Borderline ou Psicose Ordinária: Querelas ou Avizinhamento? Autor

Propaganda
Borderline ou Psicose Ordinária:
Querelas ou Avizinhamento?
Autor
Reginaldo Cavalcanti Ferraz Junior
Curso de Psicologia
Universidade Estácio de Sá
Unidade Nova Friburgo
Resenhista: Raymundo Reis Neto
Uma das discussões que circulam entre os psicanalistas hoje diz respeito ao conceito
de psicose ordinária, proposto pelo psicanalista francês Jacques-Alain Miller, seguidor de
Lacan, para designar pacientes que, embora não manifestem os sintomas “extraordinários”
típicos da psicoses mais conhecidas, seriam psicóticos.
Para a psiquiatria, em sentido amplo – vago, portanto – psicose e neurose se
diferenciam pelo fato de, na primeira, haver perda de realidade e ausência de reconhecimento
da doença, enquanto na segunda aparece o conflito subjetivo, sem perda da realidade.
Enquanto isso, para a psicanálise, desde Freud, é diferente. O que vale não é a
“aparência externa”, mas sim a psicodinâmica. Por exemplo, é possível haver perda da
realidade na neurose e reconhecimento da doença na psicose. É possível ler em Freud
indicações de que na psicose prevalece certo tipo de mecanismo de defesa, enquanto na
neurose outro.
O psicanalista francês Jacques Lacan entende que psicose e neurose são estruturas
clínicas. Uma vez neurótico, sempre neurótico, o mesmo valendo para a psicose. São
estruturas não intercambiáveis. Não ficamos às vezes psicóticos, às vezes neuróticos, ao longo
de nossas vidas individuais.
Enquanto na infância observamos certa plasticidade nos mecanismos de defesa – a
criança somatiza, faz rituais obsessivos, conversa com amigos imaginários, experimenta as
fobias mais diversas e outros – a partir da adolescência, é um desses caminhos que
predominará, apesar de alguma combinação desses elementos também poder manifestar-se. A
partir daí, digamos assim, o sujeito não muda mais o seu jeito de enlouquecer. Seja a loucura
neurótica ou psicótica. A normalidade não livra ninguém disso, pois, como bem se sabe, de
perto ninguém é normal.
Com o conceito de psicose ordinária, Miller parece querer sustentar a visão das
estruturas clínicas, sem dar o braço a torcer e reconhecer que existem pacientes que ficam “na
fronteira” entre psicose e neurose, portanto, sem estar nem no campo da primeira, nem no
Professor Doutor, da Universidade Estácio de Sá – Campus Nova Friburgo
1
Volume 2º. – nº 02 – 2º. semestre 2012
campo da segunda, como já apontaram autores da escola inglesa desde meados do século 20.
Miller estaria, assim, reconhecendo que existem pacientes difíceis de diagnosticar, mas ainda
assim sustentando a visão estrutural.
No artigo Borderline ou Psicose Ordinária - Querelas ou Avizinhamento?, apresentado
como Trabalho de Conclusão do Curso de Psicologia em 2011, Reginaldo Ferraz traz essa
discussão, o que é sempre bem vindo em uma área na qual as teorias quase nunca se apóiam
na frieza dos números. O faz com escrita extremamente elegante e tendendo a criticar
conceituações rígidas que operem reduções muito ousadas face à infinita diversidade da
experiência. Com isso, cutuca o preciosismo de certos lacanianos, entre eles Miller, em favor
de uma posição mais tolerante para com a diversidade de leituras possíveis face aos
fenômenos diante dos quais o analista se defronta.
Verdades eternas x relativismo / pragmatismo
O século 20 foi pródigo na oferta de estudos genealógicos que procuravam mostrar
como nasciam, com data e endereço bem definidos, certas “verdades”. Foi como o
renascimento de uma espécie de maiêutica generalizada no campo do pensamento humano,
tanto na filosofia quanto nas ciências. Tais estudos procuravam, mais do que mostrar a
verdade sobre isso ou aquilo, mostrar o quanto as verdades supostas são sempre construções
humanas, filhas legítimas de seu contexto histórico. Em epistemologia, tal posição é em geral
reconhecida como relativista ou pragmática, ainda que seja importante conhecer suas
variantes.
Tal como Sócrates, os autores desses estudos pareciam vangloriar-se do único saber
possível: “só sei que nada sei”. Como se sabe, através de seu método maiêutico, que fazia o
“parto da verdade”, Sócrates fazia as pessoas perceberem o quanto apenas pensavam saber
alguma coisa, quando, na verdade, não sabiam nada.
Mas, é preciso dizer também que Sócrates tornou-se um marco temporal – há os présocráticos e os outros – na história da filosofia, exatamente por apontar para a importancia do
conceito. Sócrates não se satisfazia com exemplos: queria o conceito, o qual não se atinge com
as sensibilidades, mas sim com o pensamento (com a teoria). Ao fazer as pessoas se darem
conta de sua ignorância, pretendia torná-las mais aptas à busca da verdade, que está no
conceito.
