exigem indenização pela dor (dano moral) sofrida, em vida, pelo filho já falecido, em virtude de publicação de edital, pelos agentes do Estado réu, referente à sua condição de portador do vírus HIV. 3. O direito que, na situação analisada, poderia ser reconhecido ao falecido, transmite-se, induvidosamente, aos seus pais. 4. A regra, em nossa ordem jurídica, impõe a transmissibilidade dos direitos não personalíssimos, salvo expressão legal. 5. O direito de ação por dano moral é de natureza patrimonial e, como tal, transmite-se aos sucessores da vítima (RSTJ, vol. 71/183). 6. A perda de pessoa querida pode provocar duas espécies de dano: o material e o moral. 7. “O herdeiro não sucede no sofrimento da vítima. Não seria razoável admitir-se que o sofrimento do ofendido se prolongasse ou se entendesse (deve ser estendesse) ao herdeiro e este, fazendo sua a dor do morto, demandasse o responsável, a fim de ser indenizado da dor alheia. Mas é irrecusável que o herdeiro sucede no direito de ação que o morto, quando ainda vivo, tinha contra o autor do dano. Se o sofrimento é algo entranhadamente pessoal, o direito de ação de indenização do dano moral é de natureza patrimonial e, como tal, transmite-se aos sucessores” (Leon Mazeaud, em magistério publicado no Recueil Critique Dalloz, 1943, p. 46, citado por Mário Moacyr Porto, conforme referido no acórdão recorrido). 8. Recurso improvido. (STJ – REsp – 324886 – PR – 1ª T. – Rel. Min. José Delgado – DJU 03.09.2001 – p. 159) grafo único, do Código Civil podem ser invocadas por qualquer uma das pessoas ali mencionadas de forma concorrente e autônoma”. Esse enunciado tem por objetivo afastar a tese de que haveria uma ordem de vocação hereditária, semelhante àquela existente no Código Civil para estabelecer quem são os herdeiros, para pleitear indenização por dano moral. Afinal, o sofrimento pela ofensa dirigida ao ente querido não tem qualquer relação com eventual direito hereditário. Especificamente quanto ao direito de imagem, o art. 20, parágrafo único, do Código Civil dispõe que, “em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”. De acordo com o Enunciado 275 do Conselho da Justiça Federal, “o rol dos legitimados de que tratam os arts. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, do Código Civil também compreende o companheiro”. 78 4 A Pessoa Jurídica VoCaBUlÁrio ficção: no sentido empregado nesse texto, fantasia, algo criado artificialmente aUtor león Duguit (1859-1928) foi um doutrinador francês que tratou do direito público e das limitações ao poder do Estado. Marcel Ferdinand Planiol (1861-1959) foi o jurista que deu ao Direito Civil francês um olhar diferenciado na chamada Belle Époque. rudolf Von Jhering (18181892), autor alemão, teve grande influência para a ciência jurídica ocidental. Seu livro “A Luta pelo Direito” é obra clássica que introduz a concepção finalista do Direito. 4.1 ConCeito Denominam-se pessoas jurídicas os entes formados pela coletividade de bens ou de pessoas a quem a lei atribui personalidade jurídica, com o objetivo de que seja atingida uma determinada finalidade autorizada ou não proibida por Lei (ou seja, lícita). Em outras palavras, para que a coletividade possa agir como uma unidade, o ordenamento jurídico confere uma personalidade própria, que não deve ser confundida com a personalidade de cada um de seus integrantes (conforme a expressão latina universitas distat a singulis). Quando o agrupamento é de pessoas, afirma-se que a pessoa jurídica é intersubjetiva, podendo assumir a forma de uma associação ou de uma sociedade. Quando é resultado do agrupamento de bens, a pessoa jurídica é patrimonial, sendo denominada fundação. Excepcionalmente, o ordenamento jurídico também confere personalidade a entidades sem coletividade, podendo ser citada como exemplo a Eireli (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada). 4.2 natUreZa JUríDiCa É pacífico o entendimento na atualidade de que as pessoas jurídicas devem ser classificadas como sujeitos de direito, justamente por serem entes dotados de capacidade e personalidade jurídica própria. Entretanto, por muito tempo não houve consenso com relação à natureza jurídica das pessoas jurídicas. No passado, não foram poucos os autores que negaram a qualidade de sujeito de direito à pessoa jurídica (Duguit, Planiol, Berthélemy, Ihering, Wieland, Bolze etc.). Consideravam a pessoa jurídica uma forma especial de patrimônio (mera forma de condomínio ou propriedade coletiva), em que as decisões eram tomadas pelos seus proprietários de forma coletiva. Paulatinamente, as teorias negativistas da pessoa jurídica foram sendo rebatidas e hoje a posição majoritária é no sentido de que as pessoas jurídicas têm personalidade jurídica própria. Contudo, os autores divergem sobre a tese que fundamentara a personalidade. Dentre as diversas teorias afirmativistas da pessoa jurídica, destacam-se as seguintes: a) Teoria da equiparação: baseia-se na ideia de que a pessoa jurídica é um patrimônio que recebe do ordenamento jurídico, por equiparação, o mesmo tratamento dispensado às pessoas naturais (seres humanos). Por tratar bens como sujeitos de direitos, essa teoria é muito criticada pela doutrina, havendo até mesmo quem entenda que pertença ao grupo das teorias negativistas da pessoa jurídica. Dentre os defensores dessa teoria, destacam-se Windscheid e Brinz. b) Teoria da ficção legal: para essa teoria, a pessoa jurídica é uma mera abstração legal, isto é, uma criação artificial do legislador. A crítica recai sobre o fato de que esta teoria reconhece apenas a 80 Direito Civil existência ideal da pessoa jurídica, negando sua existência real e colocando a lei como força criativa, e não como uma força confirmativa da personalidade jurídica. Além disso, se a personalidade das pessoas jurídicas é fruto de ficção, fictício será o direito que dela deriva. O desenvolvimento da teoria de ficção legal é atribuído a Savigny, sendo defendida também por Orlando Gomes. Importante salientar a existência de outra teoria, decorrente dela, que defende que a personalidade da pessoa jurídica é resultado de invenção dos estudiosos do direito (teoria da ficção doutrinária). Trata-se de posicionamento pouco difundido, e que é alvo das mesmas críticas acima mencionadas. c)Teoria da realidade objetiva: a teoria da realidade objetiva, também conhecida como teoria da realidade orgânica, teoria orgânica ou teoria organicionista, defende exatamente o oposto da teoria da ficção legal. As pessoas jurídicas são, portanto, entes de existência real (detentoras de identidade organizacional própria), cuja personalidade jurídica independe do reconhecimento legal. Reconhece-se a dimensão sociológica das pessoas jurídicas ao considerá-las um organismo social vivo. A formulação dessa teoria é atribuída a Gierke e Zitelmann. d)Teoria da realidade técnica: mesclando as ideias das teorias anteriores, a teoria da realidade técnica defende que a personalidade da pessoa jurídica é resultado de sua existência real aliada à sua existência ideal. Reconhece, desta feita, a importância da dimensão social e legal das pessoas jurídicas, sem ignorar o lado fictício da pessoa jurídica (criação legal). Assim sendo, a personalidade jurídica seria conferida pela lei a qualquer agrupamento suscetível de ter uma vontade própria e de defender seus próprios interesses. Defende essa posição Caio Mário da Silva Pereira. Elementos estruturais (pressupostos existenciais da pessoa jurídica) 4.3 Para que a pessoa jurídica possa ser constituída de forma válida, são exigidos diversos requisitos. Importante observar que a doutrina está longe de chegar a um consenso com relação ao tema. Contudo, entendemos que os principais pressupostos gerais são: a vontade humana criadora; a coletividade de pessoas ou de bens; e a finalidade lícita. E diz-se “gerais” porque, além destes, deverão ser observados outros exigidos pela lei, a depender do tipo específico de pessoa jurídica que será constituída. A título de exemplo podemos citar: a elaboração do estatuto ou contrato social; a inscrição do ato constitutivo; a autorização prévia do Poder Executivo exigida em hipóteses excepcionais (p. ex.: instituições bancárias e seguradoras) etc. Vejamos, agora, de forma detalhada, os três principais requisitos: 81 AUTOR Friedrich Carl von Savigny (17791861) foi um jurista alemão de grande influência nos países de tradição jurídica romano-germânica, além de ter sido o grande nome da Escola Histórica do Direito e ter tratado em sua obra de conceitos como relação jurídica e fato jurídico. Orlando Gomes (19091988), brasileiro de Salvador, Bahia, foi jurista de grande importância para o Direito Civil. Tratou de todos os temas da disciplina e consolidou vários dos seus conceitos fundamentais no Brasil. CineMateCa a Firma. (Direção de Sydney Pollack, 1993) Retrata uma sociedade de advogados cuja finalidade é a lavagem de dinheiro de uma organização criminosa, demonstrando a falta de liceidade da pessoa jurídica. 1º Requisito: vontade humana criadora A vontade humana criadora é sempre um requisito essencial para a constituição da pessoa jurídica formada, não importando se é composta pela coletividade de pessoas ou de bens. Nas pessoas jurídicas intersubjetivas, há uma conversão de vontades de todos os participantes do grupo para que os fins comuns sejam alcançados. Nas pessoas jurídicas patrimoniais, o fundador manifesta a sua vontade para que a coletividade de bens adquira personalidade jurídica (vontade heterônoma). A vontade humana criadora deve ser manifestada de forma livre e consciente por pessoa capaz ou devidamente representada. 2º Requisito: coletividade de pessoas ou bens A coletividade de pessoas (nas sociedades e nas associações) ou a coletividade de bens (nas fundações) é a base estrutural da pessoa jurídica. Excepcionalmente, o ordenamento jurídico confere personalidade jurídica a entes despidos de coletividade, como ocorre com a Eireli (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada). 3º Requisito: finalidade lícita (liceidade) Uma pessoa jurídica sempre será constituída com o fim de alcançar uma finalidade específica, seja lucrativa (p. ex.: sociedade) ou não (p. ex.: associação filantrópica, educativa, recreativa, política, religiosa etc.). Qualquer que seja esse objetivo, certo é que não poderá estar desconforme o ordenamento jurídico, devendo respeitar a lei, a moral, a ordem pública e os bons costumes. Caso tenha sido constituída com finalidade lícita e durante sua existência se desvirtuado, o Ministério Público poderá requerer sua dissolução. Cite-se como exemplo, aqui, o episódio envolvendo algumas torcidas organizadas de clubes de futebol do Estado de São Paulo. 4.4 PersonaliDaDe JUríDiCa Já se estudou que, no que concerne às pessoas naturais, todos os seres humanos são dotados de personalidade jurídica e, por isso, podem titularizar relações jurídicas. O mesmo ocorre com as pessoas jurídicas: assim como a lei confere personalidade jurídica às pessoas naturais, também a confere às pessoas jurídicas, permitindo que sejam titulares de direitos e deveres. Daí resulta que as pessoas jurídicas também são detentoras de capacidade jurídica, podendo praticar diversos atos da vida civil, como, por exemplo, celebrar contratos, adquirir bens móveis e imóveis, receber herança etc. Contudo, não se pode afirmar que as pessoas jurídicas podem praticar todos os atos da vida civil, pois alguns são reservados aos seres humanos, como a adoção, o casamento, a celebração de testamento etc. 4.4.1. Personalidade jurídica e direitos da personalidade Com relação à titularidade de direitos da personalidade, vimos no 82 Direito Civil capítulo anterior (Direitos da Personalidade) que a posição doutrinária majoritária é no sentido de que as pessoas jurídicas possuem alguns direitos da personalidade, tais como o direito à imagem e à honra objetiva. Nesse sentido, o art. 52 do Código Civil determina: “aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”. Por serem detentoras de direitos da personalidade, podem sofrer dano moral, como, aliás, prevê a Súmula 227/STJ. Recomendamos a leitura da Unidade anterior para conferir as posições doutrinárias sobre o tema. JURISPRUDÊNCIA Súmula 227 – STJ: “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral". 4.4.2. Início da personalidade Já estudamos as diversas teorias existentes quanto à determinação do momento em que os seres humanos adquirem personalidade jurídica (se a partir do nascimento ou da concepção). Com relação às pessoas jurídicas, a questão também não é simples, mas, diferentemente da pessoa física, que surge de um fato jurídico natural (biológico), a pessoa jurídica surge a partir de um fato jurídico humano: a vontade. Para determinação do momento do surgimento da personalidade da pessoa jurídica, deve ser feita a distinção entre as pessoas jurídicas de direito público e as pessoas jurídicas de direito privado. 4.4.2.1. Início da personalidade das pessoas jurídicas de direito público BIBLIOTECA As pessoas jurídicas de direito público são normalmente constituídas por lei e, desta forma, adquirem personalidade no exato momento em que a lei instituidora entrar em vigor. Excepcionalmente, a lei assume papel secundário, autorizando que o chefe do Poder Executivo (municipal, estadual ou federal) crie uma pessoa jurídica por força de decreto, adquirindo personalidade a partir da vigência deste. Além da criação por força de lei e por força de decreto, as pessoas jurídicas também podem ser constituídas por meio da promulgação de uma nova constituição, de um fato histórico ou de um tratado internacional. Vale lembrar que os tratados internacionais são normalmente utilizados para a criação de pessoas jurídicas de direito público externo – ONU, OIT, OMS etc. 4.4.2.2. Início da personalidade das pessoas jurídicas de direito privado O legislador brasileiro adotou como regra o sistema das disposições normativas ao exigir a observância de determinados requisitos legais, dentre eles o registro (a inscrição) do ato constitutivo. De acordo com o art. 45 do Código Civil, a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado começa com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo. Antes da análise detalhada do registro de cada uma 83 O sexto membro permanente: o Brasil e a criação da ONU, de Eugênio Vargas Garcia, que discorre, especialmente em seus capítulos iniciais, sobre o planejamento político que culminou na criação da organização supranacional que sobrevive até os dias atuais. Oswaldo Aranha – uma biografia, de Stanley Hilton, sobre o brasileiro que viveu à época da criação da ONU e participou da sua Assembleia Geral, em que aprovou-se, no ano de 1947, a divisão do território palestino em um Estado judeu e outro árabe, por meio da Resolução n. 181. das pessoas jurídicas, devemos verificar cada um dos sistemas que tratam da existência das pessoas jurídicas: Sistema da livre formação: foi o sistema adotado no Brasil até setembro de 1983, contudo era atacado por diversas críticas. Defende que a existência da pessoa jurídica tem início a partir da simples manifestação de vontade dos membros que a compõem, bastando, assim, a elaboração do ato constitutivo. Ao dispensar o registro do ato, não oferece qualquer segurança para as pessoas que contratam com a pessoa jurídica. Sistema do reconhecimento: defende que a pessoa jurídica somente existe a partir do momento em que o Estado a reconhece, mediante um decreto de reconhecimento. Esse sistema, que tem suas origens no direito romano, ainda é adotado na Itália, França e Portugal. Sistema das disposições normativas: sistema atualmente adotado no Brasil, representa uma posição intermediária entre os dois anteriores, ao estabelecer que a existência da pessoa jurídica não depende do reconhecimento ou da autorização estatal, mas do cumprimento de certos requisitos legais (p. ex.: o registro). Em situações excepcionais, exige-se no nosso país prévia autorização do Estado para criação da pessoa jurídica (p. ex.: instituições financeiras). 4.4.3. ato constitutivo e registro da pessoa jurídica As pessoas jurídicas passam por duas fases quando de sua criação: a primeira, consistente na elaboração do ato constitutivo; e a segunda, representada pelo registro do ato constitutivo. O ato constitutivo de uma sociedade é denominado contrato social; já o de uma associação ou de uma fundação é chamando estatuto. De acordo com o art. 46 do Código Civil, o registro deverá mencionar os seguintes requisitos: I – a denominação, os fins, a sede, o tempo de duração e o fundo social, quando houver; II – o nome e a individualização dos fundadores ou instituidores, e dos diretores; III – o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente; IV – se o ato constitutivo é reformável no tocante à administração, e de que modo; V – se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais; VI – as condições de extinção da pessoa jurídica e o destino do seu patrimônio, nesse caso. A Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/73 – art. 115) também estabelece regras para a constituição da pessoa jurídica, proibindo o seu registro “quando o seu objeto ou circunstâncias relevantes indiquem destino ou atividade ilícitos, ou contrários, nocivos ou perigosos ao bem público, à segurança do Estado e da coletividade, à ordem pública ou social, à moral e aos bons costumes”. Caso um estatuto ou contrato social seja levado a registro e o oficial que o receber perceber que se trata de pessoa jurídica cujo objeto a lei proíbe, deverá sobrestar o feito, de ofício ou por provocação de qualquer autoridade, e suscitar dúvida para que o juiz decida. 84 Direito Civil Em regra, a constituição de uma pessoa jurídica não depende de prévia autorização do Poder Executivo, somente exigida em situações excepcionais, como, por exemplo, para entidades financeiras (que requerem autorização do Banco Central), e seguradoras (as quais dependem de autorização da SUSEP). 4.4.3.1. N atureza jurídica do registro das pessoas jurídicas Diferentemente do que acontece com as pessoas físicas, em que o registro tem natureza meramente declaratória (retroagindo ao momento do nascimento/concepção – portanto, dotadas de eficácia ex tunc), o registro das pessoas jurídicas tem natureza constitutiva, pois a personalidade somente é adquirida a partir dele. Dessa forma, podemos afirmar que o registro das pessoas jurídicas tem eficácia ex nunc, não legitimando ou convalidando atos pretéritos. Essa é a posição majoritária na doutrina, mas devemos destacar que alguns autores do direito empresarial, como Fábio Ulhoa Coelho, defendem que o registro é declaratório e que a pessoa jurídica existe desde o momento em que o contrato social é celebrado. Denominam-se entes despersonalizados as sociedades de fato (inexiste o ato constitutivo) e as sociedades irregulares (que possuem ato constitutivo, mas este não se encontra devidamente registrado). Ambas recebem o mesmo tratamento jurídico e dentre os diversos problemas enfrentados por uma sociedade despersonificada podemos destacar os seguintes: • Responsabilidade pessoal, solidária e ilimitada dos sócios em face de quem contratou com a pessoa jurídica e de terceiros lesados. • Impossibilidade de obter número de inscrição no Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas – CNPJ, perante a Receita Federal. • Impossibilidade de participar de uma licitação ou de obter empréstimos ou financiamentos bancários. • Impossibilidade de ingressar em juízo em face de terceiros (em regra). 4.4.3.2. Local do registro A determinação do local onde deve ser levado a registro o ato constitutivo varia de acordo com o tipo de pessoa jurídica que se pretende registrar. A questão nem sempre é simples, pois, além das leis federais sobre a matéria (p. ex.: Lei de Registros Públicos), as Corregedorias dos Tribunais de Justiça estaduais estabelecem normas sobre competência registral. a) Junta comercial (Registro Público de Empresa): nas Juntas Comerciais Estaduais devem ser registradas as sociedades empresárias (antigamente denominadas de sociedades mercantis), conforme dispõe a Lei n. 8.934/94. Também são registradas na Junta Comercial: 85 JURISPRUDÊNCIA CARTÓRIO. ENTE DESPERSONALIZADO. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. RESOLUÇÃO SEM MÉRITO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CABIMENTO. Na condição de ente despersonalizado e desprovido de patrimônio próprio, a serventia extrajudicial não possui personalidade jurídica nem judiciária que lhe permita figurar no polo ativo ou passivo de uma demanda judicial. TRF-3 - APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO APELREE 63639 SP 1999.03.99.0636397 (TRF-3). Data de publicação: 17/02/2011. Seguradoras: o ato constitutivo das seguradoras deve ser registrado na Junta Comercial do Estado em que se constituírem. Esse registro somente é possível após prévia autorização da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, consoante Resolução 166/2007 do Conselho Nacional de Segurados Privados – CNSP. Operadoras de plano de saúde: a constituição de uma operadora de plano privado de assistência à saúde depende de registro na Junta Comercial, na Agência Nacional de Saúde – ANS, bem como de registro nos Conselhos Regionais de Medicina e Odontologia, conforme o caso, em cumprimento ao disposto no art. 1º da Lei n. 6.839, de 30 de outubro de 1980, e conforme o disposto no art. 8º da Lei n. 9.656/98. Instituições financeiras: a existência legal das instituições financeiras também depende do registro de seus atos constitutivos na Junta Comercial. Para que o registro seja promovido, exige-se prévia autorização do Banco Central, consoante determinação da Lei n. 4.595/64, que instituiu o Conselho Monetário Nacional. b) Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (CRCPJ): para que possam ser consideradas regularmente constituídas, as associações e fundações deverão ter seus estatutos devidamente registrados no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (“Livro A”) do município onde se estabelecerem. No mesmo local também deverão ser levados a registro os contratos sociais das sociedades simples (conforme art. 114 da Lei de Registros Públicos – Lei n. 6.015/77). Além das associações, fundações e sociedades simples, devem ser destacadas as seguintes entidades: Sociedades de profissionais liberais: devem ser registradas no Cartório de Registro Civil das Pessoas jurídicas por desenvolverem atividade intelectual. De acordo com o art. 966 do Código Civil de 2002, “não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”. Como exemplo, podemos citar as sociedades de médicos, dentistas, engenheiros, contadores etc. Além do registro no CRCPJ, essas sociedades também devem ser registradas na respectiva entidade de classe (CRM, CRO, CREA, CRC etc.). Partidos políticos: devem ter seus estatutos registrados no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas do Distrito Federal e, posteriormente, no Tribunal Superior Eleitoral (Constituição Federal, art. 17, § 2º; Lei n. 9.096/95, arts. 7º e 8º e Lei de Registros Públicos, art. 114, III). Sindicatos: o registro do sindicato deve ser feito no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas no “Livro A” (Constituição Federal, art. 8º, I e Lei de Registros Públicos, art. 114, I). Nos termos do art. 518 e seguintes da CLT, o sindicato também deverá ser cadastrado no Ministério do Trabalho. De acordo com a jurisprudência do STJ o sindicato adquire sua personalidade jurídica a partir do registro no CRCPJ, sendo desnecessário o registro junto ao Ministério do Trabalho. Contudo, para 86 Direito Civil o Supremo Tribunal Federal, a constituição válida dos sindicatos depende do duplo registro. Cooperativas: existe divergência doutrinária a respeito do local onde devem ser registradas as atas das assembleias constitutivas das cooperativas, podendo ser apontadas duas correntes. A primeira corrente defende que as cooperativas devem ser registradas na Junta Comercial, de acordo com as Leis ns. 5.764/71 (Lei das Cooperativas) e 8.934/94 (art. 32, II). A segunda corrente defende que as cooperativas devem ser registradas no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, pois teriam sido tratadas como sociedades simples pelo Código Civil de 2002 (arts. 982, II; 1.093 e seguintes). A questão é bem polêmica, e podemos afirmar que na prática tem prevalecido a primeira corrente, tendo a Receita Federal recusado a emissão de CNPJ para cooperativas registradas no CRCPJ. ONGs: as Organizações Não Governamentais são entidades filantrópicas que adquirem personalidade jurídica a partir do registro dos seus estatutos no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas. Para ATENÇÃO Adequação das pessoas jurídicas ao Código Civil de 2002 O art. 2.031 do Código Civil dispõe que “as associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, bem como os empresários, deverão se adaptar às disposições deste Código até 11 de janeiro de 2007”. Em sua redação original, o prazo era de um ano, depois foi dilatado para dois anos (pela Lei n. 10.838/2004) e, finalmente, para quatro anos – 11-1-2007 (Lei n. 11.127/2005). O parágrafo único do art. 2.031 (incluído pela Lei n. 10.825/2003) ressalvou as organizações religiosas e os partidos políticos, dispensando-os de promover qualquer regularização. A aplicabilidade do caput do art. 2.031 do Código Civil é objeto de controvérsia doutrinária, pois estabelece uma obrigação para pessoas jurídicas já constituí­das. Sobre a questão podem ser apresentadas duas correntes: 1ª Corrente: defende que o caput do art. 2.031 do Código Civil é válido e que as pessoas jurídicas constituídas anteriormente devem se adequar ao novo diploma. Essa é a corrente majoritária. O problema é que o CC/2002 não estabeleceu qual seria a consequência da inobservância do dispositivo. Entendemos que a melhor solução é a equiparação das pessoas jurídicas que não se adequaram às sociedades irregulares, suportando as consequências desse tratamento. Assim, enquanto não se regularizarem, não poderão participar de licitações; não poderão obter empréstimos bancários; não poderão receber verba pública etc. 2ª Corrente: defende que o dispositivo é inconstitucional por violar a proteção do ato jurídico perfeito, em afronta ao art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. Essa corrente é minoritária. Quanto às fundações, o art. 2.032 determina que aquelas instituídas segundo a legislação anterior, inclusive as de fins diversos dos previstos no parágrafo único do art. 62, subordinam-se, quanto ao seu funcionamento, ao disposto no Código Civil de 2002. Salvo o disposto em lei especial, as modificações dos atos constitutivos das pessoas jurídicas referidas no art. 44 (p. ex.: sociedades, associações, fundações etc.), bem como a sua transformação, incorporação, cisão ou fusão, regem-se desde logo por esse Código (art. 2.033). Diversamente, a dissolução e a liquidação dessas mesmas pessoas jurídicas, quando iniciadas antes da vigência do Código Civil de 2002, obedecerão ao disposto nas leis anteriores. 87 VoCaBUlÁrio decurso: esgotamento ou término (de um prazo). que possam receber o Certificado de Fins Filantrópicos, devem ser inscritas no Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, que é o órgão responsável pela regulamentação da política nacional de assistência social. A inscrição das entidades no CNAS somente é possível após a inscrição no Conselho Municipal da localidade em que exercem suas atividades (art. 9º, § 3º, da Lei n. 8.742/93 – Lei Orgânica da Assistência Social). Caso o município ainda não tenha instituído o Conselho Municipal de Assistência Social, a entidade deverá inscrever-se no Conselho Estadual do estado em que estiver localizada sua sede. Empresas de comunicação: de acordo com o disposto nos arts. 116, II, e 122 e seguintes da Lei de Registros Públicos, o registro de jornais, oficinas impressoras, empresas de radiodifusão e agências de notícias deverá ser feito no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (no “Livro B”). De acordo com o art. 125 da Lei de Registros Públicos, considera-se clandestino o jornal, ou outra publicação periódica, não matriculado (registrado) nos termos do art. 122 ou de cuja matrícula não constem os nomes e as qualificações do diretor ou redator e do proprietário. c) Outros locais: algumas pessoas jurídicas são registradas em outros locais, como, por exemplo, as sociedades de advogados, que devem ser registradas exclusivamente na Ordem dos Advogados do Brasil, no Conselho Seccional em cuja base territorial tiverem sede, conforme dispõe o art. 15, § 1º, do Estatuto da OAB. 4.4.4. Fim da personalidade Assim como ocorre com as pessoas naturais, a extinção da pessoa jurídica determina o fim de sua personalidade jurídica. Deve ser lembrado que a extinção nunca é instantânea, pois, seja qual for a hipótese, deverá ser feita sua liquidação, com a realização do ativo (créditos) e o pagamento do passivo (débitos). Encerrada a liquidação, poderá ser requerido o cancelamento da inscrição da pessoa jurídica. Como hipóteses de extinção, podemos citar o decurso do prazo de sua duração; a sua dissolução; a deliberação dos sócios; a falta de pluralidade dos sócios; uma determinação legal; um ato governamental; a dissolução judicial; a morte de sócio etc. Com a extinção da pessoa jurídica, deve ser dado um destino aos bens remanescentes. Nas sociedades, os bens remanescentes vão para os sócios. Nas associações e nas fundações, os bens devem ser destinados, em regra, a outra instituição com fins semelhantes, como veremos nos respectivos tópicos mais à frente. 4.5 rePresentaÇÃo Da Pessoa JUríDiCa A forma pela qual será representada a pessoa jurídica deve constar do ato constitutivo no momento do registro. A representação é feita pelos administradores nomeados, nos limites dos poderes conferidos 88 Direito Civil (Código Civil, art. 47). De acordo com o Enunciado 145 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, “o art. 47 não afasta a aplicação da teoria da aparência”, nos casos de responsabilização do sócio por atos praticados em nome da pessoa jurídica. Se a administração da pessoa jurídica for coletiva, as decisões serão tomadas pela maioria dos votos dos presentes, salvo se o ato constitutivo dispuser de modo diverso. Podem ser anuladas no prazo decadencial de 3 (três) anos as decisões tomadas pela maioria em caso de violação do estatuto ou lei, erro, dolo, simulação ou fraude. Se a administração da pessoa jurídica vier a faltar, o juiz, a requerimento de qualquer interessado, nomear-lhe-á administrador provisório (ad hoc). Responsabilidade da pessoa jurídica 4.6 ATENÇÃO Logo após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, surgiu divergência sobre qual seria o prazo de prescrição aplicável à pretensão indenizatória exercida em face do Estado: o prazo de 3 anos, previsto no art. 206, § 3º, V, do Código Civil de 2002 ou o prazo de 5 anos, previsto no art. 1º do Decreto n. 20.910/32. Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, prevaleceu o entendimento de que deve ser aplicado o prazo previsto no referido decreto. Por serem detentoras de personalidade jurídica própria, as pessoas jurídicas de direito privado respondem com seu próprio patrimônio pelos danos que causarem a terceiros (responsabilidade extracontratual) e pelas obrigações assumidas pelos seus administradores, nos limites estabelecidos em seus estatutos (responsabilidade contratual). Os atos praticados por administradores que extrapolem os poderes definidos no estatuto, bem como os atos praticados por falsos administradores, em regra, não geram responsabilidade para as pessoas jurídicas. Excepcionalmente, a pessoa jurídica poderá ser chamada a responder por esses atos diante da aplicação da teoria da aparência (boa-fé subjetiva). Exemplo: uma empresa pode ser obrigada a honrar um contrato celebrado por um administrador que foi demitido se o fornecedor não tinha conhecimento da demissão (agiu de boa-fé). Nos termos do art. 53 do Código Civil, as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo. Em outras palavras, as pessoas jurídicas de direito público interno têm, em regra, responsabilidade objetiva pelos danos causados a terceiros. Em situações excepcionais, relacionadas a conduta omissiva, a responsabilidade será subjetiva. Quanto às pessoas jurídicas de direito privado, a responsabilidade civil também é, em princípio, do tipo objetiva, pela incidência dos arts. 932 e 933 do Código Civil de 2002, que determinam que, ainda que não haja culpa de sua parte, o empregador responde pelos atos de seus empregados, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele. Essa afirmação é reforçada por outros dispositivos, como o art. 927 do Código Civil, que estabelece responsabilidade objetiva quando a atividade desenvolvida implicar risco aos direitos de outrem (atividade de 89 CINEMATECA Erin Brockovich – Uma Mulher de Talento. (Direção de Steven Soderbergh, 2000) Narra a história verídica da mulher que lutou contra a empresa de energia Pacific Gas and Electric Company (PG&E), que contamina o ambiente de uma comunidade de moradores próximos às suas instalações, causando-lhes câncer. Aborda a questão da responsabilidade civil objetiva das pessoas jurídicas. atenÇÃo Sociedades de economia mista e empresas públicas são consideradas pessoas jurídicas de direito privado, em que pese integrarem a administração indireta, conforme art. 4º do Decreto-lei n. 200/67. risco – art. 927, parágrafo único). Também será objetiva pelos danos causados pelos produtos postos em circulação (art. 931), bem como pelos acidentes de consumo na prestação de serviços e fornecimento de produtos no mercado de consumo (Código de Defesa do Consumidor, arts. 12 a 17). 4.7 Das DiVersas ClassiFiCaÇões Das Pessoas JUríDiCas As pessoas jurídicas podem ser classificadas levando-se em consideração a sua nacionalidade, a estrutura interna, ou a função a que se submetem. Vejamos cada uma dessas classificações e as principais consequências: 4.7.1.Classificaçãoquantoàestruturainterna Quanto à estrutura interna, as pessoas jurídicas podem ser divididas em corporações (universitas personarum) e fundações (universitas bonorum). Corporações são pessoas jurídicas formadas pela reunião de pessoas, podendo assumir a forma de sociedade ou de associação. Fundações são pessoas jurídicas formadas pela coletividade de bens. O estudo das sociedades, das associações e das fundações é realizado de forma detalhada mais à frente nesta obra. 4.7.2.Classificaçãoquantoàfunção Classificadas em atenção à função que desempenham, as pessoas jurídicas podem ser divididas em pessoas jurídicas de direito público e pessoas jurídicas de direito privado. Esta é a principal forma de classificação das pessoas jurídicas e foi adotada nos arts. 40 a 44 do Código Civil. 4.7.2.1. Pessoas jurídicas de direito público As pessoas jurídicas de direito público são aquelas reguladas por normas de direito público e estudadas pelo Direito Administrativo, podendo ser divididas em pessoas jurídicas de direito público externo e interno: a) Pessoas jurídicas de direito público externo: de acordo com o art. 42 do Código Civil, são consideradas pessoas jurídicas de direito público externo os Estados estrangeiros e todas as pessoas regidas pelo direito internacional público (ONU, OIT, OMC, FMI, OEA, UNESCO, INTERPOL, Santa Sé, Cruz Vermelha, MERCOSUL, ALCA, União Europeia etc.). b) Pessoas jurídicas de direito público interno: de acordo com o art. 41 do Código Civil, são pessoas jurídicas de direito público 90 Direito Civil interno: I – a União; II – os Estados, o Distrito Federal e os Territórios; III – os Municípios; IV – as autarquias, inclusive as associações públicas (redação dada pela Lei n. 11.107, de 2005); e V – as demais entidades de caráter público criadas por lei. Salvo disposição em contrário, as pessoas jurídicas de direito público, a que se tenha dado estrutura de direito privado, regem-se, no que couber, quanto ao seu funcionamento, pelas normas desse Código. Portanto, são consideradas pessoas jurídicas de direito público interno: NIÃO, ESTADOS, DISTRITO FEDERAL, TERRITÓRIOS E MUU NICÍPIOS: a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios compõem a administração direta, enquanto os Territórios Federais são considerados entes da administração indireta. UTARQUIAS, INCLUSIVE AS ASSOCIAÇÕES PÚBLICAS: as A autarquias e as associações públicas compõem a administração indireta. Como exemplo de autarquias podemos citar: USP, INCRA, INPI, INSS, IPHAN, CADE, as agências reguladoras (Anatel, Aneel, Anvisa, ANP) e as agências executivas também (Lei n. 9.649/98). EMAIS ENTIDADES DE CARÁTER PÚBLICO CRIADAS POR D LEI: como exemplo, podemos citar os consórcios públicos formados por pessoas jurídicas de direito público interno que compõem a administração i­ ndireta. 4.7.2.2. Pessoas jurídicas de direito privado As pessoas jurídicas de direito privado são aquelas reguladas por normas de direito privado, tais como o Código Civil e a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho. Nos termos do art. 44 do Código Civil, são pessoas jurídicas de direito privado: I – as associações; II – as sociedades; III – as fundações; IV – as organizações religiosas (incluído pela Lei n. 10.825, de 22-12-2003); V – os partidos políticos (incluído pela Lei n. 10.825, de 22-12-2003); e VI – as empresas individuais de responsabilidade limitada (Eireli). De acordo com o Enunciado 144 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, “a relação das pessoas jurídicas de direito privado estabelecida no art. 44, I a V, do Código Civil, não é exaustiva”. E, segundo o Enunciado 142 da mesma Jornada, “os partidos políticos, sindicatos e associações religiosas possuem natureza associativa, aplicando-lhes o Código Civil”. São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento. Os partidos políticos serão organizados e funcionarão conforme o disposto em lei específica (Lei n. 9.096/95). 91 VoCaBUlÁrio cláusulas de incomunicabilidade e inalienabilidade: regras, em geral previstas em um contrato, que determinam que um bem não pode ser objeto de comunhão ou compartilhamento (incomunicável) nem pode ser alienado, isto é, ter sua propriedade transferida a outra pessoal (inalienável). Como não há dispositivos do Código Civil regulando os partidos políticos e as entidades religiosas, não iremos aprofundar aqui o estudo dessas pessoas jurídicas. 4.8 soCieDaDes São pessoas jurídicas de direito privado formadas pela união de pessoas (universitas personarum), que se organizam para desenvolver uma atividade econômica com intuito lucrativo. Antigamente as sociedades eram reguladas pelo Código Comercial de 1850. Com a introdução do Código Civil de 2002 as obrigações civis e comerciais foram unificadas em um mesmo diploma e a matéria passou a ser tratada em seus arts. 981 e seguintes. No Código Comercial de 1850 as sociedades eram classificadas em civis e comerciais. Essas expressões foram substituídas por sociedades simples e empresárias. Embora não exista perfeita correspondência, podemos dizer que, em geral, as sociedades simples correspondem às civis, e as sociedades empresárias correspondem às comerciais. As sociedades simples são aquelas sem fins comerciais que visam ao lucro mediante prestação de serviços relativos a determinada profissão ou serviços técnicos. Como exemplos podemos citar uma sociedade em escritório de advocacia, uma cooperativa, uma empresa de consultoria etc. As sociedades empresárias são aquelas com fins comerciais. Visam ao lucro mediante o exercício de atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços. Para ser empresária, exigem-se o requisito material (atividade empresarial) e o requisito formal (registro na Junta Comercial), conforme previsão dos arts. 982 e 967 do Código Civil. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e simples a cooperativa. Conforme determinação dos arts. 1.039 a 1.092 do Código Civil de 2002, as sociedades empresárias podem assumir diversas formas: sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples, sociedade em comandita por ações, sociedade limitada, sociedade anônima ou por ações. Sociedade entre cônjuges: os cônjuges podem contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória. Independentemente do regime de bens, o empresário casado pode, sem necessidade de outorga conjugal, alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de ônus real (Código Civil, arts. 977 e 978). Serão arquivados e averbados no Registro Civil e no Registro Público de Empresas Mercantis os pactos e declarações antenupciais do empresário, o título de doação, herança, ou legado, de bens clausulados de incomunicabilidade ou inalienabilidade. 92 Direito Civil Empresa individual de responsabilidade limitada CURIOSIDADE 4.9 A Lei n. 12.441/2011 acrescentou mais uma modalidade de pessoa jurídica de direito privado ao rol do art. 44 do Código Civil: a empresa individual de responsabilidade limitada. Suas regras estão estabelecidas no art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário mínimo vigente no País. O nome empresarial deverá ser formado pela inclusão da expressão “Eireli” após a firma ou a denominação social da empresa individual de responsabilidade limitada. A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade. A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração. Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade limitada constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional. Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas. 4.10Associações As associações são pessoas jurídicas de direito privado formadas pela união de pessoas (universitas personarum) que se organizam para desenvolver uma atividade lícita que não seja econômica, isto é, que não tenha intuito lucrativo. Podem, portanto, desenvolver atividade educacional, pia (isto é, filantrópica), religiosa, esportiva, científica, literária, recreativa, política etc. (exemplos: sindicatos, grêmios estudantis, escolas de samba, clubes esportivos). Diferenciam-se das fundações por serem formadas pela coletividade de pessoas, e não de bens, e diferenciam-se das sociedades por não terem finalidade lucrativa. Entretanto, a ausência de intuito lucrativo não as impede de ter patrimônio e desenvolver atividades visando arrecadar valores para que possam atingir seus fins (p. ex.: uma associação filantrópica pode realizar bingos; uma associação educacional pode cobrar mensalidades etc.). Desta forma, o lucro pode ser um meio, mas nunca o fim de uma associação, sendo absolutamente vedada (proibida) qualquer repartição de receita (valores recebidos) entre os associados. 93 Microempreendedor Individual (MEI) é a pessoa que trabalha por conta própria e que se legaliza como pequeno empresário. Para ser um microempreendedor individual, é necessário faturar no máximo até R$ 60.000,00 por ano e não ter participação em outra empresa como sócio ou titular. O MEI também pode ter um empregado contratado que receba o salário mínimo ou o piso da categoria. A Lei Complementar nº 128, de 19/12/2008, criou condições especiais para que o trabalhador conhecido como informal possa se tornar um MEI legalizado. Entre as vantagens oferecidas por essa lei está o registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), o que facilita a abertura de conta bancária, o pedido de empréstimos e a emissão de notas fiscais. Além disso, o MEI será enquadrado no Simples Nacional e ficará isento dos tributos federais (Imposto de Renda, PIS, Cofins, IPI e CSLL). Assim, pagará apenas o valor fixo mensal de R$ 40,40 (comércio ou indústria), R$ 44,40 (prestação de serviços) ou R$ 45,40 (comércio e serviços), que será destinado à Previdência Social e ao ICMS ou ao ISS. Essas quantias serão atualizadas anualmente, de acordo com o salário mínimo. Com essas contribuições, o Microempreendedor Individual tem acesso a benefícios como auxílio-maternidade, auxílio-doença, aposentadoria, entre outros. Caso o empreendedor não tenha a intenção de possuir sócios e sua atividade não se enquadre nos requisitos legais do MEI, poderá ele optar pela abertura da EIRELI (Fonte: http://www.portaldoempreendedor.gov.br/mei-microempreendedor-individual, acesso em 7-7-2015). VoCaBUlÁrio órgãos deliberativos: grupos ou conselhos que examinam e discutem questões dentro de uma determinada instituição, tomando decisões que passam a ser obrigatórias sobre os assuntos tratados. 4.10.1. Constituição de uma associação Em capítulo anterior vimos que a associação somente adquire personalidade jurídica por meio do registro do seu ato constitutivo (estatuto) no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas. A criação de uma associação não depende de prévia autorização do Poder Executivo por ser um direito fundamental da pessoa humana (princípio da liberdade de associação – Constituição Federal, art. 5º, XVII). O estatuto de uma associação deve ser feito por escrito (mediante instrumento público ou particular) e, de acordo com o art. 54 do Código Civil, deverá indicar, sob pena de nulidade: I – a denominação, os fins e a sede da associação; II – os requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados; III – os direitos e deveres dos associados; IV – as fontes de recursos para sua manutenção; V – o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos; VI – as condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução; e VII – a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas. 4.10.2. Composição da associação A análise da estrutura interna de uma associação revela a existência de três órgãos em sua composição: a assembleia geral, os órgãos deliberativos e os associados. De acordo com a jurisprudência do STJ, as associações são “dotadas de autonomia de organização e funcionamento”. Vejamos, então, as principais características de cada um dos órgãos que compõem a associação: 4.10.2.1. Associados Os associados devem ter iguais direitos, mas o estatuto poderá instituir categorias com vantagens especiais (Código Civil, art. 55), seja em razão de serviços prestados, tempo de associação, mérito, ou qualquer outro fundamento que não constitua forma de preconceito em razão de raça, sexo, orientação sexual etc. É em virtude dessa possibilidade de distinção de categorias entre os associados que surgem expressões como: sócio-fundador, sócio-remido, sócio-proprietário, sócio-benemérito etc. O estatuto não poderá estabelecer direitos e obrigações recíprocos entre os associados (art. 53, parágrafo único), mas poderá estabelecer outras obrigações, como o pagamento de uma quantia para ingresso na associação, o pagamento de contribuições periódicas ou o cumprimento de determinadas atividades. Do princípio da liberdade de associação extrai-se que “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado” (Constituição Federal, art. 5º, XX). Isso não significa, contudo, que o associado não possa ser excluído da associação. De acordo com o art. 57 do Código Civil, a exclusão do associado só é admissível havendo justa causa, assim reconhecida em procedimento que assegure a este direito de defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto. 94 Direito Civil Deve ser lembrado que a qualidade de associado é intransmissível (gratuita ou onerosamente), salvo disposição em sentido contrário no estatuto (Código Civil, art. 56). Se o associado for titular de quota ou fração ideal do patrimônio da associação, a transferência daquela não importará, por si só, na atribuição da qualidade de associado ao adquirente ou ao herdeiro, salvo orientação contrária do estatuto. Por fim, o art. 58 do Código Civil assegura a invulnerabilidade dos direitos individuais dos associados ao estabelecer que nenhum associado poderá ser impedido de exercer direito (p. ex.: direito à presidência) ou função que lhes tenham sido legitimamente conferidos, a não ser nos casos e pela forma previstos na lei ou no estatuto. 4.10.2.2. Diretoria Compete à diretoria o dever de regular o funcionamento da associação e de cobrar o cumprimento das normas previstas no estatuto, podendo impor sanções disciplinares, como multas, suspensão ou até mesmo a expulsão dos associados que violarem o estatuto, sempre respeitando o direito de defesa. Os membros que irão compor a diretoria devem ser eleitos de acordo com as regras estipuladas no estatuto. Com a nomeação, os administradores (diretores) passam a ser mandatários da associação, podendo representá-la judicial ou extrajudicialmente. 4.10.2.3. Assembleia geral A assembleia geral é considerada o órgão máximo dentro da associação, podendo, dentre outras deliberações, de forma privativa, destituir os administradores e promover a alteração do estatuto (Código Civil, art. 59). Qualquer alteração do estatuto sem determinação da assembleia geral é considerada nula. A convocação dos órgãos deliberativos será feita na forma do estatuto, garantido a 1/5 (um quinto) dos associados o direito de promovê-la (art. 60). A lei não exige requisitos específicos para as deliberações em geral, mas para a destituição de administradores ou alteração estatutária a assembleia deverá ter sido convocada especialmente para esse fim. Em atenção ao art. 48 do Código Civil, as deliberações assembleares são tomadas pela maioria simples dos presentes, salvo se o ato constitutivo dispuser de modo diverso. O estatuto poderá, desta forma, determinar quorum especial para certas deliberações, como, por exemplo, a de alteração do estatuto. Aprovada a deliberação, todos os associados deverão a ela se submeter, inclusive os dissidentes, restando-lhes, apenas, o direito de retirar-se da entidade. 4.10.3. Dissolução da associação Em caso de dissolução de uma associação, o caput do art. 61 do Código Civil determina que os bens remanescentes do seu patrimônio líquido, depois de deduzidas, se for o caso, as quotas ou frações ideais 95 VOCABULÁRIO invulnerabilidade: impossibilidade de ser atacado, blindagem, proteção contra possíveis ameaças ou danos a direitos. sanções disciplinares: penas (“castigos”) aplicadas para correção de comportamento, previstas previamente em leis, estatutos ou contratos, buscando evitar que atitudes indesejadas ocorram ou se repitam (ex.: multa, suspensão etc.). mandatário: representante com poderes para agir em nome de alguém. quorum: número mínimo de pessoas presentes exigido por uma Constituição, lei, estatuto ou regulamento para que as decisões por elas tomadas sejam válidas (termo latino). referidas no parágrafo único do art. 56, serão destinados à entidade de fins não econômicos designada no estatuto, ou, omisso este, por deliberação dos associados, à instituição municipal, estadual ou federal, de fins idênticos ou semelhantes. Por cláusula do estatuto ou, no seu silêncio, por deliberação dos associados, podem estes, antes da destinação do remanescente referida nesse artigo, receber em restituição, atualizado o respectivo valor, as contribuições que tiverem prestado ao patrimônio da associação (Código Civil, art. 61, § 1º). Essas quotas ou frações ideais a que se refere o caput do art. 61 dizem respeito ao valor eventualmente pago para aquisição do título, como é comum em clubes esportivos, e correspondem a uma fração do patrimônio da associação. Nada mais justo do que recuperar o capital eventualmente investido na aquisição das cotas e nas contribuições prestadas. Mas deve ser destacado que os associados não podem retirar outros valores, como, por exemplo, aqueles obtidos por doações de outras pessoas ou arrecadados em campanhas. Não existindo no Município, no Estado, no Distrito Federal ou no Território, em que a associação tiver sede, instituição nas condições indicadas nesse artigo, o que remanescer do seu patrimônio se devolverá à Fazenda do Estado, do Distrito Federal ou da União. 4.11 FUnDaÇões As fundações são pessoas jurídicas de direito privado formadas por um patrimônio, uma coletividade de bens (universitas bonorum) para desenvolver uma atividade lícita que não seja econômica, isto é, que não tenha intuito lucrativo. Diferenciam-se das associações por serem formadas pela coletividade de bens, e não de pessoas, mas, assim como as associações, não possuem finalidade lucrativa. Outra característica marcante das fundações é a fiscalização realizada pelos Ministérios Públicos Estaduais, pelas respectivas curadorias das fundações. Ao contrário das sociedades e das associações, as fundações não possuem sócios nem associados para fiscalizar o cumprimento de suas normas e de seus fins sociais, justificando a legitimidade do Ministério Público. As fundações foram concebidas originalmente como pessoas jurídicas de direito privado, mas na atualidade o Estado também pode constituir fundações. As fundações privadas são aquelas constituídas por particulares (pessoas naturais ou jurídicas) e regidas pelos arts. 62 a 69 do Código Civil. As fundações públicas são aquelas instituídas pelo Estado (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios) e são reguladas por normas próprias de direito administrativo. Contudo, iremos aqui analisar apenas as fundações privadas, pois são as únicas afeitas ao Direito Civil. 96 Direito Civil 4.11.1. Constituição das fundações Para que uma fundação possa ser regularmente constituída, é necessário percorrer quatro etapas. Vejamos: 1ª ETAPA – Manifestação de vontade do instituidor: para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la (art. 62, parágrafo único). Da norma extrai-se que a fundação pode ser instituída mediante manifestação de vontade em vida (inter vivos) por escritura pública ou mediante declaração de última vontade (causa mortis) por testamento de qualquer espécie (público, cerrado ou particular). Essa manifestação de vontade possui dois requisitos essenciais (dotação de bens e indicação da finalidade) e um dispensável (a forma de administração). Vejamos, então, os requisitos essenciais: a)Finalidade: as fundações têm como finalidade um bem social, de interesse da própria sociedade, não podendo ter fins lucrativos. Compete ao instituidor definir a finalidade a ser cumprida e, uma vez determinada, esta é imutável. Nos termos do art. 62, parágrafo único, “a fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência”. O uso do termo “somente” conduz a uma interpretação de que o rol presente no dispositivo é taxativo (numerus clausus), contudo o entendimento majoritário na doutrina é no sentido de que ele é meramente exemplificativo (numerus apertus). Nesse sentido, Maria Helena Diniz defende que a finalidade da fundação deve apenas ser nobre, isto é, lícita, social (interesse público) e não lucrativa. Corroboram esse entendimento: o Enunciado 8 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “a constituição de fundação para fins científicos, educacionais ou de promoção do meio ambiente está compreendida no CC, art. 62, parágrafo único”; e o Enunciado 9 da mesma Jornada: “o art. 62, parágrafo único, deve ser interpretado de modo a excluir apenas as fundações de fins lucrativos”. b)Dotação de bens livres e suficientes: a escritura pública ou o testamento devem especificar os bens livres e suficientes que irão constituir a fundação: podem ser móveis, imóveis, fungíveis, infungíveis, créditos etc. Bens livres são aqueles sobre os quais não se apresenta qualquer constrição jurídica (p. ex.: penhora, arresto, hipoteca etc.). Também devem ser observadas as regras que protegem a legítima dos herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuges). Bens suficientes são os exigidos para que possa ser cumprida a finalidade da fundação, pois a ideia é de que esses bens possam produzir renda mensal suficiente para que sejam alcançados os objetivos da fundação. Se os bens forem insuficientes para constituir a fundação, deverão ser incorporados em outra fundação que se proponha a fim igual ou 97 VoCaBUlÁrio mandado judicial: ordem judicial expedida por meio de um despacho em processo, para que alguém faça, entregue ou deixe de fazer algo. compulsoriedade: obrigatoriedade. denegação: recusa, negação, indeferimento. homologação judicial: validação judicial, aprovação por um juiz que torna válido ou oficial determinado ato ou documento. semelhante, salvo se o instituidor dispuser de forma diversa. Constituída a fundação por negócio jurídico entre vivos, o instituidor é obrigado a transferir-lhe a propriedade, ou outro direito real, sobre os bens dotados, e, se não o fizer, serão registrados, em nome dela, por mandado judicial (Código Civil, art. 64). A norma supracitada estabelece que nas instituições inter vivos o instituidor não poderá revogar a sua doação, pois os bens serão adjudicados compulsoriamente à fundação que está sendo instituída. Se instituída mortis causa (por testamento), a manifestação de vontade poderá ser revogada. Não haverá a compulsoriedade do registro, pois nada impede que o testamento (cerrado, público ou particular) venha a ser revogado por qualquer motivo, ocasionando assim a revogabilidade dos bens doados para a constituição da fundação. 2ª ETAPA – Elaboração do estatuto: a celebração do estatuto pode ser direta ou própria, quando feita pelo próprio instituidor, ou fiduciária, quando o instituidor destina terceira pessoa de confiança, para que esta realize a elaboração do estatuto. Nos termos do art. 65, caput, do Código Civil, “aqueles a quem o instituidor cometer a aplicação do patrimônio, em tendo ciência do encargo, formularão logo, de acordo com as suas bases (art. 62), o estatuto da fundação projetada, submetendo-o, em seguida, à aprovação da autoridade competente, com recurso ao juiz”. Caso o estatuto não venha a ser elaborado no prazo estabelecido, ou quando o instituidor não designar pessoa de sua confiança para realizá-lo, transcorrido 180 (cento e oitenta) dias competirá ao Ministério Público realizar a sua elaboração. 3ª ETAPA – Aprovação do estatuto: para que o estatuto da fundação possa ser registrado, é necessário que seja devidamente aprovado pelo Ministério Público estadual (ou distrital) da localidade em que será registrado. O Ministério Público, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá adotar uma das seguintes medidas: a) aprovar o estatuto, dando a devida autorização para seu registro; b) indicar as modificações que compreender necessárias; ou c) denegar a aprovação. Se o interessado na instituição da fundação entender como incabíveis as modificações propostas ou a denegação da aprovação, poderá solicitar o suprimento do magistrado. Devemos destacar que o juiz também tem poder para requerer as alterações ou para diretamente alterar as cláusulas do estatuto, requerendo modificações. Da decisão de procedência ou improcedência caberá recurso de apelação. Quando o estatuto é elaborado pelo Ministério Público também deverá ser submetido à homologação judicial. 4ª ETAPA – Registro: o registro da fundação deverá ser realizado no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas. É considerado como ato essencial, pois somente com o registro é que a fundação adquirirá a personalidade, passando a ter existência legal (arts. 114 a 121 da Lei de Registros Públicos). 98 Direito Civil 4.11.2. Alteração do estatuto da fundação Se for necessária qualquer alteração nas disposições presentes no estatuto da fundação, será essencial que este passe por aprovação do Ministério Público. De acordo com o art. 67 do Código Civil, para que se possa alterar o estatuto da fundação, é mister que a reforma: I – seja deliberada por dois terços dos competentes para gerir e representar a fundação; II – não contrarie ou desvirtue o fim desta; III – seja aprovada pelo órgão do Ministério Público, e, caso este a denegue, poderá o juiz supri-la, a requerimento do interessado. Quando a alteração não houver sido aprovada por votação unânime, os administradores da fundação, ao submeterem o estatuto ao órgão do Ministério Público, requererão que se dê ciência à minoria vencida para impugná-la, se quiser, em dez dias. As alterações não podem abranger a finalidade da fundação, pois esta é imutável. Em princípio, também não é possível a alienação dos bens que compõem o patrimônio da fundação. Entretanto, essa inalienabilidade pode ser afastada mediante autorização judicial desde que seja comprovada a necessidade da venda dos bens. O produto obtido com a alienação deve ser aplicado na aquisição de outros bens necessários ao funcionamento da fundação. A alienação, sem autorização judicial, dos bens que compõem a fundação deve ser considerada nula. 4.11.3. Fiscalização Como já mencionado anteriormente, compete ao Ministério Público a fiscalização das fundações. Velará pelas fundações o Ministério Público do Estado onde situadas. Se estenderem a atividade por mais de um Estado, caberá o encargo, em cada um deles, ao respectivo Ministério Público. De acordo com o art. 66, § 1º, do Código Civil, se as fundações funcionarem no Distrito Federal, ou em Território, caberá o encargo ao Ministério Público Federal. Esse dispositivo foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (ADIn 2.794-8), pois a competência é do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, conforme prescreve a Constituição Federal. Se a fundação for de natureza previdenciária, sua fiscalização não compete ao Ministério Público. Em se tratando de fundação pública (aquela constituída pelo Estado com personalidade jurídica de direito público), deverá ser fiscalizada pelo Tribunal de Contas, conforme dispõe o art. 71, II, da Constituição Federal. Mas tal fiscalização não afasta a competência do Ministério Público para investigar eventuais ilícitos. Se a fundação pública for instituída pela União, a competência será do Ministério Público Federal e, se for instituída por Estado, Município ou pelo Distrito Federal, a competência será do respectivo Ministério Público Estadual ou pelo Ministério Público do Distrito Federal, na última hipótese. 99 Durante a III Jornada de Direito Civil do CJF foi aprovado o Enunciado 147 dispondo que “a expressão ‘por mais de um Estado’, contida no § 2º do art. 66, não exclui o Distrito Federal e os Territórios. A atribuição de velar pelas fundações, prevista no art. 66 e seus parágrafos, ao Ministério Público local – isto é, dos Estados ou do Distrito Federal, onde situadas – não exclui a necessidade de fiscalização de tais pessoas jurídicas pelo Ministério Público Federal, quando se tratar de fundações instituídas ou mantidas pela União, autarquia ou empresa pública federal, ou que destas recebam verbas, nos termos da Constituição, da Lei Complementar n. 75/93 e da Lei de Improbidade”. 4.11.4. extinção da fundação Tornando-se ilícita, impossível ou inútil a finalidade a que visa a fundação, ou vencido o prazo de sua existência, o órgão do Ministério Público, ou qualquer interessado, promoverá sua extinção, incorporando-se o seu patrimônio, salvo disposição em contrário no ato constitutivo, ou no estatuto, em outra fundação, designada pelo juiz, que se proponha a fim igual ou semelhante. A finalidade da fundação se torna ilícita quando o seu objeto passa a ser contrário ao ordenamento jurídico, afrontando a lei, a moral, os bons costumes ou a ordem pública. A impossibilidade é verificada quando a fundação não possuir mais meios para sua manutenção (ex.: falta de recursos financeiros, falta de voluntários, falta de profissionais especializados para tratamento de pessoas portadoras de deficiência física etc.). A inutilidade é normalmente verificada quando o objetivo pretendido com a constituição da fundação já foi alcançado (p. ex.: erradicação de uma determinada doença). A extinção da fundação pelo decurso do tempo é hipótese excepcional, pois são raras as fundações em que o seu instituidor estabelece prazo de duração. Se este não foi estabelecido, não poderá ser presumido, e a fundação somente poderá ser extinta se se tornar ilícita, impossível ou inútil a finalidade a que visava. A extinção da fundação por qualquer um dos motivos elencados poderá ser solicitada por qualquer interessado ou pelo representante do Ministério Público. 4.12 naCionaliDaDe A ideia de nacionalidade da pessoa jurídica leva em consideração a ordem jurídica a que se submetem, não importando a nacionalidade dos membros que a compõem ou a origem do controle financeiro. De acordo com o art. 11 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, “as organizações destinadas a fins de interesse coletivo, como as sociedades e as fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem”. Assim, classificadas quanto à nacionalidade, as pessoas jurídicas podem 100 Direito Civil ser divididas em nacionais e estrangeiras. Pessoas jurídicas nacionais são aquelas constituídas à luz do ordenamento jurídico brasileiro e que mantêm aqui a sede de sua administração (Código Civil, art. 1.126). Não basta, portanto, que a pessoa jurídica tenha sido constituída no Brasil (teoria da constituição), exigindo-se que mantenha aqui a sua sede. Por outro lado, as pessoas jurídicas estrangeiras são aquelas constituídas fora do Brasil ou que, mesmo constituídas no Brasil, mantêm a sua sede fora do País. Independentemente de qual seja o seu objeto (isto é, seu ramo de atividade), as sociedades estrangeiras somente poderão funcionar no País com autorização do Poder Executivo (Código Civil, art. 1.134). 4.13 Domicílio da pessoa jurídica O domicílio da pessoa natural é, em regra, determinado pela residência com o animus (ou seja, sua vontade) de permanência. Como a pessoa jurídica não tem residência, seu domicílio é determinado, em regra, pela sua sede ou estabelecimento, por ser o local onde costuma celebrar seus negócios jurídicos. Com base no art. 75 do Código Civil podem ser extraídas as seguintes regras sobre o domicílio das pessoas jurídicas: 4.13.1. Pessoas jurídicas de direito público As pessoas jurídicas de direito público interno que compõem a administração direta têm como domicílio a sede de seu governo: o domicílio da União é o Distrito Federal; o domicílio dos Estados e Territórios são as respectivas capitais; e o domicílio dos Municípios é o lugar onde funcionar a administração municipal. O Código Civil estabelece apenas regras sobre domicílio, e não sobre o foro competente para a propositura de ações. Exemplificando: o Código Civil de 2002 estabelece que o domicílio da União é o Distrito Federal, mas a União deve propor ações no foro do domicílio da outra parte. Quando a União for ré, a ação poderá ser proposta no foro do domicílio do autor, no local dos fatos, no local onde situa­do o bem ou Distrito Federal (Constituição Federal, art. 109, §§ 1º e 2º). Quanto às pessoas jurídicas de direito público que compõem a administração indireta (as autarquias), o entendimento doutrinário é no sentido de que o seu domicílio é determinado pelo ente a que estão subordinadas (União, Estado, Distrito Federal ou Município). 4.13.2. Pessoas jurídicas de direito privado Após dispor sobre o domicílio das pessoas jurídicas de direito público, o caput do art. 75 do Código Civil determina que o domicílio das demais pessoas jurídicas é o lugar onde funcionarem as respectivas di101 retorias e administrações, ou onde elegerem domicílio especial no seu estatuto ou atos constitutivos (domicílio de eleição). De acordo com a Súmula 363/STF, “a pessoa jurídica de direito privado pode ser demandada no domicílio da agência ou estabelecimento em que se praticou o ato”. Se a pessoa jurídica tiver diversos estabelecimentos em lugares diferentes (p. ex.: filiais), cada um deles será considerado domicílio para os atos nele praticados, facilitando a vida das pessoas que litigarem com as pessoas jurídicas. Como essa pluralidade de domicílio é estabelecida em favor da pessoa que precisar litigar contra a pessoa jurídica, admite-se que o demandante opte pelo domicílio da sede. Se a administração, ou diretoria, tiver a sede no estrangeiro, haver-se-á por domicílio da pessoa jurídica, no tocante às obrigações contraídas por suas agências, o lugar do estabelecimento, sito no Brasil, a que ela corresponder (Código Civil, art. 75, § 2º). O objetivo da norma é a proteção das pessoas que litigarem contra as pessoas jurídicas de direito privado estrangeiras, que não precisarão ingressar com ações em outros países. 4.14 DesConsiDeraÇÃo Da PersonaliDaDe JUríDiCa A responsabilidade civil das pessoas jurídicas incide diretamente sobre o seu próprio patrimônio. Entretanto, em determinadas situações a responsabilidade pode ser ampliada ao patrimônio dos seus sócios ou administradores pelo instituto da desconsideração da personalidade jurídica, como veremos neste tópico. Vimos que na atualidade é indiscutível que as pessoas jurídicas possuem personalidade jurídica própria. Isso significa que as pessoas jurídicas têm aptidão para serem titulares de direitos e deveres distintos dos direitos e deveres de seus sócios ou administradores. Como a soma de direitos e deveres de uma pessoa é denominada patrimônio, podemos afirmar que as pessoas jurídicas possuem um patrimônio distinto dos membros que as compõem. Essa distinção estava prevista no art. 20 do Código Civil de 1916, que estabelecia o denominado princípio da separação patrimonial, consagrado na parêmia societatis distat a singulis. Embora não exista dispositivo semelhante no Código Civil de 2002, entende-se que a regra continua existindo de forma implícita no nosso ordenamento jurídico, pois negar a existência dessa regra significaria negar a própria existência da pessoa jurídica. Excepcionalmente, admite-se que seja decretada a desconsideração da personalidade jurídica para que os sócios ou administradores de uma pessoa jurídica sejam responsabilizados pelas obrigações desta. A desconsideração da personalidade jurídica pode ser definida como a simples medida processual em que o juiz determina a inclusão 102 Direito Civil dos sócios ou administradores de uma pessoa jurídica no polo passivo da demanda para que respondam com seu patrimônio particular pelas dívidas dela. Devemos alertar que a desconsideração não determina a extinção da pessoa jurídica, nem mesmo sua liquidação, dissolução ou anulação dos atos constitutivos. Seus efeitos são restritos ao plano processual e não afetam a existência ou o funcionamento da pessoa jurídica. Tecnicamente, a desconsideração não afeta em nada a pessoa jurídica, mas tão só seus sócios ou administradores. A desconsideração da personalidade não pode ser confundida com a despersonalização, pois esta importa na dissolução da pessoa jurídica ou na cassação da autorização para o seu funcionamento. JURISPRUDÊNCIA DIREITO CIVIL. LIMITES À APLICABILIDADE DO ART. 50 DO CC. O encerramento das atividades da sociedade ou sua dissolução, ainda que irregulares, não são causas, por si sós, para a desconsideração da personalidade jurídica a que se refere o art. 50 do CC. Para a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade social – adotada pelo CC –, exige-se o dolo das pessoas naturais que estão por trás da sociedade, desvirtuando-lhe os fins institucionais e servindo-se os sócios ou administradores desta para lesar credores ou terceiros. É a intenção ilícita e fraudulenta, portanto, que autoriza, nos termos da teoria adotada pelo CC, a aplicação do instituto em comento. Especificamente em relação à hipótese a que se refere o art. 50 do CC, tratando-se de regra de exceção, de restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, deve-se restringir a aplicação desse disposto legal a casos extremos, em que a pessoa jurídica tenha sido instrumento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio da finalidade institucional ou a confusão patrimonial. Dessa forma, a ausência de intuito fraudulento afasta o cabimento da desconsideração da personalidade jurídica, ao menos quando se tem o CC como o microssistema legislativo norteador do instituto, a afastar a simples hipótese de encerramento ou dissolução irregular da sociedade como causa bastante para a aplicação do disregard doctrine. Ressalte-se que não se quer dizer com isso que o encerramento da sociedade jamais será causa de desconsideração de sua personalidade, mas que somente o será quando sua dissolução ou inatividade irregulares tenham o fim de fraudar a lei, com o desvirtuamento da finalidade institucional ou confusão patrimonial. Assim é que o enunciado 146, da III Jornada de Direito Civil, orienta o intérprete a adotar exegese restritiva no exame do artigo 50 do CC, haja vista que o instituto da desconsideração, embora não determine a despersonalização da sociedade – visto que aplicável a certo ou determinado negócio e que impõe apenas a ineficácia da pessoa jurídica frente ao lesado –, constitui restrição ao princípio da autonomia patrimonial. Ademais, evidenciando a interpretação restritiva que se deve dar ao dispositivo em exame, a IV Jornada de Direito Civil firmou o Enunciado 282, que expressamente afasta o encerramento irregular da pessoa jurídica como causa para desconsideração de sua personalidade: "O encerramento irregular das atividades da pessoa jurídica, por si só, não basta para caracterizar abuso da personalidade jurídica". Entendimento diverso conduziria, no limite, em termos práticos, ao fim da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, ou seja, regresso histórico incompatível com a segurança jurídica e com o vigor da atividade econômica. Precedentes citados: AgRg no REsp 762.555-SC, Quarta Turma, DJe 25/10/2012; e AgRg no REsp 1.173.067/RS, Terceira Turma, DJe 19/6/2012. EREsp 1.306.553-SC, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 10/12/2014, DJe 12/12/2014. 103 Nos termos do art. 50 do Código Civil, “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”. Além da tradicional desconsideração da personalidade jurídica, a doutrina e a jurisprudência apontam a possibilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica, consistente na responsabilização da pessoa jurídica pelas dívidas pessoais de seus sócios ou administradores. Nesse sentido, o Enunciado 283 do CJF aponta que “é cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”. 4.14.1. teorias da desconsideração da personalidade jurídica A primeira lei brasileira a consagrar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica foi o Código Tributário Nacional, que em seu art. 135 permitia a responsabilização pessoal dos diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado por créditos correspondentes às obrigações tributárias. Posteriormente, também trouxeram previsões do instituto o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 9.605/98) e o Código Civil em vigor. Mas antes da previsão legal a desconsideração da personalidade já era aplicada por nossos Tribunais pela construção de diversas teorias. Aliás, o termo “teoria” refere-se justamente a uma construção doutrinária. A partir do momento em que a lei consagra essa construção, podemos nos referir simplesmente a “instituto”. Não obstante, o estudo das teorias da desconsideração, também conhecidas como teorias da penetração ou disregard doctrine, auxilia a compreensão do instituto e da ratio legis. a) Teoria Maior da Desconsideração: é aquela que exige um motivo para que ocorra a desconsideração da personalidade, não bastando a simples inexistência ou insuficiência de bens da pessoa jurídica executada. A teoria maior se subdivide em subjetiva e objetiva: Teoria Maior Subjetiva: o motivo para que seja deferida a desconsideração repousa na conduta dos sócios ou administradores. Como exemplo de fatos atribuíveis a estes, podem ser citados a fraude e o abuso de direito. Essa teoria é defendida em nosso país por Rubens Requião. Teoria Maior Objetiva: para que ocorra a desconsideração, basta o desvio de função (disfunção), caracterizado quando ocorre o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial entre controlador (sócio ou administrador) e controlado (pessoa jurídica). No direito americano, fala-se 104 Direito Civil em comingling of funds (= promiscuidade de fundos). Essa teoria é defendida em nosso país por Fábio Konder Comparato, que foi o redator do art. 50 do Código Civil. b)Teoria Menor da Desconsideração: é aquela que não exige motivos para que seja decretada a desconsideração, bastando a inexistência ou insuficiência de bens da pessoa jurídica executada. A teoria menor da desconsideração está presente no § 5º do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”. ATENÇÃO Sobre a desconsideração da personalidade jurídica existem interessantes Enunciados do Conselho da Justiça Federal, além daqueles já analisados acima. Vejamos: Enunciado 7/CJF: só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido. Enunciado 51/CJF: a teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine – fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema. Enunciado 146/CJF: nas relações civis, interpretam-se restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no art. 50 (desvio de finalidade social ou confusão patrimonial). (Este enunciado não prejudica o Enunciado n. 7.) Enunciado 281/CJF: a aplicação da teoria da desconsideração, descrita no art. 50 do Código Civil, prescinde da demonstração de insolvência da pessoa jurídica. Enunciado 282/CJF: o encerramento irregular das atividades da pessoa jurídica, por si só, não basta para caracterizar abuso de personalidade jurídica. Enunciado 284/CJF: as pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos ou de fins não econômicos estão abrangidas no conceito de abuso da personalidade jurídica. Enunciado 285/CJF: a teoria da desconsideração, prevista no art. 50 do Código Civil, pode ser invocada pela pessoa jurídica em seu favor. Enunciado 406/CJF: a desconsideração da personalidade jurídica alcança os grupos de sociedade quando presentes os pressupostos do art. 50 do Código Civil e houver prejuízo para os credores até o limite transferido entre as sociedades. 105 106 5 Os Bens aUtor silvio rodrigues (19172004), advogado e professor paulista, cuja obra completa sobre Direito Civil consistiu num marco para o ensino jurídico no Brasil. Com ideias liberais e sempre arrojadas, seu nome logrou repercussão também no exterior. Caio Mário da silva Pereira (1913-2004), natural de Belo Horizonte, Minas Gerais, deixou como principal legado suas Instituições de Direito Civil, com grande impacto na doutrina da disciplina. reFleXÃo “Filosoficamente, bem é tudo quanto pode proporcionar ao homem qualquer satisfação. Nesse sentido se diz que a saúde é um bem, que a amizade é um bem, que Deus é o sumo bem. Mas, se filosoficamente, saúde, amizade e Deus são bens, na linguagem jurídica não podem receber tal qualificação” (Washington de Barros Monteiro). 5.1 ConCeito Bens são todos os objetos materiais e imateriais existentes na natureza, que proporcionam uma utilidade às pessoas. O estudo dos bens é importante, pois são considerados objetos de direitos nas relações jurídicas, cujos titulares são as pessoas (sujeitos de direitos). A matéria tem implicações no Direito Civil, Penal, Administrativo, Tributário e em vários outros ramos do ordenamento jurídico. Embora toda relação jurídica subjetiva exija um objeto, nem sempre este será algo material (p. ex.: um livro). Também podem ser considerados objeto de relações jurídicas os direitos (direito autoral, direito de crédito etc.) e as obrigações (de dar, de fazer, de não fazer). 5.1.1. Bens e coisas: distinção Existe forte divergência doutrinária sobre a definição de bens e coisas. Como são infinitas as posições doutrinárias sobre o tema, procuramos reproduzir abaixo quatro correntes consideradas principais. Vejamos: 1ª Corrente: defende que coisas são todos os objetos existentes na natureza, com exceção das pessoas. Ao passo que bens são apenas aquelas coisas que têm valor econômico e que são suscetíveis de apropriação (animais, livros, automóveis etc.). Em síntese, defende que coisa é o gênero do qual bem é uma espécie. Esta é a posição de Maria Helena Diniz, Agostinho Alvim, Silvio Rodrigues e Francisco Amaral. 2ª Corrente: aponta exatamente o oposto da primeira corrente ao defender que coisas são os objetos materiais suscetíveis de valoração econômica. Já os bens têm acepção mais ampla, abrangendo os objetos dotados ou não de conteúdo patrimonial. Para essa corrente, bem seria o gênero; e coisa, a espécie. Esta é a posição de Orlando Gomes. 3ª Corrente: bens podem ser considerados em sentido amplo ou estrito. Amplo ou genérico, o termo bens representa tudo aquilo que pode ser objeto da relação jurídica, sem distinção da materialidade ou da patrimonialidade. Em sentido estrito, são os imateriais (aqueles que não podem ser tocados – p. ex.: o direito de crédito) e as coisas (os materiais – aqueles que podem ser tocados – p. ex.: um livro). Esta é a posição de Caio Mário da Silva Pereira. 4ª Corrente: a distinção tem por base o conteúdo jurídico: bens jurídicos são todos os bens da vida submetidos à tutela jurídica. Ao passo que as coisas, em sua acepção comum, representam o elemento material do conceito jurídico de bem (noção pré-jurídica). Esta é a posição de Gustavo Tepedino. Com relação à divergência doutrinária exposta, entendemos que a posição mais adequada é a esposada na primeira corrente, que, a propósito, é majoritária. Contudo, no âmbito legal, é de notar que o legislador 108 Direito Civil parece ter adotado a segunda corrente no Código Civil de 2002, pois na parte geral há um capítulo dedicado aos bens (abrangendo os materiais e os imateriais) e, na parte especial, um capítulo dedicado ao direito das coisas, para tratar da posse e dos direitos reais que incidem sobre alguns bens (as coisas). 