Mudanças na política de previdência social na Argentina

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36º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS
GT 29 POLITICAS PUBLICAS
Mudanças na política de previdência social na Argentina, Brasil e
Chile em contexto de democratização e inserção na economia global
Maria Rita Loureiro(*)
(*) Professora de Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas,
São Paulo
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Mudanças na política de previdência social na Argentina, Brasil e
Chile em contexto de democratização e inserção na economia global
Maria Rita Loureiro
Introdução
O objetivo desse trabalho é analisar as mudanças ocorridas nos sistemas de
previdência social à luz dos processos de democratização e de inserção desses países na
economia global. É tal enfoque que particulariza a presente análise, diferenciando-a da
literatura mais freqüente sobre reformas previdenciárias na América Latina
A vulnerabilidade trazida pela liberalização econômica tem sido experimentada
em vários países da América Latina, simultaneamente ao processo de democratização,
situação essa que os leva a enfrentar um duplo desafio. De um lado, a inserção ao
mercado mundial torna a estabilidade econômica interna dependente cada vez mais dos
fluxos de investimentos internacionais de curto prazo (que se pautam pelas condições de
credibilidade geradas por políticas fiscais mais austeras e pelas elevadas taxas de juros
pagos pelos títulos da dívida pública). De outro lado, a democratização abre espaços
para que os partidos e grupos organizados na sociedade pressionem por medidas fiscais
e monetárias mais flexíveis, voltadas à promoção do crescimento econômico, à
expansão do emprego e à redução da pobreza. É a vivência deste duplo desafio que
gerou a denominação de “democracias emergentes de mercado” (Whitehead, 2002).
Assim, interessa examinar como cada país tem enfrentado esse desafio,
ajustando-se à globalização mediante reformas efetuadas não só na área econômica,
especialmente em seu sistema financeiro e nas regras de comércio externo, mas
igualmente em áreas sociais aí conectadas, como a previdência social, que depende da
situação fiscal e do nível de poupança pública ou privada (que sustentam seus fundos
previdenciários). Em outras palavras, as mudanças nos modelos de previdência social na
Argentina, Brasil e Chile são analisadas aqui como resultantes da inserção desses países
na economia global e das mudanças ocorridas nesse processo, tomando como referência
histórica os seguintes momentos: crise da dívida externa de 1982, como ponto inicial, a
década de 1990, como período em que os países fizerem diferentes tipos de reformas em
suas estruturas econômicas internas para se ajustarem à nova era de capital globalizado,
sob a hegemonia do ideário do neoliberal e, por fim, o período mais recente, a partir de
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meados dos anos 2000 quando se dá um novo ponto de inflexão nesse cenário. Os
fatores domésticos tais como natureza do regime e do sistema político, os diferentes
arranjos institucionais mais ou menos concentradores de poder no Executivo etc. são
analisados aqui como filtros através dos quais os ajustes exigidos para aquela inserção
se processam e são decantados em cada país, resultando, assim, em diferentes timings e
diferentes graus de intensidade de reformas (mais ou menos tardias e mais ou menos
radicais). Nesse sentido, a inserção de cada país à economia global se dá de diferentes
formas, devendo-se falar em variedades de democracias emergentes de mercado1.
A escolha da previdência social justifica-se ainda porque ela foi objeto de
significativas mudanças nas últimas décadas na América Latina. Como uma farta
literatura já analisou, além do primeiro experimento reformista ocorrido no Chile sob a
ditadura de Pinochet, na década de 1980, houve iniciativas semelhantes em grande parte
dos países nos anos 1990, substituindo os antigos sistemas públicos de repartição por
modelos, mais ou menos privatizados de capitalização individual (Mesa-Lago, 1997;
2007; Madrid, 2005). Mais recentemente, novas alterações foram processadas nos
sistemas previdenciários dos três países aqui estudados, configurando um quadro de
“reforma da reforma” (Draibe2010).
Destaca-se, porém, que tais mudanças foram produzidas menos por razões
intrínsecas ao próprio sistema previdenciário, embora a retórica da reforma tomasse
como base indicadores de falência do sistema então vigente, tanto por razões atuariais
quanto demográficas, relacionadas ao envelhecimento da população. Como o
importante especialista na área, Esping Andersen (2003) já indicou, as reformas dos
anos 1990 não se orientaram pela égide aperfeiçoamento do Welfare State ou orientadas
pela expansão dos direitos. Ao contrário, pautaram-se pela lógica fiscal e financeira de
redução dos gastos públicos, formação de poupança interna e de criação de mercado de
capitais, ou seja, por necessidades decorrentes da inserção dos países na economia
global.
Do ponto de vista teórico, o argumento aqui desenvolvido é que cada modelo de
reforma exprime formas específicas pelas quais os governos desses países na América
Latina construíram seu processo de inserção na economia global. Ele se sustenta nas
1
A pesquisa que serviu de base a esse trabalho foi financiada pela FAPESP, através de projeto temático
intitulado “Variedades de democracias emergentes de mercado: entre credibilidade econômica e
legitimidade política”, e no qual foram examinadas, além da previdência social, reformas na área
monetária e financeira, sob responsabilidade de Lourdes Sola e Moisés Marques e na área de comercial,
por Matthew Taylor.
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discussões sobre o tema da globalização, efetuadas por Saskia Sassen (2010). Ao
enfrentar os desafios teóricos e metodológicos postos às ciências sociais pelos processos
transnacionais, aquela socióloga afirma que a globalização deve ser entendida “não
apenas em termos de interdependência e instituições globais, mas também como algo
que habita o nacional” (pg.9). Em outras palavras, a globalização não é algo dado e
exterior ao Estado Nacional e à suas instituições, mas construído historicamente por
cada país, por processos que embora globais, não ocorrem necessariamente no nível
global e sim em cenários nacionais, ou até subnacionais.
Para nosso estudo sobre as mudanças na previdência social dos três países,
busca-se então observar as variedades de diversas formas de construção nacional da
globalização ou da inserção do país na economia global. Serão privilegiados fatores
como o timing da democratização em relação às reformas, o ritmo adotado por cada país
no processo de realização das reformas estruturais para se adequar à inserção
internacional, o grau de adoção do ideário neoliberal pelas elites locais, além dos fatores
institucionais internos que puderam facilitar ou dificultar o processo reformista.
Do ponto de vista metodológico, a estratégia para compreender melhor tal
dinâmica entre política e economia gerada pela inserção das novas democracias na
economia global foi o recuo no tempo, estendendo a análise para o período anterior à
crise da dívida externa de 1982 e também abrangendo as transformações mais recentes
posteriores à crise financeira internacional desencadeada a partir de 2007/08. O ponto
de inflexão é, portanto, a crise de 1982, que demarca o início do que se poderia chamar
de história contemporânea de vários países da América Latina. 2
Alguns traços caracterizam um ponto de partida histórico comum aos três países
aqui selecionados para a análise comparativa. Além do passado colonial e dos processos
de libertação nacional que não romperam com os padrões de dependência econômica e
com o elitismo político, Argentina, Brasil e Chile construíram, a partir dos anos 1930, o
chamado Estado nacional desenvolvimentista, compartilhando no mesmo período
dinâmicas de crescimento econômico, modernização e urbanização da sociedade e
incorporação das classes trabalhadoras ao sistema político. O Estado foi o núcleo
organizador da sociedade, funcionando, de um lado, como alavanca do processo de
2
“A crise enfraqueceu a ordem política e econômica dessas sociedades e inviabilizou estruturalmente que
elas continuassem se desenvolvendo no padrão de relação entre o Estado, sociedade e economia
imperante desde os anos 30... (Ela) fraturou a matriz estado-cêntrica de alguns dos principais países
latino-americanos, corroendo as bases materiais de operação e intervenção do Estado” (Sallum Jr,
2004:10-11).
