MODERNIZAÇÃO DO DIREITO Unificação dos processos condenatório, liquidatório e executório R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 31 Domingos Franciulli Netto* Painelista RESUMO Opina que não basta apenas a reforma, em matéria penal e civil, da legislação pátria, para desafogar o excesso de demandas nos tribunais superiores, mas há necessidade, sobretudo, de vontade política. Em matéria penal, sugere reformulação do inquérito, das penas e do sistema penitenciário. Em matéria cível, sugere reformas no processo de execução e no sistema recursal. Tece críticas à criação dos juizados especiais. Para desafogar os tribunais superiores, defende a valorização dos juízos inferiores e a definição mais precisa de questões federais e constitucionais. No que tange à unificação dos processos, defende a proposta do Ministro Humberto Gomes de Barros, que preconiza a prolação de sentença líquida e de plano exeqüível. Sugere, ainda, modificações na qualificação do domicílio para fins de citação; a adoção do princípio da sanabilidade das nulidades; a modificação do conceito de decisão interlocutória; e a reforma no sistema de provas periciais no processo de conhecimento. Aponta aspectos negativos da Emenda Constitucional n. 30, de 13/09/2000. PALAVRAS-CHAVE Reforma do Judiciário; processo de execução; recursos; processo de conhecimento; Código de Processo Penal; Código de Processo Civil; Direito Processual; Direito material; sentença líquida. O próprio título deste Fórum de Debate sugere o descompasso entre a concretização do Direito e os anseios da sociedade, que, de modo geral, se vê frustrada com a operacionalização do sistema judiciário. A ninguém é dado ignorar que a prestação jurisdicional brasileira ficou superada e se apresenta anacrônica para responder ao apelo de camadas cada vez maiores da população cada dia mais conscientes de seus direitos individuais e sociais. É paradoxal que tal ocorra justamente numa época em que se alardeia a necessidade de um processo de resultados e da própria efetividade do processo. O movimento renovador surgiu no Brasil depois da vinda do ilustre jurista italiano Enrico Tullio Liebman, no início do decênio de 1940, período em que se formou a chamada Escola Processual de São Paulo, da qual faziam parte José Frederico Marques, Celso Neves, Moacir Amaral Santos, Luiz Eulálio Bueno Vidigal, Bruno Afonso de André, Alfredo Buzaid e outros. Dos representantes mais modernos, foram meus diletos colegas até a Desembargadoria de São Paulo, mas, hoje ilustres advogados, os preclaros juristas Cândido Rangel Dinamarco e Kazuo Watanabe. Ambos insistem num processo de resultados e na sua própria efetividade. Não tenho muita ilusão, porque, nos idos dos meus vinte anos, os processualistas me ensinaram, segundo a origem etimológica da palavra, que processo era um andar para frente. Ora, o radical “cesso” pode redundar em acesso e recesso, mas processo é andar para frente. Depois, qual a minha decepção ao ver o que de ordinário acontece. O processo anda praticamente para todos os lados, mas mui vagarosamente para frente. As causas do atual estado de coisas são muitas, sem dúvida. Para debelá-las, acenaram com a Reforma do Poder Judiciário, ora em tramitação no Congresso Nacional. A despeito de pouquíssimos – perdoem a sinceridade – aspectos positivos nela contidos, a verdade é que, se passar como projetada, pouco contribuirá para uma prestação jurisdicional moderna e mais eficiente. A continuar a situação presente, dentro de pouco tempo, os tribunais superiores de nossa pátria estarão total e irremediavelmente inviabilizados. Para se ter uma pálida idéia do que vem acontecendo, basta atentar para alguns dados estatísticos. Ao excelso Supremo Tribunal Federal, composto por onze ministros, de janeiro a agosto de 2000, foram distribuídos 46.883 recursos, dos quais foram julgados 46.001; ao egrégio Superior Tribunal de Justiça, com trinta e três membros, trinta dos quais estão na função jurisdicional, propriamente dita, foram distribuídos, no mesmo período de oito meses, 83.919 recursos, dentre os quais foram julgados 81.273. A última Corte, que é o vértice dos tribunais do País em matéria infraconstitucional, apenas no mês de agosto de 2000, julgou 17.438 recursos, o que representa a média de 581,2666 decisões colegiadas e monocráticas para cada Ministro (17.438 ¸ 30), incluídos os julgamentos da Corte Especial. No mês de agosto de 2000, a egrégia Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (Seção de Direito Público), integrada por dez ministros, incluído este expositor, julgou 10.061 recursos, o que significa a média de 1.006,1 decisões para cada ministro. É verdade que, para atingir esse número, vários ministros prejudicaram, total ou parcialmente, suas férias (é evidente que essa marca não seria atingida se não existissem decisões repetitivas, as do “FGTS da vida”). Mesmo nas questões repetitivas, como não é dado ao juiz ou ao Ministro assinar em cruz, sempre há necessidade de conferência, ainda que as matrizes estejam armazenadas nos computadores. Desses feitos, mais de 2/3 (dois terços) envolvem entes públicos, por mais incrível que possa parecer. A razão está presa ao endividamento cada vez mais insuportável da União, dos Estados-membros e dos Municípios, incluídas, em todos esses graus, as autarquias. O saudoso Prof. José Horácio Meirelles Teixeira costumava prelecionar a seus alunos da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo que à Administração não era dado litigar por litigar: Na hierarquia dos princípios que devem nortear os atos administrativos, reservava o ápice ao princípio da legalidade e ao princípio da moralidade. Quanto ao contencioso, não admitia que a Administração ingressasse com ação temerária; ao contestar, deveria, com fidelidade absoluta, relatar a matéria de _________________________________________________________________________________________________________________ * Texto revisado pelo autor, baseado em conferência proferida no Fórum de Debate sobre Modernização do Direito, promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, Associação dos Magistrados Catarinenses e Escola de Magistrados de Santa Catarina, no Balneário Camboriú-SC, de 9 a 11 de novembro de 2000. 32 R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 fato; por fim, recorrer apenas nos casos de dúvida razoável. Um Poder Público não pode assoberbar o trabalho de outro, finalizava, contra os princípios e o bem comum1. Para se ter idéia do peso moral da lição supra transcrita, é suficiente lembrar o episódio que passo a relatar: o ilustre mestre lecionou Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da segunda metade dos anos quarenta até a Revolução de 1964. Exatamente na primeira aula depois dessa revolução, acompanhado de todos os alunos, retirou-se da sala de aula, sob o fundamento de que passara anos a fio ensinando que a nossa Constituição era rígida e que qualquer reforma precisava atender a muitas exigências; mas, a partir daquele dia, um simples e puro Ato Institucional havia acabado com tudo o que ele havia ensinado. Em decorrência de sua honestidade intelectual, portanto, ele rematou dizendo que não tinha mais o que fazer naquela faculdade. Pediu licença para retirar-se de sua derradeira aula e não mais retornou a lecionar até o ano de 1972, quando faleceu na plenitude de suas forças intelectuais, aos 65 anos de idade. Desafogar o Poder Judiciário depende, e muito, de vontade política. Basta a Administração Pública, direta e indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, cumprir os princípios que se encontram insculpidos no caput do art. 37 da Carta Política de 1988. Todos os ensinamentos dos administrativistas, que eram apenas teóricos, foram cristalizados e colocados no caput desse dispositivo: legalidade, moralidade etc. A Administração não pode continuar pretendendo resolver ou procrastinar seus crônicos problemas de caixa servindo-se do Poder Judiciário. Mas, para isso, não basta apenas a ampla reformulação, em matéria penal e civil, de nossos códigos. Há, sobretudo, necessidade de vontade política de nossos homens públicos. A matéria penal não é exatamente, no momento, assunto da minha área. Já defendi anos a fio na minha vida que na Justiça Penal, em minha modesta ótica, tem de haver radical modificação nas duas extremidades: na ponta inicial o inquérito, hoje sem dúvida obsoleto, precisa ser substituído, gradativamente, pelo juizado de instrução; no lado final, faz-se necessário reformular as penas e o sistema penitenciário. Quanto às primeiras, com a ampliação das penas alternativas e R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 Desafogar o Poder Judiciário depende, e muito, de vontade política. Basta a Administração Pública, direta e indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, cumprir os princípios que se encontram insculpidos no caput do art. 37 da Carta Política de 1988. (...) A Administração não pode continuar pretendendo resolver ou procrastinar seus crônicos problemas de caixa servindo-se do Poder Judiciário. com a introdução de penas substitutivas das penas privativas de liberdade para aqueles delitos em que a verdadeira punição deve exteriorizar-se no esvaziamento patrimonial obtido, por seus autores, de forma ilícita. Algumas penas atuais deverão ser substituídas por penas mais modernas que possam ser realmente sentidas, mormente pelos chamados criminosos de colarinho branco, os que causam desfalque patrimonial: penas antes e acima de tudo voltadas para o ressarcimento do dano causado ao patrimônio público ou particular. Há de ser modernizado o sistema penitenciário para a reclusão dos autores de crimes com violência contra a pessoa, nesse aspecto incluída a preparação técnica dos agentes penitenciários, a par da construção ou remodelação dos presídios existentes. Em relação à superlotação de cadeias, relato uma experiência pessoal. Quando era juiz de Guaratinguetá, nas funções de Corregedor da Polícia e dos presídios, em 1970, fui fazer uma visita correicional à cadeia pública local e fiquei chocado com o número de presos que se encontravam “enlatados” em cada cela. Depois de medir a capacidade para colocação de colchões, determinei a proibição da permanência de mais de quatro presos em cada cela. A superlotação devia-se ao fato de que as comarcas circunvizinhas estavam com suas cadeias interditadas, sob os mais amplos pretextos possíveis: por exemplo, em Cunha, havia ocorrido uma crise de hepatite; em Aparecida do Norte, a cadeia poderia afugentar fiéis; em Cruzeiro, as vidraças do presídio, quebradas, não tinham sido repostas; em Alhures, os esgotos da cadeia estavam entupidos etc. Deus e minha mulher Maria Thereza sabem as pressões que eu sofri: volta e meia, até de madrugada, recebia telefonemas para abrir exceções à Portaria ou ao Provimento que baixara, com pedidos de transferência de presos. Embora se tratasse de função precípua do Delegado Diretor da cadeia, só consegui manter a decisão graças ao respaldo que tive do saudoso desembargador, depois Ministro do excelso Supremo Tribunal Federal, Rodrigues de Alckimin, que então exercia as nobilitantes funções de Corregedor-Geral de Justiça do Estado de São Paulo. Menciono esse episódio porque foi retratado pelos jornais da época. Já que existe a pena de reclusão, tem-se de oferecer condições mínimas de sobrevivência digna ao presidiário, que nunca deixa de ser uma pessoa humana, enfoque que não pode ser levado ao extremo de se dar regalias aos presos e, muito menos, o controle das cadeias. Em relação à matéria não-penal, sem embargo de nosso excelente Código de Processo Civil, do ponto de vista doutrinário, a verdade é que, na prática, ninguém mais agüenta o cipoal hirsuto a que levam suas normas, principalmente no que diz respeito ao processo de execução, hoje inteiramente obsoleto e complicado, e ao sistema recursal, que precisa urgentemente de profunda racionalização. Copiamos em boa parte o sistema italiano e ficamos atados ao romantismo lusitano, despercebidos de que, no Brasil, dadas as suas peculiaridades e a explosão demográfica, não poderiam na prática funcionar leis que, em países de equilíbrio estável entre o índice de natalidade e o de mortalidade, já não se notabilizavam pela agilidade pragmática da prestação jurisdicional. O ilustre Ministro Francisco Peçanha Martins, em sua palestra neste mesmo Simpósio, com a verve que o notabiliza, disse que os processualistas construíram uma verdadeira catedral, por cujos portais não passam os 33 pobres. Eu diria que se parece igualmente com a casa-grande. Se não funciona nesta, que pelo menos funcione nas senzalas. As senzalas, no caso, são Juizados Especiais de Pequenas Causas e a pretora de medidas cautelares, liminares e tutelas antecipadas. Critiquei o primeiro projeto dos juizados de pequenas causas, nos idos de 1979 2. Entendi que não havia sentido a criação de um juizado à parte, pois o correto era apanhar as varas já existentes e a elas atribuir a matéria do juizado, ainda que com expediente em horário diferente: por exemplo, das 18 às 22 horas e, quem sabe, aos sábados. Não havia razão em criar mais uma estrutura dentro de outra obsoleta. Não há culpar somente os processualistas. O Judiciário ficou, durante dez anos, com o poder de legislar em matéria de organização judiciária e as nossas leis de organização judiciária, não acompanham as leis processuais. O exemplo mais frisante desse fato é o seguinte: hoje há o julgamento antecipado. Casos de julgamento antecipado, não raro, são julgados antes do processo sumário, que obriga haver audiência; mas como as pautas estão, de ordinário, assoberbadas, as audiências são marcadas para dali a três, quatro ou cinco meses. Por que então haver sumário e ordinário em uma única unidade judiciária se, na prática, o ordinário, muitas vezes, é mais rápido que o sumário? Não seria melhor a criação de varas apenas para processos sumários, como defende o ilustre Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira3 ? Para desafogar os Tribunais Superiores, de minha parte, como mero artesão, aplicador do Direito (não tenho curso de Mestrado nem de Doutorado, somente a experiência do dia-a-dia, beirando os 40 anos de atividade forense, 33 dos quais como magistrado), penso que, entre as soluções possíveis, evidencia-se aquela voltada para a revalorização dos Juízos de primeiro grau, dos Tribunais Estaduais e dos Tribunais Regionais. Não é possível persistir no atual sistema, a possibilitar, em tese, na maior parte das vezes, o pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, ou de ambos. Não há razão plausível para confundir questão federal com questão nacional. Continuadas embaralhadas essas questões, permanecerão avolumando os serviços dos Tribunais Superiores decisões que perfeitamente poderiam morrer nos Tribunais locais. Nada está a justificar que subam ao Superior Tribunal de Justiça disputas por quatro minhocas, decorrentes de 34 briga entre cachorros e papagaios ou sobre permanência de cães e outros animais domésticos em apartamentos. Seja qual for a solução, essas causas simples, ainda que ofendam a legislação federal, não são causas de interesse nacional. Na verdade, copiou-se o sistema federativo dos Estados Unidos da América na parte orgânica e política, mas se transportou para o nosso meio jurídico o sistema europeucontinental. De outra parte, deve-se conceituar o que de fato representa eventual ofensa à Constituição. Não vejo porque achar, agora no que tange ao excelso Supremo Tribunal Federal, que em tudo há ofensa à Constituição. Tive a oportunidade de enfrentar essa matéria no exame do FGTS. Penso que uma coisa é haver infringência à Constituição da República e a princípio nela consagrado. Outra coisa é aferir se foi aplicado o direito, segundo a lei federal vigente, ainda que, para tanto, seja necessário levar em conta matéria albergada no Texto Maior. Na maior parte das vezes, a questão pode e deve ser conhecida unicamente sob o ângulo infraconstitucional4. Perdoe-me a falta de modéstia, porém tive a honra de ter esse pensamento reproduzido no voto do ilustre Ministro Celso de Mello, quando, também, o Supremo apreciou a questão do FGTS: Afigura-se-me inteiramente procedente, neste ponto, a afirmação do eminente Ministro Franciulli Netto, do Superior Tribunal de Justiça (DJU de 11/ 04/00, seção 1, p. 193), para quem “uma coisa é haver infringência à Constituição da República, a princípio nela consagrado, outra coisa é aferir se foi aplicado o direito segundo a lei federal vigente”, especialmente quando “a questão pode e deve ser conhecida, unicamente, sob o prisma estrito da legislação federal...”5. Em nossa história, já tivemos um Direito local, que era o Direito praticado nos aldeamentos dos índios, com regras próprias, que funcionava relativamente bem. No mesmo passo, tivemos também um Direito local nos quilombos. Ninguém estudou a fundo esses direitos que atenderam às necessidades de uns e de outros. Fomos nos ater apenas às ordenações do Reino para proibir o cidadão de entrar com “barrigã” (amante) na Corte. O direito nascido em nosso país foi deixado de lado. Antes de ingressar no tema da unificação dos processos, não há como olvidar outras medidas. A simplificação dos recursos e dos graus de jurisdição é tão ou mais importante do que a informatização. Esta é imprescindível nos dias que correm, mormente em termos de comunicação e por diversas outras e importantes razões, que extravasam os limites desta palestra. Mas não é suficiente depositar todas as fichas apenas na informatização, na expectativa de uma prestação jurisdicional mais rápida e eficiente. Não tenho nenhuma ojeriza ao computador. Ao reverso, fui Coordenador de Informática do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, seguindo as trilhas e os nortes traçados pelo saudoso Desembargador Dínio de Santis Garcia, homem que viveu adiante de seu tempo. Aliás, por falar em cibernética, abro um parêntese para lembrar que precisamos ultrapassar a fase da “doença infantil” do uso do computador. Não há nenhuma justificativa válida para que se verta para o papel quase tudo o que se encontra armazenado na memória do computador. Brinquei outro dia asseverando que o processador de texto nas mãos de um tributarista é uma arma. No contexto da unificação dos processos, propriamente dita, entre as sugestões que ultimamente têm sido feitas, há de ser pensada e refletida a de autoria do ilustre Ministro Humberto Gomes de Barros, convertida em projeto de lei, a preconizar a prolação de sentença líquida e de plano exeqüível, o que se afigura perfeitamente viável. Sob o prisma doutrinário, a ninguém é dado ignorar a contribuição de Enrico Tullio Liebman, seus discípulos e seguidores. A monografia do primeiro, Processo de Execução6, é obra do mais alto coturno. Na prática, contudo, a exagerada autonomia do processo de execução tem sido alvo das mais acerbas críticas, por ensejar, na verdade, praticamente, uma nova ação, a começar pela necessidade de citação do executado. Nas últimas reformas, chegou-se a verdadeiras preciosidades, com a criação de atalhos que acabaram por comprometer a estrutura primeva do Código de Processo Civil. Para citar apenas um aspecto, por exemplo, esqueceram-se de que tivemos inúmeros planos econômicos e uma pletora de índices ou coeficientes de correção, sem falar na sucessiva supressão de zeros. O que os processualistas modernos fizeram? Pura e simplesmente acabaram com o contador e ressuscitaram a memória de cálculo. O que aconteceu? Os grandes escritórios de advocacia servem-se de assessorias altamente qualificadas e, como tal, apresentam contas desdoR. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 bradas em itens e subitens, sempre com emprego de índices e critérios que lhes são favoráveis, enquanto a Fazenda nada diz ou, quando não, oferece impugnação genérica e abstrata sem especificar eventuais erros. O juiz, que de ordinário, não pode ver aritmética nem pintada, homologa o cálculo em decisão estereotipada, (...) para que produza seus devidos efeitos de direito. Não estou, com essa observação, querendo justificar nada, é evidente, muito menos tecendo loas às decisões lacônicas, genéricas e abstratas, tais como: Defiro a liminar porque presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora, severamente e com razão criticadas pelo insigne processualista baiano Calmon de Passos7. Por falar em liminar, há profusão de decisões com total inversão dos valores. Sobre o tema, bem criticou um dia o Desembargador paulista Edgar Aparecido de Souza, hoje aposentado, uma liminar que suspendera uma importante partida de futebol do Campeonato Paulista, depois de agendada, quase em cima da hora e com muitos ingressos vendidos: por que não a realizar e, depois, se fosse o caso, aplicar as cominações legais? – a um tempo perguntando e respondendo. Em decorrência da demora na prestação jurisdicional, nada recomenda a concessão de liminares, a torto e a direito, a par do uso desmedido da tutela antecipada, que está criando a esdrúxula figura do “autor procrastinador”, até então inédita na vida forense. O autor, em alguns casos, agraciado com a tutela, passa a criar inúmeras dificuldades na tramitação do processo, temendo o resultado final da demanda. Afinal de contas, ainda que justificável em casos especialíssimos, não há perder de vista que tal tutela vulnera em cheio o princípio do contraditório. A proposta do ilustre Ministro Humberto Gomes de Barros, se vier a ter êxito, redundará, praticamente, na unificação dos processos de conhecimento, quando condenatório, liquidatório e executório. A meu sentir, é um verdadeiro “ovo de Colombo”. Ainda que o processo de conhecimento dure mais, a fim de ensejar a prolação de sentença líqüida e exeqüível, sempre será melhor que a tormentosa execução (a exigir nova citação), precedida de, não raro, complicada liquidação, a par de ensejar incidentes de toda sorte. A unificação poderá ser gigantesco passo em direção da modernização do Direito. Tudo sem embargo de se repensar acerca de alguns ponR. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 A unificação dos processos condenatório, liquidatório e executório, é verdade, poderá determinar um curso maior no processo de conhecimento, repitase, o que, todavia ficará muito aquém da demora acarretada pelo sistema atual, maxime se forem lembrados os recursos que podem ser opostos nas diversas fases hoje existentes. tos de estrangulamento do procedimento, tais como: a citação, as nulidades, as decisões interlocutórias e as perícias. Não contente com o excesso de formalidades para a citação na fase de conhecimento, exige-se nova citação na de execução, o que se não compraz com as necessidades hodiernas. Parece que tudo foi engendrado para obrigar o autor, o exeqüente, a correr atrás do réu, do devedor. Quanto à citação, há de se redesenhar o atual sistema para a realidade de há muito existente em nossa sociedade. Até parece que o domicílio e a residência das pessoas físicas não fazem parte da correspectiva qualificação, como extensão dos atributos de sua personalidade, se for levado em conta o habitat predominantemente fixo, certo e determinado de cada pessoa, uma vez que nossa civilização não é nômade. As pessoas têm residência estável. O homem moderno se estabelece, seja para morar seja para trabalhar, em determinado ponto geográfico. Nossa sociedade não é uma sociedade de ciganos. De regra, todos tem endereço e fixação certa. Até o vaqueiro, segundo Câmara Cascudo, é um homem “arruado”8. O homem médio, o bonus pater familias, ao transferir seu domicílio ou sua residência, faz certo alarde disso, pelo menos no círculo de suas relações. Ora, com muito maior razão deve assim proceder aquele que contraiu obrigações ainda pendentes, sob pena de arcar com as conseqüências decorrentes de sua omissão. Urge adotar, por outro lado, o princípio da sanabilidade das nulidades. Todas, sem exceção, devem precluir: pelo silêncio das partes; pela efetiva consecução do escopo do ato, não obstante a sua irregularidade; finalmente, pela aceitação, ainda que tácita, dos efeitos do ato, a despeito da eiva, como, aliás, consta da exposição de motivos do Ministro da Justiça ao apresentar o projeto que se converteu no atual Código de Processo Penal9. Conhecemos todos os malefícios que ocasionam as nulidades não alcançadas pela preclusão e tantas outras astuciosamente guardadas para o “pulo do gato”. O conceito de decisão interlocutória, igualmente, tal qual previsto no art. 62, § 2o, do Código de Processo Civil, a dar azo ao recurso de agravo, nos termos do art. 522 do mesmo estatuto processual, a meu sentir, deve ser repensado, para obviar a enxurrada de agravos. Decisão interlocutória deve ser apenas aquela que causar efetivo e irreversível prejuízo, se acobertada pela preclusão. Por derradeiro, quanto ao processo de conhecimento, outro terrível obstáculo à celeridade dos atos processuais é a prova pericial, matéria que estaria a exigir palestra à parte. Tomo, a título de mera ilustração, o que se passa com uma simples avaliação de imóvel, cujos laudos mais parecem páginas extraídas de compêndios de matemática superior: fórmulas de Berrini, fator testada, fator profundidade, fator esquina, fator elasticidade, média ponderada dos paradigmas, expurgo de elementos discrepantes e o diabo a quatro. Pois bem: qualquer corretor de imóvel experiente e idôneo, com uma simples vistoria, fornece de pronto o valor real de mercado desse bem. Existem organizações que oferecem tais serviços. Em matéria de avaliação de automóveis, muitos juízes adotam critérios práticos e úteis como a coleta de valores oferecida por revistas ou jornais especializados, com resultados excelentes. 35 Do Direito Comparado, extraemse legislações que determinam a juntada de parecer técnico pelas partes, ainda na fase postulatória. Esclarecida a matéria na aferição da prova, tornase, muitas vezes, desnecessária a nomeação de perito, o que obvia a demora do trâmite processual. A unificação dos processos condenatório, liquidatório e executório, é verdade, poderá determinar um curso maior no processo de conhecimento, repita-se, o que, todavia ficará muito aquém da demora acarretada pelo sistema atual, maxime se forem lembrados os recursos que podem ser opostos nas diversas fases hoje existentes. Com o novo sistema, é evidente que o autor empenhar-se-á, em busca da sentença condenatória líquida e exeqüível, em fornecer os dados que forem necessários ao julgador para a sentença líquida. A unificação dos processos é algo que se impõe até por uma questão de logicidade. Não é de hoje que muitos perceberam que não faz sentido obrigar o credor, já portador de uma sentença que lhe é favorável, a enfrentar a via crucis de um novo processo. Tive um aluno, em 1972, que se chamava Rivero (não me lembro de seu prenome). Tratava-se de um espanhol, naturalizado brasileiro, que passou a cursar Direito, depois de aposentado, para realizar um sonho de sua juventude. Um dia pediu-me para que lhe explicasse as fases do processo de execução, o que penso ter conseguido, sem grandes pretensões, uma vez que minha cadeira lá na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade de Campinas era de Direito Civil: há necessidade de nova citação, penhora, embargos disso, embargos daquilo etc. Rivero ouviu atentamente, fez algumas indagações e depois, com a maior naturalidade do mundo, concluiu: Isso é tudo o que o devedor pediu a Deus. Retruquei: Não ponha Deus nisso; Ele criou o Direito material; o Direito Processual é coisa do diabo. Todos conhecem a trilogia de Descartes: penso, logo existo, duvido, logo existo e sou enganado, logo existo. Nenhum ser mortal, que tenha passado pela agrura de ser exeqüente, com certeza, duvida da última frase dessa famosa trilogia. De início, segundo programação original, eu deveria aqui me ocupar do tema sobre precatórios. Mas, o ilustre Ministro Humberto Gomes de Barros, usando seu sexto sentido, substituiu-o pelo ora aqui desenvolvido. A providência divina quis pouparme, mercê de tão sábia alteração, 36 uma vez que, a persistir o tema anterior, provavelmente iria sair matéria que não poderia ser publicada, tal a indignação que me causa