1 36º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT 29 POLITICAS PUBLICAS Mudanças na política de previdência social na Argentina, Brasil e Chile em contexto de democratização e inserção na economia global Maria Rita Loureiro(*) (*) Professora de Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo 2 Mudanças na política de previdência social na Argentina, Brasil e Chile em contexto de democratização e inserção na economia global Maria Rita Loureiro Introdução O objetivo desse trabalho é analisar as mudanças ocorridas nos sistemas de previdência social à luz dos processos de democratização e de inserção desses países na economia global. É tal enfoque que particulariza a presente análise, diferenciando-a da literatura mais freqüente sobre reformas previdenciárias na América Latina A vulnerabilidade trazida pela liberalização econômica tem sido experimentada em vários países da América Latina, simultaneamente ao processo de democratização, situação essa que os leva a enfrentar um duplo desafio. De um lado, a inserção ao mercado mundial torna a estabilidade econômica interna dependente cada vez mais dos fluxos de investimentos internacionais de curto prazo (que se pautam pelas condições de credibilidade geradas por políticas fiscais mais austeras e pelas elevadas taxas de juros pagos pelos títulos da dívida pública). De outro lado, a democratização abre espaços para que os partidos e grupos organizados na sociedade pressionem por medidas fiscais e monetárias mais flexíveis, voltadas à promoção do crescimento econômico, à expansão do emprego e à redução da pobreza. É a vivência deste duplo desafio que gerou a denominação de “democracias emergentes de mercado” (Whitehead, 2002). Assim, interessa examinar como cada país tem enfrentado esse desafio, ajustando-se à globalização mediante reformas efetuadas não só na área econômica, especialmente em seu sistema financeiro e nas regras de comércio externo, mas igualmente em áreas sociais aí conectadas, como a previdência social, que depende da situação fiscal e do nível de poupança pública ou privada (que sustentam seus fundos previdenciários). Em outras palavras, as mudanças nos modelos de previdência social na Argentina, Brasil e Chile são analisadas aqui como resultantes da inserção desses países na economia global e das mudanças ocorridas nesse processo, tomando como referência histórica os seguintes momentos: crise da dívida externa de 1982, como ponto inicial, a década de 1990, como período em que os países fizerem diferentes tipos de reformas em suas estruturas econômicas internas para se ajustarem à nova era de capital globalizado, sob a hegemonia do ideário do neoliberal e, por fim, o período mais recente, a partir de 3 meados dos anos 2000 quando se dá um novo ponto de inflexão nesse cenário. Os fatores domésticos tais como natureza do regime e do sistema político, os diferentes arranjos institucionais mais ou menos concentradores de poder no Executivo etc. são analisados aqui como filtros através dos quais os ajustes exigidos para aquela inserção se processam e são decantados em cada país, resultando, assim, em diferentes timings e diferentes graus de intensidade de reformas (mais ou menos tardias e mais ou menos radicais). Nesse sentido, a inserção de cada país à economia global se dá de diferentes formas, devendo-se falar em variedades de democracias emergentes de mercado1. A escolha da previdência social justifica-se ainda porque ela foi objeto de significativas mudanças nas últimas décadas na América Latina. Como uma farta literatura já analisou, além do primeiro experimento reformista ocorrido no Chile sob a ditadura de Pinochet, na década de 1980, houve iniciativas semelhantes em grande parte dos países nos anos 1990, substituindo os antigos sistemas públicos de repartição por modelos, mais ou menos privatizados de capitalização individual (Mesa-Lago, 1997; 2007; Madrid, 2005). Mais recentemente, novas alterações foram processadas nos sistemas previdenciários dos três países aqui estudados, configurando um quadro de “reforma da reforma” (Draibe2010). Destaca-se, porém, que tais mudanças foram produzidas menos por razões intrínsecas ao próprio sistema previdenciário, embora a retórica da reforma tomasse como base indicadores de falência do sistema então vigente, tanto por razões atuariais quanto demográficas, relacionadas ao envelhecimento da população. Como o importante especialista na área, Esping Andersen (2003) já indicou, as reformas dos anos 1990 não se orientaram pela égide aperfeiçoamento do Welfare State ou orientadas pela expansão dos direitos. Ao contrário, pautaram-se pela lógica fiscal e financeira de redução dos gastos públicos, formação de poupança interna e de criação de mercado de capitais, ou seja, por necessidades decorrentes da inserção dos países na economia global. Do ponto de vista teórico, o argumento aqui desenvolvido é que cada modelo de reforma exprime formas específicas pelas quais os governos desses países na América Latina construíram seu processo de inserção na economia global. Ele se sustenta nas 1 A pesquisa que serviu de base a esse trabalho foi financiada pela FAPESP, através de projeto temático intitulado “Variedades de democracias emergentes de mercado: entre credibilidade econômica e legitimidade política”, e no qual foram examinadas, além da previdência social, reformas na área monetária e financeira, sob responsabilidade de Lourdes Sola e Moisés Marques e na área de comercial, por Matthew Taylor. 4 discussões sobre o tema da globalização, efetuadas por Saskia Sassen (2010). Ao enfrentar os desafios teóricos e metodológicos postos às ciências sociais pelos processos transnacionais, aquela socióloga afirma que a globalização deve ser entendida “não apenas em termos de interdependência e instituições globais, mas também como algo que habita o nacional” (pg.9). Em outras palavras, a globalização não é algo dado e exterior ao Estado Nacional e à suas instituições, mas construído historicamente por cada país, por processos que embora globais, não ocorrem necessariamente no nível global e sim em cenários nacionais, ou até subnacionais. Para nosso estudo sobre as mudanças na previdência social dos três países, busca-se então observar as variedades de diversas formas de construção nacional da globalização ou da inserção do país na economia global. Serão privilegiados fatores como o timing da democratização em relação às reformas, o ritmo adotado por cada país no processo de realização das reformas estruturais para se adequar à inserção internacional, o grau de adoção do ideário neoliberal pelas elites locais, além dos fatores institucionais internos que puderam facilitar ou dificultar o processo reformista. Do ponto de vista metodológico, a estratégia para compreender melhor tal dinâmica entre política e economia gerada pela inserção das novas democracias na economia global foi o recuo no tempo, estendendo a análise para o período anterior à crise da dívida externa de 1982 e também abrangendo as transformações mais recentes posteriores à crise financeira internacional desencadeada a partir de 2007/08. O ponto de inflexão é, portanto, a crise de 1982, que demarca o início do que se poderia chamar de história contemporânea de vários países da América Latina. 2 Alguns traços caracterizam um ponto de partida histórico comum aos três países aqui selecionados para a análise comparativa. Além do passado colonial e dos processos de libertação nacional que não romperam com os padrões de dependência econômica e com o elitismo político, Argentina, Brasil e Chile construíram, a partir dos anos 1930, o chamado Estado nacional desenvolvimentista, compartilhando no mesmo período dinâmicas de crescimento econômico, modernização e urbanização da sociedade e incorporação das classes trabalhadoras ao sistema político. O Estado foi o núcleo organizador da sociedade, funcionando, de um lado, como alavanca do processo de 2 “A crise enfraqueceu a ordem política e econômica dessas sociedades e inviabilizou estruturalmente que elas continuassem se desenvolvendo no padrão de relação entre o Estado, sociedade e economia imperante desde os anos 30... (Ela) fraturou a matriz estado-cêntrica de alguns dos principais países latino-americanos, corroendo as bases materiais de operação e intervenção do Estado” (Sallum Jr, 2004:10-11). 