Coletânea 01 - Justiça e Cidadania em Debate

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COLETÂNEA 1
JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Coordenadores
VIVIANE COÊLHO DE SÉLLOS-KNOERR
ELOETE CAMILLI OLIVEIRA
Organizadores
JOSÉ MARIO TAFURI
SANDRO MANSUR GIBRAN
COLETÂNEA 1
JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ISBN 978-85-87875-06-8
AENA
2013 | Curitiba
Campus Milton Vianna Filho: Rua Chile, 1.678 - Rebouças - CEP 80220-181
Telefone: +55 41 3213-8700
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................11
A PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO EM FACE DO
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
AGATHA NATASHA SANTOS RHEINHEIMER BRAGA E ALEXANDRE KNOPFHOLZ.................17
INCONSTITUCIONALIDADE DA FALTA DE UM LIMITE TEMPORAL NAS
MEDIDAS DE SEGURANÇA
ALESSA MARIA CAVALI ROYER E GUILHERME OLIVEIRA DE ANDRADE..............................41
A HIPNOSE COMO AUXILIAR DA PROVA NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NO
BRASIL
AMANDA CAROLINE PAULUK E MARIA DA GLÓRIA COLUCCI......................................................73
ASPECTOS SOBRE A (NÃO) PROTEÇÃO À VIDA DO FETO NOS CASOS DE
ABORTO DECORRENTE DE CRIME SEXUAL
ANA CAROLINA STROZZI DE OLIVEIRA E ROOSEVELT ARRAES.......................................101
COMENTÁRIOS A RESPEITO DA INADMISSIBILIDADE DAS PROVAS ILÍCITAS
NO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO
ANNA BEATRIZ STRECKER OKAMOTO E ALEXANDRE KNOPFHOLZ........................................133
INFÂNCIA E CRIMINALIDADE: A REPRESENTAÇÃO DO UNIVERSO INFANTOJUVENIL MARGINAL PELO DISCURSO CRIMINOLÓGICO NO BRASIL (18901927)
BERNARDO PINHÓN BECHTLUFFT E MARIO LUIZ RAMIDOFF...................................................157
INQUÉRITO POLICIAL COMO UM INSTRUMENTO INQUISITIVO NO SISTEMA
PROCESSUAL PENAL ACUSATÓRIO
EDUARDO HENRIQUE KNESEBECK E ALEXANDRE KNOPFHOLZ.............................................191
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO CONCURSO DE PESSOAS NO
DIREITO PENAL BRASILEIRO
FÁBIO PRESTES BARBOSA MEGER E GUSTAVO BRITTA SCANDELARI.............................223
CRIMINOLOGIA E O CONTROLE SÓCIO-PENAL
GIANA ENGELHORN JACON E MARIO LUIZ RAMIDOFF...............................................................249
LEGITIMIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO DIANTE DO PRINCÍPIO
DA LESIVIDADE
GLENYO CRISTIANO ROCHA E GUSTAVO BRITA SCANDELARI................................................281
ENTRE HERMES E THEMIS: O DIÁLOGO COMO MEIO PARA ALCANÇAR UMA
JUSTIÇA INTERNACIONAL PENAL
HELLEN OLIVEIRA CARVALHO E ROOSEVELT ARRAES.............................................................315
CRIAÇÃO DE ESTEREÓTIPOS E A SEGREGAÇÃO SOCIAL
LOUISE DE OLIVEIRA CARNIERI E MARIA LUISA SCARAMELLA................................................349
APLICABILIDADE DA LEI PENAL BRASILEIRA AOS CRIMES CIBERNÉTICOS:
UMA VISÃO CRÍTICA
LUANA BRUNA OKAMURA E MÁRIO LUIZ RAMIDOFF..................................................................373
A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA: UMA REFLEXÃO SOB A ÓTICA DO
CINEMA
MARCELA GUEDES CARSTEN DA SILVA E MARIA LUISA SCARAMELLA..................................399
COMBATE À IMPUNIDADE E O NECESSÁRIO DESESTÍMULO À CORRUPÇÃO:
UMA ANÁLISE À LUZ DAS RECENTES ALTERAÇÕES NA LEGISLAÇÃO
ELEITORAL
MAURÍCIO AUGUSTO GARBIN E LUIZ GUSTAVO DE ANDRADE................................................423
OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À VIDA PRIVADA, INTIMIDADE E AO SIGILO
DAS COMUNICAÇÕES SOB A PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL
NATASHA KOLINSKI VIELMO E ALEXANDRE KNOPFHOLZ.........................................................457
A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA
PATRÍCIA RIBEIRO DANTAS DE MELO E BERTIN E ALEXANDRE KNOPFHOLZ........................481
PROCESSO E PROCEDIMENTO DA LEI MARIA DA PENHA
PRISCILA NÉLIDA HRISTOF CORTEZ FERRAREZI E MARIO LUIZ RAMIDOFF..........................513
A DOENÇA MENTAL COMO CAUSA DE INIMPUTABILIDADE E AS MEDIDAS DE
SEGURANÇA APLICADAS
RAFAEL VIEIRA VIANNA SANTOS E GUSTAVO BRITTA SCANDELARI.......................................537
A INDETERMINAÇÃO TEMPORAL PARA O CUMPRIMENTO DAS MEDIDAS DE
SEGURANÇA
THIELEN NETZEL SERRATO E ALEXANDRE KNOPFHOLZ..........................................................559
POLÊMICAS ACERCA DO ARTIGO 28 DA LEI 11.343/06
VITHÓRIA SIMÕES MANFRON BARROS E GUSTAVO BRITTA SCANDELARI............................589
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
INTRODUÇÃO
A Coletânea Justiça e Cidadania em Debate resulta da elaboração de artigos,
escritos a partir de pesquisas realizadas por professores e seus alunos, refletindo
sobre os direitos e garantias fundamentais, chamando atenção para as suas
violações, diretas e indiretas, e a necessidade de correção destas distorções.
Inicialmente, Agatha Natasha Santos Rheinheimer Braga e Alexandre
Knopfholz analisam a possibilidade e viabilidade de tornar efetiva a reinserção social
dos encarcerados com a privatização do sistema penitenciário brasileiro em face do
principio da dignidade da pessoa humana.
Com o artigo Inconstitucionalidade da falta de um limite temporal nas medidas
de segurança, Alessa Maria Cavali Royer e Guilherme Oliveira de Andrade
demonstram a necessidade de aplicar os princípios limitadores da pena às medidas
de segurança, com enfoque no princípio da vedação de penas perpétuas, a fim de
compatibilizar este instituto jurídico penal com a Constituição da República
Federativa do Brasil, bem como com um Estado Democrático de Direito.
Maria da Glória Colucci e Amanda Caroline Pauluk pesquisaram sobre a
hipnose como auxiliar da prova na investigação criminal no Brasil, e analisam a
utilidade, relevância e resultados benéficos obtidos com as informações levantadas
por este meio durante a investigação, com a produção da perícia psicológica
forense.
A abordagem dos “Aspectos sobre a (não) proteção à vida do feto nos casos
de aborto decorrente de crime sexual” feita por Ana Carolina Strozzi de Oliveira
examina a constitucionalidade desta excludente de punibilidade estabelecida pela
legislação pátria, por entender que o direito à vida é um direito fundamental e
inviolável, devendo o ordenamento jurídico protege-la desde o momento em que o
ser humano é gerado.
Em comentários a respeito da inadmissibilidade de provas ilícitas no direito
processual penal brasileiro, Anna Beatriz Strecker Okamoto e Alexandre Knopfholz,
expõem o posicionamento de renomados autores acerca do enfrentamento do tema
diante da polarização entre a limitação à atividade persecutória do Estado no que se
refere ao direito à prova e a garantia constitucional do acusado, concluindo com a
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
análise da questão das provas ilícitas por derivação, de acordo com os parágrafos
do artigo 157 do CPP e da Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada.
Infância, Criminalidade: A representação do universo infanto –juvenil marginal
pelo discurso criminológico no Brasil (1890-1927) pesquisado por Bernardo Pinhón
Bechtlufft parte da concepção histórica –social traçada por Phillipe Ariès para a
infância, afirmando que o século XX é o século do efetivo reconhecimento da
infância como fase autônoma da vida, distinta ao universo adulto, e, neste sentido,
carecedor de uma específica tutela do Estado na formulação de garantias e na
elaboração de específicas políticas públicas de proteção.
Eduardo Henrique Knesebeck demonstra a incompatibilidade do inquérito
penal e a ordem constitucional vigente, por serem antagônicos. Conclui que o
Inquérito policial é tido como instrumento inquisitivo no sistema processual penal
acusatório, e invoca a necessidade de serem observadas premissas principiológicas
para a adequação da pena à culpabilidade do agente.
Algumas considerações sobre o concurso de pessoas no direito penal
brasileiro, feitas por Fábio Prestes Barbosa Meger e Gustavo Britta Scandelari,
chamam a atenção para os diversos modelos de responsabilização adotados pelo
Código Penal Brasileiro após as alterações introduzidas na parte geral pela Lei
7.209/84.
Criminologia e o controle sócio penal foi o tema pesquisado por Giana
Engelhorn Jacon e Mario Ramidoff e aborda o controle sócio penal exercido pelo
Estado, sua atuação através da cominação, aplicação e execução das sanções
penais.
No artigo Legitimidade dos crimes de perigo abstrato diante do principio da
lesividade, Glenyo Cristiano Rocha e Gustavo Britta Scandelari embasados em
doutrinas europeias, onde o estudo do tema está mais avançado buscaram com a
realização da pesquisa questionar a legitimidade dos crimes de perigo abstrato do
ponto de vista teórico - dogmático.
Entre Hermes e Themis: O diálogo como meio para alcançar uma justiça
internacional penal, artigo resultante de pesquisa realizada por Hellen Oliveira
Carvalho e Roosevelt Arraes busca analisar estudos inovadores na área dos Direitos
Humanos, em face da sua complexidade diante das concepções culturais a fim de
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
estabelecer uma abordagem do Direito Internacional Penal construída por meio da
dialética dos princípios do universalismo e do relativismo cultural.
A criação de estereótipos e a segregação social, escrito por Louise de Oliveira
Carnieri e Maria Luiza Scaramella, analisa o reflexo mantido em nossa sociedade
causado pela discriminação e o seu impacto.
No artigo Aplicabilidade da lei penal brasileira aos crimes cibernéticos: uma
visão crítica, Mário Luiz Ramidoff e Luana Bruna Okamura tratam da efetividade da
legislação penal vigente no país para o enquadramento e combate de infrações
cometidas em ambientes virtuais e das dificuldades encontradas pelos operadores
do direito em aplica-la aos avanços tecnológicos.
Sob a ótica do cinema e documentários, Marcela Guedes Carsten da Silva e
Maria Luísa Scaramella escrevem sobre criminalização da pobreza trazendo a
discussão, analisando e refletindo sobre o sistema carcerário brasileiro.
Na Análise da teoria das nulidades à luz da Constituição garantista, Mariana
Buhrer Sukevicz e Alexandre Knopfholz investigaram com vistas ao processo penal
a necessidade, ante a concepção de Estado Democrático de Direito da revisão da
teoria das invalidades para a promoção dos direitos fundamentais do acusado.
Combate à impunidade e o necessário desestimulo a corrupção: uma análise
das recentes alterações na legislação eleitoral, pesquisado por Maurício Augusto
Garbin e Luiz Gustavo de Andrade objetiva o estudo dos atos de corrupção e
improbidade administrativa no Brasil e dos mecanismos de controle em face de tais
condutas ressaltando alguns dos reflexos e a importância da observação dos
princípios basilares da administração pública.
Natasha Kolinski Vielmo e Alexandre Knopfholz analisam as situações que
permitem a colocação de limites e restrições aos direitos fundamentais à vida
privada, intimidade e ao sigilo das comunicações sob a perspectiva constitucional,
diante da mitigação do segredo das comunicações telefônicas permitidas pela
Constituição de 1988, no âmbito penal.
As posições doutrinárias, as questões dogmáticas, a adoção pela lei 9.605/98
e os dispositivos constitucionais relativos à responsabilidade penal da pessoa
jurídica são o tema de estudo de Patrícia Ribeiro Dantas de Melo e Bertin e
Alexandre Knopfholz.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Em Processo e Procedimento na Lei Maria da Penha, Priscila Nélida Kristof
Cortêz Ferrarezi e Mario Luiz Ramidoff abordam a proteção aos direitos da mulher
em face da violência contra ela praticada, dando-lhe maior segurança social e
jurídica.
As medidas de seguranças previstas no Código Penal e as mudanças
introduzidas pela Lei 10.216/2001, mais conhecida como Lei da Reforma
Psiquiátrica, nas quais tem a doença mental como causa de Inimputabilidade, são
analisadas por Rafael Vieira Vianna Santos.
A indeterminação temporal para o cumprimento das medidas de segurança,
objeto de pesquisa de Thielen Netzel Serrato e Alexandre Knopfholz aborda a
problemática envolvida e as suas consequências, acarretando a mitigação dos
direitos fundamentais dos indivíduos inimputáveis e semi-imputáveis. (liberdade),
fundamentada nas questões de segurança pública da coletividade.
Com o artigo Polêmicas acerca do artigo 28 da Lei 11.343/02006, Vithoria
Simões Manfron Barros e Gustavo Britta Scandelari, trazem informações úteis e
relevantes que deveriam ser esclarecidas à população sobre as alterações na lei de
drogas.
A presente Coletânea, resultado do trabalho exaustivo de pesquisa conjunta
dos acadêmicos e seus orientadores do Curso de Graduação em Direito do Centro
Universitário Curitiba – UNICURITIBA, foram apresentadas como Trabalho de
Conclusão, partindo da temática desenvolvida em suas monografias, e indicados
para publicação, por comissão examinadora composta por docentes da Instituição
de Ensino.
Desejamos que a leitura dos temas abordados, envolvendo os direitos e
garantias fundamentais, reforcem os ideais de cidadania e justiça, indispensáveis
para a nossa sociedade.
ELOETE CAMILLI OLIVEIRA
Doutora pela UFPR. Mestre pela PUCPR. Professora adjunta nível III da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, representante dos docentes no CEPE UNICURITIBA, professor titular – UNICURITIBA, Supervisora do setor de Registro
dos Trabalhos de Conclusão de Curso do UNICURITIBA.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
JOSÉ MARIO TAFURI
Mestre e Especialista pela PUCPR. Professor Adjunto do UNICURITIBA,
Representante dos Coordenadores no CONSEPE- UNICURITIBA, Coordenador do
Curso de Direito – UNICURITIBA
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO EM
FACE DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
PRIVATIZATION OF BRAZILIAN PENITENTIARY SYSTEM IN LIGHT
OF PRINCIPLE OF HUMAN DIGNITY
Agatha Natasha Santos Rheinheimer Braga1
Alexandre Knopfholz2
1
Estudante de Direito do Centro Universitário Curitiba
Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), Pós-Graduação em
Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado em Direito Empresarial e
Cidadania pelo UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é professor horista da
disciplina de Processo Penal, nos cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área
de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: direito processual penal e direito penal.
2
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SUMÁRIO
Resumo 1 Introdução 2 Da Dignidade da Pessoa Humana 3 Execução Penal no
Brasil 4 Privatização das Penitenciárias 4.1 Modelos Norte Americano e Francês
4.2 Experiências Brasileiras 4.3 Óbices e Vantagens do Sistema Privatizador 4.4 As
Parcerias Público Privadas e a Viabilidade Da Privatização 5 Considerações Finais.
Referências
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
O presente artigo objetiva analisar a viabilidade da privatização do sistema
penitenciário brasileiro, sob a ótica da dignidade humana. Para tanto, analisa-se o
fundamento da pena, os sistemas penitenciários desde o seu surgimento, a
legislação brasileira atinente à execução da pena privativa de liberdade, a onda do
movimento privatizador e a sua aplicação nos mais diversos graus, as vantagens e
desvantagens da adoção da privatização e, ainda, a efetividade conferida à
dignidade nos cárceres brasileiros atuais. Por fim, procura-se discutir, à luz da
Constituição Federal, da dignidade humana e da realidade carcerária, a proposta
privatizadora das penitenciárias brasileiras, o seu alcance e dinamismo, a fim de
demonstrar a possibilidade de melhoria nos índices de reinserção social, bem como
de se executar a pena com condições dignas, visando, sempre, a realização da letra
da lei na ânsia de que sejam levados a efeito os direitos do apenado enquanto ser
humano encarcerado.
Palavras-chave: privatização das penitenciárias, dignidade humana, pena privativa
de liberdade, execução penal.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
The present article aims to analyze the feasibility of the Brazilian penitentiary system
privatization from the perspective of human dignity. For this, it analyzes the
foundation of sentence, prison systems since its inception, the Brazilian legislation
regards, the execution of the sentence of imprisonment, the privatization wave
movement and its application in various degrees, the advantages and disadvantages
of the adoption of privatization and also the effectiveness afforded to dignity in
Brazilian prisons today. Finally, we try to discuss, in light of the Constitution, human
dignity and the reality of prison, the proposal for privatizing prisons in Brazil, its scope
and dynamism in order to demonstrate the possibility of improvement in indices of
social reintegration, as well as to execute the sentence in decent conditions, aiming
always, the realization of the letter of the law in their eagerness to be led to effect the
rights of the convict as an incarcerated human being.
Keywords: privatization of prisons, human dignity, custodial sentence and criminal
execution.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objeto o estudo da viabilidade da privatização das
penitenciárias brasileiras à luz da dignidade humana. Neste sentido, adotar-se-á o
princípio da dignidade como base da discussão, eis que, fundamento da ordem
constitucional brasileira e norte de todo o sistema. A partir deste analisar-se-ão os
sistemas penitenciários que se desenvolveram ao longo da história e a Lei de
Execução Penal, principalmente no que concerne à aplicação da pena privativa de
liberdade, seus fundamentos e disposições. Ainda, tratar-se-ão dos malefícios e
benefícios da proposta privatizadora, da sua aplicação em outros países e a forma
como foi aplicada, bem como a possibilidade de sua aplicação no território brasileiro.
2 DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O sistema constitucional brasileiro se submete a uma estrutura hierárquica, na
qual a Constituição é o norte de todo o conjunto normativo. Nesta perspectiva, a
dignidade, que é o fundamento da própria ordem jurídica, propõe-se a ser a norma
de maior valor axiológico de todo o ordenamento.
Atributo do ser humano e pressuposto da condição humana, a dignidade da
pessoa humana, se ausente, daria ensejo à coisificação do indivíduo.
Nesta perspectiva, definiu-a Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p.60):
[...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e
distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e
consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste
sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a
pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano,
como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma
vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e
corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão
com os demais seres humanos.
No sistema constitucional brasileiro, a dignidade foi adotada como princípio
fundamental apenas na Constituição de 1988, passando a ser, além de valor ético e
moral, uma norma jurídica positivada, formalmente e materialmente constitucional, o
que ocasionou profundas alterações no sistema jurídico-constitucional que passou a
ser prioritariamente modelado com base em princípios ao invés de preceitos. Deste
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
modo, como pressuposto político do Estado Democrático de Direito, este princípio
condiciona o fim “dignidade do homem” à posição do Estado como meio, sendo este
o fator legitimador das ações estatais, conforme explica Sarlet (2001, p.66),
“reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa
humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e
não meio da atividade estatal”.
Ainda que seu conceito seja impreciso, sujeito a constantes atualizações e
diversificações, as situações em que a dignidade é vilipendiada são fáceis de
identificar em virtude da concretude alcançada por este princípio. Todas as
situações que ensejam na degradação humana são indignas. A dignidade, neste
sentido, traz consigo o ideal de justiça, independente de qualquer merecimento. É,
como já explanado, qualidade inerente ao ser humano, que independe de requisito
ou condição, e como tal pressuposto do Estado.
Na esfera penal não é diferente. Este princípio tem ampla relevância, uma vez
que fornece garantias ao homem de que este não receberá qualquer tratamento que
se revele como afronta à sua dignidade pessoal, repelindo toda ação tendente a
reduzi-lo a um mero objeto.
Entretanto, diariamente se verifica uma afronta a tal enunciado diante do caos
em diversos presídios brasileiros, uma vez que os presidiários são submetidos a
condições animalescas e indignas de existência, afastando qualquer possibilidade
de promoção da ressocialização, o que é, pelo menos em tese, o fim precípuo da
pena.
3 EXECUÇÃO PENAL NO BRASIL
A pena, conforme Cezar Roberto Bitencourt (2011, p. 514), “constitui um
recurso elementar com que conta o Estado e ao qual recorre, quando necessário,
para tornar possível a convivência entre os homens”.
Para o sistema jurídico penal brasileiro, o fundamento da pena vincula-se à
teoria mista heterogênea, unificadora ou eclética, articulada por Adolf Merkel, na
Alemanha, e desenvolvida por Franz Von Liszt. Para tanto, a escola alemã trabalhou
com os aspectos mais marcantes das teorias relativas e absolutas, sob o desiderato
de mesclar as características de retribuição e prevenção.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Neste sentido, tem-se que a ideia de retribuição está intimamente vinculada à
teoria absoluta. Para esta, a punição é um mal necessário àquele que praticou o
delito, devendo, no entanto, ser limitada pelo grau de sua culpa, em atenção aos
princípios da individualização da pena e da culpabilidade.
A prevenção, por sua vez, é intrínseca às teorias relativas. Nestas, a
finalidade da pena é reafirmar a soberania da norma penal para a sociedade, de
modo que o corpo social a cumpra em razão de sua legitimidade, e, também,
propiciar a ressocialização do apenado.
Portanto, a sanção penal é dotada de pluralidade funcional, uma vez que
pune o delinquente pelo crime praticado, mas, também, pretende a sua reinserção
social, conforme se depreende do artigo 59, do Código Penal.
Assim, o sistema penal é composto pelas penas privativa de liberdade e de
multa, além das restritivas de direito, as quais devem, ao menos em tese, servir para
atingir os objetivos propostos – ressocializar e retribuir.
Conforme Bitencourt (2011, p.642),
[...] não podemos ficar presos às duas formas clássicas e tradicionais de
sanção penal: a pecuniária e a pena privativa de liberdade. Devemos buscar
outras alternativas, como as penas substitutivas, ditas restritivas de direitos,
como fez nosso legislador, e como fizeram as modernas legislações
ocidentais. A Reforma Penal brasileira, evidentemente, sem chegar ao
exagero radical “não intervenção”, apresenta avanços elogiáveis na busca
da desprisionalização de forma consciente e cautelosa.
A pena privativa de liberdade, a que se atenta este estudo, envolve diversos
estabelecimentos penais para a sua aplicação, dos quais, apontam-se as
penitenciárias, a colônia agrícola ou industrial e a casa do albergado.
A penitenciária é o estabelecimento destinado ao cumprimento da pena de
reclusão em regime fechado. De acordo com o artigo 88 da LEP, a cela individual
deve conter elementos que proporcionem condições dignas de existência ao
condenado, tais como um ambiente salubre e uma área mínima de 6,00 m².
Em que pese a Lei de Execução Penal esteja em estrita consonância com as
previsões da ONU, suas previsões não condizem com a realidade carcerária
brasileira. Nesta linha, Luís Régis Prado (2011, p. 111) dispôs que, ainda que a Lei
se esforce
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
[...] no sentido de determinar a criação de um terreno que harmonize a
restrição da liberdade (provisória ou definitiva) com o próprio intento da
justiça penal, o que se percebe atualmente é uma estrutura carcerária que
se afunda nela mesma, pois ao contrário do que se espera, caminha na
contramão da finalidade que fundamenta a sua razão de ser. Vale ressaltar
que exceções, ao que atualmente se entende por regra, quando se trata de
estabelecimentos penais, existem, no entanto muito longe de fomentarem
as mudanças necessárias, representando exemplos isolados a serem
seguidos.
O estado deficiente e precário em que se encontram as penitenciárias faz
com que o objetivo da ressocialização esteja cada vez mais distante de ser
alcançado. Destarte, é notória a falência do instituto prisional, a qual, conforme
Bitencourt (2011b, p. 164), resulta do déficit de atenção que “a sociedade e,
principalmente, os governantes têm dispensado ao problema penitenciário, o que
nos leva a exigir uma série de reformas, mais ou menos radicais, que permitam
converter a pena privativa de liberdade em meio efetivamente reabilitador”.
Quanto à colônia agrícola, industrial ou similar, estas devem abrigar os
condenados em regime semiaberto. Para tanto, as condições de segurança são
menos rigorosas e pretende-se a reinserção do condenado por meio de cursos
profissionalizantes, aparelhagem moderna que proporcione a sua capacitação,
prática esportiva e salas de ensino. No entanto, “não obstante a literalidade do texto,
é notória a falência do regime semiaberto, que pode ser identificada por diversos
fatores” (MARCÃO, 2010, p.137).
Isto porque, da prática, extrai-se que tal regime não se coaduna com a sua
finalidade, em razão da falta de estabelecimentos suficientes para a demanda
carcerária, da desatenção à progressividade de regime, da superlotação dos
estabelecimentos de regime fechado em virtude do transporte dos condenados em
regime semiaberto para este e a inexistência de resultados práticos a fim de se dar
cumprimento às finalidades da pena.
Por fim, a casa do albergado, que, em conformidade com o artigo 93 da Lei
de Execução Penal, tem a função de abrigar os condenados em regime aberto e em
limitação de fim de semana. Quando possível, “o prédio destinado a casa do
albergado
deverá
situar-se
em
centro
urbano
separado
dos
demais
estabelecimentos, e caracterizar-se pela ausência de obstáculos físicos contra a
fuga” (MARCÃO, 2010, p. 141), a fim de verificar a responsabilidade dos apenados.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Todavia, em razão da falta de estabelecimentos desta categoria, as penas
privativas de liberdade em regime aberto e restritiva de direito de limitação de fim de
semana, quando aplicadas, acabam sendo cumpridas em regime domiciliar.
4 PRIVATIZAÇÃO DAS PENITENCIÁRIAS
À época da Revolução Francesa, em razão de os poderes político e
econômico serem controlados pela realeza, a classe burguesa pugnou pela
separação entre estes, visando à detenção do controle social. Mais tarde, na ânsia
por um maior domínio social, a burguesia passou a comandar também o poder
político, instaurando-se, assim, o que se chamou de Estado Liberal, Estado, este,
caracterizado pela livre iniciativa e regulação automática dos mercados.
Após a Segunda Guerra, as dificuldades práticas desta medida restaram mais
perceptíveis e, com isto, vislumbrou-se a necessidade de um Estado mais ativo, que
interviesse nas relações econômicas, um Estado Social que pudesse instaurar
novamente o equilíbrio econômico social.
Ocorre que, a excessiva burocracia e a utilização sem freios das políticas
intervencionistas ocasionaram um grande déficit nos cofres públicos e, para esse
novo contexto, foi necessário, mais uma vez, o reposicionamento do Estado.
Com isto, reduziu-se a participação estatal e instaurou-se o Estado neoliberal,
cuja característica essencial é a restrição da intervenção estatal às atividades
estritamente necessárias, delegando aos particulares a execução das demais
tarefas.
Neste contexto, por volta da década de 80, deu-se início à política
privatizadora, na qual foram transmitidos à iniciativa privada os serviços até então
acolhidos pelo Estado.
Pois bem. No campo penitenciário, privatizar consiste, em suma, em transferir
para a iniciativa privada a execução da pena privativa de liberdade, o que pode
ocorrer em diversos graus e formas, de acordo com o contexto social no qual é
aplicada.
Partindo deste princípio, podem-se indicar quatro modelos básicos de
privatização (CARVALHO FILHO, 2002, p. 63):
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
[...] a empresa financia a construção e arrenda o estabelecimento para o
Estado por determinado número de anos (30, por exemplo), diluindo-se os
custos ao longo do tempo; a empresa transfere unidades produtivas para o
interior de presídios e administra o trabalho dos presos; a empresa apenas
fornece serviços terceirizados no âmbito da educação, saúde, alimentação,
etc.; e, por fim, a forma mais radical, a empresa gerencia totalmente o
presídio, conforme regras ditadas pelo poder público, sendo remunerada
com base num cálculo que leva em considera o número de presos e o
número de dias administrados.
Assim, tem-se que as três primeiras formas se revelam como privatizações
parciais ou em sentido estrito. Nestas, reservam-se à iniciativa privada apenas as
atividades materiais, enquanto que ao Estado cabem aquelas de cunho jurisdicional.
A última modalidade elencada por Carvalho Filho, por sua vez, consiste na
privatização total ou sentido amplo, espécie esta que desvincula totalmente a
administração pública do cumprimento da pena, competindo, desta forma, apenas
ao particular a execução da pena.
Deste modo, tem-se que a privatização é o gênero do qual se extraem
diversas espécies, sendo o seu conceito amplo e aberto, sujeito à moldura do
contexto social em que se insere.
4.1 Modelos Norte Americano e francês
O problema prisional, conforme explica Luiz Flávio Borges D’Urso, não é
apenas estatal, mas de toda a sociedade. E, em meio ao caos penitenciário, a
proposta privatizadora, tornou-se a mais viável e eficaz, devendo, entretanto, ser
aplicada conforme o contexto social e legal de cada país.
Nos Estados Unidos, a superlotação dos presídios e o elevado custo com o
sistema da época foram fatores preponderantes para desencadear uma discussão
acerca do problema penitenciário.
Foi então que, em meados da década de 80, a privatização surgiu como
proposta ao caos carcerário americano, conforme descreveu Laurindo Dias Minhoto
(2000, p. 64):
É precisamente num contexto de explosão da população penitenciária, de
escalada dos gastos, de degradação das condições de alojamento que, por
sua vez, tem levado à intervenção judicial no sistema, e de uma postura do
público que, ao mesmo tempo em que exige penas mais duras para os
26
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
violadores da lei penal, recusa-se a autorizar os recursos necessários à
construção de novos estabelecimentos, que as prisões privadas têm sido
propostas e apresentadas como solução à crise do sistema penitenciário
norte-americano.
Contudo, além de ser uma fonte de economia ao Estado, a privatização
revelou-se como objeto de exploração da iniciativa privada, "com a perspectiva de
gerar altíssimos lucros, razão pela qual o empresariado norte-americano passou a
exercer forte pressão para que essa ideia fosse concretizada, tendo finalmente o
Estado cedido" (CORDEIRO, 2006, p. 91), o que ainda é objeto de muitas discussões.