a recente Emenda Constitucional n. 30, com seu abominável facilitário de dez anos, previsto no art. 2º, que acresceu ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) o art. 78. Combati, qual Dom Quixote, nos limites de minhas singelas forças, o art. 33 do ADCT, quanto à sua aplicabilidade em matéria de desapropriações, uma vez que, no corpo permanente da mesma Carta Política, encontrava-se insculpido o princípio do preço justo e prévio, para indenizações desse jaez. O que então defendi foi a inaplicabilidade desse art. 33 às desapropriações, mas jamais disse que se tratava de norma inconstitucional, por saber de sobejo ser controvertida a possibilidade de existência de inconstitucionalidade de normas constitucionais10. Meu modesto ponto de vista, contudo, não prosperou. É desolador ver o que disciplina a recente Emenda Constitucional n. 30, de 13/09/2000, ao inserir no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o art. 78, a possibilitar aos precatórios pendentes na data de sua promulgação e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999, a sua liqüidação pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos. É incrível que tal tenha ocorrido, depois da malograda experiência do art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que possibilitou a liqüidação dos débitos estatais no prazo de até oito anos e de nada adiantou para a moralização da liqüidação da dívida pública. Os problemas de caixa dos entes públicos não foram resolvidos, mas a situação dos credores, de certo, foi muito agravada. Essa desastrada nova colher de chá acabará por neutralizar, em boa parte, alguns aspectos indiscutivelmente positivos contidos na referida Emenda, entre os quais podem ser evidenciados os seguintes: a) atualização dos valores dos precatórios, apresentados até 1o de julho, na data de seu pagamento, a ser feita até o final do exercício seguinte; b) enumeração taxativa dos créditos alimentícios, disciplinados em dispositivo apartado; c) consignação das dotações orçamentárias e dos créditos abertos diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda determinar o pagamento segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento do credor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito. Até a generosidade dessa Emenda n. 30, ao reduzir o prazo de dez para dois anos, nos casos de precatórios judiciais originários de desapropriação de imóvel residencial do credor, desde que único à época da imissão na posse, é de corar um frade de pedra, se for lembrado que se tratava de único imóvel a servir de residência do credor. Mas não ficou tal emenda apenas nisso. Veja-se a redação dada ao § 5º do art. 100 da Constituição Federal: § 5º – O Presidente do Tribunal competente que, por ato comissivo ou omissivo, retardar ou tentar frustrar a liqüidação regular de precatório, incorrerá em crime de responsabilidade. Comparem essa redação definitiva com o que dizia o projeto: O descumprimento das providências a que aludem os parágrafos anteriores, pelo Presidente do Tribunal, constituirá crime de responsabilidade, em que também incorrerá o Chefe do Poder Executivo que obstar ou tentar frustrar, por qualquer meio de liqüidação regular do precatório, sem prejuízo das sanções civis e penais cabíveis e da intervenção nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios. Injustificadamente excluíram do crime de responsabilidade o Chefe do Poder Executivo. Por fim, o descumprimento das decisões judiciais, hoje em dia, não se compraz com o Estado democrático de Direito. Em suma e para concluir, essas são as singelas considerações que me ocorreram apresentar, nesta oportunidade, sem quaisquer ressaibos de academicismo. Foram aqui lançadas como modesta contribuição para o debate e para a maior reflexão sobre o tema. Partiram de quem está absolutamente convicto de que a unificação dos processos condenatório, liquidatório e executório em muito contribuirá para maior eficiência da sempre almejada prestação jurisdicional justa. Embora não podendo singrar a matéria em maior profundidade, sumamente honrado com o convite para esta palestra, procurei suprir minhas naturais deficiências com a vivência haurida de meus anos vividos. Sou um sexagenário e posso entrar em qualquer clube da terceira idade como sócio remido. Ainda que cada vez mais desencantado, procuro ser fiel ao meu ideal. R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 Aos colegas, nada tenho a ensinar nem a dizer de muito proveitoso; aos estudantes que aqui se encontram, terminando por onde comecei, quero lembrar: Ouçam tudo o que seus mestres lhes ensinaram, mas não acreditem em tudo. Eu, um dia, acreditei que o processo era um andar para frente e deu no que deu. NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 1 TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Apresentação. In: TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. XXII, 785 p. (Biblioteca Jurídica) . XIII. 2 FRANCIULLI NETTO, Domingos. Parecer sobre o Anteprojeto do Juizado Especial de Pequenas Causas. Julgados dos Tribunais de Alçada Civil de São Paulo. São Paulo, v. 77, 1983. p. 410-420. 3 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Comentário ao art. 281. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Código de Processo Civil Anotado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 205. 4 Decisão proferida pelo subscritor, nos AG n. 280.903, AG n. 278.538, AG n. 245.757, AG n. 244.849 e AG n. 238.323, todos in DJU de 11/04/00, seção 1. 5 RE n. 226.855-7/RS, fl. 1.029. 6 LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de Execução. 4. ed. Com notas de atualização do Prof. Joaquim Munhoz de Mello. São Paulo: Saraiva, 1980. 238 p. 7 PASSOS, Calmon de. Inovações no Código de Processo Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 66-67. 8 CASCUDO, Luis da Câmara. Vaqueiros e cantadores – folclore poético do sertão de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. S.l.: Ediouro, 2000. p. 378. 9 RIBEIRO, Antônio de Pádua. Reflexões Jurídicas: palestras, artigos e discursos. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. 683 p. p. 259. 10 FRANCIULLI NETTO, Domingos. Desapropriação – O aparente conflito entre o art. 33 das Disposições Transitórias e o art. 5º, inc. XXIV, ambos da Constituição da República. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Lex, v. 24, n. 126, p. 23-25, set./out.1990. Humberto Gomes de Barros’s proposal which recommends the utterance of feasible settlement judgements. Further, it suggests modifications to the legal definition of domicile for citation purposes; the adoption of the principle of reparation for annulments; modification of the concept of interlocutory order; reform of the expert specialist evidence system in the discovery process. This paper also looks at negative aspects of the Constitutional Amendment n. 30, dated 13/09/ 2000. KEYWORDS – Judiciary Reform; the execution proceeding; appeals; discovery process; Penal Procedural Code; Civil Procedural Code; procedural law; Judicial norms; liquidation of any amounts involved in a final judgement. ABSTRACT This paper considers that civil and penal reform in the country’s legislation does not suffice to reduce the pile up of cases in the high courts. What is needed above all is the political will. In terms of penal reform, it suggests the reformulation of legal inquiries, penalties and the penitentiary system. With respect to civil issues, it proposes modifications to the execution proceeding and appeal system. It expresses critical reservations regarding the creation of Special Small Claims Courts. In order to ease up the high courts, it supports the valuing of inferior court and a clearer defining of federal and constitutional issues. As regards the unification of procedures, it defends Minister R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 Domingos Franciulli Netto é Ministro do Superior Tribunal de Justiça. 37 Honildo Amaral de Mello Castro* Painelista RESUMO Sugere uma série de modificações de caráter processual voltadas à modernização do Direito brasileiro. Inicia com uma reflexão filosófica acerca dos conceitos de Justiça, no entender de Platão, e de Lei, na visão de Locke e de Montesquieu. Em seguida, analisa as deficiências estruturais do Poder Judiciário. Apregoa que a modernidade da prestação jurisdicional deve configurar-se sob tríplice aspecto: celeridade, segurança e exeqüibilidade. Propõe o aperfeiçoamento de três primados do Direito: a federalização do acesso ao Judiciário, a supressão de recursos processuais e a federalização dos repasses financeiros. PALAVRAS-CHAVE Direito Processual Civil; reforma; processo condenatório; processo executório; processo liquidatório; condenação, execução, liquidação; unificação; Filosofia do Direito; Platão; Locke; Montesquieu; federalização; recurso processual – supressão; recurso processual – contenção. 1 UM BREVE ESCORÇO FILOSÓFICO DO CONCEITO DE JUSTIÇA PARA PLATÃO E IDÉIA DE LEI PARA LOCKE E MONTESQUIEU El derecho es una proporción real y personal, de hombre a hombre, que cuando es observada protege a la sociedad y cuando es corrompida la corrompe 1. S anto Agostinho, ao fazer reflexão sobre a humanidade, na sua origem, criou as cidades “terrena e a celestial”, denominando-as de “meus dois amores”, fundamentando-as no pensamento de que (...) o amor próprio levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial2, afirmando que a cidade de Deus é dogma, pois não há essência alguma contrária a Deus, certo de que ao ser somente se opõe o não-ser. Na justiça revelada na evolução da cidade dos homens, aquela cuja criação no Genesis é atribuída a Caim, cuja essência conceitualmente consiste em dar a cada um aquilo que é seu e a faculdade de julgar segundo o direito e melhor consciência, cuidaremos de encontrar o melhor caminho a ser trilhado na luta pela preservação da paz e na realização dos desejos da humanidade, segundo o Direito. Concebe-se, assim, Justiça a partir da existência de uma sociedade, sem a qual inexistiria, mas cujo conceito, na indagação “o que é justiça?”, o homem nunca encontrará resposta definitiva, devendo, como cidadão, apenas perguntar melhor e, como magistrado, aplicá-la melhor, pois somente em nome de uma justiça perfeita que seria moral afirmar pereat mundus, fiat iustitia. Passando pela filosofia idealista de Platão,, quando o mestre na Antigüidade grega distinguia entre o mundo das verdades e das essências, chamando-as de “idéias” para então dizer (...) que são imutáveis, objetivas e universais – objeto da ciência, e o mundo das “aparências” – que são cambiantes, subjetivas e incertas – objeto de opinião. As primeiras formam o mundo inteligível; as segundas, o mundo sensível, que se busca visualizar na “Alegoria da Caverna” onde (...) o mundo caverna representa o mundo dos sentidos, ao passo que o mundo diurno ou exterior representa o mundo inteligível. Ambos possuem a respectiva fonte de luz, ou seja, a caverna é iluminada por um fogo, enquanto o dia o é pela luz do sol; o fogo representa o sol visível e que ilumina nosso mundo sensível, quanto ao sol da alegoria, o bem que ilumina o mundo inteligível, segundo os dois níveis de realidade: um nível inferior de sombras, de reflexos; e um nível superior de realidades verdadeiras3. O conceito, a busca de obter e realizar a Justiça há de estar contida no mundo do dia, pois este é mais claro e mais real do que o mundo caverna, certo de que o mundo inteligível, por ser diurno, é mais concreto do que o mundo sensível na idéia do bem, assim exposta por Platão: (...) a idéia do Bem é objeto da ciência mais alta e é dela que a justiça e as outras virtudes extraem sua utilidade ou sua vantagem (...) sem a posse do Bem, é inútil a posse do que quer que seja4 e, por outro lado, (...) o Bem é a fonte da vida no mundo inteligível. É a idéia do Bem que faz com que existam as outras idéias5. Concebendo-se à época a crença no racionalismo e a idéia de que o universo é governado por leis inteligíveis, Platão desenvolveu uma filosofia idealista na qual a experiência direta exercida nos nossos sentidos nada mais era do que um mundo de sombras, reflexo de realidade no domínio do absoluto com abrangência às impressões sensoriais imediatas. O conceito de Justiça, assim, está vinculado à idéia do mundo inteligível e associado à idéia do bem como fonte do mundo diurno, em um nível superior de realidades verdadeiras, que só pode ser plenamente realizada num Estado ideal governado por reisfilósofos, em que (...) a Justiça, tal como representada pelas leis de determinados Estados, pode equivaler, no máximo, à pálida sombra da justiça real. É evidente, pois, que Platão se distanciou da posição de seu antigo mestre, Sócrates, com sua reverência pelas leis de sua terra pátria. Entretanto, Platão não concebeu a idéia superior de justiça como uma forma de lei decretada pela natureza, a qual estava subordinada à lei feita pelo homem. (...) ademais, a concepção estática de justiça de Platão, como a da maioria dos utopistas, envolvia uma concepção totalitária de lei e de governo da mais rígida e inflexível espécie6. Hans Kelsen, referindo-se ao verdadeiro sentido da alegoria da caverna, afirma que, para Platão, na esfera do concebível, a idéia do Bem só se mostra como cognoscível no fim, e a muito custo, e que não é da verdade ou da ciência que se fala nessa alegoria, mas sim da Justiça e dos tribunais ao dizer (...) que é no diálogo sobre a justiça, que é o verdadeiro sentido, o conteúdo essencial da idéia, o que unicamente, de fato importa a Platão. Justiça, e não a verdade7. __________________________________________________________________________________________________________________ * Texto produzido pelo autor, baseado em conferência proferida no Fórum de Debate sobre Modernização do Direito, promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, Associação dos Magistrados Catarinenses e Escola de Magistrados de Santa Catarina, no Balneário Camboriú-SC, de 9 a 11 de novembro de 2000. 