5 construção de um capitalismo industrial nacionalmente integrado, mas dependente do capital externo, através da estratégia de substituição das exportações (com políticas protecionistas e subsídios a certos grupos privados) (Sallum Jr. 2003; Ferrer, 2006). O papel organizatório do Estado exprimiu-se ainda no controle da classe trabalhadora através de sindicatos atrelados ao aparato estatal e de políticas sociais que atendiam, ainda que moderadamente, suas demandas (Santos,1979). Também o sistema previdenciário implantando inicialmente nesses três países apresenta muitos pontos comuns, como se indicará mais adiante. A despeito destes pontos de partida comuns, a crise da dívida externa de 1982 e a forma com que cada país a enfrentou produzirá diferenciações importantes em suas trajetórias. Ou seja, a forma como cada um adotou o receituário liberal como solução para os impactos da crise configurará modelos de governo e, no que interessa analisar aqui, modelos de previdência também bastante distintos. Como é bem conhecida, a crise de 1982, ao cortar os fluxos de financiamento externo, enfraqueceu a ordem econômica e política daquelas sociedades e minou estruturalmente as possibilidades de continuarem seu desenvolvimento. Ao fraturar o modelo anterior, corroendo as bases materiais de operação e intervenção do Estado, a crise da dívida externa e a posterior inserção destes países na economia globalizada deixaram pouco espaço para as elites governamentais reconstituírem suas economias (Sallum Jr. 2004; Ferrer, 2006). Confrontando as diferenças de impactos da crise nestes países, observa-se no aspecto econômico que, na Argentina, ela deu continuidade ao processo de desindustrialização iniciado na década de 1970. Neste período, configurou-se um profundo processo de regressão econômica que deixou para trás grande parte da complexidade e diversificação do ciclo substitutivo daquele país. As medidas de abertura comercial e apreciação cambial acentuaram o quadro recessivo. No Brasil, mesmo com os baixos índices de crescimento econômico (que levaram à definição dos anos 80 como década perdida), a estrutura industrial do país foi conservada Ou seja, o processo de reestruturação adquiriu um estilo defensivo marcado pela tendência a preservar a estrutura produtiva herdada da industrialização substitutiva de importações (Bielschowsky e Stumpo,1995; Palermo, 1998). No Chile, os impactos econômicos da crise foram também devastadores: o PIB chegou a cair 15% em 1982, conforme dados de seu Banco Central. Do ponto de vista político, a crise da dívida externa não abalou a ditadura chilena, enquanto na Argentina e no Brasil, os regimes autoritários não resistiram à 6 deterioração da situação econômica dos anos 80. O fracasso militar na guerra das Malvinas e na gestão da economia marcou a transição e atuou a favor da democracia na Argentina: esta foi apresentada ao mesmo tempo como garantia da ordem, distante das anteriores frustrações, e fundadora de uma nova era. A promessa de “cem anos de democracia” só podia comover uma cidadania farta dos militares. No consenso estabelecido em 1983, o jogo democrático adquire enorme valor, os cidadãos e as elites políticas expressam enorme fé em seu poder regenerativo, ao mesmo tempo em que o entusiasmo com o Estado de Direito, e o governo da lei, a tolerância às diferenças e o respeito pelos procedimentos institucionais parecem estender-se como um novo credo civil (Novaro, 2006:152-3). Também no Brasil, a democracia aparece como solução para a situação de estagnação econômica, de inflação elevada e de incapacidade dos governos militares de alcançarem saídas para o país. Como já se indicou, o modelo de substituição de importações havia se esgotado ao mesmo tempo em que o regime político entrava em colapso (Sallum Jr., 2004). 1. Os sistemas previdenciários no período anterior à crise da dívida externa de 1982 Argentina, Brasil e Chile compõem o grupo de países pioneiros na implantação de sistemas de previdência social, os quais foram, assim, denominados de mais desenvolvidos ou maduros3. Além de se assemelharam do ponto de vista da estrutura administrativa - porque geridos por múltiplas instituições, em geral, dotadas de autonomia legislativa e financeira, sempre com o apoio de recursos públicos - os três sistemas também eram estratificados por grupos ocupacionais e tipos de valores de benefícios. Tal estratificação exprimia a forma pela qual os grupos mais poderosos da classe trabalhadora foram gradualmente beneficiados. O tipo de Estado de bem estar social adotado por esses três países foi definido como modelo conservador-corporativo (ou ainda meritocrático-particularista) (Ascoli, 1984; Esping-Andersen,1980). Esse modelo repousa na idéia de que as pessoas devem suprir suas próprias necessidades, a partir de seu trabalho, com base em seu mérito, desempenho ocupacional ou produtividade. A política social deve apenas complementar 3 Enfatizando o momento de criação da previdência social, Mesa-Lago diferencia três grupos de países na América Latina: os pioneiros que iniciaram sistemas já nas primeiras décadas do século XX; os intermediários que os criaram nas décadas de 1940, sob a influência do sistema inglês e da Organização Internacional do Trabalho (OIT); e os retardatários que só estabeleceram regimes previdenciários nos anos 1950-60((Mesa- Lago, 1991). 7 e corrigir as distorções eventuais do mercado. Em outras palavras, os benefícios da previdência estão vinculados ao emprego, sendo um sistema corporativo e estratificado no qual tendem a coexistir distintos sistemas, criados pelo Estado, para segmentos específicos da classe trabalhadora (Draibe, 1993).4 A expansão dos benefícios previdenciários pela via da pressão de grupos mais poderosos e de ações populistas e corporativistas do Estado alcançou seu ápice nos anos 1950-60, período em que o crescimento econômico fundado na substituição de importações era financiado com pouca restrição orçamentária e com crescimento da dívida externa (Hujo,1999). As nuances entre os três países começam a aparecer quando se observa a forma política pela qual os trabalhadores foram incorporados aos benefícios previdenciários. Distinguindo três tipos de incorporação - autônoma, por meio de confrontação e por cooptação, Abranches (1982) afirma que enquanto a Argentina exemplifica um caso de incorporação pela via do confronto, o Chile realiza um tipo misto que essencialmente combina confrontação e cooptação. O Brasil é o caso limite oposto que incorpora os trabalhadores via cooptação, sem confronto. Na Argentina, o modelo mais geral de incorporação por confrontação assume um caráter de cooptação por parceria sob Perón, na medida em que se assenta na relação entre política social e controle corporativo. Esse modelo gerava políticas sociais abrangentes, mas voltadas, como privilégios, apenas para os segmentos dos trabalhadores mais fortes do ponto de vista da organização sindical, em troca do controle estatal: o fato de pertencer a uma organização sindical era a via de acesso ao direito de cobertura pública. Com a queda de Perón, o padrão de relação dos sindicatos com o Estado entra em rota de confrontação, frustrando não só as tentativas de cooptação, mas também os ensaios de reversão liberal sob a ditadura dos anos 1970. Até as reformas dos anos 1990, havia três Caixas previdenciárias no país: a dos trabalhadores dependentes do setor privado, a dos dependentes do Estado e a dos autônomos, sendo que permaneciam em sistemas especiais as Forças Armadas, os policiais, os magistrados e funcionários provinciais e municipais. A despeito da existência dessa segmentação, a ampla expansão dos benefícios sociais aos diferentes 4 Esse modelo é bastante distinto do modelo redistributivo, vigorante nas sociais democracias européias, voltado para a produção e distribuição de bens e serviços públicos fora do mercado, garantidos a todos por critérios universalistas e, portanto, como direitos sociais. Por essas razões, costuma-se denominar o modelo social democrata como “seguridade social”, diferenciando-o do conceito restrito de “seguro social” (Draibe,1993: 7). Do ponto de vista técnico, os regimes previdenciários adotados na maioria dos países latino-americanos são de repartição – os mais difundidos no mundo - porque financiados por contribuições de trabalhadores, patrões e Estado (Kay, 2003:102). 