CENTRO UNIVERSITÁRIO RITTER DOS REIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Eduardo Ramos O GÊNERO DISCURSIVO NA ESFERA MILITAR EXÉRCITO BRASILEIRO Porto Alegre 2013 Eduardo Ramos O GÊNERO DISCURSIVO NA ESFERA MILITAR EXÉRCITO BRASILEIRO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro Universitário Ritter dos Reis como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profa. Dra. Vera Lúcia Pires Porto Alegre 2013 Eduardo Ramos O GÊNERO DISCURSIVO NA ESFERA MILITAR EXÉRCITO BRASILEIRO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro Universitário Ritter dos Reis como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre BANCA EXAMINADORA ___________________________________________ Profa. Dra. Vera Lúcia Pires (orientadora) - Uniritter ___________________________________________ Profa. Dra. Sara Scotta Cabral - UFSM ___________________________________________ Profa. Dra. Neiva Maria Tebaldi - Uniritter Porto Alegre 2013 AGRADECIMENTOS Aos meus pais, Antônio Carlos da Silva Melo e Marina Natividade Gomes da Silva, por terem me dado todo o suporte e as condições necessárias, desde a minha infância, para chegar até aqui. Por acreditarem na minha capacidade, apostarem no meu potencial e sempre me estimularem na consecução de meus objetivos. À minha esposa querida, Natacha S. Florence Ramos, pelo apoio, estímulo e compreensão das horas furtadas do convívio familiar e por entender e respeitar os meus sonhos e ideais de vida: um profissional da área das Letras que acredita que pode mudar o destino deste país através da educação. À minha genial, companheira e amiga professora orientadora Dra. Vera Lúcia Pires pela paciência, orientação constante e incessante, pelo apoio e estímulo, pelo respeito às minhas limitações, pela presença em todos os momentos que precisei de suporte, até mesmo naqueles momentos em que nem esperava como na apresentação do meu pré-projeto de pesquisa, no qual foi imprescindível a sua força. À minha querida professora Dra. Sara Scotta Cabral, minha ex-coordenadora da Graduação em Letras na Universidade Luterana do Brasil – Campus Cachoeira do Sul, profissional que com o amor que externa à carreira das Letras e com a sua simplicidade e qualidade de trabalho, incentivou-me a prosseguir no autoaperfeiçoamento nessa área. Foi o exemplo e inspiração que me guiou desde o ano de 2007, quando ingressei no Curso de Letras. Agradeço de uma forma muito sincera ter aceitado o convite para fazer parte da banca que irá avaliar a minha dissertação. À professora Dra. Neiva Maria Tebaldi por ter aceitado o convite para integrar a banca que avaliará a qualidade de todo o meu trabalho e por todas as orientações e ensinamentos passados desde o transcurso do Mestrado em Letras no Centro Universitário Ritter dos Reis, como nas orientações emitidas, por ocasião da Qualificação, momento em que absorvi todos os seus comentários para melhorar a qualidade da minha pesquisa. Às professoras do Curso do Mestrado pelos ensinamentos nesta etapa de formação: Beatriz Fontana, Célia Caregnato, Leny da Silva Gomes, Noeli Reck Maggi, Rejane Pivetta de Oliveira e Regina Zilberman. Aos colegas pela convivência fraterna nos momentos difíceis e alegres. Agradeço a todos os professores que contribuíram para minha formação. A todos que, direta e indiretamente, contribuíram para a conclusão deste trabalho. RESUMO A presente dissertação versa sobre o estudo dos gêneros discursivos na esfera militar. O conceito de gênero discursivo está associado aos tipos de enunciados relativamente estáveis, caracterizados por um conteúdo temático, uma construção composicional e um estilo. Falamos sempre por meio de gêneros no interior de uma esfera de atividade. Assim como na esfera jurídica, na esfera religiosa, na jornalística, entre outros segmentos sociais, o Exército Brasileiro é uma instituição que possui gêneros discursivos com características próprias. Se na instituição militar usam-se documentos, aplicação do discurso, enunciados, linguagem, estrutura composicional com um estilo próprio, é porque está caracterizado, então, um gênero discursivo. O objetivo geral deste trabalho é esclarecer como se caracterizam os gêneros discursivos militares sob a ótica da Linguística. Os objetivos específicos são os desdobramentos das ações necessárias à realização do objetivo geral, que consiste em associar alguns conceitos básicos da Linguística com a sua função social ao conceito de discurso, bem como suas tipologias empregadas em documentos (gêneros discursivos) da instituição Exército Brasileiro. Desta forma, chega-se à conclusão de que a tipologia discursiva predominante nos gêneros militares é a autoritária, em que há a imposição de determinados procedimentos, linguagens e técnicas de instrução, não deixando margem a questionamentos, ponderações e duplicidade de ideias por parte dos discentes em questão. Palavras-chave: gêneros discursivos, linguagem, exército brasileiro ABSTRACT This dissertation deals with the study of genres in the military sphere. The concept of speech genre is associated with relatively stable types of utterances, characterized by a thematic content, a compositional construction and style. We always talk through genres within a sphere of activity. Just as in the legal sphere, in the religious sphere, in journalism, among other social segments, the Brazilian Army is an institution that has genres with their own characteristics. If the military institution they use documents, application of speech utterances, language, compositional structure with a unique style, is characterized because it is then a speech genre. The overall goal of this work is to clarify how to characterize genres within the military perspective of linguistics. The specific objectives are the ramifications of the actions necessary to achieve the overall objective, which is to explain the basic concepts and the social function of linguistics, discourse and its typologies and documents (genres) employees in the institution Brazilian Army. Thus, one comes to the conclusion that the predominant type in discursive genres military is authoritarian, in which there is the imposition of certain procedures, languages and techniques of instruction, leaving no room for questions, reflections and ideas of duplicity on the part of students in question. Key-words: genres, language, brazilian army LISTA DE ILUSTRAÇÕES QUADRO 1: Tipologias e formas .................................................................................................................................. 39 QUADRO 2: Documentos – Exército Brasileiro ........................................................................................................ 48 FIGURA 1: Noticiário do Exército (NE)...................................................................................................................... 49 FIGURA2: Informativo do Exército (Informex) ....................................................................................................... 49 FIGURA 3: Boletim do Exército .................................................................................................................................... 50 FIGURA 4: Ordem do Dia do Comandante do Exército ......................................................................................... 51 FIGURA 5: Sindicância ................................................................................................................................................... 52 FIGURA 6: Boletim Interno ........................................................................................................................................... 55 FIGURA 7: Histórico da Unidade ................................................................................................................................. 55 FIGURA 8:Manuais e Regulamentos ........................................................................................................................... 58 QUADRO 3: Verbos partitivos ...................................................................................................................................... 66 QUADRO 4: Verbos afetivos .......................................................................................................................................... 67 QUADRO 5: Verbos comunicativos.............................................................................................................................. 68 QUADRO 6: Verbos comparativos ............................................................................................................................... 68 QUADRO 7: Verbos operativos ..................................................................................................................................... 69 QUADRO 8: Verbos factivos .......................................................................................................................................... 69 QUADRO 9: Verbos efetivos-relacionais..................................................................................................................... 70 LISTA DE SIGLAS AD Análise de Discurso BI Boletim Interno Cedoc Centro de Documentação do Exército Coter Comando de operações terrestres CM Comando do Exército CMT Centro de Comunicação Social do Exército DFA Diretoria de Formação e Aperfeiçoamento DGP Departamento Geral do Pessoal Decex Departamento de Educação e Cultura do Exército EB Exército Brasileiro EME Estados Maior do Exército IG Instruções Gerais IR Instruções Reguladoras NE Noticiário do Exército OM Organização Militar RISG Regulamento Interno e dos Serviços Gerais RAE Regulamento de Administração do Exército SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................................................................12 2 2.1 2.2 2.3 2.4 2.5 2.6 2.7 CONCEITOS BÁSICOS E A FUNÇÃO SOCIAL DA LINGUÍSTICA .....................14 A QUESTÃO DO SIGNIFICADO E DO SENTIDO............................................ 17 A INTERAÇÃO VERBAL .................................................................................... 20 A IDEOLOGIA ...................................................................................................... 21 O ENUNCIADO .................................................................................................... 22 O DIALOGISMO. .................................................................................................. 25 O DISCURSO ALHEIO ........................................................................................ 26 A PERSUASÃO NO DISCURSO ......................................................................... 27 3 O DISCURSO E SUAS TIPOLOGIAS ...............................................................................30 4 O GÊNERO DISCURSIVO E OS SEUS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS .........40 4.1 O EXÉRCITO BRASILEIRO – DOCUMENTOS E SEUS GÊNEROS DISCURSIVOS ....................................................................................................................... 43 4.2 AS FORÇAS ARMADAS E O EXÉRCITO NO BRASIL ................................... 45 4.3 OS PILARES BÁSICOS E CARACTERÍSTICAS DO EXÉRCITO BRASILEIRO ........................................................................................................................... 46 4.4 A EXPRESSÃO DOS GÊNEROS DISCURSIVOS MILITARES CONTIDA NAS DIVERSAS DOCUMENTAÇÕES .......................................................................................... 47 4.5 GÊNEROS COMPARTILHADOS COM OUTRAS UNIDADES ....................... 56 5 O GÊNERO DISCURSIVO MANUAL E OS SEUS ELEMENTOS CONSTITUINTES ..........................................................................................................................................59 5.1 DESCRIÇÃO DO MANUAL TÉCNICO DO INSTRUTOR, O CONCEITO DE PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM E OS FATORES QUE INFLUENCIAM NA COMUNICAÇÃO....... ............................................................................................................. 59 5.2 PLANO DE SESSÃO: A ESTRUTURA COMPOSICIONAL DO PLANEJAMENTO E PREPARAÇÃO DA INSTRUÇÃO....... .............................................. 59 5.2.1 O tema no gênero discursivo Manual....... ............................................................... 62 5.2.2 O estilo no gênero discursivo Manual....... ............................................................... 63 5.2.2.1 Tipologias semânticas: o estilo característico do gênero discursivo Manual .................. 66 5.2.2.2 Os verbos usados no gênero discursivo Manual do Instrutor T21-250...... ..................... 70 6 ANÁLISE DO GÊNERO DISCURSIVO MANUAL E DE SEUS ELEMENTOS CONSTITUINTES ..........................................................................................................................................73 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................................................75 REFERÊNCIAS...............................................................................................................................................75 OBRAS CONSULTADAS.............................................................................................................................78 ANEXO A.. ........................................................................................................................................................79 12 INTRODUÇÃO “A introdução é o que não pede nada antes, mas exige algo depois” (Aristóteles) Esta dissertação trata do estudo do gênero discursivo na esfera militar. O conceito de gênero discursivo está associado aos tipos de enunciados relativamente estáveis, caracterizados por um conteúdo temático, uma construção composicional e um estilo. Falamos sempre por meio de gêneros no interior de uma esfera de atividade. Assim como na esfera jurídica, na esfera religiosa ou jornalística, entre outros segmentos sociais, o Exército Brasileiro é uma instituição que possui um discurso próprio, com diversas características que o diferenciam de outros discursos, ao mesmo tempo que lhe dão uma identidade peculiar – uma linguagem, uma construção composicional, um discurso pertinente a este segmento social. Para adentrar em tal questão de forma eficaz, faz-se necessário abordar as características da instituição militar Exército Brasileiro, com seus pilares básicos, documentações expedidas no seio de suas Organizações Militares e a apresentação de um organograma explicativo que traduz de forma simples e objetiva o trâmite dessa documentação na esfera militar. A justificativa deste trabalho decorre do fato do autor desta dissertação ser Oficial do Exército Brasileiro, no posto de Capitão, e ter, em 2002, ingressado no curso de Letras da Universidade Luterana do Brasil – Campus Canoas. A partir daí, foi despertada a curiosidade em unir as duas áreas profissionais, estudando em que ponto elas se interseccionam e se relacionam, produzindo um trabalho que, se não for inédito, pelo menos foi pouco explorado até o presente momento. Se na instituição militar usam-se documentos, aplicação do discurso, enunciados, linguagem, estrutura composicional com um estilo próprio, é porque está caracterizado, então, um gênero discursivo – assunto amplamente estudado ao longo do ano de 2010 no Mestrado em Letras do Centro Universitário Ritter dos Reis. O objetivo geral deste trabalho é esclarecer como se caracteriza o gênero discursivo militar sob a ótica da Linguística. 13 Os objetivos específicos são os desdobramentos das ações necessárias à realização do objetivo geral. Consistem em explicar os conceitos básicos e a função social da Linguística, o discurso e suas tipologias e os documentos (gêneros discursivos) empregados na instituição Exército Brasileiro. O referencial teórico condutor desta pesquisa é realizado com base em conceitos teóricos de Saussure, Bakhtin e o seu Círculo, caráter dialógico da linguagem, dialogismo, gêneros do discurso. A pesquisa é constituída de uma base teórica apoiada na bibliografia referente ao tema, e outra base empírica, na qual é analisado o corpus de um plano de sessão previsto como fonte de preparação e planejamento de uma instrução de natureza militar (ANEXO A). Servirá de apoio bibliográfico o Manual Técnico do Instrutor – T21-250 – e o Manual 22-5 de Ordem Unida (que também é uma das disciplinas mais importantes ministradas na caserna, exigindo um plano de sessão correspondente). A estrutura e a organização geral desta dissertação estão constituídas das seguintes divisões: introdução, na qual é feita a apresentação do tema, da justificativa, do problema da pesquisa, dos objetivos gerais e específicos, dos fundamentos teóricos, da metodologia e a estrutura da dissertação; no capítulo 2, faz-se referência aos conceitos básicos da Linguística, tais como: linguagem, significação, tema, signo linguístico, significante, significado, discurso língua, fala, persuasão, enunciado, ideologia, dialogismo entre outros termos; no capítulo 3 foi abordado o conceito de discurso e a sua tipologia, assunto que será de suma importância para atingir o objetivo proposto nesta dissertação; no capítulo 4 houve um detalhamento da instituição Exército Brasileiro, com suas características, pilares básicos, o discurso militar e suas documentações, gêneros compartilhados com outras comunidades discursivas entre outros tópicos. No capítulo 5 será abordada a metodologia da pesquisa, seguida das considerações finais e referências. Nas considerações finais será apresentada uma síntese de reconstrução de todos os assuntos tratados na pesquisa. 