38 R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 Ainda segundo Kelsen, a República começa e termina com o mito de retribuição no além, o qual se transforma numa moldura reunindo e determinando tudo o mais que é dito sobre a justiça, o que nos faz ver no diálogo que Sócrates mantém com o velho Céfalo e no qual, por assim dizer, soa o acorde fundamental de toda a obra: O que te parece ser o maior dos bens cuja fruição te proporcionou a posse de tua grande fortuna?, pergunta Sócrates. E, da resposta de Céfalo, concluise que se trata da virtude da Justiça, e que sua lei objetiva é a paga no além. Na opinião de Céfalo, a riqueza nos permite, em grande medida, não iludir ou enganar pessoa alguma, e assim chegar ao Além sem nada dever aos homens ou aos deuses; que, porém, o que importa é justamente como se chega ao Além; disso as pessoas só tomam conhecimento na velhice8. 1.1 IDÉIA DE LEI PARA LOCKE E MONTESQUIEU O conceito de lei para John Locke tem um papel importante no exame da moralidade e da sociedade política com sentido positivo, não restritivo, significando na essência não só a limitação, mas a direção de agente livre e inteligente para o seu próprio interesse, e não prescreve mais do que importa no bem geral quantos estão sob essa lei (T2, § 57), pois a finalidade da lei não consiste em abolir ou restringir, mas em preservar a liberdade, pressupondo recompensas, punições e noções de obrigação e dever, ao assim se expressar: (...) de modo que, por mais que possa ser mal interpretado, o fim da lei não é abolir ou restringir, mas conservar e ampliar a liberdade, pois, em todos os estados de seres criados capazes de lei, onde não há lei, não há liberdade. A liberdade consiste em estar livre de restrições e violência por parte de outros, o que não pode existir onde não existe lei. Mas não é, como já nos foi dito, liberdade para que cada um faça o que bem quiser, (pois quem poderia ser livre quando o capricho de qualquer outro homem pode dominá-lo?), mas, uma liberdade para dispor e ordenar como se quiser a própria pessoa, ações, posses e toda a sua propriedade, dentro dos limites das leis às quais se está submetido; e, portanto, não estar sujeito à vontade arbitrária de outrem, mas seguir livremente a sua própria 9. Sustenta, também, que as características do conceito de uma lei são encontradas na lei da natureza, pois, em primeiro lugar, é o decreto de uma R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 vontade superior, que é no que parece consistir a causa formal de uma lei; de que maneira, porém, isso pode tornarse conhecido da humanidade é uma questão a ser, talvez, discutida mais tarde. Em segundo lugar, estabelece o que pode e o que não pode ser feito, o que constitui a função própria de uma lei. Em terceiro lugar, vincula os homens, porquanto contém em si tudo o que é requerido para criar uma obrigação10. Argumenta ainda o filósofo, que antes que uma pessoa possa entender que esteja submetido a uma lei, deve a pessoa saber que existe um legislador superior a ela, ao qual está legitimamente sujeita e lhe impõe uma vontade, razão por que Locke discute as leis que governam as ações humanas em sociedade, no estado de natureza, a sociedade pré-civil, entre Deus e o homem, entre pais e filhos, com o alcance da lei divina, lei civil e a lei de opinião ou reputação. Em sua obra Dois Tratados Sobre o Governo, ressalta a importância da lei civil e da administração pública alicerçada em lei conhecida ao afirmar que (...) pois quando os homens, ao entrarem em sociedade e no governo civil, excluíram a força e introduziram as leis para a conservação da propriedade, da paz e da unidade entre eles, aqueles que novamente estabeleceram a força em oposição às leis são os que rebellant, ou seja, que promovem novamente o estado de guerra e são propriamente rebeldes 11. Pode-se, assim, afirmar que para Locke as leis civis – as leis estabelecidas por governo civil – consubstanciam os costumes gerais e os precedentes históricos embutidos nas leis e práticas da humanidade, mas as leis civis têm de harmonizarem-se com as leis da natureza, que são leis de Deus. Por seu lado, Montesquieu assevera que (...) as leis, no seu sentido mais amplo, são relações necessárias que derivam da natureza das coisas e, nesse sentido, todos os seres têm suas leis; a divindade possui suas leis; o mundo material possui suas leis; as inteligências superiores ao homem possuem suas leis; os animais possuem suas leis; o homem possui suas leis12 e que os seres particulares inteligentes podem possuir leis feitas por eles, mas possuem também as que não fizeram. Antes da existência de seres inteligentes, esses eram possíveis; tinham, portanto, relações possíveis e, conseqüentemente, leis possíveis. Antes de haver leis feitas, existiam relações de justiça possíveis. Dizer que não há nada de justo nem de injusto senão o que as leis positivas ordenam ou proíbem é dizer que antes de ser traçado o círculo, todos os seus raios não eram iguais13. O ser humano viola as leis de Deus e as que cria; razão, certamente, que levou Montesquieu a visualizar o seu espírito nas multivariadas formas de governos e nas infindáveis mutações da sociedade humana. Dessa obra, incomparável, na linha traçada deste trabalho, penso deva ser destacado o capítulo Das Leis Divinas e das Leis Humanas que enfeixam toda uma vicissitude comportamental da sociedade humana pois (...) os homens são governados por diversas espécies de leis: pelo direito natural; pelo direito divino, que é o da religião; pelo direito eclesiástico, igualmente chamado canônico, que é o da polícia da religião, pelo direito das gentes, que se pode reputar como o direito civil do universo, no sentido de que cada povo é um cidadão seu; pelo direito político geral, que versa sobre esta sabedoria humana em que se estribam todas as sociedades; pelo direito político particular que diz respeito a cada sociedade; pelo direito de conquista, fundamentado em que um povo quis, pôde e teve de fazer violências a outro; pelo direito civil de cada sociedade, segundo o qual todo cidadão pode defender seus bens e sua vida contra qualquer outro cidadão; e, finalmente, pelo direito doméstico, que deriva do fato de uma sociedade achar-se dividida em diversas famílias que têm necessidade de um governo particular. Há, portanto, diferentes ordens de leis; e a sublimidade da razão humana consiste em saber justamente com qual dessas ordens se relacionam, principalmente, as coisas sobre as quais se deve estatuir, e em não introduzir confusão nos princípios que devem governar os homens14. De relevo, ainda, os ensinamentos de que não se deve de modo algum estatuir pelas leis divinas o que deve sê-lo pelas leis humanas, nem regulamentar pelas leis humanas o que deve ser feito pelas leis divinas, pois essas divergem em sua origem, em seu objeto e em sua natureza, certo de que a convivência em sociedade constitui uma lei natural. Assim, Lei, havida como Direito, portanto, seja de origem divina ou humana, não se dissocia do costume, porque tanto aquela quanto esta são a expressão da vontade do grupo social, diferenciando-se apenas porque o costume é espontâneo e inconsciente, enquanto a lei emana de um órgão especializado, entendida como fonte do Direito seja ela de origem divina ou 39 natural, razão porque o filósofo alemão Gustav Radbruch após considerar que o (...) conceito de direito é um conceito cultural, isto é, de uma realidade referida a valores, ou ainda, de uma realidade cujo sentido é achar-se ao serviço de certos valores, assim o define: Direito é, pois, a realidade que possui o sentido de estar a serviço do valor jurídico, da idéia de Direito. O conceito de Direito acha-se assim dependente da idéia de Direito. “La notion de droit est... essentiellement liée à l’idée de Justice. Le droit est toujours un éssai en vue de réaliser la justice“ 15. A idéia de Direito, porém, não pode ser diferente da idéia de justiça (justiça, e não o fim a atingir, é que constitui a idéia do Direito)16. (...) e assim acha-se perfeitamente justificado que nos detenhamos um momento perante a idéia de justiça, como o verdadeiro ponto de partida para a determinação do conceito de direito, visto o “justo” ser, assim como o bem, o belo e a verdade, um valor absoluto que não se pode derivar de nenhum outro 17. A idéia de Direito, porém, não pode ser diferente da idéia de justiça, razão pela qual vê Radbruch aquela (idéia de Direito) constituída por três elementos distintos e heterogêneos: (...) a idéia de justiça, a do fim último para que o Direito é meio, e a segurança ou paz social e também de que ele é instrumento. O primeiro corresponde ao momento mais formal e, portanto, mais universal do Direito; o segundo, ao seu momento material ou de conteúdo ético e político; o terceiro, enfim, ao seu momento positivo como Direito estável e certo18. Embora intrinsecamente interligados, o segundo elemento – o fim último para que ele é meio – é o que mais sobressai o relativismo decorrente de uma interpretação pessoal e absolutamente subjetiva. Certamente diante dessas digressões conceituais e históricas, Lloyd verbera que na mais simples forma de sociedade, seja ela primitiva ou complexa, faz-se necessário algum sistema de regras que estipulem as condições em que homens e mulheres possam se acasalar e viver juntos; que governem as relações de família; que fixem as condições em que devam ser organizadas as atividades econômicas, de caça, de coletas de alimentos; que determinem a exclusão dos atos considerados contrários ao bem-estar da família ou de grupos maiores, pois uma sociedade sem ordem é a própria negação dela mesma19. Como instrumento de regulação do grupo social, a lei não é apenas necessária, porém indispensável, 40 porque a sociedade não pode ficar ao arbítrio das diferentes opiniões dos indivíduos, mas é garantidora de uma determinada ordem social, colocada acima dessas diversidades de opiniões, estabelecendo a certeza e a segurança da paz social. 1.2 SÍNTESE CONCLUSIVA Socorro-me, em apertada síntese conclusiva, quanto ao conceito de Justiça e a idéia de lei, do entendimento de que está no Direito – ius – visto como objeto da justiça que materializa a lei abstrata fazendo-a ter vida, na aplicação ao caso concreto, pois assim é que a sociedade de seres humanos como expressão de protesto ante uma experiência de maustratos causada por outrem, seja por lesão ou dano físico, moral ou financeiro, busca no Direito o clamor de justiça, como no aforismo latino Ubi non est justitia, ibi non potest essere jus (Onde não existe justiça, não pode haver o Direito), o que nos conduz a admitir que a idéia de Direito não pode ser outra senão que justiça. A função vital da justiça, vista como a materialização do Direito, que naturalmente antecede a lei, na pacificação e segurança da vida em sociedade, pode ser compreendida como a busca pela igualdade de tratamento, associando-a ao processo judicial. O Prof. Juan M. Farina, invocando os ensinamentos de Alasdair Macintyre, ao formular a indagação “o que é a justiça?”, nos responde: (...) se vislumbra originalmente como a simples exigência de uma definição, mas de imediato se converte na intenção de caracterizar tanto uma virtude que pode manifestar-se nas vidas individuais como uma forma de vida política (em sociedade) na qual os homens virtuosos tenham a possibilidade de realizar as suas virtudes, na medida em que podem fazê-lo no mundo de trocas e os seres humanos sejam respeitados como em suas tais condições20. Pensamos que esta seja a base essencial do sentido de justiça: uma forma de vida política (em comunidade) onde todos os seres humanos sejam respeitados nas suas condições. Isso, enfocado desde o ângulo da atividade judicial, significa que os juízes devam superar a concepção lógico-racionalista-matematizante de resolver recorrendo a abstratos silogismos jurídicos, para entenderem que se estão julgando as condutas, os atos de comportamentos de seres humanos reais aos quais devem considerar em suas condições como tais. Um aforismo latino pretendeu há 2000 anos de modo bastante ambíguo sintetizar assim a idéia alterum non laedere, suum cuique tribuere – não causar dano a outrem: dar a cada um o seu (direito)21. O qual foi completado com este outro fundamentum justitiae est fides, id est constantiaet veritas – O fundamento da justiça é a boa-fé, isto é, a equanimidade e a verdade22. Pode-se, assim, entender a justiça como um valor moral, ou o objetivo do homem na busca da vida adequada em sociedade e, desde os romanos, os seus fundamentos podem ser vistos na boa-fé e eqüidade, portanto, na obtenção da igualdade ou, no dizer de Kelsen, conforme citação supra, o suum cuicque assinala o lugar de cada um na sociedade. A função vital da justiça, vista como a materialização do Direito, que naturalmente antecede a lei, na pacificação e segurança da vida em sociedade, pode ser compreendida como a busca pela igualdade de tratamento, associando-a ao processo judicial. Para se fazer justiça, supõese que a lei seja aplicada igualmente em todas as situações e a todas as pessoas com as quais se relaciona, sem medo nem favor, a rico ou a pobres, a poderosos e humildes sem distinção, como nos ensinou o imortal Rui Barbosa na Oração aos Moços, ao exortar jovens bacharéis ao labor profissional com justiça: R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 (...) com o advogado, justiça militante; Justiça imperante, no magistrado. 