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construção de um capitalismo industrial nacionalmente integrado, mas dependente do
capital externo, através da estratégia de substituição das exportações (com políticas
protecionistas e subsídios a certos grupos privados) (Sallum Jr. 2003; Ferrer, 2006). O
papel organizatório do Estado exprimiu-se ainda no controle da classe trabalhadora
através de sindicatos atrelados ao aparato estatal e de políticas sociais que atendiam,
ainda que moderadamente, suas demandas (Santos,1979).
Também o sistema
previdenciário implantando inicialmente nesses três países apresenta muitos pontos
comuns, como se indicará mais adiante.
A despeito destes pontos de partida comuns, a crise da dívida externa de 1982 e
a forma com que cada país a enfrentou produzirá diferenciações importantes em suas
trajetórias. Ou seja, a forma como cada um adotou o receituário liberal como solução
para os impactos da crise configurará modelos de governo e, no que interessa analisar
aqui, modelos de previdência também bastante distintos. Como é bem conhecida, a crise
de 1982, ao cortar os fluxos de financiamento externo, enfraqueceu a ordem econômica
e política daquelas sociedades e minou estruturalmente as possibilidades de
continuarem seu desenvolvimento. Ao fraturar o modelo anterior, corroendo as bases
materiais de operação e intervenção do Estado, a crise da dívida externa e a posterior
inserção destes países na economia globalizada deixaram pouco espaço para as elites
governamentais reconstituírem suas economias (Sallum Jr. 2004; Ferrer, 2006).
Confrontando as diferenças de impactos da crise nestes países, observa-se no
aspecto econômico que, na Argentina, ela deu continuidade ao processo de
desindustrialização iniciado na década de 1970. Neste período, configurou-se um
profundo processo de regressão econômica que deixou para trás grande parte da
complexidade e diversificação do ciclo substitutivo daquele país. As medidas de
abertura comercial e apreciação cambial acentuaram o quadro recessivo. No Brasil,
mesmo com os baixos índices de crescimento econômico (que levaram à definição dos
anos 80 como década perdida), a estrutura industrial do país foi conservada Ou seja, o
processo de reestruturação adquiriu um estilo defensivo marcado pela tendência a
preservar a estrutura produtiva herdada da industrialização substitutiva de importações
(Bielschowsky e Stumpo,1995; Palermo, 1998). No Chile, os impactos econômicos da
crise foram também devastadores: o PIB chegou a cair 15% em 1982, conforme dados
de seu Banco Central.
Do ponto de vista político, a crise da dívida externa não abalou a ditadura
chilena, enquanto na Argentina e no Brasil, os regimes autoritários não resistiram à
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deterioração da situação econômica dos anos 80. O fracasso militar na guerra das
Malvinas e na gestão da economia marcou a transição e atuou a favor da democracia na
Argentina: esta foi apresentada ao mesmo tempo como garantia da ordem, distante das
anteriores frustrações, e fundadora de uma nova era. A promessa de “cem anos de
democracia” só podia comover uma cidadania farta dos militares. No consenso
estabelecido em 1983, o jogo democrático adquire enorme valor, os cidadãos e as elites
políticas expressam enorme fé em seu poder regenerativo, ao mesmo tempo em que o
entusiasmo com o Estado de Direito, e o governo da lei, a tolerância às diferenças e o
respeito pelos procedimentos institucionais parecem estender-se como um novo credo
civil (Novaro, 2006:152-3). Também no Brasil, a democracia aparece como solução
para a situação de estagnação econômica, de inflação elevada e de incapacidade dos
governos militares de alcançarem saídas para o país. Como já se indicou, o modelo de
substituição de importações havia se esgotado ao mesmo tempo em que o regime
político entrava em colapso (Sallum Jr., 2004).
1. Os sistemas previdenciários no período anterior à crise da dívida externa de
1982
Argentina, Brasil e Chile compõem o grupo de países pioneiros na implantação
de sistemas de previdência social, os quais foram, assim, denominados de mais
desenvolvidos ou maduros3. Além de se assemelharam do ponto de vista da estrutura
administrativa - porque geridos por múltiplas instituições, em geral, dotadas de
autonomia legislativa e financeira, sempre com o apoio de recursos públicos - os três
sistemas também eram estratificados por grupos ocupacionais e tipos de valores de
benefícios. Tal estratificação exprimia a forma pela qual os grupos mais poderosos da
classe trabalhadora foram gradualmente beneficiados.
O tipo de Estado de bem estar social adotado por esses três países foi definido
como modelo conservador-corporativo (ou ainda meritocrático-particularista) (Ascoli,
1984; Esping-Andersen,1980). Esse modelo repousa na idéia de que as pessoas devem
suprir suas próprias necessidades, a partir de seu trabalho, com base em seu mérito,
desempenho ocupacional ou produtividade. A política social deve apenas complementar
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Enfatizando o momento de criação da previdência social, Mesa-Lago diferencia três grupos de países na
América Latina: os pioneiros que iniciaram sistemas já nas primeiras décadas do século XX; os
intermediários que os criaram nas décadas de 1940, sob a influência do sistema inglês e da Organização
Internacional do Trabalho (OIT); e os retardatários que só estabeleceram regimes previdenciários nos
anos 1950-60((Mesa- Lago, 1991).
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e corrigir as distorções eventuais do mercado. Em outras palavras, os benefícios da
previdência estão vinculados ao emprego, sendo um sistema corporativo e estratificado
no qual tendem a coexistir distintos sistemas, criados pelo Estado, para segmentos
específicos da classe trabalhadora (Draibe, 1993).4 A expansão dos benefícios
previdenciários pela via da pressão de grupos mais poderosos e de ações populistas e
corporativistas do Estado alcançou seu ápice nos anos 1950-60, período em que o
crescimento econômico fundado na substituição de importações era financiado com
pouca restrição orçamentária e com crescimento da dívida externa (Hujo,1999).
As nuances entre os três países começam a aparecer quando se observa a forma
política pela qual os trabalhadores foram incorporados aos benefícios previdenciários.
Distinguindo três tipos de incorporação - autônoma, por meio de confrontação e por
cooptação, Abranches (1982) afirma que enquanto a Argentina exemplifica um caso de
incorporação pela via do confronto, o Chile realiza um tipo misto que essencialmente
combina confrontação e cooptação. O Brasil é o caso limite oposto que incorpora os
trabalhadores via cooptação, sem confronto.
Na Argentina, o modelo mais geral de incorporação por confrontação assume
um caráter de cooptação por parceria sob Perón, na medida em que se assenta na relação
entre política social e controle corporativo. Esse modelo gerava políticas sociais
abrangentes, mas voltadas, como privilégios, apenas para os segmentos dos
trabalhadores mais fortes do ponto de vista da organização sindical, em troca do
controle estatal: o fato de pertencer a uma organização sindical era a via de acesso ao
direito de cobertura pública. Com a queda de Perón, o padrão de relação dos sindicatos
com o Estado entra em rota de confrontação, frustrando não só as tentativas de
cooptação, mas também os ensaios de reversão liberal sob a ditadura dos anos 1970.
Até as reformas dos anos 1990, havia três Caixas previdenciárias no país: a dos
trabalhadores dependentes do setor privado, a dos dependentes do Estado e a dos
autônomos, sendo que permaneciam em sistemas especiais as Forças Armadas, os
policiais, os magistrados e funcionários provinciais e municipais. A despeito da
existência dessa segmentação, a ampla expansão dos benefícios sociais aos diferentes
4
Esse modelo é bastante distinto do modelo redistributivo, vigorante nas sociais democracias européias,
voltado para a produção e distribuição de bens e serviços públicos fora do mercado, garantidos a todos
por critérios universalistas e, portanto, como direitos sociais. Por essas razões, costuma-se denominar o
modelo social democrata como “seguridade social”, diferenciando-o do conceito restrito de “seguro
social” (Draibe,1993: 7). Do ponto de vista técnico, os regimes previdenciários adotados na maioria dos
países latino-americanos são de repartição – os mais difundidos no mundo - porque financiados por
contribuições de trabalhadores, patrões e Estado (Kay, 2003:102).