14 2 CONCEITOS BÁSICOS E A FUNÇÃO SOCIAL DA LINGUÍSTICA Este capítulo destina-se a apresentar pressupostos considerados básicos para o perfeito entendimento do que se propõe nesta dissertação. Entender o que é a Linguística, a sua função social, os conceitos de “Tema”, “Linguagem”, “Significação”, “Signo Linguístico”, “Significado”, “Significante”, “Discurso”, “Língua”, “Fala”, “Persuasão”, “Enunciado”, “Dialogismo” e “Ideologia”, é indispensável para podermos, com tranquilidade, discorrer acerca do tema a “Análise Social do Discurso” (objeto desta pesquisa) – assunto que engloba todas essas ideias supracitadas. Em um primeiro momento, será abordado o tema Linguística. O que vem a ser essa ciência? O que ela engloba? Qual seu objetivo e qual a sua maneira de interação com a sociedade? Todas as manifestações da linguagem humana constituem a matéria da Linguística, quer se trate de povos selvagens ou de nações civilizadas, de épocas arcaicas, clássicas ou de decadência, considerando-se em cada período, não só a linguagem correta e a “bela linguagem”, mas todas as formas de expressão. E como a linguagem escapa na maioria das vezes à observação, o linguista deverá ter em conta os textos escritos, pois somente eles lhe farão conhecer os idiomas passados ou distantes (SAUSSURE, 2008). A tarefa da Linguística era, naquela época, segundo o mesmo autor: a) fazer a descrição e a história de todas as línguas que puder abranger, isto é, fazer a história das famílias de línguas e reconstituir, na medida do possível, as línguasmães de cada família; b) procurar as forças que estão em jogo, de modo permanente e universal, em todas as línguas e deduzir as leis gerais às quais se possam referir todos os fenômenos peculiares da história; c) delimitar-se e definir-se a si própria. Para Saussure (2008, p.13), “a Linguística tem relações bastante estreitas com outras ciências, que tanto lhe tomam emprestados, como lhe fornecem dados. Os limites que a separam das outras ciências não aparecem sempre nitidamente”. Com relação à utilidade da Linguística, poucas pessoas têm ideias claras. É evidente, por exemplo, que as questões linguísticas interessam a todos – historiadores, filólogos, etc – 15 que tenham de manejar textos. Mais evidente ainda é a sua importância para a cultura geral: na vida dos indivíduos e das sociedades, a linguagem constitui o fator mais importante que qualquer outro. Seria inadmissível que seu estudo se tornasse exclusivo de alguns especialistas; de fato, toda a gente dela se ocupa pouco ou muito; mas – consequência paradoxal do interesse que suscita – não há domínio onde tenham germinado ideias tão absurdas, preconceitos, miragens, ficções. Do ponto de vista psicológico, esses erros não são desprezíveis; a tarefa do linguista, porém, é, antes de tudo, denunciá-los e dissipá-los tão completamente quanto possível (SAUSSURE, 2008). Estudaremos os conceitos de fala, signo e a relação entre eles. Segundo Saussure, a linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o outro. A linguagem é uma instituição atual e uma produção do passado. A língua é uma produção social da linguagem e um conjunto de falas necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Linguagem é igual à língua associada à fala. A língua traz consigo toda a experiência histórica acumulada por um povo durante sua existência. É a parte social da linguagem, isto é, exterior ao indivíduo – um só indivíduo não é capaz de las-la. Conforme citado no início deste trabalho, é um dos objetivos deste capítulo mostrar o vínculo existente entre o “social” e a linguagem, bem como a interação do pensamento humano com o estudo da linguagem (com seu caráter social – o seu uso prático). Como o signo linguístico, para Saussure, é arbitrário, pareceria que a língua, assim definida, é um sistema livre, organizável à vontade, dependendo unicamente de um princípio racional. Seu caráter social, considerado em si mesmo, não se opõe precisamente a esse ponto de vista. Sem dúvida, a psicologia coletiva não opera sobre uma matéria puramente lógica; cumpriria levar em conta tudo quanto faz ceder a razão nas concepções práticas de indivíduo para indivíduo. E, todavia, não é isso que nos impede de ver a língua como uma simples convenção modificável, conforme o arbítrio dos interessados é a ação do tempo que se combina com a da força social; fora do tempo, a realidade linguística não é completa e nenhuma conclusão se faz possível. Se tomássemos a língua no tempo, sem a massa falante – suponha-se o indivíduo isolado que vivesse durante vários séculos – não se registraria talvez nenhuma alteração; o tempo não agiria sobre ela. Inversamente, se considerássemos a massa falante sem o tempo, não se veria o efeito das forças sociais agindo sobre a língua. Para estar na realidade, é 16 necessário, então, acrescentar ao nosso primeiro esquema um signo que indique a marcha do tempo. A língua já não é agora livre, porque o tempo permitirá às forças sociais que atuam sobre ela desenvolver seus efeitos, e chega-se assim ao princípio de continuidade, que anula a liberdade. A continuidade, porém, implica necessariamente a alteração, o deslocamento mais ou menos considerável das relações. Ao falarmos em signo, merece destaque a existência de uma nítida resistência da inércia coletiva a toda renovação linguística, pois a língua – e esta consideração sobreleva todas as demais – é, a cada momento, tarefa de toda a gente; difundida por uma massa e manejada por ela, é algo de que todos os indivíduos se servem o dia inteiro. Nesse particular, não se pode estabelecer comparação entre ela e as outras instituições. As prescrições de um código, os ritos de uma religião, os sinais marítimos, etc, não ocupam mais que certo número de indivíduos por vez e durante tempo limitado; da língua, ao contrário, cada qual participa a todo instante e é por isso que ela sofre sem cessar a influência de todos. Esse fato capital basta para demonstrar a impossibilidade de uma revolução. A língua, de todas as instituições sociais, é a que oferece menos oportunidades às iniciativas. A língua forma um todo com a vida da massa social e esta, sendo naturalmente inerte, aparece antes de tudo como um fator de conservação (SAUSSURE, 2008). Não basta, todavia, dizer que a língua é um produto de forças sociais para que se veja claramente que não é livre; lembrando que constitui sempre herança de uma época precedente, deve-se acrescentar que essas forças sociais atuam em função do tempo. Se a língua tem um caráter de fixidez, não é somente porque está ligada ao peso da coletividade, mas também porque está situada no tempo. Ambos os fatos são inseparáveis. A todo instante, a solidariedade com o passado põe em xeque a liberdade de escolher (SAUSSURE, 2008). Justamente por ser arbitrário, o signo não conhece outra lei senão a da tradição, e é por basear-se na tradição que pode ser arbitrário. Outra forma de ver o signo linguístico é apresentada por M. Bakhtin (2006). Para esse autor, o signo linguístico, por excelência, é um elemento da natureza ideológica. “Sem signos não existe ideologia”, diz o autor. Desta forma, é possível dizer que o signo é carregado de significações ideológicas. Nenhum signo isolado possui valor em si mesmo. Todo signo deve ser contextualizado para ganhar significação. Se um elemento sígnico não contiver em si uma carga de pura ideologia emanada pelo contexto a que pertença, não poderá ser considerado um 17 signo perfeito. O homem vive cercado de signos, cria signos para representar tudo o que quer, interpreta os signos naturais para entender os fenômenos da natureza e, acima de tudo, convenciona-os com a finalidade de perpetuar a consciência humana. Há até mesmo signos extranaturais para a leitura, indagação e tentativa de compreensão sobrenatural. Mas é bom ressaltar que a consciência só pode, segundo Bakhtin, ser entendida como tal quando se enche de conteúdo ideológico e interage com outras consciências. Isto quer dizer que nenhum signo tem valor absoluto fora da interação social, ou seja, à margem do contexto, seja ele o contexto do próprio signo ou o contexto dos interlocutores que o utilizam como elemento de implementação, reflexão e transformação do ideológico, analisando segundo limites de espaço e tempo. Bakhtin (2006, p.33) defende: “Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra de realidade, mas também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer”. Conforme o exposto é possível concluir que o signo tem uma realidade fortemente objetiva e é passível de um estudo, também, objetivo e metodologicamente unitário. 2.1 A QUESTÃO DO SIGNIFICADO E DO SENTIDO A problemática entre os vocábulos “signo” e “ sentido” ocorreu até o momento em que os ensaios de Bakhtin foram produzidos. É fato que essa distinção é um problema que vai muito além dos limites da Linguística, é um problema da Metalinguística. (BAKHTIN, 2006). Essa problemática entre sentido e significado é parte de um estudo relacionado com as relações dialógicas, isto é, a comunicação estabelecida entre os seres, nos atos de palavra, nos mais diversos tipos e gêneros discursivos e nas formas de linguagem. Outra ótica pela qual podemos abordar essa discussão (sentido e signo) está ligada ao paralelismo existente entre o sinal (sinalidade) e signo (signicidade) e, sobretudo, entre significação e tema. Sabe-se que o tema para se estabelecer, precisa da significação das 18 palavras. O tema é o que faz com que o signo verbal seja um signo. O tema é dado por fatores verbais e não verbais e, indiscutivelmente, é inseparável do ato da enunciação. Ele é o sentido completo, unitário do signo verbal, não podendo ser decomposto e tem um caráter valorativo, requerendo uma compreensão ativa, uma relação de interação dialógica. Cada ato de enunciação tem um tema. Diferentemente do tema, na significação podemos fragmentar elementos significativos, aparecendo intimamente ligada ao código linguístico. A significação está para o signo linguístico assim como o tema está para o signo ideológico. O signo ainda pode ser caracterizado pela sua pluricidade, por sua indeterminação semântica, por sua fluidez expressiva e sua adaptação a situações sempre e diferentes (BAKHTIN, 2006). É necessário, como ensina Bakhtin, lembrar que o signo nasce e se desenvolve, considerando os fluxos sociais, culturais, históricos. O signo só pode ser pensado socialmente, contextualmente, deste modo, cria-se uma relação estreita entre a formação da consciência dos sujeitos e o universo dos signos. Só podemos pensar a formação da consciência a partir desse prisma derivado do embate entre os signos. A respeito dos termos linguagem e fala, esses dois tópicos nos remetem a uma ideia de “interação verbal”, assunto minuciosamente estudado por Bakhtin em sua obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, e que muito tem a ver com o objeto do estudo aqui proposto. Afinal, pensamento, fala, linguagem, signo e psicologia são assuntos que em um determinado ponto comum se cruzam, no que diz respeito ao diálogo e a comunicação. É importante explicitar a crítica feita a Saussure, por Bakhtin, face ao conceito de língua. A língua, para Bakhtin (2006), é um fato social, cuja existência se funda nas necessidades de comunicação, assim como para Saussure. No entanto, enquanto Saussure (2008) abandona a fala e faz da língua um objeto abstrato ideal, Bakhtin valoriza justamente a fala, a enunciação. A fala está indissoluvelmente ligada às condições de comunicação, que, por sua vez estão sempre ligadas às estruturas sociais. “[...] a palavra é a arena onde se confrontam os valores sociais contraditórios [...]” (BAKHTIN, 2006, p. 14). Todo signo é ideológico, a ideologia é um reflexo das estruturas sociais, assim toda modificação da ideologia encadeia uma modificação da língua. De acordo com Faraco (2003) 19 a palavra ideologia remete a um universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética e a política. Bakhtin (2006) define a língua como expressão das relações e lutas sociais, veiculando e sofrendo o efeito dessa luta, servindo, ao mesmo tempo, de instrumento e material. Ele critica a filosofia idealista e a visão psicologista da cultura por situarem a ideologia na consciência, pois para ele “a consciência só se torna consciência quando se impregna conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo da interação verbal (BAKTHIN, 2006, p. 34). A consciência individual é um fato socioideológico. Aqui abordaremos mais um dos tópicos criticados por Bakhtin – o objetivismo abstrato de Saussure. A lógica da história da língua é, portanto, a lógica dos erros individuais ou dos desvios. A lógica da língua não é absolutamente a da repetição de formas identificadas a uma norma, mas sim uma renovação constante, a individualização das formas em enunciações estilisticamente únicas e não reiteráveis. A vertente objetivista, que tem Saussure como um dos principais representantes, já vê a língua como um sistema estável, imutável, submetido a uma norma. Assim sendo, conclui-se que entre a palavra e seu sentido não existe vínculo natural e compreensível para a consciência, nem vínculo artístico. Ao fazer a crítica ao objetivismo abstrato, Bakhtin (2006, p. 92) diz que “o sistema linguístico é o produto de uma reflexão sobre a língua, reflexão que não procede da consciência do locutor nativo e que não serve aos propósitos imediatos da comunicação”. Consoante Bakhtin (2006, p.95), na realidade, não são palavras que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. Para o autor, “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. Assim, não se pode estudar a língua separada de seu conteúdo ideológico. O sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto. De fato, há tantas significações possíveis quantos contextos possíveis”. A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal realizada através da enunciação ou 20 das enunciações. Para Bakhtin, a interação verbal constitui, assim, a realidade fundamental da língua. 2.2 A INTERAÇÃO VERBAL Para iniciar o estudo acerca do tema “interação verbal”, é importante definir esta expressão, conhecer sua real aplicação no estudo da Linguística. Conforme Bakhtin (2006) foi verificado que a essência da língua não está relacionada a um abstrato código de formas linguísticas, muito menos ao ato físico simplesmente da enunciação. A interação verbal está relacionada à ideia do fenômeno social, seja a comunicação em voz alta, entre pessoas face a face, ou a qualquer outro tipo de comunicação verbal. Pode-se citar aqui um exemplo importante de um elemento de comunicação verbal: o livro – representa o ato de fala de maneira escrita. Qualquer ato enunciativo constitui uma parte de uma corrente de comunicação verbal contínua, podendo estar ligado a fatos da vida cotidiana, à literatura, à política, à economia entre outros. Obviamente, essa comunicação verbal contínua representa um momento na constante evolução de um determinado grupo social. Segundo Bakhtin (2006), a língua não se transmite, ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo – assim sendo, as pessoas não recebem a língua pronta para ser usada. Entender essa correlação é um tanto quanto curioso: sabe-se que a enunciação é o resultado da interação de mais um indivíduo, sendo estes socialmente organizados e que qualquer que seja o aspecto da expressão em questão, este estará determinado pela situação social mais imediata. Entretanto, o mundo interior e a reflexão de cada pessoa tem um “auditório social” próprio, contendo no seu interior as suas motivações, opiniões, conceitos e valores entre outros. Desta forma fica mais fácil entender a exposição de Bakhtin acerca da atividade mental, quando ele aborda que a expressão é que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação, e não ao contrário. A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente, a partir de seu próprio interior, a estrutura da enunciação. Essa situação está 21 relacionada ao grau de consciência de cada um inserido no meio, uma vez que a enunciação é a expressão de realidade, do contexto social. Como percebemos, Bakhtin valoriza o meio social em quase todas as suas afirmações. Segundo ele, para observar o fenômeno da linguagem, é necessário ambientar os sujeitos no meio social. A origem primeira dos nossos posicionamentos vem de fora para dentro. Em suma – a enunciação é de natureza social (referindo-se ao conteúdo da fala e não ao ato físico). 2.3 A IDEOLOGIA É de suma relevância apresentar, entre tantos outros conceitos trabalhados nesta dissertação, o tema “Ideologia”, tão defendido por Bakhtin (2006), e que se encontra presente de forma significativa em diversos estudos. Por ideologia, entendemos o conjunto dos reflexos de um pensamento e das interpretações da realidade social e natural que têm lugar no cérebro do homem, e se expressa por meio de palavras ou outras formas sígnicas. Sob o olhar da teoria marxista, a ideologia era abordada como forma mecanicista – estabelecia-se um vínculo direto entre fatos nas estruturas sociais econômicas e suas consequências nas superestruturas ideológicas (ideologia vista como “falsa consciência”, a qual impede a percepção da realidade). Por muito tempo, muitos estudiosos marxistas assumiram a ideologia como um fenômeno da consciência subjetiva – em suma, pensa-se e age-se fruto do social. Realmente, a ideia da ideologia nos remete à ideia de coletividade, aquilo que se abstrai do todo, e o conjunto de signos de um determinado grupo social forma o que Bakhtin chama de universo dos signos. Bakhtin discute ideologia (aborda a construção dos signos) e a questão da identidade. Para ele, a ideologia oficial anda lado a lado com a ideologia do cotidiano. A ideologia do cotidiano é tida como aquela que brota e é constituída nos encontros casuais e fortuitos. Com relação às mudanças sociais, Bakhtin afirma que elas repercutem diretamente no desenvolvimento da língua – os acentos apreciativos, as entonações. Em suma, o meio social envolve o indivíduo como um todo – afirma-se, assim, que o sujeito é o produto das forças sociais. Observa-se que a ideologia do cotidiano, fruto das interações sociais, vai pouco a 22 pouco sendo incorporada às instituições ideológicas, entre elas: religião, ciência, imprensa e literatura. Segundo Bakhtin (2006), a ideologia do cotidiano, que nasce das interações sociais sem padrão fixo, infiltra-se, progressivamente, nas instituições ideológicas (imprensa, literatura, ciência, leis, religião), renovando-as ao mesmo tempo que é renovada por elas. O meio social engloba, então, totalmente o indivíduo. O sujeito é uma função das forças sociais. O eu individualizado e biográfico encontra-se desconstituído pela função do outro social. Pode-se, desta forma, dizer que a ideologia, sob a ótica bakhtiniana, é caracterizada como a expressão, organização e a regulação das relações histórico-materiais dos homens, em que a linguagem constitui o lugar mais claro e completo da materialização do fenômeno ideológico. Ainda Bakhtin (2006) e seu Círculo propõem discutir ideologia no conjunto de outras discussões filosóficas, como a questão da constituição dos signos e a questão da subjetividade. Na percepção bakhtiniana, a ideologia oficial (dominante, relativamente estável) deve ser vista em relação dialética com a ideologia de cotidiano (relativamente instável); e ambas formando um contexto ideológico único. Mudanças sociais repercutem imediatamente na língua; os sujeitos interagentes inscrevem nas palavras, nos acentos apreciativos, nas entonações, na escala dos índices de valores, nos comportamentos éticosociais, as mudanças sociais. O signo verbal não pode ter um único sentido, mas possui acentos ideológicos que seguem tendências diferentes. 