5.2 Patrimônio É o complexo de relações jurídico-materiais (valoráveis economicamente) de uma pessoa física ou jurídica, abrangendo os direitos reais e obrigacionais (pessoais). A noção de patrimônio tem íntima relação com a de personalidade jurídica, pois representa o conjunto de bens (universalidade de direito) sobre o qual incide as relações jurídicas econômicas. O estudo do tema tem especial importância na matéria de responsabilidade civil e no direito processual civil, pois é o patrimônio de uma pessoa, atual e futuro, que responde por suas dívidas (Código Civil, art. 391 e Código de Processo Civil de 2015, art. 789). A classificação do patrimônio pode se dar: Patrimônio global: é o patrimônio que abrange todas as relações jurídicas de conteúdo econômico de uma pessoa. Engloba créditos e débitos. Patrimônio ativo: restringe-se às relações jurídicas em que a pessoa é credora (sujeito ativo). Aplica-se somente aos casos em que a pessoa tenha um crédito a receber. Pode ser subdividido em bruto (soma de todos os créditos de uma pessoa) e líquido (composto pelo resultado de todos os créditos, subtraídos os débitos e as obrigações de uma pessoa). Das diversas classificações dos bens 5.3 A classificação dos bens tem por objetivo facilitar o trabalho dos operadores do Direito, permitindo a aplicação das mesmas regras jurídicas àqueles que se apresentem com características semelhantes. Com esse propósito o legislador do Código Civil de 2002 classificou os bens de acordo com três critérios: a) bens considerados em si mesmos (imóveis e móveis; fungíveis e infungíveis; consumíveis e inconsumíveis; divisíveis e indivisíveis; materiais e imateriais; singulares e coletivos); b) bens reciprocamente considerados (principais e acessórios); e c) considerados em relação ao titular (particulares e públicos). Vejamos cada uma destas classificações: 109 5.4 ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De aCorDo CoM a MoBiliDaDe 5.4.1. Bens imóveis Bens imóveis ou bens de raiz são aqueles que não podem ser transportados, sem destruição, de um lugar para outro. A remoção causaria alteração de sua substância ou de sua forma. O conceito legal de bem imóvel, conferido pelo Código Civil, compreende o solo e tudo quanto lhe for incorporado de maneira natural ou artificial (art. 79). Na doutrina, apresentam-se diversas espécies de bens imóveis: a) Por natureza (ou por essência): trata-se do solo e tudo quanto lhe for incorporado de forma natural (p. ex.: árvores, frutos, pedras etc.). Compreende também o espaço aéreo e o subsolo, mas os arts. 1.229 e 1.230 do Código Civil apresentam limitações ao direito de propriedade sobre estes. b) Por acessão física artificial: são todos os bens que as pessoas incorporam ao solo de forma artificial e permanente – não podem ser retirados, em regra, sem destruição, modificação, fratura ou dano. De acordo com o art. 81 do Código Civil, não perdem a característica de bens imóveis: As edificações que, separadas do solo, mas conservando a sua unidade, forem removidas para outro local. Exemplo: o deslocamento de uma casa de madeira ou mesmo de alvenaria de um lugar para outro. Os materiais provisoriamente separados de um prédio, para nele se reempregarem: para o Direito Civil, prédio é toda construção que tem a característica de imóvel. Pode ser uma casa, um galpão, uma ponte etc. Se o prédio for demolido para reconstrução, os materiais continuarão sendo tratados como imóveis. Se a demolição não tiver esse propósito, os materiais passarão à condição de móveis. c) Por acessão intelectual (ou por destinação): são todos os bens móveis que o proprietário mantém empregados de forma duradoura e intencional na exploração industrial, aformoseamento (embelezamento) ou comodidade do bem imóvel. Para que ocorra a acessão, o bem móvel deve pertencer ao proprietário do imóvel e estar à disposição do bem imóvel, e não da pessoa. Essa imobilização pode cessar a qualquer momento, bastando manifestação de vontade do proprietário. Como exemplos de bens imóveis por acessão intelectual, a doutrina costumeiramente aponta os ornamentos (vasos, estátuas nos jardins, cortinas etc.), máquinas agrícolas, animais e materiais utilizados para plantação, escadas de emergência justapostas nos edifícios, geradores, aquecedores, aparelhos de ar-condicionado etc. No Código Civil de 1916, o art. 43, III, consagrava expressamente os bens imóveis por acessão intelectual, que foram retirados do rol dos bens imóveis no Código Civil de 2002 (art. 79), fazendo a doutrina questionar a continuidade desta classificação: 110 Direito Civil 1ª Corrente: defende que a classificação persiste no Código Civil de 2002, pois o legislador apenas deslocou o tema para um dispositivo à parte – o art. 93, que trata das pertenças. Para os defensores desta corrente, os bens imóveis por acessão intelectual e as pertenças devem ser tratados como sinônimos. Vale dizer que a redação é semelhante entre os arts. 43, III, do Código Civil de 1916 e 93 do Código Civil de 2002. Esta é posição de Maria Helena Diniz, com quem concordamos. 2ª Corrente: defende que a categoria de bens imóveis por acessão intelectual foi eliminada do sistema e não deve ser confundida com as pertenças, pois estas não constituem partes integrantes do imóvel. Além do que, em regra, as pertenças não seguem o destino do principal. Nesse sentido, o Enunciado 11 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes. d) Por determinação legal: são os bens considerados imóveis por força da lei para receber maior proteção jurídica, consistente, em regra, na exigência de escritura pública para a disposição de direitos. É o caso da herança (direito à sucessão aberta – Código Civil, art. 80, I), considerada bem imóvel ainda que composta só de bens móveis. Para a cessão de direitos hereditários, é exigida a escritura pública (Código Civil, art. 1.793). Também são considerados imóveis por determinação legal os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram (Código Civil, art. 80, II). Portanto, podem ser considerados bens imóveis os seguintes direitos constituídos sobre imóveis: propriedade, superfície, servidão, usufruto, uso, habitação, direito do promitente comprador, hipoteca e anticrese. Com relação às ações que asseguram os direitos reais (ação reivindicatória, hipotecária, negatória de servidão, anulatória ou declaratória de nulidade de negócio etc.), entendemos que não são propriamente bens e que a referência legal é equivocada, mas tal posição é minoritária. Devemos, ainda, destacar os seguintes pontos: Navios e aeronaves: embora sejam registrados e transmitidos da mesma forma que os bens imóveis (podendo inclusive ser oferecido em hipoteca – Código Civil, art. 1.473, VI e VII), são classificados como bens móveis. O tratamento de imóvel é utilizado como uma forma de compensar a instabilidade existente em razão do constante deslocamento desses bens com a estabilidade do registro. Penhor agrícola: o Código anterior definia o penhor agrícola como bem imóvel (art. 44, I). O Código atual não o inclui entre os bens imóveis, mas determina que o penhor rural (que compreende o agrícola e o pecuário) deva ser registrado no Cartório de Registro de Imóveis (art. 1.438). 5.4.2. Bens móveis São aqueles que podem ser movidos de um local para outro sem que seja alterada a substância ou a destinação econômico-social. A remoção 111 de um lugar a outro pode ocorrer por força própria (semoventes), no caso dos animais, ou por força alheia, que são os móveis propriamente ditos (p. ex.: livro, caneta, fruta etc.). Os bens móveis podem ser classificados em: a) Por natureza: compreendem tanto os semoventes (aqueles que se movem por força própria – exemplo: os animais) como as coisas inanimadas que possam ser transportadas de um lugar a outro, sem que se destruam, isto é, sem que ocorra alteração de sua substância ou de sua destinação social (Código Civil, art. 82) – exemplos: carro, lápis, cadeira etc. O bem móvel por natureza é sempre uma coisa corpórea. b) Por antecipação: são aqueles mobilizados (transformados em bens móveis) pelos seres humanos em atenção a sua finalidade econômica (p. ex.: fruta colhida, madeira cortada, pedra extraída, casa vendida para ser demolida etc.). Por receberem o tratamento de bens móveis, não exigem escritura pública para sua alienação e dispensam a vênia conjugal (autorização do cônjuge). atenÇÃo Tenha corporalidade (como o gás) ou não (como a corrente elétrica), toda energia dotada de valor econômico é considerada bem móvel, nos termos do art. 83, I, do Código Civil. O mesmo ocorre no Direito Penal, para o qual a energia com valor econômico é equiparada à coisa móvel (Código Penal, art. 155, § 3º). c) Por determinação legal: são: a) as energias que têm valor econômico: elétrica, térmica, solar, nuclear, eólica, radioativa, radiante, sonora, da água represada etc.; b) os direitos reais sobre bens móveis (direito de propriedade, usufruto, penhor e propriedade fiduciária) e as ações correspondentes; c) os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações: direitos obrigacionais, também denominados de crédito; d) os direitos autorais: nos termos do art. 3º da Lei n. 9.610/98; e e) a propriedade industrial: nos termos do art. 5º da Lei n. 9.279/96. 5.5 ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De aCorDo CoM a FUnGiBiliDaDe 5.5.1. Bens fungíveis São os móveis passíveis de substituição por outros da mesma espécie (gênero), qualidade e quantidade. Como exemplo de bens fungíveis, podemos citar dinheiro, milho, água etc. A fungibilidade é uma característica natural dos bens móveis, mas as partes podem transformar, mediante simples manifestação de vontade (contrato), um bem fungível em infungível. Como exemplo, podemos citar o empréstimo ad pompam vel ostentationem de uma garrafa de vinho para exposição com a obrigação de ser restituída ao final. 5.5.2. Bens infungíveis São os bens que não podem ser substituídos por outros em razão de determinadas qualidades individuais e específicas. A infungibilidade é uma característica própria dos bens imóveis, mas também se encontra presente em alguns bens móveis, como os veículos automotores (indi112 Direito Civil vidualizados por seu chassi, placa etc.), obras de arte (p. ex.: a escultura O pensador, de Rodin). A infungibilidade pode resultar da natureza do bem ou da vontade das partes. Classificação dos bens de acordo com a consuntibilidade 5.6 5.6.1. Bens consumíveis Bens consumíveis são os destinados à satisfação de necessidades e interesses das pessoas. Os bens consumíveis podem ser de duas espécies: a) Consumíveis de fato: são os bens cujo uso importa na destruição imediata da própria substância ou na sua extinção – a consuntibilidade é natural – p. ex.: frutas, verduras etc.; b) Consumíveis de direito: são os bens destinados à alienação – a consuntibilidade (característica dos bens consumíveis) é jurídica – ex.: livros e automóveis à venda em uma loja (Código Civil, art. 86). 5.6.2. Bens inconsumíveis São os que podem ser usados de forma contínua e reiterada, sem que isso importe na sua destruição imediata. Os bens inconsumíveis caracterizam-se pela possiblidade de retirada de suas utilidades, sem que seja atingida sua integridade. As partes podem transformar um bem consumível em inconsumível por meio de disposição contratual. Exemplo: com o contrato de empréstimo ad pompam vel ostentationem que impede a alienação e o consumo do bem (p. ex.: o empréstimo de uma garrafa de vinho para exposição). Classificação dos bens de acordo com a divisibilidade 5.7 A classificação dos bens de acordo com a divisibilidade tem impacto em diversos dispositivos do Código Civil: capacidade civil (art. 105), compra e venda (art. 504), depósito (art. 639), transação (art. 844), condomínio (art. 1.322), condomínio edilício (arts. 1.331 e 1.336) e legado (art. 1.968, § 1º). 5.7.1. Bens divisíveis Os bens divisíveis são os que podem ser fracionados em partes homogêneas e distintas, sem alteração na sua substância, diminuição considerável de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam (Código Civil, art. 87). 113 ATENÇÃO É possível transformar um bem inconsumível em consumível. Isso ocorre, por exemplo, quando um automóvel é comercializado em uma revenda e passa a ser considerado consumível de direito. REFLEXÃO A classificação dos bens como consumíveis está apoiada em seu sentido econômico. Com o Código de Defesa do Consumidor, criado em 1990, deu-se grande destaque a esta classe de bens, em função do papel por eles desempenhado na economia de massa ante a necessidade imperiosa de se proteger a figura do consumidor. ATENÇÃO A maior parte dos bens fungíveis são também consumíveis, mas nem por isso fungibilidade e consuntibilidade se confundem. Há bens industriais que são fungíveis, porém não consumíveis, como é o caso, por exemplo, do mobiliário de uma residência. VoCaBUlÁrio usucapião: aquisição da propriedade de um bem por meio da posse pacífica e ininterrupta deste por um determinado período de tempo, implicando, consequentemente, a perda deste mesmo bem por seu anterior proprietário. Para que o bem possa ser considerado divisível, cada fração autônoma deve manter as mesmas utilidades e qualidades essenciais do todo. Exemplo: um saco de feijão é divisível, pois pode ser fracionado em duas ou mais partes, mantendo as suas características originais. Os bens naturalmente divisíveis podem tornar-se indivisíveis por determinação legal ou por vontade das partes. 5.7.2. Bens indivisíveis São naturalmente indivisíveis os bens que não podem ser fracionados, sob pena de perderem sua utilidade, valor ou qualidades essenciais. A indivisibilidade de um bem pode ser de três espécies: a) Por sua natureza: são os bens que não podem ser divididos sob pena de alterarem sua substância, perderem sua utilidade ou reduzirem consideravelmente o seu valor. Exemplos: touro reprodutor, automóvel, obra de arte etc. b) Por determinação legal: são os bens considerados indivisíveis por força de dispositivo legal expresso. A lei rotula o bem como indivisível. Exemplos: o direito à sucessão aberta/herança, que é considerado indivisível até o momento da partilha (Código Civil, art. 1.791, parágrafo único); as servidões prediais (Código Civil, art. 1.386); o direito de hipoteca (art. 1.421); o condomínio forçado instituído pela usucapião coletiva (Lei n. 10.251/2001, art. 10, § 4º) etc. c) Por vontade das partes: são os bens divisíveis transformados em indivisíveis por força da vontade manifestada em contrato (exercício da autonomia privada), deixando seu aspecto de divisibilidade para trás. Temos duas hipóteses legais previstas no Código Civil que bem retratam a indivisibilidade por vontade das partes: quando duas ou mais pessoas forem proprietárias de um mesmo bem (ou seja, o tiverem em condomínio), poderão contratar a indivisibilidade por prazo não superior a cinco anos, suscetível de prorrogação ulterior (Código Civil, art. 1.320, § 1º); a indivisibilidade também poderá ser imposta pelo doador ou pelo testador por prazo não superior a cinco anos, sem possibilidade de prorrogação (art. 1.320, § 2º). 5.8 ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De aCorDo CoM a MaterialiDaDe 5.8.1. Bens materiais (res corporalis) Também denominados bens corpóreos ou tangíveis, são aqueles que têm existência material, podendo ser percebidos por nossos sentidos. Exemplos: armários, lâmpadas, telefones celulares, livros etc. 5.8.2. Bens imateriais (res incorporalis) Também denominados bens incorpóreos ou intangíveis, são todos os bens que possuem existência abstrata, não podendo ser sentidos/toca114 Direito Civil dos fisicamente pelos seres humanos. São bens que consistem em direitos. Somente existem porque a lei assim determina, por força de determinação jurídica. Exemplo: direitos autorais de quem escreveu um livro, direitos de crédito, direito à herança, invenções, direitos reais, direitos obrigacionais etc. O Código Civil atual não prevê a classificação dos bens quanto à tangibilidade. A classificação continua relevante, mesmo não expressa em lei, pois somente os bens corpóreos podem ser objeto de posse e, portanto, de proteção possessória (interditos possessórios). Somente os bens corpóreos podem ser objeto de tradição (entrega) e de aquisição por usucapião. Classificação dos bens de acordo com a individualidade 5.9 Vejamos agora a classificação dos bens de acordo com a individualidade no atual Código Civil: 5.9.1. Bens singulares Bens singulares ou individuais são aqueles que, embora reunidos, se consideram de per si, independentemente dos demais (Código Civil, art. 89). Em regra os bens são singulares. Somente serão considerados coletivos quando houver determinação legal ou determinação das partes. Os bens singulares podem ser de duas espécies: a) Bens singulares simples: são os bens cujas partes formam um todo homogêneo e estão agrupadas em razão da sua própria natureza (a coesão é natural). Podem ser materiais (p. ex.: árvore) ou imateriais (p. ex.: crédito). b) Bens singulares compostos: são aqueles bens que, reunidos, formam um só todo, mas sem desaparecer a condição jurídica de cada parte (a coesão é artificial – p. ex.: navios, materiais utilizados na construção de uma casa etc.). 5.9.2. Bens coletivos Bens coletivos ou universais são aqueles formados por vários bens singulares que, reunidos, passam a formar uma coisa só (individualidade incomum), mas sem que desapareça a condição jurídica de cada parte (autonomia funcional). Dessa forma, o titular dos bens pode contratar sobre a coletividade dos bens (p. ex.: vender uma biblioteca) ou sobre um dos bens de forma individualizada (p. ex.: alienar apenas um livro de uma biblioteca). A coletividade aqui mencionada pode ser de duas espécies: a) Universalidade de fato (universitas rerum): é a pluralidade de bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação 115 unitária (Código Civil, art. 90). A universalidade de fato é formada pela coletividade de bens singulares, corpóreos e homogêneos, pertencentes a uma mesma pessoa. Exemplos: rebanho, biblioteca, pinacoteca, frota, floresta, cardume etc. Como visto acima, nada impede que os bens singulares que formam a universalidade de fato sejam objeto de relações jurídicas próprias, podendo ser alienados separadamente. b) Universalidade de direito (universitas iuri): complexo de relações jurídicas de uma mesma pessoa, dotadas de valor econômico (Código Civil, art. 91). É formada pela coletividade de bens singulares incorpóreos (direitos) e, eventualmente, entre estes e bens corpóreos heterogêneos (na verdade, reúne os direitos existentes sobre os bens corpóreos). Exemplo: herança, patrimônio, massa falida. 5.10 ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De aCorDo CoM a DePenDÊnCia oU reCiProCiDaDe Reciprocamente considerados, os bens são classificados em principais e acessórios. Os bens acessórios são subdivididos em frutos, produtos, benfeitorias e pertenças. 5.10.1. Bem principal Considera-se bem principal todo aquele que tem sua existência independente de qualquer outro. O bem principal existe sobre si mesmo, abstrata ou concretamente (Código Civil, art. 92), enquanto o acessório depende de outro para sua existência. Quanto aos imóveis, o solo é o bem principal e tudo que se incorpora nele de forma permanente é acessório. Quanto aos móveis, bem principal é aquele para o qual os outros bens se destinam (para enfeitar, permitir o uso ou servir como complemento). Exemplos: a caneta é o principal, a tampa é o acessório; o computador é o principal, o teclado é o acessório; o automóvel é o principal, o pneu é o acessório; o capital é o principal, os juros são acessórios etc. 5,10.2. Bem acessório Bem acessório é aquele cuja existência pressupõe a do principal, isto é, sua existência é subordinada à existência de outro bem considerado principal (vide exemplos acima). A maior consequência que se extrai da distinção é o princípio da gravitação jurídica: o acessório segue o principal (acessorium sequitur principale). Embora essa seja a regra, ela não é absoluta, podendo haver disposição das partes ou da própria lei em sentido contrário (como ocorre com as pertenças – Código Civil, arts. 93 e 94). De acordo com a doutrina, os bens acessórios podem ser classificados em naturais, civis e industriais. 116 Direito Civil Naturais: aqueles que aderem naturalmente ao bem principal (p. ex.: árvores e frutos – ainda que venha a existir atividade humana voltada a melhoria ou aumento de produção). Civis: aqueles que aderem ao bem por determinação legal (abstração jurídica), não dependendo de vinculação material (p. ex.: aluguel, juros, dividendos, ônus reais em relação à coisa gravada etc.). Industriais: aqueles que aderem ao bem principal por força do engenho humano (p. ex.: prédio erigido sobre um lote, um vestido costurado com uso de um tecido, um desenho sobre a folha de papel, uma escultura desenvolvida a partir da argila etc.). Os bens acessórios também podem ser de diversas espécies: frutos, produtos, benfeitorias e pertenças. Vejamos, então, as regras aplicáveis a cada um desses bens acessórios: 5.10.2.1. Fruto Fruto é toda utilidade que um bem produz de forma periódica e cuja percepção mantém intacta a substância do bem que a produziu. Embora sejam bens acessórios, podem ser objeto de relação jurídica independentemente do bem principal. Em relação à sua natureza, os frutos podem ser classificados em: naturais ou verdadeiros (p. ex.: frutas), civis (p. ex.: aluguel) e industriais (p. ex.: canetas fabricadas). Os frutos também podem ser classificados de acordo com a vinculação com o bem principal e o seu estado em: Percebidos ou colhidos: aqueles que já foram colhidos, isto é, já foram destacados do bem principal. Se o fruto for natural ou industrial, reputa-se colhido e percebido logo que é separado do bem principal. Se o fruto for civil, reputa-se percebido dia por dia (Código Civil, art. 1.215). Pendentes: aqueles que ainda estão unidos naturalmente ao bem principal (p. ex.: uma fruta que está ligada à árvore que a produziu). Percipiendos: aqueles que deveriam ter sido colhidos, mas não o foram. Estantes: são os frutos que já foram colhidos e encontram-se armazenados ou acondicionados para venda. Consumidos: são os frutos que não mais existem em razão de seu destino normal (consumo), ou que pereceram. Os frutos naturais e industriais reputam-se colhidos e percebidos, logo que são separados; os civis reputam-se percebidos dia por dia. O possuidor de má-fé responde por todos os frutos colhidos e percebidos, bem como pelos que, por culpa sua, deixou de perceber, desde o momento em que se constituiu de má-fé; tem direito às despesas da produção e custeio. 5.10.2.2. Produtos Embora seja comum a utilização das expressões frutos e produtos como sinônimas, existe uma distinção entre os termos que deve ser observada. Enquanto os frutos são bens que se reproduzem periodicamente, 117 ATENÇÃO A distinção entre os frutos percebidos e pendentes tem importância na determinação dos efeitos da posse exercida sobre o bem (Código Civil, arts. 1.214 a 1.216). O possuidor de boa-fé tem direito, enquanto ela durar, aos frutos percebidos. Os frutos pendentes ao tempo em que cessar a boa-fé devem ser restituídos, depois de deduzidas as despesas da produção e custeio; devem ser também restituí­dos os frutos colhidos com antecipação. atenÇÃo A classificação das benfeitorias em necessárias, úteis e voluptuárias tem importância no estudo das consequências do exercício da posse sobre o bem (Código Civil, arts. 1.219 a 1.222). os produtos são bens que se retiram da coisa desfalcando a sua substância e diminuindo a sua quantidade. As frutas colhidas de um pomar são frutos, pois nascem e renascem de forma periódica. Os cereais colhidos de uma plantação de arroz, assim como os minerais extraídos de uma jazida e o petróleo extraído de um poço, são produtos, por não se renovarem. Assim como os frutos, os produtos também pode ser objeto de negócio jurídico autônomo. Carlos Roberto Gonçalves compreende que os minerais foram transformados em bens principais em razão do art. 176 da Constituição Federal, que dispõe que as jazidas pertencem à União, constituindo propriedade distinta da do solo para efeito de exploração ou aproveitamento industrial, sendo assegurada ao proprietário do solo participação nos resultados da lavra. 5.10.2.3. Benfeitorias Benfeitoria é toda espécie de despesa ou obra (melhoramento) realizada em um bem, com o objetivo de evitar sua deterioração (benfeitoria necessária), aumentar seu uso (benfeitoria útil), ou dar mais comodidade (benfeitoria voluptuária). Os melhoramentos ou acréscimos sobrevindos ao bem sem a intervenção do proprietário, possuidor ou detentor, não devem ser considerados como benfeitorias (Código Civil, art. 97). Assim, não são consideradas benfeitorias as acessões naturais, isto é, as melhorias e acréscimos produzidos pela natureza (p. ex.: alusão, aluvião etc.). Também não são benfeitorias as acessões artificiais, isto é, as obras que criam uma coisa nova que adere a outra já existente (p. ex.: a construção de uma casa, uma plantação etc.). A benfeitoria não cria uma coisa nova, apenas incrementa. É por essa razão que a pintura em relação à tela e a escultura em relação à matéria-prima não podem ser consideradas benfeitorias. Sobre o tema preparamos o seguinte quadro comparativo: OBJETIVO CONSEQUÊNCIAS Conservar a coisa ou evitar que se deteriore (p. ex.: conBENFEITORIAS serto de telhado, porta, encaNECESSÁRIAS namento, muro etc.). O possuidor de boa-fé tem direito à indenização e à retenção. O de má-fé tem direito à indenização, mas não à retenção. Aumentar ou facilitar o uso da coisa (p. ex.: construção BENFEITORIAS de um quarto ou garagem, ÚTEIS ampliação de um galpão etc.). O possuidor de boa-fé tem direito à indenização e retenção. O de má-fé não tem direito à indenização (não tem direito a nada). Deleite ou recreio. Tornar o uso da coisa mais agradável e cômoda (p. ex.: piscina, sauBENFEITORIAS na, churrasqueira em uma VOLUPTUÁRIAS casa, decoração luxuosa ou pintura). O possuidor de boa-fé não tem direito a cobrar indenização. Se esta não for paga espontaneamente, poderá levantar (retirar) a benfeitoria. O de má-fé não tem direito à indenização (não tem direito a nada). 118 Direito Civil Valor da indenização: se o possuidor for de boa-fé, o reivindicante será obrigado a indenizar as benfeitorias pelo valor atual delas. Se o possuidor for de má-fé, o reivindicante tem o direito de optar entre o seu valor atual e o de seu custo (Código Civil, art. 1.222). Em ambas as hipóteses, as benfeitorias podem ser compensadas com os danos e só obrigam ao ressarcimento se ao tempo da evicção ainda existirem (art. 1.221). 5.10.2.4. Pertenças Pertenças são os bens que, não constituindo partes integrantes, destinam-se, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento de outro (p. ex.: trator em uma fazenda, cama, mesa ou armários de uma casa, o ar-condicionado de uma loja etc.). Em regra, são bens móveis que servem a um imóvel, mas, excepcionalmente, um bem imóvel também pode ser pertença. São consideradas coisas anexadas (res annexa) ao bem principal, embora não o integrem. Conforme prescreve o art. 94 do Código Civil, os negócios jurídicos que dizem respeito ao bem principal não abrangem as pertenças, salvo se o contrário resultar da lei, da manifestação de vontade ou das circunstâncias do caso. Classificação dos bens de acordo com a titularidade 5.11 O Código Civil realiza a classificação dos bens públicos e particulares utilizando o critério da titularidade em razão de sua simplicidade. Todavia, a doutrina é unânime em criticar a permanência dessa classificação no Código Civil de 2002, principalmente na parte em que disciplina o regime dos bens públicos, por se tratar de matéria estranha ao Direito Civil (é matéria de Direito Constitucional e Administrativo). Em que pese a crítica doutrinária, traçaremos algumas linhas sobre o assunto. Além dos bens particulares e públicos, existem aqueles que não pertencem a ninguém, por nunca terem sido apropriados (res nullius) ou por terem sido abandonados (res derelictae). Exemplos: animais selvagens, conchas na praia, águas pluviais não captadas etc. Devemos lembrar que os bens imóveis nunca serão res nullius, pois, se forem abandonados, serão arrecadados como bens vagos e incorporados ao patrimônio do Município ou do Distrito Federal. 5.11.1. Bens particulares O conceito de bens particulares é extraído por exclusão do conceito de bens públicos, tendo em vista que o Código Civil de 2002 limitou-se a definir apenas estes últimos. Assim, são bens particulares todos aqueles 119 IMPORTANTE A distinção entre as benfeitorias necessárias, úteis e voluptuárias também tem importância no estudo do Direito das Obrigações (Código Civil, arts. 453, 578 e 878), do condomínio (art. 1.322), do Direito de Família (art. 1.660, IV), do Direito das Sucessões (art. 2.004, § 2º), da Locação de imóveis urbanos (Lei n. 8.245/91, arts. 35 e 36). VoCaBUlÁrio bens afetados: bens públicos sendo utilizados para determinado fim, não podendo ser alienados enquanto se mantenha tal situação. que não forem públicos, isto é, que não pertencerem às pessoas jurídicas de direito público interno. 5.11.2. Bens públicos São públicos os bens de domínio nacional, pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno, como os de propriedade da União, Estados e Municípios. Os bens públicos podem ser classificados em três tipos: Bens públicos de uso comum do povo: aqueles bens que, embora pertencentes a uma pessoa jurídica de direito público, podem ser utilizados por qualquer pessoa do povo. O domínio é da entidade de direito público e o uso é do povo (p. ex.: mares, rios, estradas, ruas, praças etc.). Importante ressaltar que os bens públicos não perdem a sua característica ainda que a administração pública limite ou suspenda o seu uso ou imponha o pagamento de retribuição (p. ex.: cobrança de pedágio etc.), conforme previsão do art. 103 do Código Civil. Bens públicos de uso especial são os bens que as pessoas jurídicas de direito público interno destinam aos seus serviços ou outros fins determinados. Como exemplos, podem ser citados os imóveis onde estão instalados prefeituras, escolas, creches, hospitais, quartéis, museus e teatros públicos e os móveis utilizados na realização dos serviços públicos (radar, caneta, computador etc.). De acordo com o Código Civil, abrangem não só aqueles destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, como também os de suas autarquias (art. 99, II). Bens públicos dominicais: também conhecidos como patrimoniais, são aqueles que compõem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público interno, como objeto de direito pessoal ou real, de cada uma dessas entidades (Código Civil, art. 99, III). Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado. Admite-se, assim, que a lei instituidora dessas pessoas jurídicas qualifique seus bens como públicos ou particulares. Os bens dominicais consideram-se desafetados, enquanto os de uso comum e os de uso especial são bens afetados. 5.11.2.1. Características dos bens públicos a) Inalienabilidade: é uma característica dos bens afetados, logo os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação (Código Civil, art. 100). Por outro lado, os bens públicos desafetados, também denominados como bens dominicais, podem ser alienados (art. 101), observadas as exigências da lei: em regra, deve haver prévia avaliação e a alienação deve ser realizada mediante licitação (Lei n. 8.666/93, arts. 17 e 19). Deve ser lembrado que os bens públicos afetados podem ser desafetados mediante 120 Direito Civil disposição expressa de lei ordinária. No que diz respeito às terras indígenas, o art. 231, § 4º, da Constituição Federal impõe a inalienabilidade e a indisponibilidade. b) Imprescritibilidade: são imprescritíveis as pretensões da administração pública com relação aos bens públicos. Como efeito da imprescritibilidade, os bens públicos também não podem ser adquiridos por usucapião. Embora os bens desafetados possam ser alienados, o Código Civil de 2002, em consonância com os arts. 183, § 3º, e 191, parágrafo único, da Constituição Federal, dispôs que os bens públicos (afetados ou desafetados) não estão sujeitos a usucapião (art. 102). Essa proibição se justifica pelo descaso da administração pública na conservação de seu patrimônio. Todavia, alguns autores ainda defendem a possibilidade de usucapião de bens dominicais, sobretudo de terras devolutas (terras que não pertencem a particulares e não estão sendo destinadas a qualquer uso público). c) Impenhorabilidade: a impenhorabilidade dos bens públicos decorre de sua inalienabilidade. Desta forma, os bens públicos não podem ser dados em garantia e não podem ser objeto de execução judicial (adjudicação ou arrematação). JURISPRUDÊNCIA SÚMULA 340 do STF: desde a vigência do Código Civil (1916), os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião. VOCABULÁRIO indisponibilidade: impossibilidade da pessoa usar de maneira completamente ilimitada ou de dispor (vender, alugar, transferir, emprestar a terceiros) algum objeto ou algum direito que lhe pertence. imprescritibilidade: impossibilidade de um direito prescrever, ou seja, de seu titular (proprietário desse direito) perder o direito de ação. Também se aplica a crimes que não prescrevem (não deixam de ser penalizados por decurso do prazo para a propositura da ação penal). bens desafetados: bens públicos sem utilização, podendo ser alienados enquanto assim se encontrarem. O mesmo que bens dominicais. impenhorabilidade: impossibilidade de ser dado como garantia de uma dívida, apreendido, executado, confiscado. 121 122 6 Dos Fatos Jurídicos VoCaBUlÁrio irrelevante: sem importância, cuja existência ou opinião é indiferente para os demais. aUtor Um dos maiores juristas brasileiros, natural de Alagoas, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (18921979) escreveu uma obra vastíssima sobre os mais variados temas, entre eles o direito privado. A partir da influência alemã e do diálogo com outras ciências, como, por exemplo, a Física Clássica, aproximou vários ramos do nosso Direito a conceitos completamente inéditos no estudo da disciplina até então. 6.1. Fato JUríDiCo A distinção entre os fatos jurídicos e os fatos não jurídicos é razão de controvérsia entre os autores. Para alguns, fato jurídico (lato sensu) é todo fato que produz efeitos jurídicos, seja pela criação, modificação, extinção ou conservação de direitos e deveres. Para outros, fato jurídico é aquele que estabelece uma relação jurídica. Não é necessária a efetiva produção de efeitos jurídicos, bastando que o fato seja capaz de produzir efeitos jurídicos. Assim, a incidência de regras jurídicas sobre um determinado evento já seria suficiente para caracterização dele como um fato jurídico. Essa segunda posição, defendida por Pontes de Miranda, apresenta perfeita compatibilidade com a teoria que desenvolveu, distinguindo os planos de existência, validade e eficácia do negócio jurídico, como veremos mais adiante. De outro lado, o fato não jurídico, também conhecido como fato material ou fato ajurídico, é definido como aquele irrelevante para o Direito, por não acarretar consequências jurídicas. Portanto, para determinar se o fato é jurídico, ou não, deve ser observado se este tem importância para o Direito. Assim, um simples evento como a chuva pode ou não ser um fato jurídico. Definido o que é um fato jurídico, resta observar que este comporta algumas classificações. De acordo com a função na relação jurídica, os fatos jurídicos podem ser classificados em: a) constitutivos: são os fatos que criam uma relação jurídica; b) extintivos: os fatos que põem fim a uma relação jurídica; ou c) modificativos: aqueles que alteram uma relação jurídica já existente. Todavia, a principal classificação dos fatos jurídicos continua sendo a que leva em consideração a natureza do fato, isto é, se o evento foi um fato humano (p. ex.: a celebração de um contrato) ou um fato da natureza (p. ex.: a aluvião – forma de aquisição originária de propriedade imóvel). Assim, o fato jurídico em sentido amplo (lato sensu) divide-se em fato natural e fato humano. 6.2. Fato JUríDiCo natUral O fato jurídico natural, também conhecido como fato jurídico em sentido estrito (stricto sensu), é todo evento capaz de provocar consequências jurídicas que independem da vontade humana. Ressalte-se, contudo, que o fato jurídico natural não é estranho aos seres humanos, pois a eles interessam na qualidade de sujeitos de direitos. Os fatos jurídicos naturais podem ser devidos em duas espécies: os ordinários e os extraordinários: 124 Direito Civil 6.2.1. Fato jurídico natural ordinário COMENTÁRIO Considera-se fato jurídico natural ordinário todo fato comum da vida que tem importância para o Direito. Como exemplos, podemos citar: a concepção e o nascimento, que determinam o início da personalidade jurídica; a morte, que põe fim à mesma personalidade; a maioridade, que confere à pessoa capacidade civil plena. Da mesma forma, podemos considerar a prescrição e a decadência como exemplos de fatos jurídicos naturais ordinários, pois o simples decurso do tempo produz consequências jurídicas: a prescrição extingue a pretensão, e a decadência extingue o direito. 6.2.2. Fato jurídico natural extraordinário Os fatos jurídicos naturais extraordinários são os fatos incomuns da vida, isto é, os fatos do acaso: caso fortuito e força maior. Questão complexa é a distinção entre esses dois institutos. Tamanha é a confusão entre eles que concordamos com os autores que defendem a ideia de que devem ser tratados como sinônimos. Com efeito, não existe razão para promover a distinção entre eles se a importância para o Direito é a mesma: tanto o caso fortuito como a força maior são excludentes de responsabilidade civil. Exemplos: raios, terremotos, tsunamis, tempestades etc. 6.3. Fato jurídico humano O fato jurídico humano, também conhecido como fato jurídico voluntário ou fato jurígeno, é toda conduta humana (comissiva ou omissiva) que gera consequências jurídicas. É caracterizado, portanto, pela presença da vontade humana (elemento volitivo). O fato jurídico humano é classificado de acordo com a sua compatibilidade com o ordenamento jurídico em lícito e ilícito. 6.3.1. Fato jurídico humano ilícito Também conhecido como ato ilícito, é todo comportamento humano contrário ao ordenamento jurídico: lei, moral, ordem pública e bons costumes. No Direito Penal, a importância do ato ilícito está na caracterização do crime e sua punição. No Direito Civil, a preocupação do estudioso do Direito está na apuração da responsabilidade patrimonial pelos danos causados. A definição do ato ilícito civil está presente no art. 186 do Código Civil, que dispõe: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. O dispositivo corresponde parcialmente ao art. 159 do Código Civil de 1916, mas substitui o ter125 A prescrição e a decadência serão objetos de estudo mais adiante. Esses institutos estão disciplinados nos artigos 189 a 211 do Código Civil. CURIOSIDADE O STJ analisa, caso a caso, se é a força maior ou o caso fortuito que está na raiz dos acidentes que geram a maioria dos pedidos de indenização. ATENÇÃO Apesar da confusão que as expressões possam causar na prática, especialmente por causa de suas consequências serem idênticas, alguns autores esforçam-se por diferenciar os conceitos de caso fortuito e de força maior. Entre eles, Yussef Said Cahali afirma que a força maior decorre de um fato externo, estranho ao objeto do negócio, o caso fortuito provém do mau funcionamento desse mesmo objeto. Por isso, é defensável a exclusão da responsabilidade no caso de força maior, subsistindo, entretanto, no caso fortuito, por estar incluído este último no risco assumido pelas partes ao contratarem. VOCABULÁRIO conduta comissiva: ato de realizar algo indevido, ter uma ação efetiva. conduta omissiva: Não realização de algo que era devido, deixar de fazer uma ação determinada. mo “ou” por “e” (grifado acima), com o propósito de pôr fim à antiga discussão doutrinária quanto ao conceito de ato ilícito. Discutia-se se o dano era um requisito necessário à caracterização do ato ilícito. O legislador do Código Civil de 2002 inovou, igualmente, ao introduzir o conceito de abuso de direito no art. 187: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. O abuso de direito é uma espécie de ato ilícito, mas não se confunde com o ato ilícito previsto no art. 186. O ato ilícito previsto no art. 186 é duplamente ilícito: ilícito em seu conteúdo (viola direito) e em sua consequência (causa dano a outrem). Por sua vez, o abuso de direito é parcialmente ilícito: é lícito em seu conteúdo (há um direito legítimo), mas ilícito em suas consequências (causa dano a outrem). Nos termos do art. 188 do Código Civil, não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; e II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo. O estudo aprofundado do ato ilícito e dos arts. 186 a 188 do Código Civil é objeto de outra parte do Direito Civil, a da chamada Responsabilidade Civil. 6.3.2. Fato jurídico humano lícito atenÇÃo Ato jurídico stricto sensu - efeitos jurídicos não decorrem de manifestação da vontade, mas diretamente da lei. Classificação: 1. atos materiais: mera atuação da vontade (ex.: ocupação, achado de tesouro, especificação); 2. participações: declarações para ciência ou comunicação de intenções ou tratos (ex.: intimação, interpelação). VoCaBUlÁrio perfilhação: reconhecimento voluntário de filho/a. Fato jurídico humano lícito ou ato jurídico em sentido amplo (lato sensu) é toda ação humana (manifestação de vontade) que, estando de acordo com o ordenamento, é capaz de produzir efeitos na órbita jurídica. Devemos destacar que há quem entenda que o ato jurídico em sentido amplo pode ser lícito ou ilícito, mas de acordo com a doutrina majoritária só pode ser lícito. O ato jurídico em sentido amplo pode ser dividido em três espécies: ato jurídico stricto sensu, negócio jurídico e ato-fato jurídico. 6.3.2.1. Ato jurídico “stricto sensu” O ato jurídico em sentido estrito (stricto sensu) é todo comportamento humano lícito capaz de gerar consequências jurídicas impostas por lei. Na verdade, tanto o conteúdo do ato como as suas consequências estão predeterminados na lei. No ato jurídico stricto sensu, a vontade humana não tem o condão de determinar ou modificar os efeitos previstos na lei, daí a afirmação de que sua eficácia é ex lege (por força da lei). Como exemplos de atos jurídicos stricto sensu, podemos citar a perfilhação, a notificação para constituição em mora, a fixação de domicílio voluntário e o pagamento. 