revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX Entrevista Professor Lenio Luiz Streck O Marcos Bergamasco entrevistado desta edição é o professor, escritor e procurador de justiça do Rio Grande do Sul, Lenio Luiz Streck. É mestre e doutor em Direito pela UFSC e pós-doutor pela Universidade de Lisboa. Além de professor titular dos cursos de mestrado e doutorado em Direito da Unisinos é colaborador da Unesa-RJ, de Roma-Tre (Scuola Dottorale Tulio Scarelli), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Com alta produção acadêmica, o entrevistado é autor de inúmeros artigos e livros e palestrante habitual em eventos nacionais e internacionais. Com estudos voltados para o Direito Constitucional, Hermenêutica Jurídica e Filosofia do Direito, nessa entrevista ele esclarece seu ponto de vista acerca do papel do Judiciário brasileiro e aborda de maneira clara, crítica e objetiva questões relevantes como ensino jurídico, garantias e reformas processuais e teoria do direito. REVISTA DO TCE — V. Sa. pensa que a utilização da hermenêutica filosófica é a forma mais adequada de compreender o direito em uma perspectiva pós-positivista? Quais os contornos da hermenêutica filosófica? V. Sa. acredita na tese da existência de uma “resposta correta”? Como a hermenêutica filosófica se insere nesse contexto? PROFESSOR LENIO STRECK — Primeiro, é necessário entender o que é pós-positivismo. Da minha perspectiva, positivismo não é simplesmente a superação do positivismo exegético. Esse talvez seja o grande problema de algumas correntes que se dizem neoconstitucionalistas. No fundo, não há muita diferença entre alguns pressupostos defendidos pelo neoconstitucionalismo — principalmente o neoconstitucionalismo à brasileira — e o positivismo normativista, defensor da ideia de que “interpretar a lei é um ato de vontade”. São teorias voluntaristas. Pois é exatamente contra o axiologismo e o voluntarismo que proponho a adição da hermenêutica filosófica, claro que devidamente adaptada àquilo que venho denominando de Crítica Hermenêutica do Direito. A hermenêutica filosófica é uma tese que vem de Hans-Georg 13 revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX Gadamer, que por sua vez se apoia na filosofia hermenêutica, de matriz heideggeriana. Trata-se de uma ruptura com o subjetivismo próprio da filosofia da consciência. Gadamer constrói uma hermenêutica que não é metodológica. Seu livro principal pode ser lido como “Verdade contra o Método”. Mas, atenção: o fato de ser uma hermenêutica não metodológica não quer dizer que se possa “dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”. Ao contrário. Gadamer rejeita qualquer forma de relativismo filosófico. Aliás, a hermenêutica se afasta de qualquer tentação niilista ou relativista. Pode-se dizer que a hermenêutica é conservadora. A tradição constrange a atribuição de sentidos. Mas a tradição não torna o intérprete refém. Mas toda interpretação tem DNA. O direito tem DNA. É da reconstrução da história institucional e do revolvimento do chão linguístico que sustenta a tradição que exsurgirá a resposta. Pela hermenêutica, substitui-se a subjetividade pela intersubjetividade forjada a partir de um a priori compartilhado. Na hermenêutica, não há repostas antes das perguntas. Não há conceitos sem coisas. Por isso, Gadamer vai dizer que interpretar é aplicar (applicatio). O sentido se dá na concretude. Veja: isso tudo se insere na fenomenologia hermenêutica, entendida globalmente comportando as descobertas tanto de Heidegger quanto de Gadamer. Isso também pode ser detectado nas obras de Josef Esser, Friedrich Müller, Arthur Kaufmann e Ronald Dworkin. Em todos esses autores, há a possibilidade de se pensar em um acesso hermenêutico para o Direito. Com a hermenêutica, supera-se o esquema sujeitoobjeto. No direito, isso fica mais claro quando podemos dizer que a hermenêutica é uma teoria que se coloca entre o objetivismo e o idealismo (subjetivismo). Nem o intérprete é escravo da lei (estrutura) nem