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grupos, permitiu à Argentina ter um sistema quase universal, com tendências de
homogeneização e universalização. Com isso, configurou-se ai um dos modelos menos
desiguais da região, tanto em termos de financiamento quanto em termos de benefícios e
cobertura. (Draibe, op.cit:11).
No Chile, o modelo de incorporação dos trabalhadores combina confrontação e
cooptação. De sua criação no início do século XX até 1970, o sistema vai da
modalidade de cooptação a uma limitada incorporação autônoma. Em seguida, passa à
confrontação e finalmente à exclusão com a ditadura de Pinochet (Abranches, op.cit).
Ao longo de todo o período, a expansão dos programas sociais é marcada pelas
tentativas de cooptação dos trabalhadores que, entretanto, resistiram, especialmente nos
momentos de polarização política. Associando tentativas de cooptação com repressão e
distribuição de privilégios, o sistema chileno forjou divisões entre segmentos de
empregados e operários e combinou trajetória de expansão vertical – criação de novos
benefícios – com expansão horizontal, massificando vantagens. Antes da reforma
efetuada pela ditadura, havia 35 Caixas de Previdência, com diferenciados planos de
benefícios, que cobriam aproximadamente 75% da força de trabalho, excluindo os
trabalhadores rurais e o setor informal. Todas as tentativas de unificação e
homogeneização do sistema, ensaiadas pela social democracia e pelos socialistas nas
décadas de 1950 e 60 foram frustradas (Draibe, op.cit.).
O Brasil, por sua vez, organizou a previdência social fundamentalmente via
cooptação, ou seja, como privilégio legal e forma de controle corporativo. Após as
primeiras legislações e organizações dos anos 1920, o sistema se expande com a
incorporação dos trabalhadores, segundo o perfil ocupacional e mediante forte controle
burocrático estatal dos sindicatos. O padrão de cooptação baseava-se em relações
clientelistas e de trocas de favores políticos entre sindicatos, Ministério do Trabalho,
institutos de aposentadorias e pensões e ainda o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro).
Essa rede de interesses impediu, durante todo o período da chamada democracia
populista de 1946-64, a realização de qualquer projeto de unificação administrativa e
financeira do sistema e a universalização dos benefícios. A unificação e universalização
só ocorrerão em 1966-67, sob o governo militar que cria o Instituto Nacional de
Previdência Social (INAMPS), substituindo as antigas Caixas e estendendo os
benefícios aos trabalhadores rurais, em 1971 (com o FUNRURAL), e aos empregados
domésticos, em 1972 (Malloy, 1979; Cohn,1981). Até inícios da década dos 80, o
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sistema cobria mais da metade da força de trabalho e pouco mais de um terço da
população total do país.
2. As reformas liberais: timing, marco institucional e difusão do ideário
2.a. Marco institucional
Enquanto no Brasil e na Argentina, as constituições democráticas foram
desenhadas sem influência significativa dos governos militares, no Chile, o legado
ditatorial foi intenso e teve continuidade durante mais de duas décadas, só se
modificando parcialmente em meados dos anos 2000. Quebrando a Constituição
anterior, a junta militar chilena preparou uma nova carta que buscava perpetuar o poder
moderador das Forças Armadas, além de “corrigir” tendências à fragmentação do
sistema político que supostamente eram responsáveis pelo caos que marcou o país antes
de 1973 A Constituição aprovada em 1980, em plebiscito controlado pelo regime,
garantiu que Pinochet se mantivesse no poder, sem ter que renunciar como comandante
em chefe das Forças Armadas; criou o posto de senador vitalício, estabeleceu um
sistema eleitoral que impôs a cooperação entre Executivo e Legislativo, privilegiou
estratégias de coalizão entre os partidos, além de proteger a direita da perda absoluta do
poder (Anastásia, Melo e Santos, 2004).
Com a presença de senadores vitalícios, os governos eleitos no período
democrático, mesmo formado por uma coalizão de partidos de centro-esquerda (a
“Concertación”) tiveram muita dificuldade para processar mudanças na Constituição de
1980 destinadas a neutralizar a influência das Forças Armadas, alterar o sistema
eleitoral favorecedor dos partidos de direita (com a imposição de distritos binominais) e
eliminar os membros designados do Senado. Apenas em 2005 é que se conseguiu banir
da Constituição a figura dos senadores vitalícios e introduzir a remoção do chefe das
Forças Armadas pelo presidente da república.
Na Argentina, o poder militar foi bastante reduzido com a redemocratização. A
mudança na Constituição (que datava de 1853) aconteceu só em 1994, no chamado
pacto de Olivos: o mandato presidencial foi reduzido de seis para quatro anos, mas
estabeleceu-se a reeleição para o presidente da república e governadores; foi abolida a
eleição indireta de senadores e seu número foi aumentado dois para três por estado. No
aspecto econômico, com a persistência da crise, ao longo de todo o primeiro governo
democrático – que inclusive levou à renúncia do presidente Alfonsin – foi realizada
importante mudança institucional no governo Menem,
a Ley de Convertibilidad.
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Procurando estabilizar a economia, essa lei restringiu os gastos públicos – que não mais
poderiam exceder as receitas –, e estabeleceu uma taxa de câmbio fixada ao dólar.
Embora sendo lei ordinária, esta nova regra representou ponto de inflexão na história
recente da Argentina por seus impactos na dinâmica política e econômica do país
(Anastásia, Melo e Santos, 2004; Palermo, 2004; Novaro, 2006).
No Brasil, a Constituição democrática de 1988 foi elaborada quando a crise do
modelo de Estado nacional desenvolvimentista não era claramente percebida e o clima
ideológico neoliberal não havia ainda se consolidado como visão dominante. Como a
constituição exprimia o padrão de relações Estado e sociedade vigorante desde os anos
1930, as reformas liberais do governo FHC exigiram, portanto, como condição prévia a
aprovação de várias emendas constitucionais (Sallum, 2004; Melo, 2002).
Além de garantir plenamente os direitos civis, de devolver poderes ao
Legislativo e Judiciário, a Constituição de 1988 também descentralizou o poder no
plano federativo, fortaleceu política e financeiramente os estados e municípios e
inclusive permitiu participação à sociedade civil na gestão das políticas públicas. Mas,
receando reproduzir a situação da instabilidade política que havia caracterizado o país
antes do golpe militar de 1964 e procurando garantir condições de governabilidade, o
texto de 1988 manteve poder de agenda para o Executivo, sobretudo, através das
medidas provisórias (Mainwaring, 1997; Figueiredo e Limongi, 1999).
Se no Brasil e Argentina, o poder legislativo do presidente foi amplamente
utilizado para levar adiante as reformas dos anos 19905, no Chile, a Constituição de
1980, ainda em vigor no país, enfraqueceu tanto o Congresso que o sistema político tem
sido definido como “presidencialismo exagerado”, pois a presidência é considerada a
mais poderosa da América Latina e, talvez, do mundo (Baldez e Carey, 1999). Também
dá peso desmesurado do Senado, até recentemente composto também por senadores não
eleitos e vitalícios, reforçando a concentração de poderes e o peso do Executivo.
Se as condições institucionais concentradoras de poder permitiram que os
governos realizassem os ajustes necessários à inserção internacional , veremos a seguir
o papel desempenhado pelas ideias para orientar e justificar tal processo de ajuste, em
consonância com o que ficou cunhado como Consenso de Washington. Com vários
autores mostraram, as mudanças na área da previdência social foram pautadas pela
idéia de que o mercado é o melhor alocador de recursos e de que as políticas sociais não
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Antes de Menem, os presidentes argentinos eleitos lançaram 25 decretos de emergência. Só Menem
lançou 308 de 1989 a 1993( Kay, 2003: 122)
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podem entrar em choque com o crescimento econômico (Montecinos, 1998; Castiglioni,
2003; Novaro, 2006).