8 grupos, permitiu à Argentina ter um sistema quase universal, com tendências de homogeneização e universalização. Com isso, configurou-se ai um dos modelos menos desiguais da região, tanto em termos de financiamento quanto em termos de benefícios e cobertura. (Draibe, op.cit:11). No Chile, o modelo de incorporação dos trabalhadores combina confrontação e cooptação. De sua criação no início do século XX até 1970, o sistema vai da modalidade de cooptação a uma limitada incorporação autônoma. Em seguida, passa à confrontação e finalmente à exclusão com a ditadura de Pinochet (Abranches, op.cit). Ao longo de todo o período, a expansão dos programas sociais é marcada pelas tentativas de cooptação dos trabalhadores que, entretanto, resistiram, especialmente nos momentos de polarização política. Associando tentativas de cooptação com repressão e distribuição de privilégios, o sistema chileno forjou divisões entre segmentos de empregados e operários e combinou trajetória de expansão vertical – criação de novos benefícios – com expansão horizontal, massificando vantagens. Antes da reforma efetuada pela ditadura, havia 35 Caixas de Previdência, com diferenciados planos de benefícios, que cobriam aproximadamente 75% da força de trabalho, excluindo os trabalhadores rurais e o setor informal. Todas as tentativas de unificação e homogeneização do sistema, ensaiadas pela social democracia e pelos socialistas nas décadas de 1950 e 60 foram frustradas (Draibe, op.cit.). O Brasil, por sua vez, organizou a previdência social fundamentalmente via cooptação, ou seja, como privilégio legal e forma de controle corporativo. Após as primeiras legislações e organizações dos anos 1920, o sistema se expande com a incorporação dos trabalhadores, segundo o perfil ocupacional e mediante forte controle burocrático estatal dos sindicatos. O padrão de cooptação baseava-se em relações clientelistas e de trocas de favores políticos entre sindicatos, Ministério do Trabalho, institutos de aposentadorias e pensões e ainda o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Essa rede de interesses impediu, durante todo o período da chamada democracia populista de 1946-64, a realização de qualquer projeto de unificação administrativa e financeira do sistema e a universalização dos benefícios. A unificação e universalização só ocorrerão em 1966-67, sob o governo militar que cria o Instituto Nacional de Previdência Social (INAMPS), substituindo as antigas Caixas e estendendo os benefícios aos trabalhadores rurais, em 1971 (com o FUNRURAL), e aos empregados domésticos, em 1972 (Malloy, 1979; Cohn,1981). Até inícios da década dos 80, o 9 sistema cobria mais da metade da força de trabalho e pouco mais de um terço da população total do país. 2. As reformas liberais: timing, marco institucional e difusão do ideário 2.a. Marco institucional Enquanto no Brasil e na Argentina, as constituições democráticas foram desenhadas sem influência significativa dos governos militares, no Chile, o legado ditatorial foi intenso e teve continuidade durante mais de duas décadas, só se modificando parcialmente em meados dos anos 2000. Quebrando a Constituição anterior, a junta militar chilena preparou uma nova carta que buscava perpetuar o poder moderador das Forças Armadas, além de “corrigir” tendências à fragmentação do sistema político que supostamente eram responsáveis pelo caos que marcou o país antes de 1973 A Constituição aprovada em 1980, em plebiscito controlado pelo regime, garantiu que Pinochet se mantivesse no poder, sem ter que renunciar como comandante em chefe das Forças Armadas; criou o posto de senador vitalício, estabeleceu um sistema eleitoral que impôs a cooperação entre Executivo e Legislativo, privilegiou estratégias de coalizão entre os partidos, além de proteger a direita da perda absoluta do poder (Anastásia, Melo e Santos, 2004). Com a presença de senadores vitalícios, os governos eleitos no período democrático, mesmo formado por uma coalizão de partidos de centro-esquerda (a “Concertación”) tiveram muita dificuldade para processar mudanças na Constituição de 1980 destinadas a neutralizar a influência das Forças Armadas, alterar o sistema eleitoral favorecedor dos partidos de direita (com a imposição de distritos binominais) e eliminar os membros designados do Senado. Apenas em 2005 é que se conseguiu banir da Constituição a figura dos senadores vitalícios e introduzir a remoção do chefe das Forças Armadas pelo presidente da república. Na Argentina, o poder militar foi bastante reduzido com a redemocratização. A mudança na Constituição (que datava de 1853) aconteceu só em 1994, no chamado pacto de Olivos: o mandato presidencial foi reduzido de seis para quatro anos, mas estabeleceu-se a reeleição para o presidente da república e governadores; foi abolida a eleição indireta de senadores e seu número foi aumentado dois para três por estado. No aspecto econômico, com a persistência da crise, ao longo de todo o primeiro governo democrático – que inclusive levou à renúncia do presidente Alfonsin – foi realizada importante mudança institucional no governo Menem, a Ley de Convertibilidad. 10 Procurando estabilizar a economia, essa lei restringiu os gastos públicos – que não mais poderiam exceder as receitas –, e estabeleceu uma taxa de câmbio fixada ao dólar. Embora sendo lei ordinária, esta nova regra representou ponto de inflexão na história recente da Argentina por seus impactos na dinâmica política e econômica do país (Anastásia, Melo e Santos, 2004; Palermo, 2004; Novaro, 2006). No Brasil, a Constituição democrática de 1988 foi elaborada quando a crise do modelo de Estado nacional desenvolvimentista não era claramente percebida e o clima ideológico neoliberal não havia ainda se consolidado como visão dominante. Como a constituição exprimia o padrão de relações Estado e sociedade vigorante desde os anos 1930, as reformas liberais do governo FHC exigiram, portanto, como condição prévia a aprovação de várias emendas constitucionais (Sallum, 2004; Melo, 2002). Além de garantir plenamente os direitos civis, de devolver poderes ao Legislativo e Judiciário, a Constituição de 1988 também descentralizou o poder no plano federativo, fortaleceu política e financeiramente os estados e municípios e inclusive permitiu participação à sociedade civil na gestão das políticas públicas. Mas, receando reproduzir a situação da instabilidade política que havia caracterizado o país antes do golpe militar de 1964 e procurando garantir condições de governabilidade, o texto de 1988 manteve poder de agenda para o Executivo, sobretudo, através das medidas provisórias (Mainwaring, 1997; Figueiredo e Limongi, 1999). Se no Brasil e Argentina, o poder legislativo do presidente foi amplamente utilizado para levar adiante as reformas dos anos 19905, no Chile, a Constituição de 1980, ainda em vigor no país, enfraqueceu tanto o Congresso que o sistema político tem sido definido como “presidencialismo exagerado”, pois a presidência é considerada a mais poderosa da América Latina e, talvez, do mundo (Baldez e Carey, 1999). Também dá peso desmesurado do Senado, até recentemente composto também por senadores não eleitos e vitalícios, reforçando a concentração de poderes e o peso do Executivo. Se as condições institucionais concentradoras de poder permitiram que os governos realizassem os ajustes necessários à inserção internacional , veremos a seguir o papel desempenhado pelas ideias para orientar e justificar tal processo de ajuste, em consonância com o que ficou cunhado como Consenso de Washington. Com vários autores mostraram, as mudanças na área da previdência social foram pautadas pela idéia de que o mercado é o melhor alocador de recursos e de que as políticas sociais não 5 Antes de Menem, os presidentes argentinos eleitos lançaram 25 decretos de emergência. Só Menem lançou 308 de 1989 a 1993( Kay, 2003: 122) 11 podem entrar em choque com o crescimento econômico (Montecinos, 1998; Castiglioni, 2003; Novaro, 2006). 