ele é o “dono” dos sentidos. A tese da resposta correta que desenvolvo é a tese da resposta adequada à Constituição. Trata-se de uma imbricação das teses de Gadamer e Dworkin. Ambos são antirrelativistas. Consequentemente, a discricionariedade é uma questão que deve ser combatida. Embora Gadamer não fale em “resposta correta”, há várias indicações acerca da interpretação correta. Isso demonstro em Hermenêutica Jurídica e(m) Crise e em Verdade e Consenso. Indico cinco princípios que devem ser seguidos para que alcancemos a resposta adequada. Não é a única resposta correta nem é uma entre várias. É apenas a resposta, que exsurgirá dessa reconstrução da história institucional. Nos cinco princípios, isso aparece com mais eloquência. 14 “Com a hermenêutica, supera-se o esquema sujeitoobjeto. No direito, isso fica mais claro quando podemos dizer que a hermenêutica é uma teoria que se coloca entre o objetivismo e o idealismo (subjetivismo). Nem o intérprete é escravo da lei (estrutura) nem ele é o “dono” dos sentidos. A tese da resposta correta que desenvolvo é a tese da resposta adequada à Constituição. ” Entrevista revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX REVISTA DO TCE — É possível conciliar a hermenêutica filosófica de matriz heideggariana com a pragmática universal de Habermas na construção de uma teoria da decisão adequada ou são correntes totalmente incompatíveis? PROFESSOR LENIO STRECK — Escrevi um longo livro para discutir esse tema. Há coisas que podem ser compatibilizadas nas teses de Gadamer e de Habermas. Mas, vejam: Habermas concorda com Dworkin sobre a existência/possibilidade de se alcançar uma (única) resposta correta. O modo de alcançar é que será diferente na hermenêutica (ao menos no modo como eu trabalho nas minhas obras) e no que Habermas sustenta. Habermas não é um relativista. Habermas é um democrata da cepa. Habermas faz uma ácida crítica à tese de que os princípios são valores. Veja-se, então, a importância de Habermas. Minhas divergências se dão em outro plano. Mas, a resposta é positiva: é possível conciliar as teses para a construção de respostas adequadas à Constituição. REVISTA DO TCE — V. Sa. rechaçou a manifestação de um ministro do Superior Tribunal de Justiça que, ao julgar o AgReg no EREsp n. 279.889-AL, argumentou: “Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. [...] Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém”. O direito é o que os juízes dizem que ele é? A jurisdição é fonte do direito? PROFESSOR LENIO STRECK — O direito não é e não pode ser o que os juízes e tribunais dizem sobre ele. Se o ministro tivesse razão, poderíamos fechar as faculdades. Os cursos de pós-graduação não teriam utilidade. A doutrina ficaria sem sentido. Esse é um pensamento autoritário. A democracia se faz com compartilhamento. Os sentidos são construídos. É um absurdo pensarmos que um país dependa da vontade individual do juiz. Isso é decisionismo. Na democracia, os juízes devem ter responsabilidade política. Não me importa — e a frase agora é minha — o que os juízes pensam pessoalmente sobre política, futebol, moral, etc. Quando se discute uma questão no tribunal, não estamos perguntando a opinião pessoal do juiz (ou ministro). O que falta, nesses casos, é lermos o Kantorovitz (Os Dois Corpos do Rei). O juiz deve saber suspender os seus pré-juízos. Caso contrário, não pode ser juiz. E, atenção: dizer isso não quer dizer que os juízes estão proibidos de interpretar. Longe disso. Todos têm “O juiz deve saber suspender os seus pré-juízos. Caso contrário, não pode ser juiz. [...] dizer isso não quer dizer que os juízes estão proibidos de interpretar. [...] O que não pode acontecer é esses aspectos subjetivos se colocarem no ‘lugar da produção dos sentidos’ em uma sociedade democrática.” 