APLICAÇÃO DA LEI 10.666/03 AO SEGURADO ESPECIAL Elsa Fernanda Reimbrecht Garcia especialista em direito previdenciário-ESMAFE/RS 1. nota introdutória As constantes alterações na legislação da Previdência Social, elaboradas com a finalidade de manter o equilíbrio atuarial, cada vez mais acumulam exigências para a concessão de benefícios. No caso, com a edição da lei nº 10.666/03, felizmente houve uma inversão nesta regra, no tocante aos requisitos à concessão de aposentadoria especial, por tempo de serviço e por idade, da qual surtiu efeitos positivos. É inegável evolução do pensamento jurídico neste aspecto, permitindo a adequação da lei ao entendimento consolidado pelos Tribunais, num exemplo de interação perfeita. A citada lei trouxe inúmeras modificações ao ordenamento, mas será sob a questão da aposentadoria por idade que resguardaremos os comentários e o estudo em geral, voltado à aplicabilidade do parágrafo §1º do art. 3º da lei nº 10.666/03 ao segurado especial. 2. novas regras da Lei nº 10.666/03 às aposentadorias por idade Até então, a lei nº 8213/91 estabelecia a necessidade do preenchimento de três requisitos básicos à contemplação da aposentadoria por idade, quais sejam, a carência, a idade mínima e a manutenção da qualidade de segurado, nos termos do art. 48 da citada lei. Sendo assim, para que o segurado obtivesse o benefício, era necessária a idade de 60 anos para mulher e 65 anos para homem, que cumprisse a carência de 180 contribuições – ressalvado os casos em que deverá ser respeitada a tabela de transição do art. 142 – sem que perdesse a qualidade de segurado, resguardando-a dentro dos moldes do art. 15 do diploma legal. Nestes termos, a Autarquia Federal negava administrativamente os requerimentos dos segurados que não possuíssem tal qualidade na data do requerimento, não permitindo que o contribuinte aproveitasse as contribuições pretéritas, vertidas antes da perda da qualidade de segurado, caso não preenchesse, após a nova filiação, um terço do total das contribuições exigidas, regra inserta no art. 24 da lei nº 8213/91. Igualmente exigia que o cumprimento de tais requisitos – carência e idade – se perfectibilizassem de forma concomitante. Todavia a matéria passou a comportar novas interpretações e com isso moveu uma enorme demanda de ações judiciais, sendo a questão amplamente discutida no judiciário, até consolidar entendimento jurisprudencial no sentido de que os requisitos – idade e carência – não necessariamente deveriam ser preenchidos concomitantemente, podendo serem cumpridos em fases diferentes da vida, mesmo ante a incidência da perda da qualidade de segurado. Tal foi a movimentação do judiciário acerca desta questão que a jurisprudência acabou por se tornar fonte geradora da norma infraconstitucional que acolheu o entendimento majoritário dos Tribunais. E foi através da MP 83, de 12.12.2002, convertida na lei nº 10666/03, que os segurados finalmente não tiveram mais que se socorrer do judiciário para obter o direito pretendido, qual seja, a aposentação. O parágrafo primeiro do art. 3º da norma é elucidativo e assegura que “na hipótese da aposentadoria por idade, a perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão desse benefício, desde que o segurado conte com, no mínimo, o tempo de contribuição correspondente ao exigido para efeito de carência na data do requerimento do benefício”. Logo é possível, inclusive administrativamente, a concessão do benefício mesmo que, ao completar o requisito etário, o segurado não mais tenha tal qualidade ou, ainda, que, após adquirida novamente tal qualidade, não tenha, ainda, vertido o número de contribuições necessário para a utilização das anteriores para fins de carência.1 Sendo assim, a norma do art. 3º possibilitou a todos que haviam perdido sua qualidade como segurado manter esta condição para fins de concessão de benefício de aposentadoria por tempo de contribuição, por idade e especial, muito embora o art. 102 da Lei de benefícios expressamente vedasse a concessão no caso de perda da qualidade de segurado, ao menos se o segurado cumprisse com 1/3 da carência exigida para poder computar o tempo total de contribuição. 3. O segurado especial no contexto legal 1 Bollmann, Vilian. A aposentadoria por idade e a lei 10666/03. revista do TRF4. 