2.4 O ENUNCIADO Falaremos agora da unidade de comunicação verbal imprescindível para a consecução dos nossos objetivos aqui propostos – o enunciado. A fala só existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de um indivíduo: do sujeito de um discurso-fala. O discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dele. Faremos, aqui, a ligação entre os conceitos de “oração” e “enunciado”. A oração representa um pensamento relativamente acabado, diretamente relacionado com outros pensamentos do mesmo locutor, dentro do todo do enunciado. Já a enunciação, de 23 acordo com Bakhtin (2006)“é de natureza social”. O enunciado é de natureza social, ele é a expressão do contexto social, do meio, da realidade. Reveste-se do ato concreto da fala. A oração, como unidade da língua, é de natureza gramatical e tem fronteiras, um acabamento, uma unidade que se prende à gramática. As pessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras ou combinações de palavras, trocam enunciados constituídos com a ajuda de unidades da língua. Tomando como premissa essa questão, chega-se à conclusão que a obra busca exercer uma influência didática sobre o leitor, convencê-lo, suscitar sua apreciação crítica, influir sobre êmulos e continuadores, etc (BAKHTIN, 2006). A alternância dos sujeitos falantes que compõem o contexto do enunciado, transformando-o numa massa compacta rigorosamente circunscrita em relação aos outros enunciados vinculados a ele, constitui a primeira particularidade do enunciado: seu acabamento. O acabamento do enunciado é determinado por três fatores: 1) o tratamento exaustivo do objeto do sentido; 2) o intuito, o querer dizer do locutor; 3) as formas típicas de estruturação do gênero do acabamento – os gêneros do discurso. E esses gêneros do discurso nos são dados quase como nos é dada a língua materna, que dominamos com facilidade antes mesmo que lhes estudemos a gramática. Os gêneros do discurso são, em comparação com as formas da língua, muito mais fáceis de combinar, mais ágeis, porém, para o indivíduo falante, não deixam de ter um valor normativo: eles lhe são dados, não é ele que os cria” (BAKHTIN, 2006, p.304). A ideia que temos da forma do nosso enunciado, isto é, de um gênero preciso do discurso, dirige-nos em nosso processo discursivo. O intuito de nosso enunciado, em seu todo, pode não necessitar, para sua realização, senão de um enunciado, mas pode também necessitar de um grande número deles, e o gênero escolhido dita-nos o seu tipo com as suas articulações composicionais. A relação valorativa (do locutor) com o objeto do discurso (seja qual for esse objeto) também determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado. O estilo do enunciado se define, acima de tudo, por seus aspectos expressivos. A oração e a palavra, enquanto unidades de análise da língua, não têm entonação expressiva. A entonação expressiva pertence ao enunciado. Repetimos: apenas o contato entre 24 a significação linguística e a realidade concreta, apenas o contato entre a língua e a realidade – que se dá no mundo – provoca o lampejo da expressividade. [...] a palavra existe para o locutor sob três aspectos: como palavra neutra da língua e que não pertence a ninguém; como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois, na medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou da minha expressividade (BAKHTIN, 2006, p.313). Bakhtin diz que levando em consideração as condições concretas da comunicação verbal, descobriremos as palavras do outro ocultas ou semiocultas e com graus diferentes de alteridade. Dir-se-ia que um enunciado é sulcado pela ressonância longínqua e quase inaudível da alternância dos sujeitos falantes e pelos matizes dialógicos, pelas fronteiras extremamente tênues entre os enunciados e totalmente permeáveis à expressividade do autor. O objeto do discurso de um locutor, seja qual for, não é um objeto do discurso pela primeira vez enunciado, e este locutor não é o primeiro a falar dele. O objeto [...] já foi falado, controvertido, esclarecido e julgado de diversas maneiras, é o lugar onde se cruzam, se encontram e se separam diferentes pontos de vista, visões de mundo, tendências. Um locutor não é um Adão bíblico, perante objetos virgens, ainda não designados, os quais é o primeiro a nomear (BAKHTIN, 2006, p. 319). Ter um destinatário dirigir-se a alguém, é uma particularidade constitutiva do enunciado, sem a qual não há, e não poderia haver enunciado. Em consonância com Machado (2001, p. 226), “o posicionamento determina a enunciação, e é relativizada por ele, porque os aspectos em jogo no campo de visão nunca coincidem”. Pela visão de Bakhtin, a textualidade se define pelo enunciado e pelos gêneros discursivos que o constituem. Assim, a noção de textualidade, que vemos esboçada na teoria bakhtiniana do enunciado, não se desvincula da noção de gêneros discursivos, pelo contrário, se os enunciados são o elo na cadeia de comunicação verbal, os gêneros certamente são as correias que mobilizam o fluxo das relações dialógicas (Machado, 2001, p. 238). O enunciado representa a unidade concreta do texto; uma unidade resultante das combinações dos gêneros discursivos – formas específicas de usos das variedades virtuais de uma língua. Os enunciados se definem pelos gêneros discursivos em uso na língua, nas mais 25 variadas esferas da comunicação social distintas por Bakhtin (2006), em dois conjuntos: os gêneros primários e os gêneros secundários. Os gêneros primários correspondem a um espectro diversificado da atividade linguística humana relacionada com os discursos da oralidade em seus mais variados níveis (do diálogo cotidiano ao discurso filosófico ou sociopolítico). Os gêneros secundários (da literatura, da ciência, da filosofia, da política), embora elaborados pela comunicação cultural mais complexa, principalmente escrita, correspondem a uma interface dos gêneros primários. Após essa explanação sobre o enunciado, será conceituado, a seguir, o dialogismo. 2.5 O DIALOGISMO Dialogismo segundo Bakhtin (2010) é o processo de interação entre textos, tanto na escrita como na leitura, o texto não é visto isoladamente, mas sim correlacionado com outros discursos similares e/ou próximos. O dialogismo se dá a partir da noção de recepção ou compreensão de uma enunciação, o qual constitui um território comum entre o falante e o ouvinte. Pode-se dizer que os interlocutores ao colocarem a linguagem em relação um frente ao outro produzem um movimento dialógico. A importância do estudo do dialogismo para Bakhtin assenta-se no fato de que ele afirma que toda palavra dialoga com outras palavras e, uma vez que ele dê um papel centralizador à linguagem, pode-se definir que é ela que constrói o mundo e suas relações de discurso. São levados em consideração nesse processo alguns fatores como, por exemplo, entonação de voz. Do mesmo modo, os enunciados são descritos como as unidades reais de comunicação, pois diferentemente das unidades da língua como os sons, as palavras e as orações, o enunciado é único e, portanto, depende exclusivamente do produtor do discurso. Segundo Brait (1997), quanto ao dialogismo, ele diz respeito ao permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. É nesse sentido que podemos interpretar o dialogismo como o elemento que instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem. 26 Por outro lado, o dialogismo diz respeito às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, que, por sua vez, instauram-se e são instaurados por esses discursos. E aí, dialógico e dialético aproximam-se, ainda que não possam ser confundidos, uma vez que Bakhtin vai falar do eu que se realiza no nós, insistindo não na síntese, mas no caráter polifônico dessa relação exibida pela linguagem (BRAIT, 1997). Ainda segundo a mesma autora, as formas de representação e de transmissão do discurso de outrem, parte integrante, constitutiva, de qualquer discurso, quer essa heterogeneidade seja marcada, mostrada ou não, bem como a natureza social e não individual das variações estilísticas, configuram em “Marxismo e Filosofia da Linguagem” um momento de formalização da possibilidade de estudar o discurso, isto é, não enquanto fala individual, mas enquanto instância significativa e entrelaçamento de discursos que, veiculados socialmente, realizam-se nas interações entre sujeitos. Sob essa perspectiva, a natureza do fenômeno linguístico passa a ser enfrentada em sua dimensão histórica, a partir de questões específicas de interação, da compreensão e da significação, trabalhadas discursivamente. 2.6 O DISCURSO ALHEIO Com relação ao discurso, seja ele reproduzido, ou citado em suas diferentes formas, esse não representa somente um tipo especial de discurso, mas também está constantemente presente no sentido de que todo discurso é um discurso reproduzido, que recorre ao discurso alheio. Ponzio (2008) menciona que falamos sempre através da palavra dos outros, seja por meio de uma simples imitação, como uma pura citação, seja em uma tradução literal ou, ainda, seja através de diferentes formas de transposição, que comportam diferentes níveis de distanciamento da palavra alheia: a palavra entre aspas, o comentário, a crítica, o repúdio, etc. Falar, tanto em sua forma escrita como na oral é empregar peças que se obtêm, desmontando discursos alheiros. Essas peças não pertencem à língua como sistema abstrato, mas a discursos concretos, ligados a contextos situacionais e linguísticos concretos. São materiais já manipulados, e, como tais, no plano semântico não são somente semantemas, mas também ideologemas, não têm só um significado geral, mas também um sentido ideológico 27 preciso. Reutilizando nesse sentido uma metáfora usada por Lévi-Strauss ao analisar o mito e o chamado “pensamento selvagem”, podemos dizer que necessariamente todo discurso é uma espécie de bricolagem (PONZIO, 2008). Ainda de acordo com o mesmo autor, todas as vezes que se produz um discurso produz-se, portanto, duas perspectivas: uma “temática”, de “conteúdo”, “referencial”, e outra formal, gramatical, estilística. As duas pressupõem uma abertura à palavra alheia: a determinação, a eleição de um tema e a identificação de um referente se introduzem num contexto comunicativo, numa direção do discurso já constituído. Cabe ressaltar que a importância do discurso alheio está ligada à presença do outro no discurso, isto é, o uso do discurso relatado como veiculação do discurso de outrem dentro do discurso enunciador, conclui-se daí, que o discurso na íntegra não é puramente original. Esse tópico foi abordado neste momento, em face da relevância do instrumento discurso na esfera militar, objeto desta dissertação. 2.7 A PERSUASÃO NO DISCURSO Finalmente, abordaremos um conceito extremamente importante tanto do ponto de vista geral, pela sua onipresença em todos os textos literários enunciados e tipos de discurso em geral, como do ponto de vista específico deste trabalho – a persuasão. Persuasão é um conceito que estará presente no corpus desta dissertação, visto a sua importância nos mais diversos tipos de discurso – objeto de estudo e de análise desta pesquisa. Nesse sentido, cabe a seguinte citação: “Mas devemos defender-nos de toda palavra, toda linguagem que nos desfigure o mundo, que nos separe das criaturas humanas, que nos afaste das raízes da vida” (VERÍSSIMO apud CITELLI, 2007, p.3). De acordo com Citelli (2007), a revista americana Newsweek se fazia anunciar, em cartazes publicitários afixados em alguns pontos-de-vendas, como aquela que não persuadia, mas informava. Afora querer convencer-nos acerca do conhecido mito da neutralidade jornalística, a revista parecia desejosa de exorcizar-se de um demônio que vincula à persuasão a alguns qualificativos como fraude, engodo, mentira. Deixar claro, nesse caso, uma atitude antipersuasiva tem por objetivo fixar uma imagem de respeitabilidade/credibilidade junto aos leitores. Supondo-se que a revista espelhasse a mais completa lisura, o mais profundo 28 aterramento aos princípios de uma informação não contaminada, pela presença de interesses vários, ainda assim estaria ela isenta da persuasão? A resposta é negativa. Afinal, o próprio slogan da revista, aquela que não persuade, já nos remete à ideia de que estamos diante de um veículo marcado pela correção e honestidade, diferente de outros, e no qual o leitor pode confiar plenamente. De certo modo, o ponto de vista do receptor/destinatário é dirigido por um emissor/enunciador que, mais ou menos oculto e falando quase impessoalmente, constrói sob a sutil forma da negação uma afirmação cujo propósito é o de persuadir alguém acerca da verdade de outrem. Isso nos revela a existência de graus de persuasão: alguns mais ou menos visíveis, outros mais ou menos mascarados. Ainda, segundo o mesmo autor, generalizando um pouco a questão, é possível afirmar que o elemento persuasivo está colado ao discurso como a pele ao corpo. É muito difícil rastrearmos organizações discursivas que escapem à persuasão; talvez a arte, algumas manifestações literárias, jogos verbais, um ou outro texto marcado pelo elemento lúdico. Para Citelli (2007), persuadir é, sobretudo, a busca de adesão a uma tese, perspectiva, entendimento, conceito, etc, evidenciado a partir de um ponto de vista que deseja convencer alguém ou um auditório sobre a validade do que se enuncia. Quem persuade leva o outro a aceitar determinada ideia, valor, preceito. Para verificar como ocorre a construção verbal do discurso persuasivo, é necessário reconhecer a organização e a natureza formadora dos signos linguísticos. Afinal, é da interrelação dos signos que se produz o enunciado voltado à montagem das estratégias discursivas do convencimento. Assim sendo, vê-se que a linguagem não é ingênua, e os recentes modos de dizer podem estar escondendo novas formas de organizar a sociedade. As relações entre signo, ideologia e construção do discurso persuasivo são, portanto, mais próximas do que imaginamos. Vale dizer, desde a escolha das palavras (como pode ocorrer, por exemplo, com certas explorações semânticas do eufemismo) até a organização das frases, passando pela escolha e disposição dos raciocínios e dos temas ao longo dos textos, percorremos um caminho de inúmeras possibilidades para se compor a ordem persuasiva e de convencimento dos discursos. Faz-se imperioso destacar que o discurso persuasivo tem como função, entre outras, provocar reações emocionais no receptor: o enunciador/emissor apela para recursos afetivos, visando conquistar a adesão do seu público. 29 Uma última observação é válida acerca desse assunto. É possível a existência de um discurso não-persuasivo? Todos os discursos visam a persuadir acerca de alguma coisa? É bom lembrar que persuadir não é sinônimo imediato de coerção ou mentira. Pode ser apenas a representação do desejo de se prescrever a adoção de alguns comportamentos, cujos resultados finais apresentem saldos socialmente positivos. Por exemplo, uma campanha de vacinação infantil. Nesse caso, conquanto exista através da propaganda institucional uma preocupação persuasiva, os objetivos últimos encaminham para a formação de atitudes que poderão resultar em melhoria nas condições de saúde das crianças. Claro que nos referimos a uma situação extrema e não muito representativa dos fins propostos por grande parte dos discursos persuasivos (CITELLI, 2007). Ainda segundo Citelli (2007), para existir persuasão é necessário que certas condições se façam presentes: a mais óbvia é a da livre circulação de ideias. Em uma ditadura, em um regime que censura, fica um pouco estranho falar em persuasão, visto que inexistem ideias em choque. Em um texto militar (objeto de estudo desta dissertação), a persuasão também se faz necessária, afinal, dentro da Instituição Exército Brasileiro, em que ordens são emanadas e recebidas a todo o momento, faz-se imperioso, para uma perfeita execução das ordens, para um perfeito entendimento das regras da Instituição e para a manutenção da Hierarquia e Disciplina (pilares básicos dessa Força Armada), convencer tanto o emissor como o destinatário das ordens a serem transmitidas para um perfeito cumprimento das missões impostas. É importante acreditar no que se prega e no que se faz acreditar e fazer-se acreditar. Encerrando este capítulo, acreditamos ter conseguido, através de um resumido panorama de definição de vocábulos, inter-relacionar essas ideias, para que, ao longo do trabalho, esses termos linguísticos considerados como embasadores, possam servir de norte para alcançarmos os objetivos propostos para a dissertação. Com esses conceitos bem fundamentados e entendidos, será possível galgarmos explicações e conclusões sem que haja qualquer tipo de restrição, por desconhecimento ou não entendimento de termos ou ideias do campo da Linguística. 30 3 O DISCURSO E SUAS TIPOLOGIAS No presente capítulo estudaremos o sentido do termo “discurso”, bem como a sua tipologia, fazendo uma associação à linguagem – assunto de primordial importância em nosso trabalho. Do latim discursu(m), diz-se a ação de correr por uma ou para várias partes. Segundo Moisés (2001) o vocábulo “discurso” ostenta, segundo o contexto em que se inscreve, polivalência de sentido. No plano da Oratória, designa a elocução pública que comove e persuade. Pode ainda assumir a denotação de “tratado”, “dissertação”, ou equivalentes, como, por exemplo, o Discurso do Método (1637), de Descartes, o Discurso acerca do Estilo (1753), de Buffon, o Discurso acerca da Desigualdade dos Homens (1755), de Rousseau. Ainda, segundo o mesmo autor, na poética francesa, o discurso (discours) constitui um poema didático, em versos alexandrinos rimados dois a dois (aa, bb, cc, etc.). Finalmente, além de corresponder ao “diálogo”, ou seja, a transcrição das trocas verbais entre duas ou mais personagens ou pessoas, o termo “discurso” também percorre a área dos estudos filosóficos, no sentido de “operação intelectual que se efetua por uma sequência de operações elementares parciais sucessivas”, ou “expressão e desenvolvimento do pensamento por uma série de vocabulários ou proposições em cadeia” (LALANDE, 1951). O adjetivo “discursivo”, oposto a “intuitivo” e vinculado à ideia de raciocínio, alude à operação de pensamento que envolve operações intermediárias encadeadas. De acordo com Moisés (2001), conforme os preceitos retóricos clássicos, oriundos principalmente de Aristóteles, Quintiliano e Horácio, o discurso oratório devia apresentar determinada estrutura. Discrepantes, contudo, eram as opiniões acerca das partes que a integrariam, admitindo uma escala de variação entre duas e sete. No geral, predominava a disposição em quatro seções fundamentais, suscetíveis de reduzir-se a três: o exórdio (latim exordiu(m), começo), ou proêmio (grego prooímion, canto introdutório, pelo latim proemiu(m)), ou princípio (latim principiu(m), o que toma o primeiro lugar); o desenvolvimento e a peroração (latim perotatione(m), longo discurso, última parte do discurso), ou conclusão (latim conclusione(m), ação de fechar, terminar), ou epílogo (grego epílogos, fecho de discurso). 