126 Direito Civil 6.3.2.2. Negócio jurídico CINEMATECA Negócio jurídico é todo comportamento humano lícito capaz de gerar consequências jurídicas permitidas pela lei e desejadas pela pessoa. Tanto o conteúdo do negócio como os seus efeitos são determinados pela vontade das partes, gozando, portanto, de eficácia ex voluntate. É justamente no negócio jurídico que a autonomia privada se manifesta em sua plenitude, criando um instituto jurídico próprio voltado à composição do interesse das partes, que buscam alcançar um objetivo (finalidade) permitido pela lei. Como exemplos de negócios jurídicos, podemos citar os contratos, a promessa de recompensa, o testamento etc. 6.3.2.3. Ato-fato jurídico Para refletir acerca dos comportamentos humanos e das suas consequências jurídicas, sugere-se o filme "O Presente". Ano de lançamento: 2006. Direção: Michael O. Sajbel. BIBLIOTECA O ato-fato jurídico é uma espécie de fato jurídico qualificado pela conduta humana sem se levar em consideração a vontade de praticar o ato ou não. Em outras palavras, no ato-fato jurídico não importa a intenção da pessoa que realizou o ato (se houve, ou não, vontade de praticá-lo), tendo relevância apenas os efeitos que o ato produziu. Assim como no Código Civil de 1916, no Código Civil de 2002 não há regramento específico sobre o ato-fato jurídico, mas podem ser encontrados exemplos como a caça, a pesca, a comissão, o achado do tesouro, a especificação etc. Procurando facilitar a compreensão do instituto, podemos imaginar uma criança de 10 anos de idade que pescou um peixe no mar. Ela será a dona do peixe, não tendo qualquer relevância o fato de ser absolutamente incapaz. 127 MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico. Plano da eficácia. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico. Plano da existência. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 128 7 Dos Negócios Jurídicos BiBlioteCa AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio Jurídico – Existência, Validade e Eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. JUrisPrUDÊnCia 7.1 teoria Geral Do neGóCio JUríDiCo De todas as espécies de atos jurídicos, o mais importante é o negócio jurídico. Essa importância resta evidente da análise do Código Civil de 2002, que na parte geral dedicou os arts. 104 a 184 para tratar do negócio jurídico. Aos demais atos jurídicos reservou apenas o art. 185 do Código Civil, dispondo que “aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título anterior” (o título anterior é o que trata do negócio jurídico). Vejamos então as principais regras envolvendo o negócio jurídico. Unilateral DIREITO CIVIL E SUCESSÓRIO. APLICAÇÃO DA ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO. TESTAMENTO. VALIDADE. PARENTES DE LEGATÁRIO QUE FIGURARAM COMO TESTEMUNHAS DO ATO DE DISPOSIÇÃO. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 1.650 DO CÓDIGO CIVIL. (...) 2.o testamento é um negócio jurídico, unilateral, personalíssimo, solene, revogável, que possibilita à pessoa dispor de seus bens para depois de sua morte. Justamente por essas características, tanto se faz necessário observar o preenchimento de todos os seus requisitos egais para conceder-lhe validade. (stJ, resp 176473-sP) Bilateral TRIBUTÁRIO. CONTRATO DE CONCESSÃO DE USO. IPTU. INEXIGÊNCIA. 1. o contrato de concessão de uso é negócio jurídico bilateral de natureza pessoal. (stJ, resp 681406-rJ) 7.2 ClassiFiCaÇões Do neGóCio JUríDiCo 7.2.1.Classificaçãoquantoàmanifestaçãode vontade Unilaterais: são os negócios jurídicos formados pela declaração de vontade de apenas uma pessoa (p. ex.: testamento, renúncia de crédito, promessa de recompensa). Subdividem-se em: a) receptícios: aqueles em que a declaração de vontade deve ser levada ao conhecimento do destinatário para que produza efeitos (p. ex.: promessa de recompensa); e b) não receptícios: aqueles em que o conhecimento do destinatário é irrelevante (p. ex.: testamento). Bilaterais: aqueles em que há duas manifestações de vontade. Os contratos, por exemplo, exigem, ao menos, dois contratantes, duas manifestações de vontade. Plurilaterais: são os negócios jurídicos em que há mais de duas pessoas com interesses coincidentes. Essa situação é comumente verificada em alguns contratos, como o de incorporação imobiliária. 7.2.2.Classificaçãoquantoàsvantagenspara as partes Gratuitos: são os negócios jurídicos representados por atos de liberalidade, isto é, atos que outorgam vantagens sem exigir uma contraprestação. Exemplos: contrato de doação pura, contrato de comodato, testamento etc. Onerosos: são aqueles negócios que envolvem sacrifícios e vantagens patrimoniais para todos os envolvidos. Exemplos: contrato de compra e venda, contrato de locação etc. Bifrontes: são os negócios jurídicos que, de acordo com a vontade das partes, podem ser gratuitos ou onerosos. Exemplos: contrato de depósito, contrato de mútuo, contrato de mandato etc. Neutros: são aqueles que não podem ser enquadrados na categoria de gratuitos nem de onerosos. Os negócios jurídicos neutros caracteri130 Direito Civil zam-se pela ausência de atribuição patrimonial. Exemplos: instituição de bem de família (Código Civil, arts. 1.711 a 1.722), cláusula de inalienabilidade, incomunicabilidade ou impenhorabilidade etc. 7.2.3.Classificação quanto ao momento da produção dos efeitos VOCABULÁRIO décuplo: dez vezes. CINEMATECA Inter vivos: são os negócios jurídicos que têm por objetivo a produção de efeitos durante a vida dos participantes. Como exemplos de negócios inter vivos, podem ser citados os contratos, a promessa de recompensa, o pacto antenupcial. Eventualmente, podem continuar produzindo efeitos após a morte, como ocorre com alguns contratos. Mortis causa: são aqueles que somente produzem efeitos após a morte da pessoa que manifestou a vontade. A morte é considerada requisito de eficácia do negócio jurídico. Exemplos: testamento e codicilo (ato simplificado de última vontade, para as disposições de pequena monta). 7.2.4.Classificação quanto à forma Solenes ou formais: são os negócios jurídicos que devem seguir uma solenidade ou formalidade imposta pela lei para que sejam válidos. Há quem faça distinção entre os termos formalidade (exigência de forma escrita) e solenidade (exigência de instrumento público). Quando são requisitos de validade, diz-se que a solenidade ou a formalidade são do tipo ad solemnitatem ou ad substantiam. A sua não observância determina a nulidade do negócio jurídico, conforme previsão do art. 166 do Código Civil (p. ex.: testamentos, contrato de compra e venda ou doação de imóvel com valor superior a trinta salários mínimos). Quando são exigidas apenas para a prova do ato, são consideradas ad probationem tantum (o art. 227 do Código Civil determina que, salvo os casos expressos, a prova exclusivamente testemunhal só se admite nos negócios jurídicos cujo valor não ultrapasse o décuplo do maior salário mínimo vigente no País ao tempo em que foram celebrados). Não solenes ou informais: são os negócios jurídicos que têm forma livre. No Direito Civil, os negócios são, em regra, não solenes e informais. Nesse sentido, o art. 107 do Código Civil dispõe que “a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”. Exemplo: os contratos de comodato (contrato unilateral e gratuito, pelo qual alguém (comodante) entrega a outrem (comodatário) coisa infungível, para ser usada temporariamente e retituída no tempo combinado) e de locação podem ser celebrados verbalmente. 7.2.5.Classificação quanto à independência ou autonomia Principais (ou independentes): são os negócios jurídicos que têm existência própria, não dependendo de qualquer outro para que tenham validade ou eficácia. A locação é um exemplo clássico de contrato principal. 131 Para refletir sobre a promessa de recompensa e a licitude no negócio, sugere-se o filme "A Recompensa". Ano de lançamento: 2014. Direção: Richard Shepard. VoCaBUlÁrio cláusula penal: consequência negativa, prevista em contrato, a ser sofrida pela parte que descumprir o que havia prometido. fiança:contrato pelo qual o fiador compromete-se a cumprir a obrigação prometida pelo devedor a um credor. hipoteca: garantia real representada pela entrega ao credor do próprio bem imóvel que é objeto de uma dívida, no caso desta não ser paga. penhor: garantia real de pagamento representada por um bem móvel (ex.: uma joia, um equipamento, o salário de uma pessoa) para o caso de determinada dívida não ser paga. anticrese: garantia real pela qual o devedor entrega ao credor um bem imóvel para que os frutos provenientes deste amortizem uma determinada dívida. comodato: empréstimo de um bem infungível. Difere do mútuo, que é o empréstimo de um bem fungível. contrato estimatório: popularmente conhecido como “venda em consignação”, é o negócio pelo qual uma pessoa entrega um bem à outra para que esta o venda, restituindo o valor recebido ou o próprio bem ao final de um prazo determinado. Acessórios (ou dependentes): são aqueles cuja existência está subordinada a outro negócio jurídico. Exemplos: a cláusula penal e os contratos de fiança, hipoteca, penhor e anticrese. 7.2.6.Classificaçãoquantoàscondições pessoais dos negociantes Impessoais: são os negócios jurídicos que independem da condição pessoal dos envolvidos. Se uma das partes não cumprir a obrigação assumida, outra pessoa poderá cumpri-la. Essa situação é comum em diversos contratos: na compra e venda, por exemplo, havendo a morte de um dos contratantes, seus herdeiros são obrigados a cumprir o contrato. Pessoais: também conhecidos como personalíssimos ou intuitu personae, são os negócios jurídicos que dependem de condição pessoal dos negociantes, havendo obrigação infungível (insubstituível). Em caso de morte, os herdeiros não são obrigados a cumprir o contrato (p. ex.: contrato de prestação de serviço e contrato de fiança). 7.2.7.Classificação quanto à causa determinante Causais (ou materiais): são os negócios jurídicos em que o motivo consta expressamente do seu conteúdo. Exemplo: termo de separação ou divórcio. Abstratos (ou formais): são aqueles em que a razão não está inserida no conteúdo. Exemplo: termo de transmissão da propriedade; simples emissão de título de crédito etc. 7.2.8.Classificaçãoquantoaomomentoda eficácia Consensuais: são os negócios jurídicos que se consideram formados a partir do momento em que há acordo de vontades. Exemplo: compra e venda pura. Reais: são os negócios que somente se aperfeiçoam após a entrega do objeto. Exemplos: contrato de comodato, contrato de depósito e contrato estimatório. 7.2.9.Classificaçãoquantoàextensãodos efeitos Constitutivos: são os negócios jurídicos que geram efeitos ex nunc (não retroativos), a partir de sua celebração para o futuro. Em geral os contratos têm eficácia constitutiva. Declarativos: são aqueles que produzem efeitos ex tunc (retroativos), a partir do momento em que ocorreu o fato que constitui seu objeto. Como exemplo de negócio declarativo, temos a partilha de bens na sucessão de uma pessoa, que retroage ao momento da morte. 132 Direito Civil Interpretação do negócio jurídico VOCABULÁRIO 7.3 Assim como as leis, os contratos também devem ser interpretados para que possam ser cumpridos corretamente, afinal ambos criam normas jurídicas. As leis criam normas jurídicas gerais e os contratos criam normas jurídicas individuais, que devem ser observadas pelos contratantes. Interpretar é buscar o sentido e o alcance das normas ou, no caso, das cláusulas contratuais. Trata-se de tarefa indispensável para identificar a real vontade dos contratantes, que muitas vezes está escondida na redação de cláusulas confusas, ambíguas, complexas etc. É por essa razão que o art. 112 do Código Civil determina que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”. A redação do dispositivo exige cautela: a intenção que deve ser observada não é aquela presente na mente do contratante no momento em que celebrou o contrato, mas aquela manifesta no contrato. Por essa razão, a norma utiliza o termo “consubstanciada” em vez de “imaginada”. Na sequência, o art. 113 do Código Civil declara que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Esse dispositivo é considerado como um dos mais importantes do Código Civil de 2002 por Miguel Reale. Ao dispor que deve ser observada a boa-fé (objetiva) e também os usos do lugar de sua celebração (costumes), a norma permite que o intérprete aplique a teoria tridimensional do direito, conjugando os valores ao lado do fato e da norma para definir o direito no caso concreto. Conforme o Enunciado 409 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, “os negócios jurídicos devem ser interpretados não só conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, mas também de acordo com as práticas habitualmente adotadas entre as partes”. Por fim, o art. 114 determina que “os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente”. Os negócios benéficos, também denominados gratuitos, são aqueles em que uma das partes pratica uma liberalidade a favor de outra pessoa sem que exista uma contraprestação (p. ex.: doação pura). A renúncia consiste na manifestação de vontade de abdicar, independentemente de motivo, de um direito titularizado. Como não existem vantagens ou contraprestações para quem pratica ato benéfico e para quem renuncia a direitos, a lógica impõe que esses atos sejam interpretados restritivamente. Em outras palavras, na dúvida, tais atos devem ser interpretados a favor de quem praticou a liberalidade, e não de quem foi beneficiado por ela. Na Parte Especial do Código Civil de 2002 ainda podem ser encontradas outras normas restringindo a interpretação de negócios jurídicos: a) art. 423: “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas 133 liberalidade: concessão espontânea e gratuita de alguma vantagem, bem ou direito. reFleXÃo É válido o negócio que ocorre no filme “Proposta indecente”? Ano de lançamento: 1993. Direção: Adrian Lyne. Cumprimento ou não cumprimento poderiam ensejar alguma medida judicial? ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”; b) art. 819: “a fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva”; c) art. 843: “a transação interpreta-se restritivamente, e por ela não se transmitem, apenas se declaram ou reconhecem direitos”; e d) art. 1.899: “quando a cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador”. 7.4 eleMentos ConstitUtiVos Do neGóCio JUríDiCo Desde o direito romano o negócio jurídico é estudado a partir da análise de três elementos: os elementos essenciais (essentialia negotii), os elementos naturais (naturalia negotii) e os elementos acidentais (acidentalia negotii). Os elementos essenciais são aqueles que conferem a estrutura do negócio jurídico. São os requisitos indispensáveis à existência e à validade do negócio celebrado. Os elementos essenciais podem ser divididos em gerais e especiais. Gerais são os elementos mínimos exigidos em todos os negócios jurídicos (p. ex.: objeto lícito) e correspondem aos requisitos que compõem os planos de existência e validade na teoria de Pontes de Miranda, como veremos adiante. Especiais são aqueles exigidos somente para determinados negócios (p. ex.: na compra e venda são elementos essenciais a coisa, o preço e o consentimento). Os elementos naturais são as regras comuns a determinados negócios jurídicos, sem que seja necessária sua previsão expressa no contrato. Da própria natureza do negócio celebrado, podem ser extraídas algumas consequências determinadas pela lei. Como exemplo de elemento natural, podemos citar a responsabilidade pelo vício redibitório (prevista nos arts. 441 e seguintes do Código Civil) nos contratos comutativos (p. ex.: contratos de compra e venda). Elementos acidentais são cláusulas que as partes podem inserir nos negócios jurídicos com o objetivo de alterar a sua eficácia natural. Normalmente, o negócio jurídico produz efeitos imediatamente após a sua formação. Então, quando as partes desejam postergar o início da produção dos efeitos ou determinar o momento em que cessarão os efeitos de um negócio, podem (porque se trata de uma faculdade) inserir um elemento acidental. Como exemplos destes, temos a condição, o termo e o modo/encargo, que serão analisados mais adiante. 7.5 Planos Do neGóCio JUríDiCo Com base no direito romano e no direito alemão, Pontes de Miranda dividiu o estudo do negócio jurídico em três planos distintos: 134 Direito Civil existência, validade e eficácia. Muitas vezes, esses termos são utilizados pelos estudiosos do Direito como sinônimos, mas não podem ser confundidos. Cada um desses planos possui significado distinto e elementos específicos a ser analisados. E, seguindo as lições de Giselda Hironaka, podemos visualizar o estudo dos planos do negócio jurídico como se estes formassem uma escada: A ideia de visualizar os planos no formato de uma escada facilita muito a compreensão da matéria. Assim como subimos uma escada degrau por degrau, devemos estudar o negócio jurídico plano por plano. Se não forem preenchidos os requisitos de existência, o negócio jurídico será inexistente. Se não forem preenchidos os requisitos de validade, o negócio será inválido, podendo ser nulo ou anulável, a depender da situação específica. E se não forem preenchidos os requisitos de eficácia, o negócio será ineficaz. Antes de proceder à análise de cada um desses planos, devemos alertar que o legislador do Código Civil de 2002 não adotou integralmente a teoria de Pontes de Miranda, pois referiu-se apenas à validade e à eficácia dos negócios jurídicos, deixando de fora o plano de existência. 7.5.1.Plano de existência O plano de existência compreende os elementos mais básicos do negócio jurídico: agente, objeto, vontade e forma. Esses elementos (substantivos) serão adjetivados (ou seja, têm suas qualidades examinadas) somente no plano de validade. No plano de existência exige-se apenas que o negócio contenha esses elementos e, caso não estejam presentes, o negócio jurídico deverá ser considerado inexistente. Se necessário, poderá ser proposta ação declaratória de inexistência. A teoria dos atos inexistentes foi construída na França para justificar a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Entendia-se que a diferença de sexo seria um requisito tão essencial para o casamento que, se não fosse verificada, não existiria casamento. 7.5.2.Plano de validade O plano de validade é a continuação do plano de existência, pois, a partir dos elementos do negócio, impõe a análise dos seus requisitos. Indaga-se, desta forma, o que cada um dos elementos do negócio deve conter para que seja válido: os requisitos são as qualidades dos elementos. 135 COMENTÁRIO Contudo, em nosso país, a união estável e o casamento entre pessoas do mesmo sexo são admitidos desde 2012, a partir de julgamentos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. São negócios existentes, válidos e eficazes desde que respeitadas as demais regras aplicáveis aos institutos. O art. 104 do Código Civil inaugura o estudo do negócio jurídico, dispondo que a validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei. Procederemos à análise dos requisitos existentes na lei inserindo outros de natureza doutrinária, com o propósito de acrescentar novos elementos ao exame da matéria. 7.5.2.1. Partes Para que o negócio jurídico exista, vimos que deve conter agente (parte, sujeito etc.) e, para que seja válido, o agente deve ser capaz e legitimado. A capacidade exigida é, em princípio, a plena, que decorre das somas da capacidade de direito/gozo (que todas as pessoas têm) com a capacidade de fato/exercício/ação (que decorre do discernimento e é normalmente adquirida com a maioridade). Se o agente for incapaz, também poderá ser praticado o ato desde que suprida a incapacidade. Os absolutamente incapazes (rol do art. 3º do Código Civil) devem ser representados nos atos da vida civil, sob pena de nulidade; o negócio será considerado nulo e deverá ser proposta ação declaratória de nulidade. Os relativamente incapazes (rol do art. 4º) devem ser assistidos nos atos da vida civil, sob pena de anulabilidade: o negócio será anulável (ou seja, poderá ou não ser considerado nulo), devendo ser proposta ação anulatória. Em situações excepcionais, a lei confere capacidade civil plena a quem não completou a idade mínima para a prática de certos negócios jurídicos. Exemplo: no contrato de mandato, o maior de dezesseis e menor de dezoito anos não emancipado pode ser mandatário (Código Civil, art. 666). Também com dezesseis anos de idade é possível casar com autorização dos pais (art. 1.517) e realizar testamento sem assistência, mesmo não estando emancipado (art. 1.860, parágrafo único). Embora o art. 104 do Código Civil mencione apenas a capacidade do agente, a legitimidade também dever ser verificada para que o negócio seja válido. A legitimidade é uma capacidade especial exigida para a prática de certos negócios jurídicos. Exemplificando: uma pessoa maior de dezoito anos tem capacidade para celebrar contratos de compra e venda de imóvel. Mas, se for casada, dependerá, em regra, de autorização do outro cônjuge – exemplo de legitimidade. 7.5.2.2. Objeto Todo negócio jurídico possui um objeto, seja ele material ou imaterial, fungível ou infungível, com conteúdo econômico ou não. Para que o negócio seja válido, exige-se apenas que o objeto seja lícito, possível, determinado ou determinável. Se o objeto for ilícito, impossível ou indeterminado, o negócio será considerado nulo, devendo ser proposta ação declaratória de nulidade. 136 Direito Civil Objeto lícito é aquele que está de acordo com o ordenamento jurídico, pois não ofende a lei, a moral, a ordem pública e os bons costumes. O negócio que tem objeto ilícito, além de ser nulo, pode gerar outras consequências, como a propositura de ação de reparação de danos. Também permite a aplicação do princípio geral de direito pelo qual ninguém pode se valer da própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans), proibindo, por exemplo, a alegação do dolo recíproco ou bilateral (Código Civil, art. 150), e o pedido de repetição de pagamento feito para obter fim ilícito ou imoral (art. 883). Objeto possível é aquele que pode ser realizado do ponto de vista físico e jurídico. A possibilidade física é examinada sob a luz das leis da natureza. Somente a impossibilidade física absoluta (aquela que atinge a todas as pessoas no universo) determina a nulidade do negócio. Exemplos: construir uma ponte ligando a Terra à lua; colocar toda a água do rio São Francisco em um copo etc. Se a impossibilidade for relativa (atingir o devedor, mas não outras pessoas), em princípio o negócio será válido. Conforme o art. 106 do Código Civil, a impossibilidade inicial do objeto não invalida o negócio jurídico se for relativa, ou se cessar antes de realizada a condição a que ele estiver subordinado. Se a impossibilidade não cessar até o momento do cumprimento da obrigação ou até o implemento da condição, o negócio será nulo. Além da possibilidade física, alguns autores também se referem à possibilidade jurídica como um requisito de validade do negócio. O objeto possível juridicamente é aquele que não está proibido pelo ordenamento jurídico. Como exemplo de objeto impossível juridicamente podemos citar a proibição de contratar tendo por objeto herança de pessoa viva (Código Civil, art. 426). Todavia, entendemos que a impossibilidade jurídica está compreendida na noção de licitude, estudada acima. Objeto determinado é aquele que está individualizado no negócio jurídico. No estudo das obrigações o objeto determinado é o conteúdo da obrigação de dar coisa certa (Código Civil, art. 232). Objeto determinável é aquele que será individualizado no futuro, contendo, de início, ao menos a indicação do gênero e da qualidade. No direito das obrigações o objeto determinável é o conteúdo da obrigação de dar coisa incerta (art. 243). Se faltar a indicação do gênero ou da quantidade, a obrigação e o negócio jurídico serão nulos. 7.5.2.3. Forma A forma é o meio pelo qual se revela a manifestação de vontade do agente. Para que o negócio jurídico seja válido, a forma deve ser aquela prescrita ou não defesa (não proibida) em lei. Contudo, no Direito Civil, a regra é a forma livre e somente em situações excepcionais é exigida formalidade (forma escrita) ou solenidade (instrumento público). De acordo com o art. 107 do Código Civil, a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir. 137 VOCABULÁRIO dolo recíproco ou bilateral: dolo simultâneo de ambas as partes envolvidas num negócio de forma que nenhuma delas poderá alegá-lo, com o objetivo de anulá-lo ou de reclamar indenização. Diversamente, será nulo o negócio jurídico que não revestir a forma prescrita em lei ou se for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade (Código Civil, art. 166, IV e V). Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país (art. 108). De acordo com o Enunciado 289 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, “o valor de 30 salários mínimos constante no art. 108 do Código Civil brasileiro, em referência à forma pública ou particular dos negócios jurídicos que envolvam bens imóveis, é o atribuído pelas partes contratantes e não qualquer outro valor arbitrado pela Administração Pública com finalidade tributária”. Algumas vezes as próprias partes podem determinar que o negócio só será válido se for observada determinada forma. É o que se denomina forma contratual e está prevista no art. 109 do Código Civil: “no negócio jurídico celebrado com a cláusula de não valer sem instrumento público, este é da substância do ato”. A forma também pode ser classificada em ad solemnitatem e ad probationem, como vimos ao estudar as classificações do negócio jurídico. A forma ad solemnitatem, também conhecida como ad substantiam, é aquela exigida como requisito de validade do negócio (p. ex.: Código Civil, arts. 166, 108 e 109). A forma ad probationem tantum é aquela exigida para a prova do ato em juízo (p. ex.: arts. 227 e 1.536). 7.5.2.4. Vontade O negócio jurídico é uma manifestação de vontade que está de acordo com o ordenamento jurídico e produz efeitos desejados pelo agente. Entretanto, para que o negócio seja válido, a vontade deve ser manifestada de forma livre. Vontade livre é aquela manifestada de forma consciente e sem qualquer um dos defeitos ou vícios do negócio jurídico: erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão, fraude contra credores e simulação. Os cinco primeiros são denominados vícios da vontade ou do consentimento e contaminam a formação da vontade. Os dois últimos são denominados vícios sociais e contaminam a manifestação da vontade. O estudo dos vícios do negócio jurídico será realizado em capítulo próprio, adiante. Devemos lembrar que o silêncio importa anuência (concordância), quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa (Código Civil, art. 111). Portanto, não se pode afirmar que o direito tenha acolhido por completo o ditado popular “quem cala, consente”. 7.5.2.4.1. Reserva mental De acordo com o art. 110 do Código Civil, “a manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não 138 Direito Civil querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento”. A reserva mental é a emissão de uma vontade não desejada em seu conteúdo nem em suas consequências. Quando o negócio jurídico é celebrado sem que a outra parte tenha conhecimento da reserva mental do agente, o negócio será válido. Com efeito, nesta hipótese a reserva mental será irrelevante para o direito, subsistindo a vontade declarada no negócio. Contudo, se a outra parte tiver conhecimento da reserva mental, o negócio não subsistirá. Não é simples, entretanto, determinar exatamente qual a conse­ quência que atingirá o negócio quando a reserva mental é conhecida da outra parte. Alguns autores, como Moreira Alves, defendem que não existirá a declaração de vontade, logo o negócio não será formado (plano de existência). Contudo, vimos que o Código Civil de 2002 não adotou o plano de existência do negócio. Parece-nos, então, que a melhor solução na hipótese seria apontar a nulidade do negócio jurídico. 7.5.2.4.2. Representação Representação é a legitimidade conferida a uma pessoa para praticar atos em nome de outra. A pessoa que atua é denominada representante e a pessoa em nome de quem são praticados atos é denominada representado. Os poderes de representação conferem-se por lei ou pelo interessado. A representação legal é aquela conferida pela lei aos pais, tutores, curadores, síndicos, administradores etc. Trata-se de um munus público e somente pode ser exercida no interesse do representado. Na verdade, os únicos representantes legais são os pais, tutores e curadores. Síndicos e administradores da falência ou da recuperação são representantes judiciais, contudo o Código Civil de 2002 unificou o tratamento das duas espécies sob o título de representação legal. A representação convencional, também denominada voluntária, é aquela conferida mediante o contrato de mandato. Opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato (Código Civil, art. 653). Diversamente da representação legal, em que o representante só pode agir no interesse do representante, na representação voluntária podem ser conferidos poderes para que o representante atue em causa própria (procuração em causa própria). Tanto na representação legal como na convencional exige-se que o mandatário tenha capacidade civil plena (capacidade de direito/gozo + capacidade de fato/exercício/ação). Apesar disso, permite que o menor com dezesseis ou dezessete anos e não emancipado seja nomeado mandatário, mas o mandante não tem ação contra ele, senão segundo as regras gerais, aplicáveis às obrigações contraídas por menores (Código Civil, art. 655). 139 VOCABULÁRIO múnus: encargo, função que compreende a outorga de poderes e deveres a quem a recebe. JUrisPrUDÊnCia Embora o Código Civil de 2002 não tenha fixado limites para o autocontrato, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem pontuado que a validade do negócio depende da ausência de conflito de interesses. Neste sentido, a Súmula 60 do STJ determina que “é nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste”. Também em ambas as formas de representação compete ao representante provar às pessoas, com quem tratar em nome do representado, a sua qualidade e a extensão de seus poderes, sob pena de, não o fazendo, responder pelos atos que a estes excederem. De acordo com o art. 116 do Código Civil, a manifestação de vontade pelo representante, nos limites de seus poderes, produz efeitos em relação ao representado. O representante tem o dever de agir estritamente de acordo com os poderes conferidos pelo representado. Se o representante ultrapassar os limites definidos, será considerado mero gestor de negócios, enquanto o mandante não lhe ratificar os atos (Código Civil, arts. 665 e 861 a 875). É anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo, se não existir autorização legal ou do representado. Para esse efeito, tem-se como celebrado pelo representante o negócio realizado por aquele em quem os poderes houverem sido substabelecidos (art. 117). Esse dispositivo admite a celebração do autocontrato ou contrato consigo mesmo desde que presente autorização da lei ou do mandante. O exemplo mais comum desta figura negocial é o mandato em causa própria, em que o mandante transfere poderes ao mandatário para alienar determinado bem, por certo preço, a terceiros ou a si próprio (art. 685). O art. 119 do Código Civil dispõe que é anulável o negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou. A ação anulatória deve ser proposta no prazo decadencial de cento e oitenta dias, a contar da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade. A invalidade do negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado não deve ser confundida com a invalidade do negócio concluído por pessoa incapaz sem a devida representação. Se a pessoa absolutamente incapaz celebrar negócio jurídico sem estar representada, este será nulo, devendo ser proposta ação declaratória de nulidade (a qual não tem prazo para ser proposta). E se pessoa relativamente incapaz celebrar negócio sem assistência, este será anulável, devendo ser proposta ação anulatória no prazo de quatro anos, contados a partir do dia em que cessar a incapacidade (Código Civil, art. 178, III). Conforme dispõe o art. 120 do Código Civil, os requisitos e os efeitos da representação legal são os estabelecidos nas normas respectivas (p. ex.: Código Civil, arts. 3º e 4º; Lei de Falências etc.); os da representação voluntária são os da Parte Especial do Código (arts. 653 a 692). 7.5.3.Planodeeficácia Em regra, o negócio jurídico que existe e é válido tem eficácia imediata, devendo as partes cumprir as obrigações assumidas logo após a 140 Direito Civil sua formação. Contudo, nada impede que as partes insiram no negócio jurídico uma cláusula acessória para modificar ou limitar os efeitos que seriam produzidos ou até mesmo para determinar o surgimento de um direito. Essas cláusulas acessórias são denominadas elementos acidentais (acidentalia negotii), pois o negócio subsistiria e produziria efeitos mesmo sem eles. 7.6Elementos acidentais Os elementos acidentais mais comuns são a condição, o termo e o modo ou encargo, mas nada impede que as partes criem outras formas de elementos acidentais, exigindo-se, apenas, que sejam lícitos (ou seja, que estejam de acordo com a lei, a moral, a ordem pública e os bons costumes). Os negócios jurídicos em geral admitem a aposição de elemento acidental. Contudo, alguns negócios jurídicos e atos jurídicos stricto sensu não admitem elementos acidentais, como aqueles que dizem respeito ao estado das pessoas, os direitos de família puros e outros. Exemplos: emancipação, casamento, adoção, reconhecimento de filho, aceitação e renúncia da herança etc. 7.6.1.Condição Condição é a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina a eficácia do negócio jurídico a um evento futuro e incerto (Código Civil, art. 121). É normalmente inserida nos negócios jurídicos pelos termos se ou enquanto (p. ex.: compro o seu guarda-chuva se chover amanhã) e pode subordinar tanto o surgimento do direito (condição suspensiva) como a sua extinção (condição resolutiva). Normalmente, atua apenas no plano de eficácia, mas em determinadas situações atinge o plano de validade do negócio jurídico (p. ex.: a condição ilícita gera a invalidade do negócio), conforme estudaremos adiante. A condição pode ser identificada sob três formas: a) pendente: é o estado da condição que ainda se verificou ou frustrou; b) verificada (implemento): é a condição em que se averiguou o seu cumprimento, não importando se é suspensiva ou resolutiva; e c) frustrada: é a condição que não foi verificada. Reputa-se verificada (isto é, considerase ocorrida), quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento (ocorrência) for maliciosamente obstado (ocultado) pela parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento (Código Civil, art. 129). 7.6.1.1. Requisitos da condição Do conceito básico da condição podemos extrair os seus três requisitos: a voluntariedade, a futuridade e a incerteza. Vejamos: 141 a) Voluntariedade: a condição deve ser resultado da manifestação de vontade das partes (vontade unilateral ou bilateral). Deve ter sido inserida voluntariamente e expressamente no negócio jurídico, não se admitindo condição tácita ou presumida. Esta é a verdadeira condição, também denominada condição própria, e está regulada nos arts. 121 a 130 do Código Civil. Não deve ser confundida com a condição imprópria (também denominada condição legal ou conditio iuris), que nada mais é do que uma exigência legal (um requisito) para validade ou eficácia de um ato jurídico (p. ex.: a exigência de que o absolutamente incapaz seja representado nos atos da vida civil; a exigência de que o pacto antenupcial seja feito mediante escritura pública etc.). b) Futuridade: o segundo requisito da condição é que o evento do qual dependerá a eficácia do negócio jurídico seja futuro, isto é, seja um fato posterior à celebração do negócio. Se o evento for presente ou pretérito (conditio in praesens vel in preteritum collata) ou for apenas desconhecido do agente (incerteza subjetiva), não há condição. Se o evento já houver ocorrido, o negócio é considerado plenamente desenvolvido. Se não, o negócio não se formou. c) Incerteza: este último requisito permite a distinção entre a condição (evento futuro e incerto) e o termo (evento futuro e certo). De acordo com a doutrina, a incerteza que caracteriza a condição deve ter natureza objetiva, isto é, deve ser um evento incerto no plano dos fatos, independentemente da pessoa que celebra o negócio. 7.6.1.2. Classificação da condição quanto à certeza a) Condição incerta (incertus an incertus quando): é aquela em que as partes não sabem se o evento ocorrerá nem quando poderá ocorrer. Exemplo: “vou te dar um capacete quando o Rubinho ganhar uma corrida de Fórmula 1” (não se sabe se irá ganhar nem quando irá ganhar). b) Condição certa (incertus an certus quando): é aquela em que não se sabe se o evento ocorrerá, mas, se ocorrer, deverá ser em um momento determinado. Exemplo: “vou te dar um capacete se o Rubinho ganhar a corrida do dia 15 do mês que vem” (não se sabe se irá ganhar, mas, se ganhar, a condição só vale para aquela corrida determinada). Também é exemplo de condição certa a maioridade de um ser humano, pois não se sabe se o menor estará vivo (incertus an) até o dia do seu aniversário de dezoito anos (certus quando). 7.6.1.3. Classificação da condição quanto aos efeitos a) Condição suspensiva: é a condição que suspende o exercício e a aquisição do direito até o seu implemento. Portanto, a condição suspensiva impede que o negócio jurídico produza efeitos desde o momento 142 Direito Civil de sua celebração. A venda a contento (aprovação ad gustum – Código Civil, art. 125) é um bom exemplo de condição suspensiva. A condição suspensiva gera expectativa de direito (spes debitum iri), mas este já é objeto de proteção, podendo o seu titular se valer de medidas conservatórias (p. ex.: inscrição do título no registro, interrupção da prescrição etc.). A menção que o art. 130 faz à condição resolutiva é uma impropriedade, já que ociosa. Se a pessoa já está no exercício de um direito, é óbvio que pode reclamar sua proteção (p. ex.: ação para garantir a existência jurídica da prestação, reclamação das perdas e danos etc.). Embora sob condição suspensiva, o negócio está formado e a relação jurídica, criada, podendo, inclusive, ser transmitido inter vivos ou mortis causa (elemento ativo in fieri do patrimônio). Evidente que a transmissão do negócio mantém a condição prevista (nemo ad alium plus iuris tranferre potest quam ipse habet). A condição suspensiva tem, em regra, eficácia retroativa, mas, em alguns negócios em que se exige tradição da coisa ou registro, não retroage. Se a coisa perecer ou se deteriorar de forma não culposa e pendente condição suspensiva, o alienante sofre a perda (regra res perit domino). b) Condição resolutiva: é aquela que, quando verificada, põe fim aos efeitos do negócio. A aquisição do direito ocorre desde a formação do negócio, que produz todos os efeitos enquanto a condição não se verificar (art. 127). Verificada a condição resolutiva, extingue-se, para todos os efeitos, o direito a que ela se opõe, mas, se aposta em negócio de execução continuada ou diferida, não tem eficácia com relação aos atos já praticados de boa-fé. Questão interessante é a de determinar se a condição resolutiva opera de pleno direito ou se depende de reconhecimento judicial. Entendemos que, em regra, a resolução é automática, mas em algumas hipóteses será necessária a decisão judicial. Isto ocorre, por exemplo, no compromisso de compra e venda com cláusula resolutiva, que exige a propositura de ação judicial para que seja decretada a resolução. 7.6.1.4. C lassificação da condição quanto à licitude a) Condição lícita: é a condição que está de acordo com o ordenamento jurídico (lei, moral, ordem pública e bons costumes – Código Civil, art. 122) e, consequentemente, é validada. Numa perspectiva civil-constitucional, a licitude da condição deve ser verificada também de acordo com os valores do ordenamento, em especial à luz dos princípios fundamentais (dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade etc.). b) Condição ilícita: é aquela contrária ao ordenamento jurídico, por ofender a lei, a moral, a ordem pública ou os bons costumes. Exemplo: prometer um prêmio a uma pessoa que atropelar outra. A condição ilícita gera a nulidade do negócio jurídico, não importando se ela 143 CURIOSIDADE A perspectiva civil-constitucional pode ser descrita, em linhas muito gerais, como a elevação ao plano constitucional dos princípios norteadores do Direito Civil. Assim, a interpretação dos institutos civis passa a ser feita a partir de parâmetros da Constituição, tais como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social e a igualdade substancial. Segundo os autores que abraçam esta orientação, ela representa uma mudança de modelo teórico ocorrida com o advento da Constituição Federal de 1988, que forçou o abandono do espírito individualista e patrimonialista do então vigente Código Civil de 1916 e passou a examiná-lo sob a ótica da promoção do bem comum e da supremacia do interesse coletivo sobre o privado. é suspensiva ou resolutiva. De acordo com o art. 122 do Código Civil, são ilícitas as seguintes condições: I) condições perplexas ou contraditórias: aquelas que privam de todo o efeito o negócio. Exemplo de Francisco Amaral: Instituo “A” meu herdeiro universal se “B” for meu herdeiro universal; e II) condições puramente potestativas: aquelas que sujeitam a eficácia do negócio ao puro arbítrio de uma das partes. 