Multimorbilidade – o Doente, a Coordenação de Cuidados e o

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N.º39 Jan-Mar 2016 Pág. 10-16
João Sequeira Carlos
Editor convidado
Médico de Família
Coordenador do Departamento de Medicina Geral e Familiar, Hospital da Luz,
Lisboa
Preâmbulo
Multimorbilidade – o Doente,
a Coordenação de Cuidados e o Sistema de Saúde
Palavras‑chave: M
ultimorbilidade; Sistema de saúde; Cuidados de saúde primários;
Equipa multidisciplinar; Doença crónica
A multimorbilidade é um termo com
ampla utilização nos sistemas de saúde
modernos e denomina as situações em
que ocorrem em simultâneo duas ou mais
doenças crónicas no mesmo indivíduo. É
nos Cuidados de Saúde Primários (CSP)
que estes doentes são acompanhados em
continuidade, com abrangência e de forma
contextualizada na dimensão biopsicossocial. Por este motivo o tema é de importância capital na prática clínica dos médicos
de família e nos aspetos organizacionais da
Medicina Geral e Familiar (MGF).
painel de peritos em Portugal para que fosse
possível definir com maior exatidão a multimorbilidade. Assente na metodologia Delphi o painel concluiu que a definição mais
adequada aos CSP no nosso país é expressa
pela «combinação de uma doença crónica
com pelo menos uma outra doença (aguda
ou crónica), ou com um fator biopsicossocial
(associado ou não), ou com um fator de risco
somático»2.
É também relevante abordar o tema
na perspetiva dos pacientes. O termo
multimorbilidade configura um conceito
Os profissionais de saúde conotam a multimorbilidade com incerteza,
complexidade e tensão emocional durante a consulta
A comunidade médica tem aplicado
outros termos como referenciais ao tema. As
denominações «multipatologia» ou «comorbilidade» são utilizadas na bibliografia
mas atualmente é consensual a utilização
exclusiva do termo multimorbilidade com o
objetivo de desambiguar conceito1. A necessidade de tornar claro este enquadramento
conceptual levou mesmo à criação de um
10
eminentemente clínico e epidemiológico
com repercussões importantes na organização da prática médica e dos sistemas de
saúde. A forma como esta condição é percecionada varia de acordo com o elemento
que a perspetiva. Os profissionais de saúde
conotam a multimorbilidade com incerteza,
complexidade e tensão emocional durante
a consulta. Os pacientes apresentam difi-
culdade no entendimento do tema mas
associam‑no a maior incapacidade, maior
sofrimento psicológico e a maior consumo
de recursos de saúde – consultas, exames
e medicação. A conciliação de perspetivas
é fundamental para concertar ações que
melhorem a capacitação do paciente para a
gestão dos seus problemas de saúde, pres�
suposto essencial para lidar com a multimorbilidade3.
Independentemente destas questões há
evidência robusta que demonstra o impacto
real da multimorbilidade na saúde da
população, diminuindo a esperança de vida
e aumentando a carga de doença. A qualidade de vida é fortemente prejudicada pela
multimorbilidade em resultado dos elevados níveis de incapacidade e fragilidade
associados a esta condição4.
Recentemente, uma revisão alargada da
literatura internacional permitiu agregar
de forma consensual os problemas senti-
dos pelos doentes com multimorbilidade5.
Há obviamente especificidades inerentes a
cada sistema de saúde mas invariavelmente
surgem descritos os seguintes problemas:
fragmentação e falta de coordenação de cuidados, polimedicação, sobrecarga terapêutica, alterações da saúde mental, dificuldades funcionais, diminuição da qualidade de
vida e utilização excessiva de cuidados de
saúde.
A tão propalada tríade conjuntural dos
sistemas de saúde – envelhecimento da
população, maior disponibilidade de recursos de saúde e o aumento da prevalência
de doenças crónicas – torna necessária a
criação de novos modelos que se adeqúem
às necessidades dos doentes com multimorbilidade6.
Os sistemas de saúde têm de responder
a estes desafios com modelos de prestação
de cuidados que assegurem continuidade,
qualidade e coordenação. A evidência dis-
11
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ponível aponta para um ciclo virtuoso no
qual o maior investimento nos CSP resulta
em melhor resposta à multimorbilidade
garantindo os pressupostos enunciados
anteriormente. As políticas de saúde devem
refletir as necessidades reais da população
promovendo serviços de saúde com integração de cuidados centrados no doente
com multimorbilidade e não em doenças
isoladas7,8.
o peso excessivo que foi conferido ao
longo dos tempos ao trabalho exclusivo do
médico de família. O paradigma está já em
mutação e o foco deve estar cada vez mais
no trabalho de equipa multiprofissional,
assente na partilha de cuidados com delegação de tarefas baseada em competências
e aptidões. A colaboração interprofissional deve existir não só nos CSP mas também na ligação destes com os restantes
Os sistemas de saúde têm de responder a estes desafios
com modelos de prestação de cuidados que assegurem continuidade,
qualidade e coordenação
Em Portugal a multimorbilidade nos CSP
apresenta uma prevalência sobreponível à
que é revelada em estudos à escala global.