2 A DISFUNÇÃO, E NÃO CRISE, POR QUE PASSA O PODER JUDICIÁRIO Preambularmente é preciso consignar que a crise, ou como prefiro, a disfunção, não é do Poder Judiciário isoladamente, mas do Estado brasileiro, porque, embora grave, não é, ainda, de caráter institucional. Especificamente em relação ao Poder Judiciário, filio-me ao entendimento do Prof. Zaffaroni, quando sustenta que (...) preferimos deixar de lado a questão da “crise”, para centralizarmo-nos na sensação de suas causas23, salientando que um dos fatores mais importantes é a crescente demanda de protagonismo dirigido aos judiciários latino-americanos, fazendo uma análise no sentido de que (...) a incorporação dos direitos chamados “sociais” e suas contradições regionais, com a seqüela de marginalização e exclusão, isto é, de disparidade gravíssima entre o discurso jurídico e a planificação econômica, provoca também uma “explosão de litigiosidade” com características próprias; o aumento da burocracia estatal (e sua pretendida redução por força de cortes orçamentários) e a produção legislativa impulsionada unicamente pelo clientelismo político provocam um maior protagonismo político dos juízes, com o conseqüente aumento de suas faculdades discricionárias, ao que se agrega que, em geral, o público parece tender a expressar-se mais violentamente diante dos erros – reais ou supostos – da justiça do que diante dos erros de outros órgãos estatais, para então concluir:: Em síntese, preferimos desdramatizar a situação, prescindindo do difuso conceito de “crise judicial”, para caracterizar a situação como produto de vários fatores que, no fundo, não fazem mais – nem menos – do que aumentar a distância entre as funções manifestas e latentes, mas que, ademais, têm a virtude de colocá-las de manifesto. Inexiste ruptura institucional entre Poderes. Há, na verdade, pretensão de alguns poucos – que ainda não deve ser vista como crise institucional, mas como mera disfunção – em minimizar a magnitude do Poder Judiciário em um Estado democrático de Direito, segundo as verdadeiras palavras do Prof. Zaffaroni,, para quem (...) não há dúvida de que há “má vontade para a democratização deste ramo do Estado”. Pode-se afirmar que os sucessivos R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 stablishments latino-americanos têm procurado valer-se politicamente dos poderes judiciários ou, pelo menos, de neutralizá-los para que não perturbem o seu exercício de poder. Qualquer tentativa de independência real dos poderes judiciários foi desacreditada como ato de ingerência política particularmente, quando se traduzia em defesa de direitos individuais e sociais. Não se vacilou em apelar à própria destruição física de seus operadores, como no triste caso do Palácio da Justiça de Bogotá. Em todas as Constituições, proclamase a independência do Poder Judiciário, mas nenhum dos stablishments se preocupou de realizá-la24. São alguns aspectos dessas deficiências estruturais que geram a disfunção, ou, como querem muitos, a “crise” do Poder Judiciário, que ora se analisará. 3 UNIFICAÇÃO DOS PROCESSOS CONDENATÓRIO, LIQUIDATÓRIO E EXECUTÓRIO No limiar do novo milênio, é inconcebível que não haja um esforço comum para a “modernização do Direito” na busca da materialização da Justiça, mas não para se atender uma solicitação do FMI, que (...) quer o enfraquecimento do Judiciário latinoamericano,, como afirma documento expedido pelo Banco Mundial intitulado O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe, divulgado pelo exDeputado Federal e Professor de Direito Constitucional, Jarbas Lima, no XVI Congresso Brasileiro de Magistrados, classificando-o de obra de destruição do Estado, nos seguintes termos: A reforma do Judiciário não pode se restringir a embates técnico-jurídicos, pois a questão é essencialmente política. Ele afirmou não ter (...) a menor dúvida de que o Judiciário está atrapalhando os avanços do neoliberalismo25. Por outro lado, o Prof. Dalmo Dallari já havia afirmado: O FMI exigiu do Poder Executivo uma reforma que enfraquecesse o Judiciário, para evitar que a Justiça invalide as medidas do governo federal que atendem aos interesses do mercado financeiro internacional26. São afirmações contundentes e preocupantes, merecendo o repúdio de todos os cidadãos brasileiros, em especial da magistratura brasileira. No aspecto, lato sensu, da modernidade do Direito, comporta, ainda que em breve análise, a questão da morosidade que se atribui ao Poder Judiciário e que deve ser vista sob duplo aspecto: causas antecedentes, genéricas, políticas e sociais e causas conseqüentes, pontuais em decorrência de deficiências estruturais, sejam de ordem legislativa, de meios e funcionais. Assinalo como causas antecedentes, dentre outras, a transformação do sistema político da humanidade, com a derrubada do ancien régime absolutista, nas conturbadas ideologias que levaram às conflagrações mundiais, com a queda do Muro de Berlim, com o surgimento de ideais liberais para todo o mundo que se caracteriza pelo primado da sociedade sobre o Estado, do cidadão individualmente protegido para o cidadão coletiva e difusamente protegido, fenômenos esses que repercutem fundamentalmente sobre a prestação da função jurisdicional do Estado moderno, que passa a receber demanda para as quais não se preparou convenientemente, sendo bastante relevante destacar o pensamento do Prof. Diogo Figueiredo: (...) notadamente pela introdução da noção geral de competência, não só como idéia de atribuição, como a de limites de ação, pois o Estado de Direito é basicamente um conceito formal logicamente articulado sobre o primado da lei, a expressão da vontade emitida pelo Estado, que submete a todos, inclusive a ele próprio. Assim, os indivíduos devem encontrar na lei o limite de agir e, excepcionalmente, uma norma de ação, ao passo que o Estado tem na lei a única e necessária fonte de validade de sua ação: o governo de lei, não de homens, como se lê na Declaração de Direitos de Massachussetts, de 178027, hoje com prevalência do Direito Constitucional por meio do controle de constitucionalidade e o controle da legalidade, stricto sensu. Admitindo o conceito primoroso de Hannah Arendt para quem (...) cidadania é o direito a ter direitos, tenho visto em minhas reflexões e votos, estes quando possível, que a modernidade da prestação jurisdicional há de estar configurada sob um tríplice aspecto: celeridade, segurança e exeqüibilidade, e que pode ser construída neste pensamento: decisão desmotivada, insegura, não é justa; se motivada com segurança, mas tardia, é como inexistente; se motivada com segurança, prestada com celeridade, mas sem efetividade na concreção do direito, é um nada. Faltando qualquer um desses pressupostos, a prestação jurisdicional não se aperfeiçoará como deseja a sociedade brasileira neste novo milênio, razão por que tem sido a modernização do Direito bandeira do Ministro 41 Humberto Gomes de Barros e que se traduz no subtema deste Fórum de Debate, ou seja, a unificação dos processos condenatório, liqüidatório e executório. Não se pode pensar, permissa venia, em modernidade do Direito sem se questionar, se aperfeiçoar três primados fundamentais: a federalização do acesso ao Judiciário, a supressão de recursos processuais e a federalização dos repasses financeiros. A FEDERALIZAÇÃO DO ACESSO AO JUDICIÁRIO A partir do pensamento de Hannah Arendt para quem (...) cidadania é o direito a ter direitos, a reflexão sobre esse tema não tem por escopo nem fará ressurgir a questão da dualidade de Justiça Federal, nestas incluídas as especializadas, e Estadual, embora formem o Poder Judiciário nacional, ainda que pessoalmente concorde com a opinião de Oliveira Filho, transcrita pelo Exmo. Sr. Ministro Carlos Mário da Silva Velloso: (...) sou pela unidade da magistratura. Nenhum argumento encontro que me convença da necessidade da conservação do regime atual da dualidade da Justiça, sejam quais forem as modificações propostas para remediar-lhe os inconvenientes28, tecendo as seguintes considerações: “É que, para Oliveira Viana, as liberdades civis estariam muito mais garantidas por autoridades vindas de fora – de origem carismática, cuja investidura não poderá provir senão de uma fonte nacional, num regime de “descentralização desconcentrada” – e não de “descentralização federalizada”, como a que temos29. (...) Oliveira Viana, defensor da unidade da magistratura, bateu-se, então, pela federalização dos Judiciários estaduais, opinião que é adotada, comumente, pelas magistraturas de Estados-membros que não remuneram condignamente os seus juízes30. Não vislumbro a questão sob a ótica da remuneração, mera particularização. Vejo-a mais profunda, sob a visão da estrutura do Poder Judiciário na sua unidade nacional, que não será objeto de abordagem nesta oportunidade, deixando o desenvolvimento do tema para outras reflexões. Um dos maiores pecados que se atribui injustamente ao magistrado consiste na afirmação de seu “encastelamento em redoma”, postura que dificulta o acesso do cidadão à Justiça. Embora pontual, reconhece-se que alguns pouquíssimos magistrados tomam posturas de semideuses, la- 42 mentavelmente, o que vem sendo combatido por todos aqueles que têm visão de vanguarda e se dedicam aos estudos da Deontologia forense. Mas isso ocorre, como se sabe, pontualmente e por uma pequeníssima minoria, portanto não significativa como disciplinadora de postura institucional do Poder Judiciário. Ao contrário, o que se vê hoje é um Judiciário aberto, a começar pelos tribunais superiores, da grande maioria dos tribunais de Justiça e dos tribunais regionais onde as portas estão sempre abertas à sociedade, aos cidadãos. Em trabalho publicado sob o nome “A Justiça e Judiciário”31, tive a oportunidade de referenciar-me nos ensinamentos do eminente advogado Dalmo de Abreu Dallari, o qual sustenta que: (...) os três Poderes que compõem o aparato governamental dos Estados contemporâneos, sejam ou não definidos como poderes, estão inadequados para a realidade social e política de nosso tempo. Isso pode ser facilmente explicado pelo fato de que eles foram concebidos no século dezoito, para realidades diferentes, quando, entre outras coisas, imaginava-se o “Estado mínimo”, pouco solicitado, mesmo por- O acesso ao Poder Judiciário deve ser direito, e não favor ou concessão jurisprudencial, legalmente assegurado ao cidadão, a empresas, sindicatos, associações, partidos políticos etc., individual, coletiva ou de forma difusa como essência dos fundamentos norteadores a um Estado democrático de Direito. que só uma pequena parte das populações tinha a garantia de seus direitos e a possibilidade de exigir que eles fossem respeitados32. E continua:: O Poder Judiciário tem situação peculiar, pois ou por temor reverencial ou por falta de reconhecimento de sua importância social e política, o Legislativo e o Executivo nunca deram a devida atenção aos problemas relacionados com a organização judiciária e o acesso do povo aos juízes. Poucos percebem que isso tem muita importância num sistema político que pretende ser democrático. Enquanto Legislativo e Executivo dialogam permanentemente, muitas vezes exigindo a satisfação de seus respectivos interesses como condição para apoiar ou realizar um objetivo de interesse público, o Judiciário tem sido mantido à margem, num honroso isolamento. Embora se tenha criado a aparência de maior respeito pelo Judiciário, que não dialoga com os demais Poderes mas também não se envolve em disputas com eles, o fato é que, aceitando passivamente tal situação, a magistratura, na prática, ficou imobilizada, voltada para si própria, incapaz de perceber que, em alguma medida, os outros procuravam adaptarse ao dinamismo da sociedade enquanto ela estagnava. Isso ocorreu no Brasil e em grande parte do mundo33. Essa é uma verdadeira realidade, razão por que comungo quase totalmente com o eminente professor, dissentindo, contudo, quando afirma que a magistratura ficou voltada para si própria, estagnada. O comportamento do magistrado, como agente de um dos Poderes da República, há de ser necessário e absolutamente voltado para si, porque assim exige a sua postura perante a sociedade que nele procura apenas ver um cidadão imparcial, isento e desvinculado das paixões políticas ou ideológicas. Lembro-me de quando freqüentei a Escola Judicial Des. Edésio Fernandes do Tribunal de Justiça de Minas Gerais: em palestra sobre Deontologia forense falou-se das dificuldades do exercício da judicatura nas comarcas do interior. Nela não podia o juiz, como qualquer cidadão, sentar-se à uma mesa e tomar uma cerveja. Era inaceitável. Era-lhe vedado participar de um churrasco em casa do prefeito, do presidente da Câmara de Vereadores, porque, como juiz eleitoral, era visto pelos adversários daquele outro no mínimo como simpatizante, portanto, suspeito e, como juiz de Direito, era visto como comprometido, situação que obrigava ao recolhimento. R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 Esses fatos, embora reflitam pequena amostragem, evidenciam a necessidade de um comportamento diferenciado, de um afastamento absolutamente necessário, mas que não o de um isolamento, fato que induz o cidadão comum ou o mal-intencionado ao pensamento de que o juiz é um “ente superior que se guarda em uma redoma”. Entretanto, essa mentalidade está evoluindo e permitindo que o magistrado tenha uma vivência maior na comunidade em que exerce a sua judicatura, dentro dos limites da normalidade e sem questionamentos que não influem em suas decisões, submetidas a controle das partes, a manifestações do Ministério Público, a recursos oficiais, quando proferida contra Ente Público ou voluntário, ante a iniciativa do interessado, embora muitos continuem a afirmar, todas as vezes que se vêem contrariados, que o “juiz somente deve falar no processo”, portanto sem aceitar ou separar o cidadão do magistrado. As tradições, o respeito às formalidades e ao uso das vestes talares, que muitos repudiam, são necessários como forma de exteriorizar o respeito reverencial à função e não à pessoa de quem a exerce, de um Poder que não possui arma nem detém a chave do cofre, senão a respeitabilidade, confiança e credibilidade de seus membros perante a sociedade. No limiar deste novo século, deve procurar o ser humano a evolução e o aperfeiçoamento das instituições judiciárias, que continuam sendo tratadas com desprezo pelos Poderes Executivo e Legislativo: aquele, quando lhe cerceia os meios necessários ao seu desenvolvimento, sempre reduzindo as verbas necessárias a implantações lícitas de suas necessidades, tais como: novos fóruns, máquinas, equipamentos, computadores, cadeias públicas, concursos para preenchimento dos cargos da Defensoria Pública e da Advocacia do Estado, delegados, promotores de Justiça, servidores, enfim para todos aqueles que compõem o sistema