31 O exórdio, contendo a introdução do discurso, objetiva “ganhar a simpatia do juiz (ou, em sentindo mais amplo, do público) para o assunto do discurso” (LAUSBERG, 1966). Não obstante o exórdio apresentar-se ora simples e direto, ora impetuoso e veemente, ora insinuante e humilde, há de ater-se imediatamente ao tema em questão e observar a doutrina do decorum, isto é, “a harmônica concordância de todos os elementos que compõem o discurso ou guardam alguma relação com ele” (LAUSBERG, 1966, p. 233 e 240). No geral, o exórdio encerra duas partes: a proposição, que consiste no enunciado do tema ou assunto, e a divisão, vale dizer, a enumeração das partes que totalizam o discurso e, portanto, assinalam o caminho a seguir pelo orador. Na esfera dos estudos linguísticos, entende-se por “discurso”, primeiramente, o que Saussure chama de parole, ou seja, “um ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1) as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2) o mecanismo psico-físico que lhe permite exteriorizar essas combinações” (SAUSURRE, 2006, p.22). Segundo Ponzio (2008), conforme já visto, todo o discurso reproduzido, o discurso citado, em suas diferentes formas, não representa somente um tipo especial de discurso, mas também está constantemente presente no sentido de que todo o discurso é um discurso reproduzido que recorre ao discurso alheio. É importante salientar que Ponzio segue a linha de estudos de Bakhtin. A apropriação linguística é um processo que usa, também, a mera repetição da palavra alheia a sua reelaboração, capaz de fazê-la ressoar de forma diferente, de conceder-lhe uma nova perspectiva, de fazer o sujeito expressar um ponto de vista diferente. Porém, permanece semialheia, em qualquer caso. A propriedade sobre a palavra não é exclusiva e total. Evidentemente as palavras que usamos não estão capturadas no vocabulário: provêm do discurso alheio e não são palavras isoladas, mas sim peças que formam parte de enunciações completas, de textos. Não são palavras neutras, vazias de valorações, mas já alheias e com uma determinada direção ideológica, ou seja, expressam um projeto concreto, um determinado nexo com a práxis. Em outro campo discursivo, a Análise de Discurso (AD) conceitua discurso como a linguagem em interação, ou seja, aquele em que se considera a linguagem em relação as suas condições de produção, ou, dito de outra forma, é aquele em que se considera que a relação estabelecida pelos interlocutores, assim como o contexto, são constitutivos da significação do 32 que se diz. Estabelece-se, assim, pela noção de discurso, que o modo de existência da linguagem é social: lugar particular entre língua (geral) e fala (individual), o discurso é lugar social. Nasce aí a possibilidade de se considerar a linguagem como trabalho. De acordo com Orlandi (1987), a AD articula-se sobre o campo das ciências sociais sem deixar de constituir sua unidade no interior da teoria linguística. Nela se juntam, pois, com alguma especificidade, a(s) teoria(s) das formações sociais e a(s) teoria(s) da sintaxe e da enunciação. Desta maneira, é possível concluir que a AD procura fazer uma problemática contínua das evidências e explicitar o seu caráter ideológico. A AD é, portanto, objeto de tentativas de anexação por parte da Linguística, representada pela Pragmática (integrada), pelas Teorias da Enunciação ou pelas considerações da Argumentação (despolitizadas, sob a forma da conversação). Ou seja: a AD tem relações importantes com a Pragmática, a Enunciação e a Argumentação, mas inclui, nessas relações, a consideração necessária do ideológico, ao asseverar que não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia. Da AD francesa, interessa para este estudo a tipologia desenvolvida por Orlandi (1999). Antes de falarmos em tipologia do discurso propriamente dito, é importante lembrar que a noção de tipo, na sua relação com o funcionamento discursivo, é fundamental para a semântica discursiva, pois o tipo determina a relevância de certos fatores que constituem as condições de significação de linguagem. É o tipo que recorta o contexto de situação, estabelecendo o domínio da significação do que se diz. Segundo Orlandi (1987), os critérios para o estabelecimento da tipologia que vamos propor – discurso polêmico, lúdico e autoritário – derivam da noção de interação e de polissemia. Assim, com o conceito de interação, procuraremos incorporar a dimensão histórica e social da linguagem e, por outro lado, através do conceito de polissemia, procuraremos enfatizar a ideia de pluralidade de formas e sentidos diferentes da linguagem. De acordo com Orlandi (1987), ainda nessa perspectiva de se resguardar o princípio da heterogeneidade como característica da linguagem é que consideramos que os tipos não se distinguem de forma estanque, havendo uma gradação entre um tipo e outro. Por outro lado, há, entre eles, relação de aliança, de inclusão, de conflito, de determinação e outras espécies de relações que devem ser observadas pela análise do funcionamento discursivo e que fazem com que o tipo, finalmente, caracterize-se por uma relação não absoluta, mas de dominância. Dadas certas condições de produção, um discurso, um estudo do processo discursivo, é, por exemplo, predominantemente lúdico ou polêmico ou autoritário. 33 Além do conceito de dominância, o outro conceito que deve ser introduzido, nessa reflexão sobre tipologia, é o conceito de tendência, isto é, não é coerente acreditar que os tipos se definem em si, mas em sua tendência. Assim, na tipologia que estabelecemos e que se sustenta na reflexão sobre os processos parafrásticos e polissêmicos, em sua tensão, os diferentes tipos se definem por tender para um do pólos (o lúdico tende para o polissêmico; o autoritário tende para o parafrástico) ou para o equilíbrio tenso entre os dois pólos (o discurso polêmico). Para Bakhtin (2006), “a palavra é uma arena de conflitos”, o que ilustra o citado anteriormente. É importante abordar a concepção correta do que vem a ser um processo parafrásico: é aquele pelo qual em todo o dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível à memória. Já o processo polissêmico, configura-se na propriedade da palavra adquirir multiplicidade de sentidos, os quais só são possíveis de serem explicados dentro de um contexto – consiste em um grande número de acepções dentro de seu próprio campo semântico. Não se definem, pois, categoricamente, mas relativamente aos pólos para que tendem. Consoante Orlandi (1987), com relação à aplicação da tipologia, deve-se manter uma grande flexibilidade e ter o mesmo cuidado com relação à interpretação desta (ou qualquer outra) tipologia. A sua interpretação deve levar em conta as situações de produção dos textos analisados e a relação com o contexto ideológico. Isto quer dizer que, na interpretação das características do texto que o situam em uma construção discursiva e não outra, não podemos prescindir do contexto sócio-histórico. A noção de tipo, segundo Orlandi (1987), é necessária como princípio de classificação para o estudo do uso da linguagem, ou seja, do discurso. Além de ser uma necessidade metodológica para as análises do discurso, o estabelecimento da tipologia tem a ver com os objetivos específicos da análise que se estiver empreendendo e com a adequação ao exemplar de linguagem que é objeto da análise. Isto quer dizer que as tipologias são, por assim dizer, de aplicação relativa, podendo ter uma maior ou menor generalidade. Assim sendo, a tipologia deve dar conta da relação linguagem/contexto, compreendendo-se contexto em seu sentido estrito (situação de interlocução, circunstância de comunicação, instanciação de linguagem) e no sentido lato (determinações histórico-sociais, ideológicas, etc.). Em suma, essa tipologia deve incorporar a relação da linguagem com suas condições de produção. 34 Ainda para Orlandi (1987), os critérios para o estabelecimento dessa tipologia derivam das características que enunciamos mais acima, ou seja, a interação e a polissemia. Da primeira resulta o primeiro critério que leva em conta o modo como os interlocutores se consideram: o locutor leva em conta seu interlocutor de acordo com uma certa perspectiva. Ainda sob esse aspecto, entra o segundo critério que leva em conta a reversibilidade o qual, afinal, é o que determina a dinâmica da interlocução: segundo o grau de reversibilidade haverá uma maior ou menor troca de papéis entre locutor e ouvinte no discurso. O terceiro critério tem a ver com a relação dos interlocutores com o objeto do discurso: o objeto de discurso é mantido como tal e os interlocutores se expõem a ele, ou se constitui na disputa entre os interlocutores que o procuram dominar. Desse mecanismo, ou seja, dessa forma de relação com o objeto do discurso é que podemos derivar o quarto critério de polissemia: haverá uma maior ou menor carga de polissemia de acordo com a forma de relação entre o interlocutor e o objeto de discurso. Segundo Orlandi (1987), ao considerarmos os “tipos” como modos de ação, estamos considerando que o texto todo, enquanto unidade de significação (logo, o discurso), equivaleria a um ato de linguagem, na medida em que instaura uma forma de interação. Mas não são ações como os atos de linguagem são considerados em nível de enunciados. Isto quer dizer que não podemos considerar o discurso autoritário como o ato de ordenar, o polêmico como o ato de perguntar e o lúdico como o ato de dizer. Essa posição representaria um enorme reducionismo. Primeiro, porque seria restringir a linguagem a três atos fundamentais; segundo, porque a relação do material linguístico com a ação realizada ficaria extremamente delimitada. Consequentemente, teríamos que apelar para a noção de derivação a partir de três atos fundamentais, o que seria incompatível com a ideia de multiplicidade que é a maneira como concebemos a linguagem. Seria interessante chamar a atenção para considerações de ordem teórica e metodológica, relativas ao desenvolvimento dos estudos de linguagem e à proposta dos três tipos de discurso. Acontece que – sob a égide do discurso autoritário – desarticula-se o característico da interlocução que é a articulação locutor-ouvinte, assim como se rompem as outras articulações que daí decorrem e que se organizam sob forma de dicotomias. No interior dessas dicotomias, passamos a olhar através de um dos seus pólos – o do eu locutor, o da produção, o da intenção, o do percurso psíquico, o da representação, etc. – colocando-o como fundamental. Primeiro se dicotomiza e depois se iguala tudo através de um dos lados. Dessa forma, o parcial se absolutiza. E a forma do discurso autoritário passa a ser a forma da 35 linguagem em geral. Consequentemente, essa Linguística, que assim se faz, tende a privilegiar a função referencial, a informação, a paráfrase. Sobre o tópico “tipologia do discurso”, Orlandi (1987) diz que ela se apresenta sob três grandes modos organizativos do discurso: o polêmico, o lúdico e o autoritário. Antes de passar à verificação de cada um deles, convém relembrarmos, conforme já anteriormente abordado, que não estamos diante de categorias autônomas, mas de dominância. Ou seja, não são formas puras e sim híbridas, existindo, porém, a preponderância de uma sobre a outra: o polêmico pode conter o lúdico, ou o autoritário o polêmico, etc. Ocorre que um dos níveis será dominante, sendo mais visível, portanto, caracterizador. A respeito da nossa abordagem acerca do discurso lúdico, segundo Citelli (2007) esta seria considerada a forma mais aberta do discurso. Residiria, aqui, um menor grau de persuasão, tendendo, em alguns casos, ao quase desaparecimento do imperativo e da verdade única e acabada. Lúdico significa jogo. Seria, pois, um tipo discursivo marcado pelo jogo de interlocuções. Ou seja, o movimento dialógico eu-tu-eu torna-se dinâmico e passa a conviver com signos mais abertos: há menos verdade de um, logo, menos desejo de convencer. Aqui, o signo ganha dimensão múltipla, plural, de forma polissêmica: os sentidos se estilhaçam, expondo as riquezas de novos sentidos. Os signos se abrem e revelam a poesia da descoberta; a aventura dos significados passa a ter o sabor do encontro de outros significados. Por Orlandi (1987), o discurso lúdico compreenderia boa parte da produção artística, por exemplo, a música, a poesia. A própria descoberta da linguagem pela criança tem muito desse caráter de jogo com as palavras: há prazer e encantamento com os mistérios dos sons, com a arbitrária relação entre certas sílabas ou palavras e objetos e situações. O discurso lúdico é aquele em que a reversibilidade entre os interlocutores é total, sendo que o objeto do discurso se mantém como tal na interlocução, resultando disso a polissemia aberta. O exagero é o non sense. O discurso lúdico se coloca como contraponto para os outros dois tipos. Isso porque, em uma formação social como a nossa, o lúdico representa o desejável. O uso da linguagem pelo prazer (lúdico), em relação às praticas sociais em geral, no tipo de sociedade em que vivemos, contrasta fortemente com o uso eficiente da linguagem voltada para fins imediatos, práticos, etc, como acontece nos discursos autoritário e polêmico. Nesse sentido, nós diríamos que não há lugar para o lúdico em nossa formação social. O lúdico é o que “vaza”, é ruptura. 36 Com relação à função referencial e, consequentemente, ao problema da verdade, diríamos que a função referencial, no lúdico, é a menos importante (ORLANDI, 1987). São mais importantes a poética e a fática por causa, respectivamente, da maneira como se dá a polissemia e por causa da reversibilidade nesse tipo de discurso. No polêmico a relação com a referência é respeitada: a verdade é disputada pelos interlocutores. No autoritário a relação com a referência é exclusivamente determinada pelo locutor: a verdade é imposta. No lúdico não é a relação com a referência que importa: até o non sense é possível. Em relação à tensão entre os dois grandes processos – a paráfrase (o mesmo) e a polissemia (o diferente) – que consideramos ser o fundamento da linguagem, diríamos que o discurso lúdico é o pólo da polissemia (a multiplicidade de sentidos), o autoritário é o da paráfrase (a permanência do sentido único ainda que nas diferentes formas) e o polêmico é aquele em que melhor observamos o jogo entre o mesmo e o diferente, entre um e outro sentido, entre paráfrase e polissemia. Dada a tensão, o jogo, entre o processo parafrástico e o polissêmico, que estabelece uma referência para a constituição da tipologia, cada tipo não se define em sua essência, mas como tendência, isto é, o lúdico tende para a polissemia, o autoritário tende para a paráfrase, o polêmico tende para o equilíbrio entre a polissemia e a paráfrase. Devemos observar, em geral, que esses tipos de discurso não têm de existir necessariamente de forma pura. Há mistura de tipos e, além disso, há um jogo de dominância entre eles que deve ser observado em cada prática discursiva. Isso significa que é preciso analisar o funcionamento discursivo para se determinar a dinâmica desses tipos: às vezes todo o texto é de um tipo, às vezes sequências se alternam em diferentes tipos, outras vezes um tipo é usado em função de outro, outras vezes eles se combinam, etc. A noção de tipo não funciona como um porto-seguro, isto é, não cremos que se deva – como usualmente tem ocorrido – lassifi-la categoricamente, estagná-la metodologicamente, perdendo, assim, a sua plasticidade, a sua provisoriedade, como matéria de conhecimento. Com relação ao discurso polêmico, pode-se dizer que é aquele em que a reversibilidade se dá sob certas condições, e em que o objeto do discurso está presente, mas sob perspectivas particularizantes dadas pelos participantes que procuram lhe dar uma direção, sendo que a polissemia é controlada. O exagero é a injúria. Para Citelli (2007) é nesse tipo de discurso que se cria um novo centramento na relação entre os interlocutores, aumentando o grau de persuasão. Agora, os conceitos 37 enunciados são dirigidos como num embate/debate. Há luta em que uma voz tentará se impor sobre outra. Nesse caso, o grau de polissemia tende a baixar, existindo o desejo do eu em dominar o referente. O discurso polêmico possui certo grau de instigação, apresentando argumentos que podem ser contestados. Digamos que o enunciador opera sob controle. O importante é que não haja exposição dos participantes, que, ao contrário, devem procurar dominar o seu referente, indicando-lhe uma direção e perspectivas particularizantes. O discurso polêmico pode ser encontrado em situações muito variadas: defesa de tese, avaliações sobre problemas nacionais, encaminhamento de posições políticas, etc. As discussões sobre o andamento das reformas previdenciária e tributária, os debates sobre a clonagem humana, os problemas envolvendo a luta entre israelenses e palestinos têm permitido acumular vasto material polêmico posto em circulação pela imprensa. Para realizarse, o discurso polêmico precisa elaborar argumentos a serem reconhecidos e que consigam afirmar a posição de quem enuncia. O discurso autoritário, por sua vez, registra, segundo Citelli (2007), uma forte marca persuasiva. Conquanto no discurso polêmico também haja persuasão, é aqui que se instalam todas as condições para o exercício da dominação pela palavra. O processo de comunicação dialógica praticamente desaparece, visto que o transformamos em receptor com pouca ou nenhuma capacidade de interferir e modificar o que está sendo dito. É um discurso exclusivista, pouco afeito a aceitar mediações ou ponderações. O signo se fecha e irrompe a voz da “autoridade” sobre o assunto, aquele que irá ditar verdades como num ritual entre a glória e a catequese. O discurso autoritário lembra um circunlóquio: como se alguém falasse para um auditório composto por ele mesmo. Enquanto o discurso lúdico e o polêmico tendem a um maior ou menor grau de polissemia, o autoritário fixa-se num jogo parafrásico, ou seja, repete uma fala já sacramentada pela instituição: o mundo do diálogo perde a guerra para o mundo do monólogo. O discurso autoritário pode ser encontrado, de forma mais ou menos mascarada, na família: o pai que manda, a despeito de usar, muitas vezes, a máscara/disfarce escondida sob o nome de conselho; na igreja: o padre ou o pastor que ameaçam os pecadores com o fogo do inferno – para que os pecadores não conheçam a ira do Senhor é preciso retornar ao rebanho convertendo-se ou seguindo os ensinamentos da igreja; no quartel: a retórica carregada de chamados patrióticos e recomendações visando preservar o princípio da hierarquia; na comunicação de massa: o apelo publicitário que tem por objetivo racionalizar as vendas e tornar imperativa a necessidade de se consumir determinado produto. 