15 revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX subjetividades, ideologias, etc. O que não pode acontecer é esses aspectos subjetivos se colocarem no “lugar da produção dos sentidos” em uma sociedade democrática. REVISTA DO TCE — Em sua obra O que é isto — decido conforme minha consciência?, V. Sa. insiste no necessário controle das decisões judiciais de forma a combater o solipsismo e o retorno da já superada filosofia da consciência. V. Sa. acredita na adoção de uma “Teoria da Decisão”? Como isso se daria? PROFESSOR LENIO STRECK — No Brasil, com o advento da Constituição, ocorreram demandas das mais variadas. No campo da teoria do direito, precisamos de uma nova teoria das fontes, uma nova teoria da norma, uma nova teoria da interpretação e, finalmente, uma nova teoria da decisão. Ora, na medida em que a Constituição brasileira possui um catálogo extenso de direitos sociais, que se transformam em direitos sociais-fundamentais, é inexorável que ocorra uma judicialização nesse campo da aplicação do direito. Só que, aqui, devemos fazer uma diferença entre judicialização, que é um problema de competência (ou incompetência) dos Poderes, e o ativismo, que é um problema de comportamento dos juízes. No Brasil, é possível constatar que o ativismo se transformou em uma vulgada judicialização. E isso deve ser combatido. As decisões não podem ser frutos do solipsismo (apreciação individual-subjetivista) do julgador. Ele não pode se substituir àquilo que chamamos de produção democrática do direito. É nesse espaço que precisamos de uma teoria da decisão. “No Brasil, é possível constatar que o ativismo se transformou em uma vulgada judicialização. E isso deve ser combatido. As decisões não podem ser frutos do solipsismo (apreciação individualsubjetivista) do REVISTA DO TCE — Para V. Sa, qual é a linha que separa a julgador.” judicialização de políticas públicas e o ativismo judicial? PROFESSOR LENIO STRECK — Exatamente na parte em que a aplicação do direito, no que diz respeito aos direitos fundamentais, torna-se o produto dos juízos pessoais da pessoa do julgador. Com isso, tem-se uma aplicação ad hoc. Ora, quando se tomam atitudes pragmaticistas, resolvem-se problemas, mas criam-se centenas de outros. No Brasil, temos uma tardia jurisprudência dos valores. E disso surge o ativismo. Quando falamos em judicialização e ativismo, temos que saltar para outra questão: é possível controlar judicialmente políticas públicas? A resposta é sim, mas no sentido da garantia do princípio da igualdade como equal concern and respect, como diz Dworkin. Como dizem os meus amigos J.J. Gomes Canotilho e Marcelo Cattoni, o problema não é o quê do controle mas o como: se com base em argumentos 16 outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX de políticas ou de princípios. E essa não é uma discussão meramente semântica, nem nominalista. REVISTA DO TCE — Considerando a extensão de direitos assegurados pela Constituição Federal, como V. Sa. avalia a questão da união homoafetiva diante da recente manifestação do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da matéria? Entrevista revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais PROFESSOR LENIO STRECK — Se eu fizesse um raciocínio teleológico, poderia responder que a decisão foi boa. Ocorre que não é possível concordar com os fundamentos da decisão. Ela é um caleidoscópio de opiniões pessoais. Penso que a decisão ingressou naquilo que venho denominando de panprincipiologismo, que, em verdade, é um subproduto dessa tardia jurisprudência dos valores à brasileira. Depois dessa decisão, o STF está legitimado entre aspas a fazer qualquer “alteração” semântica na Constituição. E isso é um problema para a “Panprincipiologismo democracia. é essa fábrica de princípios. [...] REVISTA DO TCE — O que V. Sa. entende por panprincipiologismo? É um retorno a É possível falar também em panjurisprudencialismo? PROFESSOR LENIO STRECK — Sim, é possível. Panprincipiologismo é essa fábrica de princípios. Por que isso acontece? Porque equivocadamente se pensa que princípios são valores. É como se os valores flutuassem, fossem uma espécie de “ontologia”, da qual se retirasse uma essência. Os princípios seriam uma