Num estudo recente, representativo de todo
o território continental, conduzido nos CSP,
foi encontrada uma prevalência de 72,7% 9.
No mesmo estudo foi demonstrado que os
problemas de saúde mais prevalentes são
as doenças cardio‑metabólicas e as doenças
mentais. Estes resultados são consistentes
com a literatura internacional10.
Perante a prevalência crescente da multimorbilidade, os CSP devem adaptar‑se ao
níveis de cuidados do sistema de saúde.
Será não só um modo de ultrapassar
constrangimentos à eficiência do sistema
mas também uma forma de prevenir o
isolamento e o burnout dos profissionais11-13. Muitos autores aludem ao tema
referindo que o doente deve navegar no
sistema sem sentir que existem níveis de
cuidados separados porquanto o foco deve
ser o melhor serviço centrado na pessoa,
em qualquer momento ou local.
Para além do maior estímulo ao trabalho
de equipa há outro tema determinante para
As políticas de saúde devem refletir as necessidades reais da população
promovendo serviços de saúde com integração de cuidados centrados
no doente com multimorbilidade e não em doenças isoladas
cenário criando condições organizacionais
que correspondam às necessidades reais
dos doentes mais complexos. A prestação
de cuidados deve estar mais centrada na
capacidade da equipa de saúde subtraindo
12
a qualidade assistencial na multimorbilidade – o tempo de consulta. Há inúmeros
relatos sobre a escassez de tempo na interação médico‑doente. O fenómeno tem
forte expressão internacional e interseta
de forma consistente a maioria dos sistemas de saúde do mundo. Poder‑se‑á aludir
a um autêntico paradoxo – ao aumento da
prevalência da multimorbilidade o sistema
responde com optimizações de acessibilidade que passam por reduções do tempo
de consulta. É possível considerar diversas
perspetivas e perceber que a eficácia de uma
consulta depende não só da objetividade da
sua duração mas também da subjetividade
do seu conteúdo. A qualidade do tempo
tes. A disrupção é focar a questão na equipa
e não no profissional de saúde isolado.
Deste modo considera‑se o tempo total
dedicado ao doente complexo aquele que
resulta das intervenções globais da equipa
de saúde e não o tempo parcelar de uma
consulta única. A intervenção multidisciplinar assegura o fortalecimento da continuidade de cuidados, fator essencial para
resultados mais positivos no tratamento do
doente com multimorbilidade5.
O paradigma está já em mutação e o foco deve estar cada vez mais
no trabalho de equipa multiprofissional
é fundamental na abordagem do doente
complexo e o desafio passa por encontrar
modelos inovadores que permitam incluir
esta dimensão na resposta assistencial. A
sugestão global é que no cenário epidemiológico atual se dedique mais tempo para
consultas com doentes crónicos em detrimento do espaço direcionado para a doença
aguda14.
Contudo, investir mais tempo na abordagem de doentes com múltiplas patologias
não passa exclusivamente por aumentar a
duração da consulta com o médico. Esse
seria o caminho mais fácil e também o
A relação do doente com a equipa de
saúde é determinante para fortalecer a ade�são ao plano de cuidados preconizado para
a gestão dos múltiplos problemas de saúde.
O doente com multimorbilidade carece de
um plano de cuidados multidimensional
que não se esgota na medicação. A forma
como fica vinculado ao tratamento terá a
maior importância na evolução das suas
doenças15. Neste ponto é relevante aludir
à necessária monitorização dos fármacos
prescritos. A prescrição de medicamentos
deve resultar de uma judiciosa avaliação
de risco/benefício de acordo com utilização
Um autêntico paradoxo – ao aumento da prevalência da multimorbilidade
o sistema responde com optimizações de acessibilidade
que passam por reduções do tempo de consulta
menos adequado à realidade dos sistemas
de saúde modernos. A fórmula de sucesso
será provavelmente a combinação dos fatores descritos anteriormente – trabalho de
equipa e tempo de qualidade com os doen-
de normas de orientação clínica ajustadas
à avaliação personalizada e centrada no
paciente. Este é um pressuposto universal
na farmacoterapia, contudo adquire maior
significado na multimorbilidade. Cabe ao
13
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médico de família, na visão de conjunto
da coordenação de cuidados, proceder à
revisão, conciliação e optimização da terapêutica para prevenir a polimedicação16.
Esta tarefa é fundamental na salvaguarda
da segurança do doente e na profilaxia de
iatrogenia.
Como já referido anteriormente a sobrecarga terapêutica é apontada como um
dos problemas principais na multimorbili-
novas aplicações tecnológicas que integrem
dados abrangentes e complexos referentes
à multimorbilidade e conexos ao sistema de
saúde (big data). A agregação estruturada
de dados que atualmente estão dispersos
reveste‑se de grande importância para a
garantia da segurança do paciente, para
reforço da gestão do conhecimento e para
melhor comunicação entre pares na abordagem destes doentes.