2.b. A difusão do receituário liberal Historicamente, o Chile teve um regime constitucional relativamente estável com amplas liberdades e considerável participação política. Ao mesmo tempo um traço particular caracterizou a política chilena a partir da segunda metade do século passado: a presença de um corpo de tecnocratas desempenhando papel de relevo na alta burocracia governamental. Já nos governos de Eduardo Frei (1964-70) e de Salvador Allende (1970-73), a "tecnocratização" do processo decisório esteve relacionada à expansão das agências estatais e da ação econômica do governo e à modernização do sistema administrativo público (Stallings, 1990; Markoff & Montecinos, 1993 e 2009) . Contudo, foi o fechamento do processo político e da luta partidária, durante a ditadura militar, que permitiu a consolidação do poder de profissionais especializados, especialmente através dos chamados Chicago boys. (Montecinos & Markoff, 2009), economistas formados na Universidade de Chicago sob a orientação liberal de Milton Friedman, que foi responsável pela formulação e execução das políticas econômicas durante todo o período do governo Pinochet e também pelas políticas sociais, em particular, a reforma da previdência social, ainda nos anos 806. A privatização da previdência Chile atraiu amplo respaldo político tanto da comunidade financeira internacional como FMI, Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento que a recomendaram para o restante da América Latina e de outras regiões. A publicação do relatório “Averting the Old Age crisis: Policies to Protect the Old and Promote Growth”, em 1994 pelo Banco Mundial atraiu ampla atenção internacional para o tema da reforma da previdência. Ele se “tornou o paradigma mundial para as reformas do sistema de pensões que privatizaram total ou parcialmente os sistemas públicos (Mesa- Lago, 2007: 119) e fez com que o Banco Mundial passasse a ser o principal centro de pesquisa, desenvolvimento e difusão da tecnologia da privatização da previdência (Kay, 2003; Brooks, 2003). 6 A ideia orientadora era que os programas sociais não poderiam entrar em choque com o crescimento econômico e o Estado deveria concentrar sua atenção apenas nos setores de baixa renda, com mínimo envolvimento na administração e implementação dos programas sociais. Segundo palavras de Büchi, ministro das Finanças na época: ”Nada mais patético do que programas sociais que encorajam o parasitismo social” (Castiglioni, 2003:90). 12 Visco como exemplar, o caso chileno reforçou o peso do ideário liberal que se torna o mapa cognitivo das reformas destinadas a ajustar as economias dos países em desenvolvimento a sua inserção na era do capital globalizado (mais do que propriamente o desequilíbrio financeiro das contas previdenciárias) 7 Este mesmo clima ideológico referendou as reformas no Brasil e Argentina na década dos 1990, tanto na área econômicas quanto na previdência que passou a ser vista como meio de impulsionar a poupança e o crescimento econômico interno. Mesmo que as pesquisas posteriores tenham mostrado não relação clara entre a privatização da previdência e a formação da poupança interna, essa privatização foi exaltada pelos mercados financeiros globalizados como um compromisso dos governos dos países em desenvolvimento com as reformas pró-mercado (Maxfield, 1997; Brooks, 2003). Examinando porque as orientações do Consenso de Washington galvanizaram tanto as elites econômicas e políticas argentinas, indica-se que, em contraste com o Brasil a estratégia das reformas na Argentina foi de “fuga para frente”, ou seja, seus dirigentes procuravam se afastar de um passado para o qual temiam voltar; no Brasil a lógica reformista consistia em preservar interesses para avançar em um futuro no qual se temia ingressar. Assim, enquanto a Argentina queimou as pontes e se internou com a maior determinação em um novo território, o Brasil avançou a contragosto. (Palermo, 1998). Porém, o paradigma do Consenso de Washington estava à mão do presidente Menem porque o setor financeiro havia alcançado posição de hegemonia no setor empresarial, tornado-se seu organizador e articulador, em uma sociedade em que até o cidadão comum havia se convertido cotidianamente em “operador financeiro”. No Brasil, ao contrário, afirmam os analistas o próprio êxito do modelo nacional desenvolvimentista gerou resistências às orientações liberais e explicam, por exemplo, a não privatização de empresas com a Petrobrás, configurando aqui um padrão reformista menos radical e mais realista, distante de um ideário neoliberal puro (Tavares de Almeida, 1996; Sallum, 2004). 3. As reformas liberais na previdência social 3.a. A reforma chilena 7 As mudanças foram implantadas mesmo antes da eclosão da crise que levou o país à situação de grande recessão econômica. Obviamente a dura repressão política que transformou a previdência em campo de experimentação foi fundamental para colocar em prática o receituário ortodoxo. 13 Sendo a primeira a ser realizada no continente, já nos anos 1970, sob o regime ditatorial, a reforma do sistema previdenciário no Chile foi realizada por grupo de economistas monetaristas, formados nos Estados Unidos, sob a liderança de José Piñera. À frente do Ministério do Trabalho, ele elaborou um projeto que serviu de base para o decreto do governo Pinochet, de 19798. Sem debate público e qualquer aviso prévio, as regras de acesso e os benefícios foram padronizadas, unificando-se os múltiplos sistemas existentes e eliminando privilégios de segmentos mais organizados, com exceção das forças armadas, centro do poder político à época. Em 1980, uma segunda etapa é lançada, com o desmonte do antigo sistema público, proibição de novas filiações neste sistema e a introdução do novo esquema compulsório, com base na capitalização individual total, gerido por sociedades anônimas privadas concorrentes. A contribuição patronal foi extinta e os trabalhadores tiveram que assumir elevadas taxas de administração e de securitização. O Estado continuou participando do sistema, para garantir a filiação compulsória, sua regulação e supervisão, estabelecendo tetos, elaborando ranking dos instrumentos de investimento, assumindo (e, portanto, socializando com o conjunto da sociedade) o pesado ônus fiscal da transição de antigo para o novo regime e, ainda, oferecendo garantias aos segurados e pensionistas (MesaLago, 2003:30-31). Em suma, o modelo de capitalização individual substituiu o antigo regime de repartição, transferiu responsabilidades para o setor privado, restringiu benefícios, tornou mais duras as regras de habilitação e reduziu drasticamente a participação do Estado na concessão e administração das aposentadorias (Castigliioni, 2003:65-66). Mesmo tendo havido um drástico encolhimento da proteção social e efeitos perversos para os trabalhadores, os governos democráticos dos anos 90 não alteraram imediatamente o sistema imposto pelos militares: As estatísticas indicavam que em 1999 quase a totalidade dos trabalhadores segurados (96%) estava no regime privado de previdência social9. Além dos bloqueios institucionais contidos na carta constitucional 8 Desde o início dos anos 70, os economistas haviam proposto a reforma da previdência, mas encontraram forte oposição ao projeto por parte de um dos membros da junta militar, general Leigh. Somente depois que Pinochet consolidou seu poder, com a exoneração de Leigh, é que a equipe econômica conseguiu levar adiante o projeto (Ver descrição detalhada deste processo em Castiglioni, 2003:80-81) 9 Enquanto o nível de cobertura da força de trabalho em 1973 era de 73%, ela chegou a 29% em 1982, logo depois da reforma. Posteriormente ela se eleva, estabilizando-se em tornou de 57%(Mesa- Lago, 2009). Além disso, a privatização trouxe mais riscos para os aposentados porque a maioria das garantias previdenciárias é extinta. O novo sistema privado também é enormemente desvantajoso para as mulheres devido à maior expectativa de vida e a sua prolongada ausência do mercado de trabalho para criar os filhos (Arenas de Mesa e Montecinos, 1999; Kay, 2003). 14 herdada do governo militar, dificultando as mudanças do status quo, outro fator fundamental para explicar porque os governos democráticos demoraram a alterar o regime previdenciário no país, mesmo diante de seus resultados sociais perversos, pode ser encontrada na adesão ao ideário liberal por parte de vários dirigentes dos partidos da Concertación. 