nova série #07 Revista de Psicanálise Quando o corpo faz suplência Ana Stela Sande - Salvador-BA Psicóloga, correspondente da Seção Bahia da EBP [email protected] gozo invasivo. Os entraves na relação com o outro, um simbólico precário, associado ao gozo que invade o corpo, levariam a pensar em psicose, mas a convocação do olhar do Outro para testemunhar e garantir sua Alessandra é uma jovem que tem dificuldade em ação suicida na espera de reconhecimento, faz mediar o gozo através do simbólico, utilizando o pensar numa neurose. A oscilação entre as estru- corpo para isso. Os modos que o gozo se mani- turas nos levou a escolha pela psicose ordinária. festa são variados. Nos momentos de angústia se A questão transferencial é mais um ponto que corta com lâminas de gilete, pisa propositalmente contribui para a escolha da psicose ordinária. Em em um terreno com pedregulhos por gostar da um primeiro momento, este sujeito aparenta ter sensação, ou então, depois do orgasmo é impul- encontrado na analista um Outro acolhedor, mas sionada a bater na parceira para demonstrar o “in- que não é permissivo nem goza olhando as en- teresse” que sente. Se masturba com frequência cenações. Numa das primeiras entrevistas fala da e utiliza “sou libidinosa” para descrever as excita- vontade de se cortar ali; a analista intervém com ções corporais. uma firme negativa dizendo: “aqui é lugar para fa- Queixa-se o tempo todo do outro. Diz-se não lar e não para atuar”. Esta intervenção provoca compreendida, o que torna suas relações conflitu- surpresa, evidenciada no questionamento do sig- osas e utiliza o significante “irritada” para exprimir nificado da palavra “atuar”. Quando a questão é o que experimenta quando suas demandas não devolvida, responde de imediato que atuar é “en- são atendidas. Fala de forma excitada e com de- ganar”, “mentir”. A partir daí descreve o atendi- talhes de tentativas de suicídio por enforcamento mento como o único momento que se sente bem, ou se projetando da janela; situações que sempre passando a demandar por telefone respostas ocorrem sob o olhar do Outro. Nas relações so- frente a angústia que a acomete. Será que po- ciais, quando não é o centro das atenções, en- demos afirmar que isto significa supor um saber contra uma forma de fazê-lo, armando uma cena sobre o sintoma? Será que podemos falar da ins- para ser vista. talação do Sujeito suposto Saber? O conflito marca também a relação com os pais. Alessandra exemplifica a dificuldade de um sujeito Quando criança, nos desentendimentos com a em lidar com a castração, fazendo existir no real mãe, esta a ameaçava de mandá-la morar com o do corpo, o que não pode simbolizar. Expressa pai, tornando a figura paterna agressiva e amea- isso ao se definir pelo significante “intensa”, ao jo- çadora. Fala dele como alguém que tem interes- gar o seu corpo de encontro ao corpo do outro e se por mulheres mais novas e queixa-se de cari- agredi-lo fisicamente por não encontrar palavras nhos que teriam conotação sexual. Dorme com para dizer o que sente. Nesses momentos de an- a mãe quase todas as noites e se “irrita” quando gústia também marca o corpo fazendo cena para presencia demonstrações de afeto desta, com o o Outro, substituindo assim, o dizer pela ação. padrasto ou com a irmã. Neste caso, o romance No Seminário A Angustia, Lacan faz uma distin- familiar, mostra a fragilidade da metáfora paterna ção entre passagem ao ato e acting out. Na pas- e a consequente dificuldade que tem de barrar o sagem ao ato, o sujeito se precipita para fora da Publicação da Escola Brasileira de Psicanálise - Bahia - Ano 1 1 #07 cena na tentativa de manter o seu status de sujei- e como é “intensa” teve a sensação de estar lá, to, pois está ameaçado pela presença do Outro. completando perguntou o que lhe parece ser rea- No acting out o sujeito está orientado para o Ou- lidade: reviver uma situação do passado ou estar tro, é a demonstração do desejo desconhecido, falando ao telefone? Em seguida afirmou que ela que pede interpretação. ia ficar bem. A utilização do significante “intensa” Neste caso, o uso que o sujeito faz do corpo e dá sentido à fragmentação corporal barrando o o que demanda ao convocar o olhar do Outro gozo que a invade, o que lhe permite acalmar-se. trazem questões importantes. Em alguns mo- Em seu texto “Interpretar a psicose no quotidia- mentos, o outro aparece como ameaçador, com no”, Eric Leaurent nos diz que este é o primeiro a intensão de lhe destruir, sobretudo quando ten- passo para o trabalho de tradução que visa obter ta instalar limite. Por outro lado convoca o Outro uma estabilização, uma pontuação, fazendo calar para assegurar o lugar de desejante, na busca por o gozo e separando os significantes que, neste garantir a posição de sujeito. caso, estão colados ao corpo. Ao escutar Alessandra o caminho da psicose or- Ao buscar tratamento, esta paciente tem um en- dinária, enquanto uma linha de investigação dos contro com uma analista que escuta e interpreta. fenômenos aqui apresentados, pareceu ser o Aos poucos, passa de marcar o corpo com gilete, mais adequado. A denominação psicose ordinária na tentativa de localizar o gozo e aliviar a angustia, surgiu quando se pesquisava casos clínicos onde para o uso de palavras, o que lhe permite simboli- não é possível determinar de forma clara o mo- zar, ou seja, passar da ação ao dizer. mento de desencadeamento. Passou-se então a Diante da frequência em que ocorrem fenômenos ler a psicose não apenas a partir do significante corporais, fez-se uma escolha de trabalhar, na Nome-do-Pai, mas a partir do par S1-a. Esta mu- transferência, pelo viés da psicose. Pensou-se ser dança articulou o significante ao gozo e permitiu a atitude mais prudente para o momento das en- incluir as pluralizações do significante mestre que trevistas preliminares. Esta estratégia teve efeito, funcionam sem a ajuda dos discursos estabeleci- permitindo uma estabilização. dos, ou seja, desarticulados do S2, o que Miller, na conversação de Arcachon, chamou de desli- Referências Bibliográficas gamento. 1 – Lacan, J. O Seminário, livro 10: A angustia As experiências que Alessandra descreve fazem (1962-1963). Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Ja- pensar em possíveis desligamentos. Algumas ve- neiro: J. Zahar, 2005 zes tem a sensação de estar em outro lugar ou 2 – Miller, J.A. “A Conversação” in Os casos raros, outro tempo, entretanto, não perde o juízo criti- inclassificáveis, da clínica psicanalítica: a conver- co, diz estar “aqui e lá ao mesmo tempo”. Não sação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freu- deixa de ver as pessoas ao seu lado ou o lugar diana Brasileira, 1998 onde está. Em um desses momentos, liga para 3 – Leaurent, E. “Interpretar a psicose no quotidia- a analista relatando: ouviu uma música que a fez no” in Entrevários. São Paulo: Centro Lacaniano pensar no passado e começou a experimentar a de Investigação da Ansiedade, abr. 2008 sensação de que estava lá. Disse estar se sentindo estranha, não sabendo o que era realidade e assustada pergunta se ia melhorar. A analista então pontua que a música a fez lembrar o passado Publicação da Escola Brasileira de Psicanálise - Bahia - Ano 1 2 #07 Publicação da Escola Brasileira de Psicanálise - Bahia - Ano 1 3