Com efeito, cumpre salientar que, embora os resultados da privatização
americana tenham se revelado positivos, a experiência deste país limitou-se a um
expoente carcerário, qual seja, os jovens delinquentes e aqueles em fase final de
cumprimento da pena, em razão dos elevados custos do encarceramento face ao
aumento de presos provocado pela política da tolerância zero adotada neste país.
Atualmente, vislumbra-se que a tendência americana é de que a privatização
total dos estabelecimentos penais ceda lugar à terceirização dos serviços, num
sistema de cogestão em que a contratação de serviços e a construção dos presídios
sejam da iniciativa privada, enquanto as demais funções pertençam ao Estado.
A França, por sua vez, do mesmo modo que os Estados Unidos,
enfrentou uma grave crise carcerária, em razão da superlotação e das péssimas
condições oferecidas aos presidiários, além do fato de que toda a política criminal
francesa se encontrava em ruínas.
Contudo, o modelo de gerência privada adotado por este país foi diferente do
americano.
O sistema francês baseou-se em um “modelo de dupla responsabilidade, no
qual o Estado e o particular firmaram uma parceria para gerenciar e administrar o
estabelecimento penitenciário" (CORDEIRO, 2006, p. 109). Isto é, havia uma gestão
mista na qual a iniciativa privada se responsabilizava pela construção do
estabelecimento prisional, ao mesmo tempo em que, em conjunto com o setor
público, realizava os ditames da execução penal daquele país, em um quadro de
funções previamente distribuído e organizado.
Nas palavras de João Marcello de Araújo Junior (1995, p. 81),
27
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Este sistema de cogestão tem alguns pontos primordiais definidos em
contrato, a saber: ao Estado cabe a indicação do Diretor Geral do
estabelecimento, seu relacionamento com o juízo de execução penal e a
responsabilidade pela segurança interna e externa da prisão, à empresa
contratada compete a organização do trabalho, da educação, do lazer, da
alimentação, do fornecimento de vestimentas e demais serviços
relacionados ao preso, incluindo assistência médica, social e jurídica; esta
empresa receberá uma quantia por preso/dia pela prestação desses
serviços.
Desta forma, verificou-se, na França, uma forma de privatização mais sútil,
em que cabia ao particular e também, ao poder público, a execução da pena,
diferente do sistema de privatização total adotado pelos Estados Unidos, em que a
gestão dos presídios era exclusivamente da iniciativa privada.
4.2 Experiências Brasileiras
Os cárceres brasileiros não enfrentam problemas tão diferentes dos demais
países. A superlotação é um problema global e tornou-se o alicerce das condições
precárias a que são submetidos os apenados.
Neste sentido é o relatório “O Brasil atrás das grades", realizado pela Human
Rights Watch, que procura descrever a situação vivenciada pelos brasileiros
encarcerados (MARINER, 2012):
Os presos brasileiros são normalmente forçados a permanecer em terríveis
condições de vida nos presídios, cadeias e delegacias do país. Devido à
superlotação, muitos deles dormem no chão de suas celas, às vezes no
banheiro, próximo ao buraco do esgoto. Nos estabelecimentos mais lotados,
onde não existe espaço livre nem no chão, presos dormem amarrados às
grades das celas ou pendurados em redes. A maior parte dos
estabelecimentos penais conta com uma estrutura física deteriorada, alguns
de forma bastante grave.
Assim, em razão dos graves problemas que assolam o sistema penitenciário
brasileiro, a questão penitenciária passou a ser objeto de discussões doutrinárias e
legislativas, resultando na apresentação de proposta de privatização ao Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária por Edmundo Oliveira, a qual restou
rejeitada sob o fundamento de contrariedade à ordem constitucional.
Com efeito, a pressão política em torno da melhoria da estrutura carcerária
brasileira fez com que fossem adotadas medidas hábeis a minimizar as mazelas do
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
cárcere, como a construção de dois protótipos de prisões privatizadas na
modalidade terceirização de serviços: uma no Ceará e outra no Paraná, ainda que
alvos de crítica por um segmento da sociedade.
A Penitenciária de Guarapuava/PR, considerada a pioneira no Brasil, foi
inaugurada em 1999. Com esta experiência, o Estado permaneceu “com a tutela do
Estabelecimento, nos aspectos relacionados à Direção, segurança e controle de
disciplina" (KUEHNE, 2013), não tendo, a iniciativa privada, afetado a atividade
jurisdicional.
Ainda, no que tange à mão de obra, possibilitou-se "a atividade laborativa dos
internos, mediante remuneração, viabilizados os instrumentos de locação de
serviços dos internos, com o Fundo Penitenciário do Estado" (KUEHNE, 2013),
sendo este um dos fatores fundamentais à diminuição dos índices de reincidência.
A Penitenciária Industrial do Cariri/Ceará, por sua vez, foi a segunda a ser
implantada no território brasileiro. Da mesma forma que na experiência paranaense,
ao poder executivo coube a "responsabilidade pela segurança interna e externa,
enquanto as demais atividades ficariam sob a responsabilidade da iniciativa privada"
(CORDEIRO, 2006, p. 123).
Em ambos os estados, em que pese a resistência de parcelas da sociedade,
foram construídos outros protótipos de prisões privatizadas, os quais obtiveram os
mesmos resultados destas experiências, tais como, a execução da pena com
condições dignas e a diminuição da reincidência.
4.3 Óbices e Vantagens do Sistema Privatizador
A política privatizadora não encontra óbice apenas no aspecto constitucional,
mas no ético e no político criminal.
As posições são as mais diversas, e os argumentos prós e contras também
(ARAUJO NETO, 2013):
Discute-se, atualmente, não a prisão como consequência pela prática de um
delito, mas o modelo de administração das penitenciárias (também
chamadas de prisões), constituindo-se foco de debates acirrados, a
demonstrar a existência de pontos de vista absolutamente inconciliáveis.
Para os que defendem uma mudança na política penitenciária brasileira, a
fim de permitir a participação de empresas (privadas) na gerência de
estabelecimentos carcerários, a privatização (expressão que se generalizou)
29
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
é uma tentativa experimentada em alguns países que não pode deixar de
ser implementada, já que, independentemente de uma reflexão
aprofundada, no Brasil, qualquer um é capaz de concluir que o cárcere, do
modo como ora se administra, não recupera o internado, ao revés, agride
aquele que precisa de ajuda. Os que se posicionam em sentido contrário,
por outro lado, veem na privatização a impossibilidade de delegação de
poder de punir, que é inerente à própria essência do Estado, e, sobretudo,
não concebem, sob o aspecto ético-moral, que uma empresa possa gozar
de lucros às custas do sofrimento humano.
A parte doutrinária contrária à privatização das penitenciárias argumenta que,
sendo a execução penal uma atividade de cunho jurisdicional, é indelegável e,
portanto,
passível
de
ser
exercida
apenas
pelo
Estado,
sob
pena
de
inconstitucionalidade.
Isto porque, sendo a atividade penitenciária atributo da Administração Pública,
não é possível que seja transferida aos particulares a sua execução sem prévia
regulamentação em lei, em razão do princípio da legalidade administrativa estrita,
pelo qual à administração só é lícito fazer aquilo que está previamente autorizado
por norma.
Entretanto, se por um lado critica-se a transferência do poder jurisdicional, por
outro, certo é que não há dispositivo legal que vede a operacionalização dos
estabelecimentos penais por entidades privadas. Neste sentido é o pensamento de
D’Urso, o qual dispôs que “quanto à constitucionalidade da proposta, partimos da
premissa de que a Lei maior foi clara e o que ela não proibir, permitiu” ( D’URSO,
2013).
Sob outro ângulo, necessário ressaltar que em parecer proferido por Maurício
Kuehne (2013), restou esclarecido que a terceirização de serviços em nada fere o
princípio da legalidade e, portanto, não se revela inconstitucional:
[...] a questão atinente à eventual terceirização de serviços pode ser
viabilizada. Para tanto há lei e dispensável, neste aspecto, qualquer reforma
legislativa.
Assim, perceptível é que se realmente houver inconstitucionalidade na
privatização total, outras soluções podem ser ofertadas, de modo que seja efetivada
a privatização, ainda que em diferentes graus.
30
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
No tocante ao aspecto ético, diz-se, também, ser a privatização inviável, isto
porque as empresas privadas teriam nos presídios uma grande fonte econômica, o
que ensejaria na busca desenfreada por maiores vantagens. Neste caso, “o objetivo
da execução penal seria completamente desvirtuado, uma vez que a finalidade
ressocializadora seria relegada a segundo plano, em detrimento da lucratividade que
o preso passa a representar" (CORDEIRO, 2006, p. 82).
De outro vértice, ainda sob o viés ético, certo é que é inconcebível o exercício
do poder por um particular sobre um ser humano. Apenas o Estado tem o monopólio
do poder e da força e, sendo assim, a coação exercida pelo particular diante da
atividade privatizadora não se coaduna com os princípios de liberdade e igualdade
proclamados pelo Estado, tampouco com a conduta ética que deve ser adotada por
este.
De acordo com o argumento político, "privatizar prisões significa consagrar
um modelo penitenciário que a ciência criminológica revelou fracassado e, além
disso, considerado violador dos direitos fundamentais do Homem" ( ARAUJO JUNIOR,
1995, p. 19). Isto é, a privatização não solucionaria nada, pois o problema não é só
estrutural, mas também da política criminal aplicada.
Deste modo, com a adoção do modelo privatizador, os homens/réus seriam o
meio do qual o lucro seria o fim, o que por si só é capaz de mitigar a dignidade
humana e de desvirtuar a finalidade da pena que deveria, em tese, ser a mesma do
sistema de privatização.
Além disto, cumpre ressaltar que em razão da lucratividade da atividade,
corre-se o risco de estar incentivando o crime, uma vez que encarceramento e lucro
são grandezas diretamente proporcionais, ou seja, quanto maior o número de
encarcerados, mais lucrativa será a atividade da iniciativa privada, podendo revelarse, a privatização, como uma fábrica de crimes.
Insta salientar que, em que pese haja diversos argumentos contrários, certo é
que são diversos os benefícios trazidos pela privatização dos presídios. Dentre eles,
as condições de assistência, a reinserção social e a redução dos gastos estatais são
os mais apontados.
A negligência do Estado quanto à ociosidade, ao atendimento jurídico e
médico dos detentos, à superpopulação, dentre outros fatores, é fato notório. Com a
privatização, em razão do custo efetivo de um preso para o Estado, a pretensão é de
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
que tais precariedades sejam minimizadas ou até mesmo, extintas, oferecendo-se
uma digna condição de cumprimento da pena e um novo paradigma à execução
penal.
Além disto, vale dizer que a rentabilidade importa em benefícios, uma vez que
se por um lado a iniciativa privada aufere lucros com este sistema, por outro, tem o
dever de investir, principalmente no que concerne à assistência ao preso, seja ela
quanto às necessidades básicas (vestuário, saneamento, alimentação e saúde),
como também às secundárias (lazer, trabalho, educação).
Ainda, conforme César Barros Leal (2006, p. 112), “os cárceres privados, pela
excelência de seus serviços, por sua orientação humanística (que estariam ausentes
nas demais prisões), constituem locus de reabilitação e, portanto, são instrumentos
de diminuição de reincidência”, tornando efetiva a finalidade da pena.
Vislumbra-se, também, que o trabalho desenvolvido pelo preso atenderá
melhor aos requisitos estipulados pela Lei de Execução Penal, uma vez que suas
reais habilidades serão levadas em conta, ao invés de efetuar atividades que não
poderão lhe proporcionar benefícios ao final do cumprimento da pena, como a
qualificação profissional.
Neste sentido, frisa-se que apesar de o trabalho prisional ser o ponto mais
controvertido quando o assunto é execução penal, a privatização estaria conferindo
efetividade à previsão legal, pois embora questionável a sua obrigatoriedade, certo é
que a Lei nº 7.210/84, LEP, assim o prevê, conforme o caput do artigo 31:
Art. 31. O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao
trabalho na medida de suas aptidões e capacidade.
Deste modo, o trabalho continua a ser obrigatório, porém será realizado na
medida das qualificações pessoais do condenado, o que se revela como ponto
positivo e jamais o contrário.
Ressalta-se, por fim, que a eficiência da empresa é o que garantirá a
renovação do contrato e, por certo, isto acarretará em remuneração digna
aos funcionários, além de constante capacitação dos mesmos, procurando dar azo
aos preceitos da Lei de Execução Penal, sempre sob a vigilância estatal.
32
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
4.4 As Parcerias Público Privadas e a Viabilidade Da Privatização
A execução penal possui diversas atividades inerentes à sua natureza. Dentre
elas, é possível discernir as atividades de cunho jurisdicional e as de mera execução
material. A primeira, por óbvio, refere-se à atividade administrativa judiciária e, face
ao poder estatal, não pode ser desempenhada pela iniciativa privada, enquanto a
segunda pode ser realizada por particulares, com o intuito de buscar melhorias para
o sistema.
Considerando estas diferenciações entre as atividades condizentes à
execução da pena, certo é que a privatização dos presídios, desde que não seja
aplicada em seu grau máximo, não transfere, necessariamente, o jus puniendi do
Estado ao particular, posto que, na modalidade de cogestão, o poder de império já
dito indelegável, permanecerá não mãos do poder público e, assim, não há óbice
constitucional que se imponha.
Nas palavras de D’Urso (2013):
[...] transferindo a função jurisdicional do Estado para o empreendedor
privado, que cuidará exclusivamente da função material da execução penal,
vale dizer, o administrador particular será responsável pela comida, pela
limpeza, pelas roupas, pela chamada hotelaria, enfim, por serviços que são
indispensáveis num presídio.
E, continua explicando que, neste sentido, caberá ao Estado juiz determinar
“quando um homem poderá ser preso, quanto tempo assim ficará, quando e como
ocorrerá punição e quando o homem poderá sair da cadeira, numa preservação do
poder de império do Estado” (D’URSO, 2013), o único titular legitimado para o uso
da força, dentro conforme a Lei.
Contanto, a fim de solucionar os pontos emblemáticos da questão
privatização, em razão do conflito poder da iniciativa privada versus poder público e
também dos óbices legais à privatização total, surgem as parcerias público privadas.
Há muito esta modalidade vem sendo adotada nos setores sociais, como
habitação, saneamento e manuseamento de vias terrestres, uma vez que o setor
público não dispõe de recursos suficientes e a iniciativa privada realiza seus serviços
com eficiência.
33
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
No sistema penitenciário não é diferente. As parcerias público privadas
apresentam-se como a solução mais viável para o caos carcerário com que a
sociedade se depara atualmente.
Com as parcerias, os serviços ditos de hotelaria seriam repassados à
iniciativa privada e o Estado seria responsável por toda a parte jurisdicional que
envolve a pena.
A terceirização, por seu turno, nada mais é do que a “contratação de uma
empresa (tomadora) por uma outra prestadora de serviço para a realização de
determinadas atividades meios, que podem se tratar de bens, serviços ou produtos”
(CORDEIRO, 2006, p. 134), desde que a empresa tomadora permaneça com a
titularidade da atividade fim.
No âmbito da administração pública, a terceirização se dá por via da
concessão ou permissão, conforme se extrai do artigo 175, da Constituição Federal.
A concessão, modalidade na qual se encaixa a privatização das
penitenciárias em sua espécie terceirização, se caracteriza por ser um "contrato de
prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou
indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens"
(LEAL, 2006, p. 123), em outros termos, é a delegação da execução do serviço
público sem que haja a transferência de sua titularidade a um particular.
Por óbvio que, em havendo interesse público, a contratação deve se
submeter aos princípios de direito administrativo, como o da legalidade e o da
moralidade, o que impõe uma série de requisitos, tais como, licitação prévia à
contratação da empresa privada, definição da prestação de serviço por concessão
em lei e publicidade dos eventos.
Em que pese haver a necessidade de um procedimento legal que
regulamente pontos objetivos e dúbios acerca das parcerias público privadas, esta
modalidade de privatização, conforme Cordeiro (2006, p.154),
[...] tem sido considerada uma das formas de minimizar alguns dos
inúmeros problemas do encarceramento, principalmente a superpopulação
carcerária, além da estigmatização do preso, da reincidência e da violação
aos direitos humanos mais elementares.
34
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Não há como negar que com a privatização diversos dispositivos que hoje
passam despercebidos aos olhos do poder público seriam levados a efeitos. O
espaço físico das celas, a disposição dos presos em razão do delito cometido e do
caráter provisório ou não da medida prisional e o número de detentos por cela
seriam alguns dos direitos a que fariam jus os encarcerados. Observe-se que são
direitos e não meros benefícios, previstos em lei e considerados utopias por diversos
doutrinadores que poderiam ser efetivados com a adoção da privatização.
Sobre o tema, declarou Fernando Capez (2002):
Nós temos depósitos humanos, escolas de crime, fábrica de rebeliões. O
estado não tem recursos para gerir, para construir os presídios. A
privatização deve ser enfrentada não do ponto de vista ideológico ou
jurídico, se sou a favor ou contra. Tem que ser enfrentada como uma
necessidade absolutamente insuperável. Ou privatizamos os presídios;
aumentamos o número de presídios; melhoramos as condições de vida e da
readaptação social do preso sem necessidade do investimento do Estado,
ou vamos continuar assistindo essas cenas que envergonham nossa nação
perante o mundo. Portanto, a privatização não é a questão de escolha, mas
uma necessidade indiscutível é um fato.
A superpopulação, quiçá um dos problemas penitenciários mais notórios,
quanto traduzida em números reais, torna-se ainda mais perceptível. Nesta linha,
certo é que o déficit de vagas no sistema prisional brasileiro é surpreendente,
alcançando, de acordo com os dados disponibilizados pelo DEPEN (2013), uma cifra
de 194.650 vagas faltantes, o que demonstra a realidade em que vivem os
encarcerados, uns abarrotados pelos outros, sem quaisquer condições de dignidade,
numa constante violação aos direitos do homem3.
Por fim, cumpre salientar que, ainda que a privatização não seja capaz de
resolver todos os problemas pertinentes à segurança pública, apresenta-se como
uma resposta rápida e eficiente aos problemas penitenciários, cuja responsabilidade
até então é do poder público, o qual não tem oferecidos soluções plausíveis e
eficientes à questão penitenciária.
3
Dado interessante é que a Inglaterra, país que adotou o sistema privatizador, apresentava à época,
um déficit de aproximadamente 2.331 vagas e já se pronunciou sobre o tema, reconhecendo a
gravidade do problema, suas consequências e necessidade de transferência deste serviço à iniciativa
privada. Observe-se que o numerário brasileiro é, aproximadamente, 80 vezes maior que o inglês e,
nenhuma providência foi adotada neste sentido. (MINHOTO, 2010, p.)
35
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo buscou analisar a polêmica questão da privatização das
penitenciárias, sob a ótica do princípio da dignidade humana, o qual é o cerne do
Estado Democrático Brasileiro.
É notória a crise que assola o sistema penitenciário brasileiro, sendo este
ponto objeto de diversos livros, teses e noticiários diários. Ocorre que, por mais
evidente que seja o caos carcerário, os problemas apresentados ficam a mercê do
poder público, o qual não responde devidamente à questão.
A privatização veio então como uma alternativa a problemática, sendo
implantada em diversos países desde a década de 80, de acordo, por óbvio, com as
peculiaridades de cada nação.
Nesta perspectiva, procurou-se demonstrar que, ainda que se oponham
obstáculos de cunho ético, político e até mesmo constitucional, não há nada que
justifique o desrespeito flagrante à dignidade humana como ocorre hoje, uma vez
que esta é o alicerce do Estado.
É uma utopia acreditar que a situação carcerária atual irá melhorar
automaticamente. O sistema penitenciário necessita de reformas urgentes, de modo
que as condições animalescas e degradantes de cumprimento da pena deixem de
ser a regra.
Deste modo, sugere-se que a privatização seja aplicada, ainda que em menor
grau, na modalidade de cogestão, de forma que não será uma afronta à constituição,
tampouco à ética ou política criminal. Nesta espécie, a iniciativa privada e o poder
público desempenham em paridade de funções as atividades referentes à execução
da pena, ficando a cargo do poder público as atividades de cunho jurisdicional e dos
particulares, aquelas estritamente materiais.
Com isto, o jus puniendi continuaria nas mãos do Estado, o único legitimado a
exercê-lo em nosso sistema constitucional, e se daria azo às previsões da Lei de
Execução Penal e da Constituição no que diz respeito ao cumprimento e finalidade
da pena e ao atendimento ao princípio da dignidade humana.
Por óbvio que muitas questões referentes à terceirização e parcerias público
privadas ainda precisam de discussão e tratamento, entretanto, sua necessidade é
evidente em razão do perigo eminente e atual que o cárcere oferece aos
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
encarcerados, numa constante violação dos direitos humanos, em que não apenas a
liberdade vem sendo suprimida, mas um conjunto imensurável de direitos inerentes
ao homem.
37
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
REFERÊNCIAS
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<http://www.pgj.cr.gov.br/servicos/artigos/artigos.asp/iCodigo=76>. Acesso em: 21
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Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 de julho de
1984.
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CORDEIRO, Grecianny Carvalho. Privatização do sistema prisional brasileiro. 1.
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DEPEN. Sistema Prisional. Disponível em: <http://www.portal.mj.gov.br>. Acesso
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D’URSO, Luiz Flávio Borges. A privatização dos presídios. Disponível em:
<http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/19923>. Acesso em: 26 de fevereiro de
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KUEHNE, Mauricio. Privatização dos Presídios: algumas reflexões. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/12563-12564-1-PB.pdf>.
Acesso em: 11 de março de 2013.
LEAL, César Barros. A privatização das prisões.In: ______. Notórios do Direito
Penal: Livro em homenagem ao emérito Professor Doutor Rene Ariel Dotti. Brasília:
Consulex, 2006. p. 105-134.
38
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
MARCÃO, Renato. Curso de execução penal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
MARINER, Joanne. O Brasil atrás das grades.
<http://www.hrw.org>. Acesso em: 30 novembro 2012.
Disponível
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MINHOTO, Laurindo Dias. Privatização de presídios e criminalidade. São Paulo:
Max Limonad, 2000, p. 64.
PRADO, Luís Regis et al. Direito de Execução Penal. 2ª ed. São Paulo: Revista
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SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais
na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
39
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
40
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
INCONSTITUCIONALIDADE DA FALTA DE UM LIMITE TEMPORAL
NAS MEDIDAS DE SEGURANÇA
UNCONSTITUTIONALITY OF THE LACK OF A TIME LIMIT ON
SECURITY MEASURES
Alessa Maria Cavali Royer1
Guilherme Oliveira de Andrade2
Acadêmica do 8º período do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba.
É advogado e professor de Direito Penal do Centro Universitário Curitiba. É Bacharel em Direito pela
Faculdade de Direito de Curitiba (2006) e Especialista em Direito Criminal pelo Centro Universitário
Curitiba (2008). É Mestre em Direito Penal pelo Centro Universitário Curitiba (2009) e Doutorando
pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
1
2
41
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SUMÁRIO
Resumo 1 Introdução 2 Conceito e Requisitos das Medidas de Segurança 2.1
Tipo de Injusto 2.2 Ausência de Imputabilidade Plena 2.3 Periculosidade 3 Histórico
das Medidas de Segurança 4 Penas e Medidas de Segurança 5 Crise das
Medidas de Segurança 5.1 Limite Temporal 5.2 Periculosidade Como Fundamento
da Indeterminação Temporal 5.3 Inoperabilidade das Medidas de Segurança e
Consequente Limitação Temporal 6 Considerações Finais. Referências
42
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
O presente trabalho objetiva analisar a constitucionalidade da aplicação das
medidas de segurança face a vedação de penas perpétuas prevista na Constituição
da República Federativa do Brasil, demonstrando que apesar de penas e medidas
de segurança diferenciarem-se conceitualmente, a aplicação prática das medidas de
segurança evidencia um caráter eminentemente retributivista, incompatível com o
fundamento de prevenção especial conceitualmente declarado, aproximando-a das
penas. Diante do cenário de ineficácia deste instituto jurídico penal, evidencia-se a
necessidade de aplicar os princípios limitadores da pena também à media de
segurança, com enfoque no princípio da vedação de penas perpétuas, a fim de
compatibilizar este instituto jurídico penal com a Constituição da República
Federativa do Brasil, bem como com um Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: medidas de segurança, penas perpétuas, Constituição da
República Federativa do Brasil, penas, Estado Democrático de Direito.
43
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
The following work aims to analyze the constitutionality of measures of security
application due to the injunction of life sentences foreseen in the Constitution of the
Federative Republic of Brazil, demonstrating that, despite of the conceptual
distinction between sentences and measures of security, the practical application of
measures of security are evidence of a retributivist character, incompatible with the
basis of special prevention conceptually declared, which brings it closer to the
penaltys. In face of the inefficiency of this criminal legal institute, a need for also
applying the restraining principles of the penaltys to the measures of security is
evident; with the focus on the principle of the injunction of life sentences, in order to
make this criminal legal institute compatible with the Constitution of the Federative
Republic of Brazil, as well as with a Democratic State of Law.
Keywords: measures of security, life sentences, Constitution of the Federative
Republic of Brazil, Democratic State of Law.
44
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
A medida de segurança é um instituto jurídico penal aplicado a inimputáveis e,
por vezes, a semi-imputáveis como consequência do tipo de injusto praticado por
agentes dotados de periculosidade. A compreensão da aplicabilidade deste instituto
demanda discussão acerca do conceito de medidas de segurança, de culpabilidade
dentro da teoria do delito, bem como o conceito de periculosidade.
Pretende-se expor o conceito de medidas de segurança, tecer breves
explanações sobre a culpabilidade dentro da teoria do delito, o que permite a análise
dos requisitos de aplicação desse instituto jurídico penal, quais sejam, a realização
de um tipo de injusto, ausência de imputabilidade plena e periculosidade do agente.
A diferença teórica entre penas e medidas de segurança também será
analisada, demonstrando que, ao menos teoricamente, penas e medidas de
segurança são institutos jurídico penais completamente distintos.
Por fim, apresenta-se algumas críticas a atual aplicação das medidas de
segurança, com principal enfoque na inexistência de limitação temporal máxima, o
que viola o dispositivo constitucional que veda a existência de penas perpétuas,
demandando discussão acerca da constitucionalidade da falta de um limite temporal
máximo.
O presente trabalho objetiva a reflexão a respeito da aplicabilidade prática
deste instituto jurídico penal, pois, de fato, as medidas de segurança impõem limites
e restrições de direitos fundamentais assim como as penas, sendo, desse modo,
igualmente aflitivas, pois não há como realizar um tratamento sem privação ou
restrição de direitos, independentemente da discussão acerca das funções e
fundamentos da pena e medida de segurança.
Desse modo, verifica-se a necessidade de interpretação do texto legal e
constitucional de maneira mais ampla, a fim de evitar violação do artigo 5º, inciso
XLVII, da Constituição da República Federativa do Brasil, que estabelece a vedação
de penas com caráter perpétuo, demonstrando que a falta de um limite temporal
para as medidas de segurança viola os princípios basilares de um Estado
Democrático de Direito e a Constituição da República Federativa do Brasil.
45
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
2 CONCEITO E REQUISITOS DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA
A medida de segurança é um instituto jurídico penal aplicado a inimputáveis e,
por vezes, a semi-imputáveis como consequência jurídica ao tipo de injusto
praticado por esses agentes dotados de periculosidade criminal. A legislação penal
não conceitua medidas de segurança, sendo que a doutrina traça algumas
considerações importantes.
Luiz Regis Prado (2005. p. 742-743) estabelece um conceito para medidas de
segurança,
As medidas de segurança são consequências jurídicas do delito, de caráter
penal, orientadas por razões de prevenção social. Consubstanciam-se na
reação do ordenamento jurídico diante da periculosidade criminal revelada
pelo delinquente após pratica de delito.
Aníbal Bruno (1977, p. 119) define medidas de segurança como “a
consequência jurídico-penal do estado perigoso”, estabelecendo que “medidas de
segurança, portanto, são meios jurídicos-penais de que se serve o Estado para
remover ou inocuizar o potencial de criminalidade do homem perigoso”.
A compreensão do conceito de medida de segurança demanda discussão
acerca dos requisitos de aplicação deste instituto jurídico penal, quais sejam, a
prática de um tipo de injusto, ausência de imputabilidade plena e periculosidade.
2.1 TIPO DE INJUSTO
O tipo de injusto consubstancia-se na realização de uma conduta típica e
antijurídica. Tanto para a aplicação da pena quanto da medida de segurança faz-se
necessária a presença do tipo de injusto.
O primeiro ponto a ser analisado é a tipicidade, ou seja, a conduta praticada
pelo autor deve amoldar-se perfeitamente à descrição abstrata contida no tipo penal
da norma incriminadora. Tipo é definido por Cesar Roberto Bittencourt (2012, p. 336)
como “o conjunto de elementos do fato punível descrito na lei penal. ” Luiz Regis
Prado (2010, p. 354) define-o como “a descrição abstrata de um fato real que a lei
proíbe”.
46
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Logo em seguida, tem-se a antijuridicidade, que consiste na verificação de
que essa conduta típica viola a previsão de conduta desejada pelo ordenamento
jurídico como um todo, pois não há nenhuma causa excludente que permita a
realização da conduta praticada pelo agente.
Luiz Regis Prado (2010, p. 354) leciona que a antijuridicidade “deve ser
entendida como um juízo de desvalor objetivo que recai sobre a conduta típica e se
realiza com base em um critério geral: o ordenamento jurídico. ”
Importante ressaltar que a falta de tipicidade e antijuridicidade acarreta a
consequência de ausência de crime, por ser atípica a conduta praticada pelo agente
não há nada a ser apurado e, em sendo típica, o ordenamento jurídico pode permitir
sua realização. Verifica-se que embora seja uma conduta descrita na legislação
penal como crime o ordenamento jurídico permite sua realização, não podendo ser
cominada ao agente uma pena ou medida de segurança.
A realização do tipo de injusto é essencial para a aplicação das medidas de
segurança, do contrário, somente com fundamento na periculosidade do penalmente
incapaz não se pode conceber como constitucional a intervenção do direito penal.
Nesse sentido são as lições de Haroldo da Costa Andrade (2004, p. 13),
As medidas de segurança pressupõem a prática de fato previsto como
crime e a periculosidade do agente. Não basta, pois, somente este último
requisito para impô-la. Necessário é imprescindível que o inimputável, na
condição de agente ativo, cometa um crime, ou seja, um fato típico punível
definido em lei.
Além disso, esse requisito “funciona como critério limitativo, com vistas a
afastar a imposição de medidas de segurança pré-delitivas por motivos de
segurança jurídica” (PRADO, 2005. p. 646).