judicial; esse, quando lhe nega aprovação de seus projetos de lei, impede o aumento do quantitativo dos juízes, ou quando, propositadamente, ignorando os princípios constitucionais, se arvora como legitimado na iniciativa de leis de competência exclusiva do Poder Judiciário. Nas reflexões acerca dessas realidades, preocupa-me sobremaneira a tentativa de se retirar a independência do Poder Judiciário, submetendo-o ao controle político, esquecendo-se, como afirma o Prof. Dallari, (...) R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 do importante papel da magistratura no mundo contemporâneo, para a implantação e preservação de sistemas democráticos, concluindo: (...) em sentido contrário, deve-se opor firme resistência aos que, usando os argumentos da modernização e dinamização, ignoram que o Judiciário deve ser um serviço para todo o povo e querem que prevaleçam cúpulas dóceis e submissas que procuram neutralizar os juízes, a fim de que eles não se oponham às investidas injustas dos poderes político e econômico34, o que não se alcançará com o chamado “controle externo”. A proposta de federalização contida neste subtema visa a uma estratégia, um aperfeiçoamento para melhor facilitar o acesso do cidadão à Justiça, excluídos os conceitos demagógicos e as ilações desfundamentadas, procurando, enfim, permitir as reflexões que possam levar ao afastamento das deficiências estruturais, porque nenhuma modernidade terá qualquer sentido sem acesso pleno do cidadão ao Poder Judiciário. Ação, na abrangência do conceito da iniciativa, constitui pressuposto processual objetivo, sem o qual não se instaura validamente a relação processual, a formulação de uma demanda ao juiz, mas pelo aspecto do impulso, a tendência do Estado moderno, organizado hoje, mais do que ontem, sobre bases publicistas, desenvolve-se no sentido de reduzir as limitações impostas ao juiz ao poder de ordenar o impulso do processo, porque ordenamento jurídico tem interesse, e não só as partes, na pacificação que se dá mediante a atuação de seus preceitos substanciais. O Estado, ao avocar para si o direito de resolver os conflitos de interesses decorrentes da vida em sociedade, proibindo, assim, que cada cidadão o faça pessoalmente, assumiu o dever de prestar um serviço público que é a jurisdição, hoje prevista no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal, elevada ao cânone de princípio de direito e garantia individual, como cláusula pétrea, ao disciplinar que (...) a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito. O cidadão, como titular de um direito, está submetido ao chamado “custo do processo” que se paga ao Estado para utilizar-se dessa jurisdição monopolizada, segundo estabelece o art. 19 do Código de Processo Civil. Entretanto, não raras vezes, para os mais desfavorecidos pela sorte, tornase óbice intransponível para se ter o acesso à Justiça, mesmo assegurandose, nos termos do art. 5º, inc. LXXIV, da CF, a assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados. O Prof. Cândido Dinamarco35 nos ensina que, sendo a ação integrante de um sistema que é instrumental por excelência, seu valor reside na aptidão que tenha de propiciar meios de acesso à Justiça, para a efetiva tutela jurisdicional e remoção dos conflitos interindividuais que turvam a paz social e constituem causa de infelicidade pessoal,, para, então, assim se posicionar: Concebida assim nesses termos tão amplos, a ação é uma faculdade inerente à própria personalidade, ela não se prende a condição alguma; é esse o primeiro sentido da garantia contida no preceito programático do art. 5º, inc. XXXV, da Constituição brasileira. Tratase do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, em sua acepção mais lata e menos profunda, o qual será violado sempre que se pretenda impedir a alguém o exercício da faculdade de se fazer ouvir pela Justiça36. A questão envolve, no âmbito do Poder Público do Estado, a concretude da assistência jurídica integral e gratuita, seja para orientação extrajudicial, seja para a representação judicial nas modalidades autorizadas pela Lei n. 1.060, de 1950, cujo fulcro fundamental é isentar o necessitado, ou seja, não ao miserável apenas, mas a todo aquele que não possa dispor dos recursos necessários ao exercício desse direito de cidadania, senão com prejuízo à sua manutenção e a de sua família. Vejo, assim, no mínimo uma dicotomia quanto à assistência gratuita e que dificulta o acesso do cidadão à Justiça: a primeira, de uma orientação judiciária, não necessariamente vinculada a um procedimento judicial, mas seletiva aos absolutamente necessitados, e a segunda, de uma efetiva representação judicial e processual a esses, quando necessárias. São, portanto, deveres do Estado que neste desvairio globalizante não podem ser terceirizados a entidades não-estatais, em razão de duvidosa constitucionalidade, pela ausência de uma Defensoria Pública efetivamente organizada, por se constituir em uma função estatal, portanto própria, exclusiva e indelegável. Vejo na questão de acesso à Justiça maior dimensão do que a simples isenção de pagamento de custas, mas a própria essência da efetividade jurisdicional enquanto poder estatal, que se deve buscar no limiar deste novo século. Quanto à primeira, sabidamente, além da ausência de meios, o 43 acesso à Justiça também é obstaculizado, e muito, pelo valor elevado das custas processuais e emolumentos que devem ser pagos previamente, ou seja, no momento do ajuizamento da ação, tendo como beneficiários nacionais e estrangeiros residentes no País, afastado que foi o elemento discriminatório do Código de 1939, que limitava o benefício ao estrangeiro que possuísse filho brasileiro. Não raros casos têm sido suscitados, principalmente nas Justiças Estaduais, da impossibilidade de prévio pagamento das custas e emolumentos para o exercício de um direito, gerando não apenas desconforto de se procurar uma Defensoria Pública que, quando existente e estruturada, não aceita o patrocínio porque a situação extravasa os limites conceituais de salário mínimo, não obstante a impossibilidade material de efetuar o pagamento por razões multivariadas. Na Justiça Estadual do Amapá, além do redutor de 75% dessas despesas, muitas vezes têm sido levados recursos à Corte de Justiça para dirimir o direito concedido pelo juiz à parte necessitada ou incapaz de realizar, de pronto, aquelas despesas, para o recolhimento posterior das custas e despesas processuais. Há casos em que até mesmo a parte interessada na causa pede a decretação da deserção, procurando, via elitização financeira, retirar da apreciação do Judiciário a lesão de direito discutida em face dela própria. O acesso ao Judiciário não pode ser elitizado financeiramente. Embora a concessão venha sendo atendida por construção jurisprudencial, penso que em uma estrutura maior deva ser exercida como reconhecimento de um direito e não de concessão ou favor jurisprudencial, razão pela qual não se deve impedir o acesso ao Judiciário pela situação econômico-financeira, até mesmo por pessoas jurídicas, porque essa restrição é um absurdo, considerando os princípios constitucionais da igualdade perante a lei, que (...) não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, embora não se ignore que as garantias de direitos individuais já prevêem as isenções em algumas situações, como, por exemplo, a gratuidade das ações de habeas-corpus e habeas-data, conforme norma do inc. LXXVII do art. 5º da Constituição Federal. O caminho que vejo como perseguir é a federalização do acesso à Justiça, ônus do Estado brasileiro que avoca a si a legitimidade do direito de punir, de compor os litígios e de realizar a pacificação social. 44 O pagamento das custas e emolumentos, que hoje são prévios e elevados, não devem ser condição restritiva ao exercício do direito de ação, de um direito de cidadania que não pode ficar vinculado à condição ou possibilidade financeira do interessado, mas que seja imposto coativamente como um dos efeitos de condenação. O ajuizamento de qualquer ação estaria desobrigado de pagamento de custas ou emolumento prévios – competindo ao Estado prover todos os recursos necessários ao pleno desenvolvimento de uma prestação jurisdicional moderna – e na sentença o magistrado, no exame do caso concreto, após análise objetiva do comportamento processual de litigante de má-fé ou não, da possibilidade econômica e financeira – inclusive concedendo a assistência judiciária aos necessitados ou carentes, desmistificada a questão de limite de salário mínimo –, imporia na condenação o pagamento dessas custas, despesas e emolumentos processuais em todas as fases recursais. A partir de então, já como efeito condenatório da reclamada prestação (...) para aperfeiçoamento do sistema, necessária seria legislação processual adequada admitindo a imposição de condenação em honorários ou multas todas as vezes em que se constatar ser o recurso meramente protelatório, ou verificada a existência ou não de pertinência temática ou jurisprudencial na sua fundamentação, à exceção do duplo grau de cognição em face do princípio da segurança, mas abrangendo os incidentes processuais meramente protelatórios e/ou de comprovada litigância de má-fé, seja do cidadão, seja do Estado. jurisdicional e não como elemento inibidor e elitista para se ter acesso à Justiça, é que seriam pagas dentro do prazo recursal, provendo-se ao ordenamento jurídico dessa condenação os meios jurídicos para coercibilidade executória mais concreta e célere, destinando-se os valores recolhidos a um fundo especial a três fontes, administradas pelo Conselho Nacional de Magistratura, pelo Conselho Superior do Ministério Público e pelo Conselho Superior da Defensoria Pública com finalidades específicas e vinculadas de aperfeiçoamento e modernização do Poder Judiciário e das duas instituições. Essa federalização teria o objetivo não apenas de prover a assistência judiciária constitucional, processual ou orientativa, de preservar o munus público da jurisdição, como também e, em especial, reduzir o número de recursos decorrentes das questões processuais, porque o reexame da ampla defesa estaria inserido na própria sentença. Em verdade, sabe-se da existência sempre crescente de recursos, de incidentes processuais – agravos, embargos etc. – acerca da concessão ou negativa da assistência judiciária, seja levando-se em consideração a renda da pessoa, (...) porque as causas podem ser vultuosíssimas e sem recursos para elas o interessado37, seja em razão do patrimônio em discussão, seja porque o beneficiário possua um imóvel e tenha renda superior a um salário mínimo, o que não lhes retira o direito ao benefício se insuficientes os rendimentos para arcar com as despesas, custas e honorários processuais. Outrossim, as dificuldades econômicas dessa nova era têm afetado pessoas jurídicas, cooperativas e associações, filantrópicas ou não, hoje excluídas da assistência, o que deve ser revisto porque podem não estar em condições de custear os encargos processuais, sendo portanto necessitadas dentro de um conceito objetivo lato sensu. Destarte, a extensão do amparo legal tem embasamento constitucional, porque as pessoas jurídicas não foram excluídas pelo Constituinte de 1988, seja pelo princípio maior de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, seja ante o princípio – inc. LXXIV do art. 5º da Constituição Federal – de que (...) o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, inadmitida analogia para restringir direito. Além do que, a política desenvolvimentista do Estado moderno, que R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 se busca em uma dimensão mínima e necessária para a sua atividade, não pode prescindir das gerações de empregos, mal do final do século, principalmente por associações e cooperativas – art. 5º, incs. XVII e XIX, da Constituição Federal – que até mesmo limita a sua dissolução à decisão judicial, em razão de uma política de pensamento retrógrado, portanto, não evolutista. Hoje a construção jurisprudencial do colendo Superior Tribunal de Justiça – REsp. n. 38.124-0- RS, relator Ministro Sálvio de Figueiredo, RJSTJ 6 (57) 412 – admite a presunção juris tantum da mera declaração da parte, o que não suprime os eternos recursos levados aos tribunais, inclusive ao Superior Tribunal de Justiça. O conceito a ser examinado há de ser visto pela ótica da necessidade e pela inexistência de recursos financeiros de pessoa física, jurídica, cooperativa ou associação, por meio de avaliação objetiva fundada em provas a ser realizada no processo e declarada na sentença pelo magistrado, evitando distorções, injustiças e, ou privilégios indevidos, eliminando recursos desnecessários, suprimindo discussões processuais – se o recurso seria apelação ou agravo, se teria ou não efeito suspensivo – (...) cabe apelação para enfrentar decisão relacionada com o pedido de assistência judiciária. O agravo de instrumento apenas é oportuno quando a decisão decide de plano, nos autos do processo principal, o pedido de assistência. (STJ, 1ª Turma, REsp. n. 28.769-1– RJ, Relator Ministro Gomes de Barros) – que levam ao retardamento do julgamento de mérito da prestação jurisdicional reclamada, dirimindo-se uma possível controvérsia em uma única sentença. O acesso ao Poder Judiciário deve ser direito, e não favor ou concessão jurisprudencial, legalmente assegurado ao cidadão, a empresas, sindicatos, associações, partidos políticos etc., individual, coletiva ou de forma difusa como essência dos fundamentos norteadores a um Estado democrático de Direito. O Poder Judiciário somente existe para servir ao jurisdicionado. Sem acesso pleno ou que venha ser limitado pelo poder econômico, elitista, perde a razão de ser. O ACESSO À JUSTIÇA. SUPRESSÃO DE RECURSOS PROCESSUAIS Outro aspecto relevante, que vejo como estratégia ao aperfeiçoamento da magistratura, refere-se à sucessividade de recursos judiciais, R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 muitos deles, sem sombra de dúvidas, meramente protelatórios. Não posso vislumbrar como constitucional e legal, a pretexto de desafogar o Poder Judiciário