38 Para Orlandi (1987), o discurso autoritário é aquele em que a reversibilidade tende a zero, estando o objetivo do discurso oculto pelo dizer, havendo um agente exclusivo do discurso e a polissemia contida. O exagero é a ordem no sentido militar, isto é, o assujeitamento ao comando. Observa-se que o discurso polêmico seria aquele que procura a simetria, o autoritário procura a assimetria de cima para baixo e o lúdico não colocaria o problema da simetria ou assimetria. Ao falarmos em discurso é possível concluir que toda análise supõe uma tipologia, logo ela faz parte das condições de produção de qualquer análise. Por outro lado, os critérios de constituição das diferentes tipologias são heterogêneos e revelam, como dissemos, a concepção de linguagem e de discurso que se adota, assim como a espécie de contexto que se considera. A heterogeneidade de critérios resulta numa grande variedade e complexidade de tipologias de discurso. Acreditamos, no entanto, que a tipologia tem uma função metodológica fundamental de sistematização dos diferentes discursos: é um ponto de encontro entre o singular e o geral. Por isso é que, procurando refletir sobre a capacidade de generalização de propriedades a partir da noção de tipo, é possível concluir que as tipologias, têm uma generalidade relativa e o que conta em seu estabelecimento e sua aplicação é o objetivo de análise em relação à natureza do texto. A interpretação de qualquer tipologia também não deve ser feita de forma automática. Isto é, os resultados da aplicação de uma tipologia devem ser referidos ao contexto sóciohistórico do texto que foi objeto da análise, pois esses resultados não são evidentes por si. Como última observação, é importante lembrar que, de qualquer maneira, todo tipo é produto histórico, ou seja, cristalização de algo dinâmico, que é o processo discursivo. Daí propormos que não se desvincule o estudo dos tipos de sua relação com o funcionamento discursivo, já que não há uma essência que define o tipo. Podemos generalizar para todas as espécies de tipologias os conceitos de tendência, de dominância e de processo que utilizamos em relação aos tipos lúdico, polêmico e autoritário. Com relação a sua qualidade e as suas marcas formais, os discursos não se definem por um traço exclusivo. Em termos de constituição formal, o que determinará o tipo de discurso é o modo como esse traço aparecerá em um discurso, em relação as suas condições 39 de produção. Por isto, é preciso observar o funcionamento discursivo e trabalhar com a noção de processo. Assim, o que define o discurso é como o traço se estabelece no funcionamento discursivo. O que temos são processos gerais que se cruzam de várias maneiras e que fazem com que um discurso tenda para uma certa forma típica, dada a dominância (saliência) de um de seus fatores em determinadas condições de produção. O analista de discurso procurará determinar o modo como os processos gerais estão presentes num funcionamento discursivo e determinado. A sua tarefa, em relação à tipologia, ao explicitar a dominância desse ou daquele traço, dessa ou daquela propriedade, nas estruturações de um discurso, é remeter essa dominância à configuração de um tipo, enquanto produto histórico. E os tipos, vistos como produto, representam o cruzamento determinado, isto é, específico dos processos discursivos gerais sedimentados. Por fim, podemos concluir que as diferentes tipologias se definem como diferentes formas de considerar, ou de incorporar, as diferentes noções de contexto em suas diversidades. Como forma esquemática, com a finalidade de facilitar o estudo supracitado, apresentaremos o quadro a seguir: Quadro1: Tipologias e formas Tipo de Discurso Elemento(s) constitutivos predominantes Autoritário Paráfrase Lúdico Polissemia Polêmico Equilíbrio entre a polissemia e a paráfrase Fonte: Ramos, 2013. 40 4 O GÊNERO DISCURSIVO E OS SEUS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS “...o texto é um construto histórico e social, extremamente complexo e multifacetado, cujos segredos (quase ia dizendo mistérios) é preciso desvendar para compreender melhor esse ‘milagre’ que se repete a cada nova interlocução – a interação pela linguagem, linguagem que, como dizia Carlos Franchi, é atividade constitutiva” (Ingedore G. Villaça Koch) No presente capítulo, abordaremos de forma objetiva um tópico extremamente importante para o fechamento completo e eficaz desta dissertação – o gênero discursivo e seus elementos constitutivos: a estrutura composicional, o tema e o estilo. Com este conhecimento seremos capazes de fazer uma ligação com os conceitos já estudados e o assunto proposto para o estudo neste trabalho no capítulo posterior. Os gêneros são representados por textos concretos de nossa vida cotidiana, deferidos por suas características sócio-comunicativas, além de características temáticas, composicionais e estilísticas. Nesta dissertação, abordaremos os documentos militares que constituem gêneros discursivos. Segundo Bakhtin (2010), os três elementos que compõem o gênero são conteúdo temático (tema), estrutura composicional (composição) e estilo. A composição tem a ver com a estrutura própria de cada gênero, distribuição das informações, diagramação, etc. Koch (1987) exemplifica: estrofes e rimas para a poesia; balões e enunciados curtos para quadrinhos, tiras, etc. Consoante Costa Val (2003), os gêneros estabelecem padrões de estrutura composicional, isto é, modos típicos de organização do texto quanto a que partes o compõem e como elas se distribuem. De acordo com Travaglia (2007), vários elementos podem ser considerados quando pensamos em estrutura composicional. Serão abordados alguns já observados na caracterização de categorias de texto (tipos, gêneros e espécies), com alguns exemplos. Para o mesmo autor, no que diz respeito ao parâmetro da estrutura composicional, o primeiro critério a lembrar é a superestrutura, de importância fundamental na caracterização de categorias de texto. Assim, por exemplo, os textos que têm o tipo narrativo como necessário e dominante em sua composição e são da espécie história (por exemplo, romance, conto, novela – literária, de rádio, de TV -, conto, fábula, lenda, mito, fofoca, biografia, lassif, poema lassif, etc.) encaixam-se na superestrutura geral. Com 41 relação ao conceito de superestrutura Van Dijk (1997) diz que a superestrutura relaciona-se ao nível global, ou seja, não define relações entre orações isoladas, mas o seu conjunto. O mesmo autor apresenta a ideia de que uma superestrutura fornece a sintaxe completa para o significado global, isto é, para a macroestrutura do texto. Essa ideia faz com que a superestrutura seja vista como um elemento necessário ao processamento da linguagem, pois será ativada sempre que o escritor/leitor se deparar com determinada situação comunicativa, preenchendo expectativas de produção textual. O falante saberá, por exemplo, qual o esquema utilizado quando for narrar um conto e, da mesma forma, reconhecerá o esquema no momento da interpretação desse texto. Já o tema diz respeito à organização do conteúdo temático a ser tratado, ou como afirma Grillo (2006), a maneira de construir os fatos da natureza e dos campos da ideologia. Não é o assunto, mas a maneira como é encarado. O tema do gênero se define pelo modo de ver e construir os fatos da natureza e dos campos ideológicos. Nos gêneros da divulgação científica no campo da informação midiática, o tema é composto pela seleção de fatos científicos da área da saúde mais especificamente – em razão do leitor previsto -, pela profundidade de abordagem e pela avaliação social. O tema é definido como: individual, nãoreiterável, determinado tanto pelas formas linguísticas como pelos elementos não verbais da situação, fenômeno histórico e dotado de acento de valor apreciativo (sendo a entonação sua expressão mais óbvia). Enquanto elemento do gênero, o tema perde sua natureza singular, para adquirir certa estabilidade. O tema é um aspecto constitutivo do enunciado e de seus tipos estáveis, os gêneros discursivos. Nestes, ele adquire um caráter estável composto por regularidades produzidas: pelo campo da comunicação discursiva, pelo todo do enunciado – aí incluída a situação de interação verbal – pela seleção e profundidade de abordagens dos aspectos do real e pela avaliação social. O estilo refere-se ao modo como o tema será tratado, ou seja, as marcas de formalidade, expressividade e valoração (avaliação) do autor do texto. Segundo Brait (2005), o estilo será definido como a escolha que todo texto deve operar entre um certo número de disponibilidades contidas na língua. O estilo assim compreendido é equivalente aos registros de língua, aos seus subcódigos, é a que se referem expressões como “estilo figurado”, “discurso emotivo”, etc. E a descrição estilística de um enunciado é apenas a descrição de todas as suas propriedades verbais (DUCROT e TODOROV, 1982). Se o primeiro exemplo confirma a ideia de estilo ligada a “expressão individual”, e consequentemente a ideia de estilística (estudo de estilo), dissociando num certo sentido forma e conteúdo, o segundo, 42 voltando-se para o texto e não para seu autor, persegue o que há de particular na organização textual, no sentido quase que sociolinguístico e retórico que o termo pode sugerir, ou seja, de registros, subcódigos, figuras de linguagem, entre outros. Neste sentido, podemos afirmar que o estilo é um tema que, embora ainda pouco explorado do ponto de vista de sua constituição e do papel que exerce no conjunto da produção bakhtiniana, relaciona-se de maneira intrínseca e coerente com a perspectiva dialógica da linguagem, apresentada sob diferentes assinaturas, bem como com as diversas noções teórico-epistemológicas implicadas. A questão do estilo vai deixar de ser pensada a partir de uma produção tomada na sua individualidade, na sua autonomia, enquanto idiossincrasia de um enunciador, para ser tratada a partir de aspectos que, um pouco mais tarde, o pensamento bakhtiniano vai trabalhar em detalhes, é a linguagem pensada como atividade, dentro de atividades específicas, o que vai motivar a inclusão do conceito de esfera de produção, e, consequentemente, a de circulação e recepção e, ainda, a relação entre enunciação e interação, gênero e uso, temas, forma composicional e estilo. Os três elementos aparecem no gênero conforme a esfera de atuação. Ou seja, os gêneros não se definem por sua forma, mas por sua função ou propósito comunicativo. No caso particular da instituição Exército Brasileiro, os gêneros discursivos militares nas diversas situações com suas características próprias, seria, para nós, o “conteúdo” do nosso trabalho. O “tema” está ligado à avaliação ideológica do conteúdo tratado nos documentos gerados pela instituição e o “estilo” é a forma e as normas que esses documentos seguem dentro do padrão militar de confecção, seguindo manuais e regulamentos já descritos. Com base em Bakhtin, cada esfera da vida social “elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados” (2010, p.262). São os gêneros do discurso. Os gêneros são formas de ação social, práticas discursivas históricas, vinculadas à vida cultural. Os gêneros discursivos são maneiras de organizar as informações linguísticas de acordo com a finalidade do texto, com o papel dos interlocutores e com as características da situação. É impossível comunicar-se verbalmente a não ser por meio de um gênero discursivo. Para Bazerman apud Fuzer (2008), a coleção de texto produzida por um indivíduo corresponde ao que se denomina conjunto de gêneros. Esse conjunto corresponde aos gêneros utilizados por um agente para exercer seu papel no grupo social a que pertence. 43 A identificação de um conjunto de gêneros possibilita catalogarem-se as atividades típicas de um profissional, as quais são necessárias para a realização do trabalho com competência. É possível enumerarem-se os conjuntos de gêneros utilizados por diferentes profissionais no exercício de suas atividades (FUZER, 2008, p. 63). Ainda, segundo a mesma autora, fazem parte de um sistema de gêneros os diversos conjuntos de gêneros utilizados por pessoas que trabalham de modo organizado, considerando-se as relações padronizadas que se estabelecem na produção, circulação e usos dos textos. 4.1 O EXÉRCITO BRASILEIRO – DOCUMENTOS E SEUS GÊNEROS DISCURSIVOS No presente capítulo será dada continuidade à proposta inicial deste trabalho, que é o estudo do discurso típico da instituição Exército Brasileiro. Para atingirmos tal objetivo, é necessário, a partir de agora, situar essa Instituição no panorama mundial, a sua organização, suas regras e diretrizes, suas características, e realizar a ligação entre essas peculiaridades e a Linguística, bem como realizar um elo entre os conceitos já abordados, propositalmente, a fim de entendermos claramente o discurso militar, mais especificadamente, o do Exército do Brasil. É também objetivo deste capítulo realizar um levantamento de alguns gêneros textuais produzidos pela esfera militar no exercício rotineiro de suas funções. Por esfera militar, se entende o ambiente vivenciado na Instituição “Forças Armadas”, que inclui neste caso, o Exército Brasileiro, palco de estudo desta dissertação. Será realizado um levantamento dos principais textos produzidos por militares, com as características peculiares, seguidos de exemplos. De acordo com Travaglia (2007) o gênero é caracterizado por realizar uma função sócio-econômica determinada, isto é, os textos são produzidos com uma finalidade definida para atender objetivos e necessidades próprias de comunidades de atividade de linguagem. Segundo o mesmo autor, há gêneros que só são usados por membros de um grupo específico, em atividades típicas desse grupo e outros que não são específicos, exclusivos de uma classe, pois são utilizados por membros de mais de uma comunidade de atividade de linguagem. Isso pode ser comprovado em nossa pesquisa, pois encontramos textos próprios da 44 esfera militar e textos que também são utilizados por outros grupos, embora em situações diferentes e peculiares. Ele diz, ainda, que os gêneros são instituídos e funcionam num “locus social”, isto é, em um espaço. Este “locus” de surgimento dos gêneros pode ser mais restrito (equipara-se a apenas uma comunidade de atividade de linguagem) ou mais amplo (equiparase a mais de uma comunidade de atividade de linguagem). O autor propõe chamar de “esferas de ação social” o locus mais amplo, e de “comunidades discursivas” o locus mais restrito. Para Bakhtin (2010) há uma estreita relação entre a existência de gêneros do discurso e as esferas da atividade humana, sendo que estas delimitam modos e caracteres diversos da utilização da língua, em função de suas condições específicas e finalidades. A afirmativa acima é embasada e amparada no fragmento a seguir. Para o mesmo autor, todas as esferas da atividade humana, por mais diferenciadas que se apresentem, têm uma relação íntima com a língua. O modo de utilização da língua dá-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que provém dos membros de uma ou de outra esfera da atividade humana. O enunciado espelha as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, mas também e, sobretudo, por sua constituição composicional. Para Bakhtin: Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso” (BAKTHTIN, 2010, p.279). É possível observarmos que, para o autor, os gêneros são oriundos de esferas de atividade humana e são caracterizados pelas condições específicas e pelas finalidades dessas esferas, o que vai caracterizá-los em contraposição a outros gêneros de outras esferas. O conceito de Bakhtin abrange tanto o locus representado por uma única comunidade de atividade de linguagem quanto o locus que inclui mais de uma comunidade de atividade de linguagem. Segundo Bhatia apud Fuzer (2008), muitos estudiosos realizam suas análises a partir do contexto social (com um gênero discursivo específico) e dificilmente chegam ao nível do 45 texto. Em contrapartida, os linguistas, comumente, partem dos textos e dificilmente chegam ao contexto. Cabe ressaltar que a comunidade militar, objetivo de nosso trabalho, gera textos de cunho interno e externos. Consoante Jodelet apud Fuzer (2008), partilhar uma ideia ou uma linguagem específica significa afirmar um vínculo social e uma identidade. Com isso, verifica-se que a linguagem técnica é um dos mecanismos utilizados pelos profissionais para evidenciar sua pertença ao grupo – no caso em estudo, a classe militar. A partilha não é só de uma linguagem específica (termos técnicos, estruturas sintáticas), como também conhecimento das leis que regulamentam a instituição militar. A consequência disso é que se preserva o vínculo entre os membros de um grupo, da mesma forma que partilham uma língua, preparando-se para pensar e agir de um modo uniforme. Mostraremos alguns textos produzidos pela comunidade/instituição “Exército Brasileiro”, de acordo com os manuais e regulamentos previstos na esfera militar. 4.2 AS FORÇAS ARMADAS E O EXÉRCITO NO BRASIL De acordo com a Constituição do país, as Forças Armadas de uma nação constituem o conjunto das suas organizações e forças de combate e de defesa. Dependendo do país, as Forças Armadas podem adotar designações oficiais alternativas como “forças de autodefesa”, “forças militares” ou “exércitos”. Na grande maioria dos países, as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, geralmente sob a autoridade direta do ministro da Defesa, ou equivalente, e sob autoridade suprema do Chefe de Estado ou de Governo, dependendo do regime político. Destinam-se essencialmente à defesa militar do país, podendo também – se a lei nacional permitir – colaborar na garantia dos poderes constitucionais e na defesa da lei e da ordem interna. As Forças Armadas constituem-se em instituições nacionais autorizadas pela sua nação a usar a força – geralmente através do emprego de armas – em defesa de seu país (incluindo atacar outros países). Ao estudo do emprego das Forças Armadas chama-se ciência militar. 46 Normalmente, as Forças Armadas estão divididas em três grandes organizações (designadas “forças”, “componentes”, “exércitos”, ou “ramos das forças armadas”) a cada uma das quais corresponde um ambiente principal específico de atuação (o mar, a terra e o ar). Em suma, as Forças Armadas do Brasil, são constituídas desta forma: Exército (força terrestre), Marinha (força naval) e Aeronáutica (força aérea). 4.3 OS PILARES BÁSICOS E CARACTERÍSTICAS DO EXÉRCITO BRASILEIRO Ao longo desta dissertação será observado que o discurso militar tem características próprias e, quanto a sua tipologia, tende ao estilo autoritário. Isto se deve, inicialmente, aos princípios gerais e basilares que regem a Força. Cabe, portanto, no momento, esclarecer esses princípios que regem a Instituição – a hierarquia e a disciplina. Por hierarquia militar, entende-se que é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, por postos e graduações. Quanto à disciplina militar, entende-se como a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindose pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes do organismo militar. São manifestações essenciais da disciplina: a correção de atitudes; a obediência pronta às ordens dos superiores hierárquicos; a dedicação integral ao serviço e a colaboração espontânea para a disciplina coletiva e a eficiência das Forças Armadas. Segundo o Regulamento Disciplinar do Exército, a disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos permanentemente pelos militares na ativa e na inatividade. Pelo artigo nono do mesmo Regulamento, as ordens devem ser prontamente cumpridas. Segundo Gouveia (1997), as instituições militares modernas têm como uma das suas características fundamentais a existência de um extenso corpo de regulamento que limita e motiva o sujeito militar na construção do significado no seio da instituição. Estes regulamentos determinam desde o tipo de corte de cabelo e o modo de usar a farda, por exemplo, até à maneira de saudar militares e civis, passando por quais e que tipos de relações são possíveis entre os sujeitos militares ou por quais e que tipos de deveres, obrigações e liberdade lhe são conferidos. É na observância destes regulamentos que a disciplina militar encontra a sua expressão máxima. 