Desse modo, a necessidade da prática de um tipo de injusto relaciona-se com
o princípio da lesividade, um dos pilares do direito penal atual, uma vez que esse
princípio preconiza a intervenção do direito penal somente quando houver lesão a
bens jurídicos.
Portanto, um inimputável dotado de periculosidade não poderá ser submetido
à uma medida de segurança se não praticou efetivamente um tipo de injusto. Nesse
sentido, adverte Juarez Cirino dos Santos (2010, p. 611),
47
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
O inimputável pode realizar ações típicas justificadas por legítima defesa,
estado de necessidade ou outra causa de exclusão da antijuridicidade, cuja
presença descaracteriza o tipo de injusto e, assim, exclui o pressuposto das
medidas de segurança.
Mesmo diante da prática de um tipo de injusto como requisito na aplicação
das medidas de segurança, em muitos casos esse instituto jurídico penal é aplicado
a um infrator protegido pelas excludentes de ilicitude (estado de necessidade,
legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito).
Ou ainda, a lesão praticada por ser insignificante, se fosse o autor imputável, seria
aplicado o princípio da insignificância, mas não raras vezes, é aplicada uma medida
de segurança, mesmo diante da insignificância da lesão.
2.2 AUSÊNCIA DE IMPUTABILIDADE PLENA
Primeiramente, se faz necessária a compreensão da culpabilidade dentro da
teoria do delito, por estar inteiramente relacionada com os pressupostos da
aplicação das medidas de segurança, pois a ausência de culpabilidade implica a
ausência do delito e, consequentemente, a impossibilidade de uma sentença penal
condenatória e aplicação de uma pena correspondente.
Culpável é o sujeito para o qual pode ser imputado o injusto praticado pelo
fato de o mesmo não ter se motivado na norma jurídica quanto era exigível que o
fizesse, saber ou poder saber da ilicitude de sua conduta e ser plenamente capaz de
entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se conforme esse entendimento.
Portanto, o agente que, por doença mental, desenvolvimento mental
incompleto ou retardado não possui capacidade de compreender a ilicitude do fato e
agir conforme esse entendimento é considerado inimputável, tendo como
consequência a exclusão da reprovabilidade do injusto penal e, consequentemente,
a isenção de uma pena, aplicando-se, em contrapartida, uma medida de segurança
em sentença penal de absolvição imprópria, se esse agente for dotado de
periculosidade.
Cezar Roberto Bittencourt (2011, p. 417) adverte que para o reconhecimento
da inimputabilidade penal é suficiente a ausência de entendimento ou determinação,
sendo que, na maioria das vezes, uma capacidade decorre da outra, pois se o
agente não possui discernimento apto a compreender o caráter ilícito de sua
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
conduta, não se autodeterminará na norma jurídica porque não consegue avaliar
seus atos em conformidade com o ordenamento jurídico. É possível, ainda, a
presença apenas da capacidade de entender a ilicitude da conduta, mas ausente a
autodeterminação, neste caso será o agente considerado absolutamente incapaz da
mesma maneira.
Essa
ausência
de
capacidade
plena
decorre
de
doença
mental,
desenvolvimento mental incompleto ou retardado, que impossibilita o autor entender
o caráter ilícito do fato e determinar-se de acordo com esse entendimento.
Essas doenças mentais que excluem a capacidade de discernimento,
impossibilitando a compreensão da ilicitude da conduta são definidas por Zaffaroni e
Pierangeli (2008, p. 538) como “perturbações da consciência”. Advertem que o
termo inteiramente incapaz de entender a ilicitude do fato difere muito de um estado
de inconsciência, pois neste, não há conduta e, consequentemente, não há
tipicidade. Portanto, o artigo 26 do Código Penal trata de uma perturbação de
consciência que interfere na capacidade psíquica de entender a ilicitude do fato
praticado ou determinar-se na norma jurídica, que não deve ser interpretado como
ausência de conduta.
O intérprete deve dar maior abrangência ao termo doença mental e
desenvolvimento mental incompleto ou retardado, constantes no artigo 26 do Código
Penal, do que as definições médicas dos respectivos termos. Cezar Roberto
Bittencourt (2011, p. 417) propõe utilização da expressão “alienação mental” por ser
mais genérica e abrangente.
Entretanto, importa ressaltar que para a aplicação de uma medida de
segurança, faz-se necessária comprovação de que a inimputabilidade por doença
mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado é a causa efetiva da
absolvição, ou seja, se o agente for absolvido por quaisquer das causas previstas no
artigo 386, do Código de Processo Penal, não poderá ser imposta a medida de
segurança, mesmo sendo o agente portador de doença mental ou desenvolvimento
mental incompleto ou retardado.
Nos casos de culpabilidade diminuída, em que o agente em virtude de
perturbação mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era, ao
tempo da ação ou omissão, inteiramente capaz de compreender a ilicitude de sua
conduta e de determinar-se conforme essa compreensão há a previsão de uma
49
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
fração de redução da pena aplicada, de um a dois terços, conforme disposto no
parágrafo único do artigo 26 do Código Penal. São casos menos graves se
comparados aos elencados no caput do referido artigo, pois o agente tem diminuída
sua capacidade de discernimento a respeito da antijuridicidade de sua conduta e
autodeterminação, podendo ser aplicada uma medida de segurança se verificada a
necessidade de especial tratamento curativo.
Para fins de aplicação das medidas de segurança considera-se a
inimputabilidade proveniente de doença mental ou desenvolvimento mental
incompleto ou retardado, que impeça, ao tempo da ação ou omissão, a
compreensão da ilicitude do fato praticado (elemento intelectual) e autodeterminação
na norma jurídica (elemento volitivo).
Portanto, não basta o autor ser portador de uma doença mental pura e
simplesmente, é necessário que o mesmo, em razão da doença mental, não
compreenda o caráter ilícito de sua conduta por falta de capacidade de discernir
seus próprios atos e não consiga se autodeterminar na norma jurídica, tendo como
consequência legal a aplicação de uma medida de segurança ao ser comprovada a
periculosidade do agente.
A consequência jurídico-penal da prática de um tipo de injusto aliada à
inimputabilidade, somando-se com o elemento subjetivo da periculosidade, portanto,
é a aplicação de uma medida de segurança.
Portanto, verifica-se que é na culpabilidade que se diferenciam pena e
medidas de segurança. Para a aplicação de uma pena é necessário que todos os
pressupostos da culpabilidade estejam devidamente caracterizados, quais sejam,
exigibilidade de conduta diversa, potencial consciência da ilicitude e imputabilidade.
2.3 PERICULOSIDADE
Além desse caráter objetivo consistente na inimputabilidade do agente, a
medida de segurança vincula-se também, necessariamente, ao critério subjetivo da
periculosidade, consoante o artigo 97, parágrafo primeiro, do Código Penal. A
compreensão do conceito de periculosidade também se faz necessária para
entender o conceito de medida de segurança.
50
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Periculosidade pode ser sintetizada na probabilidade de o agente inimputável,
portador de doença mental ou desenvolvimento metal incompleto ou retardado, que
não possui capacidade de entender a ilicitude de sua conduta e determina-se
conforme esse entendimento vir a cometer crimes. Haroldo da Costa Andrade (2004,
p. 14) explana que “a periculosidade é o que a personalidade de certos indivíduos
contém de militante inclinação para o crime”.
O Código Penal atual erradicou a aplicabilidade das medidas de segurança
com fundamento na periculosidade pré-delitiva, ou seja, somente o indivíduo que
cometer um tipo de injusto penal, portador de doença mental, desenvolvimento
mental incompleto ou retardado, que ao tempo da ação ou omissão não era capaz
de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se conforme esse entendimento,
ou ainda, possuía reduzida capacidade de entendimento e autodeterminação,
poderá ser submetido a uma medida de segurança, evitando-se, assim, violação ao
princípio da segurança jurídica.
Cezar Roberto Bittencourt (2011, p. 783) define periculosidade,
Periculosidade pode ser definida como um estado subjetivo mais ou menos
duradouro de antissociabilidade. É um juízo de probabilidade – tendo por
base a conduta antissocial e anomalia psíquica do agente – de que este
voltará a delinquir.
A periculosidade, portanto, pode ser entendida como um estado em que o
sujeito se encontra ou algo inerte a este sujeito. Sob essa ótica, “o indivíduo carrega
consigo uma potência delitiva que a qualquer momento pode se concretizar em um
ato lesivo contra si ou contra terceiros”, como bem leciona Salo de Carvalho (2013.
p. 502), o que fundamenta a impossibilidade de medidas de segurança pré-delitivas.
Baseia-se em um juízo de prognóstico futuro, ou seja, a previsão de crimes
futuros fundamentada na periculosidade do autor, sendo que esta estabelece o limite
de aplicação das medidas de segurança. O problema reside no fato de um
prognóstico falho produzir consequências irreparáveis, pois pode conduzir a uma
internação perpétua em condições piores do que as vivenciadas nas penitenciárias
atuais.
Fato é que a periculosidade é o elemento mais discutido e passível de críticas
pelo seu caráter de indeterminação, o que ao longo da história ensejou
51
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
arbitrariedade da restrição da liberdade de certos grupos de indivíduos com
fundamento na defesa social, uma vez que, na maioria dos casos, não havia análise
efetiva da periculosidade, mas sim uma presunção tida como absoluta que recaía
sempre sobre as mesmas classes de indivíduos, quais sejam, ébrios, mendigos, por
exemplo.
Nota-se que a periculosidade ainda é um conceito extremamente abstrato, o
que faz emergir discussões acerca de seu conceito e sua utilização, pois acaba por
legitimar o poder de punir fundamento no controle social.
3 HISTÓRICO DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA
Os fundamentos do direito penal entram em crise quando aplicados aos
inimputáveis. A pena com fundamento na culpa e na responsabilidade não poderia
ser aplicada a incapazes para o direito penal, uma vez que exigia a capacidade de
entender o caráter ilícito de sua conduta. Entretanto, a impunidade de pessoas
incapazes não parecia a medida mais correta do ponto de vista da proteção social.
Especificamente com relação aos inimputáveis em razão de sofrimento
psíquico, pode-se dizer que o direito penal concedia-lhes um tratamento
diferenciado, mesmo no direito antigo. Impunha-se primeiramente sua guarda com
parentes, o que tinha a função tanto de proteção individual como também social,
sendo que somente aqueles mais perigosos eram destinados ao encarceramento, o
que poderia significar até a utilização de correntes.
Destaca-se que mesmo que houvesse a segregação, podendo culminar na
prisão, o Estado não os punia como fazia com os criminosos e essa isenção estatal
era fundamentada em duas vertentes, a primeira versa sobre a piedade em razão da
doença, baseadas em um caráter filosófico e humanitário; e a segunda, baseia-se na
noção de responsabilidade penal.
Corroborando com essas afirmações, tem-se Miguel Reale Junior et al. (1987.
p. 280),
Porque desde sempre se estabeleceu que os loucos, os fracos de mente,
que houvessem cometido infrações penais deveriam ser mantidos em
custódia. Rescrito do imperador Marco Aurélio mandava que se achando
alienado o autor de homicídio, não se executasse a pena. Deveria o
demente ser posto em custódia, com toda a diligência, para sua guarda e
para a segurança dos que lhe fossem próximos.
52
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Inicialmente as medidas de segurança ultrapassam o âmbito do direito penal
ao censurar o modo de vida de determinadas pessoas, bem como de se estruturar
também na possibilidade de aplicação anterior ao cometimento de um delito, o que
acarretou a institucionalização da discriminação e perseguição à determinado grupo
ou classe social.
A fim de ilustrar esse cenário, apresenta-se algumas leis com o caráter de
prevenção especial pré-delitiva, a Lei Belga de 1891 previa a possibilidade de o
Estado manter detidas pessoas ociosas e a Lei espanhola Vagos y Maleantes, de
1933, também acolhia as medidas de segurança.
Verifica-se que o direito penal ao longo da história preocupou-se com a
função de prevenção de novos delitos, antes mesmo da sistematização deste
instituto jurídico penal, as medidas de segurança eram já aplicadas aos casos de
irresponsabilidade por inimputabilidade. Nesse sentido, Haroldo da Costa Andrade
(2004. p. 41) leciona,
Embora não sistematizadas, as medidas de internamento apareceram como
solução para o tratamento do homem criminoso, devendo ele ser a elas
submetido, até que se alcançasse a cura. É, portanto, sua característica
originária, a indeterminação dos seus prazos de duração. E, com a
sistematização em 1893, com Karl Stoss, houve uma profunda evolução.
Tem-se a Inglaterra como pioneira na aplicação deste instituto jurídico penal,
ao determinar o tratamento psiquiátrico a doentes mentais autores de tipos de
injustos. Nesta localidade surgiu o primeiro manicômio judiciário, em 1800. Merece
destaque também, o Criminal Lunatic Asylum Act, em 1860 e o Trial of Lunatic Act,
em 1883, os quais determinavam “o recolhimento de pessoas que praticassem
algum delito, desde que penalmente irresponsáveis, a um asilo de internados. ”
(PRADO, 2010, p. 641).
Em seguida o Código Penal francês de 1810, o Código Penal Italiano de
1889, denominado Código Zanardelli, o qual exerceu grande influência na América
Latina, também continham disposições que se assemelhavam às medidas de
segurança, bem como o Código Penal norueguês de 1902, o qual refletiu
concepções da escola positivista.
A escola positivista reflete a mudança do poder de punir ao voltar-se para as
características individuais do criminoso, físicas ou psíquicas, além da análise do fato
53
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
em si. Emerge a noção de periculosidade tanto do delinquente imputável quanto do
inimputável, nasce a concepção de que “todos os delinquentes são perigosos, em
maior ou menor grau, pelo simples fato de terem praticado um crime” (PRADO,
2010, p. 642).
Nesse período há uma crise de penalidade, pois a pena passa a não ser mais
eficaz para o fim que se propõe, sendo que a prevenção dos delitos assume a forma
de tratamento do delinquente. “Foi, portanto, a escola positivista responsável pelo
desenvolvimento da medida de segurança, além de ter dispensado especial atenção
ao estudo do delinquente” (ANDRADE, 2004, p. 03).
O autor ainda adverte que mesmo com todas essas previsões penais de
consequências jurídicas análogas as medidas de segurança, estas somente foram
devidamente sistematizadas com o Código Penal suíço, em 1893, elaborado por
Karl Stoss, com inspiração na doutrina de Franz Von Liszt. Este diploma legal
continha disposições acerca da internação dos reincidentes com substituição da
pena a eles imposta, bem como internação facultativa.
Nesse sentido, o mesmo autor estabelece que a adoção de um sistema
completo das medidas de segurança apenas ocorreu em 1930, na Itália com Arturo
Rocco na elaboração de um novo Código Penal, no qual foi sedimentado o sistema
duplo binário, ou seja, com estrita diferenciação entre penas e medidas de
segurança, vinculando as penas a ideia de culpabilidade e as medidas de segurança
à periculosidade, sendo que somente as primeiras pertenciam às sanções penais.
Este Código inspirou o legislador brasileiro de 1940, bem como códigos em toda a
Europa.
Haroldo da Costa Andrade, em seu estudo, constatou que antes mesmo do
Código Penal brasileiro de 1940, a legislação nacional tratava das medidas de
segurança, pois, as Ordenações Filipinas previam a impossibilidade de se imputar
crime àquele em que sua conduta não foi norteada por dolo ou culpa, pelo fato de
não ter o devido discernimento em razão da loucura.
No Brasil, em 1930, o Código Criminal do Império em seu artigo 12, previa
que (REALE JUNIOR et al, 1987, p. 280),
[...] os loucos que houvessem cometido crimes haviam de ser recolhidos às
casas a eles destinadas, ou encaminhas ás respectivas famílias, consoante
54
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ao juiz criminal parecesse mais conveniente. Operava o magistrado, então,
com certa discricionariedade, no tocante a uma ou outra destinação.
Este Código ainda previa a impossibilidade de julgar um louco como
criminoso, a menos que este tenha cometido o delito em um intervalo de
discernimento e lucidez, disposição esta contida no artigo 10, parágrafo segundo.
Somando a isso, tem-se o artigo 64 do mesmo diploma legal, o qual dispõe que “os
delinquentes que, sendo condenados, se acharem no estado da loucura, não serão
punidos enquanto neste estado se conservarem” (ANDRADE, 2004, p. 4).
A consolidação das Leis Penais de 1932 também trazia disposições no
sentido de não considerar como criminosa pessoa portadora de doença mental,
consoante o disposto no artigo 27, o qual “dizia não serem criminosos os que por
imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil não forem absolutamente incapazes
de imputação” (REALE JUNIOR et al, op. cit., p. 282)
Pioneiramente, Alcântara Machado, em seu projeto de Código Penal em
1938, estabelece a figura da semi-imputabilidade, condicionando esse indivíduo à
aplicação das medidas de segurança, define semi-imputabilidade como aquele
indivíduo que (REALE JUNIOR et al, op. cit., p. 282),
[...] devido a grave anomalia psíquica, de que não resulte alienação mental,
tiver minorada sensivelmente, no momento do crime, a capacidade de
compreender a criminalidade do fato ou de se determinar de acordo com
essa apreciação (art. 16 e n.º IV)”.
O Código Penal de 1940 acolheu o critério proposto por Alcântara Machado
para verificar a imputabilidade ou semi-imputabilidade penal do agente, sendo que
àqueles
que
possuíam
reduzida
responsabilidade
penal
eram
aplicadas
cumulativamente pena e medida de segurança, enquanto ao inimputável era
aplicada somente medida de segurança.
O Código Penal de 1890 seguiu os mesmos preceitos relacionados ao
tratamento penal destinado aos inimputáveis, não fazendo referência aos semiimputáveis. O artigo 29 do referido diploma legal previa que (ANDRADE, 2004, p. 4)
Os indivíduos isentos de culpabilidade em resultado de afecção mental
serão entregues a suas famílias, ou recolhidos a hospitais de alienados se o
55
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
seu estado mental assim o exigir para a segurança do público. [...] (art. 27,
§4º), ipsis litteris: não são criminosos (...) §4º - os que se acharem em
estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de comer
o crime.
Entretanto,
as
medidas
de
segurança
somente
foram
devidamente
sistematizadas na legislação nacional com o anteprojeto de Virgílio de Sá Pereira,
em 1927, o qual também faz menção expressa à figura da semi-imputabilidade, além
de obrigar o magistrado a determinar a internação do sentenciado absolvido em
razão de inimputabilidade penal, ou semi-imputabilidade, quando presente a
periculosidade, ou temibilidade, em seu artigo 117.
Com o advento do Código Penal de 1984 extinguiu-se por completo o sistema
duplo binário de aplicação das medidas de segurança, adotando, portanto, o sistema
vicariante, eliminando qualquer possibilidade de aplicação conjunta de pena e
medida de segurança, em razão da “consciente iniquidade e disfuncionalidade do
sistema duplo-binário” (BITTENCOURT, 2009, p. 744).
A mudança para aplicação do sistema vicariante tem como fundamento o
princípio do ne bis in idem, pois a aplicação concomitante de pena e medida de
segurança para o mesmo indivíduo acarreta em uma dupla penalização pela mesma
conduta.
Atualmente, a adoção do sistema vicariante determina que sejam aplicadas
medidas de segurança somente a inimputáveis dotados de periculosidade, que
sejam inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se
de acordo com esse entendimento, ou ainda a semi-imputáveis que não sejam
inteiramente capazes de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de
acordo com esse entendimento, no momento da prática do tipo de injusto.
Sem dúvida, a mudança de pensar o poder de punir aliada ao fracasso da
pena privativa de liberdade faz surgir a necessidade de uma medida que estivesse
ao lado da pena, em que a função seria eminentemente de prevenção social, nesse
cenário emergiram as medidas de segurança.
Essa
crise
da
justiça
penal teve fundamental importância
para o
desenvolvimento das medidas de segurança, ao revelar a ineficácia das penas no
combate à criminalidade, trazendo uma nova concepção de delito voltada ao homem
criminoso, o que culminou na evolução do conceito de periculosidade do agente.
56
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Inegavelmente, “a expressão final dessa concepção naturalista do delito reside na
formula da periculosidade criminal”. (BRUNO, 1977, p.123).
Por conseguinte, ainda hoje, a principal função das medidas de segurança
não é “sancionar a infração, mas a controlar o indivíduo, a neutralizar sua
periculosidade, a modificar suas disposições criminosas, a cessar somente após a
obtenção de tais modificações”, como já vira Foucault (2010, p. 22), ao analisar a
reforma do poder de punir.
Pode-se dizer, então, que mesmo com o desaparecimento dos castigos
corporais, com a mudança de penalidade, do poder de punir, algo dos suplícios
permaneceu e permanece até o presente momento na aplicação atual das medidas
de segurança, que se consubstancia em seu caráter quase que perpétuo. Por essa
razão emerge a necessidade de atrelar as medidas de segurança à princípios
constitucionais a fim de tornar esta consequência jurídica em consonância com um
Estado Democrático de Direito.
4 PENAS E MEDIDAS DE SEGURANÇA
Penas não se confundem com medidas de segurança. Embora as
consequências
indubitavelmente
práticas
para
parecidas,
o
há
agente
grande
que
sofre
disparidade
uma
entre
ou
outra
seus
sejam
requisitos,
pressupostos e fundamentos, assim como seus destinatários.
A diferenciação entre penas e medidas de segurança se faz necessária a fim
de entender a função de cada consequência jurídico-penal dentro do ordenamento
jurídico como um todo, bem como estabelecer de maneira delimitada a área de
aplicação de cada instituto penal.
Quanto ao fundamento e o limite, verifica-se que as penas fundamentam-se e
limitam-se na culpabilidade, enquanto as medidas de segurança na periculosidade.
Nesse ponto entra a discussão entre direito penal do ato e direito penal do autor.
A culpabilidade como fundamento da atuação do direito penal exige a
reprovabilidade da conduta praticada pelo autor, em outras palavras, “para admitir a
possibilidade de censura a um sujeito, é necessário pressupor que o sujeito tem a
liberdade de escolher, isto é, autodeterminar-se”. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2008,
p. 104).
57
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Em contrapartida, se entender que o sujeito que praticou determinado ilícito
não tinha essa possibilidade de escolha, a intervenção do direito penal terá
fundamento em sua periculosidade. O direito de intervenção estatal fundamentado
na periculosidade é um direito penal de autor, uma vez que o que se reprime é a
forma de ser do autor de determinado tipo de injusto e não a conduta delituosa em
si. Nesse sentido, Salo de Carvalho (2013. p. 127) destaca que “em razão da
ausência de condições cognitivas (déficits cognitivos) para direcionar sua vontade, a
aplicação de uma pena com caráter marcantemente retributivo passa a ser
inadequada”, sendo necessária, portanto, a aplicação de uma medida de segurança.
Quanto ao destinatário, tem-se que as penas são destinadas a imputáveis e,
por vezes, semi-imputáveis, enquanto as medidas de segurança são destinadas aos
inimputáveis e, excepcionalmente a semi-imputáveis, somente quando for verificado
que estes necessitam de especial tratamento curativo.
Quanto ao critério de determinação, verifica-se que as penas são
determinadas e fixas, ou seja, findo o prazo determinado na sentença criminal como
pena, acaba a punição e o Estado não pode mais intervir nos direitos do agente em
razão do mesmo fato delituoso. Em contrapartida, as medidas de segurança
possuem como característica a indeterminação, ou seja, findam somente com a
comprovação da cessação da periculosidade do agente, o que acaba por legitimar
uma punição perpétua.
Quanto a forma de imposição, distinguem-se também penas e medidas de
segurança, uma vez que as penas são impostas em sentença penal condenatória,
enquanto as medidas de segurança em uma sentença absolutória. Trata-se de
absolvição imprópria, pois “apesar de afirmada a inexistência do crime, o autor do
fato é submetido coercitivamente à medida de segurança, situação que demarca sua
sujeição às agências estatais responsáveis pela execução da decisão judicial”.
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2008. p. 500-501).
Quanto à finalidade, verifica-se que as penas possuem uma finalidade mista,
ou seja, tanto retributiva quanto preventiva, sendo que esta última divide-se em
prevenção geral e prevenção especial. Noutro vértice, as medidas de segurança
possuem uma finalidade exclusivamente preventiva, uma vez que “são concebidas
como instrumentos de proteção social e terapia individual.” (SANTOS, 2010, p. 605).
58
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Jorge de Figueiredo Dias (1999, p.143) aponta que a finalidade principal,
prevalente das medidas de segurança é a prevenção especial. “As medidas de
segurança visam obstar, no interesse da segurança da vida comunitária, a prática de
fatos ilícitos-típicos futuros através de uma atuação especial-preventiva sobre o
agente perigoso”. Nota-se que a preocupação com a segurança social assume
posição de destaque.
Fato é que, no ordenamento jurídico brasileiro a medida de segurança
assume a finalidade essencialmente de prevenção especial negativa, apesar de ter
fundamentos unicamente teóricos de prevenção especial positiva.
Portanto, verifica-se que penas e medidas de segurança são institutos jurídico
penais teoricamente muito distintos, mas na prática acabam por se assemelhar em
muitos aspectos.
5 CRISE DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA
As medidas de segurança, tanto o internamento em hospital de custódia
quanto o tratamento ambulatorial, possui como fundamento de sua aplicação, nos
dizeres de Juarez Cirino dos Santos (2010, p. 606), “a) previsão de crimes futuros,
fundada na periculosidade do autor; b) eficácia das medidas de segurança para
evitar crimes futuros”.
Entretanto, essa função de proteção social e terapia individual, bem como os
fundamentos de sua aplicação, acabam por ser apenas uma forma de legitimação
do poder punitivo estatal, do controle social e seletividade do sistema penal.
Sob este prisma, Juarez Cirino dos Santos (2010, p. 606), destaca que,
A crise das medidas de segurança decorre da inconsistência desses
fundamentos: primeiro, nenhum método científico permite prever o
comportamento de ninguém; segundo, a capacidade da medida de
segurança para transformar condutas antissociais de inimputáveis em
condutas ajustadas de imputáveis não está demonstrada.
De fato, as medidas de segurança, na forma em que estão consolidadas
atualmente, não servem ao propósito de terapia individual. Em razão disso, da
mesma forma que se critica as funções aparentes da pena, que propõe alternativas,
59
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
repensando o poder punitivo estatal, é preciso repensar também as medidas de
segurança.
A respeito da crítica sempre necessária no âmbito das ciências criminais,
merece destaque as lições de Salo de Carvalho (2013, p. 126-127),
Aceitar a convocação da crítica contemporânea no sentido de incorporar a
complexidade dos problemas estudados pelas ciências criminais,
reconhecendo que a diferença entre os atos delitivos requer a invenção de
múltiplas respostas para que seja possível criar novas estratégias para o
exercício democrático e não violento do controle social, implica propor
formas não ortodoxas de interpretação. Na penologia, significa superar as
metanarrativas e os seus procedimentos simplificadores de proposição de
respostas unívocas e universais.
Assumir as incongruências da função, fundamentos e pressupostos de
aplicação das medidas de segurança, assumir a complexidade do tema e seu
problema na dogmática penal é necessário a fim de repensar este instituto jurídico
penal, tornando-o compatível com a Constituição da República Federativa do Brasil,
bem como com o Estado Democrático de Direito.
5.1 LIMITE TEMPORAL
Uma das incongruências das medidas de segurança frente à Constituição da
República Federativa do Brasil, bem como ao Estado Democrático de Direito
consubstancia-se em sua indeterminação temporal máxima.
O
artigo
97,
parágrafo
primeiro,
do
Código
Penal
estabelece
a
indeterminação das medidas de segurança, ao prever apenas um limite mínimo.
Dispõe que “a internação ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado,
perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação da
periculosidade. O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos”. (CÓDIGO
PENAL, 1940).
Verifica-se que o critério para a desinternação ou liberação do tratamento
ambulatorial consiste no exame de verificação da cessação de periculosidade,
critério este eminentemente subjetivo e imprevisível, por voltar-se ao futuro, fato que
leva à indeterminação do limite temporal máximo das medidas de segurança.
60
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
De fato, a duração indeterminada das medidas de segurança leva à privação
de direitos e garantias fundamentais perpetuamente, o que afronta indubitavelmente
a Constituição da República Federativa do Brasil, uma vez que esta consagra a
vedação de pena perpétuas.
Desse modo, consoante as lições de Cezar Roberto Bittencourt (2011, p.
786),
Pode-se, assim, atribuir, indiscutivelmente, o caráter de perpetuidade a essa
espécie de resposta penal, ao arrepio da proibição constitucional,
considerando-se que a pena e a medida de segurança são duas espécies
do gênero sanção penal (consequências jurídicas do crime). Em outros
termos, a lei não fixa o prazo máximo de duração, que é indeterminado
(enquanto não cessar a periculosidade), e o prazo mínimo estabelecido, de
um a três anos, é apenas um marco para a realização do primeiro exame de
verificação da cessação da periculosidade, o qual, via de regra, repete-se
indefinidamente.
Nesse sentido, Haroldo da Costa Andrade (2004, p. 100) expõe que essa
indeterminação de um limite máximo nas medidas de segurança viola também
princípios de um estado Democrático de Direito, uma vez que este preconiza que
“toda a intervenção estatal na liberdade da pessoa humana tem que ser,
rigorosamente, regrada e limitada, mormente na sua duração”
Ainda, verifica-se que a indeterminação temporal máxima das medidas de
segurança representam clara violação aos princípios da dignidade da pessoa
humana e da proporcionalidade, ante às condições em que são cumpridas as
medidas de segurança de internamento, além de pautar-se em um critério
eminentemente subjetivo, que é o exame de cessação de periculosidade, violando a
proporcionalidade entre o delito cometido e a suposta punição.
5.2
PERICULOSIDADE
COMO
FUNDAMENTO
DA
INDETERMINAÇÃO
TEMPORAL
O
estado
de
periculosidade
fundamenta
a
aplicação
e
duração
indeterminada das medidas de segurança, pois somente será finda a medida no
momento em que for realizado um exame de cessação de periculosidade que
61
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
efetivamente constatar a inexistência desse requisito eminentemente subjetivo no
sujeito que praticou um tipo de injusto.
Consoante o que foi apresentado no capítulo antecedente, a periculosidade
é um conceito muito subjetivo, amplo e abstrato, sendo que sempre serviu como
uma forma de legitimar a intervenção estatal em camadas sociais consideradas
estranhas ao modo de vida dito como normal.