3.b. A reforma argentina dos anos 90 Se o sistema previdenciário já mostrava sintomas de desequilíbrios financeiros desde os anos 1960, vítima de seu próprio sucesso por ser um dos menos desiguais da região (Draibe, op.cit:12), foi a crise da dívida externa que agravou tais desequilíbrios. Se as mudanças demográficas aumentaram a expectativa de vida e o número de beneficiários, o declínio das contribuições decorreu, sobretudo, do desemprego e do crescimento do trabalho informal. Gerando inflação e déficits fiscais, a crise da dívida externa produziu também a erosão das aposentadorias e a própria deterioração da situação fiscal das instituições de seguridade social. Esse conjunto de elementos ajudou na difusão das idéias liberais que colocavam no Estado e na irresponsabilidade fiscal dos agentes públicos a raiz principal dos males vividos pelos países devedores. Nesse contexto, a privatização do sistema público de previdência surgiu como a solução. A reforma efetuada pelo governo Menem foi influenciada pelo clima de crise política e econômica do país. De um lado, os altos índices de inflação do inicio dos anos 1990 fez com que a situação da previdência se agravasse. 10De outro, o sucesso do Plano de Convertibilidade - gerando a reversão temporária da situação econômica, com a estabilização dos preços e o estímulo à entrada de capitais externos então disponíveis graças ao ciclo de grande liquidez internacional - permitiu ao governo levar adiante o programas de reformas liberais, as privatizações de empresas estatais, a liberalização do comercio internacional, mas igualmente a reforma previdenciária. Na verdade, a mudanças na previdência social foram propostas por especialistas ligados ao Ministro das Finanças, Domingos Cavallo, que introduziram o sistema de capitalização individual, subordinando claramente a área de seguridade social às 10 os valores dos benefícios não chegaram a 50% dos salários (quando deveriam legalmente oscilar entre 70 e 80%), levando à piora sistemática das condições de vida dos aposentados e à permanente ameaça de insolvência do sistema, uma vez que a proporção de trabalhadores ativos para cada aposentado era de 1.5% e o déficit chegava a 1% do PIB ( Coelho, 2003:139). 15 estratégias da gestão macroeconômica11. Conseguindo tirar de cena os opositores às reformas, nos antigos órgãos gestores da previdência pública, a nova equipe assumiu o comando do processo, divulgando estudos e estimativas de que o déficit da previdência era enorme, podendo representar em 2025 cerca de três vezes a dívida externa argentinas de 1991(Coelho, 2003: 140). Além da publicação de diagnósticos sombrios sobre a situação da previdência que ajudavam a difundir um novo clima ideológico no país e a neutralizar os opositores no interior da burocracia governamental, houve importantes negociações com outros prováveis opositores à reforma. Destaque deve ser dado ao acordo do governo com a CGT, principal confederação de trabalhadores argentinos, que acabou apoiando a privatização12. Os demais opositores não conseguiram se articular com os partidos políticos para formar uma aliança anti-reforma. Além disso, poderosos grupos privados defenderam ativamente a privatização, tais como as associações industriais, os bancos, as empresas de seguros, a Bolsa de Valores etc.(Coelho, 2003). Também as estruturas institucionais facilitaram bastante a tarefa reformista, especialmente os poderes de decreto à disposição de Menem, assim como a disciplina partidária (favorecida pela lista fechada). A mera ameaça de um decreto de emergência enfraquecia o poder de veto do Legislativo (Kay, 2003:122-123). Com essas condições político-ideológicas e institucionais, o governo Menem conseguiu aprovar em 1993 o projeto de reformas que foi posto em vigor em 1994. No novo sistema, os trabalhadores poderiam contribuir tanto para o sistema previdenciário público quanto para o privado e receberiam benefícios de ambos, ou seja, eles tiveram a opção de contribuir com 11 % de seus salários para o sistema reformado de repartição ou para uma conta individual administrada por uma Administradora de Fondos de Jublizción y Pensiones (AFJP). A arrecadação das contribuições continuou a cargo do Estado que deveria encaminhá-las às administradoras (públicas ou privadas), criando também um órgão encarregado do controle do novo sistema. Parte dos custos da transição foi financiada com recursos da privatização da empresa petrolífera YPF. Diferentemente do Chile em que as contribuições dos patrões foram extintas, as 11 Schulthess, um especialista em seguridade social, ligado à Fundação Mediterrânea (a consultoria privada, sediada em Córdoba, sob o comando de Cavallo) foi quem ocupou a Secretaria de Seguridade Social encarregada da reforma, com a ajuda de numerosos técnicos pagos pelo BID e o Banco Mundial. 12 A CGT ligada ao partido peronista de Menem aceitou a privatização em troca de apoio do governo aos planos de seguro-saúde sindicais (importante fonte de receita para eles) e da oportunidade de investir nos fundos de pensão privados (os sindicatos têm participação majoritária em dois dos novos fundos privados). 16 negociações na Argentina fizeram com que eles continuassem contribuindo com 16% da folha de pagamento para financiar o benefício básico universal a que todos os trabalhadores têm direito no sistema público de repartição (Kay, 2003: 110-111). 3.c. As mudanças tardias e parciais no Brasil As reformas pró-mercado no Brasil ocorreram mais tardiamente em relação aos dois outros países e assumiram um formato mais pragmático e moderado frente ao receituário. Elas representaram a desconstrução da agenda constituinte mesmo que esse processo tenha tido um caráter errático e relativamente longo Embora aqui também houvesse diagnósticos sombrios sobre a crise do sistema desde os anos 80, as reformas recomendadas foram retardadas por dificuldades políticas. Assim, o tema só entrou na agenda pública só no governo Cardoso, em meados dos anos 1990, e orientando-se também pela problemática fiscal, de redução dos gastos públicos (Melo, 2002: 50). A estabilização econômica alcançada a partir de 1994 facilitou seu encaminhamento político, na medida em que o controle da inflação esgotou o recurso às receitas inflacionárias que, até então, permitiam à União e aos governos estaduais amenizar os efeitos do crescimento das despesas públicas, especialmente dos gastos com as aposentadorias. O fim da inflação desnudou a gravidade do déficit público e impôs a busca por soluções mais definitivas. O debate sobre o tema gerou três projetos que foram postos em pauta entre 1995 e 1998. O primeiro visava ajustar o sistema de repartição, reduzindo privilégios do sistema público e recuperando o vínculo contributivo, mas não foi aprovado pelo Congresso. Em 1997, o governo fez divulgar novos dados sobre o déficit, o que ajudou a fazer com que o tema voltasse à agenda pública, agora com uma nova proposta formulada por grupo liderado por Lara Resende, um dos economistas que havia elaborado o plano de estabilização monetária. Trabalhando de forma insulada, sob a “proteção” direta do presidente da república, esse grupo apresentou um projeto mais radical de privatização. Todavia, diante das estimativas de enormes custos da transição (cerca de 200% do PIB pelos cálculos da CEPAL, de 250% pela FGV/RJ), tal proposta foi abandonada. Com isso, os técnicos do Ministério da Previdência e Assistência Social e do BNDEs voltam à cena reformista, com uma terceira proposta, mais moderada, que consegue em 1998 ser aprovada e na qual são introduzidos apenas ajustes no sistema de repartição para controlar as tendências deficitárias no curto prazo. 