espécie de manifestação valorativa dessa ontologia. É um retorno a uma espécie de “realismo moral”. Isso é pernicioso, porque enfraquece a autonomia do direito. Veja-se que, nesses casos, hermeneutas e habermasianos andam juntos. Aproveito para citar aqui a importância da Escola Mineira, que trabalha a teoria habermasiana com vigor, como Menelick de Carvalho Neto, Flaviane Magalhães Barros, Marcelo Cattoni, Alexandre Bahia, Dierle Nunes e Bruno Camilloto. Do lado da hermenêutica, temos que citar Rafael Tomás de Oliveira, Mauricio Ramirez, André Karan Trindade, Alexandre Morais da Rosa, Adalberto Hommerding, Francisco Motta, Walber Carneiro, entre outros. As duas teses (hermenêuticas e habermasianas) são contra o panprincipiologismo, assim como contra o panjurisprudencialismo, que, ao fim e ao campo, têm uma raiz comum: a filosofia da consciência. uma espécie de ‘realismo moral’. Isso é pernicioso, porque enfraquece a autonomia do direito.” REVISTA DO TCE — V. Sa. acredita que a coerência e a integridade, objetivos almejados pelo uso do precedente judicial nos países 17 revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX do Common Law, são possíveis de serem alcançados em países do Civil Law, como o Brasil? Caso afirmativo, como isso seria possível? PROFESSOR LENIO STRECK — Não diria que, no common law, existe essa coerência e integridade na aplicação. Na verdade, é Dworkin que, na busca da resposta correta, alude que isso somente será possível a partir da coerência e da integridade. Nos cinco princípios que sustento, a coerência e a integridade fazem parte do segundo princípio. REVISTA DO TCE — Quais seriam esses cinco princípios? PROFESSOR LENIO STRECK — Na verdade, são princípios-padrão que devem ser seguidos para que alcancemos a resposta correta (adequada à Constituição). No primeiro, devemos preservar a autonomia do direito, afastando os predadores do direito (juízos morais, políticos e econômicos). Esses são os predadores externos. Há também os predadores internos, isto é, aqueles elementos que fragilizam a autonomia do direito, como o ensino jurídico standard, o uso da ponderação, que se transformou em álibi para decisionismos, a discricionariedade, a transformação dos princípios em valores, etc. No segundo princípio (padrão), devemos estabelecer as condições para a realização de um controle da interpretação. Democracia quer dizer controle. Aqui, a discricionariedade é o grande inimigo. Em terceiro lugar, estabelecer que a fundamentação das decisões é um dever fundamental dos juízes e tribunais. Aqui estamos em face do dever de accountabillity hermenêutica. É a fundamentação da fundamentação. Por último, deve-se garantir que cada cidadão tenha sua causa julgada a partir da Constituição e que haja condições para aferir se essa resposta está ou não constitucionalmente adequada. REVISTA DO TCE — O que V. Sa. pensa sobre a questão das súmulas vinculantes no direito brasileiro? Elas se alinham a um modelo reflexivo da teoria do direito? PROFESSOR LENIO STRECK — As súmulas não são um mal em si. Elas podem ser um instrumento importante para que alcancemos um grau de integridade no direito. Elas também podem ser o selo jurídico de conquistas democráticas. Entretanto, do modo como elas foram inventadas e do modo como a dogmática jurídica brasileira as vê, elas constituem um enorme problema, porque são uma espécie de retorno à jurisprudência dos conceitos. Trata-se da tentativa 18 “As súmulas não são um mal em si. [...] Entretanto, do modo como elas foram inventadas e do modo como a dogmática jurídica brasileira as vê, elas constituem um enorme problema, porque são uma espécie de retorno à jurisprudência dos conceitos.” outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX de construir conceitos que abarquem de antemão todas as futuras hipóteses de aplicação. Ora, isso era o que pretendia o positivismo exegetivo (primitivo). No meu livro Verdade e Consenso, busco demonstrar como essa problemática deve ser enfrentada, à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. REVISTA DO TCE — V. Sa. já criticou e fez trocadilhos com o que chamou de “direito twittado” e com os títulos utilizados em obras jurídicas como direito “esquematizado”, “resumido”, “descomplicado”, entre outros. Em agosto deste ano, em conferência proferida na OAB de Ipatinga/MG, V. Sa. indagou aos presentes: “você se operaria com um médico que escrevesse um livro chamado Operação Cardíaca Simplificada (ou algo do gênero)? Não? Mas, no direito, pode? Por quê?”