2.b. A difusão do receituário liberal
Historicamente, o Chile teve um regime constitucional relativamente estável com
amplas liberdades e considerável participação política. Ao mesmo tempo um traço
particular caracterizou a política chilena a partir da segunda metade do século passado:
a presença de um corpo de tecnocratas desempenhando papel de relevo na alta
burocracia governamental. Já nos governos de Eduardo Frei (1964-70) e de Salvador
Allende (1970-73), a "tecnocratização" do processo decisório esteve relacionada à
expansão das agências estatais e da ação econômica do governo e à modernização do
sistema administrativo público (Stallings, 1990; Markoff & Montecinos, 1993 e 2009) .
Contudo, foi o fechamento do processo político e da luta partidária, durante a
ditadura militar, que permitiu a consolidação do poder de profissionais especializados,
especialmente através dos chamados Chicago boys. (Montecinos & Markoff, 2009),
economistas formados na Universidade de Chicago sob a orientação liberal de Milton
Friedman, que foi responsável pela formulação e execução das políticas econômicas
durante todo o período do governo Pinochet e também pelas políticas sociais, em
particular, a reforma da previdência social, ainda nos anos 806.
A privatização da previdência Chile atraiu amplo respaldo político tanto da
comunidade
financeira
internacional como
FMI,
Banco
Mundial
e
Banco
Interamericano de Desenvolvimento que a recomendaram para o restante da América
Latina e de outras regiões. A publicação do relatório “Averting the Old Age crisis:
Policies to Protect the Old and Promote Growth”, em 1994 pelo Banco Mundial atraiu
ampla atenção internacional para o tema da reforma da previdência. Ele se “tornou o
paradigma mundial para as reformas do sistema de pensões que privatizaram total ou
parcialmente os sistemas públicos (Mesa- Lago, 2007: 119) e fez com que o Banco
Mundial passasse a ser o principal centro de pesquisa, desenvolvimento e difusão da
tecnologia da privatização da previdência (Kay, 2003; Brooks, 2003).
6
A ideia orientadora era que os programas sociais não poderiam entrar em choque com o crescimento
econômico e o Estado deveria concentrar sua atenção apenas nos setores de baixa renda, com mínimo
envolvimento na administração e implementação dos programas sociais. Segundo palavras de Büchi,
ministro das Finanças na época: ”Nada mais patético do que programas sociais que encorajam o
parasitismo social” (Castiglioni, 2003:90).
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Visco como exemplar, o caso chileno reforçou o peso do ideário liberal que se
torna o mapa cognitivo das reformas destinadas a ajustar as economias dos países em
desenvolvimento a sua inserção na era do capital globalizado (mais do que propriamente
o desequilíbrio financeiro das contas previdenciárias)
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Este mesmo clima ideológico
referendou as reformas no Brasil e Argentina na década dos 1990, tanto na área
econômicas quanto na previdência que passou a ser vista como meio de impulsionar a
poupança e o crescimento econômico interno. Mesmo que as pesquisas posteriores
tenham mostrado não relação clara entre a privatização da previdência e a formação da
poupança interna, essa privatização foi exaltada pelos mercados financeiros
globalizados como um compromisso dos governos dos países em desenvolvimento com
as reformas pró-mercado (Maxfield, 1997; Brooks, 2003).
Examinando porque as orientações do Consenso de Washington galvanizaram
tanto as elites econômicas e políticas argentinas, indica-se que, em contraste com o
Brasil a estratégia das reformas na Argentina foi de “fuga para frente”, ou seja, seus
dirigentes procuravam se afastar de um passado para o qual temiam voltar; no Brasil a
lógica reformista consistia em preservar interesses para avançar em um futuro no qual
se temia ingressar. Assim, enquanto a Argentina queimou as pontes e se internou com a
maior determinação em um novo território, o Brasil avançou a contragosto. (Palermo,
1998). Porém, o paradigma do Consenso de Washington estava à mão do presidente
Menem porque o setor financeiro havia alcançado posição de hegemonia no setor
empresarial, tornado-se seu organizador e articulador, em uma sociedade em que até o
cidadão comum havia se convertido cotidianamente em “operador financeiro”.
No Brasil, ao contrário, afirmam os analistas o próprio êxito do modelo nacional
desenvolvimentista gerou resistências às orientações liberais e explicam, por exemplo,
a não privatização de empresas com a Petrobrás, configurando aqui um padrão
reformista menos radical e mais realista, distante de um ideário neoliberal puro (Tavares
de Almeida, 1996; Sallum, 2004).
3. As reformas liberais na previdência social
3.a. A reforma chilena
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As mudanças foram implantadas mesmo antes da eclosão da crise que levou o país à situação de grande
recessão econômica. Obviamente a dura repressão política que transformou a previdência em campo de
experimentação foi fundamental para colocar em prática o receituário ortodoxo.
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Sendo a primeira a ser realizada no continente, já nos anos 1970, sob o regime
ditatorial, a reforma do sistema previdenciário no Chile foi realizada por grupo de
economistas monetaristas, formados nos Estados Unidos, sob a liderança de José Piñera.
À frente do Ministério do Trabalho, ele elaborou um projeto que serviu de base para o
decreto do governo Pinochet, de 19798. Sem debate público e qualquer aviso prévio, as
regras de acesso e os benefícios foram padronizadas, unificando-se os múltiplos
sistemas existentes e eliminando privilégios de segmentos mais organizados, com
exceção das forças armadas, centro do poder político à época. Em 1980, uma segunda
etapa é lançada, com o desmonte do antigo sistema público, proibição de novas filiações
neste sistema e a introdução do novo esquema compulsório, com base na capitalização
individual total, gerido por sociedades anônimas privadas concorrentes. A contribuição
patronal foi extinta e os trabalhadores tiveram que assumir elevadas taxas de
administração e de securitização. O Estado continuou participando do sistema, para
garantir a filiação compulsória, sua regulação e supervisão, estabelecendo tetos,
elaborando ranking dos instrumentos de investimento, assumindo (e, portanto,
socializando com o conjunto da sociedade) o pesado ônus fiscal da transição de antigo
para o novo regime e, ainda, oferecendo garantias aos segurados e pensionistas (MesaLago, 2003:30-31). Em suma, o modelo de capitalização individual substituiu o antigo
regime de repartição, transferiu responsabilidades para o setor privado, restringiu
benefícios, tornou mais duras as regras de habilitação e reduziu drasticamente a
participação do Estado na concessão e administração das aposentadorias (Castigliioni,
2003:65-66).
Mesmo tendo havido um drástico encolhimento da proteção social e efeitos
perversos para os trabalhadores, os governos democráticos dos anos 90 não alteraram
imediatamente o sistema imposto pelos militares: As estatísticas indicavam que em
1999 quase a totalidade dos trabalhadores segurados (96%) estava no regime privado de
previdência social9. Além dos bloqueios institucionais contidos na carta constitucional
8
Desde o início dos anos 70, os economistas haviam proposto a reforma da previdência, mas encontraram
forte oposição ao projeto por parte de um dos membros da junta militar, general Leigh. Somente depois
que Pinochet consolidou seu poder, com a exoneração de Leigh, é que a equipe econômica conseguiu
levar adiante o projeto (Ver descrição detalhada deste processo em Castiglioni, 2003:80-81)
9
Enquanto o nível de cobertura da força de trabalho em 1973 era de 73%, ela chegou a 29% em 1982,
logo depois da reforma. Posteriormente ela se eleva, estabilizando-se em tornou de 57%(Mesa- Lago,
2009). Além disso, a privatização trouxe mais riscos para os aposentados porque a maioria das garantias
previdenciárias é extinta. O novo sistema privado também é enormemente desvantajoso para as mulheres
devido à maior expectativa de vida e a sua prolongada ausência do mercado de trabalho para criar os
filhos (Arenas de Mesa e Montecinos, 1999; Kay, 2003).
14
herdada do governo militar, dificultando as mudanças do status quo, outro fator
fundamental para explicar porque os governos democráticos demoraram a alterar o
regime previdenciário no país, mesmo diante de seus resultados sociais perversos, pode
ser encontrada na adesão ao ideário liberal por parte de vários dirigentes dos partidos da
Concertación.