17 Buscando explicações para o fracasso das tentativas de se efetuar no Brasil uma reforma na previdência, como os países vizinhos já estavam fazendo, e que era altamente “recomendada” pelos organismos internacionais como a saída necessária para resolver os problemas do país, os analistas apontam vários fatores. Não só a natureza intrínseca de uma política de reforma previdenciária que, reduzindo benefícios, tem elevados custos políticos, mas também fatores ligados ao tipo do sistema político brasileiro, de presidencialismo de coalizão, exigindo ampla negociação entre o Executivo e vários atores políticos com poder de veto. Tudo isso fortaleceu os opositores da reforma, criando obstáculos para sua aprovação e resultando em uma reforma mínima. De fato, depois de três anos de discussão, o embate político levado a cabo no governo FHC resultou mudanças que apenas eliminaram algumas distorções na ordem previdenciária, tais como a exigência de idade mínima e de tempo de contribuição para a aposentadoria, a introdução do chamado “fator previdenciário” e a taxação dos inativos, que contou com a mobilização dos governadores que enfrentavam gravíssima crise fiscal relacionada à explosão dos gastos com pessoal, especialmente com inativos. Assim, conforme procurar-se argumentar nesse trabalho, tais dificuldades relacionadas aos custos financeiros da transição e de ordem política fizeram com que uma política reformista imposta por constrangimentos trazidos pela inserção do país na economia global acabasse resultando em alterações pouco significativas. Em outras palavras, os fatores domésticos atuaram como filtro para as pressões externas. 4. A inflexão dos anos 2000 no cenário internacional: a reforma da reforma previdenciária A partir dos anos 2000 ocorrem transformações significativas na economia global, configurando um novo tipo de globalização. A entrada da China na economia mundial, desempenhando aí um papel de enorme relevo, gerou mudanças profundas na dinâmica da inserção dos países em desenvolvimento e permitiu a difusão do crescimento para um número crescente de regiões que antes estavam com baixo desempenho econômico, como a América Latina. Na verdade, a alta dos preços de commodities agrícolas, industriais e de energia, a partir de 2002 permitiu que países como o Brasil, Argentina e Chile “pegassem carona no trem chinês”, elevando seus níveis de crescimento e até 18 pudessem enfrentar a crise de 2008 em situação melhor do que os países centrais. (CASTRO, 2008 e MIGUEL, 2011). Paralelamente a esse processo de crescimento de economias como a da China e também da India - que, ironicamente, não seguiram à risca o receituário do Consenso de Washington - os impactos das crises financeiras do final dos anos 90 (a asiática em 1997, a da Rússia e Brasil em 1998-99) contribuem também para solapar a hegemonia da ortodoxia liberal13. É nesse contexto, mesmo antes da eclosão da crise de 2008, que alguns analistas diagnosticam a emergência de uma nova agenda social na América Latina, com implicações claras para o fortalecimento de novas estratégias econômicas e de desenvolvimento social ( Draibe, 2007) 14. Em outras palavras, a mudanças do mapa cognitivo, juntamente com as transformações no cenário econômico internacional possibilitaram a emergência gradativa nos países emergentes de um processo de reversão de várias políticas públicas realizadas no período anterior, como é o caso da previdência social. Assim, no caso do Chile, depois de mais de 25 anos de implantação da reforma da previdência social, o governo de Michelle Bachelet conseguiu aprovar em 2008 a Ley de Reforma Previsional que estabeleceu um Sistema de “Pensiones Solidarias”, recuperando os princípios de solidariedade e de direitos de cidadania esquecidos pelos ideólogos liberais (Mesa-Lago,2008). Também em 2008, o governo de Cristina Kirschner conseguiu aprovar reforma, eliminando o regime de capitalização individual gerido pelas administrações privadas e o transportou para um sistema único integrado de repartição e administração pública (Mesa-Lagos, 2009). No Brasil, depois das algumas alterações feitas no sistema público, o governo Lula acabou “congelando” o processo reformista, optando pela estratégia de modernização e aperfeiçoamento do processo de arrecadação do sistema previdenciário como forma de reduzir seus déficits. 13 As criticas ao receituário do Consenso de Washington são formuladas nesse período não só por economistas dissidentes como Stiglitz (2000), mas também pelos próprios dirigentes dos organismos internacionais como Straus Kahn. Sobre mudanças nas orientações dos organismos internacionais,como o Banco Mundial, também ocorridas nesse período, ver Kugelmas (2011). 14 Os indícios deste novo cenário aparecem na Argentina no governo Kirschner. Além de enfrentar os credores internacionais, ele adota medidas para retomar o crescimento e geração de emprego, através da manutenção de taxas competitivas de câmbio real, de fomento á poupança interna e ao investimento que acabaram gerando resultados positivos. Assim, o PIB sai de 1,4% entre 1993-2001 e alcança 8,8% entre 2003-2008. Nesse mesmo período, a poupança privada cresceu de 14.7 para 24 % e a taxa de investimento subiu de 18.1 para 24.1% em relação ao PIB do país. 19 4.a A reforma no governo Bachelet Na medida em que começam a emergir evidências de que o sistema criado pelos militares tinha sido incapaz de oferecer aposentadorias dignas, as críticas aos impactos da reforma se intensificam. O chamado “sucesso” começa a ser seriamente questionado uma vez que o modelo de capitalização individual deixou de lado grande parte da população mais pobre e as empresas de administração dos fundos de pensão acumulam grande parte da riqueza do país, sendo as principais beneficiárias do modelo implantado pelos militares15. O processo de revisão e modificação do sistema de previdência estabelecido durante a ditadura de Pinochet teve início em março de 2006, quando foi criado o Conselho Assessor Presidencial para a Reforma Previsional (constituído por quinze conselheiros nomeados pela Presidente Michelle Bachelet) com a tarefa de elaborar propostas de reformulação do sistema. Envolvendo consulta a vários grupos organizados na sociedade civil, sob a forma de audiências públicas, o Conselho discutiu vários temas sendo que os mais reiterados foram: densidade de cotizações, incorporação de trabalhadores independentes, discriminação da mulher, custos de administração e nível e estrutura das taxas de administração (cobradas pela AFP), competência entre fundos de pensões, pilar solidário do sistema de pensões, benefícios não contributivos garantidos (pensão mínima garantida e pensões assistenciais - PASIS), participação dos trabalhadores e a necessidade de participação do Estado no sistema de pensões. Adicionalmente, o processo de consulta contemplou a instalação de uma página web 16 com uma seção interativa (Consejo Asesor Presidencial Para la Reforma Previsional, 2006a) (Draibe, 2007). O novo sistema tem dois componentes básicos: o primeiro cria uma pensão básica solidária para velhice e invalidez substituindo o antigo sistema assistencial, financiado pelo Estado e tem como objetivo atingir imediatamente 40% da população mais pobre. O segundo componente da reforma que substitui a pensão mínima consiste em uma ajuda paga pelo Estado para complementar à pensão contributiva das pessoas maiores de 65 anos com poucos recursos, independentemente dos anos de sua cotização. Embora o novo sistema criado pelo governo Bachelet em 2008 ofereça uma pensão básica para a maioria dos afiliados cuja capacidade de poupança é insuficiente, a 15 Hoje as empresas que administram os fundos de pensões, em grande parte ligadas a grupos financeiros externos, representam 40% do PIB (superior à economia do cobre, que representa 23%) (Riesco, 2006). 16 http://www.consejoreformaprevisional.cl/view/presentacion.asp?seccion=presentacion 20 reforma tem recebido críticas, especialmente por parte de grupos e organizações mais a esquerda, que afirmam ser a aprovação das mudanças no governo Bachelet apenas “um passo inicial, restando pendente o principal”. Dentre os grupos que criticam destaca-se o CENDA (Centro de Estudios Nacionales de Desarrollo Alternativo) que chegou também a apresentar propostas ao conselho Assessor da Presidência chilena e mantém de forma relativamente atualizada em seu site informações, documentos e análises sobre o tema. Em vários documentos divulgados já em 2006, o CENDA indicava que as propostas encaminhadas pelo governo ao Congresso não alterava o modelo de capitalização individual. Esse modelo permaneceria como pilar único para os segmentos médios da população cujas aposentadorias continuariam incertas e com valores muito inferiores ao que receberiam nos antigos sistemas de repartição, especialmente para as mulheres. Além disso, houve tímidas alterações na administração das aposentadorias, não se tocando no cerne do problema que é a obrigação legal de que todos os chilenos se filiem a uma administradora de fundos de pensão (AFP). Também organizações sindicais criticam a timidez da proposta afirmando que a condição mínima para que a reforma tenha legitimidade plena é a reparação do dano previdenciário, igualando-se as pensões outorgadas pela AFP às oferecidas pelo sistema antigo e restabelecendo-se as contribuições patronais a um fundo de repartição solidário. Consideram ser possível restabelecer gradualmente o sistema de repartição, evitando-se o desvio das contribuições para fins que não sejam o pagamento de pensões. 