47 Ainda segundo Gouveia (1997), os códigos de conduta ou regulamentos de disciplina são efetivamente a base legal ou estatutária usada para definir conceitos-chave da instituição, para além da identificação e conceitualização dos deveres militares e da eficiência militar, não podendo ser menosprezado o seu modo dual de funcionamento como instrumento e expressão de dominação, um meio para o exercício do poder: poder enquanto controle sobre o indivíduo, decorrente da especificidade do texto legal, o Código, o Estatuto ou Regulamento, enquanto instrumento de regulação e de disciplina; mas, sobretudo, poder enquanto controle sobre a interpretação, decorrente do caráter definitório do conceito de disciplina militar, que é característico destes códigos ou regulamentos, o qual abre novas potencialidades ao controle sobre o indivíduo. Todavia, dizer que os regulamentos militares são leis de ação é escamotear características fundamentais: a sua função de controle e de manutenção da estrutura hierárquica de relações, condição essencial para a sobrevivência da instituição como tal. 4.4 A EXPRESSÃO DOS GÊNEROS DISCURSIVOS MILITARES CONTIDA NAS DIVERSAS DOCUMENTAÇÕES1 É importante apresentar os diversos documentos atinentes ao Exército Brasileiro, mostrando o discurso tipicamente militar com as suas peculiaridades e traços linguísticos. Assim sendo, serão apresentados a seguir tais documentos, conforme quadro-resumo abaixo: 1 Fontes extraídas do IG 10-42 (Exército Brasileiro – manual que normatiza os documentos desta Instituição). 48 Quadro 2 – Documentos – Exército Brasileiro (conjunto de Gêneros da Esfera Militar)2 a) Noticiário do Exército b) Informativo do Exército c) Boletim do Exército d) Ordem do dia do Comandante do Exército e) Parte ou Comunicação Disciplinar f) Ofício g) Queixa Disciplinar h) Razões Escritas de Defesa i) Requerimento j) Sindicância Regular k) Nota para Boletim Interno l) Boletim Interno m) Histórico da Unidade n) Animação, Cantoria ou Canto Fonte: Ramos, 2013. a) Noticiário do Exército (NE): veículo de comunicação social destinado a dar ampla difusão às informações sobre as atividades profissionais e assuntos de interesse geral dos militares do Exército. Periodicidade: semanal. 2 Todos os dados sobre as animações, bem como os exemplos, foram obtidos pelo fato de o autor deste trabalho ser militar do Exército, instrutor de escola militar dessa Organização e ter conhecimento adquirido ao longo de sua formação na caserna. 49 Figura 1 – Noticiário do Exército (NE) Fonte: Ramos, 2013. b) Informativo do Exército (Informex): a finalidade do Informex é transmitir a palavra oficial da Força sobre assuntos de interesse Público Interno de forma rápida e direta, podendo ser utilizado, também, para a divulgação de notas, diretrizes e decisões do Comandante do Exército. Periodicidade: eventual. Figura 2 – Informativo do Exército (Informex) Fonte: Ramos, 2013. c) Boletim do Exército: destina-se a divulgar os atos normativos, as ordens, as resoluções e outros assuntos de interesse do Exército ou do seu pessoal. Periodicidade: semanal. 50 Figura 3 – Boletim do Exército Fonte: Ramos, 2013. d) Ordem do Dia do Comandante do Exército: é o documento expedido a todas as Organizações Militares emanado pelo Comandante da Força, geralmente lido em solenidades militares. O seu caráter é ostensivo e destina-se a ser difundido a toda a tropa. Na maior parte das vezes, é lido em formaturas e solenidades alusivas a fatos históricos, marcantes para o Exército Brasileiro. São exemplos dessas datas: dia do exército, do soldado, da vitória. Ao contrário do que possa parecer pelo nome, este gênero não contém determinações de ações a serem cumpridas por membros das Organizações Militares, mas é, na verdade, uma mensagem dirigida a eles, de caráter encomiástico e laudatório. Quanto ao seu conteúdo, sempre traz elogios a alguma pessoa, instituição, agrupamento; palavras de incentivo a uma ação, atitude e comportamento sempre patrióticos, honrados, lassifi, seguindo ou não um modelo. Nesta ordem do dia há também um incentivo para a ação do exército de acordo com a atual situação do Brasil. No final, aparece a especificação do responsável pela ordem do dia: nome e posto. Nas ordens do dia analisadas, colhidas no site do exército, havia comumente figuras alusivas ao tema da ordem. Periodicidade: em datas comemorativas 51 Figura 4 – Ordem do Dia do Comandante do Exército Fonte: Ramos, 2013. e) Parte ou Comunicação Disciplinar: esse documento é a formalização escrita, feita por militar e dirigida à autoridade competente (Comandante, Diretor ou Chefe do Comunicante), acerca de ato ou fato contrário à disciplina. Deve ser clara, concisa e precisa, contendo os dados capazes de identificar as pessoas ou coisas envolvidas, o local, a data, a hora da ocorrência, além de caracterizar as circunstâncias que a envolveram, sem tecer comentários ou opiniões pessoais. Essa comunicação deve ser apresentada no prazo de cinco dias úteis, contados da observação ou conhecimento do fato. O acusado será notificado formalmente, na presença de duas testemunhas que também assinarão o termo para, no prazo improrrogável de cinco dias úteis, apresentar suas alegações escritas de defesa, sendo-lhe entregue a comunicação disciplinar e demais documentos existentes. f) Ofício: é o documento através do qual o militar, em função de comando, direção ou chefia, comunica-se com outra autoridade sobre assunto de caráter administrativo ou operacional. Apresenta normalmente, proposta, indicação, requisição, solicitação e informação. g) Queixa Disciplinar: é o recurso disciplinar, normalmente redigido sob a forma de ofício ou parte, interposto pelo militar diretamente atingido por ato pessoal que repute irregular ou injusto, dirigido ao superior imediato à autoridade contra quem é apresentado. h) Razões Escritas de Defesa: é o documento que possui as provas que contradizem a(s) acusação(ões) imposta(s) ao acusado. Nele o militar produz a sua defesa, sendo-lhe propiciado o exercício do contraditório. As alegações escritas de defesa poderão ser apresentadas pelo próprio militar ou por defensor por ele constituído. 52 i) Requerimento: é o documento que o signatário solicita à autoridade competente o reconhecimento de um direito. j) Sindicância Regular: o Procedimento Administrativo utilizado pela autoridade competente para apurar, de maneira rápida e padronizada, atos e fatos indicativos de irregularidades que envolvam servidores da Instituição antecedendo a outras providências cíveis, criminais ou administrativas. A sindicância só pode ser realizada por autoridade competente (chamado de Sindicante): subtenente/ sargento de maior posto/graduação ou mais antigo que o Sindicado (a pessoa acusada). A Sindicância Regular é constituída por diferentes textos, chamados de peças, cada qual com uma função específica: Autuação (na capa da Sindicância); Portaria, Anexos à Portaria; Termo de Abertura; Termo de Declaração da vítima, quando houver; Termo de Declaração do sindicado; Termo de Inquirição da(s) testemunha(s); Termo(s) de declarações de outras pessoas envolvidas, quando houver; Assentada(s); Termo de Juntada; Nomeação de defensor, quando constituído pelo sindicado; Termo de Abertura de vistas, contendo o libelo acusatório; Defesa prévia; Diligências Complementares (audição de pessoas, juntada de documentos, etc.); Razões finais de defesa (escrita); Relatório. A Sindicância Regular é um procedimento extenso, bem detalhado e minucioso, devendo ter clareza, brevidade e objetividade. Figura 5 – Sindicância Fonte: Ramos, 2013. No relatório, o sindicante fará um minucioso exame de tudo o que foi apurado, fazendo, imparcialmente, uma comparação dos argumentos e das razões de defesa com as provas colhidas, apresentando um parecer final conclusivo, contendo as opiniões pessoais do 53 sindicante, em forma de sugestões. Propõe, a seguir, se a sindicância será arquivada ou encaminhada à autoridade administrativa competente, a qual julgará e proferirá a decisão, concordando total, ou parcialmente, com os argumentos contidos no relatório ou discordando do parecer do sindicante, fazendo-se tomar as demais providências necessárias. Aqui, verificamos que são muitos os documentos, considerados gêneros textuais, produzidos por um policial militar dentro de sua função. Observamos, também, que cada texto é produzido por uma autoridade competente, dependendo do cargo que ocupa e do objetivo almejado. São textos bem formais, técnicos, claros, normativos, com linguagem própria e que priorizam a efetiva comunicação. Assim, tais documentos são considerados gêneros de texto, pois se caracterizam por exercer uma função sóciocomunicativa específica, explícita por seus objetivos e finalidades de produção. Faz-se necessário relatar que, além do recurso impresso, o Exército Brasileiro utiliza também, como meio de comunicação interna, a Intranet, que é uma rede de computadores semelhante à Internet, porém de uso exclusivo de uma determinada organização, ou seja, somente o funcionário da instituição pode acessá-la com senha pessoal. Pudemos identificar que muitos gêneros produzidos pelo Exército Brasileiro são usados por outras comunidades de atividade de linguagem (TRAVAGLIA, 2010), tais como: memorando, ata, ofício, cartão, atestado, certidão negativa de débitos, relatório, dentre outros, porém, esses textos utilizados pelos militares são revestidos de certas peculiaridades que os fazem próprios da comunidade militar. Essas peculiaridades podem ser percebidas pela própria definição do documento, como por exemplo, o relatório (documento que finaliza um processo ou um procedimento administrativo disciplinar, no qual o encarregado descreve minuciosamente o fato apurado e emite seu parecer final). Assim, na comunidade militar há a elaboração de gêneros considerados por Travaglia (2010) mais restritos e mais amplos. São eles: k) Nota para Boletim Interno: são documentos expedidos pelos chefes das diversas seções da OM (Organização Militar) que devem constar no Boletim Interno da Unidade, referentes à parte disciplinar do efetivo de pessoal, informações relativas à instrução, saúde e área administrativa. Pode ser equiparada, “a grosso modo”, a uma matéria enviada a um jornal para ser publicada. O jornal representaria o Boletim Interno, documento público que concentra informações das mais diversas áreas. A nota para o Boletim, de interesse geral, seria a matéria enviada pelos diversos responsáveis de cada segmento/seção desse jornal. 54 l) Boletim Interno (BI): o BI é o documento em que o Comandante da Organização militar publica todas as suas ordens, as ordens das autoridades superiores e os fatos que devam ser do conhecimento de toda a unidade. O BI é dividido em quatro partes: 1) Serviços Diários; 2) Instrução; 3) Assuntos Gerais e Administrativos; 4) Justiça e Disciplina. O BI é publicado diariamente ou não, conforme as necessidades e o vulto das matérias a divulgar. O BI conterá especialmente: 1) a discriminação do serviço a ser executado pela Unidade; 2) as ordens e decisões do Comandante da Organização militar, mesmo que já tenham sido executadas; 3) as determinações das autoridades superiores, mesmo que já cumpridas, com a citação do documento da referência; 4) as alterações ocorridas com o pessoal e o material da unidade; 5) as ordens e disposições gerais que interessam à unidade e referência sucinta a novos manuais de instrução, regulamentos ou instruções, com indicação do órgão oficial em que tiveram sido publicados; 6) referências a oficiais, e praças falecidos que, pelo seu passado e conduta, mereçam ser apontados como exemplo; 7) a apreciação do Comandante da Organização Militar ou da autoridade superior sobre a instrução da Unidade e referência a documentos de instrução recebidos ou expedidos; 8) os fatos extraordinários que interessam as unidades. 55 Figura 6 – Boletim Interno Fonte: Ramos, 2013. m) Histórico da unidade: é um resumo de fatos e acontecimentos relevantes que envolveram a Unidade, OM (Organização Militar), ou Batalhão cuja vida é registrada neste histórico que engloba sempre o tempo de um ano. Nele registram-se fatos como visitas do presidente, a troca de comando, em ordem cronológica. É feito pelo Secretário do Batalhão e dirigido ao Cedoc (Centro de Documentação do Exército). Todas as unidades devem produzir o histórico e encaminhá-lo até 30 de março de cada ano + 1, ou seja, o histórico de 2010 é enviado, por exemplo, até 30 de março de 2011. Periodicidade: anual. Figura 7 – Histórico da Unidade Fonte: Ramos, 2013. n) Animação, cantoria ou canto: durante os treinamentos físicos, marchas, corridas e atividades semelhantes, é comum os pelotões (grupos de 30 a 40 militares unidos ou companhias/conjunto de pelotões) entoarem um tipo de canto que, para os militares, destinase ao incentivo e, ao mesmo tempo, distração durante uma atividade física. Tem a finalidade, também, de manter a cadência e o passo certo (uniforme e conjunto) das frações, durante corridas. De acordo com o tom imposto, o ritmo da marcha ou corrida é regulado. Segundo a comunidade militar, muitas animações estão contidas na memória, mas geralmente, são improvisadas ou adaptadas de animações que já existem. Alguns exemplos: (1) cantoria de incentivo (2) cantoria de incutir medo (3) cantoria de distração: 56 Acordei hoje bem cedo Com vontade de ralar Fiz esquerda, fiz direita Meia-volta e descansar Como tudo nessa vida É pra dar moral à gente Faço essa corridinha Que dá força ao combatente (2) Ei você que está me olhando Eu não gosto de você Se continuar me olhando Vou aí pegar você (3) Combatente olha que legal Eu vou servir lá em Natal Combatente Oh que maravilha Eu vou servir lá em Brasília Combatente olha que maneiro Eu vou servir lá no Rio de Janeiro Combatente olha que beleza Eu vou servir lá em Fortaleza Fonte: Ramos, 2013. 4.5 GÊNEROS COMPARTILHADOS COM OUTRAS UNIDADES Serão apresentados, aqui, os gêneros compartilhados pelo Exército com outras comunidades discursivas, fazendo parte do que Travaglia (2010) chama de “esfera de ação social”. Esta se apresenta como um locus de criação de gêneros mais abrangentes, e vai além dos limites de uma “comunidade discursiva” que, por sua vez, definimos como um locus de criação de gêneros mais restritos por criar apenas aqueles que são específicos da comunidade. Cabe ressaltar que gêneros compartilhados podem apresentar, em comunidades discursivas específicas, algumas especificidades impostas pela comunidade na realização do gênero. Essa assertiva poderá ser observada nos dois gêneros compartilhados que apresentaremos a seguir: o convite e os manuais e regulamento. Convite: De acordo com Travaglia (2011), o convite é um gênero compartilhado por quase todas as comunidades discursivas de nossa sociedade. No caso em particular do Exército, segue as orientações do Vade Mécum de Cerimonial Militar do Exército (VM07, 2000) que apresenta as seguintes imposições: a) deve “primar pelo rigor do objetivo, da redação, da estética, da boa qualidade do papel e, principalmente, pelo prazo (antecedência que respeite a agenda do convidado), que, no caso de convites impressos, deve ser de no 57 mínimo 15 dias”; b) quanto à linguagem, além da correção já citada, é especificado que a expressão “tem o prazer de receber/convidar”, geralmente é usada quando a autoridade convida pessoas de hierarquia inferior ou em convites informais, e a expressão “tem a honra de receber/convidar”, quando “a autoridade que convida tem entre seus convidados pessoa(s) com hierarquia igual ou superior a sua. Pode também ser usada para autoridades de menor precedência, pois não ferirá suscetibilidade”; c) que na redação e escolha do formato do convite são permitidas liberdades em função do tipo de evento, mas que o convite deve responder às seguintes perguntas do convidado: quem convida, motivo, tipo de evento, horário, local, data que, em convites formais, deve vir escrita por extenso, traje, R.S.V.P (responda por favor) com o número de telefone para confirmação de presença. Como vimos, o convite na comunidade militar tende a ser mais formal e alguns detalhes são bem estabelecidos. Manuais e regulamentos: Em função do Exército ser uma comunidade com rotinas extremamente bem estruturadas e pregar por uma disciplina exemplar, os regulamentos e manuais têm uma importância muito grande, pois normatizam e uniformizam procedimentos. O mais abrangente, o primeiro, é o Regulamento Interno e dos Serviços Gerais (RISG, 2012). Como os regulamentos são numerados em série o RISG é o R-1. O R-2 é o regulamento de continências, honras, sinais de respeito e cerimonial militar das Forças Armadas, instituído pelo Decreto N° 2.243, de 3 de junho de 1997. O R-3 é o “Manual de Campanha – Regulamento de Administração do Exército (RAE), instituído pelo Decreto N° 98.820, de 12 de janeiro de 1990. Muitos regulamentos apresentam-se em forma de portaria – são as Instruções Gerais (IG) e as Instruções Reguladoras (IR). Como exemplo delas, temos a Portaria n° 041 de 18/02/2002 que contém as Instruções Gerais para a Correspondência, as Publicações e os Atos Administrativos no Âmbito do Exército (IG-10-42) publicada em Brasília, DF em 22/02/2002 e alterada pela Portaria Nr 757 do Comandante do Exército, de 2 de dezembro de 2003, publicada no Boletim do Exército Nr. 49/03. Todos os regulamentos têm a forma de organização comum a regulamentos das demais instituições, cuja estrutura e funcionamento são regidos por regulamentos, regimentos e assemelhados: títulos, divididos em capítulos, que, por sua vez, são compostos por artigos, parágrafos, alíneas e incisos, contendo ou não anexos esclarecedores ou de especificação de elementos citados. 58 Como percebemos, os regulamentos e manuais são compartilhados pelo Exército com outras instituições de nossa sociedade, entretanto, os manuais da comunidade militar apresentam-se bastante detalhados, como, por exemplo, é notável a forma como as normas sobre a disposição dos elementos, que compõe cada tipo de correspondência em termos de disposição e distância entre as partes, são ditadas. Figura 8 – Manuais e Regulamentos Fonte: Ramos, 2013. A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa (BAKHTIN, 2010, p.279). Em face da citação acima, é possível ressaltar que existe, nas mais diversas documentações da Instituição, as marcas dos gêneros discursivos militares, que são próprias e peculiares. Aliado a isso, foi possível observar ao longo do trabalho, que há uma infinidade de gêneros discursivos dentro do próprio gênero militar, constituindo, como enfatizado anteriormente, o que foi denominado “sistema de gêneros”. 