7.6.1.5. Classificação da condição quanto à possibilidade a) Condição possível: é a condição que pode ser cumprida tanto do ponto de vista físico como do jurídico. A possibilidade física é analisada a partir das leis da natureza. A possibilidade jurídica tem por base o ordenamento jurídico. As condições possíveis são válidas. b) Condição impossível: a conditio impossibilis é aquela que não pode ser cumprida. Pode ser impossível fisicamente (se nenhuma pessoa puder cumprir a condição) ou juridicamente (se a conduta atentar contra o ordenamento jurídico). Diferentemente do que se costuma imaginar, nem sempre a condição impossível determinará a nulidade do negócio. Se a condição impossível for suspensiva, o negócio será considerado nulo. Entretanto, se for resolutiva, a condição será considerada inexistente, e o negócio, válido. 7.6.1.6. Classificação da condição quanto à natureza (ou fonte) a) Condição casual: é a condição que fundamenta em um evento alheio à vontade das partes. Dependem do acaso e do fortuito sem possibilidade de intervenção dos interessados. Por essa razão os eventos da natureza podem ser bons exemplos de condições casuais (p. ex.: prometo doar um guarda-chuva a uma pessoa se chover amanhã em São Paulo). Também são condições casuais aquelas que subordinam a eficácia do negócio ao comportamento de terceiros (p. ex.: prometo doar um carro a um amigo se Vitor Belfort vencer a próxima luta contra Anderson Silva). b) Condição potestativa: é aquela que depende da vontade de um dos contratantes, que pode provocar ou impedir o seu implemento. Pode ser classificada em simplesmente potestativa e puramente potestativa: Simplesmente ou meramente potestativa: é a condição cujo implemento depende da vontade intercalada de duas pessoas – uma das partes impõe a condição e a outra deve cumpri-la (p. ex.: será dado um carro a quem der uma volta correndo no quarteirão). As condições simplesmente ou meramente potestativas são lícitas. No Código Civil também podem ser encontrados exemplos de condições simplesmente potestativas: I) art. 420: trata do direito de arrependimento; II) art. 505: dispõe sobre a cláusula de retrovenda; III) art. 509: trata da venda a contento; e IV) art. 513: dispõe sobre o direito de arrependimento. 144 Direito Civil Puramente potestativa: é a condição que subordina a eficácia do negócio jurídico ao arbítrio de uma das partes. O implemento da condição depende da vontade da própria pessoa que a impôs. As condições puramente potestativas consagram a cláusula si voluero (se me aprouver – exemplo: doarei um relógio amanhã se eu quiser) e, por essa razão, são consideradas ilícitas, gerando a nulidade do negócio. No direito das obrigações, Caio Mário da Silva Pereira aponta que a indeterminação potestativa da prestação (p. ex.: deixar de indicar a quantidade do objeto a ser entregue) é uma espécie de condição potestativa pura. A potestatividade do negócio se desloca da sua realização para a estimativa do res debita. Pagar quanto quiser (quantum volam) é a mesma coisa que pagar se quiser (si volam). c) Condição mista: é a condição que depende, ao mesmo tempo, da conduta (vontade) de uma das partes e de um ato que não depende da vontade das partes (depende do acaso ou da vontade de um terceiro). Exemplo: prometo doar uma televisão a um amigo se ele se casar com determinada pessoa – observe que a celebração do casamento depende não só da vontade de meu amigo, mas também da vontade da outra pessoa. As condições mistas são válidas desde que resultem da combinação de uma condição casual com outra simplesmente potestativa (como no exemplo acima). 7.6.2.Termo É a cláusula que subordina a eficácia do negócio jurídico a um evento futuro e certo. Ao contrário da condição, que somente pode ser criada pela vontade das partes, o termo pode ser introduzido no negócio pelas partes (termo convencional) ou pode ser estipulado pela lei (termo legal ou termo de direito). O termo também não deve ser confundido com prazo, que é o lapso temporal existente entre o termo inicial e o termo final. O prazo pode ser contado em minutos, horas, dias, meses ou anos. 7.6.2.1. C lassificação do termo quanto aos efeitos a) Termo suspensivo: também conhecido como termo inicial ou dies a quo, é aquele que, quando verificado, determina o início dos efeitos negociais. Em outras palavras, o termo suspensivo suspende o exercício, mas não a aquisição do direito, gerando direito adquirido. Não se confunde, portanto, com a condição suspensiva, que suspende o exercício e a aquisição do direito, gerando simples expectativa de direito. Exemplo de termo suspensivo: alugarei uma casa a partir do dia 1º de janeiro do próximo ano. b) Termo resolutivo: também conhecido como termo final ou dies ad quem, é aquele que, quando verificado, põe fim aos efeitos do negócio jurídico. Exemplo de termo resolutivo: o contrato de locação vencerá no dia 30 do próximo mês. Diante das semelhanças existentes entre o termo e a condição, o art. 135 do Código Civil prescreve que “ao termo inicial 145 e final aplicam-se, no que couber, as disposições relativas à condição suspensiva e resolutiva”. 7.6.2.2. Classificação do termo quanto à certeza a) Termo certo (certus an certus quando): é o termo certo que ocorrerá e se sabe quando ocorrerá. No termo certo o evento é uma decorrência da lei da natureza. Assim, toda data futura é um exemplo de termo certo (p. ex.: no dia 1º de janeiro do ano que vem lhe darei um carro). b) Termo incerto (certus an incertus quando): é o termo certo que ocorrerá, mas não se sabe quando. O melhor exemplo de termo incerto é a morte de uma pessoa – sabemos que todos morreremos, mas não sabemos quando. 7.6.2.3. Contagem do prazo Prazo é o lapso temporal existente entre um termo inicial e um termo final. Também pode ser conceituado como o lapso de tempo entre a declaração de vontade e a superveniência do termo (inicial ou final). Salvo disposição legal ou convencional em contrário, a contagem do prazo deve ser feita com a exclusão do dia do começo, e com a inclusão do dia do vencimento (Código Civil, art. 132, caput). Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o seguinte dia útil (Código Civil, art. 132, § 1º). Há entendimento doutrinário no sentido de que a mesma regra deve ser aplicada aos domingos, mas não aos sábados. Entretanto, para as obrigações bancárias, se o vencimento ocorrer no sábado ou no domingo, o prazo será prorrogado até o dia útil seguinte. Nos termos do art. 132, § 2º, do Código Civil, meado considera-se, em qualquer mês, o seu décimo quinto dia. Desta forma, não importando se o mês tem vinte e oito (fevereiro), vinte e nove (fevereiro em ano bissexto), trinta ou trinta e um dias, o meado será sempre o décimo quinto dia. Os prazos de meses e anos expiram no dia de igual número do de início, ou no imediato, se faltar exata correspondência (Código Civil, art. 132, § 3º). Entendemos que a aplicação dessa regra ocorre de forma autônoma ao caput do art. 132. Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça podem ser encontradas decisões nesse sentido e também aplicando o § 3º simultaneamente com o caput do art. 132. Se os prazos forem fixados por hora, deverão ser contados de minuto a minuto. Nos testamentos, presume-se o prazo em favor do herdeiro, e, nos contratos, em proveito do devedor, salvo, quanto a esses, se do teor do instrumento, ou das circunstâncias, resultar que se estabeleceu a benefício do credor, ou de ambos os contratantes (art. 133 do CC). Esse dispositivo estabelece uma presunção absoluta (jure et jure/ iuris et de iure) a favor dos herdeiros, permitindo que cumpram encar146 Direito Civil gos antes do prazo estabelecido pelo testador. Também permite que o herdeiro antecipe o pagamento do legado. Quanto aos devedores, o dispositivo estabelece presunção relativa (juris tantum), dispondo que são presumidos ao seu favor os prazos para cumprimento das obrigações, salvo se das disposições contratuais ou das circunstâncias do negócio resultar que o prazo foi estabelecido em benefício do credor ou de ambos. Essa presunção permite, por exemplo, que o devedor pague uma dívida antes do seu vencimento. Em se tratando de relação de consumo, o consumidor devedor sempre tem o direito de liquidar antecipadamente seu débito, não importando se o prazo foi estabelecido a favor dele ou do fornecedor e credor (Código de Defesa do Consumidor, art. 52, § 2º). Os negócios jurídicos sem prazo, celebrados entre pessoas vivas (p. ex.: contrato por prazo indeterminado), têm vencimento imediato, salvo se o negócio tiver de ser cumprido em lugar diverso do contratado ou exigir tempo para sua execução. Nessas hipóteses, o prazo para o cumprimento da obrigação deve ser interpretado de acordo com a natureza e as condições do negócio. 7.6.3.Modo ou encargo O modo ou encargo é a cláusula que impõe uma obrigação a quem é beneficiado por uma liberalidade. Como elemento acidental do negócio jurídico, é normalmente identificado pelo uso das expressões “para que” ou “com o fim de” e normalmente tem por objetivo dar relevância aos interesses particulares do autor da liberalidade. Exemplos: uma doação de terreno feita ao município de Avaré para que nele seja construída uma escola (doação modal – Código Civil, art. 540); a nomeação de uma pessoa como herdeira em um testamento com a obrigação de cuidar de um animal de estimação. A obrigação imposta pelo encargo pode ser de qualquer espécie (dar, fazer ou não fazer) e o seu cumprimento pode ser exigido em juízo mediante a propositura de execução, quando houver título executivo extrajudicial (p. ex.: contrato assinado por duas testemunhas), ou mediante ação de obrigação, quando não houver título executivo (p. ex.: contrato sem a presença de testemunhas). Essa obrigatoriedade é reforçada pelo art. 553 do Código Civil, que dispõe que o donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação, caso forem a benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral. Se desta última espécie for o encargo, o Ministério Público poderá exigir sua execução, depois da morte do doador, se este não tiver feito. Além da possibilidade de exigir em juízo o cumprimento do encargo, também é possível requerer a revogação da liberalidade, exigindo, por exemplo, a devolução do bem que foi doado. Consoante prevê o art. 562 do Código Civil, “a doação onerosa pode ser revogada por inexecução do encargo, se o donatário incorrer em mora. Não havendo prazo para o cumprimento, o doador poderá notificar judicialmente o donatário, assinando-lhe prazo razoável para que cumpra a obrigação assumida”. 147 Nos termos do art. 136 do Código Civil, “o encargo não suspende nem a aquisição nem o exercício do direito, salvo quando expressamente imposto no negócio jurídico pelo disponente, como condição suspensiva”. Assim, ainda que a pessoa que praticou o ato venha a falecer ou se tornar incapaz, a liberalidade não será atingida. Diversamente, se se tratar de condição suspensiva, o negócio perderá sua eficácia. Se o encargo for ilícito ou impossível, será considerado não escrito, salvo se constituir o motivo determinante da liberalidade, caso em que se invalida o negócio jurídico. Normalmente o motivo é irrelevante para o direito. Contudo, quando é aposto como razão determinante, passa a integrar o conteúdo do próprio negócio, tornando ilícito o seu objeto. Esta é a razão pela qual o negócio jurídico deverá, em tais casos, ser considerado nulo. 148 8 Defeitos nos negócios jurídicos VOCABUlÁRIO diligência: cuidado, zelo, presteza. 8.1 INTRODUçãO Conforme estudado anteriormente, a vontade humana é requisito essencial para a existência dos negócios jurídicos. E, para que o negócio seja considerado válido, vimos que a vontade não pode estar viciada, isto é, deve ser manifestada de forma livre e consciente. Contudo, como veremos, nem sempre isso ocorre, havendo inúmeras situações em que a vontade é formada ou declarada de maneira defeituosa. Quando o problema é interno, isto é, na formação da vontade, fala-se em vício da vontade, também denominado defeito do consentimento, existindo cinco espécies no Código Civil de 2002: erro ou ignorância, dolo, coação, estado de perigo e lesão. Quando o problema é externo, isto é, na declaração da vontade, fala-se em vício social, sendo exemplos deste a fraude contra credores e a simulação. Outro fator de distinção entre os vícios é a pessoa prejudicada. Nos vícios da vontade o prejudicado é sempre um dos contratantes. Quando o vício é social, o prejudicado é um terceiro, isto é, uma pessoa que não participou da relação contratual, mas foi atingida por ela. 8.2 ERRO OU IgNORÂNCIA (CÓDIgO CIVIl, ARTS. 138 A 145) O erro é a falsa representação da realidade, isto é, a falsa percepção sobre um elemento determinante na realização de um negócio jurídico. Já a ignorância é o completo desconhecimento da realidade. Embora exista diferença conceitual (a ignorância é um erro mais acentuado), o regramento conferido aos institutos é o mesmo, devendo estes ser tratados como sinônimos. De acordo com o art. 138 do Código Civil, são anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio. COMENTÁRIO Decisão do STJ estabelece que, no caso de bem imóvel, a ação anulatória tem como termo inicial a data de registro do ato ou contrato no cartório imobiliário (REsp 1.205.147 - AgRg). 8.2.1. Consequências do erro Quando presente o erro ou a ignorância, o negócio jurídico é considerado anulável, devendo ser proposta ação anulatória no prazo decadencial de quatro anos, a contar da data da celebração do negócio jurídico (Código Civil, art. 178, II). A ação somente pode ser proposta pela parte prejudicada pelo erro, não pela beneficiada. A transmissão errônea da vontade é anulável, seja quando ocorre por meio direto (p. ex.: pessoalmente), como também por meios interpostos, como, por exemplo, um meio de comunicação (internet, e-mail, fax etc.), ou por um intermediário (Código Civil, art. 141). 150 Direito Civil Conforme determina o art. 144 do Código Civil, o erro não prejudica a validade do negócio jurídico quando a pessoa, a quem a manifestação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la na conformidade da vontade real do manifestante. Tal dispositivo consagra o princípio da conservação do contrato, que decorre do princípio da função social do contrato, ao preferir a revisão do contrato à anulação. Para que o erro torne o negócio jurídico anulável, deverá ser substancial e real (deve causar verdadeiro prejuízo para o interessado). Se o erro for acidental, o negócio jurídico será válido, conforme veremos. 8.2.2. Classificação do erro quanto à determinação 8.2.2.1. Erro substancial Erro substancial (error in substantia) ou erro essencial é aquele que recai sobre aspecto determinante (relevante) do negócio, incidindo sobre o núcleo essencial da declaração. Se a pessoa tivesse conhecimento da realidade, o negócio não teria sido celebrado. Quando o erro é substancial, o negócio jurídico é anulável. O próprio Código Civil determina, em seu art. 139, que o erro é substancial quando: I – interessa à natureza do negócio (error in negotio – p. ex.: a pessoa aluga uma casa, mas achava que a estava emprestando), ao objeto principal da declaração (error in corpore – p. ex.: a pessoa acredita que está comprando um determinado carro e na verdade adquire outro), ou a alguma das qualidades a ele essenciais (error in qualitate ou in substantia – p. ex.: a pessoa compra um relógio de latão, achando que é de ouro); II – concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante (error in persona – p. ex.: a pessoa acha que está contratando uma banda famosa, mas acaba contratando uma homônima); III – sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do negócio jurídico (error iuris). O erro de direito (error iuris) é aquele em que a pessoa desconhece o conteúdo ou a consequência de um dever jurídico imposto por lei ou assumido mediante acordo de vontade. Podemos afirmar que há um falso conhecimento ou uma falsa interpretação sobre o direito. Para que o erro de direito possa conduzir à anulação do negócio, devem estar presentes dois requisitos: a) Motivo determinante: a pessoa deve ter declarado a vontade somente porque teve uma errônea compreensão da norma jurídica. b) Não pode implicar recusa à aplicação da lei: quando se estuda o erro de direito, é muito comum a indagação se não haveria uma antinomia (isto é, um conflito) entre o art. 139, III, do Código Civil de 151 COMENTÁRIO Em decisão do TJSP (Ap. 0011043-31.2013.8.26.0566), verificamos caso emblemático de defeito do negócio jurídico. O autor da ação recebeu uma carta do INSS informando-lhe a respeito de diferença derivada de revisão em seus benefícios previdenciários. Procurou auxílio do réu, que lhe ofereceu serviços para intermediação junto ao órgão público, cobrando-lhe o equivalente a 30% do montante a ser levantado. Contudo, este deixou de informar que seus serviços não seriam necessários, já que bastaria comparecer diretamente para receber os valores. JURISPRUDÊNCIA A jurisprudência (TJSP, Ap. 0036433-36.2010.8.26.0007) fornece a resolução de um caso bem comum de ocorrer: o autor da ação alega divergência entre o veículo automotor efetivamente adquirido e o indicado no contrato de financiamento. O erro não foi apto a invalidar este negócio jurídico, descabendo a anulação e a devolução do bem financiado. O tribunal estabeleceu a adequação à real vontade das partes, tendo alterado as cláusulas contratuais relativas à descrição do bem e ao valor financiado. VOCABUlÁRIO colimado: objetivado, desejado COMENTÁRIO Exemplo extraído de decisão do TJSP (Ap. 001674947.2011.8.26.0248): duas pessoas fizeram contrato de compra e venda de um imóvel. O valor ajustado de compra foi de R$ 19.000,00. Contudo, foi estipulado que o comprador deveria pagar 24 parcelas de R$ 200,00, o que se mostra equivocado, pois o certo seria R$ 791,66. Assim, houve mero erro de cálculo do valor da parcela mensal, o que autorizaria apenas a retificação do cálculo. 2002 e o art. 3º da LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que proíbe a alegação de ignorância para descumprimento da lei (ignorantia legis neminem excusat), conhecido como princípio da obrigatoriedade. A resposta, a nosso ver, é negativa. O art. 3º da LINDB proíbe a alegação do erro de direito para afastar a norma jurídica geral, a lei. O art. 139, III, do Código Civil admite a alegação do erro de direito para afastar a norma jurídica individual, o contrato. Como se vê, são situações distintas. 8.2.2.2. Erro acidental É aquele que recai sobre aspecto secundário, ou seja: a pessoa tem uma falsa percepção sobre um elemento que não é determinante para a concretização do negócio jurídico. Por essa razão, afirma-se que o negócio viciado por erro acidental não é anulável. O art. 142 do Código Civil contempla o erro acidental ao dispor que “o erro de indicação da pessoa ou da coisa, a que se referir a declaração de vontade, não viciará o negócio, quando, por seu contexto e pelas circunstâncias, se puder identificar a coisa ou pessoa cogitada”. Todavia, se as qualidades secundárias da pessoa ou da coisa forem consideradas como razões determinantes do negócio, se estará diante de hipótese de erro substancial, permitindo a anulação. O erro que incide sobre a qualidade acessória do objeto (error in qualitate) ou sobre sua medida, peso ou quantidade (error in quantitate) é considerado acidental desde que não importe efetivo prejuízo ao contratante. O erro sobre o motivo ou erro quanto ao fim colimado, em regra, não permite a anulação do negócio. Os motivos que levam uma pessoa a agir de determinada forma normalmente não têm importância para o direito. Todavia, quando o motivo passa a ser expresso como razão determinante de um negócio jurídico, entende-se que ele passa a incorporar o próprio conteúdo do negócio, contaminando-o, quando falso. O erro sobre o cálculo também pode ser apontado como exemplo de erro acidental, pois não contamina o negócio jurídico e, portanto, não permite a sua anulação. É uma espécie de erro material retificável, daí por que o art. 143 do Código Civil apenas autoriza a retificação da declaração de vontade, isto é, o recálculo, consagrando o princípio da conservação do contrato. 8.2.2.3. Erro obstativo O erro obstativo, obstáculo ou impróprio é aquele de exagerada importância, constituindo uma profunda divergência entre as partes contratantes de tal modo que não haveria vontade negocial. Por essa razão, explica Carlos Roberto Gonçalves, as doutrinas alemã, francesa e italiana defendem que essa espécie de erro conduz à inexistência do negócio jurídico. Como exemplos de erros obstativos nesses países, po152 Direito Civil dem ser apontados aqueles que incidem sobre a natureza do negócio ou sobre o objeto principal da declaração. Entretanto, no direito brasileiro o legislador não fez distinção entre o erro obstativo e o erro substancial, acolhendo todas as hipóteses como erro substancial e, portanto, anuláveis. 8.2.3.Escusabilidade ou recognoscibilidade Na vigência do Código Civil de 1916, a doutrina entendia que o erro deveria ser escusável para que o negócio pudesse ser anulado. Erro escusável é aquele perdoável, justificável, desculpável, isto é, aquele que qualquer pessoa poderia incidir com o emprego da diligência comum. Com a introdução do Código Civil de 2002, autores passaram a divergir sobre o conteúdo do art. 138: “São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio”. Para a doutrina majoritária, o dispositivo não exige mais a escusabilidade como um requisito para a anulação do negócio jurídico, mas, sim, a recognoscibilidade ou cognoscibilidade. Enquanto a escusabilidade consiste na análise do comportamento da parte prejudicada, a recognoscibilidade consiste na verificação da conduta do outro contratante, que, percebendo o erro da outra parte, quedou-se inerte. Nesse sentido, aliás, o Enunciado 12 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal dispõe que, “na sistemática do art. 138, é irrelevante ser ou não escusável o erro, porque o dispositivo adota o princípio da confiança”. 8.3Dolo É o artifício (manobra, maquinação) utilizado com o propósito de enganar uma pessoa para que ela celebre determinado negócio. Para que o negócio seja anulável, não se exige a demonstração de efetivo prejuízo, sendo suficiente a intenção de prejudicar. O dolo não deve ser confundido com o erro. No erro há um equívoco espontâneo do celebrante e no dolo a pessoa é induzida a errar pelo outro contratante ou por um terceiro. 8.3.1.Consequências do dolo Assim como o erro, o dolo também torna o negócio anulável. A parte enganada poderá propor ação anulatória no prazo decadencial de quatro anos, a contar da data da celebração do negócio jurídico (Código Civil, art. 178, II). Porém, deverá ser identificada a espécie de dolo de que se está diante, pois algumas determinam a anulabilidade do negócio e outras não, como veremos. 153 COMENTÁRIO O STJ apresenta decisão (REsp 664.499) em que restou caracterizado o dolo, tornando o negócio anulável. O autor pediu rescisão do contrato por omissão dolosa do vendedor do imóvel, que escondeu a existência de ação demolitória em curso na época da transação. 8.3.2.Classificaçãododoloquantoà determinação 8.3.2.1. Dolo essencial O dolo essencial, também conhecido como dolo principal ou dolus causam, é aquele que contamina o negócio jurídico, permitindo a sua anulação pelo fato de ter sido a sua causa, isto é, a pessoa somente realizou o negócio jurídico por ter sido enganada. Se o contratante tivesse conhecimento da realidade, o negócio não seria anulado. Conforme o art. 145 do Código Civil, “são os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa”. COMENTÁRIO Veja-se caso de dolo acidental trazido pela jurisprudência (TJSP, Ap. 9208874-22.2009.8.26.0000): o autor da ação requereu a anulação da partilha homologada em ação de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato, alegando omissão dolosa da informação de que um dos imóveis integrantes da partilha era objeto de disputa judicial possessória. O Tribunal considerou que o silêncio, ainda que intencional, do apelado constitui dolo acidental, já que a partilha – negócio jurídico que se pretendia anular – teria sido realizada de qualquer maneira, ainda que por outro modo. 8.3.2.2. Dolo acidental O dolo acidental (dolus incidens) não constitui vício de consentimento, por não influir diretamente na realização do ato, que se teria praticado independentemente do emprego de artifícios pelo outro contratante. Essa espécie de dolo não acarreta a anulação do ato, obrigando apenas à satisfação de perdas e danos ou a uma redução proporcional da prestação contratada. De acordo com o art. 146 do Código Civil, “o dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo”. 8.3.3.Classificaçãododoloquantoàconduta 8.3.3.1. Dolo positivo Dolo positivo ou comissivo é aquele consistente em uma ação voltada a enganar uma das partes contratantes, permitindo, consequentemente, a anulação do negócio jurídico. Exemplo: uma pessoa vende um relógio para outra afirmando que é feito de ouro, quando na verdade é feito de latão. 8.3.3.2. Dolo negativo É aquele que consiste na omissão (silêncio) de um aspecto relevante para realização do negócio, permitindo a sua anulação. Para que ocorra dolo negativo ou omissivo, a pessoa deve omitir informação de que tinha conhecimento. Se não tinha conhecimento, não haverá dolo. Exemplo: uma pessoa vende um relógio para outra afirmando não saber qual o material com que ele é feito, mas tendo ciência de que se trata de latão. De acordo com o art. 147 do Código Civil, nos negócios jurídicos bilaterais (aqueles que estabelecem obrigações para ambos os contratantes), o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela o negócio não se teria celebrado. 154 Direito Civil 8.3.3.3. Dolo bilateral ou recíproco COMENTÁRIO Ocorre quando ambos os contratantes agem com dolo. Como ninguém pode se valer da própria malícia (nemo auditur propriam turpitudinem allegans), o dolo bilateral não permite a anulação do negócio nem pedido de reparação de danos, quando o prejuízo de uma das partes for maior que o da outra. O dolo de uma parte sempre compensa o da outra parte, não importando o tipo de dolo. Desta forma, mesmo que uma das partes tenha agido com dolo essencial e a outra com dolo acidental, não será possível a anulação do negócio jurídico nem o pedido de reparação de danos proporcional. 8.3.4.Classificação do dolo quanto ao conteúdo Exemplo de dolo bilateral proveniente da jurisprudência (TJSP, Ap. 0006138-85.2010.8.26.0081): o autor da ação aderiu a grupo de consórcio sob promessa de que seria contemplado de imediato, o que não ocorreu. Contudo, ele tinha conhecimento de como funciona o contrato de consórcio e que deveria esperar por um sorteio eventual. 8.3.4.1. Dolo mau O dolo mau (dolus malus) consiste no emprego de manobras astuciosas destinadas a prejudicar alguém. Por ser utilizado para iludir e prejudicar a outra parte, acaba por viciar o negócio jurídico, tornando-o anulável, em regra. 8.3.4.2. Dolo bom A doutrina aponta dois sentidos para o dolo bom (dolus bonus). Num primeiro é entendido como um comportamento lícito e tolerado no comércio, consistente em reticências, exageros nas boas qualidades ou dissimulações de defeitos (p. ex.: quando o vendedor fala que uma TV é a melhor do mundo). Observe-se que, se houver abuso ou prejuízo, o negócio poderá ser anulado. Nas relações de consumo, essa espécie de dolo não é tolerada, pois caracteriza propaganda enganosa e induz o consumidor a erro. Num segundo sentido, fala-se em dolus bonus quando uma pessoa engana a outra com o objetivo de beneficiar a pessoa enganada (p. ex.: uma pessoa que compra um relógio de um amigo pagando um preço mais caro com o objetivo de ajudar). No caso, o artifício não tem a finalidade de prejudicar. Independentemente do sentido adotado, o dolus bonus não gera a anulabilidade do negócio. 8.3.5.Dolo de terceiro Normalmente na caracterização do dolo temos uma das partes sendo levada a erro pela outra parte, mas também é possível que um terceiro (pessoa estranha ao negócio jurídico) realize a indução. De acordo com o art. 148, “pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou”. 155 COMENTÁRIO O TJRS julgou caso em que restou configurado o dolus bonus (Ap. 71.002.727.139): Não configura propaganda enganosa a divulgação, por parte da financeira, de que opera com as melhores taxas do mercado. Tal mensagem publicitária, para qualquer cidadão com o mínimo de discernimento, apenas exerce a força atrativa a que se propõe toda propaganda, jamais tendo o condão de ludibriar o consumidor ou gerar vício no consentimento. Outrossim, o dolus bonus, evidentemente presente na hipótese, não vicia o negócio, sendo aceito socialmente. Trata-se de mecanismo muito utilizado como técnica de publicidade, inexistindo qualquer ilicitude no realce do produto, com finalidade de atrair os clientes. Improcedência do pedido mantida. VOCABUlÁRIO ação de regresso: aquela promovida pela pessoa condenada ao pagamento de indenização por um ato ilícito que, agora na condição de autora, volta-se contra aquele que entende ser o verdadeiro responsável pelo dano. constrangimento: imposição de força, violência. Assim, o dolo de terceiro pode ocorrer com a cumplicidade da parte a quem aproveita; com mero conhecimento da parte a quem aproveita; e, ainda, exclusivamente por conta do terceiro, sem que dele tenha conhecimento a parte favorecida. As duas primeiras hipóteses são passíveis de anulação. Na última hipótese, o negócio persiste, mas o autor do dolo (o terceiro) responde pelas perdas e danos em razão do ilícito praticado. 8.3.6. Dolo do representante O dolo do representante legal obriga o representado a responder civilmente até a importância do proveito que tirou. Entretanto, tratando-se de representação convencional (aquela em que o representado escolhe e nomeia o seu representante, aceitando todos os riscos que assim corre), o representado responderá solidariamente pelas perdas e danos (Código Civil, art. 149). Se for chamado a reparar os danos, o representado terá direito à ação de regresso em face do representante. A distinção promovida pelo art. 149 do Código Civil entre a representação legal e convencional é coerente, pois na representação legal (pais, tutores e curadores) o representado não escolhe quem será o seu representante, devendo ser mais protegido. Na representação convencional, a escolha do representante decorre da vontade do representado. Se escolheu mal, deverá reparar o dano causado por seu representante. Tanto na hipótese de dolo do representante legal como na de dolo do representante convencional, o negócio será anulável se o dolo for substancial e não será anulável se o dolo for acidental. 8.4 COAçãO A coação é qualquer forma de ameaça injusta (física ou moral) com o objetivo de forçar uma pessoa a realizar determinado negócio jurídico. Quem exerce a coação é denominado coator, e quem sofre é denominado coato, coagido ou paciente. Não necessariamente quem exerce a coação é quem dela se beneficia, como veremos no estudo da coação por terceiro. 8.4.1.Espéciesdecoação Desde o direito romano, a coação é dividida em duas espécies: coação absoluta (vis absoluta) e coação relativa (vis compulsiva). Essa distinção não foi consagrada nem no Código Civil de 1916 nem no de 2002, mas a doutrina continua defendendo a sua importância diante dos efeitos que cada uma produz: 8.4.1.1. Coação absoluta A coação absoluta, também denominada física ou vis absoluta, é o constrangimento corporal que retira toda a capacidade de manifes156 Direito Civil tação de vontade, implicando ausência total de consentimento. Exemplos: forçar uma pessoa sob a mira de uma arma de fogo a assinar um contrato; pressionar a digital de um analfabeto em um contrato contra a vontade dele etc. Essa espécie de coação não está prevista no Código Civil de 2002, mas, de acordo com a doutrina majoritária, tem como consequência a inexistência do negócio jurídico. Se necessário for, deverá ser proposta ação declaratória de inexistência. Com efeito, a coação absoluta não deixa opção ao coagido para que possa exercer um ato de escolha manifestando a sua vontade. Há um ato mecânico, não uma manifestação de vontade viciada. Por essa razão, a coação absoluta não é considerada vício da vontade ou do consentimento. 8.4.1.2. Coação relativa Também conhecida como coação moral, psicológica ou vis compulsiva, é aquela que está presente no Código Civil de 2002, art. 151, e funda-se no temor (receio, medo) de dano iminente e considerável à pessoa do negociante, aos seus bens ou à sua família. Ao contrário da coação absoluta, a coação relativa deixa opção ao coagido, que prefere celebrar o negócio a sofrer o dano. É espécie de vício do consentimento, pois contamina a formação da vontade e gera a anulabilidade do negócio, como veremos adiante. Aliás, como o Código Civil de 2002 previu apenas essa espécie de coação, iremos nos ater a ela nos próximos tópicos. 8.4.2.Requisitos da coação Conforme prescreve o art. 151 do Código Civil, a coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que desperte ao paciente temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens (caput). Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação (parágrafo único). Da norma podem ser extraídos os requisitos para caracterização da coação: a)A ameaça deve ser grave: a ameaça somente caracterizará coação se for grave e causar fundado temor de dano iminente ao coagido. A análise desse requisito não deve levar em consideração o homem médio, mas, sim, a vítima em concreto da coação. Por essa razão o art. 152 determina que, “no apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela”. A ameaça que pode ser grave para uma idosa que mora sozinha pode não ser grave para um homem adulto. Em caso de simples temor reverencial, não haverá coação, já que não há ameaça grave. Temor reverencial é o receio de desagradar uma pessoa a quem devemos respeito e obediência. Exemplos: o respeito que os filhos têm pelos pais; os empregados pelos empregadores; o soldado pelo ca157 JURISPRUDÊNCIA Decisão que dispõe sobre os requisitos da coação (TJRS, Ap. 70.060.217.379): “CONTRATOS AGRÁRIOS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. NEGÓCIO JURÍDICO. DISTRATO DE CONTRATO DE ARRENDAMENTO. ALEGAÇÃO DE VÍCIO DO CONSENTIMENTO. COAÇÃO. A declaração de vontade é viciada pela coação se esta for séria, grave, atual, injusta e motivadora do ato. CC, art. 151. A coação deve ser cabalmente comprovada nos autos”. pitão etc. Assim, quando um pai fala para seu filho vender o automóvel, em princípio não se poderá alegar coação. Escrevemos “em princípio” porque se, em vez do respeito, existir verdadeira ameaça grave, a coação estará configurada. Exemplo: um pai condenado por cinco homicídios é solto e ameaça matar a filha se ela não lhe doar a casa em que mora. b) A ameaça deve ser de dano iminente: deve ser um dano atual que não pode ser evitado pelo coagido. Entretanto, dano iminente não significa dano imediato. O importante é que a ameaça cause prontamente fundado temor de dano ao coagido. Por outro lado, se o dano puder ser evitado pelo agente, sozinho ou com ajuda de terceiros, a ameaça não caracteriza a coação. Também não existirá coação se o mal for impossível. c) A ameaça deve ser injusta: somente haverá coação se a ameaça consistir na prática de um ato contrário ao ordenamento jurídico, um ato ilícito (p. ex.: uma pessoa ameaça agredir outra se uma dívida não for paga). De acordo com o art. 153 do Código Civil, se a ameaça corresponder ao exercício regular de um direito, não haverá coação (p. ex.: uma pessoa ameaça protestar o cheque devolvido sem fundos no Cartório de Protesto de Títulos). Se consistir em ameaça de abuso de direito, também haverá coação porque é espécie de ato ilícito (p. ex.: uma pessoa ameaça colocar um outdoor de cobrança na frente da casa do devedor se a dívida não for paga). d) A ameaça deve recair sobre a pessoa, seus familiares ou seus bens: o art. 151 do Código Civil determina que a ameaça deve ser dirigida ao próprio coagido, à sua família, ou aos seus bens (p. ex.: ameaça incendiar o automóvel do coagido). Interessante observar que o legislador utilizou o termo “família” em vez de “parentes” com o propósito de ampliar as possibilidades (p. ex.: o filho do cunhado não é parente, mas pode ser considerado familiar). E, mesmo que a pessoa não pertença à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, poderá decidir se houve coação, conforme dispõe o parágrafo único do art. 151 (p. ex.: noivos, namorados, amigos íntimos etc.). Questão interessante é a hipótese em que o coator dirige a ameaça a si próprio para coagir outra pessoa a realizar um negócio (p. ex.: o filho ameaça se matar se o pai não lhe doar um automóvel). Entendemos que se a ameaça for séria e real nada impede o reconhecimento da coação pelo juiz, em que pese a omissão legislativa. e) A ameaça deve ser a causa da celebração do negócio: o negócio jurídico só será anulado por coação se a ameaça foi o fator determinante para sua celebração. Assim como na responsabilidade civil, deve estar presente um nexo de causalidade entre o fato (a ameaça) e o dano (o negócio celebrado). Se o coagido celebrasse o negócio mesmo sem a ameaça, não haveria coação. 158 Direito Civil 8.4.3.Consequências da coação De acordo com o Código Civil de 2002, a coação determina a anulabilidade do negócio jurídico. A ação cabível é a anulatória, devendo ser ajuizada no prazo decadencial de quatro anos a contar do dia em que cessar a coação. A legitimidade para a propositura da ação é da pessoa coagida. Na parte especial (Direito de Família), o Código Civil estabelece o prazo de quatro anos para anulação do casamento por coação, contado o prazo da data da celebração (art. 1.560, IV). Além da anulabilidade do negócio, a parte prejudicada pela coação também poderá pleitear o ressarcimento pelas perdas e danos, cumulando a ação anulatória com pedido de reparação de danos (materiais, morais etc.). 8.4.4.Coação por terceiro Se outra pessoa realizar a coação em vez do contratante, o negócio será anulável desde que o contratante beneficiado tivesse ou devesse ter conhecimento da coação realizada. Nessa hipótese, além da anulabilidade do negócio, o terceiro e o contratante que se aproveitou da coação responderão solidariamente pelos danos causados ao coagido. No entanto, se a coação decorrer de terceiro, sem que a parte a que aproveite dela tivesse ou devesse ter conhecimento, o negócio não será anulável, mas o autor da coação responderá por todas as perdas e danos que houver causado ao coato. 8.5 Estado de perigo A coação O estado de perigo consiste na celebração de um negócio jurídico com onerosidade excessiva porque o agente estava premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte. Esse vício do consentimento não estava previsto no Código Civil de 1916 e foi incluído no Código Civil de 2002, no art. 156. Como exemplos de estado de perigo, podemos citar: a) a pessoa que dá um cheque caução de alto valor em um hospital para garantir a internação de um familiar doente; b) a pessoa que aceita pagar a um médico o dobro do valor normalmente cobrado por uma cirurgia para salvar a vida do filho atropelado; c) a pessoa que vende uma casa a um amigo por um preço irrisório para pagar o resgate do sequestro de seu irmão etc. O estado de perigo não se confunde com a coação, uma vez que nesta o outro contratante compele o agente a contratar. No estado de perigo, há uma situação que força o agente a celebrar o negócio. Além disso, no estado de perigo deve estar presente a onerosidade excessiva (requisito objetivo), enquanto na coação não importa se o coagido sofreu prejuízo ou não. 159 ATENçãO A onerosidade excessiva exigida no estado de perigo é concomitante à celebração do negócio e não deve ser confundida, portanto, com a teoria da imprevisão (cláusula rebus sic stantibus), que é baseada na onerosidade excessiva superveniente e fundamenta pretensão de revisão ou resolução contratual (arts. 317 e 478 a 480, CC). 