4.2. Re-estatização do modelo previdenciário argentino no governo Kirschner Desde a grande crise econômica de 2001, inúmeras críticas foram formuladas ao modelo de capitalização individual implantado na Argentina, no período de reformas liberais. Tendo eliminado o princípio da solidariedade, como no Chile, esse modelo levou à redução drástica da cobertura dos trabalhadores e da população idosa, aprofundou a desigualdade de gênero, exigiu aportes excessivos para a obtenção de pensão mínima. Também submeteu os pensionistas aos riscos do mercado financeiro e às altas taxas de administração dos fundos e impôs aos cofres públicos substanciais custos fiscais para a transição17. 17 Ver Mesa-Lago (2009). Esse autor também calculou que a cobertura da população economicamente ativa na Argentina caiu de 50% a 36% entre 1993 e 2007. 21 As críticas crescentes ao sistema de capitalização geraram debate nacional que mobilizou diferentes setores de classe e incluiu a publicação pela Secretaria de Seguridade Social de um “livro branco” com informações e recomendações técnicas para a mudança do sistema. Assim, no final de 2008, o Congresso argentino aprovou o projeto de reforma apresentado pelo governo de Cristina Kirschner que eliminou o regime de capitalização individual gerido pelas administrações privadas e o transportou para um sistema único integrado de repartição e administração pública. As principais mudanças trazidas pela Lei de reforma previdenciária de 2008 foram: a) Transferência de todos os contribuintes do sistema de capitalização individual e dos fundos de contas individuais para o sistema público de repartição que se converteu no Sistema Integrado de Previdência Argentino (SIPA); b) Cobertura e tratamento para os novos entrantes iguais àquela dos participantes do sistema público, sendo que o estado garantirá iguais ou melhores benefícios àqueles que seriam obtidos no sistema privado, no momento em que Lei entrou em vigor; c) Transferência dos recursos do sistema privado para administradora pública ANSES (Adminsitración Nacional da Seguridad Social) que gozará de autonomia financeira e econômica e será supervisionada por uma Comissão Bicameral de Controle dos Fundos de Seguridade Social do Congresso Argentino; e ainda a transferência dos aportes obrigatórios futuros para um Fundo de Garantia monitorado também por um colegiado e com investimentos estipulados por lei. Segundo analistas, se tais mudanças procuraram reparar danos trazidos pelo sistema privado aos trabalhadores, elas implicam também riscos. Segundo Mesa Lago (2009), há muitas imprecisões e vazios jurídicos na lei argentina de 2008. Por exemplo, ela propõe pagar um benefício igual ou melhor do que receberia o contribuinte no sistema privado, embora esse sistema não outorgasse benefício definido, mas sim indeterminado sobre o qual incidiam fatores aleatórios como a rentabilidade financeira das empresas administradoras dos fundos de capitalização individual. A Lei estabelece que as rendas vitalícias continuam sendo pagas pelas companhias de seguro, mas não regulou esse aspecto, deixando grande margem de discricionariedade ao Executivo. Todavia, o principal objeto de crítica recai sobre o Fundo de Garantia que recebeu os recursos transferidos do sistema de capitalização individual para o sistema integrado. Embora a lei afirme que a totalidade dos recursos do Fundo seja utilizada apenas para pagamentos de benefícios, ela também estipula que o ativo desse Fundo possa ser aplicado segundo critérios de seguridade e rentabilidade, “contribuindo para o 22 desenvolvimento sustentável da economia”. O diretor executivo da ANSES chegou mesmo a declarar depois de aprovada a Lei que as contas transferidas ao Fundo de Garantia seriam utilizados “para investimentos de longo prazo, com mão de obra intensiva e para sustentar a economia argentina nesse período de crise...”. O que foi contestado pelo secretário executivo de CEPAL nos seguintes termos: “ confiscar ativos não é a maneira de se fazer política anticíclica em um país...(Mesa Lago, 2009: 22). Além da ausência de definição jurídica clara a respeito do uso dos recursos do Fundo de Garantia, outro ponto crítico da reforma refere-se ao Comitê gestor do Fundo de Garantia cujas funções e poder não estão claramente definidos na lei. Os críticos afirmam que, para se evitar o uso indevido dos fundos previdenciários, a ANSES não deveria ser o gestor do Fundo que deveria ter um comitê autônomo, separado da ANSES e dos recursos do Estado e administrado por um organismo técnico colegiado sem interferência governamental e seguindo normas legais estritas. 4.3. Continuidade e posterior “congelamento” da reforma no governo Lula A despeito das posições político-ideológicas distintas com relação àquelas vigorantes no governo FHC, o governo Lula se inicia dando continuidade às políticas macroeconômicas estabelecidas em 1999. O chamado tripé formado pelo superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação é mantido, garantindo ao mercado o compromisso com as condições de estabilidade do país, estabelecido já na campanha eleitoral, com a “Carta aos Brasileiros” (Loureiro, Santos e Gomide, 2011). Em sintonia com a preocupação de garantir credibilidade frente ao mercado, o tema da reforma previdenciária é colocado na agenda do Congresso que aprova em 2003 mais alterações para o sistema público. Depois de várias negociações que envolveram concessões aos segmentos mais poderosos do funcionalismo, como os magistrados, foram estabelecidos tetos de benefícios para funcionários públicos e aprovada a emenda constitucional que permitiu restabelecer a taxação para os inativos. Essa taxação, incluída na reforma do governo Cardoso, havia sido posteriormente derrubada pelo Supremo Tribunal Federal como inconstitucional. Na verdade, o governo Lula acabou propondo tópicos de reforma a que seu partido se opunha, quando era oposição ao governo FHC. Para Melo e Anastásia (2004), a mudança da posição institucional – de oposição para situação - determinou a possibilidade de o PT promover uma reforma contra a qual havia lutado nos anos 23 anteriores e de, inclusive, obter maior sucesso que o governo anterior na tramitação e no resultado final. Isso porque, ao passar para a oposição, o PSDB não pôde adotar a mesma estratégia do PT de opor-se sistematicamente ao governo. Soaria estranho aos eleitores mudar tão radicalmente de opinião sobre um tema que defendera de forma arraigada quando no governo. Cabe destacar que a diferença na posição ocupada pelos atores não foi, porém, o único fator explicativo, nem tampouco o mais importante, para a mudança de preferências. A mudança de posição do PT em relação à reforma da previdência já estava ocorrendo de forma paulatina, na medida em que a perspectiva de assumir o poder se tornava mais provável e exigia, portanto, levar em conta os constrangimentos colocados ao governo pela inserção do país na economia global. Na verdade, a solvência e credibilidade frente ao mercado financeiro são fatores decisivos também para os governos conduzidos por partidos com históricos compromissos populares, como o PT. As circunstâncias políticas e econômicas em que o governo Lula assumiu a presidência em 2003 fizeram com que o poder de fogo do mercado se configurasse claramente como variável tão ou mais decisiva quanto as demandas do eleitorado. É neste quadro que devem ser entendidas as mudanças na previdência tomadas pelo governo Lula no início de seu primeiro mandato, em continuidade àquelas tomadas no governo FHC. Todavia, depois dessas alterações apontadas acima, o tema da reforma foi retirado da agenda