25.10.04. disponível em: www.revistadoutrina.trf4.gov.br/artigos/previdenciario/villian_bollmann03.htm Contudo, a norma inserta no citado artigo não limitou essa regra apenas às aposentadorias por idade a trabalhador urbano. O texto legal foi categórico em afirmar que a nova determinação se entendia às aposentadorias por idade em geral e em nenhum momento vedou a possibilidade do trabalhador rural se beneficiar com a prerrogativa, já que o legislador não excluiu tal categoria, pois se assim o quisesse teria afastado expressamente. Portanto, não há porque descartar o segurado especial de tal hipótese. Não obstante o art. 48 e 143 da Lei nº 8213/91, tenham assim disposto: Art. 143. “ trabalhador rural ora enquadrado como segurado obrigatório no Regime Geral de Previdência Social, na forma da alínea a dos incisos I e IV e nos incisos VI e VII do art. 11 desta lei, pode requerer aposentadoria por idade, no valor de 1 (um) salário mínimo, durante 15 (quinze) anos, contados a partir da data de vigência desta lei, desde que comprove o exercício de atividade rural, ainda que descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício, em número de meses idênticos à carência do referido benefício Art.48. § 2º Para os efeitos do disposto no parágrafo anterior, o trabalhador rural deve comprovar o efetivo exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício, por tempo igual ao número de meses de contribuição correspondente à carência do benefício pretendido. A instrução inserida nos artigos supracitados não representa óbice a aplicação do parágrafo 1º do art. 3º ao segurado especial. Assim como o legislador ordinário não revogou a disposição expressa no art. 102 da Lei nº 8213/91, o que não impediu a tranqüila aplicação da nova lei até então às aposentadorias urbanas, é perfeitamente aceitável que os artigos citados igualmente sejam desconsiderados de maneira a adequar a nova norma ao caso do trabalhador rural. O legislador, á época da publicação da Lei nº 8.213/91, apenas incluiu a necessidade de o trabalhador comprovar a atividade rural em período imediatamente anterior ao requerimento administrativo, com intuito de registrar a necessidade da manutenção da qualidade de segurado também aos benefícios de aposentadoria por idade ao segurado especial. No entanto, com a modificação inserida pela lei 10.666/03, tal dispositivo perdeu seu objeto, não podendo ser suscitado como fundamento contra a aplicação da norma em comento. Trata-se de aplicação equânime da norma, a qual não comportou limitação ou vedação quanto à adequação dos dispositivos da nova lei aos rurícolas. Portando, inexistem fundamentos plausíveis contra a difusão da norma entre os segurados especiais. Sendo assim, temos duas situações hipotéticas: primeiro uma segurada que trabalhou 12 anos na atividade urbana no período de 1965 a 1977 e após nunca mais verteu contribuições para o sistema. Em 2005 completou 60 anos de idade e obteve o beneficio de aposentadoria por idade, sendo beneficiada pela aplicação da lei 10.666/03, vez que não foi considerada a perda da qualidade de segurada. Em segundo, temos uma trabalhadora rural, que desde seus 8 anos de idade trabalha nas lides rurais, situação que perdurou por longos 33 anos, num período até 1985. Após, devido as dificuldades de permanência no campo e a escassez da produção, a segurada migra para o meio urbano e permanece na inatividade até 2005 completar 55 anos de idade. No entanto, ao requerer a aposentadoria por idade, esta lhe é negada, em função da perda da qualidade de segurada. Qual a diferença nos dois casos? Porque a primeira segurada que apenas laborou por 12 anos em uma atividade urbana qualquer, possui direito a aposentação e a segunda segurada que trabalhou por sofridos 33 anos na atividade rural, a qual se sabe ser penosa, principalmente para as mulheres que não são poupadas do serviço pesado e cumprem dupla jornada de trabalho, não obteve êxito? Realmente não há explicação. Repisa-se que inexiste vedação legal. A manutenção da qualidade de segurado deve ser desconsiderada em qualquer situação, seja segurada urbana ou rural, já que a lei não fez distinção. Para alguns a diferença está no caráter contributivo, devendo os direitos da segurada que verteu contribuições sobrepor aos direitos dos rurícolas que não contribuíram para os cofres da Previdência. Todavia, embora o §1º, do art. 3º da lei 10.666/03 tenha utilizado as expressões “tempo de contribuição e carência”, isso não presume a exigência de comprovação de contribuição, vez que tais expressões foram aplicadas com impropriedade em vários outros dispositivos da lei 8.213/91, eis que até então não foi regulamentada de forma eficaz a questão do tempo de contribuição inserido pela EC nº20/98. Assim, carece de aceitação tal argumento contrário a tese, ante o subjetivismo que contempla, eivado de suposições que apenas ferem os princípios constitucionalmente garantidos aos segurados. 