3.b. A reforma argentina dos anos 90
Se o sistema previdenciário já mostrava sintomas de desequilíbrios financeiros
desde os anos 1960, vítima de seu próprio sucesso por ser um dos menos desiguais da
região (Draibe, op.cit:12), foi a crise da dívida externa que agravou tais desequilíbrios.
Se as mudanças demográficas aumentaram a expectativa de vida e o número de
beneficiários, o declínio das contribuições decorreu, sobretudo, do desemprego e do
crescimento do trabalho informal. Gerando inflação e déficits fiscais, a crise da dívida
externa produziu também a erosão das aposentadorias e a própria deterioração da
situação fiscal das instituições de seguridade social. Esse conjunto de elementos ajudou
na difusão das idéias liberais que colocavam no Estado e na irresponsabilidade fiscal
dos agentes públicos a raiz principal dos males vividos pelos países devedores. Nesse
contexto, a privatização do sistema público de previdência surgiu como a solução.
A reforma efetuada pelo governo Menem foi influenciada pelo clima de crise
política e econômica do país. De um lado, os altos índices de inflação do inicio dos anos
1990 fez com que a situação da previdência se agravasse. 10De outro, o sucesso do Plano
de Convertibilidade - gerando a reversão temporária da situação econômica, com a
estabilização dos preços e o estímulo à entrada de capitais externos então disponíveis
graças ao ciclo de grande liquidez internacional - permitiu ao governo levar adiante o
programas de reformas liberais, as privatizações de empresas estatais, a liberalização do
comercio internacional, mas igualmente a reforma previdenciária.
Na verdade, a mudanças na previdência social foram propostas por especialistas
ligados ao Ministro das Finanças, Domingos Cavallo, que introduziram o sistema de
capitalização individual, subordinando claramente a área de seguridade social às
10
os valores dos benefícios não chegaram a 50% dos salários (quando deveriam legalmente oscilar entre
70 e 80%), levando à piora sistemática das condições de vida dos aposentados e à permanente ameaça de
insolvência do sistema, uma vez que a proporção de trabalhadores ativos para cada aposentado era de
1.5% e o déficit chegava a 1% do PIB ( Coelho, 2003:139).
15
estratégias da gestão macroeconômica11. Conseguindo tirar de cena os opositores às
reformas, nos antigos órgãos gestores da previdência pública, a nova equipe assumiu o
comando do processo, divulgando estudos e estimativas de que o déficit da previdência
era enorme, podendo representar em 2025 cerca de três vezes a dívida externa
argentinas de 1991(Coelho, 2003: 140).
Além da publicação de diagnósticos sombrios sobre a situação da previdência
que ajudavam a difundir um novo clima ideológico no país e a neutralizar os opositores
no interior da burocracia governamental, houve importantes negociações com outros
prováveis opositores à reforma. Destaque deve ser dado ao acordo do governo com a
CGT, principal confederação de trabalhadores argentinos, que acabou apoiando a
privatização12. Os demais opositores não conseguiram se articular com os partidos
políticos para formar uma aliança anti-reforma. Além disso, poderosos grupos privados
defenderam ativamente a privatização, tais como as associações industriais, os bancos,
as empresas de seguros, a Bolsa de Valores etc.(Coelho, 2003). Também as estruturas
institucionais facilitaram bastante a tarefa reformista, especialmente os poderes de
decreto à disposição de Menem, assim como a disciplina partidária (favorecida pela lista
fechada). A mera ameaça de um decreto de emergência enfraquecia o poder de veto do
Legislativo (Kay, 2003:122-123).
Com essas condições político-ideológicas e institucionais, o governo Menem
conseguiu aprovar em 1993 o projeto de reformas que foi posto em vigor em 1994. No
novo sistema, os trabalhadores poderiam contribuir tanto para o sistema previdenciário
público quanto para o privado e receberiam benefícios de ambos, ou seja, eles tiveram a
opção de contribuir com 11 % de seus salários para o sistema reformado de repartição
ou para uma conta individual administrada por uma Administradora de Fondos de
Jublizción y Pensiones (AFJP). A arrecadação das contribuições continuou a cargo do
Estado que deveria encaminhá-las às administradoras (públicas ou privadas), criando
também um órgão encarregado do controle do novo sistema. Parte dos custos da
transição foi financiada com recursos da privatização da empresa petrolífera YPF.
Diferentemente do Chile em que as contribuições dos patrões foram extintas, as
11
Schulthess, um especialista em seguridade social, ligado à Fundação Mediterrânea (a consultoria
privada, sediada em Córdoba, sob o comando de Cavallo) foi quem ocupou a Secretaria de Seguridade
Social encarregada da reforma, com a ajuda de numerosos técnicos pagos pelo BID e o Banco Mundial.
12
A CGT ligada ao partido peronista de Menem aceitou a privatização em troca de apoio do governo aos
planos de seguro-saúde sindicais (importante fonte de receita para eles) e da oportunidade de investir nos
fundos de pensão privados (os sindicatos têm participação majoritária em dois dos novos fundos
privados).
16
negociações na Argentina fizeram com que eles continuassem contribuindo com 16% da
folha de pagamento para financiar o benefício básico universal a que todos os
trabalhadores têm direito no sistema público de repartição (Kay, 2003: 110-111).
3.c. As mudanças tardias e parciais no Brasil
As reformas pró-mercado no Brasil ocorreram mais tardiamente em relação aos
dois outros países e assumiram um formato mais pragmático e moderado frente ao
receituário. Elas representaram a desconstrução da agenda constituinte mesmo que esse
processo tenha tido um caráter errático e relativamente longo Embora aqui também
houvesse diagnósticos sombrios sobre a crise do sistema desde os anos 80, as reformas
recomendadas foram retardadas por dificuldades políticas. Assim, o tema só entrou na
agenda pública só no governo Cardoso, em meados dos anos 1990, e orientando-se
também pela problemática fiscal, de redução dos gastos públicos (Melo, 2002: 50). A
estabilização econômica alcançada a partir de 1994 facilitou seu encaminhamento
político, na medida em que o controle da inflação esgotou o recurso às receitas
inflacionárias que, até então, permitiam à União e aos governos estaduais amenizar os
efeitos do crescimento das despesas públicas, especialmente dos gastos com as
aposentadorias. O fim da inflação desnudou a gravidade do déficit público e impôs a
busca por soluções mais definitivas.
O debate sobre o tema gerou três projetos que foram postos em pauta entre 1995
e 1998. O primeiro visava ajustar o sistema de repartição, reduzindo privilégios do
sistema público e recuperando o vínculo contributivo, mas não foi aprovado pelo
Congresso. Em 1997, o governo fez divulgar novos dados sobre o déficit, o que ajudou
a fazer com que o tema voltasse à agenda pública, agora com uma nova proposta
formulada por grupo liderado por Lara Resende, um dos economistas que havia
elaborado o plano de estabilização monetária. Trabalhando de forma insulada, sob a
“proteção” direta do presidente da república, esse grupo apresentou um projeto mais
radical de privatização. Todavia, diante das estimativas de enormes custos da transição
(cerca de 200% do PIB pelos cálculos da CEPAL, de 250% pela FGV/RJ), tal proposta
foi abandonada. Com isso, os técnicos do Ministério da Previdência e Assistência Social
e do BNDEs voltam à cena reformista, com uma terceira proposta, mais moderada, que
consegue em 1998 ser aprovada e na qual são introduzidos apenas ajustes no sistema de
repartição para controlar as tendências deficitárias no curto prazo.