Nesse sentido, Marcelo Lebre (2009. p.55), ao tratar sobre a periculosidade,
leciona que “a incorporação da periculosidade social nas legislações penais acabou
funcionando como uma espécie de válvula de escape à restrição da liberdade dos
cidadãos inconvenientes (os ‘estranhos’) ao poder”, fato este que explica o motivo
de a periculosidade ter sido inserida nas legislações penais durante os regimes
ditatoriais.
Sob esse enfoque, Jorge de Figueiredo Dias (1999, p. 139) constata que,
Pois bem se sabe como a própria noção de inimputabilidade – e sobretudo
a de “anomalia mental” que constitui um dos seus fundamentos – foi
manipulada de modo a abranger os opositores, os dissidentes e os simples
contestatários da “ordem” (nomeadamente política) estabelecida, a
abranger, em último termo, o “ser-diferente” que nos regimes democráticos
contemporâneos e mesmo nos mais recentes instrumentos de defesa dos
Direitos Humanos, bem pelo contrário, se tende a ver como expressão de
um verdadeiro direito fundamental: “direito á diferença”.
Essa probabilidade de reiteração criminosa, em razão da amplitude de seu
conceito e indeterminação, não fornece critérios objetivos para sua aferição, o que
acaba por legitimar a intervenção do Direito Penal como mecanismo de controle
social, dando aparência de legalidade.
Determinar a periculosidade de uma pessoa, ante a quase ausência de
significado desse termo, é uma tarefa extremamente árdua, o mesmo se diz da
constatação da ausência de periculosidade. Em razão disso, o exame de cessação
de periculosidade merece algumas considerações.
Não há como exigir de um único médico perito, durante o incidente de
insanidade mental, a precisão na constatação de que determinada pessoa era ao
tempo da ação incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de
acordo com esse entendimento. Muito menos, que o mesmo perito seja capaz de
precisar a periculosidade do agente, indicando a cessação ou não da mesma.
62
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Nota-se que tanto a capacidade entendimento e autodeterminação, quanto a
periculosidade não podem ser quantificadas de imediato, por apenas uma pessoa e
em um único momento. Questões como estas demandam, ou deveriam demandar, a
atuação de diversos profissionais, de diversas áreas e em uma consulta prolongada,
a fim de possibilitar a análise sobre a presença dos critérios ensejadores da
aplicação das medidas de segurança, de forma compatível com a segurança
jurídica.
Sob esse enfoque, Eduardo Reale Ferrari (apud CARDOSO; PINHEIRO,
2012, p. 54) faz diversas críticas à periculosidade e seu critério de aferição, bem
como o distanciamento entre o magistrado e as condições psíquicas e físicas do
interno,
Nossa atual Lei de Execução Penal não discrimina a forma de
acompanhamento psicológico, social ou médico na evolução do
delinquente-doente mental, a exemplo da absoluta ausência de contato
entre os juízes e os doentes mentais. Psiquiatras e juízes ficam isolados em
seus ofícios, esquecendo-se de que há fins inerentes á execução da sanção
penal, denominada medida de segurança.
Além disso, consoante as pesquisas de Danilo Almeida Cardoso e Jorge de
Medeiros Pinheiro (2012, p. 73), destaca-se que,
[...] normalmente a primeira perícia de desinternação não se realiza após o
triênio legal. O mais comum é deparar-se com pacientes que só receberam
a primeira entrevista após 8 (oito) ou 10 (dez) anos internados. Assim, a
dignidade dos doentes mentais é violada pela tardia prestação jurisdicional .
Outro ponto que acaba por interferir também na ausência de desinternação é
a falta de estrutura estatal para receber essas pessoas portadoras de transtornos,
que necessitam de acompanhamento prolongado, que deveria ser oferecido pelo
Estado.
Merece destaque, ainda, conforme bem assinala Juarez Cirino dos Santos
(2010, p. 607),
[...] a tendência de supervalorização da periculosidade criminal no exame
psiquiátrico, com inevitável prognóstico negativo do inimputável -, assim
como, por outro lado, parece óbvia a confiança ingênua dos operadores
63
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
jurídicos na capacidade do psiquiatra de prever comportamentos futuros de
pessoas consideradas inimputáveis, ou de determinar e quantificar a
periculosidade de seres humanos.
Verifica-se,
portanto,
que
um
prognóstico
equivocado
acerca
da
periculosidade pode gerar consequências nefastas, pois pode determinar uma
internação perpétua em condições piores do que as estabelecidas para o
cumprimento de uma pena.
Em razão disso, torna-se necessário um olhar mais crítico na aplicação
desse requisito subjetivo, de modo a compatibilizá-lo com a Constituição da
República Federativa do Brasil, bem como com um Estado Democrático de Direito.
Observa-se, entretanto, que somente com o advento da Lei nº10.216/2001
foi possível a crítica efetiva à periculosidade como fundamento das medidas de
segurança, critica esta direcionada aos dispositivos do Código Penal, vez que antes
já se fazia critica doutrinariamente.
Verifica-se, ainda, que essa abstração do conceito de periculosidade, que
fundamenta a aplicação das medidas de segurança, consubstancia-se em uma
afronta ao princípio da legalidade e da segurança jurídica. Nesse sentido, Marcelo
Lebre (2009, p. 125) destaca,
Legalidade, devido processo legal, presunção de inocência, igualdade e
humanidade são preceitos usualmente arrostados pelo instituto, posto que a
abstração inerente à ideia de perigo dá margem a uma infinidade de
arbitrariedades e de abusos por parte daqueles que exercem o poder
punitivo.
Desse modo, percebe-se “quão deficitário é o discurso da dogmática penal,
que permanece literalmente preso aos conceitos higienistas da psiquiatria do século
passado” (CARVALHO, 2013, p. 531).
5.3 INOPERABILIDADE DA MEDIDA DE SEGURANÇA E A CONSEQUENTE
NECESSIDADE DE LIMITE TEMPORAL
Os conceitos e fundamentos da medida de segurança, aliada a sua
aplicação prática não servem efetivamente ao seu propósito de segurança social e
terapia individual.
64
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A situação manicomial atual brasileira evidencia uma lógica muito mais
retributivista do que de prevenção especial, pois as condições do internado nos
atuais hospitais de custódia muito mais se assemelha ao cumprimento de uma pena.
De início, até meados do século XIX, não existia estabelecimentos
destinados ao tratamento de autores de delitos portadores de doença mental, sendo
que os inimputáveis dividiam espaço com os apenados em Penitenciárias.
Atualmente, apesar de existir previsão legal de hospitais de custódia,
verifica-se que as condições desses estabelecimentos, na maioria das vezes, ainda
permanecem precárias. Nesse sentido, merece destaque as pesquisas de Danilo
Almeida Cardoso e Jorge de Medeiros Pinheiro (2012, p. 74),
O Relatório da I Caravana Nacional de Direitos Humanos, realizada pela
Câmara dos Deputados no ano de 2000, intitulada “Uma Amostra da
Realidade Manicomial Brasileira”, verificou uma série de atrocidades nos
HCTP pelo país: em Manaus, o manicômio judiciário, ao contrário do que
indica seu nome, não oferece qualquer tipo de tratamento aos seus
internos. Havia 24 internos na instituição, resumida a um pequeno pavilhão
dentro da área onde está localizada a Cadeia Pública de Manaus. Nesse
pavilhão há 5 (cinco) celas, sendo três delas absolutamente inabitáveis.
Em Itamaracá, em Pernambuco, o HCTP estava sem qualquer
medicamento havia um mês, encontrando-se as instalações me níveis
espúrios, com falta de água e de colchões. Em Taubaté, no Estado de São
Paulo, os pacientes da Casa de Custódia e Tratamento não tem acesso às
demais dependências da instituição, o que poderia lhes proporcionar
inúmeras atividades produtivas e ressocializadoras.
Neste diapasão, destaca-se a crítica feita por Salo de Carvalho (2013, p.
520) a respeito dos atuais hospitais de custódia,
[...] pois se a situação carcerária nacional é, por si só, uma afronta aos
direitos humanos, o cenários soa hospitais de custódia e dos manicômios
judiciários rememora, sem exageros, as piores experiências de degradação
humana presenciadas na história, que foram os campos de concentração
criados pela nacional-socialismo germânico.
Somando-se a isto, tem-se exemplos de internos a mais de 18 anos, nas
condições atuais dos hospitais de custódia, sem qualquer perspectiva de
desinternação. Sobre o assunto, destaca-se as afirmações de Danilo Almeida
Cardoso e Jorge de Medeiros Pinheiro (2012, p. 94),
65
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Além do mais, se em um período extenso de 18 anos, como é o exemplo
verificado de internos de instituições psiquiátricas no país, o sistema
penitenciário não foi capaz de diminuir a periculosidade do sujeito,
dificilmente conseguirá tal objetivo prolongando ainda mais a medida
detentiva, que é naturalmente aflitiva e invasiva, sendo mais recomendável
uma nova tentativa de tratamento por outra instituição, desvinculada do
sistema penal.
Desse modo, tendo em vista a precariedade dos estabelecimentos
destinados aos internos da medida de segurança, percebe-se que a real finalidade
desse instituto jurídico penal vem sendo a punição pelo crime praticado, o que
evidencia o fato de que medida de segurança não possui funcionalidade alguma na
prática.
De fato, as condições vividas pelos internos acabam por agravar ainda mais
seu estado psíquico, contribuindo de forma significativa para a internação perpétua.
Somando-se a isto, tem-se a falta de especialização dos profissionais para lidarem
com internos portadores de doenças mentais, além do fato de inexistir médico
psiquiatra
vinculado
a
muitos
estabelecimentos,
dificultando
o
necessário
acompanhamento dos internos.
Em razão disso, verifica-se que se a medida de segurança não consegue
tratar o agente inimputável dotado de periculosidade, fazendo esta cessar. Sua
aplicação, na realidade, não se diferencia da aplicação de uma pena, uma vez que
passa a ser eminentemente retributivista, por não cumprir sua função de prevenção
especial positiva.
Nesse sentido é o viés defendido por Salo de Carvalho (2013, p. 508-509),
O caráter punitivo das medidas de segurança é uma das principais
denúncias realizadas pela criminologia crítica e pela crítica do direito penal
a partir da década de 70 do século passado. A exposição da incapacidade
de as instituições totais (prisões e manicômios) realizarem minimamente as
finalidades expostas em sua programação oficial (ressocializar o imputável
e reduzir a periculosidade do inimputável) deflagrou um amplo processo de
desconstrução dos mitos fundantes do sistema punitivo. Dentre estes mitos,
a ausência da perspectiva punitiva (retributiva) das medidas de segurança.
Diante deste cenário, nota-se que se faz necessária a aplicação dos limites
atinentes à pena também á medida de segurança, principalmente no que concerne a
vedação de penas perpétuas.
66
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
O artigo 97, em seu parágrafo primeiro do Código Penal estabelece que a
medida de segurança tem duração indeterminada, perdurando enquanto não for
verificada a cessação da periculosidade do agente.
Ao partir do pressuposto que a mediada de segurança não consegue se
aplicar ao seu propósito, pois, em realidade, é eminentemente retributivista e tão
aflitiva quanto à pena, deve ser igualmente limitada. Portanto, as disposições do
artigo 97, parágrafo primeiro, afrontam, de maneira clara e precisa, o dispositivo
constitucional descrito no artigo 5, XLVII, b, da Constituição da República Federativa
do Brasil, o qual veda a pena perpétua.
Sob essa ótica, destaca-se Cezar Roberto Bittencourt (2011, p. 786),
No entanto, não se pode ignorar que a Constituição de 1988 consagra,
como uma de suas cláusulas pétreas, a proibição de prisão perpétua; e,
como a pena e a medida de segurança não se distinguem ontologicamente,
é lícito sustentar que essa previsão legal – vigência por prazo indeterminado
da medida de segurança – não foi recepcionada pelo atual texto
constitucional.
Nesse sentido, Eugênio Raul Zaffaroni (2008, p. 733), defende que:
[...] não é constitucionalmente aceitável que, a título de tratamento, se
estabeleça a possibilidade de uma privação de liberdade perpétua, como
coerção penal. Se a lei não estabelece o limite máximo, é o interprete que
tem a obrigação de fazê-lo.
Salo de Carvalho (2013, p. 520) também critica a duração ilimitada das
medidas de segurança,
No caso dos portadores de sofrimento psíquico, a reversibilidade se
concretiza na falácia pela qual em nome da garantia dos seus direitos é
excluída a possibilidade de responsabilização penal. No entanto, o mesmo
processo de desresponsabilização que veda a imposição de penas afasta
todos os limites inerentes á intervenção punitiva. Dentre os exemplos mais
significativos dessa falácia tutelar encontra-se a possibilidade legal de
execução ilimitada (perpetuidade) da medida de segurança.
Nesse diapasão, Juarez Cirino dos Santos (2010, p. 618), estabelece que,
67
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A duração indeterminada das medidas de segurança estacionárias significa,
frequentemente, privação de liberdade perpétua de seres humanos, o que
representa violação da dignidade humana e lesão do princípio da
proporcionalidade da internação e a inconfiabilidade do prognóstico de
periculosidade criminal do exame psiquiátrico.
Outro ponto que merece destaque é o fato de existir uma limitação temporal
mínima da medida de segurança fixada, pois o artigo 97, parágrafo primeiro do
Código Penal estabelece a necessidade de internação em um período mínimo de
um a três anos.
Diante disso, depreende-se que efetivamente a finalidade da medida de
segurança é a punição, pois se fosse realmente a periculosidade do agente não
importaria um tempo mínimo, apenas e tão somente a verificação da cessação de
sua periculosidade.
Nesse aspecto, Salo de Carvalho (2013, p. 516) destaca que “o prazo
mínimo parece indicar a marca retributiva que acompanha as medidas de
segurança”.
Sobre o tema, merece destaque as considerações de Danilo Almeida
Cardoso e Jorge de Medeiros Pinheiro (2012, p. 91),
Na celeuma atinente à duração da medida de segurança, portanto,
defendemos que é essencial buscar uma interpretação integrativa tanto do
sistema jurídico-penal quanto da opção político-criminal humanitária
estampada pelo constituinte e pelo legislador ordinário, para se alcançar a
solução mais justa.
Assim, depreende-se que o texto constitucional deve ser interpretado de
maneira mais ampla, a fim de garantir também aos internos portadores de sofrimento
psíquico a vedação de pena perpétua.
O Supremo Tribunal Federal vem consolidando a necessidade da limitação
temporal máxima da medida de segurança, pois em alguns julgados já estabeleceu
a impossibilidade da referida medida ultrapassar 30 anos, em interpretação
sistemática do Código Penal, Lei de Execuções Penais e Constituição da República
Federativa do Brasil.
Com efeito, Cezar Roberto Bittencourt explana que atualmente há o
entendimento de que essa limitação máxima não poderia ultrapassar o limite da
pena abstratamente cominada. Tal entendimento ocorre em razão do princípio da
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
proporcionalidade, o que representa importante avanço no que pertine a aplicação
das medidas de segurança dentro de um Estado Democrático de Direito.
Ocorre que, ainda percebe-se falta de isonomia entre a pena e a medida de
segurança. Em razão disso, Juarez Cirino dos Santos (2010, p. 618) defende que “o
limite máximo da medida de segurança aplicada deve coincidir com a pena criminal
aplicável no caso concreto, se o autor fosse imputável”, ao citar decisão da 5ª
Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Cumprida a medida de segurança o portador de sofrimento psíquico seria
encaminhado para tratamento e acompanhamento na rede pública de saúde.
Portanto, verifica-se que a aplicação atual das medidas de segurança lesa
os princípios da dignidade da pessoa humana, lesividade, proporcionalidade e,
principalmente, vedação de penas perpétuas. A falta de um limite temporal máximo
nas medidas de segurança demonstra flagrante inconstitucionalidade na aplicação
atual deste instituto jurídico penal.
Admitir as medidas de segurança como instituto jurídico penal compatível
com a Constituição da República Federativa do Brasil e o Estado Democrático de
Direito implica, necessariamente, ruptura dos modelos vigentes, denunciando as
ilegalidades e desumanidades propagadas e legitimadas com a aplicação deste
instituto jurídico penal.
Portanto, a constitucionalização das medidas de segurança depende da
submissão destas aos princípios basilares do direito penal, em especial a vedação
de penas perpétuas, bem como os demais princípios limitadores do poder punitivo, a
fim de salvaguardar os direitos e garantias individuais dos inimputáveis.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As medidas de segurança revestem-se de forte caráter de proteção social e
terapia individual, ao menos teoricamente, o que pode se depreender do próprio
conceito deste instituto jurídico penal. Entretanto, o presente trabalho procurou
demonstrar que a aplicabilidade prática das medidas de segurança difere muito dos
conceitos e fundamentos apresentados pela dogmática penal, o que implica
necessariamente a revisão dos conceitos, bem como da interpretação feita, sob
pena de legitimar a intervenção estatal na forma de abusos e ilegalidades.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Os conceitos e fundamentos das medidas de segurança, em realidade, não
se verificam na aplicação prática desse instituto jurídico penal, tornando-o
indiscutivelmente tão aflitivo quanto a pena.
Nesse sentido, conclui-se que a crise das medidas de segurança reside
exatamente na inconsistência de seus fundamentos, pois não há como prever
comportamentos futuros, além do fato de que a medida de segurança não é capaz
de habilitar socialmente o interno, não servindo para o propósito de terapia
individual.
Sob essa ótica, verifica-se que as medidas de segurança, em realidade, não
se fundam na prevenção especial, mas possuem um caráter eminentemente
retributivista, de punição e, por serem tão aflitivas quanto as penas, necessitam da
aplicação dos limites e princípios atinentes a esta.
Partindo desse pressuposto, considerando que as medidas de segurança, na
verdade, em nada se diferenciam das penas, depreende-se que a aplicação atual
desse instituto jurídico penal lesa a Constituição da República Federativa do Brasil,
uma vez que esta veda a imposição de penas perpétuas, em seu artigo 5, XLVII, b.
Dessa forma, o texto constitucional deve ser interpretado de modo a abranger
também as medidas de segurança, pois interpretação contrária legitima inúmeras
ilegalidades.
Diante disso, faz-se necessário repensar a dogmática penal no que pertine à
aplicação das medidas de segurança, tornando-a compatível com um Estado
Democrático de Direito e com a Constituição da República Federativa do Brasil.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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72
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A HIPNOSE COMO AUXILIAR DA PROVA NA INVESTIGAÇÃO
CRIMINAL NO BRASIL
THE HYPNOSIS AS AUXILIARY PROOF IN THE CRIMINAL
INVESTIGATION IN BRAZIL
Amanda Caroline Pauluk1
Maria da Glória Colucci2
Acadêmica de Direito do Unicuritiba e integrante do Grupo de Pesquisa em Biodireito e Bioética –
Jus Vitae.
2 Mestre em Direito Público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Professora
titular de Teoria Geral do Direito do UNICURITIBA. Professora Emérita do Centro Universitário
Curitiba, conforme título conferido pela Instituição em 21/04/2010. Orientadora do Grupo de
Pesquisas em Biodireito e Bioética Jus Vitae, do UNICURITIBA, desde 2001. Professora adjunta IV,
aposentada, da UFPR. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética Brasília. Membro do CONPEDI
Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Membro do IAP Instituto dos
Advogados do Paraná.
1
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SUMÁRIO
Resumo 1 Introdução 2 Hipnose. Aspectos Gerais 2.1 Hipnose. Conceito 2.1.1
Hipnose na Psicologia, Medicina e Odontologia 2.1.2 Hipnose e Memória 2.2
Relações entre Psicologia e Direito 3 A Hipnose no Direito 3.1 A Prova no Direito
Brasileiro 3.1.1 Meios de Prova no Direito Processual Penal 3.1.2 provas atípicas ou
inominadas 3.2 Investigação Criminal. Aspectos Gerais 3.3 A Hipnose na
Investigação Criminal 3.4 O Livre Convencimento do Juiz 4 Considerações Finais.
Referências
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
O presente texto objetiva demonstrar a relevância da hipnose como auxiliar de prova
em investigações criminais, abordando de que forma esse instrumento pode
colaborar com a polícia, servindo como fonte na perícia psicológica forense.
Pretende-se, portanto, discorrer brevemente sobre a hipnose, indicando algumas
circunstâncias em que a técnica hipnótica pode trazer resultados positivos ao ser
aplicada. Procura-se também estabelecer e mostrar a importância da junção de duas
áreas do saber – Psicologia e Direito. Faz-se mister trazer a denominação e a
função da prova, comentando-se, inclusive, sobre os meios de prova admitidos no
Direito Penal Brasileiro, examinando em que consiste a perícia psicológica forense,
cabendo ainda mencionar os aspectos gerais da investigação criminal. E, por fim,
analisar a utilidade das informações levantadas pela hipnose durante a investigação,
e como essas informações poderão influenciar o juiz no momento da sentença.
Palavras-chave: hipnose, meio de prova, perícia psicológica forense, livre
convencimento do juiz.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
This paper aims to demonstrate the relevance of hypnosis as an adjunct to evidence
in criminal investigations, addressing how this tool can work with the police, serving
as a source of forensic psychological expertise. It is intended, therefore, briefly
discuss hypnosis, indicating some circumstances in which the hypnotic technique
can bring positive results to be applied. It seeks to establish and also show the
importance of combining two fields of knowledge - Psychology and Law. Implies the
need to bring the name and function of proof, commenting is even on the evidence
admitted in the Brazilian Penal Law, which consists in examining forensic
psychological expertise, fitting even mention the general aspects of the criminal
investigation. And, finally analyses the usefulness of the information gathered during
the investigation by hypnosis, and how the information may influence the judge at the
time of sentencing.
Keywords: hypnosis, evidence, forensic psychological expertise, free conviction of
the judge.
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1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa foi desenvolvida analisando a pertinência da utilização
da hipnose em investigações criminais. Pretende-se, portanto, demonstrar de que
forma e até que ponto esse instrumento pode vir a colaborar com a polícia, servindo
como possível fonte na perícia psicológica forense.
Constata-se a necessidade de abordar algumas das principais características
da hipnose, e como tal técnica pode trazer resultados satisfatórios nas mais
diferentes áreas, apontando instituições que se utilizam do transe hipnótico para
atingir finalidades e soluções diversas; vislumbrando, inclusive, a desmistificação do
transe hipnótico.
Em um momento posterior, serão mencionados caracteres gerais sobre o
inconsciente, memória, esquecimento e a relação desses com a hipnose, para que,
posteriormente, se proceda ao entendimento de como o método hipnótico pode
ajudar nas investigações criminais.
Além disso, se faz necessária uma análise sobre a definição e função das
provas no Direito Brasileiro, abordando inclusive, mesmo que de forma breve, os
meios de prova admissíveis no Direito Penal Brasileiro.
Além disso, é interessante que seja abordada a possível relação entre a
Psicologia e o Direito, para que se faça entender como uma área de conhecimento
pode colaborar com a outra.
Por fim, pretende-se analisar a possibilidade da utilização da hipnose como
meio auxiliar na coleta de provas.
A pesquisa, portanto, tem como objetivo, demonstrar a possibilidade de se
utilizar uma técnica abandonada por anos, mas, que atualmente, tem sido aplicada
para tantos fins diferentes, como auxílio nas investigações criminais.
Diante do breve exposto, infere-se que o tema é instigante e merece atenção
na esfera do Direito.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
2 HIPNOSE. ASPECTOS GERAIS
Com a finalidade de tornar compreensível a aplicabilidade, ou não, da
hipnose no esclarecimento da verdade nas investigações criminais, se faz
necessária uma análise de aspectos gerais referentes à temática epigrafada.
2.1 HIPNOSE. CONCEITO
Segundo Linda L. Davidoff: “A palavra “hipnose provém da palavra grega
hipnos, que significa “sono”, mas o estado hipnótico não se assemelha ao sono.”3
Podem ser encontradas definições diversas e até contraditórias para a técnica
da hipnose, dentre elas nenhuma é considerada absoluta ou completa em si mesma.
Acerca do assunto, Raphael H. Rhodes4 elucida que:
[...] embora os poderes do hipnotismo sejam há muito conhecidos e
aplicados, toda sua história tem sido toldada por obscuridade e ocultismo.
Tanto os crédulos quanto os incrédulos fizeram recair sobre ele uma
injustificável veneração ou um opróbio imerecido, e ambos os grupos
contribuíram para o seu desprezo pelo mundo científico. Ainda nos dias de
hoje, uma pessoa comum encara a hipnose para psicoterapia como um
Fausto sondando as profundezas à custa de uma alma.5
Nesse contexto, pode-se dizer que apesar de haver muitas críticas sobre a
prática da hipnose, a maioria delas são oriundas do desconhecimento das pessoas a
respeito do seu papel.
Uma hipnose regressiva pode ser utilizada para aguçar a memória, trazendo à
tona certos detalhes supostamente esquecidos ou para voltar a momentos
traumáticos ocorridos, inclusive na infância do indivíduo. Nesse diapasão Wayne
Weiten expressa uma ideia de Freud:
3
DAVIDOFF, Linda L. Introdução à psicologia. Tradução de Lenke Perez. 3. ed. São Paulo:
MAKRON Books, 2001, p.192.
4 Psicólogo-consultor em Nova Iorque, seu trabalho no campo da hipnose e sua aplicação na
psicologia inclui extenso estudo com alguns dos melhores hipnotizadores dos Estados Unidos.
5 RHODES, Raphael H.. Hipnotismo sem mistério: teoria, prática e aplicação. 9. ed. Rio de Janeiro:
Record, 1999, p. 24.
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De acordo com Freud, o inconsciente contém pensamentos, memórias e
desejos que estão muito abaixo da superfície da consciência consciente,
mas que, apesar de tudo, exercem grande influência sobre comportamento. 6
Weiten ainda aponta alguns dos efeitos que podem ser produzidos por meio
da hipnose: anestesia, distorções sensoriais, desinibição e sugestões pós
hipnóticas.7
O autor prossegue constatando que Ernest Hilgard tem sugerido a explicação
mais relevante sobre a hipnose, como sendo um estado de consciência alterada.
Para Hilgard a hipnose divide a consciência em duas linhas, ocorrendo uma
dissociação da consciência. Com isso, uma parte da consciência comunica-se com o
hipnotizador e o mundo externo, e a outra funciona como um observador escondido.
O que atrai Weiten na teoria de Hilgard é que a consciência dividida pode ser
experimentada com uma variação por qualquer um durante o dia a dia. Por exemplo,
quando se está dirigindo um automóvel, reage-se automaticamente ao tráfego, aos
sinais e com os outros veículos, mas depois não há lembrança conscientemente de
tudo que o que foi feito durante o trajeto percorrido. Nessas situações pode-se
perceber que a consciência está dividida entre dirigir e os pensamentos que a
pessoa está tendo naquele mesmo momento.8
Após a exposição de uma breve noção a respeito da hipnose, é importante
ainda que sejam apresentadas algumas áreas de aplicação desta técnica - é o que
será tratado nos tópicos seguintes.
6
WEITEN, Wayne. Introdução à psicologia: temas e variações. Tradução de José Carlos B. dos
Santos, Maria Lúcia Brasil e Zaira G. Botelho. 7. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2010, p. 151.
7 Ibid, p.152.
Sobre os efeitos pós-hipnóticos: “Por sugestão pós-hipnótica entende-se uma sugestão terapêutica
ou sugestões feitas diretamente à mente subjetiva de um paciente que se encontra em estado de
transe hipnótico, com a sugestão adicional de que terá efeito continuado (pós-hipnótico) mesmo
depois que o paciente for acordado. [...] Tendo-se assim tornado parte da forma de pensamento do
paciente, e assim permanecendo mesmo com ele acordado, as sugestões terapêuticas controlam sua
forma de pensamento quando acordado e desta maneira influenciam seu subsequente
comportamento de acordado.” RHODES,1999,p.43.
8 Sobre a consciência dividida: “Muito do que você faz, o tempo inteiro, é inconsciente. Falar, por
exemplo. Você simplesmente pensa no que quer dizer (as idéias), e não precisa selecionar
conscientemente as palavras – elas simplesmente aparecem. Isso acontece porque o seu
inconsciente trabalha no bastidores durante o papo, vasculhando o seu vocabulário e abastecendo o
consciente para ajudar você a se expressar.” Ainda interessante transcrever outro trecho da
reportagem da revista: “ O inconsciente se encarrega de tudo o que fazemos, como andar na rua ou
escovar os dentes. Por causa disso, ele opera em potência máxima o tempo todo.” SANTI, Alexandre
de; LISBOA, Silvia.O mundo secreto do inconsciente.Super interessante, São Paulo, n.315,p.39, fev.
2013.
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2.1.1 Hipnose na Psicologia, Medicina e Odontologia
A utilização da hipnose dentro do campo da Psicologia, já se encontra
devidamente aprovada e regulamentada pelo Conselho Federal de Psicologia, que
dispõe sobre o referido procedimento em sua Resolução CFP n° 013/00, de 20 de
dezembro de 2000.9
Livio Tulio Pincherle menciona a existência da hipnose regressiva, que pode
ser utilizada para que haja uma melhora na memória, afim de que sejam lembrados
pequenos detalhes esquecidos, que muitas vezes fazem toda diferença no
tratamento de certos traumas.10
Rhodes defende o uso da hipnose na Medicina, dizendo que em meados do
século XIX:
[...] antes da descoberta das propriedades anestésicas do éter e do
clorofórmio, o Dr. Esdaile realizou na Índia mais de duzentas operações e
milhares de pequenas intervenções; no entanto, nenhum de seus pacientes
teve de suportar a dor sofrida por outras vítimas dos métodos cirúrgicos
daquele tempo. Ele empregava a hipnose. Seus pacientes, sob comando,
esqueciam a dor.11
A respeito de pesquisas sobre o uso da hipnose na Medicina na atualidade,
Diogo Sponchiato escreve sobre terapias complementares, e atesta que estas têm
Transcreve-se aqui parcialmente, a mencionada Resolução: “O CONSELHO FEDERAL DE
PSICOLOGIA,[...].RESOLVE:
Art. 1º — O uso da Hipnose inclui-se como recurso auxiliar de trabalho do psicólogo, quando se fizer
necessário, dentro dos padrões éticos, garantidos a segurança e o bem estar da pessoa atendida;
Art. 2º — O psicólogo poderá recorrer a Hipnose, dentro do seu campo de atuação, desde que possa
comprovar capacitação adequada, de acordo com o disposto na alínea "a" do artigo 1º do Código de
Ética Profissional do Psicólogo.