8.5.1. Requisitos do estado de perigo Para configuração do estado de perigo, devem estar presentes um requisito objetivo (onerosidade excessiva) e dois requisitos subjetivos (situação de perigo e dolo de aproveitamento): a) Onerosidade excessiva: para que o negócio possa ser anulado por estado de perigo, será necessário que a obrigação assumida seja exorbitante, isto é, que gere onerosidade excessiva para o agente. O Código Civil não estabelece qualquer porcentagem para a caracterização da onerosidade, deixando o seu reconhecimento a cargo do juiz, que irá analisar as circunstâncias do caso concreto e decidir com base na equidade. Essa onerosidade deve ser avaliada no momento da celebração do negócio, não importando se o objeto do contrato sofreu redução ou majoração de valor no futuro. Assim, se uma pessoa vender uma casa por um preço justo para pagar o tratamento de saúde de um filho e dois anos após a venda a casa dobrar de valor, não será possível a anulação do negócio. b) Situação de perigo: para caracterização do estado de perigo, o agente deve ter assumido a obrigação excessivamente onerosa com o objetivo de livrar a si próprio, um familiar ou uma pessoa próxima de uma situação iminente de perigo de vida (morte) ou grave dano moral (integridade física, moral ou intelectual). A situação de perigo é a razão de a pessoa contratar em condições desfavoráveis. De acordo com o caput do art. 156, a situação de perigo pode acometer o próprio agente que realizou o negócio jurídico ou alguém de sua família: filhos, netos, bisnetos, pais, avós bisavós, irmãos, tios, sobrinhos, primos, sobrinhos-netos etc. Como o dispositivo se referiu a familiares, e não a parentes, podem ser contempladas outras pessoas que não são parentes, como os filhos dos cunhados ou os tios do cônjuge. Além disso, devemos lembrar que cônjuge e companheiro não são parentes, embora exista parentesco com os parentes destes (parentesco por afinidade). Não bastasse isso, o parágrafo único do art. 156 dispõe que “tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias”. Admite-se, assim, que o estado de perigo seja reconhecido quando o agente praticar o ato para salvar um grande amigo, a namorada, a noiva etc. c) Dolo de aproveitamento: como último requisito para caracterização do negócio jurídico, o art. 156 do Código Civil exige que a situação de perigo que levou o agente a contratar seja conhecida do agente que se beneficiou. Exemplo: a pessoa que comprou a casa por preço irrisório sabia que a outra estava vendendo para salvar a vida do filho. A expressão dolo de aproveitamento representa corretamente o seu conteúdo: intenção de se aproveitar. Em algumas situações, esse requisito pode ressaltar da própria circunstância que envolve o negócio jurídico 160 Direito Civil (p. ex.: o hospital que exige o cheque caução para aceitar internar um enfermo), mas em geral deverá ser objeto de prova específica no processo. 8.5.2.Consequências Conforme determinação do art. 178, II, do Código Civil, o estado de perigo determina a anulabilidade do negócio, devendo ser proposta ação anulatória no prazo decadencial de quatro anos a contar da celebração do negócio. A legitimidade para a propositura da ação é da parte prejudicada pelo negócio com onerosidade excessiva. Nos termos do Enunciado 148, da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, “ao estado de perigo (art. 156) aplica-se, por analogia, o disposto no § 2º do art. 157”. E, de acordo com o art. 157, § 2º, do Código Civil, “não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito”. Tal dispositivo consagra o princípio da conservação dos contratos, que encontra suas raízes no princípio da função social, para privilegiar a subsistência do contrato com revisão do seu conteúdo, em vez da anulação. A aplicação analógica dessa regra prevista para a lesão ao estado de perigo é justificada pela semelhança entre os institutos, como veremos adiante. Embora o Código Civil preveja apenas a anulabilidade como consequência do estado de perigo, há entendimento doutrinário no sentido de que a parte prejudicada pode optar pela propositura de ação de revisão contratual, com base nos mesmos princípios: conservação dos contratos e função social. Concordamos com esse entendimento, até porque em muitas situações não será possível às partes retornar ao status quo ante, isto é, ao estado anterior à realização do negócio. 8.6Lesão É a celebração de um negócio jurídico com onerosidade excessiva porque o agente se encontrava em uma situação de premente necessidade ou de inexperiência. Nesse sentido, o art. 157, caput, do Código Civil dispõe que “ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta”. Esses dispositivos consagram a lesão subjetiva, porquanto exigem para sua caracterização a análise dos motivos que levaram a pessoa a contratar com onerosidade. Não se confundem, desta forma, com a lesão objetiva, também conhecida como lesão enorme (laesio enormis). A lesão objetiva se caracteriza, simplesmente, pelo grave desequilíbrio entre as prestações assumidas pelas partes em um contrato, sem investigação dos motivos que levaram as partes a contratar. 161 COMENTÁRIO Assim como o estado de perigo, a lesão também não estava prevista no Código Civil de 1916, mas a Lei da Economia Popular (Lei n. 1.521/51) já previa essa modalidade de lesão subjetiva ao considerar crime de usura pecuniária ou real “obter, ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida”. COMENTÁRIO III Jornada de Direito Civil Enunciado 150 do CEJ: “A lesão de que trata o art. 157 do Código Civil não exige dolo de aproveitamento”. Não é demais lembrar que a lesão pode estar presente em qualquer contrato bilateral, também denominado sinalagmático (p. ex.: compra e venda, locação, prestação de serviço, empreitada, transporte etc.), com qualquer espécie de obrigação (dar, fazer ou não fazer). 8.6.1.Requisitosdalesão O reconhecimento da lesão exige a presença de um requisito objetivo (onerosidade excessiva) e outro subjetivo (premente necessidade ou inexperiência). Ao contrário do estado de perigo, na lesão não precisa ser provado o dolo de aproveitamento, isto é, que o outro contratante tinha conhecimento da situação de necessidade ou inexperiência em que se encontrava a parte prejudicada (nesse sentido, o Enunciado 150 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal). a) Onerosidade excessiva: o simples fato de contratar sob premente necessidade ou por inexperiência não permite a anulação do negócio jurídico. Para que tal ocorra, é necessário que o agente assuma obrigação com prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta (onerosidade excessiva). Como o Código Civil não estabelece uma porcentagem a ser observada, cabe ao juiz analisar se a desproporção entre as prestações é excessiva. Assim como no estado de perigo, a onerosidade deve ser avaliada no momento da celebração do negócio. Nesse sentido, o § 1º do art. 157 do Código Civil estabelece: “aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico”. Sobre a questão o Enunciado 290 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal dispõe que “a lesão acarretará a anulação do negócio jurídico quando verificada, na formação deste, a desproporção manifesta entre as prestações assumidas pelas partes, não se presumindo a premente necessidade ou a inexperiência do lesado”. Se o desequilíbrio entre as prestações for provocado por fato futuro (p. ex.: alta no preço dos imóveis, inflação, alta do dólar etc.), não poderá ser invocada a lesão para a anulação do negócio jurídico. Nesse caso, a parte prejudicada poderá se valer da revisão contratual por onerosidade excessiva superveniente, mas deverá comprovar que o fato que provocou o desequilíbrio é extraordinário e imprevisível (Código Civil, arts. 317 e 478 a 480). b) Premente necessidade ou inexperiência: o que distingue essencialmente a lesão do estado de perigo é o motivo que levou o agente a contratar (indaga-se o que levou alguém a contratar em condições tão desfavoráveis). Nesse ponto, o requisito subjetivo da lesão pode ser a situação de premente necessidade ou de inexperiência (basta uma delas). A premente necessidade a que se refere o art. 157 do Código Civil não é necessariamente econômica, embora seja a mais comum. Segundo Caio Mário da Silva Pereira, a premente necessidade é a contratual, isto 162 Direito Civil é, a necessidade de contratar, que independe da condição financeira do contratante. A necessidade de contratar é a situação que se revela quando o agente está impossibilitado de evitar o contrato. Como exemplo, podemos citar uma agência de turismo que venda passagens aéreas nacionais, que não terá como evitar os contratos impostos pelas poucas companhias aéreas brasileiras. A inexperiência exigida para o reconhecimento da lesão deve ser verificada de acordo com o conteúdo do contrato celebrado, pois se refere à falta de conhecimentos específicos quanto à natureza do negócio. Essa inexperiência pode ser técnica, negocial, jurídica, financeira etc. Como não se refere à falta de cultura, toda pessoa pode ser considerada inexperiente (p. ex.: um juiz de direito pode ser considerado inexperiente em um contrato de compra e venda de safra futura). Quanto à inexperiência, o Enunciado 410 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal propõe que “a inexperiência a que se refere o art. 157 não deve necessariamente significar imaturidade ou desconhecimento em relação à prática de negócios jurídicos em geral, podendo ocorrer também quando o lesado, ainda que estipule contratos costumeiramente, não tenha conhecimento específico sobre o negócio em causa”. 8.6.2.Consequências da lesão O art. 178, II, do Código Civil estabelece que o negócio jurídico viciado pela lesão é anulável, devendo ser proposta ação anulatória no prazo decadencial de quatro anos, a contar da celebração do negócio jurídico. A legitimidade para propositura da ação é apenas da parte prejudicada. A anulação do negócio jurídico poderá ser evitada se o réu da ação anulatória (a parte favorecida) oferecer suplemento suficiente ou concordar com a redução do proveito. Essa regra, prevista no art. 157, § 2º, do Código Civil, decorre do princípio da conservação contratual. Exemplo: se uma pessoa, por inexperiência, vender uma casa que valia um milhão de reais pela metade do preço e propuser ação anulatória, o comprador evitará a anulação se oferecer a outra metade do valor. Sobre o tema, o Enunciado 149 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal prevê que “em atenção ao princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação, sendo dever do magistrado incitar os contratantes a seguir as regras do art. 157, § 2º, do Código Civil de 2002”. Mais interessante, ainda, é o conteúdo do Enunciado 291 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Nas hipóteses de lesão previstas no art. 157 do Código Civil, pode o lesionado optar por não pleitear a anulação do negócio jurídico, deduzindo, desde logo, pretensão com vista à revisão judicial do negócio por meio da redução do proveito do lesionador ou do complemento do preço”. 163 É certo que o Código Civil de 2002 não previu essa solução, mas entendemos que pode ser adotada com base nos princípios da função social e da conservação dos contratos: a revisão mantém o contrato vivo. Além disso, a anulação do negócio pode não ser uma solução possível para a parte prejudicada pela lesão porque a sentença determinará às partes o retorno ao status quo ante. Imaginemos, então, um contrato de compra e venda com lesão: com a anulação o comprador beneficiado deverá devolver o bem e o vendedor prejudicado deverá devolver a quantia recebida. Se o vendedor tiver gastado o dinheiro, não terá como pleitear a anulação, mas poderá requerer a revisão contratual para receber a diferença do preço. 8.7 FRAUDE CONTRA CREDORES A fraude contra credores é o ato do devedor insolvente ou próximo da insolvência alienar (vender ou desfazer-se de algum outro modo) de um bem com o objetivo de prejudicar o credor, em virtude da diminuição do seu patrimônio. Exemplo: uma pessoa está devendo cem mil reais e, sem quitar a dívida, doa para um amigo o único bem que poderia ser utilizado para pagá-la. A fraude contra credores representa, portanto, uma violação ao princípio da responsabilidade patrimonial, pelo qual o patrimônio de uma pessoa responde por suas obrigações. O devedor se antecipa à reação de seus credores, alienando ou onerando seus bens que poderiam ser objeto de expropriação judicial. A fraude contra credores integra, ao lado da simulação, o grupo dos vícios sociais: atuam na manifestação da vontade e o prejudicado é sempre uma pessoa que não participou do negócio jurídico (terceiro). Os cinco vícios já estudados (erro, dolo, coação, estado de perigo e lesão) são considerados vícios da vontade ou do consentimento, pois atuam na formação da vontade e o prejudicado é sempre um dos contratantes. 8.7.1.Requisitosparacaracterizaçãodafraude contra credores O reconhecimento da fraude contra credores depende do reconhecimento de três requisitos: evento danoso, anterioridade do crédito e conluio fraudulento (ou ciência da fraude). Os dois primeiros requisitos têm natureza objetiva e devem ser provados em todas as hipóteses de fraude. O último requisito, de natureza subjetiva, deverá ser provado em algumas situações e em outras será presumido. a) Evento danoso (eventus damni): o credor deverá provar que o ato de alienação tachado de fraudulento reduziu o devedor à condição de insolvente. O requisito do evento danoso depende, 164 Direito Civil portanto, da análise do patrimônio do devedor (créditos e débitos) no momento em que aliena o bem. É evidente que o instituto da fraude contra credores não impede que a pessoa que tenha dívidas aliene os seus bens. Só haverá fraude no ato de alienação ou oneração se for maliciosa e desfalcar o patrimônio global do devedor a ponto de não conseguir responder pelas suas obrigações. b)Anterioridade do crédito: para caracterização da fraude contra credores o autor da ação pauliana deverá provar que já era credor do réu no momento em que ele alienou ou onerou os bens. A anterioridade do crédito não leva em consideração o momento do vencimento dele, mas, sim, da sua origem. Nesse sentido, o Enunciado 292 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal propõe que “para os efeitos do art. 158, § 2º, a anterioridade do crédito é determinada pela causa que lhe dá origem, independentemente de seu reconhecimento por decisão judicial”. Em se tratando de responsabilidade civil contratual, o crédito reputa-se constituído no momento da formação do contrato. Exemplo: se uma pessoa recebeu dinheiro emprestado em 2013, alienou bens em 2014 e não pagou o empréstimo no momento do seu vencimento em 2015, terá agido em fraude, uma vez que já era devedora desde 2013. Na hipótese de responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, o crédito considerar-se-á constituído desde o momento em que foi praticado o ato ilícito. Exemplo: se uma pessoa atropelou outra em 2012, alienou bens em 2013, foi processada em 2014 e condenada em 2015 a reparar os danos causados, terá agido em fraude porque já era devedora desde 2012. c)Conluio fraudulento (consilium fraudis) ou ciência da fraude (scientia fraudis): o credor deverá provar que o adquirente do bem agiu em conluio com o devedor ou que tinha ciência da situação de insolvência do devedor. Em outras palavras, deverá ser provada a má-fé do adquirente. A prova do conluio ou da ciência da fraude pode ser feita por todos os meios admissíveis no processo civil, inclusive indícios e presunções. Como exemplos de forte indício de fraude, podemos apontar a aquisição de bens por preço vil e a aquisição de bens por parentes próximos. No entanto, ao contrário dos demais requisitos, esse último nem sempre precisará ser provado. Se a alienação de bens pelo devedor for gratuita (p. ex.: doação), a má-fé do adquirente será presumida (presunção absoluta). Se a alienação de bens for onerosa (p. ex.: compra e venda), em regra será necessário provar a má-fé do adquirente (que agiu em conluio ou que tinha ciência da fraude). Por fim o art. 164 do Código Civil estabelece que “presumem-se, porém, de boa-fé e valem os negócios ordinários indispensáveis à manutenção de estabelecimento mercantil, rural, ou industrial, ou à subsistência do devedor e de sua família”. O objetivo da norma é, primeiro, 165 VOCABULÁRIO Ação pauliana: também denominada revocatória, é aquela que visa desfazer a fraude contra credores, de modo que os bens alienados fraudulentamente pelo devedor retornem ao seu patrimônio por determinação judicial, a fim de que sejam usados pelo credor para a satisfação da dívida. VOCABUlÁRIO credor quirografário: aquele que não possui uma garantia real como a hipoteca, o penhor ou a anticrese. evitar que a situação do devedor seja agravada com a paralisação da sua atividade econômica. Assim, o comerciante que estiver insolvente poderá continuar vendendo os produtos de sua loja (negócio ordinário), mas incorrerá em fraude se alienar o próprio estabelecimento (negócio extraordinário). O segundo objetivo da norma é a garantia da subsistência do devedor e de sua família, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana. Seria absurdo proteger o crédito de uma pessoa em detrimento da sobrevivência de outra. 8.7.2. Hipóteses de fraude contra credores O Código Civil apresenta expressamente quatro hipóteses em que poderá ser reconhecida a fraude contra credores: a) Atos de transmissão gratuita, remissão de dívidas ou renúncia de direitos (Código Civil, art. 158): ocorre quando um devedor insolvente cede parte de seu patrimônio reduzido, abrindo mão do que indiretamente pertence a seus credores. Nessas hipóteses não importa a ciência da insolvência do doador pelo donatário, pois o interesse do credor prevalece sobre o interesse do donatário. É mais justo proteger o devedor para que não fique com prejuízo do que proteger o lucro do donatário. Essa é a razão pela qual a prova do conluio fraudulento é dispensada. Aplica-se o mesmo raciocínio para a remissão (perdão) de dívidas ou remissão de direitos, já que, quando o devedor perdoa alguma dívida ou renuncia a algum direito, estará reduzindo o patrimônio ou direito que poderia ser executado pelos seus credores. b) Alienações onerosas quando a insolvência é notória ou de conhecimento do outro contraente (Código Civil, art. 159): nessa hipótese existe um conflito entre o credor do alienante (devedor) e o adquirente de boa-fé. Se o adquirente não tem ciência da insolvência do devedor, seu interesse é que vai prevalecer sobre o do credor. Porém, se o adquirente sabia da insolvência do devedor ou se a insolvência é notória (p. ex.: tem títulos protestados) e agiu de má-fé, o negócio será anulável. O art. 160 do Código Civil determina que, se o adquirente dos bens do devedor insolvente ainda não tiver pago o preço e este for, aproximadamente, o corrente, desobrigar-se-á depositando-o em juízo, com a citação de todos os interessados. Porém, se for inferior, o adquirente, para conservar os bens, poderá depositar o preço que lhes corresponda ao valor real. c) Pagamento antecipado de dívida a credor quirografário (Código Civil, art. 162): se o devedor paga dívidas vencidas, age licitamente. Porém, se paga débitos que ainda não venceram, age de maneira anormal, que já revela o propósito fraudulento. Nessa hipótese, o art. 162 do Código Civil dispõe que o credor 166 Direito Civil quirografário (aquele sem preferência no crédito), que receber do devedor insolvente o pagamento da dívida ainda não vencida, ficará obrigado a repor, em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores. d)Outorga fraudulenta de garantias reais (Código Civil, art. 163): nos termos do art. 163, presumem-se fraudatórias dos direitos dos outros credores as garantias de dívidas que o devedor insolvente tiver dado a algum credor. O devedor insolvente que presta qualquer forma de garantia real (hipoteca, penhor, anticrese ou propriedade fiduciária – alienação fiduciária) a um de seus credores quirografários acaba prejudicando os demais em razão da preferência estabelecida. Se a garantia prestada for pessoal/fidejussória (fiança ou aval), não haverá fraude, pois estas não geram preferência e por isso não prejudicam os demais credores. O art. 163 estabelece uma presunção legal absoluta (juris et de jure) de fraude, acarretando a anulabilidade da garantia. Com a anulação da garantia (não do crédito) o credor retornará à condição de credor quirografário (sem preferência). 8.7.3.Consequências da fraude contra credores Ignorando forte crítica doutrinária, o legislador manteve no Código Civil de 2002 a mesma consequência para a fraude contra credores que já estava prevista no diploma de 1916: a anulabilidade do negócio jurídico. Concordamos com os autores que se posicionam diversamente à solução adotada defendendo que a consequência adequada seria a ineficácia relativa do negócio: o ato fraudulento é ineficaz perante os credores prejudicados, mas válido e eficaz entre as partes. Em questões de concursos públicos recomendamos que seja gabaritada a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que tem optado pela anulabilidade em vez da ineficácia. Para que o negócio jurídico seja anulado, o credor prejudicado deverá propor ação revocatória, também denominada ação pauliana (recebe esse nome porque foi inventada pelo pretor Paulo, no direito romano), no prazo decadencial de quatro anos a contar da celebração do negócio jurídico. De acordo com a jurisprudência, a fraude contra credores não pode ser reconhecida em sede de embargos de terceiro, devendo ser proposta a ação pauliana para tanto. A legitimidade ativa (ou seja, para propor a ação) é das pessoas que já eram credoras no momento em que a fraude foi praticada. Quanto à legitimidade passiva (ou seja, para ser processado, figurando como réu) o art. 161 do Código Civil determina que, “nos casos dos arts. 158 e 159, a ação poderá ser intentada contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé”. O termo poderá foi utilizado de forma equivocada pelo legislador. Na verdade, a ação deverá ser proposta em face do devedor e do outro contratante que participou da fraude. Nesse sentido, aliás, é a jurisprudência do STJ. 167 8.7.4. Fraude contra credores versusfraudeà execução É muito comum a confusão entre a fraude contra credores e a fraude à execução. Na fraude à execução, instituto de direito processual civil, o devedor já tem contra si processo judicial capaz de reduzi-lo à insolvência e, ainda assim, atua ilicitamente, alienando ou onerando seus bens em prejuízo não só dos seus credores, mas também do próprio processo, caracterizando reprovável atitude de desrespeito à justiça. Caracteriza-se principalmente como ato de rebeldia à autoridade estatal exercida pelo juiz, pois alienar bens na pendência deste e reduzir-se à insolvência significaria tornar inútil o exercício da jurisdição e impossível a imposição do poder sobre o patrimônio do devedor. Por outro lado, na fraude contra credores, instituto de direito civil, o devedor não se insurge contra o processo ou a autoridade judicial. Procura apenas se desfazer do seu patrimônio executável para que não responda pelas obrigações anteriormente assumidas em contrato ou impostas pela lei. A fraude à execução conduz à ineficácia do negócio jurídico e o seu reconhecimento não depende de propositura de ação específica, podendo ser alegada incidentalmente mediante simples petição no processo, resultando em decisão interlocutória. Diversamente, a fraude contra credores determina a anulabilidade do negócio e exige a propositura da ação pauliana para o seu reconhecimento. De acordo com a Súmula 195 do STJ, “em embargos de terceiro não se anula ato jurídico, por fraude contra credores”. O grande problema é identificar a partir de que momento a alienação de bens pelo devedor deixa de ser fraude contra credores e passa a ser fraude à execução. A doutrina majoritária defende que o momento que separa os institutos é o da propositura da ação (de conhecimento ou execução). Se o bem foi vendido antes, haverá fraude contra credores e, se o bem foi vendido após, haverá fraude à execução. Adiantamos que esta é a posição mais justa, pois, a partir da propositura da ação, o nome do devedor passará a constar dos distribuidores cíveis, dos quais qualquer pessoa tem acesso aos dados ao requerer certidão (a cobrança se torna pública, impedindo a alegação de desconhecimento da dívida pelo adquirente do bem). Entretanto, na jurisprudência dos tribunais tem prevalecido a tese de que somente haverá fraude à execução a partir do momento em que o devedor foi citado da ação. Essa posição permite favorecer o devedor de má-fé que pretenda dilapidar seu patrimônio e prejudica o credor que deverá propor outra ação para tentar recuperar seu crédito. É muito mais difícil e custoso anular a venda por fraude contra credores do que declará-la ineficaz em razão da fraude à execução. Outro fator de distinção entre os institutos, apontado pela doutrina, é a necessidade de prova da má-fé do adquirente na fraude contra 168 Direito Civil credores (salvo quando a alienação é gratuita), enquanto na fraude à execução haveria uma presunção absoluta de má-fé por parte do adquirente. Entretanto, no início de 2009, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 375 dispondo que “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. Entendemos que esta súmula representa verdadeiro retrocesso por confundir os requisitos da fraude contra credores com os da fraude à execução e, principalmente, por estabelecer uma proteção exagerada do devedor e do terceiro adquirente em detrimento do credor. Quanto aos efeitos da decisão que reconhece os institutos, temos que a fraude contra credores beneficia todos os credores, enquanto na fraude à execução a decisão judicial beneficia apenas o credor do processo em que foi praticado o ato fraudulento. 169 170 9 Invalidade dos Negócios Jurídicos 9.1 INValIdade Após tratar dos vícios do negócio jurídico, o Código Civil de 2002 dispõe sobre a nulidade e anulabilidade no Capítulo V (“Da invalidade do negócio jurídico”), em seus arts. 166 a 184. Invalidade, em sentido amplo, é expressão utilizada para designar o negócio que não produz as consequências desejadas pelas partes. É gênero do qual decorrem duas espécies: a nulidade (negócio jurídico nulo); e a anulabilidade (negócio jurídico anulável). No Código Civil de 1916 o legislador utilizava a expressão nulidade absoluta para se referir ao negócio jurídico nulo e nulidade relativa para se referir ao negócio jurídico anulável. No Código Civil de 2002 as expressões foram eliminadas, mas continuam sendo utilizadas pela doutrina e jurisprudência. A escolha do legislador por uma ou outra sanção (consequência a ser aplicada) decorre da análise do interesse envolvido. Quando há ofensa a princípios básicos do ordenamento jurídico e, consequentemente, lesão a interesse da coletividade (hipóteses mais graves), o legislador impõe a nulidade. Quando o interesse é particular (hipóteses menos graves), a sanção escolhida é a anulabilidade. JuRIsPRudÊNCIa (STJ, 3ª T., Resp 981.750, Min. Nancy Andrighi, j. 13.4.2010, DJ 23.4.2010). Nos termos do art. 184 do Código Civil, “respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal”. A aplicabilidade dessa norma se dá tanto às hipóteses de nulidade como às de anulabilidade, preservando, se possível for, parte do negócio jurídico que não esteja contaminado pela invalidade. Trata-se de reconhecimento do princípio da conservação dos contratos. 9.1.1. Invalidade versus inexistência Ao estudarmos os planos do negócio jurídico, vimos que a ausência dos elementos que compõem o plano de existência (partes, objeto, forma e vontade) determina sua inexistência. Já a invalidade decorre da não observância dos requisitos exigidos pelo plano de validade. É certo que o Código Civil de 2002 não adotou a teoria dos atos existentes e inexistentes, concebida no século XIX, para impedir o casamento entre pessoas do mesmo sexo (entendia-se que a diferença de sexo seria um pressuposto tão elementar do casamento que, se não verificada, não existiria casamento). Entretanto, não são poucos os autores que defendem a importância do plano de existência no estudo dos negócios jurídicos (Pontes de Miranda, Caio Mário da Silva Pereira, Renan Lotufo, Sílvio Venosa, Francisco Amaral etc.). O ato inexistente é aquele que não preenche os elementos essenciais à sua constituição. Ao contrário dos atos inválidos, o ato inexistente 172 Direito Civil é considerado um simples fato que não tem força para produzir efeitos jurídicos. Desta forma, em princípio, não é sequer necessária a propositura de ação judicial para reconhecer o ato como inexistente (o ato existe no mundo dos fatos, mas não no do direito). No entanto, a prática revela que muitas vezes será necessária a propositura de ação declaratória de inexistência. Isso faz com que desapareça o principal fator de distinção entre a inexistência e a nulidade: a necessidade de declaração judicial. 9.2Nulidade Nulidade em sentido amplo é a sanção legal que determina a privação de efeitos jurídicos do negócio praticado em desacordo ao ordenamento jurídico. Pode ser de dois tipos: a nulidade e a anulabilidade. A nulidade em sentido estrito decorre da violação de preceitos de ordem pública que consagram interesses sociais. A anulabilidade será estudada mais à frente e decorre da violação de interesses privados. A nulidade textual é aquela em que a própria norma jurídica dispõe expressamente que o ato será nulo (p. ex.: Código Civil, art. 166). A nulidade virtual ou implícita é aquela deduzida de expressões utilizadas pelo legislador com o fim de proibir a prática de determinados atos (p. ex.: “não pode”, “não se admite” etc.). 9.2.1 Hipóteses de nulidade O art. 166 do Código Civil contém sete hipóteses em que o negócio jurídico será considerado nulo. Será nulo o negócio quando: I – celebrado por pessoa absolutamente incapaz: quando a pessoa é absolutamente incapaz sua vontade é desprezada pelo ordenamento jurídico, devendo ser representada (a vontade é substituída) nos atos da vida civil sob pena de nulidade do ato. O rol dos absolutamente incapazes está previsto no art. 3º do Código Civil. II – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto: o negócio será nulo se o objeto for: a) ilícito: aquele que viola o ordenamento jurídico (lei, moral, ordem pública ou bons costumes); b) impossível: aquele que não pode ser cumprido em razão dos limites físicos dos seres humanos (impossibilidade física) ou dos limites jurídicos (impossibilidade jurídica); c) indeterminável: aquele que não permite individualização (p. ex.: falta do gênero ou da quantidade em uma obrigação de dar). III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito: o motivo que leva uma pessoa a realizar um negócio jurídico em regra não tem relevância para análise da validade deste. Contudo, quando o motivo for a razão determinante do negócio, há relevância jurídica na sua análise, determinando a nulidade do ato. 173 IV – não revestir a forma prescrita em lei: em regra o direito civil não exige formalidade para a validade dos negócios jurídicos (Código Civil, art. 107). Contudo, quando esta é exigida e não for cumprida, o negócio será nulo. V – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade: embora alguns autores utilizem as expressões “solenidade” e “formalidade” como sinônimas, entendemos que a formalidade diz respeito à exigência de forma escrita, enquanto a solenidade é a exigência de instrumento público (p. ex.: Código Civil, art. 108). A invalidade do instrumento não induz a do negócio jurídico sempre que este puder provar-se por outro meio. VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa: deve ser considerado nulo o negócio jurídico que tenha por objetivo violar norma jurídica considerada de ordem pública (aquelas que não podem ser afastadas pelo exercício da autonomia privada). VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção: o negócio jurídico será nulo se a lei assim o determinar (nulidade textual ou expressa) ou se proibir a prática do ato sem estabelecer sanção específica (nulidade virtual ou implícita). Além das hipóteses do art. 166, o art. 167 do Código Civil dispõe que “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”. O legislador do novel diploma considerou a simulação como simples causa de nulidade diante das inúmeras formas que ela pode revestir, mas a doutrina majoritária continua considerando-a como vício social. Um vício social que determina a nulidade do negócio jurídico. 9.2.2. Regras da nulidade Quando o negócio jurídico é considerado nulo, deve ser proposta ação declaratória de nulidade. Qualquer interessado ou até mesmo o Ministério Público têm legitimidade para requerer a declaração de nulidade do negócio jurídico nas hipóteses previstas nos arts. 166 e 167 do Código Civil. Segundo Caio Mário da Silva Pereira, o legislador do Código Civil de 2002 se afastou do antigo princípio francês do pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo), abandonando o critério do prejuízo para a declaração de nulidade do negócio. COmeNTÁRIO I Jornada de direito Civil enunciado 13 do CeJ: “O aspecto objetivo da convenção requer a existência do suporte fático no negócio a converter-se”. (sobre o art. 170 do CC) Por envolver interesse público, as nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz (decretação de ofício), quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes (Código Civil, art. 168, parágrafo único). Portanto, o negócio jurídico nulo não pode ser suprido, sanado ou convalidado, mas pode ser objeto de conversão, nos termos do art. 170 do Código Civil: “se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade”. 174 Direito Civil Como exemplo de conversão, podemos citar a celebração de um contrato de compra e venda de um imóvel com valor superior a trinta salários mínimos mediante instrumento particular. Por força do disposto nos arts. 108 e 166, V, do Código Civil, o negócio jurídico será nulo, mas qualquer uma das partes poderá requerer em juízo a conversão dele em um compromisso de compra e venda que, independentemente do valor, pode se valer do instrumento particular. O art. 169 do Código Civil ainda determina que o negócio jurídico nulo não convalesce pelo decurso do tempo. Não se tem dúvidas de que referido dispositivo consagrou a imprescritibilidade do negócio jurídico nulo, mas na doutrina podemos encontrar as seguintes correntes sobre o tema: 1ª Corrente: defende a imprescritibilidade da ação declaratória de nulidade, nos termos da redação do art. 169 (Silvio Rodrigues). Esta é a posição mais segura para quem for prestar concursos públicos. 2ª Corrente: defende a inexistência de direitos patrimoniais imprescritíveis. Desta forma, a ação declaratória de nulidade deve respeitar o prazo geral de prescrição de dez anos, previsto no art. 205 do Código Civil (Caio Mário da Silva Pereira). 3ª Corrente: defende que a ação declaratória de nulidade é imprescritível, mas pondera que as consequências do ato só podem ser desfeitas dentro do prazo geral de prescrição de dez anos (Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho). 9.3anulabilidade A anulabilidade é a sanção imposta pela lei quando presente violação de interesses particulares. Ao contrário da nulidade, que apresenta um estado fixo (o negócio já nasce nulo), a anulabilidade revela um estado mutável (o negócio nasce com a possibilidade de ser anulado). É por essa razão que o negócio jurídico nulo não produz efeitos, e o negócio jurídico anulável produz efeitos até ser anulado. 9.3.1.Hipóteses de anulabilidade O art. 171 do Código Civil prevê que, além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: I – por incapacidade relativa do agente: os relativamente incapazes devem ser assistidos nos atos da vida civil, sob pena de anulabilidade do negócio. De acordo com o art. 4º do Código Civil, são relativamente incapazes: a) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; b) os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; c) os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; e d) os pródigos. II – por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores: o legislador consagrou o princípio 175 VOCABULÁRIO pródigo: pessoa portadora de distúrbio mental que a impede de controlar seus gastos e manter seu patrimônio, o que acarreta incapacidade para determinados atos da vida civil. ATENÇÃO Nulidade: é o negócio jurídico considerado nulo. Anulabilidade: é a sanção imposta ao negócio quando presentes os vícios. Produz efeitos até ser anulado. da operabilidade ao uniformizar o tratamento conferido aos vícios do negócio jurídico no Código Civil de 2002: todos determinam a anulabilidade do negócio e ação deve ser proposta no prazo decadencial de quatro anos. A simulação não seguiu o mesmo padrão, pois o legislador entendeu que ela não seria vício do negócio. CuRIOsIdade Defeitos dos negócios jurídicos: a) erro: “(...) quando a pessoa manifesta sua vontade negocial em razão de determinada pessoa ou de determinada coisa, mas fazendo com outra pessoa ou coisa aparentes”. b) dolo: “(...) a malícia ou o artifício inspirado na má-fé para induzir a outra parte a realizar o negócio jurídico, em seu prejuízo”. Além das hipóteses previstas no art. 171, o Código Civil apresenta diversas outras hipóteses de anulabilidade: arts. 117, 119, 141, 496, 533, II, 1.550, 1.558, 1.649 e 2.027. 9.3.2. Consequências da anulabilidade c) coação: “(...) a ameaça à pessoa ou à família da outra parte capaz de incutir medo de dano pessoal ou material caso não realize o negócio jurídico pretendido pelo coator”. Para que o negócio seja anulado, a parte interessada deverá propor ação anulatória. A legitimidade ativa é exclusiva da parte prejudicada pelo ato e os seus efeitos só aproveitam aos que a alegarem, salvo o caso de solidariedade ou indivisibilidade do objeto. d) lesão: “(...) o defeito do negócio jurídico caracterizado pela vantagem desproporcional de uma das partes, que age de má-fé, aproveitando-se da situação de vulnerabilidade da outra”. A anulabilidade não pode ser pronunciada de ofício pelo juiz e produz efeito antes de julgada por sentença. Essa sentença tem natureza desconstitutiva e eficácia ex nunc consoante doutrina majoritária. Entretanto, há quem entenda que a eficácia seria ex tunc em razão do disposto no art. 182 do Código Civil: “anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente”. O negócio jurídico anulável pode ser confirmado pelas partes, retroagindo à data em que foi celebrado o ato. Essa confirmação do ato não será possível se prejudicar direito de terceiro de boa-fé. O ato de confirmação pode ser expresso ou tácito. Se a confirmação for expressa, deverá conter a substância do negócio celebrado e a vontade expressa de mantê-lo. Também deverá ser observada a solenidade se esta for da substância do ato. A confirmação tácita pode ser verificada em duas hipóteses: a primeira decorre do fim do prazo decadencial para a anulação do negócio; a segunda resulta do cumprimento parcial do negócio pelo devedor, quando ciente do vício que o inquinava (o art. 174 dispõe que é escusada – ou seja, dispensada – a confirmação expressa nesta situação). A confirmação expressa, ou a execução voluntária de negócio anulável, nos termos dos arts. 172 a 174, importa a extinção de todas as ações, ou exceções, de que contra ele dispusesse o devedor (art. 175). Quando a anulabilidade do ato resultar da falta de autorização de terceiro, será validado se este a der posteriormente (art. 176). A ação anulatória deverá ser proposta no prazo decadencial de quatro anos, contado: I – no caso de coação, do dia em que ela cessar; II – no de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia em que se realizou o negócio jurídico; e III – no de atos de incapazes, do dia em que cessar a incapacidade. e) estado de perigo: “(...) espécie do gênero lesão, caracterizado pelo fato de que a pessoa prejudicada tem consciência da desvantagem ou iniquidade provocadas pelo negócio jurídico, mas o realiza ante a situação peculiar da necessidade de salvar-se ou de salvar alguém de sua família”. f) fraude contra credores: “Credor e devedor, agindo de má-fé, utilizam-se da aparência de determinado negócio jurídico, que esconde a real intenção, ou seja, de impedir que o terceiro, credor de um deles, possa ter satisfeito ou garantido, patrimonialmente, o seu crédito”. FONTE: LÔBO, Paulo. Direito Civil. Parte geral. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 259-278. VOCabulÁRIO Efeito ex tunc: é aquele que retroage à época em que se formou a relação jurídica. Efeito ex nunc: começa a atuar a partir da prolação da sentença, preservando os efeitos negociais já produzidos. Se a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data da conclusão do ato (Código Civil, art. 179). Esse prazo, por exemplo, 176 Direito Civil deve ser observado na ação anulatória de venda de ascendente a descendente, sem autorização dos demais descendentes (art. 496). O art. 180 do Código Civil consagra a regra pela qual a malícia supre a incapacidade, ao dispor que “o menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior”. Por fim, o art. 181 do Código Civil dispõe que “ninguém pode reclamar o que, por uma obrigação anulada, pagou a um incapaz, se não provar que reverteu em proveito dele a importância paga”. 