. Como V. Sa. vê o ensino jurídico nos moldes em que é desenvolvido no Brasil? PROFESSOR LENIO STRECK — O ensino jurídico continua estandardizado. Não mudou muito nos últimos 40 ou 50 anos. Na verdade, pode ter piorado com o Google e essa pós-modernidade. O senso comum teórico dos juristas domina o imaginário dos juristas. Parcela considerável dos livros utilizados nas salas de aula dos cursos de Direito hoje poderiam ter uma tarja como as que existem nas carteiras de cigarro: o uso constante desse material fará mal a sua saúde mental. Ora, o direito é um fenômeno complexo. Como é possível simplificar essa complexidade? Por que o Direito é o locus da mediocridade? Entrevista revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais “O ensino jurídico hoje está em crise exatamente porque é ‘profissionalizante’. [...] O direito não é uma mera técnica. Ele não é uma racionalidade instrumental.” REVISTA DO TCE — Em diversos trabalhos, V. Sa. enfrenta, com rigor, a temática referente à crise do ensino jurídico e ao atraso brasileiro nos estudos na área da Teoria do Direito. Em artigo recente, V. Sa. tratou do efetivo papel da pós-graduação em Direito ao discutir a criação de mestrados profissionalizantes. V. Sa. poderia comentar estas questões? PROFESSOR LENIO STRECK — Os mestrados profissionalizantes se mostram inadequados para a área do direito. O ensino jurídico hoje está em crise exatamente porque é “profissionalizante”. As críticas que Warat, Tércio Ferraz Jr e Lira Filho faziam ao ensino jurídico tecnicizante continuam válidas. O mestrado profissionalizante, nos moldes em que é defendido no Brasil, servirá para tornar mais medíocre ainda o ensino na pós-graduação. O direito não é uma mera técnica. Ele não é uma racionalidade instrumental. Com ele, não se pode sustentar qualquer coisa. Isso seria um retorno ao 19 revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX positivismo primitivo ou às fórmulas dos axiologismos normativistas. Mas há uma coisa mais gritante, que não está sendo dita: o título de mestre profissional, que poderá ser obtido sem a defesa de dissertação, terá o mesmo valor jurídico do diploma de mestre acadêmico. Ora, usar o mestrado profissionalizante para suprir carências de mestres acadêmicos é um perigoso atravessamento sistêmico. O mestrado profissionalizante, no limite, até poderia ser uma ideia interessante, desde que o diploma não habilitasse o usuário a lecionar em faculdades. Fosse retirada essa equivalência e duvido que alguém ainda defenderia esse modelo. REVISTA DO TCE — Em diversas ocasiões, V. Sa. se manifestou criticamente acerca das garantias processuais penais, sempre frisando que essas estão distantes dos menos favorecidos. Qual é a razão disso e qual seria a solução efetiva para o problema? PROFESSOR LENIO STRECK — Ainda estamos longe da isonomia na aplicação das garantias. O STJ e o STF avançaram sobremodo nesse campo, entretanto, o que está faltando é uma horizontalização dessa aplicação. É bom que o Superior Tribunal de Justiça utilize a tese dos frutos da árvore envenenada para desmanchar uma operação da Polícia Federal, contudo, essa mesma tese acaba não sendo utilizada, na sua radicalidade, quando se trata de réus pertencentes ao andar de baixo. Ao mesmo tempo em que o STJ, em poucos dias, acaba com a operação Boi Barrica, temos que lembrar que esse mesmo Tribunal não cumpre o art. 212 do CPP, que estabelece uma regra de preceito fundamental acerca do sistema acusatório; também o mesmo