17
Buscando explicações para o fracasso das tentativas de se efetuar no Brasil uma
reforma na previdência, como os países vizinhos já estavam fazendo, e que era
altamente “recomendada” pelos organismos internacionais como a saída necessária
para resolver os problemas do país, os analistas apontam vários fatores. Não só a
natureza intrínseca de uma política de reforma previdenciária que, reduzindo benefícios,
tem elevados custos políticos, mas também fatores ligados ao tipo do sistema político
brasileiro, de presidencialismo de coalizão, exigindo ampla negociação entre o
Executivo e vários atores políticos com poder de veto. Tudo isso fortaleceu os
opositores da reforma, criando obstáculos para sua aprovação e resultando em uma
reforma mínima. De fato, depois de três anos de discussão, o embate político levado a
cabo no governo FHC resultou mudanças que apenas eliminaram algumas distorções na
ordem previdenciária, tais como a exigência de idade mínima e de tempo de
contribuição para a aposentadoria, a introdução do chamado “fator previdenciário” e a
taxação dos inativos, que contou com a mobilização dos governadores que enfrentavam
gravíssima crise fiscal relacionada à explosão dos gastos com pessoal, especialmente
com inativos.
Assim, conforme procurar-se argumentar nesse trabalho, tais dificuldades
relacionadas aos custos financeiros da transição e de ordem política fizeram com que
uma política reformista imposta por constrangimentos trazidos pela inserção do país na
economia global acabasse resultando em alterações pouco significativas. Em outras
palavras, os fatores domésticos atuaram como filtro para as pressões externas.
4. A inflexão dos anos 2000 no cenário internacional: a reforma da reforma
previdenciária
A partir dos anos 2000 ocorrem transformações significativas na economia global,
configurando um novo tipo de globalização. A entrada da China na economia mundial,
desempenhando aí um papel de enorme relevo, gerou mudanças profundas na dinâmica
da inserção dos países em desenvolvimento e permitiu a difusão do crescimento para
um número crescente de regiões que antes estavam com baixo desempenho econômico,
como a América Latina. Na verdade, a alta dos preços de commodities agrícolas,
industriais e de energia, a partir de 2002 permitiu que países como o Brasil, Argentina e
Chile “pegassem carona no trem chinês”, elevando seus níveis de crescimento e até
18
pudessem enfrentar a crise de 2008 em situação melhor do que os países centrais.
(CASTRO, 2008 e MIGUEL, 2011).
Paralelamente a esse processo de crescimento de economias como a da China e
também da India - que, ironicamente, não seguiram à risca o receituário do Consenso de
Washington - os impactos das crises financeiras do final dos anos 90 (a asiática em
1997, a da Rússia e Brasil em 1998-99) contribuem também para solapar a hegemonia
da ortodoxia liberal13. É nesse contexto, mesmo antes da eclosão da crise de 2008, que
alguns analistas diagnosticam a emergência de uma nova agenda social na América
Latina, com implicações claras para o fortalecimento de novas estratégias econômicas e
de desenvolvimento social ( Draibe, 2007) 14. Em outras palavras, a mudanças do mapa
cognitivo, juntamente com as transformações no cenário econômico internacional
possibilitaram a emergência gradativa nos países emergentes de um processo de
reversão de várias políticas públicas realizadas no período anterior, como é o caso da
previdência social.
Assim, no caso do Chile, depois de mais de 25 anos de implantação da reforma
da previdência social, o governo de Michelle Bachelet conseguiu aprovar em 2008 a
Ley de Reforma Previsional que estabeleceu um Sistema de “Pensiones Solidarias”,
recuperando os princípios de solidariedade e de direitos de cidadania esquecidos pelos
ideólogos liberais (Mesa-Lago,2008). Também em 2008, o governo de Cristina
Kirschner conseguiu aprovar reforma, eliminando o regime de capitalização individual
gerido pelas administrações privadas e o transportou para um sistema único integrado
de repartição e administração pública (Mesa-Lagos, 2009). No Brasil, depois das
algumas alterações feitas no sistema público, o governo Lula acabou “congelando” o
processo reformista, optando pela estratégia de modernização e aperfeiçoamento do
processo de arrecadação do sistema previdenciário como forma de reduzir seus déficits.
13
As criticas ao receituário do Consenso de Washington são formuladas nesse período não só por
economistas dissidentes como Stiglitz (2000), mas também pelos próprios dirigentes dos organismos
internacionais como Straus Kahn. Sobre mudanças nas orientações dos organismos internacionais,como o
Banco Mundial, também ocorridas nesse período, ver Kugelmas (2011).
14
Os indícios deste novo cenário aparecem na Argentina no governo Kirschner. Além de enfrentar os
credores internacionais, ele adota medidas para retomar o crescimento e geração de emprego, através da
manutenção de taxas competitivas de câmbio real, de fomento á poupança interna e ao investimento que
acabaram gerando resultados positivos. Assim, o PIB sai de 1,4% entre 1993-2001 e alcança 8,8% entre
2003-2008. Nesse mesmo período, a poupança privada cresceu de 14.7 para 24 % e a taxa de
investimento subiu de 18.1 para 24.1% em relação ao PIB do país.
19
4.a A reforma no governo Bachelet
Na medida em que começam a emergir evidências de que o sistema criado pelos
militares tinha sido incapaz de oferecer aposentadorias dignas, as críticas aos impactos
da reforma se intensificam. O chamado “sucesso” começa a ser seriamente questionado
uma vez que o modelo de capitalização individual deixou de lado grande parte da
população mais pobre e as empresas de administração dos fundos de pensão acumulam
grande parte da riqueza do país, sendo as principais beneficiárias do modelo implantado
pelos militares15.
O processo de revisão e modificação do sistema de previdência estabelecido
durante a ditadura de Pinochet teve início em março de 2006, quando foi criado o
Conselho Assessor Presidencial para a Reforma Previsional (constituído por quinze
conselheiros nomeados pela Presidente Michelle Bachelet) com a tarefa de elaborar
propostas de reformulação do sistema. Envolvendo consulta a vários grupos
organizados na sociedade civil, sob a forma de audiências públicas, o Conselho discutiu
vários temas sendo que os mais reiterados foram: densidade de cotizações, incorporação
de trabalhadores independentes, discriminação da mulher, custos de administração e
nível e estrutura das taxas de administração (cobradas pela AFP), competência entre
fundos de pensões, pilar solidário do sistema de pensões, benefícios não contributivos
garantidos (pensão mínima garantida e pensões assistenciais - PASIS), participação dos
trabalhadores e a necessidade de participação do Estado no sistema de pensões.
Adicionalmente, o processo de consulta contemplou a instalação de uma página web 16
com uma seção interativa (Consejo Asesor Presidencial Para la Reforma Previsional,
2006a) (Draibe, 2007).
O novo sistema tem dois componentes básicos: o primeiro cria uma pensão
básica solidária para velhice e invalidez substituindo o antigo sistema assistencial,
financiado pelo Estado e tem como objetivo atingir imediatamente 40% da população
mais pobre. O segundo componente da reforma que substitui a pensão mínima consiste
em uma ajuda paga pelo Estado para complementar à pensão contributiva das pessoas
maiores de 65 anos com poucos recursos, independentemente dos anos de sua cotização.
Embora o novo sistema criado pelo governo Bachelet em 2008 ofereça uma pensão
básica para a maioria dos afiliados cuja capacidade de poupança é insuficiente, a
15
Hoje as empresas que administram os fundos de pensões, em grande parte ligadas a grupos financeiros
externos, representam 40% do PIB (superior à economia do cobre, que representa 23%) (Riesco, 2006).
16
http://www.consejoreformaprevisional.cl/view/presentacion.asp?seccion=presentacion
20
reforma tem recebido críticas, especialmente por parte de grupos e organizações mais a
esquerda, que afirmam ser a aprovação das mudanças no governo Bachelet apenas “um
passo inicial, restando pendente o principal”. Dentre os grupos que criticam destaca-se o
CENDA (Centro de Estudios Nacionales de Desarrollo Alternativo) que chegou
também a apresentar propostas ao conselho Assessor da Presidência chilena e mantém
de forma relativamente atualizada em seu site informações, documentos e análises sobre
o tema.