59 5 O GÊNERO DISCURSIVO MANUAL E OS SEUS ELEMENTOS CONSTITUINTES O tema desta dissertação está centrado nas características dos gêneros discursivos militares pertencentes ao domínio discursivo das Organizações Militares do Exército Brasileiro, cuja contextualização é balizada pelo objetivo geral deste trabalho, que parte do problema: como se caracterizam os gêneros discursivos militares na ótica da teoria dos gêneros do discurso de M. Bakthin e seu Círculo? Neste capítulo, será apresentada a análise do gênero discursivo Manual, sendo este o selecionado para constituir o corpus de análise desta dissertação, mais especificamente os Manuais T21-250 e C 22-5. Conforme já abordado, os gêneros são representados por suas características temáticas, composicionais e estilísticas. Assim, na instituição Exército Brasileiro o gênero discursivo militar tem um conteúdo e possui um padrão de abordagem, quer seja na forma escrita ou verbal. Baseado nisso, será possível observar, a seguir, os recursos próprios do gênero discursivo militar explorado no Manual Técnico do Instrutor T 21-250, voltado para a área do ensino-aprendizagem dentro da instituição Exército. 5.1 DESCRIÇÃO DO MANUAL TÉCNICO DO INSTRUTOR, O CONCEITO DE PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM E OS FATORES QUE INFLUENCIAM NA COMUNICAÇÃO Segundo o Manual Técnico do Instrutor T 21-250 (1997, p.1-5), o processo ensinoaprendizagem é basicamente um processo de comunicação em que se destacam as atitudes do instrutor e as habilidades em se comunicar com os instruendos. 5.2 PLANO DE SESSÃO: A ESTRUTURA COMPOSICIONAL DO PLANEJAMENTO E PREPARAÇÃO DA INSTRUÇÃO 60 Segundo a mesma fonte já citada anteriormente, o T 21-250 (p. 2-6), o instrutor completa o seu trabalho de planejamento e preparação elaborando o Plano de Sessão, normalmente em duas vias. Este é o documento que exprime a decisão tomada pelo instrutor, após a análise dos fatores citados anteriormente. a) Estrutura Composicional – Um Plano de Sessão deve atender a seguinte estrutura: cabeçalho e o plano propriamente dito. (1) O cabeçalho destina-se a registrar informações sobre a matéria, o assunto, o curso, a turma ou agrupamento de instruendos, o local, a data, o horário, a(s) técnica(s), o(s) meio(s) auxiliar(es), o(s) instrutor(es), monitor(es) e/ou auxiliar(es), as fontes de consulta, as medidas administrativas e as de segurança. (2) O plano propriamente dito contém sequência da sessão, incluindo os itens de introdução, desenvolvimento e conclusão, indicando o tempo destinado a cada item ou a cada ideia, bem como o acionamento dos meios auxiliares. (2ª) Geralmente o item introdução é reservado para fazer a ligação com a sessão anterior ou com o curso ou matéria como um todo, apresentar os objetivos da sessão (e os objetivos intermediários, quando existirem), indicar como os objetivos serão alcançados, apresentar o roteiro, caracterizar a importância do assunto da sessão e despertar e/ou aumentar o interesse do lassifica, atuando positivamente em sua motivação; (2b) O item desenvolvimento é onde o instrutor redige, de forma analítica, o texto que corresponde às palavras que dirá ao longo da sessão na exposição de cada ideia, podendo conter exemplos, observações ou citações; indica, também, a aplicação em que são indicados os exercícios ou tarefas que o lassifica deve desenvolver após a apresentação; (2c) No item conclusão é feita uma síntese das principais ideias abordadas na sessão, além de informar sobre: - a avaliação, em que são identificados os processos para a avaliação imediata da consecução dos objetivos; - a retificação da aprendizagem, em que podem ser sugeridas outras técnicas de instrução para suprir as dificuldades dos instruendos; - o encerramento, em que o instrutor, após responder as eventuais dúvidas dos instruendos, encerra a sessão ou aula; 61 - as críticas ou sugestões, em que são registradas todas as ocorrências significativas que se apresentaram durante a sessão, indicando-se os pontos positivos e os negativos, além das sugestões que poderão servir de subsídios para outros instrutores. (3) O plano deve ficar disponível ao instrutor no próprio local da sessão ou aula, podendo ficar uma cópia à disposição da direção da instrução ou de ensino. No item desenvolvimento, o instrutor pode preparar outras formas de registro das ideias e do desenrolar da sessão ou aula, tais como fichas. (4) O instrutor não deve ler o plano de sessão, mas apresentar as ideias nele contidas em função do preparo intelectual que realizou previamente. Pelo que é possível constatar nos gêneros discursivos militares, depara-se, o tempo todo, com ordens, regras, instruções, regulamentos, anúncios publicitários e outros tipos de textos que interferem ou tentam interferir no comportamento do outro. Às vezes, o militar é alvo desses textos; outras vezes, assume o papel daquele que quer interferir, ordenar, ditar as regras. As mensagens desse tipo de texto geralmente se organizam na forma de apelo, de ordem, de súplica ou mesmo de chamada à realidade, despertando nossa consciência. São, em geral, textos muito bem trabalhados, pois têm de “envolver” o destinatário. Ao analisarmos na organização linguística desses textos (vocabulário, sintaxe, tempos e modos verbais, por exemplo), será percebida uma predominância da sequência do tipo injuntiva-instrucional. Conforme Castilho (2012) injuntivo é sinônimo de “obrigatório”, “imperativo”. No campo dos estudos linguísticos, modo injuntivo é o mesmo que modo imperativo. Instrucional, por sua vez, remete-nos à instrução, ao ensino; são textos instrucionais, por exemplo, os manuais de aparelhos, informações de montagem, regulamentos, regras de jogos, receitas culinárias. Gramaticalmente, os textos injuntivos-instrucionais se caracterizam pelo emprego de verbos no imperativo, pronomes na segunda pessoa e uso de vocativos. Tais termos acessórios da oração (vocativo) além das características de verbos e pronomes já citados são percebidos, implicitamente, em todas as ordens emanadas de forma imperativa nos movimentos de Ordem Unida. Esse termo Ordem Unida é tratado em um manual específico ( C 22-5) cuja finalidade é estabelecer normas que padronizem a execução dos exercícios de Ordem Unida, tendo em vista os objetivos deste ramo da instrução militar. 62 5.2.1 O tema no gênero discursivo Manual Conforme exposto acerca do elemento “tema” do gênero discursivo, vimos que se trata da organização do conteúdo, ou seja, o modo de ver e construir os fatos da natureza e dos campos ideológicos. Por esse termo entende-se a atividade de instrução militar ligada, indissoluvelmente, à prática da chefia e à criação de reflexos da disciplina. Os exercícios do Manual de Ordem Unida constituem um dos meios mais eficientes para se alcançar aquilo que, em suma, consubstancia o exercício da chefia: a interação necessária entre o chefe e os comandados. Além do mais, a Ordem Unida é a forma mais elementar de iniciação do militar na prática da chefia. É comandando, na Ordem Unida, que se revelam e se desenvolvem as qualidades do chefe. Ao experimentar a sensação de ter um grupo de homens deslocando-se ao seu comando, o principiante na arte de chefia desenvolve a sua autoconfiança, ao mesmo tempo em que adquire consciência de sua responsabilidade sobre aqueles que atendem aos seus comandos, observadores mais próximos das aptidões que demonstra. Os exercícios de Ordem Unida despertam no chefe o apreço às ações bem executadas e ao exame dos pormenores. Propiciam-lhe, ainda, o desenvolvimento da sua capacidade de observar e de estimular a tropa. Através da Ordem Unida, a tropa evidencia, claramente, os quatro índices de eficiência: (1) Moral – pela determinação em atender aos comandos, apesar da necessidade de esforço físico. (2) Disciplina – pela presteza e atenção com que obedece aos comandos. (3) Espírito-de-corpo – pela boa apresentação coletiva e pela uniformidade na prática de exercícios que exigem execução coletiva. (4) Proficiência – pela exatidão nas execuções. A Ordem Unida não tem somente por finalidade fazer com que a tropa se apresente em público com aspecto marcial e enérgico, despertando entusiasmo e civismo nos espectadores, mas, principalmente, a de constituir uma verdadeira escola de disciplina e coesão. A disciplina é a força principal dos exércitos. A disciplina, no sentido militar, é o predomínio da ordem e da obediência, resultante de uma educação apropriada. A disciplinar militar é, pois, a obediência pronta, inteligente, espontânea e entusiástica às ordens do 63 superior. Sua base é a subordinação voluntária do indivíduo ao bem-estar do grupo. É a força aglutinadora que une os membros de uma unidade; que perdura até mesmo depois que o superior haja tombado ou que todo o vestígio da autoridade haja desaparecido; é o espírito da unidade militar. O objetivo unido da instrução militar é a eficácia no combate. No combate moderno, somente tropas bem disciplinadoras, exercendo um esforço coletivo e combinado, podem vencer. Sem disciplina, uma unidade é incapaz de um esforço organizado e duradouro. Quando ela existe, evidencia-se a verdadeira camaradagem, que permite ao indivíduo esquecer a si próprio e atuar unicamente pelo interesse do grupo ou da coletividade militar a que pertence. Exercícios que exijam exatidão e coordenação mental e física ajudam a desenvolver a disciplina. Para desenvolver no soldado a disciplina, é de grande vantagem a prática dos exercícios de Ordem Unida. Estes exercícios criam reflexos de obediência e estimulam os sentimentos de vigor da corporação de tal modo que toda a unidade se impulsiona, conjuntamente, como se fosse um só homem. A Ordem Unida caracteriza uma disposição individual e consciente, altamente motivada para a obtenção de determinados padrões coletivos de uniformidade, de sincronização e de garbo militar; deve ser considerada por todos os participantes – instrutores e instruendos, comandantes e executantes – como um significativo e veemente esforço para demonstrar a própria disciplina militar, isto é, a situação de ordem e obediência que se estabelece voluntariamente entre militares, como decorrência da convicção de cada um da necessidade de eficiência na guerra. 5.2.2 O estilo no gênero discursivo Manual Conforme já visto, o estilo do gênero refere-se ao modo como o tema será tratado, ou seja, as marcas de formalidade, expressividade e avaliação do autor do texto. A seguir serão apresentados alguns comandos previstos no Manual C 22-5 (2000) que ilustram as características linguísticas do gênero militar, tais como: presença de vocativos (muitas vezes de uso implícito), formas verbais imperativas, cuja execução não prevê contraordem ou desuniformização na execução. Segundo o referido Manual (p. 1-6), a Ordem Unida é transmitida a sua tropa empregando: 64 a) Vozes de comando: são a maneira padronizada, pela qual o comandante de uma fração exprime verbalmente a sua vontade. A voz constitui o meio de comando mais empregado na Ordem Unida. Deverá ser usada, sempre que possível, pois permite execução simultânea e imediata. (1) Voz de advertência – é um alerta que se dá à tropa, prevenindo-a para o comando que será enunciado. Exemplos “PRIMEIRO PELOTÃO!” ou “ESCOLA!” ou “ESQUADRÃO!”. A voz de advertência pode ser omitida, quando se enuncia uma sequência de comandos. Exemplo: “PRIMEIRA COMPANHIA! – SENTIDO! – OMBRO-ARMA! – APRESENTAR- ARMA! – OLHAR À DIREITA! – OLHAR FRENTE!”.Não há, portanto, necessidade de repetir a voz de advertência antes de cada comando. b) Comando propriamente dito: tem por finalidade indicar o movimento ser realizado pelos executantes. Exemplos: “DIREITA!”, “ORDINÁRIO!”, “PELA ESQUERDA!”, “ACELERADO!”, “CINCO PASSOS EM FRENTE!”. Às vezes, o comando propriamente dito impõe a realização de certos movimentos, que devem ser executados pelos homens antes da voz de execução. Exemplo: (tropa armada, na posição de “Sentido”): “ESCOLA! DIREITA! (Os homens terão de fazer o movimento de “Arma Suspensa”), VOLVER!”. A palavra “DIREITA”, que é um comando propriamente dito, comporta-se, neste caso, como uma voz de execução, para o movimento de “Arma Suspensa”. Torna-se, então, necessário que o comandante enuncie estes comandos de maneira enérgica, definindo com exatidão o momento do movimento preparatório e dando aos homens o tempo suficiente para realizarem este movimento, ficando em condições de receberem a voz de execução. É igualmente necessário que haja um intervalo entre o comando propriamente dito e a voz de execução, quando os comandantes subordinados tiverem que emitir vozes complementares. O comando propriamente dito, em princípio, deve ser longo. O Comandante deve esforçar-se por pronunciar correta e integralmente todas as palavras que compõem o comando. Tal esforço, porém, não deve ser levado ao extremo de prejudicar a energia com que o mesmo deve ser enunciado, porque isto comprometerá a uniformidade de execução pela tropa. Este cuidado é particularmente importante em comandos propriamente ditos que correspondem à execução de movimentos preparatórios, como foi mostrado acima. 65 c) Voz de execução: tem por finalidade determinar o exato momento em que o movimento deve começar ou cessar. A voz de execução deve ser curta, viva, enérgica e segura. Tem de ser mais breve que o comando propriamente dito e mais incisiva. Quando a voz de execução for constituída por uma palavra oxítona (que tem a tônica na última sílaba), é aconselhável um certo alongamento na enunciação da(s) sílaba(s) inicial (ais), seguindo de uma enérgica emissão da sílaba final. Exemplos: “PER-FI-LAR!” – “COBRIR!” – “VOL-VER!” – “DES-CAN-SAR!”. Quando, porém, a tônica da voz de execução cair na penúltima sílaba, é imprescindível destacar esta tonicidade com precisão. Nestes casos, a(s) sílaba(s) final (ais) praticamente não se pronuncia(m). Exemplos: “MAR-CHE!”, “AL-TO!”, “EM FREN-TE!”, “OR-DI-NÁRIO!”, “AR-MA!”, “PAS-SO!”. As vozes de comando devem ser claras, enérgicas, e de intensidade proporcional ao efetivo dos executantes. Uma voz de comando emitida com indiferença só poderá ter como resultado uma execução displicente. O comandante deverá emitir as vozes de comando na posição de “Sentido”, com a frente voltada para a tropa, de um local em que possa ser ouvido e visto por todos os homens. Observa-se que o manual prescreve não só uma linguagem com elementos imperativos, como também a postura do chefe ou comandante é recomendada que seja de forma imperativa, inclusive prevendo a emissão de determinadas sílabas de algumas palavras, que fazem parte do comando, entoadas de maneira mais enérgica e forte. Outros exemplos de comando de Ordem Unida contendo elementos linguísticos característicos do gênero militar: “Sentido!” (com vocativo implícito); “Cobrir!”; “Ordinário – Marche!”; “Acelerado”, entre outros. Verifica-se, também, outro traço linguístico característico do gênero discursivo militar – o ponto de exclamação utilizado nos comandos para a tropa – que segundo Cegalla (2010), é utilizado para exprimir, entre outras coisas, uma ordem. Segundo Castilho (2012) os verbos têm diversas classificações, dentre elas pode-se destacar os verbos “apresentacionais”, aqueles que servem para introduzir um assunto num texto, tais como: ser, ter haver, existir. Observamos que para atingirem determinados níveis propostos para uma instrução militar, os verbos mais adequados e apresentados no Manual do Instrutor T 21-250 são os que podem ser classificados, então, como “apresentacionais”. Uma outra análise que merece ser feita com relação aos verbos utilizados no discurso típico do gênero militar é com relação a sua transitividade. Reparamos que, na sua maioria, são verbos 66 transitivos diretos e monotransitivos, ou seja, verbos que não exigem preposição para o estabelecimento de relação de regência. Nos planos de sessão (conhecidos como “planos de aula” no meio civil), há a imposição de verbos próprios a serem utilizados na formulação de objetivos. 5.2.2.1 Tipologias semânticas: o estilo característico do gênero discursivo Manual Há uma tipologia semântica do verbo na Língua Portuguesa, segundo Garcia (2008), que caracteriza o gênero discursivo militar, apresentando verbos típicos das documentações produzidas nesta esfera, como os verbos relacionais. Verbos Relacionais: são aqueles que estabelecem uma relação entre os elementos que compõem seus domínios, ou entre eles e a realidade. Podemos lassifica-los de acordo com o tipo de redação que expressam em: a) Verbos partitivos: são aqueles que estabelecem uma relação parte-todo entre os elementos do seu domínio, de maneira que um elemento é visto como parte do outro. Como as relações parte-todo são, normalmente, estativas, os verbos partitivos também o são, a não ser que se considere que a relação é controlada por uma entidade, caso em que o verbo será não mais relacional, mas ativo. Os verbos partitivos podem flexionar a voz passiva, se seu domínio contiver (ou pressupor) um elemento no caso factivo. Exemplo: Durante a instrução de Guarda ao Quartel, o primeiro objetivo de instrução para o soldado recém incorporado é compreender o funcionamento da Guarda da sua OM. Quadro 3: Verbos partitivos Os verbos partitivos do português são: compor, formar, constituir; participar; consistir, constar; compreender, incluir; implicar, completar, complementar, dividir-se, partir-se, comportar, conter, etc. Fonte: Garcia, 2008. b) Verbos afetivos: constituem a segunda classe mais numerosa de verbos do português. Nós os chamaremos aqui por este nome por duas razões: primeiro, por eles conterem sempre, em seu domínio, um elemento que é de alguma maneira, afetado por outro ou pela situação descrita pelo verbo; segundo, porque a maioria deles descreve um afeto (uma 67 sensação, uma emoção, um estado de alma, um juízo, etc.). Os verbos afetivos caracterizamse por conter sempre um elemento no caso dativo (caracteristicamente, um ser vivo) e por admitirem complementação oracional. Exemplo: Em uma das primeiras instruções do soldado recém incorporado é reconhecer os oficiais de sua OM e funções. Quadro 4: Verbos afetivos Os verbos afetivos se dividem em: a) sensitivos (ou sensoriais) – ver, divisar, olhar, perceber, mostrar, apresentar, desvelar, denotar, expressar, aparecer, sumir, esconder, parecer, fingir, ouvir, soar; cheirar saber (de paladar); provar, sentir, etc. b) cognitivos – saber, reconhecer, entender, inferir, aprender, ensinar, decorar, explicar, exprimir, ler, decifrar, ignorar, lembrar, esquecer, pensar, supor, sonhar, intuir, enganar, ponderar, etc. c) volitivos – querer, ambicionar, pretender, decidir, determinar, esperar, temer, ameaçar; desesperar, animar, hesitar, visar, etc. d) emotivos – gostar, agradar, desgostar, detestar, aborrecer, irritar, suportar, condescender, resistir, amar, respeitar, preferir, atrair, maravilhar, interessar, sentir, sofrer, afetar, excitar, divertir, aliviar, atenuar, torturar, angustiar, magoar, ofender, envergonhar,celebrar, importar, repudiar, antipatizar, simpatizar, surpreender,confundir, desapontar, humilhar, etc. Fonte: Garcia, 2008. c) Verbos comunicativos: têm as mesmas características que os verbos afetivos, com uma única exceção de conterem sempre em seu domínio um elemento que designa o texto. Assim sendo, podemos definir os verbos comunicativos como aqueles que pressupõem um elemento no caso dativo, admitem voz passiva e, não só admitem como, na maioria das vezes, requerem complementação oracional (melhor seria dizer textual). 