do excesso de processos, a supressão de recursos, que, no mínimo, importa restrição de uma proteção eficaz, aliás prevista no art. 8º da Declaração Universal de Direitos Humanos, de que (...) toda pessoa tem direito a um recurso efetivo, ante os tribunais nacionais competentes, que a ampare contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição ou pela lei, da qual o Brasil é signatário, tendo, por isso mesmo, força de norma constitucional. O festejado prof. J. J. Gomes Canotilho preleciona que (...) a exigência de um direito sem dilações indevidas, ou seja, de uma proteção judicial em tempo adequado, não significa necessariamente “justiça acelerada”. A “aceleração” da proteção jurídica que se traduza em diminuição de garantias processuais e materiais (prazos de recursos, supressão de instâncias) pode conduzir a uma justiça pronta, mas materialmente injusta. Noutros casos, a existência de processos céleres, expeditos e eficazes – de especial importância no âmbito do Direito Penal, mas extensiva a outros domínios – é condição indispensável de uma proteção jurídica adequada38. A segurança não pode ficar comprometida pela supressão de instâncias recursais, porque nada mais repulsa ao homem comum que o conhecimento de um erro judiciário, visto e compreendido como injustiça estatal e, portanto, contrário ao princípio universal de direito natural, embora se reconheça que o duplo grau de jurisdição não é um direito fundamental, mas regra que não pode ser subvertida nem suprimida pelo legislador. Duas outras medidas, de natureza legislativa de procedimento ordinário, portanto, de lei comum, se levadas a efeito, trariam celeridade aos julgamentos e ajudariam a descongestionar o Poder Judiciário. A primeira consistiria na extinção da chamada remessa “de ofício”, que não é um recurso, por falta de previsão legal, mas tem procedimento semelhante. A Constituição Federal não garante, em momento algum, o chamado duplo grau de jurisdição – expressão tecnicamente incorreta, porque jurisdição é uma projeção da soberania, porquanto não há mais de uma39, restando apenas previsto no art. 475, do Código Unitário, que disciplina as hipóteses de sua interposição, independentemente da vontade da parte recorrer ou não. Inaceitável, sob a ótica constitucional da igualdade de direitos que se continue a privilegiar o Estado em detrimento do cidadão, se o ato de vontade de recorrer, que é voluntário, não venha a ser exercido pelo seu procurador. Maior desigualdade ocorre, ainda, quando se disciplina que na chamada “remessa de ofício” não se pode agravar a condenação. Se presente o duplo grau de “cognição e julgamento”, haveria de se consumar o princípio da devolução integral do conhecimento da matéria julgada, até mesmo para agravar uma possível condenação na busca da realização da justiça, ao contrário, permissa venia, do que é disciplinado na Súmula n. 45 do Superior Tribunal de Justiça: (...) no reexame necessário é defeso ao tribunal agravar a condenação imposta à Fazenda Pública. Injustificável a continuidade desse posicionamento, porque o Estado e seus entes estão representados judicialmente, competindo-lhes a diligência do recurso tempestivo ou a busca de nova decisão judicial, por várias razões: porque compete aos procuradores o exercício do direito de recurso; porque cessaria a falta de confiança presumida na decisão de primeiro grau contra a Fazenda Pública; porque não desestimularia o magistrado de primeiro grau nem abalaria a sua independência ao se partir da premissa que sua sentença não é confiável e, finalmente, porque a finalidade do Poder Judiciário é declarar relação jurídica e não suprir omissões ou ausência de recurso de quem quer que seja, notadamente do Estado onipotente e omisso. Extinguir-se-ia, assim, o paternalismo processual em favor do Estado e o colocaria, como mandam os princípios constitucionais, no verdadeiro plano das igualdades de todos perante a lei, enquanto as suas omissões ou falhas funcionais resolver-seiam interna corporis e segundo regras próprias. A segunda, de natureza processual, consistiria na redução dos prazos judiciais – em dobro e em quádruplo – em favor do Estado e seus entes, ajustando-o aos mesmos princípios constitucionais das partes. Alguns tratamentos diferenciados não se justificam: por que a intimação pessoal do representante da Fazenda Pública na execução fiscal, ou por ocasião dos embargos a ela opostos, quando o patrono do particular é intimado pela imprensa? (art. 25 da Lei n. 6.830/80); 45 qual a razão legal de se permitir, antes da sentença, caso haja o cancelamento da inscrição da dívida ativa, que seja a execução fiscal extinta, sem pagamento de honorários ou ônus processuais, procedimento esse que viola princípio constitucional de que o Estado tem o dever de ressarcir os danos causados por seus funcionários no exercício de suas atribuições?; por que continuar privilegiando a Fazenda Pública na execução da obrigação de fazer, sem fixar multa pelo não-cumprimento, o que retira a efetividade da prestação jurisdicional, mas submete o Poder Judiciário às críticas de ineficiência, de injustiça ou mesmo de inércia em face do ente Estatal poderoso? A propósito, o prof. Cândido Dinamarco preleciona que (...) um estudo na história recente do processo civil brasileiro, que neste capítulo se esboça com toda a possível singeleza, revela a tomada de consciência, que antes foi da doutrina vanguardeira e agora é também do legislador, de três premissas fundamentais: a abertura do processo aos influxos metajurídicos que a ele chegam pela via do direito material, a transmigração do individual para o coletivo (Barbosa Moreira) e a necessidade de operacionalizar-se o sistema, desburocratizá-lo ou desformalizá-lo tanto quanto possível, com vistas a facilitar a obtenção dos resultados justos que dele é lícito esperar40, e, digo eu, não devendo confundir-se formalidade com formalismo, este repudiado pela doutrina e jurisprudência 41. São medidas simples como essas e outras que se fizerem necessárias, que proverão o Poder Judiciário com os meios instrumentais necessários à sua função constitucional, agilizando-se a celeridade da prestação jurisdicional, além, repita-se, do dever de melhorar o ensino do bacharel para viabilizar, por meio de concursos públicos, os preenchimentos das vagas no Judiciário e nas carreiras jurídicas. Além dessas medidas, meramente legislativas, há outras que aperfeiçoariam o sistema judicial. Uma delas seria a criação de um sistema processual compatível e adequado de imposições de condenações a cada recurso, após o recurso do duplo grau de cognição, e nas hipóteses de recursos incidentais destituídos de embasamentos legais ou de conteúdos meramente protelatórios. Estrategicamente, para aperfeiçoamento do sistema, necessária seria legislação processual adequada admitindo a imposição de condenação em honorários ou multas todas as vezes em que se constatar ser o recurso mera- 46 mente protelatório, ou verificada a existência ou não de pertinência temática ou jurisprudencial na sua fundamentação, à exceção do duplo grau de cognição em face do princípio da segurança, mas abrangendo os incidentes processuais meramente protelatórios e/ou de comprovada litigância de máfé, seja do cidadão, seja do Estado. Na verdade, ressente o vigente estatuto processual adjetivo de moderna atualização, eis que o valor da causa atribuído segundo critérios formais e materiais na petição inicial fixa, initio litis, um valor que obriga, não apenas ao magistrado de primeiro grau, mas a todos os tribunais, inclusive aos superiores, pouco importando que hajam ao curso da demanda inúmeros e inúmeros recursos, válidos ou não. Tem-se conhecimento da existência, nos tribunais superiores, de embargos de declaração manifestados em agravo regimental, de agravo de instrumento interposto contra decisão que inadmitiu seguimento de recurso, sem maiores pertinências temáticas que não a postergação ao longo do tempo de uma decisão já pacificada, Longe de ser um privilégio para os juízes, a independência da magistratura é necessária para o povo, que precisa de juízes imparciais para harmonização pacífica e justa dos conflitos de direitos. A rigor, pode-se afirmar que os juízes têm obrigação de defender sua independência, pois sem esta a atividade jurisdicional pode, facilmente, ser reduzida a uma farsa, uma fachada nobre para ocultar do povo a realidade das discriminações e das injustiças. congestionando e reduzindo a celeridade do exame de um processo, ou, como tem afirmado o Ministro Humberto Gomes de Barros, usando o Poder Judiciário para a rolagem de dívidas, públicas ou privadas. As atualizações dos arts. 17 e 18 do Código de Processo Civil, recentemente promulgadas, são acanhadas e não satisfazem a um melhor aperfeiçoamento. É necessário viabilizar que o tribunal possa, no exame criterioso de cada caso concreto, ao constatar o abuso, a procrastinação ou qualquer método de retardamento injustificado, de impor sanção pecuniária que represente, realmente, desestímulo a essa prática repudiada e contrária à ordem social, porque o ofendido nessa situação é o próprio Estado-juiz. Não se deseja com esse pensamento estabelecer-se um terrorismo de multas cerceadoras ao exercício constitucional da ampla defesa, do direito de se ver uma questão esgotar as instâncias recursais. Contrariu sensu, reconhecida a pertinência temática e a seriedade recursal, nenhum gravame se imporia para não se elitizar o sistema recursal aos economicamente bem abastados. Portanto, a sanção seria exceção, e não regra de natureza processual. Luís Roberto Barroso,, emérito professor do Rio de Janeiro, afirma que (...) o Direito existe para realizar-se42, razão pela qual não basta que se estabeleçam esses princípios processuais, se não houver por parte dos demais Poderes o sentimento do dever – aí sim, sob sanção grave ao servidor renitente – de cumprir e fazer cumprir a decisão que reconheceu um direito, determinou uma obrigação, dando-lhe o caráter de efetividade plena, após o seu trânsito em julgado, sob o absolutamente indispensável tríplice aspecto: da celeridade, da segurança e da efetividade. Isso porque se uma justiça tardia é negação do direito, a justiça sem segurança é inaceitável e a justiça sem efetividade é um nada jurídico. Sobremaneira relevante que se transcreva o pensamento do prof. Dalmo de Abreu Dallari, de notória respeitabilidade, acerca da independência da magistratura: Para que o Poder Judiciário garanta os direitos e realize a justiça, é necessário que ele seja materialmente bem aparelhado, mas isso apenas não é suficiente, sendo extremamente relevante que os juízes tenham preparo adequado e sejam conscientes de suas responsabilidades. Mas além disso tudo e como requisito prévio e essencial, é indispensável que R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 a magistratura seja independente. O reconhecimento formal da independência dos juízes como requisito necessário para a democracia e a paz foi feito pela Organização das Nações Unidas, por meio de importante decisão no início de 1994. Com efeito, mediante Resolução n. 1994/41, aprovada em sessão de 4 de março de 2000, a Comissão de Direitos Humanos da ONU decidiu recomendar a criação do cargo de Relator Especial sobre a independência do Poder Judiciário. Nessa oportunidade, a Comissão reconheceu a necessidade de se criar “um mecanismo de controle encarregado de acompanhar a questão da independência e imparcialidade do Poder Judiciário, especialmente no que respeita aos juízes e advogados e ao pessoal e auxiliares da Justiça, assim como a natureza dos problemas que podem menoscabar essa independência e imparcialidade”. Acolhendo e confirmando essa recomendação, o Conselho Econômico e Social da ONU decidiu criar o cargo de Relator Especial, com as seguintes funções: (...)43. Destaco, em síntese, três dessas funções:: a primeira, de investigar toda denúncia que seja transmitida ao Relator e informar suas conclusões; a segunda, de identificar e registrar os atentados à independência do Poder Judiciário e advogados e do pessoal auxiliar e os progressos realizados para essa proteção; a terceira, de estudar, por sua atualidade e importância, visando à formulação de propostas para proteger e assegurar a sua independência. Consigno, entretanto, as seguintes considerações: Longe de ser um privilégio para os juízes, a independência da magistratura é necessária para o povo, que precisa de juízes imparciais para harmonização pacífica e justa dos conflitos de direitos. A rigor, pode-se afirmar que os juízes têm obrigação de defender sua independência, pois sem esta a atividade jurisdicional pode, facilmente, ser reduzida a uma farsa, uma fachada nobre para ocultar do povo a realidade das discriminações e das injustiças. Essa conjugação de perspectivas, que tem sido pouco ressaltada, torna conveniente e oportuna uma reflexão sobre esse ponto, não só para que fiquem claros os motivos pelos quais é necessária a magistratura independente, mas também para que a alegação de falta de independência não seja usada como pretexto para isentar o Poder Judiciário de toda a responsabilidade de suas próprias deficiências. R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 A discussão sobre a independência da magistratura aparece com freqüência ligada às questões da liberdade, da justiça social e da democracia. Isso faz pressupor a existência de um papel político da magistratura e torna importante uma reflexão sobre sua independência, as razões pelas quais se deseja que ela seja independente e para que objetivos ela deve utilizar a independência que lhe fora assegurada. A par disso, é igualmente importante não perder de vista as circunstâncias sociais e políticas que caracterizam este momento da história brasileira e latino-americana em especial, porque neste contexto existem peculiaridades de extrema importância, que devem ser consideradas no exame das exigências de independência da magistratura e das dificuldades que aí estão implicadas. Além disso, é importante identificar e enfatizar os obstáculos à independência da magistratura: quem se opõe a ela, como e por quê? Existem casos em que os inimigos da magistratura independente agem abertamente contra ela, mas há situações em que a destruição dessa independência é feita com disfarces mais ou menos sofisticados, podendo até assumir a aparência de homenagens a juízes e tribunais. E ocorrem situações em que os próprios magistrados, por ingenuidade ou leviandade, assumem a condição de cúmplices dos que promovem a desmoralização da magistratura, associandose a demagogos e corruptos, acobertando ilegalidades de governantes em troca de vantagens pessoais que nada têm a ver com a melhoria das condições de trabalho dos juízes e tribunais. Nesses casos, os juízes é que são os principais inimigos da independência da magistratura44. E acrescenta o eminente professor:: A magistratura deve ser independente para que se possa orientar no sentido da justiça, decidindo com eqüidade os conflitos de interesses. O juiz não pode sofrer qualquer espécie de violência, de ameaça ou de constrangimento material, moral ou psicológico. Ele necessita da independência para poder desempenhar plenamente as suas funções, decidindo com serenidade e imparcialidade, cumprindo verdadeira missão no interesse da sociedade. Assim, pois, segundo essa visão ideal do juiz, mais do que este, individualmente, é a sociedade quem precisa dessa independência, o que, em última análise, faz o próprio magistrado incluir-se entre os que devem zelar pela existência da magistratura independente45. Creio, como magistrado, nesses postulados, herdados de meu pai, brilhante advogado, Dr. Noraldino de Mello Castro, mas creio, também, em uma outra visão, como advogado militante que fui por muitos anos e como magistrado que sou, que cabe ao profissional do Direito, antes de tudo, pugnar pela independência e majestade da Justiça e pela preservação da instituição de um tribunal, como preleciona Piero Calamandrei: Quem entra no tribunal levando em sua pasta, em vez de boas e honestas razões, secretas ingerências, ocultas solicitações, suspeitas sobre a corruptibilidade dos juízes e esperanças sobre sua parcialidade, não se admire se perceber que se encontra, não no severo templo da justiça, mas numa alucinante barraca de feira em que espelhos suspensos em todas as paredes refletirão multiplicadas e deformadas, suas intrigas. Para encontrar a pureza no tribunal, é preciso entrar nele com a alma pura. Também aqui adverte o padre Cristóvão: omnia munda mundis46. São medidas como essas, cujos temas são trazidos para reflexão e discussão de aperfeiçoamento, que realmente implementarão um novo Poder Judiciário, mas não para afrontálo ou pretender vergá-lo submisso ao Poder Político, mas aquele Judiciário que todos nós buscamos: independente, que promova uma justiça célere, mas com segurança e com plena efetividade executória, para assegurar não apenas a pacificação social de uma sociedade civilizada, mas o Estado democrático de Direito, sem o qual o sistema perecerá. A FEDERALIZAÇÃO DOS RECURSOS FINANCEIROS Afirma-se, no art. 2o da Constituição Federal, que os Poderes da República são (...) harmônicos e independentes entre si, preceito que ainda não se consagrou, porque, na realidade, existe uma dependência financeira do Poder Judiciário em face do Poder Executivo no chamado “repasse financeiro”. O Sistema Tributário brasileiro atribui à União a arrecadação dos tributos que, posteriormente, são repassados aos Estados por meio do chamado “Fundo de Participação do Estados – FPE”, cujo procedimento operacional faz com que esses recursos sejam enviados ao Poder Executivo, que os repassa aos Poderes Legislativo e Judiciário, observadas as 47 quotas-partes de cada um, segundo disciplina o art. 168 da Constituição Federal, in verbis: Art. 168 – Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário e do Ministério Público, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9o. Em verdade, em muitos Estados Federados – desconhecendo-se conduta semelhante no âmbito federal – esse sistema operativo fragiliza os outros dois poderes, submetendo-os aos caprichos e vontades do Poder Executivo, cuja atribuição nesse caso é de ser um mero agente depositário, mas que, via de regra, a cada mês, pode utilizar-se dessa situação para pressionar e coagir politicamente os Tribunais de Justiça, interferindo, até mesmo, em sua função judicante. Na sistemática vigente, os presidentes de tribunais ficam reféns do Poder Executivo e, como é de conhecimento de todos, não são raros os casos já submetidos ao Supremo Tribunal Federal objetivando fazer com que o Poder Executivo do EstadoMembro cumpra o seu dever. Nesse momento, quando se fala em “reforma do Poder Judiciário” é preciso que os deputados e senadores – que são políticos, governadores e exgovernadores – conscientizem-se da magnitude desse processo legislativo, que não violem as limitações constitucionais disciplinadas no art. 60, § 4º, da Constituição Federal às quais estão subordinados e também percebam a necessidade de se “alforriar” o Poder Judiciário, libertando-o dessas pressões, para que se concretize a sua independência financeira institucionalmente decantada, mas ainda não criada efetivamente. O processo legislativo-constitucional para essa libertação consistiria na reforma do citado art. 168 da Constituição Federal para atribuir-se à Assembléia Legislativa de cada EstadoMembro a missão de informar à Secretaria da Fazenda Nacional o percentual que caberia a cada um na distribuição do FPE, e essa faria o repasse via ordem bancária naturalmente, resguardando-se ainda que cada Poder Executivo continue a repassar, até o dia 20 de cada mês, a quota-parte de cada um obtida na chamada arrecadação própria ou mediante excesso de arrecadação. Chegar-se-ia, por meio dessa proposta de reforma, a uma teórica 48 independência financeira, mas efetivamente mais concreta, extinguindose a via de pressão que ocorre sistematicamente, fonte de inúmeras ações perante o Supremo Tribunal Federal, resguardando-se a sua independência judicante para a segurança jurídica que dele se espera e onde as pressões devem ser feitas apenas na busca do direito, da doutrina e das pretensões recursais, certo de que (...) a segurança jurídica unicamente funcionará de maneira eficiente, onde a jurisdição se exerça por meio de uma magistratura imparcial, nos limites das instituições que consagrem a independência absoluta do Poder Judiciário, garantida por postulados objetivamente estabelecidos e religiosamente observados47. A única perda seria a do poder político, que creio não deva se constituir em vaidade e nem seja colocado acima do arcabouço do sistema democrático de Direito em que se deseja esteja situado o Brasil. NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 DANTE ALIGHIERI. Da Monarquia. Tradução e estudo introdutivo de João Penteado E. Stevenson. Rio de Janeiro: Brasil, 1967. art. 2. cap. V. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus contra os Pagãos. Petrópolis: Vozes, 1990. parte II, livro XIV, cap. XXVIII, p. 169. (Coleção Pensamento Humano). PLATÃO. A República. Comentários de Bernard Piettre. Prefácio de Pierre Aubenque. Tradução de Elza Moreira Marcelina. Revisão de Celestino Pires. 2. ed. Brasília: UnB, 1996. Livro VI (505- d) Livro VII. p. 51. nota 20. Ibidem, p. 40. Ibidem, p. 35. LLOYD, Dennis. A idéia de lei. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 85-86. KELSEN, Hans. A ilusão da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 424. Ibidem, p. 310. LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 433-434. (a nota 5 traz o ensinamento de ELRINGTON, 1798, que usa a afirmação acerca da lei e da liberdade para sustentar que os homens são livres se governados por leis justas, ainda que não tenham sido consultados quando de sua elaboração, e cita Platão para criticar (...) as incertas fantasias dos teóricos modernos). LOCKE, John. Ensaios. p. 111-113. LOCKE, Jonh. Dois tratados sobre o governo, São Paulo: Martins Fontes, 1998. § 226. p. 584. MONTESQUIEU. O Espírito das Leis.. Tradução de Fernando Henrique Cardoso e outros. 2. ed. Brasília: UnB, 1995. p. 3. Idem. Ibidem, p. 355. 15 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução e prefácios do Prof. L. Cabral de Moncada. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1997. p. 86. (GURWITCH. L’idée du droit social. 1931. nota 1. fls. 86. apud RADBRUCH, 1997. Tradução: a noção de Direito está essencialmente ligada à idéia de justiça. O Direito é sempre ensaio em vista de realizar a justiça). 16 Idem. nota n. 2. Justiça, e não o fim a atingir, é que constitui a idéia do direito. Conforme discurso do Bispo Conrad Groeber em 1940, contra a doutrina que sustentava ser direito tudo o que for útil ao povo. 17 Ibidem, p. 87. 18 Ibidem, p. 29. 19 LLOYD, op. cit., p. 19. 20 MACINTYRE, Alasdair. Historia de la Ética. 5. ed. Barcelona: Paidós, 1994. p. 58. Apud FARINA, Juan M. Justicia Ficción y realidad. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997. p. 144. 21 FARINA, 1997. p. 144. Dar a cada cual lo suyo implica dar a cada uno su derecho. Expresa CESARES, Tomás D. La Justicia y el Derecho. 3. ed. Buenos Aires: AbeledoPerrot, 1974. p. 15. Apud: FARINA, 1997: (...) tem razão Kelsen quando afirma que el suum cuique é uma tautologia, se se entender que expressa o ideal, essência ou formalidade próprias do verdadeiro Direito, posto que toda norma de convivência, ainda que mais inócua, é um suum cuique, é mostrar o lugar de cada um na coletividade (...) Trocando o suum cuique recupera todo seu sentido quando se depara no que é a definição daquilo que poderíamos chamar a alma de um bom direito, sem formular de uma virtude o correto modo da conduta humana. Tradução livre do original, em espanhol, pelo autor deste artigo. 22 FARINA, 1997. p. 144. Tradução livre do original, em espanhol, pelo autor deste artigo. 23 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Poder Judiciário, Crise, Acertos e Desacertos. Tradução de Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. 216 p. p. 23: (...) a crise política argentina é uma crise de autenticidade, quando não de insuficiência das instituições legisladoras, para fazer frente às condições sociais e econômicas que nos tempos da organização nacional não podiam ser previstas. (AFTALIÓN, Enrique R. La Constitución formal y los factores reales de poder. Apud MENDONZA, Efrain I. Quevedo Apud: ZAFFARONI, 1995. p. 23). 24 ZAFFARONI, op. cit., p. 27. 25 LIMA, Jarbas. XVI Congresso Brasileiro de Magistrados. Jornal do Magistrado, set./out. 1999. p. 5. 26 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 5. 27 FIGUEIREDO, Diogo de. Sistema Judiciário. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1996. p.14. 28 SALAZAR, Alcino. Poder Judiciário - bases para reorganização. Rio de Janeiro: Forense, 1975. Apud. VELLOSO, Carlos Mário da Silva. O Poder Judiciário na Constituição: uma proposta de reforma. In: VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Temas de Direito Público. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. 558 p. il. p. 37. R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 29 VIANA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1985. v. 2. p. 635. Apud: SALAZAR, 1975. Apud: VELLOSO, 1997. 30 Ibidem. p. 37. 31 CASTRO, Honildo Amaral de Mello. A Justiça e Judiciário. In: CASTRO, Honildo Amaral de Mello. Coletânea de Estudos Jurídicos. Temas Variados. Araras: Bestbook, 1988. 201 p. 32 DALLARI, op. cit., p. 1. 33 Ibidem, p. 5. 34 Ibidem, p. 7. 35 DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. 585 p. p. 364. 36 Idem. Cfr. WATANABE, Kazuo. Controle jurisdicional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. 192 p. passim. nota n. 50. 37 MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958-1962. 15 v. v. 1. p. 288. 38 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993. p. 652653. 39 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 141, ao defenderem que (...) o termo correto seria duplo grau de cognição e julgamento, pois temos pluralidade de instâncias e não de graus de jurisdição.. 40 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. 341 p. 41 CASTRO, Honildo Amaral de Mello. Nulidades. Princípios Constitucionais e Processuais. Revista de Doutrina e Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Amapá, n.15. p. 19. e Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 88, n. 761, p. 45-63, mar. 1999. 42 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 1990. p. 78. 43 DALLARI, op. cit., p. 44. 44 Ibidem, p. 45. 45 Ibidem, p. 46-47. 46 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Introdução de Paolo Barile. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 4; BACHOF, Otto. Jueces y Constitución. Tradução de Rodrigo Bercovitz RodríguezCano. Madrid: Civitas, 1985. p. 54; ZAFFARONI, op. cit., p. 38 nota a nota. 47 VILLEGAS, Hector B. Apud PRUDENTE, Antônio de Souza. Medida Provisória e Segurança Jurídica. Brasília: Senado Federal, n. 138, ano 35, abr./jun. 1998. the Law’s three bases: the federalisation of access to the Judiciary, the suppression of appeal proceedings and the federalisation of financial benefits. KEYWORDS – Civil Procedural Law; reform; sentencing proceedings; enforcement proceedings; settlement proceedings; judgement against; enforcement, settlement, unification; legal philosophy; Plato; Locke; Montesquieu; federalisation; appeal proceedings – suppression; appeal proceedings – containment. ABSTRACT This paper presents a series of procedural modifications geared towards the modernisation of Brazilian Law. It begins with a philosophical reflection on the concepts of Justice based upon Plato, and the Law, in the visions of Locke and Montesquieu. It then looks at the deficiencies in the Judiciary. It proposes that judicial service modernity should be based upon a tripod of celerity, security and enforceability. It proposes the improvement of R. CEJ, Brasília, n. 13, p. 31-49, jan./abr. 2001 Honildo Amaral de Mello Castro é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá e Membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional - IBDC. 49