4. Da aplicação do Principio da uniformidade e equivalência dos benefícios e sua interpretação Neste diapasão, percebe-se claramente a afronta ao princípio da uniformidade e equivalência dos benefícios, corroborado no art. 194, II da Constituição Federal e art. 2º da Lei nº 8213/91, o qual confere tratamento igual aos trabalhadores urbanos e rurais, “havendo assim, idênticos benefícios e serviços (uniformidade) para os mesmos eventos cobertos pelo sistema (equivalência). (..) Os critérios para concessão das prestações de seguridade social serão os mesmos; porém, tratando-se de previdência social, o valor de um beneficio pode ser diferenciado (...).”2 Partindo desta premissa, não é admissível a diferenciação das regras para a concessão dos benefícios a trabalhadores urbanos e rurais. O máximo que se permite, é a diferença em relação ao salário-de-beneficio, tendo em vista o cunho assistencial do sistema dos rurícolas. Caso contrário tem-se grave ofensa a isonomia do sistema previdenciário. 2 Lazzari, João Batista et alli. Manual de direito previdenciário. São Paulo: LTR, 2004. p. 87 A universalização pressupondo o ideal de uniformidade, aponta a necessidade de efetiva proteção da população rural.3 A lei 8.213/91 estendeu aos rurícolas a proteção previdenciária, permitindo que o segurado especial fizesse jus a aposentadoria por idade, independentemente de contribuição. Desta feita, a questão do tratamento igualitário deve ser sopesado perante as bases solidificadas pelos princípios da universalidade e uniformidade, entendimento já absorvido pelo STF na ADIn 1.664-0, a qual tratou com brilhantismo acerca da possibilidade de computar o tempo de serviço rural anterior a 24.07.1991 ao tempo de serviço urbano para fins de aposentadoria. Assim, abstrai-se da analise dos princípios aventados que a Previdência Social, como direito fundamental, deve ter uma configuração mínima de garantia da dignidade da pessoa humana, baseada nos princípios da universalidade, da uniformidade e da solidariedade na proteção dos segurados mais desvalidos, mediante a participação do Estado.4 Dessa forma, se temos como base o sistema constitucional, as normas infraconstitucionais devem seguir a risca os princípios da Carta Magna. Logo, a essência está no estudo da interpretação constitucional. O sistema normativo é composto da atuação também dos princípios. Portanto, estes são informadores do sistema – e não meramente integradores deste. Uma regra que destoa de um 3 Savaris, Jose Antonio. Traços elementares do sistema constitucional de seguridade sócia in curso de especialização de direito previdenciário. Curitiba: Juruá, 2005. p. 144. 4 Tavares, Marcelo Leonardo. Princípios constitucionais dos direitos fundamentais e o limite da reforma da previdência social. ob cit. p. 225. princípio, obviamente, não pode prevalecer.5 Neste seguimento, ao ignorar o direito trazido pela Lei 10.666/03 aos trabalhadores rurais, estar-se-ia cometendo grave ofensa aos princípios basilares da Previdência Social, o que torna ilegítimo qualquer ato ofensivo no sentido de subjugar a prerrogativa. Em outras palavras, se o dispositivo do parágrafo 1º do art. 3º for interpretado de maneira a beneficiar somente os trabalhadores urbanos, deverá ser considerado inconstitucional por patente afronta ao principio esculpido pelo art. 194 da CF/88. É inegável a mutação dos valores e conceitos jurídicos. Porém a interpretação das normas no tempo deverá ser realizada de maneira a manter a dignidade da pessoa humana e garantir o mínimo possível, o que é dever do Estado. Assim, as normas devem ser interpretadas diante a situação real do seu tempo, sendo que não podemos olvidar a diferenciação entre regras e princípios. A uniformidade dos sistemas urbano e rural em se tratando de principio, prevalece sobre qualquer regra que almeje o equilíbrio atuarial e financeiro tão evidenciado pelo Sistema Previdenciário. 5. conclusão Por fim o que se busca aqui não é a aplicação alternativa do direito. Pretende-se resgatar a observância dos princípios constitucionais e remontar a idéia de isonomia nas prestações previdenciárias dos regimes urbanos e rurais. O sistema não pode admitir leis que não se comprometam com a Lei maior, mas sim que possuam uma 5 Correia, Marcos Orione G. interpretação do direito da segurança social. ob cit. p. 255. base fundada nos princípios constitucionais. Portanto, a lei 10.666/03 deve cumprir com seu papel e oferecer uma cobertura igualitária a todos os segurados sem distinção, estendendo a aplicação do parágrafo 1º, do art. 3º da citada lei aos segurados especiais.