Os estudos genealógicos, desconstrutivistas, que grassaram no século 20, pretendiam
algo semelhante, porém, apenas na primeira parte. Desconstruindo verdades muito firmemente
estabelecidas sobre a natureza eterna e imutável das coisas, pretendiam libertar o pensamento
da opressão dos universalismos, abrindo espaço para a produção do novo no campo do
pensamento. Mas, não valorizaram o conceito, tal como Sócrates; ao contrário, criticaram o
fanatismo do conceito, em favor de verdades datadas, verdadeiras enquanto úteis e sempre
dependentes de um “ponto de vista”.
22
Volume 2º. – nº 02 – 2º. semestre 2012
A responsabilidade do intelectual tornou-se, nessa perspectiva, a produção de novas
metáforas que pudessem se tornar úteis para os interesses humanos e não a revelação de
verdades eternas sobre a essência das coisas.
As ciências humanas tornaram-se o prato cheio desses estudos. Por exemplo, Deleuze e
Guatarri, com seu Anti-Édipo, procuraram incansavelmente mostrar como as pretensões de
Freud em universalizar os complexos de Édipo e castração eram falsas e que a psicanálise,
com suas verdades, não passava de uma das multi-máscaras da ideologia burguesa e que só
poderia ter sido criada por alguém nascido e crescido no Universo da Viena da virada do
século 19. Foucault, por sua vez, com sua História da Loucura, procurou mostrar como não
existe a essência da loucura e como a doença mental não é “descoberta” pela ciência
psiquiátrica, mas sim que nasce junto com esta, assim como com aquele que curará em seu
nome, o psiquiatra.
A discussão feita por Reginaldo não deixa de remeter ao seguinte: até que ponto
podemos dizer que algo é a mesma coisa, ainda que diferente? Por que casos clínicos tão
distintos podem ser alocados como pertencendo a uma mesma classe? Até que ponto devemos
confiar em conceitos que parecem purificar demais uma experiência jamais tão pura?
A leitura que Lacan fez de Freud é pródiga em tentativas de mostrar a essência do
pensamento freudiano. Seu lema – “retorno a Freud” – seguia nessa direção: retornar à
verdade trazida por Freud. Miller, eminente lacaniano, segue na mesma linha. Sempre
defendeu a leitura estrutural, que situa na experiência analítica três estruturas clínicas: neurose,
psicose e perversão. Uma vez feito o diagnóstico estrutural, orienta-se o tratamento sabendo-se
que não há passagem de uma estrutura a outra.
Trata-se de uma leitura instigante, compatível com vários elementos que se encontram
na obra de Freud, mas que requer tolerância para com essa firmeza na busca do conceito, uma
vez que este é aquilo que permite arrolar uma série de casos individuais em uma mesma
classe.
Psicose ordinária e os casos fronteiriços (borderlines)
Como se sabe, no próprio campo teórico constituído pela práxis dos psicanalistas
existem divergências. O trabalho de Reginaldo abraça justamente uma das tensões que
percorre o campo do diagnóstico em psicanálise. Trata-se da discussão atual em torno da
criação da categoria de psicoses ordinárias por Jaques Alain Miller, psicanalista, genro de
Lacan e responsável pelo estabelecimento dos seminários do mestre francês e pela edição de
seus escritos.
As psicoses ordinárias seriam diferentes das psicoses extraordinárias, aquelas que já
eram amplamente reconhecidas desde muito tempo. Nada de delírio, de desintegração da fala e
do corpo, de alucinações e automatismos mentais. Ou seja, uma pessoa aparentemente
“normal” e que, não obstante, seria psicótica. Mas, sem os sintomas extraordinários, o que
tornaria essas pessoas psicóticas?
33
Volume 2º. – nº 02 – 2º. semestre 2012
Tomada em si mesma, essa discussão já dá o que falar. Porém, a coisa ganha ares de
novela quando se sabe que, durante muito tempo, Miller e os lacanianos, com base no ensino
de Lacan, ou pelo menos em um dos momentos desse ensino, criticaram o uso da noção de
borderline por analistas da escola inglesa. Ora, borderline seria justamente aquele paciente que
não se sabe direito se é ou não psicótico, ou seja, que está em uma borda entre a neurose e a
psicose.
Por sua vez, Melanie Klein, talvez o principal expoente da escola inglesa de
psicanálise, ainda que muitos tenham sido seus nomes importantes, defendia o conceito de
posição e não de estrutura. Conforme o conceito de posição, pode-se estar em uma posição e
passar a outra. É o caso dos conceitos de posição esquizo-paranóide e depressiva, criados pela
psicanalista.
Então, depois de ter faturado muito tempo em cima da idéia de estruturas clínicas
incomunicáveis, criticando os ingleses por criarem uma categoria diagnóstica para se livrarem
da dificuldade de estabelecer precisamente o diagnóstico, Miller agora faria entrar em cena um
conceito para lá de ambíguo, pelo menos tanto quanto o de borderline.
O psicótico ordinário seria aquele paciente que não parece psicótico nem neurótico,
mas que a fina observação clínica permitiria enxergar o ponto decisivo que faz brilhar o
conceito de psicose, oculto àqueles pouco dispostos ao trabalho árduo de encontrar o mesmo
que subjaz ao diverso.
É nesse ponto que Reginaldo intervém para propor, com Freud: “Cinza é toda teoria,
caro amigo, e eternamente verde a árvore da vida”.
44
Volume 2º. – nº 02 – 2º. semestre 2012
Download