Art. 3º — É vedado ao psicólogo a utilização da Hipnose como instrumento de mera demonstração
fútil ou de caráter sensacionalista ou que crie situações constrangedoras às pessoas que estão se
submetendo ao processo hipnótico. ”
10 Pincherle cita o caso de uma cliente sua que, com a hipnose, regrediu a uma fase traumática de
sua infância: “Uma cliente de 35 anos, depressiva, descrevendo tentativa de suicídio, três meses
antes, sem causa aparente para esse quadro, dizia nada lembrar de sua infância. Não sabia a quem
recorrer para obter algum dado de seu passado infantil, pois não tinha família no Brasil e sua
progenitora havia falecido há 4 anos. Não conhecera o pai porque era filha de mãe solteira. Na
regressão hipnótica referiu-se a muita solidão quando menina; a mãe ganhava pouco e a largava
sozinha em casa, enquanto trabalhava fora. Dizia, em hipnose, estar passando muito medo. [...] A
cliente havia apagado de sua memória consciente, seu passado, que era extremamente triste e
monótono, e era a provável causa de suas depressões. ” PINCHERLE, Livio Tulio et al.
Psicoterapias e estados de transe. São Paulo: Summus, 1985, p.90.
11 RHODES, 1999, p.19.
9
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sido estudadas nos centros médicos do Brasil e do Mundo.12
Sponchiato ainda levanta dados que trazem a informação de que hospitais em
São Paulo, como Einstein e o Sírio-Libanês, já incluíram serviços de Medicina
alternativa como Fitoterapia, Homeopatia e Acupuntura; observando que até o SUS
tem oferecido esses tratamentos diferenciados. Diante disso pode-se observar a
aceitação dos hospitais com relação a estas práticas medicinais alternativas.
Na abordagem feita por Sponchiato, dentre as práticas alternativas no
tratamento de doenças, a hipnose encontra-se inserida neste rol, e é definida a
grosso modo, como um estado de transe que pode ser explorado para tratar da
depressão, fobias, distúrbios sexuais, psicólogos alimentares, no controle da dor,
insônia, também pode ser usada como sedativo em pessoas que não se sentem
bem ao passarem por ressonância magnética.
Ainda é importante ressaltar que segundo a Sociedade de Hipnose Médica do
Rio de Janeiro13, em 1999, o Conselho Federal de Medicina reconheceu o uso da
hipnose como ato médico, decorrente do Processo Consulta nº 2.172/97 , sob a
denominação de Hipniatria. A resposta dada a este processo, que inclusive traz um
conceito da hipnose, versa da seguinte maneira:
O Parecer adota como definição de hipnose a proposta pela Sociedade de
Hipnose Médica de São Paulo, a saber: ‘estado de estreitamento de
consciência provocado artificialmente, parecido com o sono, mas que dele
se distingue fisiologicamente pelo aparecimento de uma série de fenômenos
espontâneos ou decorrentes de estímulos verbais ou de outra natureza’.14
Ainda, no ano 2000, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro
distribuiu o Manual do Médico, no qual consta a seguinte recomendação:
12
SPONCHIATO, Diogo. A nova alternativa. Revista Galileu, São Paulo, n. 259, p.35-45, fev. 2013.
“Ao realizar o 1º Curso Completo de Hipnologia autorizado pelo Ministério da Saúde, no Rio de
Janeiro em 1956, o Dr. Torres Norry originou um movimento que viria resultar, no ano seguinte, na
fundação da Sociedade Brasileira de Hipnose Médica - SBH. Essa trajetória expande-se com a
fundação da Sociedade de Hipnose Médica do Estado do Rio de Janeiro - SOHIMERJ, em 27 de
agosto de 1983. A nova entidade é ligada, diretamente, a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de
Janeiro - SMCRJ, que é filiada a Associação Médica Brasileira - AMB. Dando continuidade ao
trabalho de ensino e divulgação da Hipnose no Rio, a SOHIMERJ reestruturou o Curso Básico de
habilitação em Hipnose para a formação de especialistas da Área de Saúde, anteriormente
responsabilidade da SBH. [...] a diretoria da SOHIMERJ, no biênio 1997/1999, concretiza o sonhado
intento da entidade com a inauguração de sede própria, em 04 agosto de 1998.” Sociedade de
Hipnose Médica do Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.sohimerj.com.br/sobrehipnose/capa.htm>. Acesso em: 30 março 2013.
14 Ibid.
13
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A hipnose é reconhecida como valiosa prática médica, subsidiária de
diagnóstico e de tratamento, devendo ser exercida por profissionais
devidamente qualificados e sob rigorosos critérios éticos. O termo genérico
adotado por este conselho é o de Hipniatria.15
Um ato como este só vem a colaborar para que a hipnose seja cada vez mais
disseminada, por todas as partes do mundo.
Assim como a hipnose pode ser aplicada em diversos casos médicos,
também pode ser observado o seu auxílio com grande êxito na Odontologia.
É necessário ressaltar, que o emprego da hipnose é legal e está
regulamentado pelo Conselho Federal de Odontologia, em sua resolução CFO185/93, que prevê no inciso VI, do artigo 4°, a competência do cirurgião
dentista para decidir: “[...] empregar a analgesia e a hipnose, desde que
comprovadamente habilitado, quando constituírem meios eficazes para o
tratamento.”16
Desta forma, o emprego da hipnose torna-se legal no âmbito da
Odontologia.
2.1.2 Hipnose e Memória
Do ponto de vista psicológico, entre outras formas de esquecimento de
informações, há o esquecimento motivado que, a partir dos estudos de Davidoff,
consiste na supressão consciente ou inconscientemente da recuperação de
informações desagradáveis. Nas palavras da autora:
[...] as expectativas e os motivos influenciam aquilo que observamos e o
que ignoramos. Como resultado codificamos somente informações
selecionadas na memória de curto prazo [...]. A recuperação é moldada por
nossos esquemas e emoções; censuramos aquilo que relatamos.17
Logo, acaba-se armazenando informações que são agradáveis e bem vindas,
e o que não se quer lembrar em um momento posterior, acaba sendo descartado.
15
Disponível em:
<http://www.sohimerj.com.br/sobrehipnose/capa.htm>. Acesso em: 30 março 2013.
16
Disponível
<http://www.institutohipnologia.com.br/index.php?option=com_content&id=116&ltemid=23>.
em: 06 março 13
17 DAVIDOFF, 2001, p. 233.
em:
Acesso
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Para Freud, as más lembranças ficam no subconsciente, por isso elas não
vêm à tona tão facilmente, é um meio de proteger o indivíduo contra suas próprias
recordações dolorosas. Bock, Teixeira e Furtado discorrem a respeito afirmando que
Freud se perguntava qual seria o motivo de o indivíduo esquecer determinados
eventos da própria vida. Então chegou à conclusão de que há uma força interna que
tem o poder de bloquear certos pensamentos, a respeito de Freud:
[...] chamou de repressão o processo psíquico que visa encobrir, fazer
desaparecer da consciência, uma ideia ou representação insuportável e
dolorosa que está na origem do sintoma. Estes conteúdos psíquicos
“localizam-se” no inconsciente.18
Esta citação reforça a ideia de que pensamentos perturbadores acarretam um
recalque das lembranças ruins do indivíduo.
Portanto, pode-se dizer que a mente seleciona o que será armazenado,
evitando lembranças traumáticas demais; para que, dessa forma, não sejam
acessadas a qualquer tempo – como intuito de proteger o indivíduo de suas próprias
emoções desagradáveis.
2.2 RELAÇÕES ENTRE PSICOLOGIA E DIREITO
Se por um lado a hipnose pertence ao “mundo” da Psicologia, a questão da
prova na investigação criminal diz respeito ao Direito. Em razão desta interlocução,
far-se-á breve análise e comparação entre Direito e Psicologia.
Sonia Liane Reichert Rovinski, na introdução de sua obra sobre perícia
psicológica forense, aborda a possibilidade de relação entre o Direito e a Psicologia.
A autora constata que, apesar da divergência de ideias entre autores e
pesquisadores a respeito dessa interdisciplinaridade, há um consenso com relação
ao seu objeto – a conduta humana.19
Continua, afirmado ainda que, tanto o mundo do ser, quanto o mundo do
dever ser, se entrelaçam. Ou seja, assim como a Psicologia influencia a Lei, esta
18
BOCK, Ana Mercês Bahia; TEIXEIRA, Maria de Lourdes T.; FURTADO, Odair. Psicologias: uma
introdução ao estudo de psicologia. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 69.
19 ROVINSKI, Sonia Liane Reichert. Fundamentos da perícia psicológica forense. 2.ed. São Paulo:
Vetor, 2007, p.13-14.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
também exerce influência sobre os estudos da Psicologia; dessa maneira, uma área
do conhecimento não pode ser compreendida em sua totalidade sem o auxílio da
outra.
A Psicologia Forense tem o escopo de auxiliar o juiz, para que este possa
proferir sentença, quando nos autos há fatos sobre os quais ele não obteria
satisfatório conhecimento, sem a assessoria de um psicólogo. Rovinski disserta que:
[...] podemos definir a Psicologia Forense como aquela que utiliza todas as
áreas do saber da psicologia para fazer frente aos questionamentos
formulados pela Justiça, cooperando, a todo o momento, com a
administração da mesma, atuando no Foro (Tribunal), qualificando o
exercício do Direito. Seus limites são estabelecidos pelos requerimentos da
lei e pelo vasto campo de conhecimento da Psicologia. 20
A partir do exposto, pode-se observar o quão importante é considerar a
interdisciplinaridade entre Psicologia e Direito. Uma vez que uma área de
conhecimento só tem a acrescentar à outra.
Diante da explanação dos aspectos gerais da hipnose, e ainda, no que se
refere à relação entre as duas áreas do saber supramencionadas, neste momento
tratar-se-á de dar devida atenção às provas no Processo Penal, à investigação
criminal, e, por fim, à hipnose na produção de provas.
3 A HIPNOSE NO DIREITO
A hipnose se apresenta como uma possibilidade de auxílio na produção de
provas jurídicas. No entanto, por não se tratar de uma prova tradicional, não é
frequentemente citada pelos compêndios ou manuais que abordam a produção e os
meios de prova.
Com a finalidade de se elaborar uma pesquisa geral dos meios de prova
utilizados no Brasil, far-se-á, inicialmente, uma análise das características gerais da
prova, num segundo momento, uma breve abordagem dos meios de prova admitidos
no Processo Penal Brasileiro e, ainda, dos aspectos gerais da investigação criminal.
Posteriormente, pretende-se demonstrar como a hipnose poderá servir como
uma ferramenta importante na produção de provas.
20
ROVINSKI, 2007, p.15.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
3.1 A PROVA NO DIREITO BRASILEIRO
Para que seja concretizado o direito a um julgamento conforme a verdade, se
faz necessária uma apreciação efetiva dos fatos, de forma que a verdade possa
trazer a tutela jurisdicional dos direitos de cada indivíduo. Nesse contexto, se faz
interessante citar as palavras de Leonardo Greco:
Se a verdade no processo tem essa relevância humanitária e política, ela
não pode ser uma outra verdade senão aquela que resulta do mais
qualificado método de investigação acessível ao conhecimento humano, em
qualquer área do saber.21
Portanto, para que seja alcançada a tão almejada justiça, o processo deve ser
aproximado ao máximo da reconstrução mais fiel dos fatos. Para tal feito, a
investigação deve assentar-se, muitas vezes, em outras ciências que não a do
Direito.
A respeito do tema, Greco bem acentua que: “O fundamental, é que as
normas jurídicas relativas à produção de provas não podem constituir obstáculos
que dificultem a reconstrução objetiva dos fatos”. 22
Concluindo o raciocínio do já mencionado autor, pode-se dizer ser necessário
que o sistema normativo das provas seja um sistema aberto a todas as áreas do
conhecimento humano, no qual as limitações sejam apenas éticas ou humanitárias.
Segundo Luiz Guilherme Marinoni, a noção de prova, no âmbito do Direito
Processual
Civil,
apresenta-se
como
todos os
elementos
direcionados à
possibilidade de que seja reconstruída a verdade dos fatos alegados pela parte. Ou
seja, provas são meios pelos quais se chegará ao conhecimento de um fato, da
verdade que as partes relatarem sobre ele.
O autor continua a discorrer sobre o tema destacando que a prova não tem
como objetivo provar fatos, e que o que realmente importa ser provado no processo
é a alegação do fato.
Explica ainda a existência dos fatos principais, também denominados de fatos
diretos - por estarem diretamente destinados a demonstrar a verdade; e dos fatos
21
GRECO, Leonardo. O conceito de prova. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). Estudos de
direito processual civil. São Paulo: RT, 2005, p.37.
22 GRECO, 2005, p.379.
85
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
secundários, também chamados de fatos indiciários - os quais podem demonstrar de
forma indireta as afirmações de fato. 23
Por outro lado, há a concepção metajurídica, que se contrapõe às provas
legais. Segundo Greco, essa corrente identifica a prova: “[...] como um fenômeno
utilizado pelo conhecimento humano em todas as áreas do saber, procurando
desprendê-la de uma caracterização especializada, exclusivamente técnicojurídica”.24
A concepção metajurídica se afasta das provas legais, é um sistema aberto,
no qual o juiz pode e deve se utilizar de métodos emprestados de outras ciências e
de outros campos de conhecimento para alcançar os fatos de forma mais segura.
Para completar este raciocínio, impõe-se o uso as palavras de Greco:
Se o método das ciências biológicas é o mais adequado para apurar ou
avaliar os dados que podem acertar os fatos, a ele deve recorrer o juiz. E
assim do mesmo modo, deve ele fazer o uso dos métodos de todas as
demais áreas do conhecimento humano, como a psicologia, a física, a
matemática, a sociologia etc.25
No entendimento de José Frederico Marques: “A prova é, assim elemento
instrumental para que as partes influam na convicção do juiz, e o meio de que este
se serve para averiguar sobre os fatos, é da prova que se serve o juiz, formando, ao
depois, sua convicção.”26
Ou seja, prova é o meio pelo qual as partes se utilizam para demonstrar ao
juiz as afirmações ou os fatos que dizem ser verdadeiros.
Com relação a possíveis restrições à prova, que servem como garantia das
partes dentro do processo, Pacelli de Oliveira afirma que toda restrição deve vir
justificada em um valor disposto pela ordem jurídica; e que as restrições podem
incidir tanto no meio de obtenção da prova, quanto no grau de convencimento a ser
produzido pela prova. Nas palavras do autor:
23
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil: vol. II - processo
de conhecimento. 7. ed. São Paulo: RT, 2008, p.265.
24 GRECO, op. cit., p.371.
25 Ibid., p.372.
26 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal: vol.II. 2. ed. Atualizada. São
Paulo: Millenium, 2000, p.332.
86
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A norma assecuratória da inadmissibilidade das provas obtidas com
violação de direito, com efeito, presta-se, a um só tempo, a tutelar direitos e
garantias individuais, bem como a própria qualidade do material probatório a
ser introduzido e valorado no processo.27
A proteção das garantias individuais, citada acima, consiste na tutela do
direito à intimidade, à privacidade, à imagem, à inviolabilidade de domicílio, entre
outros.28
Frederico Marques explica que no âmbito do Processo Penal atual não pode
ser adotado o princípio pelo qual os fins justificam os meios, por este motivo é que
as torturas e outros meios violentos passaram a ser inadmissíveis nas investigações.
Convém que sejam citadas as palavras do autor sobre o assunto:
São também inadmissíveis as provas denominadas científicas, que possam
atingir a pessoa humana, quer em sua integridade física, quer em sua
liberdade moral. Proscrito está por isso, o emprego da hipnose para obterse a confissão do acusado.29
Por esse motivo aqui exposto, é que a hipnose apenas tem sido admitida, em
investigações criminais, para ser utilizada na vítima e/ou testemunhas.
Para Mendroni, a finalidade principal da prova é produzir o convencimento do
juiz, uma vez que o objetivo é trazer ao mesmo, aquilo que a parte acredita ser a
verdade.
Impende neste momento que se tornem conhecidos os meios de prova
admitidos no Direito Brasileiro.
3.1.1 Meios de Prova no Direito Processual Penal
Para que seja realizada a tão árdua tarefa da busca pela verdade, ou, melhor
dizendo, da melhor reconstrução dos fatos possível dentro dos autos, os sujeitos do
processo podem se utilizar de diversos meios de prova, os quais serão aqui
mencionados para melhor compreensão das conclusões a serem tratadas
posteriormente.
27
Ibid., p.299.
Artigo 5°, incisos X, XI e XII, da CF.
29 MARQUES, op. cit., p. 354-355.
28
87
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Cabe, neste momento, que sejam apontados os meios de prova admitidos no
Direito Processual Penal: interrogatório; confissão; prova testemunhal; perguntas ao
ofendido; reconhecimento de pessoas e coisas; acareação; prova documental;
busca e apreensão; e por fim, prova pericial.
É necessário que seja dada maior atenção a esta modalidade de meio de
prova, que, para ser melhor compreendida, é interessante transcrever uma definição
de prova pericial trazida por Eugênio Pacelli de Oliveira:
A prova pericial, antes de qualquer outra consideração, é uma prova
técnica, na medida em que pretende certificar a existência de fatos cuja
certeza, segundo a lei, somente seria possível a partir de conhecimentos
específicos. Por isso, deverá ser produzida por pessoas devidamente
habilitadas, sendo o reconhecimento desta habilitação feito normalmente na
própria lei, que cuida das profissões e atividades regulamentadas,
fiscalizadas por órgãos regionais e nacionais. 30
De acordo com o artigo 159 do CPP, a perícia será sempre realizada por dois
peritos oficiais – que o Poder Público geralmente possui seus peritos judiciais. No
caso de não haver peritos oficiais, o juiz deverá nomear duas pessoas, devidamente
habilitadas para tal feito, para que fiquem responsáveis pela perícia.
Abordar-se-á neste momento uma das modalidades de perícia – Perícia
Psicológica Forense - a qual, na realidade, interessa ser exposta no presente
trabalho.
Nesse contexto, Rovinski ressalta que a perícia, como meio de prova, não
pode ser considerada verdade absoluta, deverá ser analisada e avaliada com
minúcias; além disso, a conclusão que for apresentada no laudo técnico do
psicólogo encarregado deve possuir a devida fundamentação.
Especificamente na área criminal existem disposições sobre a prática da
perícia psicológica nos casos de insanidade mental do acusado – artigos 149 a 154,
CPP - e de execução das Medidas de Segurança - art. 775, também do CPP. No
Código Penal, e na Lei de Execução Penal há determinações a respeito da
avaliação do preso para progressão de regime.
Quanto ao profissional encarregado da perícia psicológica forense, a autora
esclarece que este pode ser qualquer psicólogo regulamentado no Conselho
30
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7. Ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey.
2007, p.361.
88
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Regional de Psicologia, desde que possua capacidade técnica para dar respostas às
questões do caso que precise do auxílio da matéria de Psicologia.31
Para que haja certeza do juiz com relação à imputabilidade, se faz necessária
a perícia psiquiátrica, para que sejam examinados os elementos contidos no artigo
26 do Código Penal – que trata da imputabilidade penal. Consoante, discorre
Frederico Marques:
O laudo médico-legal dos peritos deve indicar o diagnóstico do estado ou
processo patológico do acusado, mostrando se este é, ou não, um doente
mental, ou se traz perturbação em sua saúde mental, bem como se
apresenta ‘desenvolvimento mental incompleto ou retardado’. Ainda se
estenderá o laudo sobre a capacidade de autodeterminação do réu no
momento da prática do crime.32
Diante de situações como esta, nas quais devem ser determinados certos
fenômenos psíquicos, fica evidente a necessidade de um perito médico para que
venha a realizar a perícia psiquiátrica – para que seja feita avaliação que traga
certezas referentes ao estado mental do acusado.
3.1.2 Provas atípicas ou inominadas
São chamadas de provas típicas ou nominadas, aquelas dispostas em texto
de lei. Já as provas atípicas ou inominadas, são as provas que podem vir a se
constituir em elementos úteis ao conhecimento dos fatos do processo, mas que não
estão regulamentadas em lei.
O artigo 332 do CPC traz amparo às provas atípicas, uma vez que prevê a
possibilidade da utilização de todos os meios legais para constituir prova, mesmo
que esses meios não estejam detalhadamente especificados em lei.
No plano constitucional, o art. 5°, LV, prevê o direito à prova e seus meios,
garantindo dessa forma, a ampla defesa; em seu inciso LVI pode-se encontrar um
limite para a produção de provas – não se admitindo, todavia, o uso de provas
ilícitas. Ou seja, as provas atípicas têm respaldo constitucional.
Como se pode observar, o artigo 332 do CPC não elenca um rol taxativo para
Interessante mencionar os artigos: 135 e 145 do CPC, e os artigos 145 a 150 do CPP – que dizem
respeito ao perito.
32 MARQUES, 2000, p.442.
31
89
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
os meios de prova; deixando em aberto as formas de obtenção de prova, desde que
lícitas, obviamente. Nesse sentido, Eduardo Cambi elucida que: “Com isso, o
legislador de 1973 dá sinais que permitem ao intérprete superar o sistema das
provas legais que se infiltrava na legislação processual mediante a ideia de numerus
clausus das provas.”33
Permitindo-se a utilização das provas atípicas, aumenta-se a liberdade para
buscar meios variados e também mais adequados a cada caso, para influenciar na
formação do convencimento do juiz. Ainda ressalta Cambi:
Com efeito, o grau de admissibilidade que se dá às provas atípicas ou
inominadas serve de critério para a maior ou menor consagração do
princípio do livre convencimento do juiz no sistema processual. Desse
modo, pressupor o caráter vinculante de um catálogo de provas
historicamente seria um excesso de formalismo interpretativo, que serviria
de obstáculo para a evolução do direito processual civil.34
De fato seria uma tarefa impossível enumerar todas as possíveis minúcias de
cada meio de obtenção de provas na tentativa de solucionar esse impasse.
Para que o Direito possa acompanhar a realidade, deve ser revelado como
uma força viva, uma roda d’água que circula e movimenta a água a todo tempo, para
que no fim, esta possa escoar em algum lugar maior, como uma cachoeira. O que se
quer dizer é que o sistema processual não pode ficar estagnado, deve haver
dinamismo e atualização de categorias jurídicas.
Nesse diapasão, convém que sejam transcritas as palavras de Mariulza
Franco - Advogada, Mestre e Doutora em Direito Processual Civil:
[...] é ponto de acordo na doutrina – e prática na jurisprudência – que o
direito não se esgota na lei, que direito positivo não é sinônimo de lei, mas
de direito vigente na sociedade e subsumido das decisões judiciais,
revelado na prática da interpretação das leis. 35
33
CAMBI, Eduardo. Provas Atípicas. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). Estudos de direito
processual civil. São Paulo: RT, 2005, p.329.
34 CAMBI, loc.cit.
35 FRANCO, Mariulza. Máximas de experiência e legitimação pela fundamentação. In: MARINONI,
Luiz Guilherme (Coord.). Estudos de direito processual civil. São Paulo: RT, 2005, p.393.
90
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Ou seja, a interpretação das leis deve estar, como já foi dito, de acordo com a
realidade social, o Direito deve se adaptar à evolução da sociedade, devem
caminhar juntos.
3.2 INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. ASPECTOS GERAIS
A persecução penal é um dever do Estado, logo, também é responsável pela
apuração dos fatos. Para tal feito, a lei dá competência a certos órgãos de
segurança pública, que ficam responsáveis pela investigação dos crimes em geral.
Conforme o artigo 144 da Constituição Federal, quem fica responsável é a
denominada polícia judiciária.
Porém, apesar da polícia judiciária, é importante mencionar que também é
permitida a tarefa investigatória realizada por outras autoridades, conforme redação
do artigo 4° do Código de Processo Penal. O referido artigo também dispõe que o
inquérito policial tem como objetivo a apuração das infrações penais e sua autoria.
Sobre a investigação criminal, Marcelo Batlouni Mendroni relata:
Em resumo, na fase pré-processual deve o incumbido tratar de coletar tudo
o que, em sua primeira análise esteja de acordo com a correlação do fato,
priorizando as circunstâncias mais evidentes e demonstrativas, para
posteriormente, durante o processo estar em condições de confirmá-las
caso seja necessário.36
Sempre bom lembrar, como já foi dito anteriormente, que para a realização da
investigação criminal se faz necessário que sejam respeitados os limites legais,
observando os limites constitucionais, principalmente no que tange aos direitos e
garantias individuais.
É importante que seja entendido em que consistem a investigação criminal e
a produção de provas, para que isso seja compreendido convém citar a concepção
de Mendroni sobre a investigação criminal como sendo: “[...] toda ação praticada
pela Polícia ou pelo Promotor de Justiça, separadamente ou em conjunto com vistas
à obtenção de evidência, sempre durante a fase pré-processual.”37
36
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Curso de Investigação Criminal. São Paulo: Editora Juarez de
Oliveira, 2002, p.65.
37 Ibid, p.198.
91
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A partir da leitura da redação do artigo 239, do CPP, pode-se constatar que
quando há indícios, parte-se de um fato que faz surgir uma dedução, que por sua
vez pode levar a outra circunstância a ser considerada como prova. As palavras de
Mendroni bem traduzem esse raciocínio:
Isto significa, em termos práticos que consideramos que os indícios, ainda
que produzidos na fase pré-processual, deixam essa qualidade e adquirem
o status de verdadeiras provas, desde que construídos através de
deduções, vindo a integrar o contexto probatório agora com status de prova.
[...] As evidências são coletadas das mais diversas formas, perícias, oitivas,
juntadas de documentos, etc. e vão integrar os autos do procedimento
investigatório.38
A partir dessa concepção é possível compreender como o papel de um
“pequeno indício” pode vir a crescer, podendo, dessa forma se transformar em um
grande auxílio para a investigação.
Desperta particular interesse neste passo o uso ou a probabilidade do uso da
hipnose no esclarecimento de circunstâncias do fato investigado. Na sequência,
proceder-se-á, por fim, à abordagem da hipnose na investigação criminal.
3.3 A HIPNOSE NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
A possível contribuição da hipnose consiste em considerar os dados
levantados como pistas do crime. Essas informações podem servir como base para
que flua a investigação criminal em busca de provas materiais. Davidoff escreve que
alguns tribunais têm recorrido à hipnose, o que facilita a recordação de certos
eventos, nas palavras da autora:
Históricos de investigações criminais específicas conduzidas com o auxílio
da hipnose sugerem que a memória sob hipnose pode melhorar em
algumas ocasiões [...]. Marilyn Smith (1984) vê três razões para essas
melhorias. Em primeiro lugar, pessoas hipnotizadas ficam mais predispostas
a lançar um palpite, embora possam lembrar muito pouco. Segundo, a
memória é melhorada por indícios do contexto, o que o hipnotizador
oferece. Terceiro, sessões repetidas de recordação possibilitam recuperar
mais informações.39
38
39
Ibid, p.237-238.
DAVIDOFF, 2001, p.235.
92
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Além disso, a pesquisadora acresce que diante de circunstâncias de
violência, a mente tende a armazenar imprecisamente o que de fato ocorreu. Como
é bem comum o uso de testemunhas para que prestem depoimento sobre detalhes
de crimes, o uso da hipnose na busca de pistas esquecidas pelas vítimas ou
testemunhas oculares, mostra possuir potencial para auxiliar nas investigações
criminais.
Rui Sampaio, o próprio mentor e criador do Laboratório de Hipnose Forense
no Paraná, salienta que “[...] a tendência da nossa mente é esquecer o que é
desagradável.”40 Sendo assim é comum que a vítima esqueça de dados importantes
em decorrência do trauma que sofreu durante o crime. A hipnose traz à tona, ou
melhor, traz para o consciente as lembranças que se encontram no subconsciente.
Em 1900, a Psicanálise já considerava o inconsciente como um saber que não se
sabe que se sabe.41
Para que se faça entender qual é a vantagem em se utilizar a hipnose ao
invés de outros meios de recuperação de memória, é importante que seja observado
o posicionamento de Rhodes sobre isso:
Enquanto o psicanalista, sem a hipnose, tem de aguardar meses ou anos
até que o paciente, em livre associação, desvende e revele o incidente
crítico, o hipnoanalista pode iniciar uma bem mais rápida recuperação de
pertinentes lembranças esquecidas, através de uma variedade de técnicas
[...].42
Ou seja, o melhor proveito do emprego do hipnotismo é ocasionado pela
recuperação mais rápida das lembranças esquecidas, uma vez que na Psicanálise,
a revelação desses momentos exige mais tempo.
Prossegue, ao discorrer a respeito do assunto, elucidando que a hipnose
pode ser vista como “[...] a chave científica para o controle mental, o abre-te-sésamo
por intermédio do qual atingimos os mais íntimos recessos do pensamento.”43
Nájila Furlan, em uma publicação baseada em entrevista com o já
mencionado Rui Sampaio escreve a respeito da hipnose:
40
MORO, Antonio. Abr.2011. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida e cidadania>.
Acesso em: 03 de março de 2012.
41 PASTORE, Jassanan Amoroso Dias. Psicanálise e linguagem mítica. Revista ciência e cultura:
temas e tendências. São Paulo, n.1, p.22, jan. 2012.
42 RHODES, 1999, p.23.
43 Ibid, p.19.
93
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Sampaio esclarece que, na criminalística, a hipnose é aplicada em vítimas e
testemunhas de crimes como estupro, sequestro, assaltos e alguns casos
de acidentes e homicídio. Usamos muito para fazer o retrato falado.
Geralmente nas pessoas que viram, mas esqueceram devido ao trauma
sofrido. É preciso esclarecer que só se usa quando a pessoa (vítima ou
testemunha) tem amnésia, revela. O psiquiatra ainda comenta que são
várias as técnicas de hipnose que se aplicam: Depende do caso
apresentado. No caso do crime, a pessoa chega, passa por uma anamnese
(entrevista) para ver se pode passar por hipnose. Em seguida, vou me
inteirando do que a pessoa viu. A partir daí faço as orientações e parto para
a hipnose. Faço a pessoa fazer o retrato do acusado, mentalmente. Ela
acorda da hipnose lembrando do fato e das características para o retrato
falado. Basta os olhos, nariz e boca. Em 90% dos casos a gente consegue
fazer. Não se consegue quando o trauma é muito grande, diz.44
Aqui se pode ter uma ideia de como a hipnose é capaz de ajudar nas
investigações criminais e essa aplicação é inovadora nessa seara. Conforme dados
apresentados pelo próprio Instituto de Criminalística do Paraná:
No Brasil, o Instituto de Criminalística do Paraná é o primeiro, desde 1983,
na associação da hipnose como técnica auxiliar as investigações criminais
e, também, na confecção do Retrato-Falado. Tais experimentos obtiveram
ótimos resultados, tendo sido criado oficialmente em dezembro de 1999, o
primeiro Laboratório de Hipnose forense, considerando o único do país.45
As diversas finalidades da hipnose têm sido alvo de interesse, tanto de
profissionais das mais diversas áreas, e também dos leigos e curiosos. Aos poucos,
felizmente, a imagem deturpada que as pessoas tinham com relação à hipnose tem
sido abandonada, e, cada vez mais tem adquirido respeito. A partir da leitura de
periódicos, revistas, artigos de jornais, entre outros meios de informação, é possível
observar que as mais diversas áreas do conhecimento têm se aprofundado em
estudos referentes à hipnose.