9.4simulação A simulação é uma declaração enganosa da vontade com o objetivo de provocar uma ilusão no público, seja por não existir negócio de fato, seja por existir um negócio diferente daquele que se aparenta. Há, portanto, um desacordo intencional entre a vontade interna (intenção) e a vontade externa (manifestação), com o objetivo de iludir terceiro. Como requisito da simulação figura, assim, um acordo (simulatório) entre as partes com objetivo de declarar perante terceiros um negócio jurídico aparente (negócio simulado), podendo, igualmente, haver um negócio verdadeiro entre as partes contratantes (negócio dissimulado). Percebe-se, dessa forma, que o propósito do negócio aparente é o de enganar a coletividade, e não o outro contraente. Consoante prescreve o art. 167, § 1º, do Código Civil, haverá simulação nos negócios jurídicos quando: I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; ou III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados. A simulação é quase sempre verificada em negócios jurídicos bilaterais (normalmente contratos), mas também pode estar presente em negócios jurídicos unilaterais, se houver ajuste simulatório entre a pessoa que pratica o ato simulado e a outra que suportará as consequências do ato. 9.4.1.Natureza jurídica No Código Civil de 1916 a simulação era tratada juntamente com os demais vícios do negócio jurídico, mas no Código Civil de 2002 foi deslocada para o capítulo que trata da invalidade do negócio jurídico, deixando dúvida se continua a ser espécie de vício ou se passou a simples hipótese de nulidade absoluta. Entendemos que o deslocamento da matéria não alterou a natureza do instituto, devendo ser tratada como espécie de vício social, pois, 177 CINEMATECA A Proposta (The Proposal, 2009). Neste filme, Margaret, uma imigrante canadense, descobre que poderá enfrentar acusações por deportação em função de seu visto estar expirando. Disposta a manter sua função como chefe-executiva em uma Editora, Margaret convence seu assistente a atuar como seu marido até que ela resolva seus problemas de visto, no entanto, com o passar do tempo, a relação dos dois vai se intensificando. Entende-se que a relação dos dois foi um negócio simulado, pela relação afetiva não existir de fato. VOCabulÁRIO conluio: ação combinada entre duas ou mais pessoas com o objetivo de lesar um terceiro, obter vantagem ilícita ou furtar-se ao cumprimento de uma obrigação imposta por Lei. COmeNTÁRIO III Jornada de direito Civil enunciado 152 do CeJ: “Toda simulação, inclusive a inocente, é invalidante”. assim como a fraude contra credores, a simulação apresenta defeito na manifestação da vontade e tem por objetivo prejudicar terceiros que não participaram do negócio. 9.4.2. Requisitos da simulação a) Conluio das partes envolvidas: na simulação os contratantes agem de forma conjunta e combinada. Nesse aspecto, a simulação não deve ser confundida com a reserva mental, embora nas duas figuras o sujeito declare conscientemente algo diverso do que na verdade pretende, com o fim de enganar alguém. Na reserva mental a pessoa envolvida no negócio não tem conhecimento do fato e das intenções da outra parte, sendo vítima das pretensões do sujeito; na simulação a vítima é um terceiro que não participa do ato simulado. Além disso, ao estudarmos os requisitos de validade do negócio jurídico no capítulo anterior, vimos que a reserva mental, em regra, não gera a invalidade do negócio (Código Civil, art. 110). b) Propósito de iludir e enganar: a simulação é realizada com o objetivo de produzir um efeito diverso do ostensivamente indicado, que vicia o ato desde o seu nascimento. Sobre a aparência de um ato lícito pretende-se prejudicar terceiros ou violar a lei. Essa é a razão pela qual a simulação não deve ser confundida com o dolo: na simulação as partes desejam prejudicar terceiros, no dolo uma parte quer prejudicar outra. c) Divergência consciente entre a vontade declarada e a vontade real: as partes não se enganam de forma involuntária na simulação. A diferença entre a vontade interna (intenção) e a vontade externa (manifestação) é sempre consciente e desejada. 9.4.3. Consequências da simulação Diversamente dos demais vícios do negócio jurídico que determinam a anulabilidade (o negócio jurídico é anulável), a simulação gera a nulidade (o negócio jurídico é nulo). Nesse sentido, o art. 167, caput, do Código Civil determina que “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”. Ao dispor que subsistirá o que se dissimulou, o dispositivo permite que a pena de nulidade seja aplicada de forma distinta a depender do tipo de simulação. Conforme veremos no próximo tópico, na simulação absoluta a nulidade atinge todo o negócio, enquanto na simulação relativa a nulidade atingirá apenas a parte viciada do negócio. Para que seja reconhecida a simulação, deverá ser proposta a ação declaratória de nulidade a qualquer tempo, pois, de acordo com o art. 169 do Código Civil, o negócio jurídico nulo não convalesce pelo decurso do tempo (é imprescritível). Por ser causa de nulidade, a ação pode ser proposta por qualquer interessado, inclusive pelo Ministério Público, quando lhe couber in178 Direito Civil tervir (interesses de menores ou de incapazes, ou quando entender necessária a intervenção para proteção de interesses metaindividuais ou individuais relativos à dignidade da pessoa humana). Em que pese a declaração de nulidade absoluta, são preservados os efeitos gerados pelo negócio aparente em relação a terceiros de boa-fé (aqueles que desconheciam a divergência entre a vontade real e a declaração dos contratantes). Com a intenção de proteger a confiança imprescindível entre os agentes, a ordem jurídica ressalva os direitos de terceiros de boa-fé que acreditaram e fundamentaram suas ações na aparência do negócio jurídico a eles apresentado (Código Civil, art. 167, § 2º). 9.4.4.Classificação da simulação quanto ao seu conteúdo 9.4.4.1. Simulação absoluta É aquela em que a declaração de vontade viciada não visa a produção de qualquer efeito jurídico. As partes procuram transmitir a terceiros uma impressão enganosa de que teriam convencionado determinado negócio jurídico (aparente), mas na realidade não desejam realizar qualquer negócio. Quando a simulação é absoluta, o negócio jurídico é completamente nulo por não existir nada de verdadeiro na manifestação de vontade. Abaixo transcrevemos interessantes exemplos de simulação absoluta apresentados pela professora Maria Helena Diniz: a) o proprietário de uma casa alugada que, com a intenção de facilitar a ação de despejo contra seu inquilino, finge vendê-la a terceiro que, residindo em imóvel alheio, terá maior possibilidade de vencer a referida demanda (RT, 177:250, 439:92); b) a emissão de títulos de crédito, que não representam qualquer negócio, feita pelo marido, em favor de amigo, antes da separação judicial, para prejudicar a mulher na partilha de bens (RT, 255:451, 307:376, 441:276, 317:155 e 179:844); c) a alegação de uma situação patrimonial inexistente, quando, p. ex., o proprietário de uma pedreira que explodiu, causando graves prejuízos a terceiros, declara que é devedor de enormes quantias a um amigo seu, a quem dá garantia real, com a finalidade de, mediante a preferência concedida, ilidir a execução que lhe seria movida pelas vítimas do referido acidente (RF, 40:546); d) o devedor que finge vender seus bens para evitar a penhora; e) a pessoa que, ante o incessante pedido de parentes para que venha a prestar fiança ou aval, transfere, para pôr fim àquele “assédio”, seus bens para um amigo, fazendo com que não haja em seu nome lastro patrimonial, tornando-lhe impossível a prestação de qualquer garantia real ou fidejussória. 179 COMENTÁRIO IV Jornada de Direito Civil Enunciado 294 do CEJ: “Sendo a simulação uma causa de nulidade do negócio jurídico, pode ser alegada por uma das partes contra a outra”. COmeNTÁRIO III Jornada de direito Civil enunciado 153 do CeJ: “Na simulação relativa, o negócio simulado (aparente) é nulo, mas o dissimulado será válido se não ofender a lei nem causar prejuízos a terceiros”. IV Jornada de direito Civil enunciado 293 do CeJ: “Na simulação relativa, o aproveitamento do negócio jurídico dissimulado não decorre tão somente do afastamento do negócio jurídico simulado, mas do necessário preenchimento de todos os requisitos substanciais e formais de validade daquele”. 9.4.4.2. Simulação relativa A simulação relativa, também conhecida como dissimulação, é aquela em que há um negócio jurídico falso (negócio simulado) encobrindo outro verdadeiro (negócio dissimulado). Visa-se com o negócio simulado produzir efeitos diferentes daqueles que seriam naturais ao negócio. O negócio aparente, na simulação relativa, é um meio de realização do ato dissimulado, desejado. Ao contrário da simulação absoluta, na simulação relativa a nulidade atingirá apenas a parte falsa do negócio, desde que a restante preencha os demais requisitos de validade (conteúdo e forma) do negócio jurídico. A simulação relativa pode ser classificada como subjetiva ou objetiva. Simulação relativa subjetiva é aquela em que o elemento falso do negócio é o sujeito, isto é, a pessoa com quem se pretende contratar. Por não poder contratar diretamente com determinada pessoa, o agente celebra o negócio jurídico com outra (interposta pessoa). Exemplo: a pessoa que doa um imóvel à mãe de sua amante com o objetivo de burlar a proibição legal de beneficiar diretamente sua amante (Código Civil, art. 550). Simulação relativa objetiva é aquela em que o elemento falso do contrato diz respeito a algum elemento objetivo. Pode ser quanto ao objeto (p. ex.: afirma que está vendendo um bem e na verdade é outro), à natureza jurídica (p. ex.: o contrato é de compra e venda, mas pretende a doação do bem), à data (p. ex.: o contrato é assinado hoje com data futura ou pretérita), ao preço (p. ex.: a escritura pública de compra e venda apresenta um valor abaixo do verdadeiro para que as partes paguem menos impostos) etc. 180 10 Prescrição e decadência 10.1 INTRODUÇÃO Com o objetivo de garantir a estabilidade social e a segurança das relações jurídicas, o legislador estabelece prazos para que as pessoas possam buscar seus direitos em juízo, afinal, dormientibus non sucurrit jus (o direito não socorre quem dorme). Esses prazos, denominados prescrição e decadência, permitem a consolidação das situações jurídicas, impedindo que o exercício de um direito fique pendente de forma indefinida no tempo. No Código Civil de 2002, observa-se a preocupação do legislador em distinguir as hipóteses e os prazos de prescrição e decadência, facilitando o trabalho do profissional do direito em consagração ao princípio da operabilidade. Na vigência do Código Civil de 1916 era muito comum a confusão entre os institutos: em parte devido ao tratamento legislativo da matéria e, em parte, devido à falta de consenso doutrinário sobre a definição dos institutos. Nesse sentido era comum a lição de que “a prescrição põe fim a ação e a decadência ao direito”. Atualmente, compreende-se como absolutamente equivocada a afirmação de que a prescrição põe fim à ação, pois o direito de ação é o direito público, abstrato e indisponível que toda pessoa tem de ter acesso ao Poder Judiciário. Esse direito de peticionar é garantido pelo princípio constitucional da inafastabilidade do provimento jurisdicional (Constituição Federal, art. 5º) e não está sujeito a qualquer prazo. Não deve ser confundido, evidentemente, com o conteúdo da ação, isto é, com o direito pleiteado em juízo que pode estar sujeito a um prazo de prescrição ou de decadência, conforme veremos. 10.2 PRESCRIÇÃO 10.2.1. Conceito de prescrição Na atualidade a prescrição pode ser definida como a perda da pretensão de reparação do direito violado em virtude da inércia de seu titular, no prazo previsto em lei. Nesse sentido, o art. 189 do Código Civil de 2002 determina que, violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206. E o que vem a ser a pretensão? Pretensão é o poder de exigir de outrem, coercitivamente, o cumprimento de um dever jurídico previsto em lei ou em contrato. A pretensão é, portanto, o poder de exigir o cumprimento de um direito subjetivo patrimonial em juízo. Como exemplo de pretensão, podemos citar: o direito de cobrar uma dívida vencida e não paga; o direito de cobrar indenização em virtude de danos causados; o direito de cobrar aluguéis atrasados etc. 182 Direito Civil De outra forma, podemos afirmar que o conceito de prescrição está diretamente relacionado à estrutura da obrigação civil, composta por débito e responsabilidade civil. O débito é o dever jurídico de cumprir espontaneamente uma prestação de dar, fazer ou não fazer. A responsabilidade civil é a consequência patrimonial do descumprimento do débito – permitindo que o credor ingresse em juízo pleiteando o cumprimento forçado da prestação ou a reparação pelo dano causado. Assim, a prescrição fulmina a responsabilidade civil, nunca o débito. É por essa razão que o pagamento de uma dívida prescrita não autoriza pedido de repetição do indébito (o débito existia, apenas não podia ser exigido em juízo). 10.2.2. P rescrição extintiva e prescrição aquisitiva Na doutrina é comum a referência a dois tipos de prescrição: a extintiva e a aquisitiva. A prescrição extintiva é tratada na Parte Geral do Código Civil de 2002 e se refere à perda de um direito. Por outro lado, a prescrição aquisitiva, também denominada usucapião, se refere à aquisição de um direito e vem regulada na Parte Especial do Código. Para alguns autores, a expressão prescrição aquisitiva é inapropriada para se referir à usucapião. Contudo, a proximidade entre os institutos é tamanha que o próprio legislador estabeleceu que na usucapião se estende ao possuidor o disposto quanto ao devedor, acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição (art. 1.244). Neste capítulo trataremos apenas da prescrição extintiva, deixando o estudo da aquisitiva para o capítulo que trata do direito das coisas. 10.2.3. Prescrição da exceção A palavra exceção possui diversos significados, mas, em geral, representa uma forma de defesa apresentada pelo réu em contraposição ao direito do autor. Essa defesa não pode ser apresentada a qualquer momento, pois, de acordo com o art. 190 do Código Civil, a exceção prescreve no mesmo prazo em que a pretensão. Em que pese a omissão do legislador, a correta interpretação do dispositivo exige a distinção entre duas modalidades de exceção: as dependentes e as independentes. As exceções dependentes, também denominadas não autônomas, são aquelas diretamente relacionadas a uma pretensão, isto é, um direito que o réu poderia cobrar do autor mediante uma ação própria (além de servirem como meio de defesa, constituem um meio de ataque). Como exemplo, podemos citar a exceção de compensação em que o réu alega ser credor do devedor. Se esse crédito já estava prescrito e não poderia ser cobrado judicialmente por meio de uma pretensão, também não pode ser alegado como exceção. Portanto, o art. 190 do Código Civil tem aplicabilidade quanto às exceções dependentes. As exceções independentes, também denominadas autônomas, são aquelas que não estão relacionadas a uma pretensão que o réu tem contra o autor (não servem como meio de ataque, mas apenas de defe183 ATENÇÃO Não confundir prescrição com: Preclusão: é a perda da faculdade ou direito processual em virtude da inércia do interessado (p. ex.: a perda do prazo para recorrer de uma decisão judicial). Perempção: é a perda do direito ativo de processar uma pessoa, em razão da extinção do processo por três vezes sem julgamento do mérito (art. 267 do CPC), pelo abandono imputável à parte que deveria promover-lhe a tramitação. sa). Desta forma, as exceções independentes representam fatos que apenas têm o poder de impedir o sucesso da pretensão do autor e podem ser alegadas em qualquer momento (não prescrevem). Como exemplo de exceções independentes, podemos citar a alegação pelo réu de que a dívida já foi paga (exceção de pagamento); de que há coisa julgada; de que a pretensão do autor está prescrita etc. 10.2.4. Alegação da prescrição O art. 193 do Código Civil dispõe que a prescrição pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita. Admite-se, portanto, a alegação da prescrição em qualquer fase do processo durante a instância ordinária (primeira ou na segunda instância): na contestação, em embargos, apelação etc. Contudo, se não foi alegada na instância ordinária, não pode ser alegada em instância extraordinária (Recurso Especial ao STJ ou Recurso Extraordinário ao STF), em razão do requisito do prequestionamento (Súmulas 282 e 356/STF e 211/STJ). Também não pode ser alegada: a) na fase de liquidação de sentença (durante a execução só é admitida a alegação de prescrição intercorrente); b) em ação rescisória, se não foi arguida na ação que se pretende rescindir a sentença. Ainda que seja comum a alegação da prescrição na contestação sob a forma de preliminar, a sentença judicial que reconhece a prescrição provoca a extinção do processo com julgamento do mérito (Código de Processo Civil, art. 487, I). Isto ocorre, pois a prescrição é uma preliminar de mérito, isto é, um assunto que diz respeito ao mérito, mas que, devido à sua importância, deve ser analisado antes dos demais pontos controversos quanto ao mérito. 10.2.5. Renúncia da prescrição A renúncia é o ato unilateral pelo qual o devedor de uma obrigação abre mão do direito de alegar a prescrição da pretensão. É unilateral, pois a validade e a eficácia do ato não estão sujeitas à anuência do credor. A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita. A renúncia tácita é aquela que se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição (p. ex.: pagamento voluntário da dívida prescrita). Para que a renúncia seja válida, deve preencher dois requisitos: 1º) o prazo já deve estar consumado (isto é, não é admitida renúncia prévia da prescrição); e 2º) não pode prejudicar terceiros. É por essa razão que não é admitida a renúncia da prescrição por parte do devedor insolvente, impedindo assim o prejuízo de outros credores. 10.2.6. Declaração de ofício da prescrição Em sua redação original, o art. 194 do Código Civil de 2002 não admitia a declaração de ofício da prescrição, salvo se favorecesse pessoa absolutamente incapaz. Contudo, com o advento da Lei n. 11.280/2006, a regra presente no art. 194 do Código Civil foi revogada e a prescrição 184 Direito Civil passou a ser decretável de ofício pelo juiz (Código de Processo Civil de 1973, art. 219, § 5º, sem correspondente no diploma de 2015). A mudança legislativa criou um conflito interno na estrutura da prescrição, chegando alguns autores a questionar se ainda seria possível a renúncia da prescrição. Com o tempo, a doutrina se pacificou no sentido de que o direito de renúncia prevalece sobre a possibilidade de declaração de ofício (Enunciado 295/CJF: “A revogação do art. 194 do Código Civil pela Lei n. 11.280/2006, que determina ao juiz o reconhecimento de ofício da prescrição, não retira do devedor a possibilidade de renúncia admitida no art. 191 do texto codificado”), devendo o juiz promover a intimação prévia das partes para se manifestarem: o réu, para que possa, eventualmente, renunciar à prescrição; o autor, para que possa alegar e demonstrar alguma causa suspensiva ou interruptiva da prescrição. Quanto à exigência da intimação das partes, podemos identificar as seguintes correntes doutrinárias: 1ª Corrente: defende que ambas as partes devem ser intimadas: o réu, para, se desejar, exercer o direito de renúncia da prescrição; o autor, para apresentar algum fato que afaste o reconhecimento da prescrição (p. ex.: equívoco no cômputo do prazo, causa suspensiva, causa interruptiva etc.). Entendemos que essa é a melhor posição a ser adotada pelos juízes. 2ª Corrente: defende que só o autor deve ser intimado. A intimação do réu não seria necessária, pois a renúncia da prescrição poderia ser manifestada posteriormente mediante ação declaratória ou incidentalmente em outro processo. 3ª Corrente: defende que o juiz deve declarar de ofício a prescrição tão logo a verifique no processo (p. ex.: ao despachar a inicial), independentemente da intimação das partes. 10.2.7. Previsão legal da prescrição Os prazos de prescrição estão expressos no Código Civil de 2002 e não podem ser criados nem alterados pela vontade das partes. Desse modo, ao contrário da decadência, que pode ser legal ou contratual, a prescrição só pode ter origem legal. O art. 206 do Código Civil traz expressos os prazos especiais de prescrição, isto é, os prazos específicos para determinadas situações concretas (prazos de 1, 2, 3, 4 e 5 anos). E o art. 205 do Código Civil traz expresso o prazo geral de prescrição de 10 anos (também conhecido como prazo ordinário ou comum), devendo ser aplicado subsidiariamente quando a situação sub judice não se encaixar nos prazos especiais do art. 206. O Código atual eliminou a dualidade de prazos gerais existente no Código Civil de 1916 (um para as ações pessoais/obrigacionais e outro para as ações reais), estabelecendo um prazo geral único. 10.2.7.1. Prazos especiais O art. 206 do Código Civil contém cinco parágrafos, contemplando 185 COMENTÁRIO São imprescritíveis as ações que versem sobre: l l l l l ireitos da personalidade: vida, d integridade, honra, nome, imagem, intimidade; estado da pessoa: como filiao ção (p. ex.: investigação de paternidade), condição conjugal, cidadania; ções declaratórias de nulidade a absoluta (por envolverem questões de ordem pública); ireito de família, no que cond cerne a regime de bens, alimentos, vida conjugal, nulidades, separação, divórcio, e reconhecimento e dissolução de união estável; ens públicos de qualquer natub reza. prazos especiais de prescrição que variam de um a cinco anos. Esse rol é meramente exemplificativo, pois no ordenamento jurídico são encontrados diversos outros prazos especiais, como, por exemplo: Constituição Federal, art. 7º, XXIX; art. 27 da Lei n. 8.078/90; Código Tributário Nacional, art. 168; art. 21 da Lei n. 4.717/65 (ação popular – 5 anos) etc. Contudo, iremos nos ater apenas à análise dos prazos previstos no art. 206 do Código Civil: a) Prescreve em um ano: I – a pretensão dos hospedeiros ou fornecedores de víveres destinados a consumo no próprio estabelecimento, para o pagamento da hospedagem ou dos alimentos: o Código Civil de 2002 eliminou a distinção existente no Código Civil de 1916 entre as modalidades de hospedagem, estabelecendo um prazo único de um ano. Contudo foi omisso quanto ao termo inicial do prazo, apontando a doutrina a necessidade de aplicação das regras previstas para a mora (Código Civil, art. 397) e para o penhor legal (arts. 1.467, I, e 1.470). II – a pretensão do segurado contra o segurador, ou a deste contra aquele, contado o prazo: a) para o segurado, no caso de seguro de responsabilidade civil, da data em que é citado para responder à ação de indenização proposta pelo terceiro prejudicado, ou da data que a este indeniza, com a anuência do segurador; b) quanto aos demais seguros, da ciência do fato gerador da pretensão: o Código Civil de 2002 unificou o prazo para exercício da pretensão do segurado contra o segurador, eliminando a distinção existente no Código Civil de 1916 quanto ao local do fato que deu origem à indenização (se em nosso país ou no exterior). A única distinção existente é quanto ao termo inicial do prazo: no seguro de responsabilidade civil o prazo deve ser contado a partir da citação se o segurado foi demandado por terceiro prejudicado ou da data em que segurado paga o terceiro prejudicado com a anuência do segurador; nos demais seguros o prazo de um ano deve ser contado da ciência do fato gerador da pretensão. Se o titular da pretensão não for o segurado, mas, sim, o beneficiário, o prazo de um ano não será aplicável. No caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório, o beneficiário tem prazo de três anos para exercer sua pretensão contra o segurador (art. 206, § 3º, IX). III – a pretensão dos tabeliães, auxiliares da justiça, serventuários judiciais, árbitros e peritos, pela percepção de emolumentos, custas e honorários: compreende-se que este dispositivo deve ser aplicado também para a pretensão dos delegatários do foro extrajudicial (Constituição Federal, art. 236). Como o legislador não especificou o termo inicial, compreendemos que deve ser considerado o momento da conclusão dos serviços, em analogia ao art. 206, § 5º, II, do Código Civil. IV – a pretensão contra os peritos, pela avaliação dos bens que entraram para a formação do capital de sociedade anônima, contado da publicação da ata da assembleia que aprovar o laudo: este inciso traz regra restritiva que só deve ser aplicada para regular a pretensão indenizatória dos prejudicados em face do perito responsável pela avaliação 186 Direito Civil dos bens na formação do capital da sociedade anônima. V – a pretensão dos credores não pagos contra os sócios ou acionistas e os liquidantes, contado o prazo da publicação da ata de encerramento da liquidação da sociedade: os credores (sócios ou não) da sociedade dissolvida poderão cobrar os valores devidos no prazo de um ano da publicação da ata de encerramento da liquidação da sociedade. b) Prescreve em dois anos: I – a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se vencerem: o direito a alimentos é imprescritível, podendo ser exercido em qualquer momento que o ser humano passe por necessidade. Esse direito de pedir alimentos (ação de alimentos) não deve ser confundido com o direito de cobrar alimentos vencidos e não pagos (execução de alimentos), cuja pretensão prescreve no prazo de 2 anos, contados retroativamente a partir da propositura da ação (prescrição parcelar). c) Prescreve em três anos: I – a pretensão relativa a aluguéis de prédios urbanos ou rústicos: o Código Civil de 2002 reduziu o prazo de cinco para três anos para que o locador cobre o locatário do pagamento do aluguel. Consoante entendimento doutrinário, esse prazo não se aplica à cobrança dos encargos da locação nem à cobrança dos débitos condominiais. II – a pretensão para receber prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias: o dispositivo estabelece prazo de três anos para cobrança das prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias (previstas nos arts. 803 a 813). III – a pretensão para haver juros, dividendos ou quaisquer prestações acessórias, pagáveis, em períodos não maiores de um ano, com capitalização ou sem ela: o prazo de três anos para cobrança de juros, dividendos ou quaisquer prestações acessórias referidas nesse inciso deve ser contado a partir do respectivo vencimento. IV – a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa: de acordo com entendimento doutrinário, o prazo de três anos para o ressarcimento de enriquecimento sem causa deve ser contado a partir da verificação do locupletamento. Como os prazos específicos devem ser interpretados restritivamente, o inciso não deve ser utilizado para a pretensão relativa a pagamento indevido (Código Civil, arts. 876 a 883). V – a pretensão de reparação civil: a pretensão de reparação de danos que, durante a vigência do Código Civil de 1916, se submetia a prazo geral, passou a ser hipótese de prazo especial no Código Civil de 2002. Esse prazo, de três anos, é aplicável a toda e qualquer forma de dano (material, moral ou estético), mas deve ser destacado que em algumas situações excepcionais os tribunais têm reconhecido a imprescritibilidade da pretensão (p. ex.: indenização por danos morais em razão de tortura). Se o dano for causado em virtude de prestação de serviços ou fornecimento de produtos em relação de consumo, deverá ser observado o prazo de cinco anos previsto no Código de Defesa do Consumidor 187 (art. 27). Se o dano for decorrente de acidente de trabalho ou doença profissional, o entendimento do TST é no sentido de que deve ser aplicada a prescrição trabalhista, com prazo de dois anos (RR 23720096.2006.5.02.0315 – julgado em 2010). VI – a pretensão de restituição dos lucros ou dividendos recebidos de má-fé, correndo o prazo da data em que foi deliberada a distribuição: o pagamento de lucros e dividendos nas sociedades por ações é regulamentado pela Lei n. 6.404/76, que atribui responsabilidade solidária dos administradores e fiscais em caso de pagamento com inobservância do disposto no art. 201 da citada lei. VII – a pretensão contra as pessoas em seguida indicadas por violação da lei ou do estatuto, contado o prazo: a) para os fundadores, da publicação dos atos constitutivos da sociedade anônima; b) para os administradores, ou fiscais, da apresentação, aos sócios, do balanço referente ao exercício em que a violação tenha sido praticada, ou da reunião ou assembleia geral que dela deva tomar conhecimento; c) para os liquidantes, da primeira assembleia semestral posterior à violação: o dispositivo estabelece o prazo de três anos para as pretensões exercidas em face dos fundadores, administradores, fiscais e liquidantes fundamentadas na violação da lei ou do estatuto (desvio de valores, desmandos, excesso de mandato etc.). A matéria também é regulamentada pela Lei n. 6.404/76. VIII – a pretensão para haver o pagamento de título de crédito, a contar do vencimento, ressalvadas as disposições de lei especial: o prazo de três anos previsto no dispositivo é para a pretensão de execução do título de crédito. Caso esgotado o prazo, ainda resta ao credor cobrar a dívida por meio da ação monitória (Código de Processo Civil, art. 700), no prazo de cinco anos, consoante entendimento jurisprudencial do STJ fundado no art. 206, § 5º, I, do Código Civil. Por fim, deve ser destacado que o prazo de 3 anos previsto nesse inc. VIII, do § 3º, tem aplicação subsidiária: só deve ser invocado se inexistente prazo específico em lei extravagante. Não se aplica, por exemplo, à execução de cheque, que tem prazo de seis meses contados da expiração do prazo de apresentação (art. 59 da Lei n. 7.357/85 – Lei do Cheque). IX – a pretensão do beneficiário contra o segurador, e a do terceiro prejudicado, no caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório: como exemplo de seguro de responsabilidade civil obrigatório podemos citar o DPVAT, que já foi objeto de controvérsia no Superior Tribunal de Justiça quanto à aplicabilidade do prazo de três anos (prazo especial), previsto nesse inciso, ou de dez anos (prazo geral), previsto no art. 205 do Código Civil. Atualmente a jurisprudência daquela Corte está pacificada em três anos. O seguro DPVAT é regulamentado pelas Leis n. 6.194/74 e 8.441/92, prevendo cobertura para eventos como lesão corporal ou óbito em acidentes de trânsito. d) Prescreve em quatro anos: I – a pretensão relativa à tutela, a contar da data da aprovação 188 Direito Civil das contas: o Código Civil impõe aos tutores o dever de apresentar um balanço anual de sua gestão e o dever de prestar contas a cada dois anos e ao fim da tutela (arts. 1.755 e 1.762), sendo estes submetidos à aprovação judicial. A partir desta começa a correr o prazo de 4 anos para exercício de pretensão relativa à tutela. e) Prescreve em cinco anos: I – a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular: a regra prevista neste dispositivo tem caráter subsidiário e só deve ser aplicada se não existir outra específica nos incisos anteriores ou em leis extravagantes. Além disso, o inciso em comento exige que a dívida a ser cobrada seja líquida, isto é, certa quanto à sua existência e determinada quanto ao seu objeto/valor. II – a pretensão dos profissionais liberais em geral, procuradores judiciais, curadores e professores pelos seus honorários, contado o prazo da conclusão dos serviços, da cessação dos respectivos contratos ou mandato: o prazo de cinco anos previsto no inciso também tem aplicabilidade quanto às sociedades de profissionais liberais no exercício da respectiva atividade (p. ex.: sociedade de médicos em um consultório médico). Quanto aos advogados, o Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906/94) já previa o mesmo prazo de cinco anos para cobrança dos honorários. III – a pretensão do vencedor para haver do vencido o que despendeu em juízo: este último inciso trata da cobrança dos ônus sucumbenciais, previstos no art. 20 do Código de Processo Civil. O prazo de cinco anos deve ser contado a partir do trânsito em julgado da sentença e deve ser observado tanto pelo vencedor como pelo advogado, que tem direito autônomo de cobrar os honorários sucumbenciais (art. 23, Lei n. 8.906/94). 10.2.8. Contagem do prazo de prescrição Determinar a forma como deve ser contado o prazo de prescrição não é tarefa fácil, a começar pela definição do seu termo inicial. De acordo com a concepção objetiva, o prazo de prescrição deve ser contado a partir do momento em que foi violado o direito, surgindo para o titular a pretensão (nesse sentido, é regra prevista no art. 189 do Código Civil). Para a concepção subjetiva (teoria da actio nata), o prazo só deve ser contado a partir do momento em que a pessoa tem ciência da violação do direito ou das consequências. Essa posição foi adotada pelo Código Civil no art. 206, § 1º, II, a e b. Podemos afirmar, então, que como regra o Código Civil de 2002 adota a concepção objetiva e, em caráter excepcional, a concepção subjetiva. Contudo, na doutrina e na jurisprudência o tema é controverso, havendo muitos julgados favoráveis à aplicabilidade da teoria da actio nata em hipóteses não consagradas expressamente no Código Civil. Definido o termo inicial, resta saber como deve ser contado o prazo de prescrição. Com esse propósito o art. 132, caput, do Código Civil 189 CURIOSIDADE A título de exemplo, em ação indenizatória por erro médico o STJ já decidiu que o termo a quo do prazo prescricional deve ser o dia em que a vítima tomou conhecimento de que instrumentos cirúrgicos foram deixados dentro do seu corpo (REsp 1.020.801/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 26-4-2011). determina que, salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se os prazos, excluído o dia do começo, e incluído o do vencimento. Como os prazos de prescrição são contados em anos (1, 2, 3, 4, 5 e 10 anos), deve ser aplicada a regra presente no § 3º: “os prazos de meses e anos expiram no dia de igual número do de início, ou no imediato, se faltar exata correspondência”. Entendemos que esse dispositivo deve ser aplicado sem o caput do art. 132. Assim, se um acidente de trânsito ocorreu no dia 31 de dezembro de 2013, o último dia para ser proposta a ação será o dia 31 de dezembro de 2016. Se não existir o dia correspondente no ano seguinte, deverá ser considerado o dia imediato (isso ocorre em caso de ano bissexto). Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o dia útil seguinte (Código Civil, art. 132, § 1º). Entendemos que essa regra também vale para sábados e domingos, em razão de os fóruns estarem fechados. Vale dizer que esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. 10.2.8.1. Prescrição nuclear versus parcelar Prescrição nuclear ou de fundo de direito é aquela que atinge a exigibilidade do direito como um todo. Exemplificando: quando uma pessoa agride outra, causando diversos danos, o direito de exigir a reparação de todos os danos prescreve no mesmo momento – três anos após a agressão. Por sua vez, prescrição parcelar é aquela que não atinge o direito como um todo, mas somente as suas parcelas. Exemplificando: a pretensão de cobrar prestações alimentícias vencidas e não pagas prescreve em dois anos. Assim, ainda que exista débito superior a dois anos, quando da propositura da demanda, o prazo de dois anos deve ser contado regressivamente. 10.2.8.2. Continuação do prazo em face de herdeiros Conforme determina o art. 196 do Código Civil, a prescrição iniciada contra uma pessoa continua a correr contra os seus sucessores: sejam eles sucessores universais (herdeiros) ou sucessores singulares (legatários). A regra se justifica pelo fato de que a sucessão opera a transmissão de todos os direitos patrimoniais do falecido, incluindo as pretensões que o falecido tinha em face de terceiros. Exemplificando: se João, credor de uma obrigação líquida prevista em instrumento público, vier a falecer um ano após o vencimento da dívida, seus herdeiros ainda terão quatro anos para cobrá-la (prazo total: 5 anos – Código Civil, art. 206, § 5º). Conquanto a Parte Geral do Código Civil não diferencie a contagem do prazo de prescrição (extintiva) entre sucessores universais e singulares, a Parte Especial conferiu tratamento distinto ao regular a prescrição aquisitiva (usucapião), dispondo que o sucessor universal (herdeiro) continua de direito a posse do seu antecessor (sucessio possessionis) e 190 Direito Civil que ao sucessor singular (legatário) é facultado unir sua posse à do antecessor (acessio possessionis), para os efeitos legais. Isso significa que, quanto aos herdeiros, a posse do antecessor deve obrigatoriamente ser computada junto à sua; e que, quanto aos legatários, estes podem escolher se desejam computar a posse do antecessor. A doutrina não é pacífica sobre o tema. 10.2.9. Prescrição intercorrente Denomina-se prescrição intercorrente aquela computada durante o curso da ação, diante da inércia do autor em promover o andamento do processo. Ao propor uma ação, o autor tem o dever de realizar os atos necessários ao seu curso para que esta não se arraste de forma indefinida no tempo. Deve, portanto, peticionar, produzir provas, requerer diligências, expedição de ofícios etc. Se desta forma não procede, a sua inércia não deve ser acobertada pelo ordenamento jurídico (dormientibus non sucurrit ius – o direito não socorre quem dorme), não se podendo permitir que o processo fique abandonado por um prazo superior àquele exigido para a propositura da ação (leia-se: para o exercício da pretensão em juízo). Embora o tema ainda desperte muitas dúvidas na doutrina, o próprio legislador se preocupou em regulamentar a prescrição intercorrente no art. 202, parágrafo único, do Código Civil ao dispor que “a prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper”. 10.2.10. Impedimento e suspensão da prescrição Em algumas situações específicas o ordenamento jurídico determina que o prazo de prescrição não corre em razão da situação ou condição em que se encontra o titular do direito violado (situação pessoal, profissional, familiar etc.). Os arts. 197, 198 e 199 do Código Civil de 2002 retratam causas que podem ser tanto de impedimento como de suspensão. Se a causa já existia quando do surgimento da pretensão, a hipótese é de IMPEDIMENTO e o prazo de prescrição começará a correr quando esta desaparecer. Se a causa só veio a existir depois do surgimento da pretensão, a hipótese é de SUSPENSÃO e o prazo voltará a correr quando esta desaparecer. Exemplificando: o art. 197, I, do Código Civil, determina que a prescrição não corre entre os cônjuges na constância da sociedade conjugal. Assim, se um cônjuge causar dano ao outro durante o casamento, o prazo de prescrição ficará impedido de correr; dissolvida a sociedade conjugal, o prazo começará a correr do zero. Por outro lado, se o dano foi causado antes do casamento, celebrado este, o prazo será imediatamente suspenso; dissolvida a sociedade conjugal, o prazo voltará a correr pelo período restante. 191 10.2.10.1. Hipóteses de impedimento e suspensão JURISPRUDÊNCIA Súmula 229- STJ: “O pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão”. O Código Civil de 2002 agrupou as hipóteses de impedimento e suspensão em três artigos, cada qual com três incisos. Por representarem exceções à contagem do prazo de prescrição, devem ser interpretadas restritivamente, compreendendo a doutrina majoritária que o rol dos arts. 197, 198 e 199 do Código Civil é taxativo (recomendamos que essa posição seja gabaritada em fase objetiva). Contudo, concordamos com forte corrente doutrinária que sustenta que o rol pode ser ampliado pela regra contra non valentem agere non currit praescriptios: a prescrição não corre contra quem estiver impossibilitado de agir. A taxatividade do rol impede a analogia, não a interpretação extensiva. Como exemplo dessas situações, podemos citar: a paralisação da justiça por caso fortuito ou força maior, a ocultação dolosa do débito pelo devedor, pedido de pagamento de indenização à seguradora (Súmula 229/STJ) etc. Vejamos, agora, quais são as hipóteses de impedimento e suspensão da prescrição que estão previstas no Código Civil de 2002: a) Entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal (art. 197, I – impedimento e suspensão): a hipótese se justifica pela necessidade de se proteger a convivência harmônica entre os cônjuges durante o casamento, evitando que sejam propostas ações entre eles. Deve ser destacado que o Código Civil de 2002 substitui a expressão matrimônio, presente no Código Civil de 1916, por sociedade conjugal, uma vez que somente durante a existência desta é que persiste a comunhão plena de vida (afeto e patrimônio). Dissolvida a sociedade conjugal pela separação, divórcio, viuvez etc., o prazo começará ou voltará a correr. Quanto à separação de fato, entendemos que esta deve ser equiparada à separação judicial em seus efeitos, permitindo que a prescrição corra. Em caso de anulação ou decretação de nulidade do casamento, o cônjuge de boa-fé deve ser considerado protegido até o fim da sociedade conjugal; quanto ao de má-fé, não haverá suspensão nem interrupção do prazo. A questão mais polêmica diz respeito à aplicação analógica do dispositivo à união estável: 1ª Corrente: defende que o dispositivo deve ser aplicado por analogia. Compreendemos que essa é a posição mais coerente em razão da obrigação constitucional que o Estado tem de proteger a família, formada seja pelo casamento, seja pela união estável (Constituição Federal, art. 226). Esse também é o posicionamento do Conselho da Justiça Federal, nos termos do Enunciado 296: “Não corre a prescrição entre os companheiros, na constância da união estável”. 