governamental. Reiterando o argumento aqui desenvolvido, o que foi facilitado inclusive pela conjuntura internacional favorável, que já havia permitido a acumulação de enormes reservas na balança comercial e já aponta perspectivas de elevação das taxas de crescimento econômico. Assim, no início de segundo mandato, o presidente Lula instituiu um fórum para a discussão do tema, integrado por representantes dos trabalhadores, dos empregadores e do governo. No final dos trabalhos, o fórum concluiu de forma consensual que a Previdência Social deveria continuar sendo parte integrante do conceito de seguridade social, financiando-se com as contribuições dos trabalhadores e empregadores, além dos recursos do orçamento da seguridade social, conforme previsto na Constituição Federal e contrariando as propostas reformistas de viés fiscalista. Mesmo não havendo consenso sobre regras de idade mínima e de tempo de contribuição para acesso a benefícios, os integrantes do fórum conseguiram estabelecer acordo com relação à permanência da vinculação dos 24 benefícios assistenciais ao salário mínimo, item cuja modificação tinha sido considerada fundamental pelos economistas ortodoxos18. Esse último ponto foi decisivo, porque marcou a reversão na política previdenciária com que Lula iniciou seu governo. Mesmo tendo vetado a proposta aprovada no Congresso Nacional, que eliminou o fator previdenciário (e que teria como consequência a elevação das contas da Previdência de forma estrutural), observa-se a partir desse período a emergência, de forma clara, de uma nova tendência do governo petista frente ao tema da reforma da previdência. Isso ocorre paralelamente à consolidação dos programas sociais e sua consequente aprovação eleitoral. A adoção da política de elevação continuada do salário mínimo, mesmo tendo impactos sobre os gastos do INSS é uma prova cabal disso 19. Tais medidas têm que ser compreendidas levando-se em conta que o governo Lula tem se pautado por dupla agenda econômica: de um lado, mantém as políticas macroeconômicas herdadas do governo Cardoso, o chamado tripé macroeconômico – câmbio flutuante, metas de inflação e superávits primários; e de outro, levou adiante as políticas de ativação da demanda, com expansão do crédito, elevação do salário mínimo e políticas de transferências de renda, responsáveis, em grande parte, pela aceleração do crescimento. Da mesma forma, a área da previdência teve dupla agenda. De um lado, no início do governo, foram efetuadas mudanças paramétricas, em continuidade à agenda do governo anterior, que atingiram os segmentos mais fracos politicamente do funcionalismo público (como professores universitários); além disso, medidas mais populistas do Congresso - incluindo a própria base de apoio do governo, que aprovou a eliminação do fator previdenciário - foram rejeitadas por veto presidencial. De outro lado, o processo reformista foi congelado e foram desprezados os impactos da elevação 18 Cabe relembrar que no segundo governo Lula houve importante inflexão na política macroeconômica ortodoxa estabelecida no primeiro governo, considerada responsável pelos baixos índices de crescimento econômico do país. Essa inflexão resultou também na mudança dos dirigentes das principais agências governamentais de política econômica, ligadas ao Ministério da Fazenda e do Planejamento, como o IPEA, além do BNDES (Loureiro, Santos e Gomide, 2011).. 19 Mesmo tendo impactos nos gastos do INSS, a decisão de elevar o salário mínimo acima da inflação – na média de 11,7% entre 2003-2005, de 24,75 entre 2006-2008 e de cerca de 50% entre 2003 e 2011– parece ser irreversível pois seus impactos econômicos e políticos são importantes: permitiu considerável expansão da capacidade de consumo dos trabalhadores, gerando crescimento via distribuição de renda e, portanto, legitimidade política e respaldo eleitoral. Com relação ao “congelamento” da política reformista da previdência, ela tem sido sustentada no plano ideológico por publicações oficiais do IPEA que questionam seus fundamentos liberais. Cita-se o livro organizado por um dos diretores do IPEA, João Sicsú,,“Arrecadação e Gastos Públicos”. Nele se questionam as informações sobre o déficit da previdência e se analisa a arrecadação não do ponto de vista de sua carga total, mas dos grupos sociais que mais pagam impostos, confrontando os assalariados frente ao setor financeiro. 25 do salário mínimo sobre as contas do INSS, investindo-se em processos de melhoria da gestão, visando maior eficiência da arrecadação e do controle de fraudes. Em suma,a retomada do crescimento econômico com o consequente aumento da arrecadação fiscal e redução das pressões fiscais, a elevação do número de trabalhadores formalizados e contribuintes do sistema previdenciário, além de avanços no próprio gerenciamento e na eficiência do sistema previdenciário, tudo isso levou a um arrefecimento da discussão em torno da reforma da previdência no Brasil. Mas, o mais significativo nesse processo de deslocamento da agenda reformista foi a mudança no cenário econômico internacional com a retomada do crescimento econômico no Brasil, Argentina e Chile, especialmente com a entrada da China e dos países posteriormente denominados de BRICs e o conseqüente declínio da hegemonia liberal e do receituário ortodoxo das agências internacionais, já em curso desde as crises asiáticas de 1997, mas reforçado após a crise financeira iniciada 2008. Considerações Finais: Procurou-se neste trabalho analisar as mudanças ocorridas no sistema de Previdência Social na Argentina, Brasil e Chile à luz da inserção desses países na economia global e das mudanças que pautam esse processo, de forma estrutural, na medida em que ele se funda na ilimitada circulação dos fluxos de capitais e mercadorias. Todavia, os fatores domésticos não foram descartados da análise, mas tomados como filtros mediante os quais os constrangimentos trazidos por aquela inserção são incorporados internamente, gerando timings diversos de mudanças (processos mais ou menos longos e negociados), assim como graus diferenciados de intensidade (reformas mais ou menos radicais). Também a direção assumida por eles (orientadas pela lógica fiscal e pela credibilidade financeira, no período de hegemonia liberal e, mais recentemente, também por efeito das transformações na economia global e do descrédito da ortodoxia liberal, levando em conta também princípios de solidariedade e proteção de direitos). O conjunto de informações aqui reunido indica que, a despeitos da variedade de respostas no arranjo estabelecido para a área da previdência, houve um processo comum aos três países: a inserção na economia global que impõe constrangimentos aos governos nacionais, mas também lhes oferece oportunidades para reversão do curso de 26 suas políticas públicas em função dos diferentes momentos por que passe aquele processo de inserção ou em suas conjunturas cambiantes. Assim, a presente conjuntura está permitindo para a área da política pública da previdência social um arranjo institucional e político que combina um mix entre estado e mercado, ou seja, um arranjo entre sistemas que podem privilegiar o princípio de solidariedade social, sem deixar de considerar a lógica financeira. Por fim, cabe mencionar que, embora no âmbito desse trabalho tenha sido possível contemplar os três países (comumente definidos como democracias de mercados emergentes), mostrando que, a despeitos das nuances, houve similaridades de constrangimentos e oportunidades trazidas pelas mudanças no cenário da economia globalizada, hoje parece haver indícios de mudanças entre eles, em especial com relação a posição de cada um no cenário da economia globalizada. Ou seja, as diferenças de posição no cenário internacional entre Brasil, de um lado e Argentina e Chile do outro estão crescendo e traz perspectivas diferenciais para cada um deles: basta lembrar que apenas o Brasil está entre os países emergentes agora denominados de BRICs. Assim, os impactos que essa nova posição do Brasil na economia global trará para áreas como a previdência social devem ser objeto de novas investigações. Referências bibliográficas: ABRANCHES, S.(1982).. The Politics of Social Welfare Development in Latin America. 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