44
FURLAN, Nájila. Cresce o uso da hipnose terapêutica. Paraná online, 08 julho 2007.
Mundo/Notícias. Disponível em:
<www.parana-online.com.br/editoria/mundo/news/249920/>. Acesso em: 14 abril 2013.
45 Instituto de Criminalística do Paraná. Disponível em:
<http://www.ic.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=3>. Acesso em: 12 abril 2013.
94
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
3.4 O LIVRE CONVENCIMENTO DO JUIZ
Considerando que a lei processual brasileira confere ao juiz a liberdade de
convicção na elaboração de sua decisão motivada, consoante os princípios da
legalidade e razoabilidade, nada impede que leve em conta os subsídios da prova
obtida mediante o uso da hipnose.
Desta sorte, cabe examinar alguns aspectos do princípio do livre
convencimento do juiz no Direito Brasileiro.
O moderno processo penal, para se desligar dos antigos sistemas de provas inquisitório ou da prova tarifada – aderiu o sistema do livre convencimento
motivado46, também conhecido como persuasão racional. Oliveira traz uma definição
do livre convencimento motivado:
Por tal sistema, o juiz é livre na formação do seu convencimento, não
estando comprometido por qualquer critério de valoração prévia da prova,
podendo optar livremente por aquela que lhe parecer mais convincente. Um
único testemunho, por exemplo, poderá ser levado em consideração pelo
juiz, ainda que em sentido contrário a dois ou mais testemunhos, desde que
em consonância com outras provas.47
É evidente que esta liberdade concedida ao juiz no momento da sentença,
não dispensa fundamentação e argumentação racional. Pode-se perceber ainda,
que esta é uma regra para ser usada quando será realizada a valoração de todas as
provas obtidas nos autos, ou seja, no momento da decisão final.48
Ao tratar da prova indiciária e do poder de livre convencimento do juiz,
Mendroni constata que tal convencimento é um ato subjetivo, algo que vem do seu
íntimo. Logo, pode-se concluir que, mesmo as evidências49 da fase preliminar que
não tenham sido inseridas na fase processual, podem se consideradas pelo juiz em
46
Esse princípio encontra-se expresso no artigo 157, do CPP, o qual dispõe que o juiz poderá formar
sua convicção pela livre apreciação da prova.
47 OLIVEIRA, 2007, p.296.
48 Nesse sentido autor faz um alerta: “Essa regra de julgamento é aplicável somente às decisões do
juiz singular, não se estendendo aos julgamentos pelo Tribunal do Júri, em que não se impões aos
jurados o dever de fundamentarem as suas respostas aos quesitos. Para o Tribunal do Júri vige o
princípio da íntima convicção.” Ibid., p.296.
49 Palavras do autor: “Reiteramos que mesmo as evidências (indícios) – não repetidas durante a
instrução, são e devem ser levados em consideração pelos Magistrados no momento da valoração
geral do contexto probatório, razão pela qual elas também efetivamente contém potencial
comprobatório, com correspondência valorativa diretamente proporcional à forma como são
produzidos e principalmente ao seu conteúdo.” MENDRONI, 2002, p.245.
95
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
seu raciocínio íntimo, no momento de proferir a sentença.
Deve-se estar atento para os avanços da ciência, e da tecnologia, os quais
tendem a contribuir cada vez mais com o Direito, e consequentemente, de forma
mais específica, com o Direito Processual. A respeito desse assunto, Mendroni
afirma que a evolução das ciências direcionadas ao Direito permitirá que, no
momento de decisão do juiz, haja maior segurança e certeza.50
Sobre o livre convencimento, vale a pena ressaltar a concepção de Frederico
Marques: “O livre convencimento está hoje consagrado pela doutrina processual
como a mais recomendável das formas e sistemas de valoração das provas. E isso
tanto no Direito Processual Penal como no Direito Processual Civil. ”51
O autor, entanto, não deixa de frisar que não se deve confundir a liberdade de
convencimento com arbitrariedade, uma vez que o livre convencimento não é
sinônimo de liberdade total de apreciação das provas, sem limite algum. Pelo
contrário, o livre convencimento adotado pelo Direito Processual não consiste em
pura convicção íntima ou opinativa do juiz.
Portanto, pode-se constatar que não basta o juiz afirmar determinado fato na
sua decisão, bem mais que isso, ele deve sempre motivá-la, expondo as razões
pelas quais resolveu seguir um caminho ou outro.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta pesquisa, procurou-se demonstrar a necessidade de desmistificação da
ultrapassada concepção sobre transes hipnóticos, devendo ser abandonadas
antigas visões sobre a temática aqui tratada Ora, se vem sendo utilizada ao longo do
tempo, e tem sido indicada nos dias atuais, é porque realmente traz resultados
positivos dentro de várias áreas do conhecimento.
Pode-se observar que a hipnose é uma técnica poderosa, capaz de eliminar
sintomas e tratar quadros fóbicos, sendo indicada também nas mais diversas
especialidades da Medicina. Na cirurgia geral, por exemplo, como anestesia de
urgência; na Odontologia como auxiliar no preparo do paciente; além de poder ser
utilizada dentro das atividades jurídicas – reavivando a memória de vítimas ou
50
51
Ibid., p.250.
MARQUES, 2000, p.361.
96
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
testemunhas ao relatarem o fato delituoso, entre outros fins, contribuindo, deste
modo, para a elucidação da verdade.
Houve, ainda, menção referente à relação entre a Psicologia e o Direito, para
que fosse possível a compreensão da valiosa colaboração que uma área do
conhecimento pode trazer à outra.
Neste texto, também, foram examinadas as provas no Direito Processual
Penal, as principais características da perícia criminal, abordando-se inclusive a
perícia psicológica forense. Fazendo-se, também, conhecidos os aspectos gerais a
respeito das investigações criminais no Brasil, para que, em momento posterior,
fosse indicada a hipnose como uma técnica hábil à descoberta de qualquer indício
referente a determinado delito, evitando que crimes fiquem sem solução por falta de
pistas do acusado.
Faz-se mister saber que o objetivo do estudo não se traduz em elevar uma
informação obtida por meio hipnótico à categoria de prova cabal, mas sim apontar
em que situações esse método pode ser utilizado, ainda que subsidiariamente.
Desse modo a hipnose ganha destaque e grande importância nos casos em que não
há um ponto de partida para que se desenrole a investigação. Nesse contexto, a
informação obtida por essa técnica pode trazer indícios para que se inicie uma
investigação que busque a materialidade do crime.
Diante do cenário judicial – no qual podem ser observados tantos crimes
insolúveis e tanta Justiça a ser alcançada – a investigação da temática da pesquisa
é atual e mostra-se vantajosa, pois se trata de um trunfo que pode ampliar o alcance
da segurança pública; uma vez que, para que a criminalidade seja combatida, é
necessário que profissionais de várias áreas se reúnam em busca desse fim maior.
No estágio atual desta pesquisa, portanto, pode-se concluir que a hipnose
forense apresenta-se como uma nova ferramenta contra o crime, frisando sempre
que a hipnose forense deve estar sempre direcionada às vítimas e/ou testemunhas
do fato delituoso que, voluntariamente, se submetam a esta prática médica.
Destacou-se, no texto, que nunca deve ser usada para arrancar a verdade de um
suspeito – até porque esse tipo de procedimento viria a ferir os direitos individuais
garantidos pela Constituição Federal.
Nessa perspectiva propõe-se que se repense nos meios jurídicos a aplicação
da hipnose, diante da relevância das informações que pode levantar nas
97
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
averiguações criminais. Tal iniciativa só poderá trazer melhores condições de
avaliação e investigação, auxiliando, quiçá, na decisão do juiz, tendo em vista o
princípio do livre convencimento motivado.
98
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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100
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ASPECTOS SOBRE A (NÃO) PROTEÇÃO À VIDA DO FETO NOS
CASOS DE ABORTO DECORRENTE DE CRIME SEXUAL
ASPECTS ON THE (NOT) PROTECTION OF THE RIGHT TO LIVE OF
THE FETUS IN CASES OF ABORTION ARISING IN SEXUAL CRIME
Ana Carolina Strozzi de Oliveira1
Roosevelt Arraes2
Acadêmica do 10º período do curso de Bacharelado em Direito do Centro Universitário Curitiba –
UNICURITIBA.
2 Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), especialista em Ética (2004),
mestre (2006) e doutorando (2014) em Filosofia Jurídica e Política pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. Atualmente é professor e pesquisador do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA e membro-pesquisador do Departamento de Filosofia na Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. Tem experiência na área de Filosofia do Direito, com enfoque nas teorias
modernas e contemporâneas da Justiça, e, em fundamentos do direito público (constitucional,
eleitoral, penal e administrativo).
1
101
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SUMÁRIO
Resumo 1 Introdução 2 Histórico 3 A Dogmática do Aborto 3.1 O Início da Vida
– Critério Biológico 3.2 Teorias Sobre o Início da Relevância Ética Do (Pré)Embrião
3.3 Teorias Sobre o Início da Relevância Jurídico-Filosófico Do (Pré) Embrião 3.3.1
Doutrina Natalista 3.3.2 Doutrina da Personalidade Condicional 3.3.3 Doutrina
Concepcionista 3.4 O art. 128, II do CP 4 O aborto 4.1 Gravidez Decorrente do
Crime de Estupro: Estatística e Aspecto Psicológico 4.2 Correntes Morais Favoráveis
ao Aborto 4.3 Correntes Morais Contrárias ao Aborto 5 Considerações Finais.
Referências
102
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
O direito penal criminaliza a prática de aborto, tendo como exceção o aborto
necessário, casos em que está em risco a vida da gestante, e o aborto sentimental,
quando a gravidez é resultante do crime de estupro. O legislador justifica a
necessidade desta excludente de ilicitude, por entender, que não deve a mulher
relembrar a violência vivida, tendo que seguir com a gestação. Este trabalho, visa
analisar a constitucionalidade desta excludente de punibilidade estabelecida pela
legislação pátria, por entender que o direito à vida é um direito fundamental e
inviolável, devendo o ordenamento jurídico protege-la desde o momento em que o
ser humano é gerado. Para tanto, será empreendida uma análise: dos motivos
históricos e culturais que levaram o legislador a possibilitar esta excludente de
ilicitude; de quando a doutrina e a jurisprudência entende que inicia a vida, bem
como, sua proteção. Para ao fim contrapor este princípio fundamental com a
possibilidade da realização do aborto nesta excludente, visando assim, questionar a
constitucionalidade do referido dispositivo.
Palavras-chave: aborto, gravidez, estupro, e aborto sentimental.
103
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
The criminal law criminalizes the practice of abortion, with the exception abortion
necessary, where this risk the mother's life, and sentimental abortion when
pregnancy results from rape crime. The legislator justifies the need for these
exclusive illegality, understanding that women should not recall the violence
experienced, having to follow through with the pregnancy. This work aims to analyze
the constitutionality of exclusionary punishment established by law country,
understanding that the right to life is a fundamental and inviolable, the law should
protect it from the moment that the human being is generated. Therefore, an analysis
will be undertaken: the historical and cultural reasons which prompted the legislature
to allow this unlawful exclusionary; when the doctrine and jurisprudence understands
that starts life as well as their protection. To the end counter this fundamental
principle with the possibility of the abortion in this exclusive, thus aiming, questioning
the constitutionality of the said device.
Keywords: abortion, pregnancy, rape, and abortion sentimental.
104
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
Haja vista que o texto constitucional tem como princípio máximo o direito à
vida, e esta proteção deve se dar antes mesmo do nascimento, ou seja, enquanto o
feto ainda se encontre no ventre materno, é possível considerar que aniquilar este
ser humano gerado pela violência, para apagar o efeito causado pelo crime de
estupro, vai de encontro com este princípio constitucional?
O ordenamento jurídico brasileiro tem como princípio fundamentador o direito
à vida, protegendo-a desde o momento em que o ser humano é gerado. Apesar
disso, este princípio não é um valor absoluto, já que existem momentos em que este
bem jurídico entra em conflito com ele mesmo, como por exemplo, nos casos de
legítima defesa, ou estado de necessidade.
O direito penal criminaliza a prática de aborto, tendo como exceção o aborto
necessário, casos em que está em risco a vida da gestante, e o aborto sentimental,
quando a gravidez é resultante do crime de estupro. O legislador justifica a
necessidade destas excludentes de ilicitude, por entender, que em ambos os casos
a gestante encontra-se em estado de necessidade ou que seria o caso de
inexigibilidade de conduta, existindo no primeiro caso um conflito entre a vida da
mãe e a vida do nascituro (sendo pacífico na doutrina o entendimento de que a vida
da mãe sempre prevalece à vida do feto), e no segundo caso, o bem jurídico em
conflito é a dignidade da mulher violentada, que teria no filho a imagem do crime
sofrido, contra a vida desse novo ser.
Este trabalho visa ponderar a constitucionalidade desta segunda excludente,
por entender que o direito à vida é um direito fundamental e inviolável, e, que
diferentemente dos casos de aborto terapêutico, onde a vida da mãe está em risco,
o aborto nos casos de gravidez decorrentes do crime de estupro a gestante não se
encontra em risco vital, mas sim, está moral e sentimentalmente ferida, não sendo
desta forma possível falar em estado de necessidade.
Ademais, por estar o nascituro protegido antes mesmo do nascimento, cabe
questionar se é possível sacrificá-lo por ter sido gerado pela violência. Desta forma,
cabe questionar se o fato de a gestante ter sido estuprada, torna aceitável pôr fim à
vida deste feto.
105
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Para tanto, será empreendida uma análise: dos motivos históricos e culturais
que levaram o legislador a possibilitar esta excludente de ilicitude; de quando a
doutrina e a jurisprudência entendem que inicia a vida, bem como, sua proteção; os
aspectos psicológicos das gestantes que tiveram que passar por tal situação. Ao fim
será contraposto este princípio fundamental com a possibilidade da realização do
aborto nesta excludente, visando assim, questionar a constitucionalidade do referido
dispositivo.
2 HISTÓRICO
De início, o aborto foi utilizado como forma de controle populacional. Sendo
nas famílias rurais de natureza patriarcal, o filho tido como um bem, tendo mais
deveres do que direitos. Como os filhos recém-nascidos eram “coisas” pertencentes
aos pais, o aborto não era passível de punição.
O Código de Hamurabi (2235 a.C. – 2242 a.C.), previa que o provocador do
aborto era punido com pena pecuniária, levando-se em consideração a qualidade da
gestante e a acidentalidade ou voluntariedade do ato, admitia a reparação civil ao
pai da gestante, na proporção do dano a ela causado; bem como, pena capital ao
filho do agressor, que causasse a morte da mulher grávida.
A primeira cominação penal acrescentada à reparação civil foi a Lei Assíria,
determinando além do pagamento de multa e cumprimento de um mês de senso
real, levaria ainda cinquenta golpes de açoite quem agredisse mulher grávida e a
fizesse abortar; e, nos casos em que o marido da abortada não tivesse outro filho, o
culpado teria como pena a decapitação. Segundo MENDES ( 2012, p. 20.) esta
legislação punia “as gestantes que praticavam o aborto com empalação e privação
de sepultura”.
No Ordenamento Jurídico Brasileiro, as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e
Filipinas, bem como, as leis extravagantes vigentes à época, não previam o crime de
aborto.
O primeiro código brasileiro a criminalizar o aborto, foi o Código Criminal do
Império (1830), este punia somente o aborto realizado por terceiro, com ou sem o
consentimento da gestante, por qualquer meio empregado interior ou exteriormente,
condenando o autor à pena de prisão com trabalho por um a cinco anos, sendo a
106
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
pena duplicada, nos casos de aborto sem o consentimento da gestante, entretanto
não criminalizava o aborto praticado pela própria gestante (auto aborto).
Já o Código Penal de 1890, criminalizava o aborto praticado pela própria
gestante, além de uma tentativa do legislador de diferenciar o aborto tentado e o
consumado, ao especificar os casos de aborto com ou sem expulsão do feto.
Nota-se, ainda, que segundo esta cominação legal se o crime tivesse a
finalidade de ocultar a própria desonra a pena era consideravelmente atenuada, só
autorizando o aborto em casos onde a vida da gestante se encontrava em risco.
Verifica-se também que a punição ao terceiro que, nos casos em que o aborto
era permitido (aborto necessário), a título de culpa, provocasse o falecimento da
gestante por imprudência ou negligência; a cominação legal seria de dois meses a
dois anos de reclusão.
O atual Código Penal Brasileiro, constituído em 1940, tipifica quatro figuras de
aborto: a) o aborto provocado; b) o aborto sofrido; c) o aborto por interrupção do
ciclo natural da gravidez; d) e o aborto consentido. O art. 128 deste código traz em
seus incisos duas excludentes de ilicitudes: o aborto necessário, casos em que está
em risco a vida da gestante, e o aborto sentimental, quando a gravidez é resultante
do crime de estupro.
Estes artigos se encontram no Capítulo dos Crimes contra a Vida. Vislumbrase que houve a manutenção da punição nos casos de auto aborto, sendo a pena
agravada nos casos de grave lesão ou morte da mulher grávida, em decorrência das
manobras abortivas. Entretanto, não há mais a discussão entre a necessidade, ou
não, da expulsão do feto, para a consumação do abortamento.
Observa-se também, que esta foi a primeira vez, no ordenamento brasileiro,
que existem casos de excludentes de ilicitudes para o aborto, presentes no art. 128
do CP.
Verificando-se assim que só é permitido, no ordenamento brasileiro, o aborto
em casos de gravidez resultante do crime de estupro, denominado aborto
sentimental, ou em casos em que a vida da gestante se encontra em risco, o
chamado aborto necessário.
O presente trabalho se preocupará apenas com esta segunda exceção: o
aborto sentimental.
107
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
3 A DOGMÁTICA DO ABORTO
Tendo em vista que o bem jurídico tutelado no art. 128 do CP, é a vida do
feto/nascituro, importante saber quando se inicia a vida deste ser, tanto no aspecto
biológico, como no aspecto jurídico-filosófico.
3.1 INÍCIO DA VIDA – CRITÉRIO BIOLÓGICO
A medicina estabelece, em média, como prazo de duração, de uma gestação
humana normal, 280 dias ou 40 semanas. Considera-se como prazo máximo usual
294 dias, e acima de 300 dias em situação excepcional. Como prazo mínimo para
que haja sobrevivência do feto, sem cuidados especiais, 28 semanas ou 196 dias.
No entanto, para a obstetrícia:
com menos de 7 meses de vida intrauterina, o feto não terá alcançado
desenvolvimento suficiente para sobrevida autônoma. [...] este prazo é
considerado em relação às condições usuais, sem assistência especial e
equipada ao recém-nascido. Sob cuidados médicos, em serviço hospitalar
adequado, é possível conseguir-se que os fetos com cerca de 22 semanas
de vida intrauterina sobrevivam no mundo exterior.(MARANHÃO, 2002, p.
166)
Ocorre que por diversas causas, a evolução normal do concepto pode ser
interrompida antes do final da gestação, podendo ser caracterizado como aborto,
independendo da fase em que se encontra a gravidez.
Para a medicina “o aborto é a interrupção de uma gravidez até o final de 22ª
semana de gestação, resultando deste ato a expulsão de um concepto sem vida ou
mesmo inviável para vida extrauterina”. (CARDOSO, 2006, p. 119)
Entretanto, este conceito não é compartilhado pela Obstetrícia, ramo da
medicina, que entende que a interrupção após o sétimo mês de gestação, deve ser
denominada parto prematuro. E, as interrupções anteriores a este período devem
ser classificadas em aborto ovular, embrionário e fetal.
Ainda, vale frisar, que o conceito de aborto previsto no Código Penal não é
similar ao conceito obstétrico.
108
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Importante ressaltar também que, no aborto não é necessariamente
obrigatória a expulsão do produto da concepção, podendo existir casos de “aborto
retido (missedabortion), em que ela não ocorre a despeito da morte espontânea do
ovo, embrião ou feto no interior do álveo materno” (CROCE; CROCE JUNIOR, 2004,
p.523).Este evento não é criminoso, interessando diretamente à Obstetrícia.
Neste trabalho, utilizaremos o termo aborto para o ato de destruição da vida
intrauterina, até momentos antes do parto.
Isto posto, visa-se necessário ponderar em que momento se inicia a
gestação, quando este embrião é considerado pessoa, como demais aspectos
relacionados a formação biológica desse ser humano em construção.
A gestação ou gravidez, para a medicina legal, é considerada “o período
fisiológico da mulher compreendido desde a fecundação do óvulo, ou dos óvulos, até
a morte ou expulsão, espontânea ou propositada, do produto da concepção.”
(CROCE, CROCE JUNIOR, 2004, p. 490). Neste período, a mulher que concebeu
este óvulo, o traz dentro de si e o alimenta.
Grande parte da doutrina defende que o início deste estágio fisiológico, ocorre
no momento da fecundação, na qual o óvulo passará a ser denominado ovo.
Desta forma, considera-se ovo todo o produto da concepção, até momentos
antes do parto, não importando o tempo gestacional em que ocorreu a interrupção
da gravidez, “seja desde a fecundação até momentos antes do início do trabalho de
parto ou o termo, no 9º mês.” (CROCE, CROCE JUNIOR, 2004, p. 524)
Este conceito de gravidez, utilizado pela Medicina Legal, entende que a vida
tem início na fecundação.
Todavia, este conceito não é pacífico, vez que existem doutrinadores que
defendem que a gestação se inicia somente de 4 a 6 dias após a fecundação.
Isto porque, antes da efetiva fecundação existe a ocorrência da “nidação do
ovo na face posterior da parte central do útero, no endométrio, quando então, e só
então, passa a alimentar-se a expensas do organismo materno.” (CROCE, CROCE
JUNIOR, 2004, p. 490).
Assim sendo, embora exista fecundação, não poderia ainda, durante este
período, se considerar a existência de uma gestação propriamente dita, tendo em
vista que “somente a partir deste evento é que haveria viabilidade do
109
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
desenvolvimento da vida”. (FRANCO; OLIVEIRA, jan/jun 2007, p. 244). Este termo
deve ser contado a partir da data da geração.
Para os autores que defendem esta teoria, no decorrer deste prazo (quatro a
seis dias) “o ovo, em divisão celular, adquire a maturação e a capacidade de
implantação, percorrendo a luz tubária até chega à cavidade uterina onde, auxiliado
por correntes remoinhantes consequentes aos movimentos miometriais, nida no
endométrio”. (CROCE, CROCE JUNIOR, 2004, p. 491).
3.2 TEORIAS SOBRE O INÍCIO DA RELEVÂNCIA ÉTICA DO (PRÉ)EMBRIÃO
Segundo a autora Renata da Rocha, são três as teorias que tem como
finalidade determinar o início da vida humana, sendo elas: a teoria concepcionista, a
teoria genético-desenvolvimentista, e a teoria da pessoa humana em potencial.
Todas estas teorias partem de um diferente estágio do processo de desenvolvimento
embrionário.
Os defensores da teoria concepcionista, entendem a vida humana inicia-se,
“com a fertilização do ovócito secundário pelo espermatozoide. A partir desse
evento, o embrião já possui a condição plena de ser pessoa, compreendendo, essa
condição, a complexidade de valores inerentes ao ente em desenvolvimento”
(ROCHA, 2008, p. 74/75). Esta tese é amparada pela Embriologia, a qual entende
que “a partir da fusão das duas células germinativas, provenientes de organismos
diferentes, deve ser aceita a existência de um novo ser, sobretudo, por ser ele
dotado de um sistema único e completamente distinto daqueles que lhe deram
origem”(ROCHA, 2008, p. 74/75).
Já os defensores da teoria genético-desenvolvimentista, defendem que “o
embrião humano adquire status jurídico e moral gradualmente, à medida que seu
desenvolvimento avança no tempo” (ROCHA, 2008, p. 76), tal teoria relaciona o
início da vida humana às diferentes fases que ocorrem no desenvolvimento
embrionário.
A teoria da pessoa humana em potencial entende que todo embrião deve ser
considerado uma pessoa em potencial. Isto porque:
110
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
[...] não é possível identificar totalmente o embrião humano com a pessoa
humana, uma vez que ainda não é dotado de personalidade e, para tanto, o
embrião teria que ser capaz de exercer direitos e de contrair obrigações.
Por outro lado, também não se permite reduzir seus status a um mero
aglomerado de células, uma vez que seu desenvolvimento destina-se,
inelutavelmente, à formação de um ente humano. (ROCHA, 2008, p. 88)
Importante ressaltar que um número cada vez maior de juristas e médicos
embriologistas, tal como o autor Odilon Maranhão, “entendem que o início da vida
realmente se dá no exato momento da fecundação, antes, portanto, da nidação”
(FRANCO, OLIVEIRA, jan./jun. 2007, p. 244)
3.3. TEORIAS SOBRE O INÍCIO DA RELEVÂNCIA JURÍDICO-FILOSÓFICO DO
(PRÉ) EMBRIÃO:
Dentro do direito3, bem como no biodireito4 e na bioética5, há uma diferença
entre o conceito de pessoa e de humano. Ser humano pode ser considerado todo
ser pertencente à espécie “homo sapiens” e pessoa “como todo indivíduo que tem
consciência de si, auto controle, senso de futuro e passado, capacidade de
relacionar-se com os outros, preocupação outros, comunicação e curiosidade.”
(SANCHES; SANCHES in MEIRELLES; RIBEIRO, 2011, p. 134), Os defensores
deste entendimento, defendem que o embrião, o feto, a criança com profundas
deficiência, bem como o bebe recém-nascido, são todos considerados humanos,
pertencentes
a
espécie
“homo
sapiens”,
entretanto,
nenhuma
deles
“é
autoconsciente, tem senso de futuro ou capacidade de se relacionar com os outros”
(SANCHES; SANCHES in MEIRELLES; RIBEIRO, 2011, p. 134).Portanto, para eles,
é difícil uma defesa da dignidade da vida do feto.
Atualmente, vislumbra-se que no Brasil, a vida humana é amparada no âmbito
jurídico desde a singamia.
3Direito:
conjunto de regras de comportamento social.
é a positivação jurídica de permissões de comportamentos médico-científicos, e de
sanções pelo descumprimento dessas normas,
5Bioética: “é a parte da Ética, ramo da Filosofia, que enfoca as questões referentes à vida humana (e,
portanto, à saúde). A Bioética, tendo a vida como objeto de estudo, trata também da morte (inerente à
vida). [...]. Surge como uma resposta democrática da sociedade frente às questões éticas levantas
pelas ciências da vida, inerentes ao desenvolvimento técnico e científico ocorrido na segunda metade
do século passado. A bioética deve ser entendida como a ética aplicada à vida”. COHEN, Cláudio
(2002, p. 27 – 1ª parte e 55 – 2ª parte).
4Biodireito:
111
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Ou seja, da fecundação natural ou artificial do óvulo pelo espermatozoide
(CC, art. 2º, Lei nº 11.105/2005, art. 6º, III, in fine, 24, 25, 27, IV, e CP, arts.
124 a 128). O direito a vida integra-se à pessoa até o seu óbito, abrangendo
o direito de nascer, o de continuar vivo e o da subsistência, mediante
trabalho honesto (CF, art. 7º) ou prestação de alimentos (CF, art. 5º, LXVII e
229), pouco importando que seja idosa (CF, art. 230), embrião, nascituro,
criança, adolescente (CF, art. 227), portadora de anomalias físicas ou
psíquicas (CF, arts. 230, IV, 227,§1º, II), que esteja em coma ou que haja
manutenção do estado vital por meio de processo mecânico. (DINIZ, 2011.
p. 46)
Isto posto, verifica-se que o texto jurídico brasileiro estabeleceu que a
personalidade civil do ser humano começa com o nascimento com vida, sendo
salvaguardados os direitos do nascituro desde a concepção.
Para tanto, contém uma distinção entre pessoa nascida, pessoa concebida e
pessoa não concebida
[...] o art. 1.798 legitima a suceder as pessoas existentes ou já concebidas
no momento da abertura da sucessão; e o art. 1.799, inciso I, dispõe a
respeito da possibilidade de serem chamados a suceder os filhos, ainda não
concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, sob a condição de estarem
vivas essas ao abrir-se a sucessão. Demonstrando, assim, que são
inconfundíveis noções referentes ao nascituro (pessoa concebida) e à prole
eventual (pessoa não concebida), a leitura do art. 2º pode demonstrar que a
proteção legal da pessoa humana atinge somente o nascituro [...].
(BARBOZA; MEIRELLES; BARRETO, 2003. p. 84/85)
Desta forma, o nascituro possui seus direitos patrimoniais resguardados, tais
como as disposições testamentárias e doações.
Ocorre que, não é unanime na doutrina o reconhecimento deste feto como
pessoa.
O autor Francisco AMARAL (apud BARBOZA; MEIRELLES; BARRETO,
2003, p. 223/224), ao tratar da condição do feto, entende-a como uma expectativa
de direito. Para ele:
[...] esta se reconhecendo ipso factum o nascituro como titular de direito em
formação e, desde o momento em que se reconhece a titularidade, estamos
pressupondo a titularidade, qualidade específica da pessoa humana. [...]
além do que se encontra explícito em lei, pode-se também concluir que o
nascituro tem personalidade jurídica, pois o feto é considerado, em diversos
artigos da lei brasileira, como possível sujeito de direitos. [...] só pode ser
titular de direitos quem tiver personalidade, donde considerar-se que,
formalmente, o nascituro tem personalidade jurídica. [...] concorda com a
concepção de pessoa potencial, ao afirmar que o nascimento não é a
112
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
condição para que a personalidade exista, mas para que se possa
consolidar.