STJ nega habeas corpus para um sujeito que furta uma garrafa de vinho (barato) em um posto de gasolina. É isso que quero lembrar a todos. REVISTA DO TCE — Em julho de 2009, V. Sa., como procurador de justiça atuando no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, requereu a intervenção federal naquele estado devido à falta de vagas nos presídios e à consequente soltura de acusados presos em flagrante por assalto, pedido que não foi apreciado pelo então Procurador-Geral da República. Constantemente a mídia divulga notícias sobre superlotação nas celas e sobre as condições precárias e desumanas a que são submetidos os presos. Como V. Sa. percebe essa realidade e a postura das instituições estatais diante dela? PROFESSOR LENIO STRECK — Ninguém está preocupado com a massa carcerária. Isso é um escândalo. O presídio central de Porto Alegre 20 “ É bom que o Superior Tribunal de Justiça utilize a tese dos frutos da árvore envenenada para desmanchar uma operação da Polícia Federal, contudo, essa mesma tese acaba não sendo utilizada, na sua radicalidade, quando se trata de réus pertencentes ao andar de baixo.” Entrevista revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX é a visão do inferno. Mandei imagens, documentos (inclusive um “contrato” em que uma facção alocava parte do presídio), tudo para demonstrar a violação dos direitos fundamentais dos presos. No Brasil, ao invés de construirmos presídios, inventamos modos de atravessar o sistema. Indultos natalinos, facilitação no cumprimento de penas, tudo para esvaziar os presídios, para não precisar investir. Vamos deixar de ser hipócritas. Presídios são necessários. Direito penal é prevenção geral e castigo. Pena é retribuição. Não regenera. Para isso os presídios têm que respeitar os direitos fundamentais. Hoje em dia brincamos de punir. É uma fancaria. Por que tem progressão de regime facilitado? Porque há poucas vagas. O pedido de intervenção federal que fiz está parado em alguma gaveta em Brasília. Quantas pessoas já foram assaltadas e mortas por pessoas que deviam estar cumprindo pena, mas que lá não estão porque não há vagas? Quantas pessoas voltaram a delinquir porque aprenderam a ficar mais violentos dentro desse infernal sistema carcerário? REVISTA DO TCE — Por fim, como V. Sa. avalia as propostas de reformas processuais no Brasil? PROFESSOR LENIO STRECK — Os dois códigos de processo representam poucos avanços. O pior deles é o Código de Processo Civil (CPC). Ali estão repetidos os equívocos do velho instrumentalismo processual. O CPC continua a apostar no protagonismo judicial. Encanta-me (estou sendo irônico) a previsão de embargos declaratórios. Ora, uma decisão obscura, omissa ou contraditória, para mim, é nula, porque viola o art. 93, IX, da Constituição. Mas o CPC insiste nas velhas fórmulas. Os embargos acabam sendo um álibi para decisões prêts-à-porter. Por isso há embargos dos embargos, agravos, agravos de agravos, etc. A única coisa com que o CPC não se preocupa é com uma teoria da decisão. E por quê? Porque parcela considerável dos juristas que formatou o projeto não superou a filosofia da consciência. Na verdade, parcela considerável dos processualistas acha que a filosofia não tem muito a ver com o direito. Por isso, o projeto passa ao largo dos paradigmas filosóficos. E isso é ruim para o direito e para a democracia. O mesmo ocorre com o Código de Processo Penal. Embora os avanços no que tange ao sistema acusatório, continua a aposta no livre convencimento. A comunidade jurídica não se dá conta de que a fórmula “livre convencimento motivado” é uma contradição filosófica. Isso não se sustenta. Escrevi um longo texto sobre isso, alertando para essa relevante circunstância. “O CPC continua a apostar no protagonismo judicial. Encantame (estou sendo irônico) a previsão de embargos declaratórios. [...] Os embargos acabam sendo um álibi para decisões prêts-à-porter.” Por: Leonardo de Araújo Ferraz, Juliana Mara Marchesani e Silvia Costa Pinto Ribeiro de Araújo 21