A tecnologia é inoperante se as relações humanas não existirem
dade. A polimedicação soma‑se às diversas
patologias num efeito cumulativo que leva
à percepção de maior peso de doença. A
conjugação deste fenómeno com a maior
prevalência de queixas do foro psicológico
característica nestes doentes, resulta numa
situação global que bloqueia a dinâmica de
melhoria do estado clínico. Este cenário é
habitualmente identificado nas consultas
de doentes com multimorbilidade.
Na gestão adequada da multimorbilidade tem de ser mitigada a ocorrência de
Em consonância com os sistemas de
informação e alicerçando‑se na sua eficiência, devem estar modelos de coordenação
de cuidados que se adeqúem às necessidades dos doentes com multimorbilidade.
Há muitos exemplos descritos na literatura
internacional, verdadeiros paradigmas de
boas práticas no setor da saúde18-20. A coordenação de cuidados entre CSP, Hospitais
e Rede Nacional de Cuidados Continuados
Integrados (RNCCI) é um elemento fulcral
para fortalecer a colaboração entre todos os
A multimorbilidade configura um dos maiores desafios para o sistema
de saúde, que deve responder com o fortalecimento dos CSP
problemas relacionados com redundância
de procedimentos e exames, interação de
medicamentos, incidentes no processo de
decisão clínica e dificuldades na comunicação entre profissionais. Neste contexto
os sistemas de informação são um fator
crítico para evitar obstáculos nos processos assistenciais. Para além de constituírem um repositório seguro de informação
clínica são também um instrumento de
suporte à decisão clínica17. A inovação sensível a esta conjetura passa pela criação de
14
intervenientes do sistema de saúde, contribuindo decisivamente para a sua eficiência
e qualidade global.
Nos CSP, a MGF lidera o processo assumindo de forma inequívoca um dos seus
princípios nucleares. Efetivamente, a
coordenação de cuidados, afigura‑se para
o médico de família como uma função a
desempenhar no sistema de saúde e como
um instrumento de trabalho na sua prática clínica21. É em sede dos CSP que se
constitui um dos principais recursos do
sistema de saúde na abordagem do doente
com multimorbilidade. São preconizadas
diversas estratégias, sendo a continuidade
e proximidade de cuidados um autêntico
ponto de alavancagem do processo. Estes
fatores são a salvaguarda para que nas
transições do doente no sistema de saúde
não exista fragmentação do seu processo
assistencial integrado.
Em estreita ligação a esta estratégia
podemos apontar a comunicação entre profissionais de saúde e entidades envolvidas
na prestação de cuidados. A comunicação
implica conhecimento interpessoal e interinstitucional, pressuposto sem o qual os
canais utilizados não funcionam. A tecnologia é inoperante se as relações humanas
não existirem. Este é um fator crítico que
determina fortemente resultados na gestão do doente com multimorbilidade e é
o instrumento que torna mais robusto o
processo de referenciação em ciclo completo22,23.
Na atualidade, é crescente a publicação
de estudos e relatos de experiências inovadoras à escala global. Uma dimensão
pertinente descrita nestes documentos
está relacionada com os recursos humanos, sendo cada vez mais defendida a
integração de novas profissões da saúde
nas equipas prestadoras de cuidados com
dedicação exclusiva à gestão do doente e
à coordenação da interligação entre CSP e
hospitais24,25.
A coordenação de cuidados entre CSP e
Hospitais não poderá ser reduzida à visão
simplista de uma gestão única de unidades
com culturas distintas, nem tão pouco ser
sujeita à mera transferência de procedimentos e atos entre níveis de saúde26.
É tentador aplicar medidas que visam
transferir para as unidades dos CSP proce-
dimentos e atos prestados em contexto hospitalar. Um dos objetivos em que assenta
esta ideia é reduzir a referenciação de doentes aos hospitais. Contudo, há evidência em
alguns estudos recentes que contrariam
este potencial resultado, ao concluir que
a transferência de cuidados dos hospitais
para os CSP não tem a influência esperada
na referenciação de doentes27.
Como noutras áreas do setor da Saúde,
temos de estar abertos à inovação na certeza de que os modelos de coordenação
de cuidados têm de ser coerentes com as
especificidades de cada sistema de saúde e
adequados à realidade sociodemográfica de
cada país. Enquanto profissionais de saúde
temos o dever de dar o nosso contributo
para encontrar as melhores estratégias
para definir um modelo robusto de coordenação de cuidados, na firme convicção de
que dele dependerá a sustentabilidade do
sistema e os ganhos de saúde para os nossos
pacientes.
A multimorbilidade configura um dos
maiores desafios para o sistema de saúde,
que deve responder com o fortalecimento
dos CSP. As mudanças não devem recair
exclusivamente na reorganização da atividade assistencial. O processo tem de
abranger também a investigação e a formação médica28. O investimento na produção de mais conhecimento sobre o tema e
na formação dos futuros profissionais de
saúde, com matérias curriculares focadas
na multimorbilidade e na coordenação de
cuidados, é um trabalho estruturante de
longo prazo. Contudo, é uma visão estratégica sólida e sensível à epidemiologia
e características sociodemográficas do
século XXI.
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