Já para Damásio de Jesus, perante o direito civil, o nascituro não pode ser
considerado pessoa, mas “spes personae”, já que o referido código, utiliza-se da
doutrina natalista. Ou seja, o feto será considerado apenas como uma expectativa
de ente humano, tendo apenas uma expectativa de direito. Visão esta, não
compartilhada pelo direito penal, o qual o considera pessoa, para os efeitos penais,
tutelando, desta forma, a vida da pessoa humana.
Sobre o tema, o penalista Cezar Roberto BITTENCOURT (2007, p. 128),
afirma:
O bem jurídico protegido é a vida do ser humano em formação, embora,
rigorosamente falando, não se trate de crime contra a pessoa. O produto da
concepção – feto ou embrião – não é pessoa, embora tampouco seja mera
esperança de vida ou simples parte do organismo materno, como alguns
doutrinadores sustentam, pois tem vida própria e recebe tratamento
autônomo da ordem jurídica. Quando o aborto é provocado por terceiro, o
tipo penal protege também a incolumidade da gestante.
E, ainda o médico jurista Genival Veloso de FRANÇA (2007, p. 349):
Hoje, em quase todas as legislações do mundo, é o aborto severamente
punido, como um crime praticado contra uma vida humana em formação e
que tem o direito de prosseguir e nascer. O objeto do crime de aborto não é
a mulher, mas a vida que se encontra no álveo materno, embora
resguardem-se também a vida e a saúde da gestante, punindo-se os
atentados à sua integridade. Por isso é alvo de sanção mesmo a mulher
que pratica em si própria aborto, pois o que se visa com isso é unicamente
à garantia da existência dessa nova vida. [...] Para muitos, o aborto não
deixa de ser um homicídio, embora justificado em circunstâncias especiais.
Daí constituir-se uma forma própria de delito com aquela denominação
consagrada pela técnica jurídica, embora, antologicamente, sendo a morte
de um ser humano, não há que negar a configuração de homicídio. Só não
o é em sentido mais profundo unicamente devido ao início da personalidade
imposto pelo nascimento com vida, conceito esse fundamentado na doutrina
natalista.
Para parte da doutrina, parece um contrassenso afirmar que os nascituros
teriam seus direitos protegidos antes de nascer, tendo em vista que o código civil
brasileiro atribui a personalidade ao nascituro somente ao nascimento com vida, e
esta personalidade é a capacidade de ser sujeito de direitos.
113
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Isto porque, para os autores mais tradicionais, “existe uma estreita vinculação
entre a titularidade de direitos e a noção de personalidade” (MEIRELLES, 2000,
p.37). Como define BEVILAQUA (1955 apud MEIRELLES, 2000, p. 37), a
personalidade é “a aptidão reconhecida pela ordem jurídica a alguém para exercer
direitos e contrair obrigações”. Ainda:
[...] para a maior parte dos juristas contemporâneos [...], personalidade e
capacidade de direito eram expressões sinônimas, ambas definidas como
“aptidão genérica para adquirir direitos e obrigações”, quando, de fato,
tradicionalmente o termo capacidade exprime ideia de medida de
quantidade, sendo, portanto, atributo da personalidade jurídica, que é
intrínseca ao ser humano e, em razão da qual ele é sujeito e titular de
direitos. [...](AMARAL, 1990 apud MEIRELLES, 2000, p. 37)
Já Orlando GOMES (1996 apud MEIRELLES, 2000, p. 38), entende que a
personalidade é um atributo jurídico, tendo em vista que todo homem, tem a aptidão
de “desempenhar na sociedade um papel jurídico, como sujeito de direito e
obrigações”. Sendo, “sua personalidade, institucionalizada num complexo de regras
declaratórias das condições de sua atividade jurídica e dos limites a que se deve
circunscrever”.
Caio Mário da Silva PEREIRA (1996 apud MEIRELLES, 2000, p. 38), defende
que “a ideia de personalidade está intimamente ligada à de pessoa, pois exprime a
aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações”. Referida afirmação
também é defendida por Rubens Limongi de FRANÇA (1980 apud MEIRELLES,
2000, p. 38), o qual entende, que “em ciência jurídica, pessoa é o sujeito de direitos,
isto é, o ente capaz de adquirir direito e contrair obrigações.”
Recentemente no julgamento da ADI nº 3510/DF jugou constitucional a lei de
biossegurança, e em seu relatório o Ministro Relator Carlos Britto
Asseverou que as pessoas físicas ou naturais seriam apenas as que
sobrevivem ao parto, dotadas do atributo a que o art. 2º do Código Civil
denomina personalidade civil, assentando que a Constituição Federal,
quando se refere à "dignidade da pessoa humana" (art. 1º, III), aos "direitos
da pessoa humana" (art. 34, VII, b), ao "livre exercício dos direitos...
individuais" (art. 85, III) e aos "direitos e garantias individuais" (art. 60, § 4º,
IV), estaria falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa. Assim,
numa primeira síntese, a Carta Magna não faria de todo e qualquer estádio
da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é
própria de uma concreta pessoa, porque nativiva, e que a inviolabilidade de
114
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
que trata seu art. 5º diria respeito exclusivamente a um indivíduo já
personalizado.(ADI 3520/DF, Rel. Min. Carlos Britto, j. 29/05/2008)
Assim, percebesse que o elemento vida, é condição sinequa non, para que
seja atribuída a personalidade civil. Para tanto, é necessária a identificação e a
comprovação dos sinais vitais deste recém-nascido, através da medicina,
vislumbrando-se se houve: “vagidos, movimentos, inalação de ar e sua penetração
nos pulmões do recém-nascido, ainda que por período ínfimo” (MEIRELLES, 2000,
p. 50). Referidas constatações são necessárias para a caracterização deste feto
como pessoa natural.
Diante disto, surgiram algumas teorias, que buscam determinar a natureza
jurídica do nascituro, estando dentre as principais doutrinas: a natalista, a da
personalidade condicional e a concepcionista.
3.3.1 Doutrina Natalista
Para os defensores desta teoria, o nascituro não é pessoa, embora tenha
seus direitos protegidos.
Neste caso, “a personalidade estaria sujeita à condição suspensiva do
nascimento com vida. Assim, nascendo a criança, mesmo que por um mínimo
instante, viria a adquirir e transmitir todos os direitos reservados à pessoa
natural”(LORENTZ, in: SÁ, 2002, p. 345).
Entretanto, como consequência desta teoria, se tem que nos casos de aborto
ou quando o feto nasce natimorto, considera-se como se nunca houvesse existido
vida ou pessoa capaz de obter personalidade.
3.3.2 Doutrina da Personalidade Condicional
A presente doutrina sustenta que “a aquisição de direitos e obrigações do
nascituro a partir de sua concepção, entretanto com a condição resolutiva de nascer
com vida” (LORENTZ, in: SÁ, 2002, p. 345).
Para LORENTZ (in: SÁ, 2002, p. 346), esta tese:
115
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
[...] considera existir humanidade na vida embrionária, sendo necessária
sua proteção, devido o caráter de existência de uma pessoa em potencial.
Entretanto, haveria profundas mudanças nos ramos de direito supraapontados no caso de parto de natimorto, em especial o tocante à linha
sucessória.
Ela visa proteger a vida em formação, sem entrar em conflito com outras
questões jurídicas, tais como, direito sucessório ou de transmissão de propriedade,
entre outros.
3.3.3 Doutrina Concepcionista
Para esta doutrina, desde o momento da concepção, já existe a vida e a
personalidade do nascituro.
Desta forma, protege o nascituro em qualquer fase do seu desenvolvimento.
Como explica FRANÇA(2004, p.251):
Tal teoria concepcionista fundamenta-se na afirmação de que, se o
nascituro é considerado sujeito de direito, se a lei civil lhe confere um
curador, se a norma penal o protege de forma abrangente, nada mais justo
que se lhe reconhecesse também o caráter de pessoa e o considerasse
com personalidade civil autônoma. Isso porque o feto herda, transmite,
demanda e sua morte intencional é crime. Também, até porque é difícil
entender como alguém pode ser considerado ser humano e não ter
assegurado o atributo da personalidade jurídica.
Para seus defensores, deve haver um reconhecimento da personalidade
jurídica do nascituro, seja por meio da reformulação do disposto no código civil, ou
pela interpretação extensiva deste dispositivo.
Isto posto, importante ressaltar que a teoria adotada pelo ordenamento
jurídico brasileiro é a teoria natalista.
FRANÇA (2004, p. 251)entende que esta “política protecionista em favor do
feto humano não tem outro sentido senão a imperiosa necessidade de se preservar
a mais indeclinável e irrecusável das normas da convivência humana: o respeito
pela vida”.
Afirma, ainda que “o feto tem capacidade de adquirir personalidade, é pessoa
virtual, um ser vivente” (FRANÇA, 2004, p. 261)e mesmo que se quisesse tratar a
vida do feto, de uma forma mais técnica, não poderia deixar de lado, o fato dele
116
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
possuir vida biológica (ou também chamada vida intrauterina), o que não deixa de
ser considerado vida.
Maria Helena DINIZ (2011, p. 45/46) ensina:
A vida humana deve ser protegida contra tudo e contra todos, pois este é
objeto de direito personalíssimo. O respeito a ela e aos demais bens
jurídicos correlatos decorre de um dever absoluto erga omnes, por sua
própria natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer. Ainda que não
houvesse tutela condicional ao direito à vida, que, por ser decorrente da
norma de direito natural é deduzida da natureza do ser humano, legitimaria
aquela imposição erga omnes, porque o direito natural é o fundamento do
dever-ser, ou melhor, do Direito Positivo, uma vez que se baseia num
consenso, cuja expressão máxima é a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, fruto concebido pela consciência coletiva da humanidade
civilizada. [...] Assim sendo, se não pode recusar humanidade ao bárbaro,
ao ser humano em coma profundo, com maior razão o embrião e ao
nascituro. A vida humana é um bem anterior ao direito, que a ordem jurídica
deve respeitar. O direito ao respeito da vida não é um direito à vida. Esta
não é uma concessão jurídico-estatal, nem tampouco, o direito de uma
pessoa sobre si mesma. Logo, não há como admitir a licitude de um ato que
ceife a vida humana, mesmo sob o consenso de seu titular, porque este não
vive somente para si, uma vez que deve cumprir sua missão na sociedade,
a existência de uma aperfeiçoamento pessoal.
Desta forma, ESTEFAN (2012. p. 151/152), defende que “não há dúvida que
referido princípio envolve a proteção integral da vida humana. Muito embora essa
não seja um valor absoluto, porque há de ceder diante de conflitos irremediáveis,
como se dá nos casos de legítima defesa (da vida) ou estado de necessidade (que
ponha em risco a vida)”. Mas, através desta proteção, pode-se dizer que “a pessoa
existe como indivíduo único e não somente desde o nascimento, mas também antes
disso”.
Assim, através de uma análise dos princípios constitucionais brasileiros
observa-se que a Constituição Federal consagra uma proteção ao ser humano,
desde antes do nascimento com vida, ou seja, quando o feto ainda se encontra no
ventre materno. Isto porque, tem como um de seus fundamentos a dignidade da
pessoa humana, princípio este consagrado no primeiro artigo da Carta Magna (art.
1O, III, CF).
117
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
3.4 O ART. 128, II, CP
Atualmente verifica-se que o aborto é praticado em grandes proporções,
como forma de solução para a interrupção de uma gravidez indesejada. “Pesquisas
recentes revelam o número assustador de abortos praticados no Brasil, sendo,
entretanto, escassos os números dos casos que chegaram ao conhecimento da
Justiça” (PIMENTEL, in ESTEFAN, 2012. p. 150). Tendo em vista que maior parte
destes abortos são realizados de maneira ilícita, hoje não se têm números oficiais de
quantos são praticados por ano, sendo estes dados oficialmente desconhecidos.
Para o ordenamento jurídico brasileiro existe a) o aborto legal: casos previstos
em lei, onde o legislador excluiu a punibilidade do crime, tais como aborto
necessário e sentimental; b) e aborto criminoso: interrupção ilícita da gestação, em
qualquer de suas fases.
Como explica Damásio de JESUS (2012, p. 160), nos casos de aborto legal:
A disposição não contém cláusulas de exclusão de culpabilidade, nem
escusas absolutórias ou causas extintivas de punibilidade. Os dois incisos
do art. 128 contêm causas de exclusão da antijuridicidade. Note-se que o
CP diz que "não se pune aborto". Fato impunível em matéria penal é fato
lícito. Assim, na hipótese de incidência de uma dos casos do art. 128, não
há crime por exclusão da ilicitude. Haveria causa pessoal da exclusão de
pena somente se o CP dissesse "não se pune o médico".
O presente trabalho versa sobre o aborto sentimental. Esta modalidade de
aborto é autorizada quando a gravidez é consequência do crime de estupro. Para
tanto é necessário que a gestante consinta para a sua realização.
O legislador brasileiro ao criar esta excludente de punibilidade, entendeu que
não se pode obrigar a mulher a levar até o final uma gravidez, condenando-a a
recordar, diária e perenemente, de uma odiosa violência a que fora submetida.
Importante ressaltar, que no presente caso, não há limitação temporal para
ser interrompida a gravidez, podendo o aborto ser realizado a qualquer tempo.
118
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Para sua autorização são necessários os seguintes requisitos: a gestante
estar grávida, e a gravidez ter sido decorrente do crime de estupro6, e prévio
consentimento da gestante, ou, sendo incapaz, de seu representante legal.
A portaria nº 1.145/2005, editada pelo Ministério da Saúde, entende não ser
necessária a lavratura de Boletim de Ocorrência, entretanto, tornou obrigatória a
realização do procedimento de justificação e autorização de interrupção de gravidez.
Este processo é realizado em quatro fases (art. 2o):
1) Relato circunstanciado do evento criminoso, realizado pela própria mulher,
perante dois profissionais da saúde (art. 3o, caput).
2) O médico deverá emitir um parecer técnico e a mulher receberá atenção de
equipe multidisciplinar, cujas opiniões serão anotadas em documento escrito (art.
4o).
3) Caso todos estejam de acordo, lavrar-se-á termo de aprovação do
procedimento (art. 5o). E a mulher ou seu representante legal firmará termo de
responsabilidade.
4) Realiza-se o termo de consentimento livre e esclarecimento (art. 6o).
Como visto, a lei não exige autorização judicial, sentença condenatória ou
mesmo processo criminal contra o autor do crime sexual. Essa restrição não consta
no dispositivo, e, consequentemente, sua ausência não configura o crime de aborto.
Sendo desta forma, necessário apenas a análise do médico para a verificação
de indícios da ocorrência do crime de estupro.
Em ambos os casos, a prova do crime pode ser produzida por todos os meios
em direito admissíveis. O médico deve certificar-se da autenticidade da afirmação
trazida pela paciente, quer mediante a existência de inquérito policial, ocorrência
policial ou processo judicial, os quais, por meio de diligencias pessoais ou outros
meios cabíveis, certificaram a veracidade da ocorrência do estupro.
Ademais, caso comprovada a falsidade da informação, somente a gestante
responderá criminalmente pelo crime de aborto. (art. 124, §2o)
6As
mudanças no Código Penal trazidas pela Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009, alteraram a
denominação do Título VI, que passou a ser denominado como Crimes contra a dignidade sexual, em
substituição à denominação Crime contra os costumes, utilizada pelo código de 1940. Esta alteração
uniu ainda os artigos de atentado violento ao pudor, juntamente com o crime de estupro, assim o
artigo 213 do CP passou a ter a seguinte redação: “Constranger alguém, mediante violência ou grave
ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.”
Atualmente, qualquer pessoa (homem ou mulher) pode ser sujeito ativo ou passivo do crime de
Estupro, não precisando necessariamente de conjunção carnal.
119
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Referida exclusão foi criada durante a Primeira Guerra Mundial, quando
alguns dos países invadidos, tiveram “suas mulheres violentadas pelos exércitos
invasores” (FRANÇA, 2007, p. 352).A partir deste fato histórico surgiram no mundo
todo, movimentos contrários a “essa maternidade imposta pela violência, pois não
era justo que aquelas mulheres trouxessem no ventre o fruto de um ato indesejado,
lembrando para sempre a abominação recebida.” (FRANÇA, 2007, p. 352)
Desde então, quase todos os ordenamentos jurídicos, permitem o aborto
quando a mulher grávida, foi vítima do crime de estupro, entendendo que “não seria
concebível admitir que uma pessoa humana tivesse um filho que não fosse gerado
pelo seu consentimento ou pelo seu amor” (FRANÇA, 2007, p. 352).
Muitos doutrinadores entendem que, no caso de aborto sentimental, a
culpabilidade da gestante estaria escusada, tendo em vista, que ela se encontraria
em estado de necessidade ou em causa de não exigibilidade de conduta diversa.
Já Genival de FRANÇA (2007, p. 352) entende que o legislador ao se
justificar a possibilidade do aborto sentimental através do princípio do estado de
necessidade (tendo em vista, a ocorrência de grave dano à gestante), “atendeu
unicamente a razões de ordem ética e emocional, evitando-se, dessa maneira, a
vergonha e revolta da mulher violentada, que teria no filho a imagem de uma ofensa
e de uma humilhação, testemunha de sua desgraça e da sua desonra.”
Opina ainda, afirmando que
[...] mesmo com tais argumentos, essa forma de aborto é difícil de ser
justificada sob o ponto de vista jurídico-penal. Seria garantir o direito de
atentar contra uma vida, sem que haja nenhuma forma justificável de
exclusão da criminalidade como legitima defesa, estado de necessidade,
estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito. Se não
aceitarmos, por tradição e por índole, a pena de morte de um criminoso, por
mais cruel e hediondo que seja o crime, como iríamos permitir a morte de
um ser inocente? Toda sociedade e toda forma de direito assentam-se no
respeito inviolável à vida humana, e esse respeito deve estender-se desde a
fecundação até o último alento da criatura. Essa inviolabilidade não é
apenas uma convenção ou um princípio, mas o fundamento de todo o
direito.[...] É difícil justificar, nesse tipo de aborto, o estado de necessidade.
Fazer um mal para evitar outro maior jamais seria legítimo, pois tirar uma
vida, mesmo gerada pela violência, não apagaria o efeito. Seria uma ação
contra quem não teve participação, nem nenhuma culpa. E tenha-se em
vista que a vida é o maior bem da natureza. Deve ainda ter relevância o fato
de ser o estupro uma efetivação de difícil prova, e de constituir, essa prática
abortiva pelo médico, um ato extremamente simplificado pela sua forma
sumária de execução. Infelizmente, nessas situações, a lei deixa de
amparar e preservar uma vida humana, com base em sentimentos
eminentemente individualistas, o que vem contrastar com todo fundamento
120
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
do Direito. Assim, o aborto sentimental nos enche de terríveis dúvidas, pois
não nos parece boa lógica que o sacrifício de uma vida possa repara uma
crueldade já praticada. É simplesmente aplicar a pena de morte a um “réu”
indefeso e sem culpa, que pagará unicamente pelo crime cometido por
outrem: triste forma de se fazer justiça; estranha maneira de se reparar um
crime. (FRANÇA, 2007, p. 352/353)
Na mesma linha de entendimento, Croce e Croce Jr., são contrários a
excludente do aborto em gravidez decorrente de estupro, por se tratar de matéria de
extrema divergência doutrinária, será abortado especificamente nos capítulos
seguintes.
4 O ABORTO
No Brasil, o aborto é considerado um crime, previsto nos artigos 124 a 128 do
Código Penal, no qual visa a interrupção do processo natural da gestação,
resultando na morte antecipada da vida intrauterina (do concepto), ou seja, morte do
produto da concepção sem que tenha condições de sobreviver fora do útero
materno.
Entretanto, no ordenamento jurídico pátrio, o legislador ao estabelecer o crime
de aborto, imputou como excludente de ilicitude o aborto realizado em gestação
proveniente do crime de estupro, nos termos do art. 128, II do Código Penal.
Neste caso, o legislador brasileiro ao criar esta excludente de punibilidade,
entendeu que não se pode obrigar a mulher a levar até o final um gravidez, que a
fará recordar, diária e perenemente, de uma odiosa violência a que fora submetida.
Quanto a esta excludente existem divergências doutrinárias, tanto autores
que defendem a manutenção deste dispositivo legal e entendem necessária a
liberação do aborto, como doutrinadores que entendem que referido inciso precisa
ser repensado por ofender ao ordenamento jurídico vigente.
No entanto, antes de serem analisadas as correntes doutrinarias contrárias e
favoráveis ao aborto, visa-se necessário expor dados estatísticos sobre o aborto no
Brasil.
121
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
4.1 GRAVIDEZ DECORRENTE DO CRIME DE ESTUPRO: ESTATÍSTICA E
ASPECTO PSICOLÓGICO
Em uma pesquisa realizada em jurisprudência brasileira sobre estupro, mais
especificamente em 101 acórdãos veiculados por revistas especializadas e de
grande circulação entre janeiro de 1985 e dezembro de 1994, revelou-se que do
total de vítimas analisadas (101 mulheres), 12% engravidaram em decorrência do
estupro.
Para as pesquisadoras, as autoras Silvia Pimentel, Ana Lúcia Schritzmeyer e
Valéria Pandjiarjian, esse percentual pode ser bem mais alto, tendo em vista que
grande parte dos crimes de estupro não são relatados a polícia, assim, é muito difícil
dimensionar o problema da gravidez resultante do crime estupro.
Entendem que, quanto mais íntimo o relacionamento entre a vítima e o
estuprador, maior é a clandestinidade do estupro, e consequentemente da gravidez
e do aborto. Sendo em sua maioria, os abortos realizados em condições nefastas,
podendo gerar além de graves danos à saúde da gestante, também a sua morte.
Outra pesquisa realizada em uma universidade paulista, publicada na edição
de janeiro/março de 1995 do Caderno de Saúde Pública, no artigo “A Decisão de
Abortar: Processo e Sentimentos Envolvidos”, traz que das 5 mulheres que tiveram
gravidez decorrentes do crime de estupro, 100% delas realizou o aborto. Referida
pesquisa, entretanto, não traz dados psicológicos especificamente destas gestantes,
para saber como elas se sentiram em relação ao aborto.
Por fim, válido citar ainda, uma pesquisa realizada no hospital paulista
Hospital Municipal Dr. Arthor Ribeiro de Saboya (Jabaquara), o qual possui o
primeiro programa, no serviço público, voltado ao atendimento da mulher gestante
vítima de estupro e que deseja interromper esta gestação. Esta pesquisa foi
realizada com gestantes que se submeteram ao programa entre 1989 até setembro
de 1993, representando um total de 131 pacientes encaminhadas ao programa.
Destas, 33 não estavam grávidas. Das 98 mulheres que estavam grávidas, 52 não
puderam ingressar no programa, 46 delas por estarem acima das 12 semanas de
gestação, e as outras 06 gestantes por não apresentarem os documentos exigidos
para condições de acesso. Portanto, das 131 pacientes que procuraram o programa,
somente tiveram acesso 46 delas.
122
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Deste percentual de abortos efetivamente realizados, nenhuma paciente disse
ter se arrependido do ato, até o momento da pesquisa. Referida pesquisa, se
encontra no artigo “Aborto Legal por Estupro: primeiro programa público do país”,
publicado na Revista Bioética, veiculada em novembro de 2009.
4.2 CORRENTES MORAIS FAVORÁVEIS AO ABORTO
Os penalistas Julio Fabbrini Mirabete e Renato Fabbrini são representantes
da corrente que entende que existem várias razões para a liberação do aborto em
todos os casos. Para eles, o Brasil é um país onde grande parte da população não
pode e nem consegue manter seus filhos, não podendo assim, o legislador exigir o
nascimento destes novos seres humanos.
Entendem ainda, que o aborto é um crime raramente punido, sendo desta
forma ineficaz a ameaça penal, fazendo apenas com que as mulheres que desejem
abortar entreguem-se a profissionais inescrupulosos e com o menor cuidado.
Defendem, também, que o aborto nos casos de gravidez decorrente do crime
de estupro é uma situação de estado de necessidade ou causa de não exigibilidade
de conduta diversa.
Por fim, Fabbrini e Mirabete, se filiam a ideia de que a mulher tem o direito de
dispor do próprio corpo, sendo este o entendimento de grande parte dos países
desenvolvidos que não incriminam o aborto provocado até o terceiro ou quarto mês
de gravidez (Suécia, Dinamarca, Finlândia, Inglaterra, França, Alemanha, Áustria,
Hungria, Japão, Estados Unidos, etc.).
Segundo a antropóloga Débora Diniz as mulheres devem ter o poder de
decidir sobre o seu corpo, sendo livres para decidir sobre se desejam ou não
reproduzir. Entende ainda, que o embrião é uma entidade biológica sem
prerrogativas de direito, por ser para a autora, um ser amoral.
Seguindo este entendimento a autora Tereza Rodrigues Vieira, também
entende que a questão principal gira em torno do direito da mulher decidir sobre o
destino do concepto e sobre seu próprio corpo, não devendo juízes ou promotores
fundamentarem
suas
decisões
e
pareceres
em
aspectos
religiosos
ou
preconceituosos. Defende ainda, que o aborto deve ser tratado como questão
123
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
sanitária e pública do País, uma vez que é uma das principais causas de óbito
materno no Brasil.
Para a autora, a imposição social e jurídica pela manutenção da gravidez
ofende diretamente o disposto no art. 226, § 7 o, da Constituição Federal, o qual em
sua primeira parte prevê que segundo os princípios da dignidade da pessoa humana
e da paternidade responsável, o planejamento familiar é de livre decisão do casal.
Justifica ainda, em seu artigo Autonomia e Atualização da Lei sobre o Aborto,
que há pessoas que jamais aceitaram o aborto, em nenhum dos casos, desta forma,
não se pode impor uma forma de pensamento, mais sim reconhecer o direito as
mulheres que desejam abortar. Em sua opinião, portanto, além dos casos já
previstos em lei, deve-se haver uma liberação a todas as mulheres, contemplando a
pluralidade da sociedade, aceitando, assim, que o direito da mulher deve prevalecer
à vida do feto, que ainda não merece tutela como pessoa humana. Para tanto,
acredita que o legislador brasileiro deve se desapegar de normas e costumes
ultrapassados, e conjuntamente facilitar o acesso aos meios contraceptivos, sendo
eles propagados e colocados à disposição para a população.
Ao encerrar o artigo opina dizendo que de nada adianta obrigar as mulheres a
ter filhos indesejados, para depois abandoná-lo nas ruas à possibilidade de
influência por drogas, pedindo esmolas ou mesmo praticando crimes. Assim, devese cuidar dos que já nasceram e já possuem um destino ameaçado e condenado,
porque às vezes não nascer é melhor, do que nascer nestas condições.
A autora Aline Mignon de Almeida entende que a exclusão de ilicitude do
aborto sentimental tem como razão ser o embrião fruto de um crime, e de
consequência de uma violência sofrida pela vítima. Desta forma, seria inconcebível
que esta gestante seja obrigada a conceber um filho de um homem que a violentou
e que na maioria das vezes não conhece, causando assim, graves e irreparáveis
danos na vida desta vítima.
Segundo o penalista Guilherme da Souza Nucci, nenhum direito pode ser
considerado absoluto, nem mesmo o direito à vida, assim, justifica-se o aborto em
circunstâncias excepcionais, como no caso de preservar a vida digna da mãe.
Ainda, conjuntamente com referidos autores, a filósofa Marilena CHAUÍ(apud
VIEIRA, 2006. p. 38)entende o aborto como
124
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
a ausência de liberdade (imposição social e moral) e como violência.
Imposição: há punições e sanções variadas para as mulheres, tanto quando
não abortam como quando abortam. Violência física: não só em decorrência
das péssimas condições em que é realizado para a maioria das mulheres,
mas também porque as mulheres sentem que nele algo é extirpado do
corpo, ainda que de forma indolor (...) Violência psíquica: numa cultura
cristianizada, na qual há acordo quanto à vida ou não-vida do feto e na qual
a maternidade define a essência do feminismo, o aborto surge nas vestes
da culpa da falha.
Nesta mesma linha o filósofo Maurizio MORI (apud VIEIRA, 2006, p. 38),
entende que devem ser levados em consideração as necessidades da mulher, e
segundo estas necessidades analisar as condições tanto psicológicas, como
econômicas, para tornar então relevante a liberação e aceitação do aborto. Entende
que o direito à vida
não implica a pretensão de poder ficar ligado ao corpo de uma outro,
quando esta ligação for necessária para continuar a viver de forma
autônoma, e, por outro lado, a mulher, não perde a faculdade de retirar seu
consentimento a uma eventual ligação, mesmo que o tivesse dado (implícita
ou explicitamente) antes, ao aceitar a relação sexual.
A corrente favorável a liberação do aborto justifica que há um valor crescente
quanto ao estágio de desenvolvimento da vida humana pré-natal. Desta forma a vida
intrauterina jamais se igualaria em valor à vida do ser humano já nascido; assim, ao
depender do estágio da gravidez (desenvolvimento do feto), diferentes valores
morais lhe são reconhecidos. Fundamentam ainda, seu discurso, no perigo que o
aborto clandestino representa à integridade física de gestantes que à ele se
submetem, sem a devida assistência médica adequada.
O ponto em comum, entre todos os autores defensores desta corrente, é o
fato de que um filho indesejado é um peso insuportável na vida de uma mulher, não
devendo jamais este peso ser imposto à ela. Este argumento se fortalece no direito
da mulher de livre disposição do corpo; tornando assim o aborto uma matéria de
saúde pública. Nesse sentido, o fato não seria típico ou seria uma hipótese de
excludente de culpabilidade, por inexigibilidade de outra conduta.
125
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
4.3 CORRENTES MORAIS CONTRÁRIAS AO ABORTO
Os autores Croce e Croce Junior são da corrente contrária à liberação do
aborto em qualquer circunstância, especialmente no caso de aborto em decorrência
do crime de estupro, por entender que tendo em vista a difícil diferenciação do
estupro (conforme previsto no dispositivo penal), da gravidez consentida resultante
de violência psicológica ou grave ameaça; e a dificuldade de sua comprovação,
podendo, desta forma servir de alegação de má-fé para que mulheres que desejam
interromper a gravidez, por outros motivos, assim o façam; e ainda, por não ser
possível a aplicação da excludente de estado de necessidade, uma vez que,
diferentemente dos casos de aborto terapêutico, a vida da mãe, neste caso, não
corre risco, não valendo, desta forma, mais que a vida do filho.