2ª Corrente: defende que não há impedimento ou suspensão do prazo de prescrição na constância da união estável em razão da omissão legislativa. Em fase objetiva de concursos públicos que sigam a literalidade da lei, recomendamos que 192 Direito Civil essa posição seja gabaritada. Já em fase subjetiva deve ser gabaritada a primeira corrente. b)Entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar (art. 197, II – impedimento e suspensão): assim como o dispositivo anterior, o objetivo da norma é a proteção da unidade familiar formada pelos pais e filhos, evitando o litígio entre eles durante o exercício do poder familiar (antigo pátrio poder). Cessado o poder familiar, por meio da maioridade ou da emancipação, o prazo voltará ou começará a correr. Há quem entenda que o dispositivo retrata unicamente causa de impedimento, mas compreendemos que também pode servir como causa de suspensão, por exemplo, se o poder familiar foi estabelecido posteriormente à violação do direito, mediante adoção. Cessado o poder familiar (por meio da maioridade, morte ou destituição), o prazo de prescrição começará ou voltará a correr. Se em vez da destituição (que é definitiva) ocorrer simples suspensão do poder familiar (que é temporária), o prazo de prescrição não correrá. c)Entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores durante a tutela ou curatela (art. 197, III – impedimento/suspensão): também sob o fundamento de preservação da convivência harmônica entre determinadas pessoas, o ordenamento jurídico impede o transcurso da prescrição entre tutores e tutelados e entre curadores e curatelados. Se houver a remoção do tutor ou curador, mas permanecer a tutela ou curatela, o prazo de prescrição poderá correr entre o incapaz e o tutor/curador removido. No entanto, em se tratando de absolutamente incapaz, deve ser observada a regra do art. 198, I do Código Civil. d)Contra os incapazes de que trata o art. 3º (art. 198, I – impedimento/suspensão): de acordo com o dispositivo, não corre prazo de prescrição contra os absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de 16 anos; II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; e III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. O prazo só não corre contra o absolutamente incapaz, isto é, quando este é o titular do direito violado (o incapaz é o autor da ação). Se, por outro lado, o absolutamente incapaz for o violador do direito de outrem, o prazo de prescrição fluirá normalmente a favor dele, que será beneficiado pela inércia do titular do direito (o incapaz é o réu da ação). Devemos destacar que a hipótese do art. 198, I, do Código Civil, refere-se apenas aos absolutamente incapazes. Em se tratando de incapacidade relativa (art. 4º), o prazo flui normalmente consoante determinação do art. 195. e)Contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos Municípios (art. 198, II – impedimento/sus193 pensão): como a norma não especifica o tipo de serviço público, a doutrina tem admitido sua aplicabilidade para proteger toda pessoa que preste, fora do País, serviços de utilidade para a União, Estados ou Municípios: agentes diplomáticos; agentes consulares; adidos militares; delegados em missões oficiais; comissionados para estudos ou pesquisas no exterior etc. Não se exige que sejam servidores públicos em sentido estrito, basta que exerçam atividade assim qualificada, a favor da administração direta ou indireta. Outros ausentes: embora não exista dispositivo legal regulando o impedimento e a suspensão da prescrição em favor dos ausentes (pessoas que desaparecem de seu domicílio sem deixar notícias – Código Civil, arts. 22 a 39), há enunciado do Conselho da Justiça Federal no sentido de que “desde o termo inicial do desaparecimento, declarado em sentença, não corre a prescrição contra o ausente” (Enunciado 156/CJF). f) Contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra (art. 198, III – impedimento/suspensão): a norma deve ser interpretada de forma a proteger as pessoas que compõem as Forças Armadas durante períodos de guerra, estejam cumprindo função dentro ou fora do País. Protege, também, os membros das Forças Armadas que integram as forças de paz da ONU. Observação: todos os incisos dos arts. 197 e 198 do Código Civil (acima analisados) retratam hipóteses subjetivas de suspensão E impedimento da prescrição. Diversamente, todos os incisos do art. 199 do Código Civil (abaixo analisados) representam hipóteses objetivas de suspensão OU impedimento da prescrição. g) Pendendo condição suspensiva (art. 199, I – causa impeditiva): a regra é explicada pela natureza da condição suspensiva: suspende o exercício e a aquisição do direito, gerando mera expectativa de direito. Como o direito condicional não é exercitável, não há falar em prazo de prescrição para o exercício do direito em juízo. Súmula 229 do STJ: “pedido de pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão”. h) Não estando vencido o prazo (art. 199, II – causa impeditiva): as mesmas razões invocadas para justificar o dispositivo anterior se aplicam a essa hipótese, pois o direito submetido a um prazo, embora integre o patrimônio do seu titular (direito adquirido), não é exercitável antes do implemento do termo certo (evento futuro e certo). i) Pendendo ação de evicção (art. 199, III – causa impeditiva): denomina-se ação de evicção aquela que pode resultar na con194 Direito Civil denação de uma pessoa à perda de um bem com base em motivo jurídico anterior à sua aquisição (p. ex.: a ação pauliana). Procedente a ação, o evictor toma o bem do evicto, restando a este ingressar com ação de regresso contra o alienante. O prazo para ser proposta essa ação só começa a correr a partir do trânsito em julgado da ação de evicção, pois é a partir desse momento que surge a pretensão ressarcitória do evicto em face do alienante. j)Quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, antes da respectiva sentença definitiva (art. 200 – causa suspensiva): embora a responsabilidade civil tenha certa independência da responsabilidade criminal (vide art. 935 do Código Civil), o legislador determinou que a prescrição para ser exercida pretensão civil não deve correr enquanto não existir sentença penal com trânsito em julgado. Entendemos que a hipótese não é de impedimento, mas, sim, de suspensão da prescrição a partir do início da ação penal (recebimento da denúncia ou da queixa) até o advento da sentença definitiva, seja condenatória ou absolutória. 10.2.10.2. A relação entre a suspensão da prescrição e as obrigações solidárias De acordo com o art. 201 do Código Civil, suspensa a prescrição a favor de um dos credores solidários, só aproveitam os outros se a obrigação for indivisível. Isto ocorre, pois a suspensão e o impedimento estão fundamentados em uma situação pessoal (p. ex.: o absolutamente incapaz, o casado, o tutelado etc.), não havendo motivo para se estender a exceção aos outros credores. A única exceção é a hipótese em que a obrigação solidária tem por conteúdo uma prestação indivisível: é impossível separar a parte não prescrita da prescrita. 10.2.11. Interrupção da prescrição Diversamente da suspensão da prescrição, em que o prazo volta a ser contado de onde parou, na interrupção o prazo recomeça a ser contado por inteiro, independentemente do tempo já transcorrido. A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper. Na vigência do Código Civil de 1916, não havia limite para o número de interrupções. Atualmente, com a introdução do Código Civil de 2002, a interrupção da prescrição somente poderá ocorrer uma vez (Código Civil, art. 202, caput). De acordo com a doutrina, a única exceção a essa regra diz respeito à hipótese em que a prescrição é interrompida por uma das causas previstas nos incisos II a VI do art. 202, e posteriormente é proposta a ação e ordenada a citação (inciso I), devendo ser admitida essa segunda interrupção. 195 10.2.11.1.Hipóteses de interrupção da prescrição O Código Civil de 2002 prevê no art. 2002 seis hipóteses em que a prescrição é interrompida. Além dessas, podem ser encontradas diversas outras na legislação extravagante: art. 66, V, da Lei n. 6.435/77; art. 174, parágrafo único, do Código Tributário Nacional; art. 17, parágrafo único, do Decreto-lei n. 204/67 etc. Procurando nos ater aos objetivos desta obra, analisaremos detidamente apenas as hipóteses previstas no Código Civil: a) Por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual (art. 202, I): essa é a hipótese mais polêmica de interrupção da prescrição diante do conflito existente entre o dispositivo e o art. 219 do Código de Processo Civil, que determina que a interrupção da prescrição ocorre com a citação válida, retroagindo à data da propositura da ação. Para tanto, a citação deve ser promovida no prazo de 10 dias subsequentes ao despacho que a ordenar, prorrogáveis até o máximo de 90 dias. Como o autor não é prejudicado pela demora imputável exclusivamente ao serviço judiciário, se a citação não for efetuada nos prazos mencionados, haver-se-á por interrompida a prescrição (Código de Processo Civil, art. 240 e Súmula 106/ STJ). Deve ser destacado que, ainda que a norma processual (Código de Processo Civil) estabeleça a interrupção com a citação válida e a norma material (Código Civil) com o despacho do juiz que ordenar a citação, não há um conflito relevante entre as normas pelo fato de que a eficácia da segunda hipótese foi condicionada pelo legislador civilista à realização da citação válida (“...se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual”), sempre retroagindo à data da propositura da ação. Por fim, devemos destacar que a interrupção da prescrição ocorrerá ainda que o juiz seja absoluta ou relativamente incompetente. b) Por protesto, nas condições do inciso antecedente (art. 202, II): o protesto a que se refere esse dispositivo é o protesto judicial, regulado no Código de Processo Civil no art. 719 e seguintes, utilizado, em regra, para garantir a conservação de um direito. Na ação de protesto, o despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação irá interromper a prescrição, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual. c) Por protesto cambial (art. 202, III): o protesto cambiário ou extrajudicial é aquele realizado no Cartório de Protesto de Títulos e Documentos. Desde o advento da Lei n. 9.492/97, que regulamentou o protesto cambiário, deve ser considerada superada a Súmula 153 do Supremo Tribunal Federal, pela qual o “simples protesto cambiário não interrompe a prescrição”. d) Pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores (art. 202, IV): o credor de uma 196 Direito Civil pessoa que faleceu deve peticionar no juízo do inventário requerendo o reconhecimento do seu título de crédito. Da mesma forma, em caso de falência ou de insolvência civil o credor deve peticionar requerendo o reconhecimento do seu direito junto ao concurso de credores. Em todas essas situações, a apresentação do título de crédito configura o exercício da pretensão (comportamento ativo), justificando a interrupção da prescrição. e)Por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor (art. 202, V): com redação genérica, o dispositivo abrange todo comportamento judicial ativo por parte do credor que constitua o devedor em mora (em atraso) no cumprimento da obrigação. Como exemplos desses comportamentos, podemos citar as notificações e interpelações judiciais. A propositura de ação pauliana também já foi considerada ato suficiente para interrupção da prescrição. Também com base na redação do inciso, temos que o legislador não quis conferir o mesmo efeito interruptivo a atos extrajudiciais praticados pelo credor como cartas de cobrança enviadas pelo correio ou notificações extrajudiciais. f)Por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor (art. 202, VI): enquanto os incisos anteriores interrompem a prescrição a partir do comportamento ativo do credor, o último inciso do art. 202 do Código Civil exige o comportamento ativo por parte do devedor. Qualquer ato realizado por este, judicial ou extrajudicial, verbal ou por escrito, que importe em reconhecimento do direito (da dívida) será hábil para interromper a prescrição. Exemplos: requerimento de parcelamento da dívida, requerimento de moratória (prorrogação do prazo para pagar), reconhecimento da dívida, pagamento parcial ou total da dívida ou da cláusula penal etc. Quem pode interromper? O art. 203 do Código Civil de 2002 determina que a prescrição pode ser interrompida por qualquer interessado. Assim, além do próprio titular do direito, devem ser considerados interessados: os assistentes dos relativamente incapazes, os representantes das pessoas jurídicas, os representantes convencionais (mandatários), os herdeiros do credor, os credores do credor, fiadores, avalistas etc. 10.2.11.2. Efeitos pessoais da interrupção Os efeitos da interrupção da prescrição são, em regra, pessoais (personalíssimos), logo, a interrupção por um credor não aproveita aos outros cocredores, assim como a operada contra o devedor, ou seu herdeiro, não prejudica os demais codevedores (regra latina: persona ad personam non fit interruptio). Excepcionalmente, o art. 204 do Código Civil apresenta 3 exceções em seus parágrafos: 197 Credores ou devedores solidários (art. 204, § 1º): a interrupção da prescrição por um dos credores solidários aproveita aos outros, assim como a interrupção efetuada contra o devedor solidário prejudica os demais e seus herdeiros. Para aplicação da regra, não importa se a obrigação é divisível ou não. Deve ser lembrado também que a solidariedade é uma situação excepcional e nunca deve ser presumida (resulta da lei ou da vontade das partes – Código Civil, art. 265). Herdeiros do devedor solidário (art. 204, § 2º): a interrupção operada contra um dos herdeiros do devedor solidário não prejudica os outros herdeiros ou devedores, senão quando se trate de obrigações e direitos indisponíveis. O legislador nada dispôs quanto à interrupção da prescrição promovida por um dos herdeiros do credor solidário, devendo ser compreendido que esta não aproveita aos demais credores. Fiador (art. 204, § 3º): em decorrência do princípio da gravitação jurídica, também conhecido como princípio da acessoriedade, a interrupção produzida contra o principal devedor (o afiançado) prejudica o fiador (o acessório segue a sorte do principal). O contrário não ocorre: se a interrupção for realizada contra o fiador, o devedor não será prejudicado. Embora inexista previsão expressa quanto ao contrato de aval, deverá ser aplicada a regra prevista no § 1º do art. 204, diante da solidariedade obrigacional estabelecida por este (art. 43, Decreto n. 2.044/1908). 10.3 DECADÊNCIA Vimos que a distinção entre prescrição e decadência pela afirmação de que a primeira põe fim à ação e a segunda ao direito deve ser tida por superada na atualidade, diante dos equívocos já apresentados. O elemento que diferencia os institutos é na verdade a natureza do direito a que estão vinculados: a prescrição está relacionada aos direitos subjetivos patrimoniais, enquanto a decadência está atrelada a direitos potestativos. Vejamos: 10.3.1. Conceito de decadência Decadência é a perda efetiva de um direito potestativo, pela falta de seu exercício, no período previsto na lei (decadência legal), ou pela vontade das partes (decadência convencional). Portanto, a compreensão do sentido de decadência exige do estudioso do direito o conhecimento da estrutura dos direitos potestativos, que podem ser definidos como aqueles que conferem ao seu titular o poder de provocar mudanças na esfera jurídica de outrem de forma unilateral, sem que exista um dever jurídico correspondente, mas tão somente um estado de sujeição. Diferem essencialmente dos direitos subjetivos, pois, nestes, a existência do direito para uma pessoa gera para outra um dever jurídico, enquanto os direitos potestativos não geram deveres jurídicos para a outra parte. São considerados direitos sem pretensão, logo, não podem 198 Direito Civil ser inadimplidos nem executados. O sujeito passivo do direito potestativo se encontra apenas em uma situação de sujeição à vontade (poder) do sujeito ativo, o titular do direito. Para facilitar a compreensão do tema, podemos citar como exemplo de direito potestativo o direito de anular um contrato por vício da vontade: a parte que foi prejudicada tem o poder de exigir em juízo a anulação do negócio jurídico. Os direitos potestativos podem ser constitutivos (p. ex.: o direito do dono de prédio encravado exigir que o dono do prédio vizinho lhe conceda passagem) ou desconstitutivos (p. ex.: o direito de desfazer a compra de um automóvel em razão de vício redibitório). Contudo, nem todos os direitos potestativos estão sujeitos a um prazo de decadência para serem exercidos (p. ex.: o direito de pedir divórcio, direito de requerer a desconsideração da personalidade jurídica), prevalecendo o princípio da inesgotabilidade ou da perpetuidade se o legislador não fixar um prazo determinado. Como exceção a essa regra, o art. 179 do Código Civil prevê prazo geral de 2 anos para as ações anulatórias quando omissa a lei. 10.3.2. Alegação da decadência Assim como a prescrição, a decadência pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita. Claro que essa alegação deve ser feita durante a instância ordinária (primeira ou segunda instância). Se a decadência não foi alegada na instância ordinária, não poderá ser alegada nas instâncias extraordinárias (STJ ou STF), em razão do requisito do prequestionamento. Embora seja comum a alegação da decadência sob a forma de preliminar em uma contestação, a sentença judicial que a reconhece põe fim ao processo com julgamento do mérito (Código de Processo Civil, art. 487, I). Isto ocorre, pois, assim como a prescrição, a decadência é uma preliminar de mérito, isto é, um assunto que diz respeito ao mérito, mas que, devido à sua importância, deve ser analisado antes dos demais pontos controversos quanto ao mérito. 10.3.3. Espécies de decadência Diferentemente da prescrição, que só pode ter origem legal, a decadência pode ser prevista tanto pela lei (decadência legal) como em contrato (decadência convencional). A distinção entre as modalidades de decadência tem especial importância na determinação das regras quanto a possibilidade de renúncia e declaração de ofício. 10.3.3.1. Decadência legal Decadência legal (ex vi legis) é aquela prevista em lei, havendo entendimento do STJ no sentido de que a decadência não pode ser criada por decreto, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade, insculpido no art. 5º, II, da CF/88 (REsp 526.015). Quando o juiz está diante de 199 decadência legal, deve declará-la de ofício, consoante determina o art. 210 do Código Civil. De forma coerente, o legislador também dispôs que a decadência legal não pode ser renunciada (nem antes nem depois de consumada). A explicação para tanto é simples: a decadência legal envolve questões consideradas de ordem pública (interesse geral da coletividade), daí não se admitir que, diante de um interesse público, a parte possa abrir mão do prazo imposto pelo legislador. Pela mesma razão não se admite que os prazos de decadência legal sejam alterados (aumentados ou diminuídos) pelas partes. 10.3.3.2. Decadência convencional A decadência é considerada convencional (ex vi voluntatis) quando resulta da manifestação de vontade das partes em uma determinada relação jurídica. Pode ser estabelecida de forma unilateral ou bilateral. Ao contrário do que ocorre com a decadência legal, a convencional diz respeito a matéria de ordem privada (direitos disponíveis). Essa é a razão pela qual a decadência pode ser renunciada pelas partes e não pode ser declarada de ofício pelo juiz (Código Civil, art. 210) nem provocada pelo Ministério Público. Como o Código Civil não estabeleceu as regras para a renúncia da decadência convencional, a doutrina aponta como solução a analogia aos requisitos para renúncia da prescrição (art. 191): o prazo deve estar consumado e não deve haver prejuízo de terceiro. O exemplo mais comum de decadência convencional é o prazo de garantia estabelecido entre as partes em um contrato de compra e venda. Toda garantia contratual é um prazo de decadência convencional. 10.3.4. Contagem do prazo de decadência Entendemos que a contagem do prazo de decadência deve ser feita da mesma forma que a contagem do prazo de prescrição: excluindo-se o dia do começo e incluindo o do vencimento (Código Civil, art. 132). Contudo devemos ressaltar que antigamente era comum a distinção quanto ao termo final da prescrição e da decadência, no sentido de que, quanto à primeira, se o prazo caísse em dia que não fosse útil, a prática do ato seria possível no dia útil subsequente e que, quanto à decadência, o prazo não poderia ser prorrogado, devendo o ato ser praticado antecipadamente. Essa distinção tinha por base a analogia às regras do direito penal quanto à prescrição e à decadência. Com a evolução do estudo da matéria no direito civil, a distinção foi superada. Assim, à semelhança do que ocorre com a prescrição, se o prazo decadencial para o exercício do direito se esgotar em dia que não seja útil, o ato poderá ser praticado até o dia útil subsequente. 10.3.5. Impedimento, suspensão e interrupção do prazo de decadência Diferentemente do que ocorre com a prescrição, a decadência normalmente corre para todos e contra todos. Enquanto a prescrição está 200 Direito Civil relacionada à violação de um direito, a decadência está associada ao exercício de um direito que depende exclusivamente da iniciativa do interessado. Essa é a razão pela qual, em regra, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição. Essa regra é excepcionada em algumas situações pela norma jurídica. Como exemplo de exceção, podemos citar: a) art. 208 do Código Civil, que dispõe que não corre prazo de decadência contra o absolutamente incapaz (hipótese de impedimento e suspensão); b) o art. 501, parágrafo único, do Código Civil (hipótese de impedimento); c) art. 26, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, que determina que a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços obsta a decadência até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca (hipótese de impedimento e suspensão). 10.3.6. Prazos de decadência Procurando facilitar a compreensão e a distinção dos institutos da prescrição e da decadência, o legislador adotou uma solução geográfica dispondo sobre os prazos de prescrição apenas nos arts. 205 e 206 do Código Civil. Todos os demais prazos encontrados em outros artigos do Código Civil foram considerados pelo legislador como prazos decadenciais. Os prazos de decadência são especiais, com exceção do art. 179, que traz um prazo geral de 4 anos, a contar da data da conclusão do ato, para as hipóteses em que o legislador determinar a anulabilidade de um ato sem estabelecer prazo específico. 10.3.6.1. Principais prazos de decadência 3 dias: para o vendedor exercer o direito de preferência e readquirir a coisa móvel, a contar da data da notificação promovida pelo comprador (Código Civil, art. 516). 10 dias: para a minoria vencida impugnar a alteração do estatuto da fundação, a contar da ciência promovida pelo Ministério Público (Código Civil, art. 68). 30 dias: para que o adquirente de bem móvel reclame de vício redibitório de fácil constatação, a contar da tradição da coisa (Código Civil, art. 445); para o consumidor reclamar do produto/serviço não durável adquirido com defeito, a contar da tradição ou do conhecimento do defeito (Código de Defesa do Consumidor, art. 26). 60 dias: para o vendedor exercer o direito de preferência e readquirir a coisa imóvel, a contar da data da notificação promovida pelo comprador (Código Civil, art. 516). 90 dias: para o credor prejudicado requerer a anulação de atos relacionados à incorporação, fusão ou cisão de uma pessoa jurídica, a contar da data da publicação do ato (Código Civil, art. 1.122); para o consumidor reclamar do produto/serviço durável adquirido com defeito, a contar da tradição ou do conhecimento do defeito (Código de Defesa do Consumidor, art. 26). 201 120 dias: para o interessado impetrar mandado de segurança (art. 18 da Lei n. 1.533/51 e Súmula 632 do STF); para o transportador reclamar indenização pelo prejuízo que sofrer em caso de informação inexata ou falsa descrição, a contar do ato (Código Civil, art. 745). 180 dias: para anular negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, a contar da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade (Código Civil, art. 119); para o adquirente de bem imóvel reclamar de vício redibitório de difícil constatação (art. 445); para o condômino preterido em seu direito de preferência haver para si a parte vendida por outro condômino a estranho (art. 504); para o vendedor exercer o direito de preferência contratual na alienação de coisa móvel (art. 513); para o prejudicado reclamar da solidez e segurança da obra na empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, a contar do aparecimento do defeito (art. 618); para anulação do casamento por diversas razões (arts. 1.555 e 1.560). 1 ano: para o adquirente de bem imóvel reclamar de vício redibitório de fácil ou difícil constatação, a contar da tradição ou da constatação (Código Civil, art. 445); para o adquirente reclamar complemento da área ou para o alienante reclamar devolução, na compra e venda ad mensuram, a contar da transcrição do título (art. 501); para o doador pleitear a revogação da doação, a contar do conhecimento do fato que autoriza a revogação (art. 559). 1 ano e 1 dia: para o proprietário exigir que se desfaça janela, sacada, terraço ou goteira sobre o seu prédio (art. 1.302); para o possuidor pleitear liminar em ação possessória. 2 anos: para anular negócio jurídico, não havendo prazo específico, a contar da celebração (Código Civil, art. 179); para o vendedor exercer o direito de preferência contratual na alienação de coisa imóvel (art. 513); para anular aprovação do balanço (art. 1.078, § 4º); para anulação do casamento celebrado por autoridade incompetente (art. 1.560); para anulação de negócio realizado por cônjuge sem a devida vênia (autorização) conjugal, a contar da extinção da sociedade conjugal (art. 1.649); para o interessado requerer a rescisão de julgado (Código de Processo Civil, art. 975). 3 anos: para anular a constituição de pessoa jurídica de direito privado por desrespeito aos requisitos legais (Código Civil, art. 45, parágrafo único); para anulação de decisões tomadas por maioria de votos com violação de lei ou estatuto ou se viciadas por erro, dolo, simulação ou fraude (art. 48, parágrafo único); para o vendedor de coisa imóvel recobrá-la na compra e venda celebrada com cláusula de reversão (art. 505); para anulação do casamento em razão de erro essencial quanto à pessoa do cônjuge (art. 1.560, III). 4 anos: para anular negócio jurídico viciado por erro, dolo, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores, a contar da celebração 202 Direito Civil do negócio (Código Civil, art. 178); para anular negócio jurídico viciado por coação, a contar do dia em que cessar a coação (art. 178); para anular casamento viciado por coação (art. 1.560, IV); para requerer exclusão do herdeiro ou legatário, a contar da abertura da sucessão (art. 1.815, parágrafo único); para anular disposição testamentária viciada por erro, dolo ou coação, contado da ciência do vício (art. 1.909, parágrafo único). 5 anos: prazo para impugnar o testamento, a contar da data do registro (art. 1.859). ATENÇÃO Em duas situações, entendemos que o legislador se equivocou ao tratar como prazos de decadência hipóteses que revelam pretensões de direitos patrimoniais: Art. 618 do Código Civil: “Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo. Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito”. Entendemos que esse prazo de cinco anos é de prescrição, pois está relacionado à pretensão de reparação de danos (exercício de direito subjetivo patrimonial). Art. 745 do Código Civil: “Em caso de informação inexata ou falsa descrição no documento a que se refere o artigo antecedente, será o transportador indenizado pelo prejuízo que sofrer, devendo a ação respectiva ser ajuizada no prazo de cento e vinte dias, a contar daquele ato, sob pena de decadência”. Esse prazo é de prescrição, e não de decadência, pois o dispositivo também se refere a uma pretensão indenizatória (direito subjetivo patrimonial). 203 11 Atos Ilícitos e Responsabilidade Civil ATENÇÃO Os artigos abaixo, todos do Código Civil, são fundamentais para o entendimento da matéria: Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (Arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. Art. 936. O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior. Art. 937. O dono de edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta. Art. 938. Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido. Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. 11.1 CONCEITO, ESPÉCIES E DISTINÇÕES NECESSÁRIAS, GENERALIDADE CIVIL O Estado Democrático de Direito garante a todos os cidadãos a ordem e a paz estabelecendo entre as garantias fundamentais da Constituição Federal de 1988 a apreciação pelo Poder Judiciário sempre que houver lesão ou ameaça a direito.1 Quando o legislador constituinte se refere à proteção sempre que houver lesão ou ameaça a direito, subentende o dever legal de não causar dano a outrem. 11.1.1. ATOS ILÍCITOS O ato ilícito é a conduta, a ação ou a omissão do agente que gerou o dano, o prejuízo a outrem. Recebe o nome de ilícito porquê interrompe, ofende, invade a direito alheio, provocando resultado indesejado, sem consentimento prévio ou autorização legal. A vítima simplesmente é constrangida aos efeitos danosos causados pelo ato ilícito do agente. O ato ilícito civil é um fato jurídico relevante para o direito civil, pois acontece por ação ou omissão do agente, resultando em dano patrimonial (material) ou extrapatrimonial (moral) sobre o direito de outrem, que injustamente o suporta, assistindo-lhe por esta razão, o direito à reparação. A vítima de danos cíveis busca que o Poder Judiciário condene o autor do fato à reparação do seu estado anterior ao dano (status quo ante). Onde estiver o ato ilícito aí estará a infração ao dever legal de não lesar a outrem. 11.1.2. RESPONSABILIDADE CIVIL E RESPONSABILIDADE CRIMINAL Por outro lado, o ato ilícito penal consiste em ação ou omissão do agente, cujo fato é previamente tipificado por norma penal de direito público. O interesse lesado é da sociedade e a sua forma de reparação se dá através de punição, que pode ser desde uma pena pecuniária (multa ou fiança) até restrição total da liberdade da pessoa (reclusão ou detenção – conforme a gravidade do tipo penal). O agente responderá por 1. CF, Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV – A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 206 Direito Civil dolo ou culpa pela responsabilidade penal do ato ilícito criminal a que der causa, desde que maior e garantido o seu direito à ampla defesa e contraditório (CF, art. 5º: (...) LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.). Portanto, a responsabilidade criminal, visa punir aqueles que ofenderem à sociedade por descumprimento à norma penal pública. Embora as responsabilidades civil e criminal tenham instrução em foros diversos, quando houver sentença penal irrecorrível, os fatos ali narrados, bem como a autoria deles, se tornam inquestionáveis no cível. VOCABULÁRIO Dolo: quando o agente tinha a intenção de causar o dano. Culpa: quando o agente não tinha a intenção de causar o dano, mas age com imprudência, negligência ou imperícia. Na responsabilidade civil o legislador civil impõe àquele que causar dano (ainda que moral), o dever de indenizar a vítima. Então, pode-se dizer que o ato ilícito civil é também fonte de obrigação. A ação ou omissão que provoca a lesão ao direito induz à responsabilidade civil que, por sua vez, é uma reação provocada pela infração a um direito preexistente. Entretanto, não haverá direito à indenização quando ocorrer violação a direito e ao mesmo tempo não ocorrer um dano ou efetivo prejuízo (ainda que tenha havido culpa ou dolo do agente), pois para que haja direito à reparação ou indenização devem ocorrer simultaneamente a violação ao direito e o dano (material ou moral). Violação Ação / Omissão Dano / Prejuízo • Dever legal • Dolo • Material • Não lesar a outrem • Culpa • Moral = RESPONSABILIDADE CIVIL nexo causal 11.1.3. ELEMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL Assim, podemos concluir que a responsabilidade civil se compõe dos seguintes elementos: a) ação ou omissão do agente; b) dolo ou culpa do agente; c) nexo causal e d) dano (material ou moral) a) ação ou omissão do agente – o agente poderá responder quando for autor direto do fato, ou por este derivar de ato próprio; ou de ato de terceiro que esteja sob sua guarda; ou de animais e coisas de sua propriedade ou posse. b) dolo ou culpa do agente – o dolo demonstra a intenção do agente em causar o dano, uma violação deliberada do dever de não lesar a outrem. Enquanto a culpa opera com a conduta não diligente, pouco cuidadosa, que por sua imprudência, negligência ou imperícia culmina no dano a outrem. A culpa pode ser classificada em: a) contratual; b) extracontratual; c) in cometendo (aquela que resulta de uma ação. Exemplo: motorista avança o sinal vermelho); d) in omitindo (aquela que resulta da negligência ou omissão. Exemplo: motorista deveria ter trocado as pastilhas de freio do automóvel); e) in vigilando (aquela que decorre do dever de vigilância. Exemplo: patrão quanto aos empregados, pais em relação aos filhos); f) in elegendo (aquela que 207 ATENÇÃO De acordo com o art. 942 do Código Civil, a responsabilidade por ato praticado por terceiro é de responsabilidade solidária. Equivale dizer que todas as pessoas que estejam envolvidas com a causa do evento danoso responderão solidariamente pelos prejuízos sofridos, podendo a vítima os eleger a teor do que dispõe ainda o art. 932 do mesmo diploma legal. ATENÇÃO A culpa aquiliana ou strictu sensu é a culpa extracontratual do agente; é aquela que se pauta em sua imprudência, negligência ou imperícia. A culpa contratual viola um dever jurídico prescrito no acordo entre as partes. O dano moral pode ser, ainda, direto, como se dá pela inscrição indevida do nome no cadastro de inadimplentes, uma ofensa aos direitos da personalidade. E o dano moral indireto ou ricochete, no qual se dá um desfalque patrimonial e por reflexo, atinge um valor da personalidade. Exemplo: o violino que pertencia ao seu bisavô e estava em sua companhia há mais de 30 anos foi roubado. O violino tem um valor material (patrimônio) e um valor inestimável (extrapatrimonial). O risco apresenta diversas modalidades: risco proveito, quando quem colhe os bônus suporta os ônus; risco profissional, que se relaciona ao trabalho; risco excepcional, atividades que envolvem grau elevado de perigo, e risco integral, quando o grau de perigo é tão alto que não admite exclusão da responsabilidade. resulta da escolha inadequada. Exemplo: empresa contrata motorista sem carteira de habilitação para o caminhão); e e) in custodiando (aquela que decorre da guarda e conservação de coisas ou bens. Exemplo: depositário, locatário etc.). c) nexo causal – trata-se da relação existente entre a causa (conduta do agente) e o efeito (dano a ser reparado). O nexo de causalidade demonstra quem deu causa ao dano, ao prejuízo sofrido injustamente, o qual deverá indenizar a vítima. No entanto, caso esteja presente uma das hipóteses abaixo, estará excluída a ilicitude do ato, por romperem o nexo de causalidade: I) culpa exclusiva da vítima; II) caso fortuito; e III) força maior. d) dano (material ou moral) – deverá haver prova de dano efetivo, seja patrimonial (material) ou extrapatrimonial (moral). Os danos materiais e morais possuem meios técnicos para sua quantificação (CC, arts. 944 a 954). A pretensão de reparação não subsistirá se não houver demonstração do prejuízo. Em regra, deverá a vítima provar a existência do dano e quantificá-lo para obter a reparação. Isto porque o pedido deve permitir a ampla defesa e o contraditório. Contudo, existem muitas hipóteses aceitas na jurisprudência em que se permite a aplicação da presunção de existência de dano moral (dano in re ipsa), como por exemplo decidiu o Superior Tribunal de Justiça nos casos de: a) inscrição indevida do nome no cadastro de inadimplentes; b) talões de cheques extraviados do Banco e utilizados por terceiros; c) atrasos de voo; d) impedimento do exercício da profissão por diploma sem reconhecimento no MEC; e) multas de trânsito lavradas por erro administrativo; e f) publicação do nome de médico que não pertence a convênio. 11.1.4. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA E RESPONSABILIDADE OBJETIVA Com fundamento na teoria clássica, a responsabilidade subjetiva é aquela que busca a prova da culpa do agente a fim de com ela lhe imputar o dever de indenizar a vítima. Na responsabilidade subjetiva, se não encontrada a culpa, em sentido amplo (dolo ou culpa) não responderá por perdas e danos causados o agente. São excludentes de responsabilidade civil subjetiva: I) legítima defesa; II) estado de necessidade; III) o exercício regular de um direito; IV) o estrito cumprimento do dever legal; V) o caso fortuito; e VI) a força maior. A responsabilidade objetiva não exige que se prove a culpa do agente; basta provar a existência do dano e do nexo causal. A admissibilidade da responsabilidade sem culpa se justifica em razão de estar prevista na lei (ex.: é responsabilidade objetiva dos pais (CC, art. 932, I) os atos praticados por seus filhos incapazes (CC, art. 933), ou por força do risco inerente à atividade do autor e a natureza do risco. A teoria subjetiva foi adotada como regra geral para imputação da responsabilidade em nosso Código Civil. 208 Direito Civil Para que seja possível imputar o dano ao agente, deverá ele possuir capacidade de discernimento. Então como fica a responsabilidade daqueles que não possuem condições mínimas para exercerem o discernimento? O responsável será aquele que os representar (pai, tutor, curador etc.); nestes casos, a responsabilidade objetiva decorre da previsão legal. E se o representado possuir patrimônio, este responderá, desde que se faça por equidade (não permitindo que prive o incapaz e as pessoas que dele dependerem para seu sustento). 11.1.5. ABUSO DE DIREITO O abuso de direito é um ato ilícito que se configura quando o titular do direito, ao exercê-lo, excede os limites impostos pelo ordenamento jurídico (ignorando a finalidade social do seu direito subjetivo). O agente se desvia dos fins sociais estabelecidos para harmonizarem-se ao ordenamento jurídico como um todo. Entre os casos mais típicos de abuso de direito, estão as questões envolvendo o direito de vizinhança, como, por exemplo, o uso indevido do direito de propriedade, que terminam por afetar a saúde, o sossego e a segurança alheios. E, ainda, demandar por dívida antes de vencida ou por dívida já paga. Na aplicação da lei, como já estudamos, o juiz deverá levar em conta os fins sociais e as exigências do bem comum aos quais ela se dirige. Considerando que um contrato de financiamento de veículo com 36 (trinta e seis) parcelas seja executado por inadimplemento, quando restavam apenas três, não parece que a ação judicial atenda à boa-fé e aos fins sociais. Neste caso, poderá o magistrado, com força no art. 5º da LINDB, aplicar a teoria do adimplemento substancial (Enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil ). Ao lado da teoria do abuso de direito, existem alguns desdobramentos: a) venire contra factum proprium; b)supressio, surrectio e tu quoque. a)Venire contra factum proprium – Fundamentando-se no princípio da solidariedade, esta teoria compreende que as partes durante a relação contratual admitem um comportamento que permite certa previsibilidade ou coerência habitual, provocando uma expectativa que não deve ser contrariada repentinamente, em razão da boa-fé e da necessária conduta leal e ética entre as partes. Para que se configure a conduta contraditória, a parte deverá desde o início da relação manter sempre determinada conduta (factum proprium). Por exemplo, um locador cujo locatário sempre atrasa o pagamento do aluguel, nunca cobrou multa, até que, quando faltavam dois meses para o término do contrato, passou a cobrá-las todas de uma vez. Aqui houve quebra do factum proprium identificado na conduta inicial de não ter cobrado as multas. b) Supressio, surrectio e tu quoque – A supressio é a supressão, a perda de determinada faculdade jurídica no decurso do tempo. Esta teoria compreende ser inadmissível o exercício de um direito por seu 209 ATENÇÃO Enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil: “361 – Arts. 421, 422 e 475. O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”. ATENÇÃO Enunciado 412 da V Jornada de Direito Civil. Art. 187: As diversas hipóteses de exercício inadmissível de uma situação jurídica subjetiva, tais como supressio, tu quoque, surrectio e venire contra factum proprium, são concreções da boa-fé objetiva. retardamento desleal. A omissão gera na outra parte uma expectativa legítima, fazendo nascer para ela um novo direito subjetivo. Na surrectio é o contrário, o surgimento de uma situação de vantagem para alguém em razão do não exercício por outrem de um determinado direito; admite a aquisição de um direito subjetivo. Desdobramento do princípio da boa-fé objetiva, ligado à regra de proibir um comportamento contraditório (venire contra factum proprium ), o tu quoque, será invocado para afastar o comportamento abusivo de uma das partes que buscaria surpreender a outra em situação de desvantagem (Enunciado 412 da V Jornada de Direito Civil). 210