Em vários documentos divulgados já em 2006, o CENDA indicava que as
propostas encaminhadas pelo governo ao Congresso não alterava o modelo de
capitalização individual. Esse modelo permaneceria como pilar único para os segmentos
médios da população cujas aposentadorias continuariam incertas e com valores muito
inferiores ao que receberiam nos antigos sistemas de repartição, especialmente para as
mulheres. Além disso, houve tímidas alterações na administração das aposentadorias,
não se tocando no cerne do problema que é a obrigação legal de que todos os chilenos
se filiem a uma administradora de fundos de pensão (AFP). Também organizações
sindicais criticam a timidez da proposta afirmando que a condição mínima para que a
reforma tenha legitimidade plena é a reparação do dano previdenciário, igualando-se as
pensões outorgadas pela AFP às oferecidas pelo sistema antigo e restabelecendo-se as
contribuições patronais a um fundo de repartição solidário. Consideram ser possível
restabelecer gradualmente o sistema de repartição, evitando-se o desvio das
contribuições para fins que não sejam o pagamento de pensões.
4.2. Re-estatização do modelo previdenciário argentino no governo Kirschner
Desde a grande crise econômica de 2001, inúmeras críticas foram formuladas ao
modelo de capitalização individual implantado na Argentina, no período de reformas
liberais. Tendo eliminado o princípio da solidariedade, como no Chile, esse modelo
levou à redução drástica da cobertura dos trabalhadores e da população idosa,
aprofundou a desigualdade de gênero, exigiu aportes excessivos para a obtenção de
pensão mínima. Também submeteu os pensionistas aos riscos do mercado financeiro e
às altas taxas de administração dos fundos e impôs aos cofres públicos substanciais
custos fiscais para a transição17.
17
Ver Mesa-Lago (2009). Esse autor também calculou que a cobertura da população
economicamente ativa na Argentina caiu de 50% a 36% entre 1993 e 2007.
21
As críticas crescentes ao sistema de capitalização geraram debate nacional que
mobilizou diferentes setores de classe e incluiu a publicação pela Secretaria de
Seguridade Social de um “livro branco” com informações e recomendações técnicas
para a mudança do sistema. Assim, no final de 2008, o Congresso argentino aprovou o
projeto de reforma apresentado pelo governo de Cristina Kirschner que eliminou o
regime de capitalização individual gerido pelas administrações privadas e o transportou
para um sistema único integrado de repartição e administração pública.
As principais mudanças trazidas pela Lei de reforma previdenciária de 2008
foram: a) Transferência de todos os contribuintes do sistema de capitalização individual
e dos fundos de contas individuais para o sistema público de repartição que se converteu
no Sistema Integrado de Previdência Argentino (SIPA); b) Cobertura e tratamento para
os novos entrantes iguais àquela dos participantes do sistema público, sendo que o
estado garantirá iguais ou melhores benefícios àqueles que seriam obtidos no sistema
privado, no momento em que Lei entrou em vigor; c) Transferência dos recursos do
sistema privado para administradora pública ANSES (Adminsitración Nacional da
Seguridad Social) que gozará de autonomia financeira e econômica e será
supervisionada por uma Comissão Bicameral de Controle dos Fundos de Seguridade
Social do Congresso Argentino; e ainda a transferência dos aportes obrigatórios futuros
para um Fundo de Garantia monitorado também por um colegiado e com investimentos
estipulados por lei.
Segundo analistas, se tais mudanças procuraram reparar danos trazidos pelo
sistema privado aos trabalhadores, elas implicam também riscos. Segundo Mesa Lago
(2009), há muitas imprecisões e vazios jurídicos na lei argentina de 2008. Por exemplo,
ela propõe pagar um benefício igual ou melhor do que receberia o contribuinte no
sistema privado, embora esse sistema não outorgasse benefício definido, mas sim
indeterminado sobre o qual incidiam fatores aleatórios como a rentabilidade financeira
das empresas administradoras dos fundos de capitalização individual. A Lei estabelece
que as rendas vitalícias continuam sendo pagas pelas companhias de seguro, mas não
regulou esse aspecto, deixando grande margem de discricionariedade ao Executivo.
Todavia, o principal objeto de crítica recai sobre o Fundo de Garantia que
recebeu os recursos transferidos do sistema de capitalização individual para o sistema
integrado. Embora a lei afirme que a totalidade dos recursos do Fundo seja utilizada
apenas para pagamentos de benefícios, ela também estipula que o ativo desse Fundo
possa ser aplicado segundo critérios de seguridade e rentabilidade, “contribuindo para o
22
desenvolvimento sustentável da economia”. O diretor executivo da ANSES chegou
mesmo a declarar depois de aprovada a Lei que as contas transferidas ao Fundo de
Garantia seriam utilizados “para investimentos de longo prazo, com mão de obra
intensiva e para sustentar a economia argentina nesse período de crise...”. O que foi
contestado pelo secretário executivo de CEPAL nos seguintes termos: “ confiscar ativos
não é a maneira de se fazer política anticíclica em um país...(Mesa Lago, 2009: 22).
Além da ausência de definição jurídica clara a respeito do uso dos recursos do
Fundo de Garantia, outro ponto crítico da reforma refere-se ao Comitê gestor do Fundo
de Garantia cujas funções e poder não estão claramente definidos na lei. Os críticos
afirmam que, para se evitar o uso indevido dos fundos previdenciários, a ANSES não
deveria ser o gestor do Fundo que deveria ter um comitê autônomo, separado da
ANSES e dos recursos do Estado e administrado por um organismo técnico colegiado
sem interferência governamental e seguindo normas legais estritas.
4.3. Continuidade e posterior “congelamento” da reforma no governo Lula
A despeito das posições político-ideológicas distintas com relação àquelas
vigorantes no governo FHC, o governo Lula se inicia dando continuidade às políticas
macroeconômicas estabelecidas em 1999. O chamado tripé formado pelo superávit
primário, câmbio flutuante e metas de inflação é mantido, garantindo ao mercado o
compromisso com as condições de estabilidade do país, estabelecido já na campanha
eleitoral, com a “Carta aos Brasileiros” (Loureiro, Santos e Gomide, 2011). Em sintonia
com a preocupação de garantir credibilidade frente ao mercado, o tema da reforma
previdenciária é colocado na agenda do Congresso que aprova em 2003 mais alterações
para o sistema público.
Depois de várias negociações que envolveram concessões aos segmentos mais
poderosos do funcionalismo, como os magistrados, foram estabelecidos tetos de
benefícios para funcionários públicos e aprovada a emenda constitucional que permitiu
restabelecer a taxação para os inativos. Essa taxação, incluída na reforma do governo
Cardoso, havia sido posteriormente derrubada pelo Supremo Tribunal Federal como
inconstitucional.
Na verdade, o governo Lula acabou propondo tópicos de reforma a que seu
partido se opunha, quando era oposição ao governo FHC. Para Melo e Anastásia (2004),
a mudança da posição institucional – de oposição para situação - determinou a
possibilidade de o PT promover uma reforma contra a qual havia lutado nos anos
23
anteriores e de, inclusive, obter maior sucesso que o governo anterior na tramitação e no
resultado final. Isso porque, ao passar para a oposição, o PSDB não pôde adotar a
mesma estratégia do PT de opor-se sistematicamente ao governo. Soaria estranho aos
eleitores mudar tão radicalmente de opinião sobre um tema que defendera de forma
arraigada quando no governo.
Cabe destacar que a diferença na posição ocupada pelos atores não foi, porém, o
único fator explicativo, nem tampouco o mais importante, para a mudança de
preferências. A mudança de posição do PT em relação à reforma da previdência já
estava ocorrendo de forma paulatina, na medida em que a perspectiva de assumir o
poder se tornava mais provável e exigia, portanto, levar em conta os constrangimentos
colocados ao governo pela inserção do país na economia global. Na verdade, a
solvência e credibilidade frente ao mercado financeiro são fatores decisivos também
para os governos conduzidos por partidos com históricos compromissos populares,
como o PT. As circunstâncias políticas e econômicas em que o governo Lula assumiu a
presidência em 2003 fizeram com que o poder de fogo do mercado se configurasse
claramente como variável tão ou mais decisiva quanto as demandas do eleitorado. É
neste quadro que devem ser entendidas as mudanças na previdência tomadas pelo
governo Lula no início de seu primeiro mandato, em continuidade àquelas tomadas no
governo FHC.