68 Quadro 5: Verbos comunicativos Os verbos comunicativos do português são: dizer, referir, mencionar, sugerir, insinuar, calar, emudecer, declarar, argumentar, segredar, fofocar, tagarelar, frisar, conversar, perguntar, responder, negar, recusar, confirmar, consentir, criticar, elogiar, insultar, praguejar, reclamar, cumprimentar, cortejar, lamentar, ordenar, pedir, aconselhar, avisar, comunicar, escrever, manifestar, declamar, acusar, denunciar, ler, alegar, explicar, ditar, predizer, mentir, proibir, permitir, discutir, oferecer, prometer; repetir, ameaçar, consentir, persuadir, etc. Fonte: Garcia, 2008. d) Verbos comparativos: são aqueles que estabelecem uma relação de comparação entre duas (ou mais) entidades, podendo ser, indistintamente, relacionais ou ativos. Mesmo quando funcionando como verbos relacionais, os verbos comparativos flexionam a voz passiva, já que pressupõem um elemento no caso objetivo. Quadro 6: Verbos comparativos Os verbos comparativos do português são: igualar parecer, comparar-se, diferir, opor-se, exceder, preponderar, inferiozar(-se), etc.. Fonte: Garcia, 2008. e) Verbos operativos: o termo operativo está sendo usado aqui num sentido diverso daquele em que é empregado por Halliday apud Garcia (2004), o qual chama de operativas as sentenças que exprimem uma ação dirigida (verbo transitivo) em que o sujeito é autor (voz ativa). Neste trabalho, chamaremos de verbos operativos aqueles verbos em que expressam a maneira como se dá uma determinada situação, a qual é especificada não pelo verbo, mas por um elemento do seu domínio (ou pelo contexto). Exemplo: Praticar uma sessão de Treinamento Físico Militar com a tropa. 69 Quadro 7: Verbos operativos Podemos dividir os verbos operativos do português em: a) b) c) d) e) simples – fazer, praticar, cometer, exercer, exercitar; cumprir acontecer, começar, repetir, parar, deixar de; encerrar, completar, agir, etc. conativos – tentar, buscar, dedicar-se a, conseguir, ensaiar, preparar(-se), persistir, falhar, etc. cooperativos – ajudar, transtornar, facilitar, dificultar, etc. instrumentais – usar, operar, preparar, aprontar, adequar para, destinar a, etc. transoperativos – fazer,permitir, impedir, embaraçar, mandar, pedir, isentar, liderar, governar, obedecer, cumprir, etc. Fonte: Garcia, 2008. d) Verbos factivos: são aqueles que relacionam um agente/causa a um produto/efeito. Por compreenderem um elemento no caso factivo, tais verbos normalmente admitem a voz passiva. Exemplo: Produzir uma nota para o Boletim Interno. Quadro 8: Verbos factivos Os verbos factivos do português são: fazer, produzir; fabricar, preparar, construir, criar, inventar, formar, compor, fundar, etc. Fonte: Garcia, 2008. g) Verbos efetivos-relacionais: são aqueles em que um elemento nos casos agentivo ou instrumental determina a relação existente entre dois outros elementos. Por pressuporem um elemento no caso objetivo, os verbos efetivos-relacionais normalmente admitem a voz passiva. Exemplo: Em uma situação de combate, o comandante ordena, “pelotão, atacar!” 70 Quadro 9: Efetivos-relacionais Os verbos efetivos-relacionais do português podem ser divididos em: a) colocativos ou apositivos – pôr, apoiar, meter, encher, cobrir, inclinar, ajustar, interpor, surpreender, descer, alternar, revezar, etc. b) conjuntivos u associativos – juntar, combinar, adicionar, ajuntar, aliar, casar, ligar, ajustar, misturar, partilhar, completar, acompanhar, achar, tocar, bater, atingir, procurar, prender, etc. c) disjuntivos ou dissociativos – separar, desprender, tirar, partir, arrancar, afastar, evitar, etc. d) adversativos – atacar, brigar, campear; enfrentar, vencer, rechaçar, vingar, castigar, perder; desafiar, surrar, trair, render-se, etc. Fonte: Garcia, 2008. 5.2.2.2 Os verbos usados no gênero discursivo Manual do Instrutor T21-250 Segundo o Manual Técnico do Instrutor T21-250 (1997, p.2-7) para atingir um nível de conhecimento dos assuntos propostos durante a instrução são impostos os seguintes verbos: definir, designar, denominar, descrever, identificar, rotular, nomear, listar, igualar, esboçar, reproduzir, declarar, indicar, conceituar, classificar, relacionar, consultar, repetir, apontar, registrar, marcar, relatar, sublinhar, enumerar, acessar informações, investigar, pesquisar. Para atingir um nível de compreensão dos assuntos propostos durante a instrução são impostos os seguintes verbos: converter, justificar, distinguir, estimar, explicar, extrapolar, generalizar, exemplificar, inferir, parafrasear, predizer, debater, sumariar, traduzir, reafirmar, expressar, localizar, revisar, narrar, conceituar. Para atingir um nível de aplicação dos assuntos propostos durante a instrução são impostos os seguintes verbos: experimentar, converter, modificar, calcular, demonstrar, descobrir, manipular, operar, predizer, preparar, produzir, relacionar, mostrar, resolver, usar, construir, aplicar, empregar, dramatizar, praticar, ilustrar, inventariar, esboçar, traçar, editar, montar, desmontar, dissertar, propor, implantar, reinventar. Para atingir um nível de análise dos assuntos propostos durante a instrução são impostos os seguintes verbos: decompor, diagramar, diferenciar, discriminar, distinguir, 71 ilustrar, inferir, esboçar, assimilar, relacionar, selecionar, separar, subdividir, analisar, provar, comparar, criticar, investigar, debater, examinar, categorizar, classificar. Para atingir um nível de síntese dos assuntos propostos durante a instrução são impostos os seguintes verbos: categorizar, combinar, compilar, compor, criar, imaginar, planejar, produzir, modificar, organizar, projetar, reconstruir, relacionar, reorganizar, revisar, rescrever, sumariar, narrar, escrever, esquematizar, propor, formular, coordenar, conjugar, reunir, construir, resumir, explicar. Para atingir um nível de avaliação dos assuntos propostos durante a instrução são impostos os seguintes verbos: comparar, concluir, contratar, criticar, discriminar, justificar, julgar, avaliar, validar, selecionar, valorizar, estimar, medir, interpretar. É possível perceber que na categoria de verbos que visam a atingir um nível de aplicação dos assuntos propostos durante a instrução, são selecionados verbos do tipo factivos, os quais já foram conceituados anteriormente. 72 6 ANÁLISE DO GÊNERO DISCURSIVO MANUAL E DE SEUS ELEMENTOS CONSTITUINTES Em um primeiro momento, foi feito um estudo de pesquisa bibliográfica com relação às teorias que seriam utilizadas na dissertação, quais sejam: gênero discursivo, discurso autoritário e interação verbal. Em um segundo momento foi feito um exame documental disponível nas OM de ensino no que diz respeito às técnicas discursivas de instrução. Na área da Linguística, uma busca bibliográfica a respeito de conteúdos voltados à tipologia discursiva e gêneros discursivos. A estratégia de pesquisa utilizada, que envolve os procedimentos operacionais que servem de medição prática para a sua realização, consistiu na experiência do autor deste trabalho com o sistema militar de instrução e na busca bibliográfica sobre assuntos relativos à Instituição, bem como no exame documental disponível nas Organizações Militares de Ensino. Os critérios de seleção para a escolha dos referidos manuais se dão pelo fato de serem ao manuais militares mais ligados à área pedagógica, isto é, à área de ensino aprendizagem. A abordagem de pesquisa foi qualitativa, com caráter interdisciplinar porque articula a área da Linguística com a área do Sistema Militar do Ensino. Quanto à natureza das fontes, a pesquisa restringe-se ao exame bibliográfico e documental. Os métodos de abordagem são constituídos de procedimentos gerais, que norteiam o desenvolvimento das etapas fundamentais de uma pesquisa científica. No caso desta dissertação, utilizou-se o método dedutivo, que parte do geral e desce ao particular. Em um terceiro momento, optou-se por caracterizar os elementos próprios (tema, composição e estilo) dos gêneros discursivos militares, presentes nos Manuais Técnico do Instrutor, no Manual C 22-5, na IG 10-42 e na comunicação no processo ensino– aprendizagem que embasarão a conclusão do presente estudo. 73 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao concluir esta dissertação, é possível ver as características do discurso do gênero militar, discurso direto, claro, objetivo, com quase nenhuma abordagem que gere algum tipo polêmico ou sentido dúbio em qualquer afirmativa realizada ao longo de uma instrução, a qual possa gerar por parte do instruendo uma atitude contrária à prevista pelo instrutor. Iniciou-se este trabalho discorrendo sobre os conceitos básicos da Linguística mais pertinentes ao conteúdo da dissertação, a saber: linguagem, significação, tema, signo linguístico, significante, significado, discurso língua, fala, persuasão, enunciado, ideologia, dialogismo, entre outros termos. No capítulo 3 foi abordado o conceito de discurso e a sua tipologia, assunto de suma importância para atingir o objetivo proposto nesta dissertação. No capítulo 4 desta dissertação, foram citados diversos documentos típicos do gênero discursivo militar, expedidos no interior do aquartelamento. Face à extensão da quantidade de tipos de documentações previstas que circulam pela caserna, foi imperioso destacar um modelo, dentre tantos. Obviamente, por tratar-se de um trabalho acadêmico de Pós-Graduação em uma instituição de Ensino Superior Civil, mais especificadamente em uma área que anda lado a lado com o Sistema de Educação, por tratar-se de uma das áreas de Letras – julgou-se coerente restringir este estudo a um documento (dentre tantos) típico do gênero discursivo militar, que tivesse alguma relação com a proposta pedagógica do Programa Strictu Sensu, escolhido pelo autor desta dissertação. Entretanto, cabe ressaltar que as características discursivas apresentadas como presentes nos Manuais e Regulamentos do Exército Brasileiro são praticamente as mesmas em todos os outros documentos gerados pela Instituição Exército, seguindo uma estrutura, um estilo e um tipo de discurso muito próximo à escolhida como modelo neste trabalho. Isso favorece a padronização e uniformização das instruções no âmbito da Força, o que reforça dois atributos do militar que andam lado a lado com a Hierarquia e a Disciplina (pilares básicos do Exército Brasileiro) – a padronização e a uniformidade de uniformes, falas, discurso e procedimentos em geral. Os elementos característicos dos gêneros – composição, estilo e tema – bem como a análise de exemplos linguísticos pertinentes foram trabalhados no quinto capítulo. 74 Desta forma, pela análise linguística podê-se concluir de que a tipologia discursiva predominante no gênero discursivo militar é a autoritária, conforme Orlandi (1987) e Citelli (2007), em que há a imposição de determinados procedimentos, linguagens e técnicas de instrução, não deixando margem a questionamentos, ponderações e duplicidade de ideias por parte dos discentes em questão. Os verbos mais privilegiados foram os verbos comunicativos, partitivos, operativos, pois são aqueles que são didaticamente mais fáceis e indicados para serem utilizados em instruções militares, as quais devem ser eminentemente práticas, voltadas para o desempenho (imposição da escola superior do Exército). Esperamos, com esta pesquisa, ter contribuído para a análise de uma esfera ainda não tão explorada no meio acadêmico, na área das Letras, que é a esfera militar, com suas características próprias, seus modelos e seu estilo peculiar. Espera-se, também, que possa ser possível despertar o interesse de outros pesquisadores, para que se produzam novas indagações e novos resultados. 75 REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. São Paulo: Difusão Europeia do livro, 1964. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12 ed. São Paulo: Hucitec, 2006. BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. BAZERMAN, Charles. Gêneros textuais, tipificação e interação. São Paulo: Cortez, 2005. BAZERMAN, Charles. Escrita, gênero e interação social. São Paulo: Cortez, 2007. BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. 4 ed. Campinas: Pontes, 1995. cap. 20 e 21. BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. 4 ed. Campinas: Pontes, 1995. caps. 4 e 5. BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. São Paulo: Unicamp, 1997. BRAIT, Beth. As vozes bakthianas e o diálogo inconcluso. In: BARROS & FIORIN (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1994. BRASIL. Casa Civil. Decreto nº 98.820. Regulamento de Administração do Exército (RAE) (R-3). Brasília, 1990. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D98820.htm>. Acesso em 3 de agosto de 2012. CASTILHO, Ataliba T. de; ELIAS, Vanda Maria. Pequena Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2012. CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa. 46 ed. São Paulo: Nacional, 2010 CITELLE, Adilson. Linguagem e Persuasão. 16 ed. São Paulo: Ática, 2007. DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário das ciências da linguagem. 6 ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982. EXÉRCITO BRASILEIRO. Manual Técnico do Instrutor – T21-250.3 ed. Brasília, 1997. Disponível em <https://doutrina.ensino.eb.br/Manuais/T%2021-250.pdf>. Acesso em 3 de agosto de 2012. 76 ______. Manual 22-5 de Ordem Unida.3 ed. Brasília, 2000. Disponível em <http://pt.scribd.com/doc/6572065/Ordem-Unida-Exercito-Brasileiro>. Acesso em 3 de agosto de 2012. ______.Vade-Mécum de Cerimonial Militar do Exército.1 ed. Brasília, 2000. Disponível em <http://www.sgex.eb.mil.br/vade_mecum/guarda_de_honra/vade_mecum.htm>. Acesso em 3 de agosto de 2012. ______. Instruções gerais para a correspondência, as publicações e os atos administrativos no âmbito do exército. Instrução geral 10-42. Boletim do exército. Nº 8, Brasília, 2002. ______.Regulamento disciplinar do exército – RDE. Brasília, 2002. Disponível em http://www.coter.eb.mil.br/igpm/images/documentos/Missao_de_paz/R4.pdf. Acesso em 3 de agosto de 2012. ______.Regulamento Interno e dos Serviços Gerais – R-1 (RISG). Brasília, 2012. Disponível em< http://pt.scribd.com/doc/34466481/RISG>. Acesso em 3 de agosto de 2012. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Edições Criar, 2003. FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. de et al (orgs.). Diálogos com Bakhtin. 3 ed. Curitiba: Ed. da UFPR, 2001. FIORIN, J. L. Os gêneros discursivos. In: Introdução ao pensamento de Bakthin. São Paulo: Ática, 2006. p.60-76 FUZER, Cristiane. Linguagem e representação nos autos de um processo penal: como operadores do direito representam atores sociais em um sistema de gêneros. 2008. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal deSanta Maria, Santa Maria, 2008. GARCIA, A. S. . Uma tipologia semântica do verbo no português. Almanaque CIFEFIL, v. 1, 2008. GRILLO, S. V. C. A noção de 'tema do gênero' na obra do Círculo de Bakhtin. Estudos Lingüísticos. São Paulo, v. 1, p. 1825-1834, 2006. GOUVEIA, Carlos A. M. O amansar das tropas: Linguagem, ideologia e mudança social na instituição militar. 1997. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade de Lisboa, Lisboa,1997. GRUPO DE ESTUDOS DOS GÊNEROS DO DISCURSO. Palavras e Contrapalavras. Glossariando Conceitos, Categorias e Noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009. Cadernos de Estudos I, para iniciantes. KOCH, Ingedore G. Villaça. Linguística aplicada ao ensino do português. Porto Alegre: Mercado Alegre, 1987. 77 LALANDE, André. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. 6° ed. France: Sixième édition, 1951. p. 237-238. LAUSBERG, Heinrich. Manual de Retórica Literária. Madrid: Editorial Gredos, 1966. MACHADO, Irene. Gêneros discursivos. In: BRAIT, Beth (org). Bakthin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. MÓISES, Massaud. Dicionário de termos literários. 10 ed. São Paulo: Cultrix, 2001. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999. ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento. As formas do discurso.2 ed. Campinas: Pontes, 1987. PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Contexto, 2008. POSSENTI, Sírio. Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas. In: MUSSALIM. F. BENTES, A. C. Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos. Vol. 3. São Paulo: Cortez, 2004. p. 353-392. SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 2008. SEMINÁRIO IMAGENS DA PERIFERIA NA LITERATURA E NO CINEMA, 2011, Centro Universitário Uniritter. Falcão, meninos do tráfico e notícias de uma guerra particular: a representação da periferia urbana brasileira. Porto Alegre: Uniritter, 2011. SILVA, Denize Elena Garcia da; VIEIRA, Josênia Antunes (orgs.). Análise do discurso. 2 ed. Brasília: Plano, 2002. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Alguns gêneros militares. In: SILEL, 2011, Uberlândia. Anais. Uberlândia, 2011. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Das relações possíveis entre tipos na composição de gêneros. In: 4º Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais. Anais. Uberlândia, 2007. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Esferas de ação social e comunidades discursivas: conceitos superpostos, mas distintos. Trabalho apresentado no 13º Congresso Brasileiro de Língua Portuguesa e 4º Congresso Internacional de Lusofonia, PUC-SP, 2010. VAN DIJK, Teun. Semântica do discurso e ideologia. Lisboa: Editorial Caminho, 1997 78 OBRAS CONSULTADAS BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 2 ed. Campinas: Unicamp, 2004. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1965. MACHADO, Arlindo. O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo: Paulos, 2007. NASCIMENTO, Erica Peçanha do. Vozes marginais na literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. OLIVEIRA, Nelson (org.). Cenas da favela. Rio de Janeiro: Geração Editorial, 2007. VAZ, Sérgio. Colecionador de pedras. São Paulo: Global, 2007. VAZ, Sérgio. Cooperifa: antropofagia periférica. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979. 79 ANEXO A