Todavia, depois dessas alterações apontadas acima, o tema da reforma foi
retirado da agenda governamental. Reiterando o argumento aqui desenvolvido, o que foi
facilitado inclusive pela conjuntura internacional favorável, que já havia permitido a
acumulação de enormes reservas na balança comercial e já aponta perspectivas de
elevação das taxas de crescimento econômico.
Assim, no início de segundo mandato,
o presidente Lula instituiu um fórum para a discussão do tema, integrado por
representantes dos trabalhadores, dos empregadores e do governo. No final dos
trabalhos, o fórum concluiu de forma consensual que a Previdência Social deveria
continuar sendo parte integrante do conceito de seguridade social, financiando-se com
as contribuições dos trabalhadores e empregadores, além dos recursos do orçamento da
seguridade social, conforme previsto na Constituição Federal e contrariando as
propostas reformistas de viés fiscalista. Mesmo não havendo consenso sobre regras de
idade mínima e de tempo de contribuição para acesso a benefícios, os integrantes do
fórum conseguiram estabelecer acordo com relação à permanência da vinculação dos
24
benefícios assistenciais ao salário mínimo, item cuja modificação tinha sido considerada
fundamental pelos economistas ortodoxos18.
Esse último ponto foi decisivo, porque marcou a reversão na política
previdenciária com que Lula iniciou seu governo. Mesmo tendo vetado a proposta
aprovada no Congresso Nacional, que eliminou o fator previdenciário (e que teria como
consequência a elevação das contas da Previdência de forma estrutural), observa-se a
partir desse período a emergência, de forma clara, de uma nova tendência do governo
petista frente ao tema da reforma da previdência. Isso ocorre paralelamente à
consolidação dos programas sociais e sua consequente aprovação eleitoral. A adoção da
política de elevação continuada do salário mínimo, mesmo tendo impactos sobre os
gastos do INSS é uma prova cabal disso 19.
Tais medidas têm que ser compreendidas levando-se em conta que o governo
Lula tem se pautado por dupla agenda econômica: de um lado, mantém as políticas
macroeconômicas herdadas do governo Cardoso, o chamado tripé macroeconômico –
câmbio flutuante, metas de inflação e superávits primários; e de outro, levou adiante as
políticas de ativação da demanda, com expansão do crédito, elevação do salário mínimo
e políticas de transferências de renda, responsáveis, em grande parte, pela aceleração do
crescimento. Da mesma forma, a área da previdência teve dupla agenda. De um lado, no
início do governo, foram efetuadas mudanças paramétricas, em continuidade à agenda
do governo anterior, que atingiram os segmentos mais fracos politicamente do
funcionalismo público (como professores universitários); além disso, medidas mais
populistas do Congresso - incluindo a própria base de apoio do governo, que aprovou a
eliminação do fator previdenciário - foram rejeitadas por veto presidencial. De outro
lado, o processo reformista foi congelado e foram desprezados os impactos da elevação
18
Cabe relembrar que no segundo governo Lula houve importante inflexão na política macroeconômica
ortodoxa estabelecida no primeiro governo, considerada responsável pelos baixos índices de crescimento
econômico do país. Essa inflexão resultou também na mudança dos dirigentes das principais agências
governamentais de política econômica, ligadas ao Ministério da Fazenda e do Planejamento, como o
IPEA, além do BNDES (Loureiro, Santos e Gomide, 2011)..
19
Mesmo tendo impactos nos gastos do INSS, a decisão de elevar o salário mínimo acima da inflação –
na média de 11,7% entre 2003-2005, de 24,75 entre 2006-2008 e de cerca de 50% entre 2003 e 2011–
parece ser irreversível pois seus impactos econômicos e políticos são importantes: permitiu considerável
expansão da capacidade de consumo dos trabalhadores, gerando crescimento via distribuição de renda
e, portanto, legitimidade política e respaldo eleitoral. Com relação ao “congelamento” da política
reformista da previdência, ela tem sido sustentada no plano ideológico por publicações oficiais do IPEA
que questionam seus fundamentos liberais. Cita-se o livro organizado por um dos diretores do IPEA, João
Sicsú,,“Arrecadação e Gastos Públicos”. Nele se questionam as informações sobre o déficit da
previdência e se analisa a arrecadação não do ponto de vista de sua carga total, mas dos grupos sociais
que mais pagam impostos, confrontando os assalariados frente ao setor financeiro.
25
do salário mínimo sobre as contas do INSS, investindo-se em processos de melhoria da
gestão, visando maior eficiência da arrecadação e do controle de fraudes.
Em suma,a retomada do crescimento econômico com o consequente aumento da
arrecadação fiscal e redução das pressões fiscais, a elevação do número de trabalhadores
formalizados e contribuintes do sistema previdenciário, além de avanços no próprio
gerenciamento e na eficiência do sistema previdenciário, tudo isso levou a um
arrefecimento da discussão em torno da reforma da previdência no Brasil. Mas, o mais
significativo nesse processo de deslocamento da agenda reformista foi a mudança no
cenário econômico internacional com a retomada do crescimento econômico no Brasil,
Argentina e Chile, especialmente com a entrada da China e dos países posteriormente
denominados de BRICs e o conseqüente declínio da hegemonia liberal e do receituário
ortodoxo das agências internacionais, já em curso desde as crises asiáticas de 1997, mas
reforçado após a crise financeira iniciada 2008.
Considerações Finais:
Procurou-se neste trabalho analisar as mudanças ocorridas no sistema de
Previdência Social na Argentina, Brasil e Chile à luz da inserção desses países na
economia global e das mudanças que pautam esse processo, de forma estrutural, na
medida em que ele se funda na ilimitada circulação dos fluxos de capitais e
mercadorias. Todavia, os fatores domésticos não foram descartados da análise, mas
tomados como filtros mediante os quais os constrangimentos trazidos por aquela
inserção são incorporados internamente, gerando timings diversos de mudanças
(processos mais ou menos longos e negociados), assim como graus diferenciados de
intensidade (reformas mais ou menos radicais). Também a direção assumida por eles
(orientadas pela lógica fiscal e pela credibilidade financeira, no período de hegemonia
liberal e, mais recentemente, também por efeito das transformações na economia global
e do descrédito da ortodoxia liberal, levando em conta também princípios de
solidariedade e proteção de direitos).
O conjunto de informações aqui reunido indica que, a despeitos da variedade de
respostas no arranjo estabelecido para a área da previdência, houve um processo comum
aos três países: a inserção na economia global que impõe constrangimentos aos
governos nacionais, mas também lhes oferece oportunidades para reversão do curso de
26
suas políticas públicas em função dos diferentes momentos por que passe aquele
processo de inserção ou em suas conjunturas cambiantes. Assim, a presente conjuntura
está permitindo para a área da política pública da previdência social um arranjo
institucional e político que combina um mix entre estado e mercado, ou seja, um arranjo
entre sistemas que podem privilegiar o princípio de solidariedade social, sem deixar de
considerar a lógica financeira.
Por fim, cabe mencionar que, embora no âmbito desse trabalho tenha sido possível
contemplar os três países (comumente definidos como democracias de mercados
emergentes), mostrando que, a despeitos das nuances, houve similaridades de
constrangimentos e oportunidades trazidas pelas mudanças no cenário da economia
globalizada, hoje parece haver indícios de mudanças entre eles, em especial com relação
a posição de cada um no cenário da economia globalizada. Ou seja, as diferenças de
posição no cenário internacional entre Brasil, de um lado e Argentina e Chile do outro
estão crescendo e traz perspectivas diferenciais para cada um deles: basta lembrar que
apenas o Brasil está entre os países emergentes agora denominados de BRICs. Assim,
os impactos que essa nova posição do Brasil na economia global trará para áreas como a
previdência social devem ser objeto de novas investigações.
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