Afirmam, que em sua opinião, “a morte do nasciturus não reparará, nem
castigará a violência sofrida, além de que agrava a instabilidade psíquica de um
sem-número de mulheres ao atingirem o período climatérico”(CROCE; CROCE
JUNIOR, 2004, p. 531/532).
Entendem ainda, que neste caso é impossível se falar em estado de
necessidade,
situação imprevista de perigo atual, não provocada pela vontade do agente,
não se dá inevitavelmente o caso do art. 128, II, do Código Penal, e não
pode sequer ser invocado, através do princípio jurídico do “paralelismo” na
aplicação da lei in dubiisbenignusinterpretandum, pois, se no aborto
terapêutico a vida da mãe vale mais que a do filho, aqui não se evita um mal
praticado um mal maior. Aprová-lo é garantir ao médico, como se fora ele
senhor de baraço e cutelo, o direito de atentar contra a inviolabilidade da
vida humana, fundamento de todo o Direito. É praticar hediondo ato não
contra o estuprador, mas sobre um inocente que tem fundamentalmente
direito à vida, consoante a Constituição Federal. Acresce que a morte do
nasciturus não reparará, nem castigará a violência sofrida, além de que
agrava a instabilidade psíquica de um sem-número de mulheres ao
atingirem o período climatérico(CROCE; CROCE JUNIOR, 2004, p.
531/532).
O autor Walter Vieira do Nascimento considera inadmissível o aborto, quando
a gravidez decorre do crime de estupro, devendo haver proteção à vida do embrião
ou feto.
Na mesma linha, o autor Michel Schooyans entende que toda legislação que
libera o aborto, ratifica a ideia de que é a força que institui o direito. Se colocando
126
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
contraditória aos textos constitucionais vigentes, uma vez que deveria ser no mínimo
consensual entre todas as sociedades democráticas, o respeito incondicional pelo
outro.
A autora Maria Helena Diniz defende que o aborto sentimental não caracteriza
estado de necessidade, sendo assim, esta excludente de ilicitude não deveria ter
sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988, por se tratar de injustificado
atentado à vida humana.
A corrente doutrinaria que é contrária ao aborto, entende que a vida humana
intrauterina tem o mesmo valor do ser humano já nascido, uma vez que, após a
concepção humana, não pode-se falar de ser humano em potência, mas sim, de um
ser humano de fato. Conforme explica o Relatório de Warnock (apud SILVA, 2003.
p. 131)
desde que o processo começa não existe uma fase do desenvolvimento que
é mais importante que a outra; todas fazem parte de um processo continuo
e, se cada fase não se desenvolve normalmente, isto é, no momento certo
de sua sequência, todo o desenvolvimento posterior cessa.
O autor Genival Veloso de França entende que em especial a liberação do
aborto sentimental, é difícil de ser justificada sob o ponto de vista jurídico-penal,
tendo em vista que seria uma forma de garantir o direito a atentar contra uma vida,
sem que haja alguma das formas de exclusão de ilicitude (legitima defesa, estado de
necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito),
uma vez que para o criminoso que comete o estupro, não aceitamos a pena de
morte, por mais cruel que o crime praticado seja considerado, não teria sentido
permitir a morte de um inocente (o concepto). Entende que a vida humana deve ser
inviolável desde a fecundação, não podendo ser esta inviolabilidade somente um
princípio, mas sim, um fundamento essencial para todo o ordenamento jurídico.
Importante ressaltar, que esta polêmica ainda não foi suficientemente
debatida na doutrina e na jurisprudência, não havendo portanto pontos em comum
entre as posições contrárias.
127
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É fato que o ordenamento jurídico brasileiro em sua legislação vigente,
preceitua como excludente de punibilidade os autores do crime de aborto nos casos
de gravidez decorrente do estupro.
Assim o faz tomando como motivação a proteção do direito da vítima em
aceitar ou não levar adiante uma gravidez e, consequentemente, uma nova vida,
que lhe julgue trazer prejuízos psicológicos e morais.
O legislador, ao estabelecer esta proteção, o fez por entender que a vítima
não deve ter que conviver com a lembrança de um crime, o que seria equivalente,
em alguns casos, a prolongar este ato violento na vida da vítima. Por isso, esta
excludente de punibilidade é doutrinariamente denominada aborto sentimental ou
honroso.
A legislação brasileira adota como marco jurídico para determinação do início
da vida o nascimento do feto com vida (teoria natalista). No entanto, protege seus
direitos desde a concepção, tanto que, penaliza criminalmente quem realiza, auxilia,
ou submete-se a pratica de aborto.
Dentro deste contexto, surgiram diversas teorias para definir o conceito de
vida, bem como, a partir de qual momento esta vida merece a proteção do Estado. Ë
patente, e importante asseverar que o Estado se preocupe com a proteção do
nascituro desde sua concepção.
Esta dificuldade legislativa em conceituar juridicamente o início da vida, levou
os legisladores, inclusive, a apresentar um projeto de lei 478/2007, em discussão no
Congresso Nacional, que denomina como nascituro o ser humano concebido, mas
ainda não nascido, o qual adquirirá personalidade jurídica ao nascer com vida, mas
sua natureza humana é reconhecida desde a concepção, conferindo-lhe proteção
jurídica através deste estatuto e da lei civil e penal.
Espera-se, com isso por fim a essa inconsistência jurídica, que não consegue
determinar o direito a proteção da vida dos nascituros incondicionalmente.
Isto porque a Constituição Federal de 1988 ao recepcionar o Código Penal de
1940, especialmente o seu artigo 128, II, estabeleceu uma aparente incongruência
jurídica, na qual de um lado manteve este inciso que permite interrupção da
gestação em qualquer etapa, nos casos de gravidez decorrente do crime de estupro,
128
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
por
razões
meramente
morais
e
psicológicas,
e
de
outro
estabeleceu
constitucionalmente a proteção da vida humana como direito precípuo e inalienável,
não permitindo a pena de morte em nenhum caso, independente da motivação.
Cabe então ao legislador, analisar de forma ampla e sistêmica todos os
aspectos que envolvem esta excludente de punibilidade, para que não venha
praticar um ato jurídico parcial, não levando em conta a amplitude do tema e as
várias formas de interpretação do direito à vida.
Este trabalho não teve como objetivo fazer juízo de valor sobre os aspectos
morais do aborto, mas de levantar a controvérsia sobre a extensão do princípio do
direito à vida no trato de casos de aborto de gravidez decorrentes do crime de
estupro, levando em consideração os direitos constitucionais do concepto, uma vez
este reconhecido como ser vivente intrauterino, e carente da proteção do Estado.
129
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
COMENTÁRIOS A RESPEITO DA INADMISSIBILIDADE DAS
PROVAS ILÍCITAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO
COMMENTS ABOUT THE INADMISSIB OF ILLEGAL EVIDENCE IN
CRIMINAL PROCEDURE BRAZILIAN LAW
Anna Beatriz Strecker Okamoto1
Alexandre Knopfholz2
1
Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba.
Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), Pós-Graduação em
Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado em Direito Empresarial e
Cidadania pelo UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é professor horista da
disciplina de Processo Penal, nos cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área
de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: direito processual penal e direito penal.
2
133
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SUMÁRIO
Resumo 1 Introdução 2 Do Direito à Prova e Sua Definição 3 Definição de
Provas Ilícitas 4 A Inadmissibilidade da Prova Ilícita Segundo a Constituição e
o Código de Processo Penal 4.1 Inadmissibilidade Absoluta 4.2 Admissibilidade
Processual da Prova Ilícita 4.3 Admissibilidade da Prova Obtida por Meio Ilícito em
Face do Princípio da Proporcionalidade 4.3.1 A Proporcionalidade “Pro Reo” e a
Admissibilidade das Provas Ilícitas 4.3.2 A Proporcionalidade “Pro Societate” e a
Admissibilidade das Provas Ilícitas 5 As Provas Ilícitas por Derivação 6 O
Entendimento do STJ e do STF Sobre o Tema 7 Considerações Finais.
Referências
134
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
A inadmissibilidade das provas ilícitas diante o direito pátrio é assegurada pelo artigo
5°, LV da Constituição Federal e, portanto, versa sobre direitos e garantias
fundamentais. Especificamente em matéria processual penal, tal princípio da
inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos está previsto no artigo 157 e
parágrafos do Código de Processo Penal, o qual sofreu mudanças após o advento
da Lei 11.690/2008. O tema é amplamente discutido pela doutrina tendo em vista
que se trata de importante limitação à atividade persecutória do Estado no que se
refere ao direito à prova. O presente trabalho relata primeiramente o entendimento
doutrinário quanto ao direito à prova e sua definição. Após, expõe o conceito de
provas ilícitas e suas distinções quanto às provas ilegítimas. Trata-se, em seguida, a
inadmissibilidade desta modalidade de provas como um direito garantido pela Carta
Magna e pelo Código de Processo Penal, discorrendo ao final quais são as teorias
sobre o tema apontadas por renomados autores do direito processual penal e
constitucional e à luz da jurisprudência atual. Por fim, analisa-se a questão das
provas ilícitas por derivação, de acordo com os parágrafos do artigo 157 do CPP e
da Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada.
Palavras-chave: Provas ilícitas. Liberdade da prova. Processo penal.
135
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
The inadmissibility of illegal evidence before patriot rights is the right guaranteed by
Article 5, LV Federal Constitution and therefore deals with fundamental rights and
guarantees. Specifically in criminal procedure, this principle of inadmissibility of
evidence obtained by unlawful means, is provided for in Article 157 and paragraphs
of the Code of Criminal Procedure, which underwent changes after the enactment of
Law 11.690/2008.The topic is widely discussed by the doctrine since it deals with the
importance of limiting the activity of the persecutory state with regards to its right to
proof. This paper first reported the doctrinal understanding as far as the right to trial
and its definition. After, it exposed the concept of illegal evidence and its distinctions
to illegitimate evidence. It was then discussed the inadmissibility of this type of
evidence as a right guaranteed by the Constitution and the Code of Criminal
Procedure, and in closing it expatiated to what are the theories on the theme,
mentioned by renowned authors of criminal, procedural and constitutional law in light
of current jurisprudence. Finally, we analyzed the issue of illegal evidence by
derivation, according to the paragraphs of Article 157 of the CPP and the Theory of
the Tree of Poisoned Fruits.
Keywords:
Illegal
evidence.
Freedom
of
proof.
Criminal
proceedings.
136
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
A inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito é assunto amplamente
discutido no âmbito jurídico brasileiro. Com origem no direito processual penal dos
Estados Unidos da América, o princípio da inadmissibilidade de provas ilícitas é
tutela prevista no artigo 5, LVI da Constituição Federal considerada direito e garantia
fundamental de todo e qualquer cidadão brasileiro. Esta norma tem por objetivo
assegurar a qualidade do material probatório a ser produzido, introduzido e
valorizado no processo.
A busca pela verdade real, outro princípio consagrado pelo direito processual
pátrio, não pode autorizar a aceitação e utilização de provas contaminadas por atos
ilícitos. Por outro lado, outro princípio constitucional tem aberto portas para uma
nova interpretação do tema, trata-se do princípio da proporcionalidade. Através
deste, novas regras de admissibilidade e de exclusão estão sendo agregadas a
determinados meios de provas que por vezes, foram considerados ilícitos.
O escopo do presente artigo, portanto, é a análise da admissibilidade ou não
das provas obtidas por meio ilícito diante o direito processual penal brasileiro,
mediante estudo bibliográfico e jurisprudencial e, ainda, segundo o previsto no artigo
157 do Código de Processo Penal, após o advento da Lei n.11.690, de 9/6/2008.
Após breve panorama sobre a teoria do direito a prova e sua definição, trabalhou-se,
então, os principais pontos do estudo das provas ilícitas no processo penal
brasileiro, quais sejam: o conceito de provas ilícitas, a inadmissibilidade de provas
desta natureza segundo o Código de Processo Penal e a Constituição, as principais
teses sobre sua admissibilidade ou não no processo e, por fim, a provas ilícitas por
derivação.
2 DO DIREITO À PROVA E SUA DEFINIÇÃO
O direito a prova é instituto constitucionalmente assegurado visto que se
insere nas garantias do contraditório e da ampla defesa dispostas no artigo 5°, LV da
Constituição
Federal,
que
prevê
“aos
litigantes,
em processo
judicial
ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
137
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Segundo a doutrina de Alexandre de Moraes, estes princípios fundamentais do
Estado de Direito Brasileiro definem-se da seguinte forma:
Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de
condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos
tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se
entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da
ampla defesa, impondo a condução dialética do processo, pois a todo ato
produzido pela acusação caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou
de dar-lhe a versão que melhor apresente, ou ainda, de fornecer uma
interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor (MORAES, 2011, p.
113).
Com base no exposto, pode-se afirmar que, provar é direito conferido pelas
garantias constitucionais acima definidas e conceitua-se como meio pelo qual,
busca-se levar ao conhecimento do magistrado a verdade sobre os fatos alegados
pelas partes, para que este, somente então, possa chegar a uma verdade jurídica.
Mais especificamente em matéria de processo penal, a prova constitui-se
como instrumento indispensável para, antes de tudo, estabelecer a existência dos
verdadeiros fatos ocorridos à época do delito em julgamento.
Fernando da Costa Tourinho Filho (TOURINHO FILHO, 2008, p. 214), no
entanto, ensina que a palavra “prova” detêm um vocábulo polissêmico, isto é, pode
demonstrar diversos sentidos no âmbito jurídico.
Primeiramente, quando se fala em prova, fala-se em atividade probatória, isto
é, ato ou conjunto de atos que visam desenvolver a convicção do Juiz a respeito da
existência ou não de determinado fato, ou ainda, prova poderá significar resultado,
quando ao final do curso do processo o Juiz demonstra sua convicção sobre a
existência ou não de uma dada situação de fato e, por fim, prova interpretada como
meio, ou seja, como o instrumento probatório que formou a convicção do
magistrado.
O direito das partes à apresentação de provas que entendam úteis e
necessárias para a demonstração da realidade fática de suas pretensões, apesar do
seu caráter constitucional, não é, porém, absoluto, mas encontra limites.
Nas palavras de Ada Pelegrini Grinover et al.:
[...] o processo só pode fazer-se dentro de uma escrupulosa regra moral,
que rege a atividade do Juiz e das partes. E é exatamente no processo
138
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
penal, onde avulta a liberdade do individuo, que se torna mais nítida a
necessidade de se colocarem limites à atividade instrutória (GRINOVER,
GOMES FILHO, FERNANDES, 2011, p. 123).
Determinadas regras de admissibilidade e de exclusão de meios de prova são
limites aos quais o direito de provas está sujeito. E, novamente, segundo o
ensinamento de Ada Pelegrini et al. (GRINOVER, GOMES FILHO, FERNANDES,
2011, p. 124), estas devem ser acolhidas e estabelecidas, por mais que no contexto
da investigação dos fatos, algum sacrifício necessite ser feito.
3 DEFINIÇÃO DE PROVAS ILÍCITAS
Segundo a doutrina de Aury Lopes Jr., considera-se prova ilícita “aquela que
viola regra de direito material ou a Constituição no momento da sua coleta, anterior
ou concomitante ao processo, mas sempre exterior a esse (fora do processo)”
(LOPES JÚNIOR, 2009, p. 577).
Conceito semelhante é dado por Alexandre de Moraes:
[...] as provas obtidas por meios ilícitos são entendidas como aquelas
colhidas em infringência às normas do direito material (por exemplo, por
meio de tortura psíquica), configurando-se importante garantia em relação
ao estado (MORAES, 2011, p. 117).
Vicente Greco Filho (GRECO, 2010, p. 187) todavia, acredita que a ilicitude
da prova se perfaz em três hipóteses. O primeiro caso de ilicitude está no meio de
prova que não está previsto em lei e, ainda, não é consentâneo com os princípios
gerais do direito processual moderno. A segunda hipótese de ilicitude é a que deriva
de imoralidade ou impossibilidade de elaboração de certo material probatório. Enfim,
a terceira hipótese decorre da produção de prova por meio de ato ilícito.
Em todas as suas modalidades, as provas ilícitas não podem ou devem ser
confundidas com as chamadas ilegítimas. As provas ilegítimas, diferentemente das
provas ilícitas, violam uma norma do direito processual penal. Ressalta-se que a
proibição infringida deve necessariamente, ter natureza exclusivamente processual.
Como exemplo, pode-se citar a prova unilateralmente produzida ou juntada fora do
prazo legal.
139
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A distinção conceitual entre provas ilícitas e ilegítimas faz-se pertinente
principalmente para viabilizar compreensão a respeito dos momentos de obtenção,
introdução, produção e por fim, valoração da prova em matéria criminal.
Além disto, as distinções entre tais modalidades de prova destacam-se na
hipótese da chamada prova emprestada. A prova emprestada trata-se do material
probatório obtido a partir de outras provas produzidas em processo alheio que
mantém relação com o caso em questão.
Eugênio Pacelli exemplifica:
Em ação penal instaurada contra determinados réus, é possível, por
exemplo, que, no caso de morte por uma testemunha, a acusação obtenha
uma certidão de inteiro teor do depoimento por ela prestado em outra ação
penal, envolvendo os mesmo fatos e outros acusados. Essa prova, assim
obtida, seria denominada emprestada, porque produzida efetivamente em
outro processo. Como se percebe, a sua obtenção seria inteiramente lícita,
não se podendo falar, ainda, em inadmissibilidade da prova. Todavia, a sua
introdução no novo processo e, sobretudo, a sua valoração seriam
inadmissíveis, por manifesta violação do princípio do contraditório
(PACELLI, 2012, p. 359).
Com fulcro nos princípios do contraditório e ampla defesa, o valor probatório
da prova emprestada torna-se imediatamente ilícita uma vez que é alcançada com
violação a este direito constitucionalmente protegido, por mais que não apresente
vícios de natureza processual.
4 A INADMISSIBILIDADE DA PROVA ILÍCITA SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO E O
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
A inadmissibilidade de provas obtidas com violação de direitos constitucionais
tem origem no direito processual penal estadunidense. Os contextos da 4ª e 6ª
emenda da Constituição Federal dos Estados Unidos da América trouxeram a tese
do chamado “Princípio da Exclusão” ou “Regras de Exclusão” (“exclusionary rule”)
através da qual ficava proibida a recepção de provas alcançadas por meios ilícitos
em todos os casos de processos federais. Esta norma passou a vigorar a partir do
ano de 1914.
140
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A Suprema Corte Americana estendeu as regras de exclusão a todos os
tribunais estaduais do país apenas em 1961 com o famoso caso de Mapp v. Ohio.
Segundo a obra de Denilson Feitoza cinco fundamentos nascem para a
exclusão de provas ilícitas:
[...] 1) as implicações da 5ª emenda; 2) a necessidade de impedir uma
violação continuada à privacidade individual por meio da introdução da
prova ilícita; 3) as implicações naturais do direito de recurso; 4) o imperativo
da integridade judicial; 5) a necessidade de dissuadir (prevenir) futuras
violações (FEITOZA, 2008, p. 608).
Com o advento de novos casos, um sexto argumento surge, o princípio da
exclusão vem para evitar a confirmação judicial de ações inconstitucionais da
polícia.
No sistema brasileiro, a inadmissibilidade de provas ilícitas em matéria
criminal é estabelecida através do artigo 5º, LVI da Constituição Federal e do artigo
157 do Código de Processual Penal Brasileiro.
Garante o artigo 5º, LVI, da Carta Magna Brasileira: “são inadmissíveis, no
processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Em outras palavras, não são
admitidas pelo direito brasileiro provas que desrespeitem o princípio da dignidade da
pessoa humana ou da racionalidade, bem como, se violarem qualquer norma de
cunho constitucional ou legal.
Em julgamento da Ação Penal nº 307-3-DF foi decidido em plenário do
Supremo Tribunal Federal que:
[...] é indubitável que a prova ilícita, entre nós, não se reveste da necessária
idoneidade jurídica como meio de formação do convencimento do julgador,
razão pela qual deve ser desprezada, ainda que em prejuízo da apuração
da verdade, no prol do ideal maior de um processo justo, condizente com o
respeito devido a direitos e garantias fundamentais da pessoa humana,
valor que se sobreleva, em muito, ao que é representado pelo interesse que
tem a sociedade numa eficaz repressão aos delitos. É um pequeno preço
que se paga por viver-se em Estado de Direito democrático. A justiça penal
não se realiza a qualquer preço. Existem, na busca da verdade, limitações
impostas por valores mais altos que não podem ser violados (...). A
Constituição brasileira, no artigo 5º, inciso LVI, com efeito, dispõe, a todas
as letras, que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios
ilícitos. (STF, Ação Penal 307-3 DF, Plenário, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU,
13 out 1995; RTJ 162/03-340).
141
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
O artigo 157 do Código de Processo Penal, por sua vez, após o advento da
Lei nº 11.690/2008, descreve: “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do
processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas
constitucionais ou legais”.
Para alguns dos doutrinadores do direito pátrio, como por exemplo Aury
Lopes Jr. (LOPES JÚNIOR, 2009), tal redação demonstra-se confusa a medida que
não se pode concluir se o termo “legais” refere-se às normas materiais ou
processuais. Interpretando-se que o texto legal se refere tão somente às regras de
direito material, para as provas ilegítimas, nas quais o vício se dá na dimensão
processual, haveria a possibilidade de repetição do ato, visto que não recairia a
obrigação de desentranhamento e destruição. O mesmo não ocorre, no entanto, em
casos de prova ilícita.
Neste mesmo sentido, Vicente Greco Filho (GRECO FILHO, 2010, p. 190)
afirma que o legislador trouxe para o preceito legal apenas a preocupação com a
ilicitude da prova em sua origem, isto é, a ilicitude no meio de obtenção. Para o autor
(GRECO FILHO, 2010, p. 190), prova ilícita não significa exclusivamente
descumprimento de uma norma constitucional ou legal, mas uma prova torna-se
ilícita quando viola o sistema global da ordem jurídica.
O tema da admissibilidade ou não da prova ilícita é amplamente discutido
pela doutrina tendo em vista que se trata de importante limitação à atividade
persecutória do Estado no que se refere ao direito à prova. Por isso, diversas teorias
foram criadas a partir de tal questão, sendo elas: teoria da inadmissibilidade
absoluta, teoria da admissibilidade processual da prova ilícita e a teoria da
admissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos em face do princípio da
proporcionalidade.
4.1 INADMISSIBILIDADE ABSOLUTA
A tese dos seguidores desta rigorosa teoria é exata e literal leitura do inciso
LVI do artigo 5º da Constituição Federal, não sendo admitida qualquer espécie de
exceção quando se trata de violação de direitos constitucionalmente protegidos.
Nem mesmo, certa relativização poderia se encaixar em caso de prova obtida de
forma ilícita.
142
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A crítica com relação a esta corrente consiste no argumento de que nem
mesmo o direito constitucional brasileiro defende um caráter absoluto de direitos e
deveres. Nestes termos, aduz Greco Filho:
O texto constitucional parece, contudo, jamais admitir qualquer prova cuja
obtenção tenha sido ilícita. Entendo, porém, que a regra não seja absoluta,
porque nenhuma regra constitucional é absoluta, uma vez que tem de
conviver com outras regras ou princípios também constitucionais. Assim,
continuará a ser necessário o confronto ou entre bens jurídicos, desde que
constitucionalmente garantidos a fim de se admitir, ou não, a prova obtida
por meio ilícito (GRECO FILHO, 2010, p. 189).
4.2 ADMISSIBILIDADE PROCESSUAL DA PROVA ILÍCITA
Para os adeptos desta corrente, desde que não apresente um vício
processual, a prova, por mais que tenha origem ilícita, deverá ser admitida no
processo. Contudo, o responsável pela produção da prova ilícita responderia em
ação judicial apartada por eventual descumprimento de normal de natureza material,
o que poderia se constituir em um delito penal ou ilícito civil. Em suma, o
posicionamento desta corrente é de que a vedação processual é a única que
realmente deve ter peso em matéria probatória, a violação a normas de direito
material deve ser discutida à parte.
Esta tese é defendida por um número bem reduzido de seguidores,
principalmente no Brasil, visto que, segundo Aury Lopes Jr:
[...] a crítica a essa corrente, nasce absolutamente da paradoxal criada: um
mesmo objeto, diante da ilicitude com que foi obtido, seria considerado
como corpo delito para ensejar a condenação de alguém e, ao mesmo
tempo, seria perfeitamente válido para produzir efeitos no processo penal
(LOPES JÚNIOR, 2009, p. 579).
Além disto, é preciso analisar se tal posicionamento não estaria incentivando
a prática de ilegalidades, visto que a expectativa de uma efetiva punição para os
produtores da prova é mínima.
143
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
4.3 ADMISSIBILIDADE DA PROVA OBTIDA POR MEIO ILÍCITO EM FACE DO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
A doutrina brasileira, em boa parte, vem adotando a aplicação do principio da
proporcionalidade para a admissão de provas ilícitas no processo penal brasileiro.
O princípio da proporcionalidade pode ser definido, segundo Pacelli, como “o
critério hermenêutico mais utilizado para resolver eventuais conflitos ou tensões
entre princípios constitucionais igualmente relevantes baseando-se na chamada
ponderação de bens e/ou de interesses (...)” (PACELLI, 2012, p. 364). A origem de
tal princípio como forma para aproveitamento de provas obtidas ilicitamente vem da
jurisprudência alemã e outros países da Europa.
Desta forma, para os seguidores desta corrente, todo caso que envolva um
interesse público a ser protegido e preservado, pode, visto sua relevância, acolher
qualquer espécie de provas, mesmo que esta tenha descumprido norma legal ou
constitucional. Contudo, duas vertentes partem deste posicionamento: aqueles que
afirmam que o princípio da proporcionalidade só poderá ser aplicado quando pro
reo, e outros que garantem a possibilidade de adequação de tal princípio para
ambas as partes.
4.3.1 A proporcionalidade “pro reo” e a Admissibilidade de Provas Ilícitas
A aplicação de material probatório ilícito face o princípio da proporcionalidade,
neste caso, é possível se, e somente se, for ato favorável à defesa do acusado.
Emprega-se a chamada proporcionalidade pro reo, toda vez que se tem
conflito entre o direito de liberdade de um inocente e a vedação do uso de provas
ilícitas. A primeira, segundo os defensores desta corrente, sempre prevalecerá sobre
a segunda.
Cita-se como clássico exemplo, a situação em que certo acusado viola
direitos particulares à imagem, intimidade, inviolabilidade de comunicação ou
domicílio, etc..., por ser o único meio de provar sua inocência.
Assim, a proteção do inocente perante o direito processual penal brasileiro é
visto como princípio máximo, devendo, por tal razão, prevalecer sobre o sacrifício de
outro preceito legal.
144
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Eugênio Pacelli (PACELLI, 2012, p. 367) elucida que são dois os argumentos
sobre a aceitação de provas ilícitas em favor do réu: a violação de direitos na busca
da prova da inocência poderá ser levada à conta do estado de necessidade,
excludente da ilicitude e o princípio da inadmissibilidade da prova ilícita constituindose em garantia individual expressa, não podendo ser utilizado contra quem seu
primitivo e originário titular.
Destarte, a conduta do réu ao obter prova ilicitamente, estaria amparada no
direito brasileiro como causa de exclusão de ilicitude, seja por ser avaliada como
legítima defesa ou estado de necessidade e por esta razão, a condução seria da
admissão da prova.
Diante de tais argumentos, Aury Lopes Jr. (LOPES JÚNIOR, 2009, p. 583)
aborda a seguinte questão: uma prova ilícita admitida em processo criminal por força
do princípio da proporcionalidade jurídica pro reo, poderia ser igualmente utilizada
em outro processo a fim de punir um terceiro?
O próprio doutrinador aponta seu entendimento para tal hipótese:
A mesma prova que serviu para a absolvição do inocente, não pode ser
utilizada contra terceiro, na medida em que, em relação a ele, essa prova é
ilícita e assim deve ser tratada (inamissível, portanto). (...) Não existe uma
convalidação, ou seja, ela não se torna lícita para todos os efeitos, senão
que apenas é admitida em um determinado processo (onde o réu que
obteve atua como abrigo do estado de necessidade). Ela segue sendo ilícita
e, portanto, não pode ser utilizada em outro processo para condenar
alguém, sob pena de, por via indireta, admitirmos a prova ilícita contra o réu
(terceiro) (LOPES JÚNIOR, 2009, p. 583).
Em suma, a admissão de provas por meios ilícitos está unicamente vinculada
ao processo que, supostamente, representa a condenação de um inocente. Não
poderia, igualmente, para os adeptos desta vertente, ser utilizado por parte da
acusação em processo distinto contra terceiro.
4.3.2 A proporcionalidade “pro societate” e a Admissibilidade de provas ilícitas
A hipótese de consentimento de provas ilícitas em favor da acusação por
aplicação do princípio da proporcionalidade, em regra, nunca poderia ser aceita.
145
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Contudo, parte da doutrina brasileira tem concordado que em caso de situações
excepcionais ou extremas há possibilidade de admissão.
Como exemplo de situação excepcional ou extrema pode-se citar o caso
exposto na obra de Alexandre de Moraes:
Poderíamos apontar a possibilidade de utilização de uma gravação
realizada pela vítima, sem conhecimento de um dos interlocutores, que
comprovasse a prática de um crime de extorsão, pois o próprio agente do
ato criminoso, primeiramente, invadiu a esfera de liberdade pública da
vítima, ao ameaçá-la e coagi-la. Essa, por sua vez, em legítima defesa de
sua liberdade pública, obteve uma prova necessária para responsabilizar o
agente (MORAES, 2011, p. 123).
Para o autor (MORAES, 2011, p. 123), todo aquele que pratica um ato ilícito
contra a liberdade individual de outrem ou contra a liberdade pública da própria
sociedade, não pode rogar a ilicitude de prova apresentada pela acusação a fim de
afastar sua responsabilidade penal perante o Estado de Direito.
No entanto, Moraes ainda ressalta que esta medida não se trata de efetivo
acolhimento de provas alcançadas de forma ilícita, mas sim, de “ato de legítima
defesa ante lesão ou ameaça de lesão causada por condutas ilícitas anteriores”
(MORAES, 2011, p. 123).
Para Eugênio Pacelli (PACELLI, 2012, p. 367) a prova obtida por meio ilícito
poderá ser empregada pro societate apenas na hipótese de não haver risco a
aplicabilidade potencial ou finalística, em outras palavras, quando não houver
probabilidade de incremento ou estímulo de comportamento ilegal pelos produtores
do material probatório, apenas mediante esta condição, há de se falar, em tese, em
aplicação do princípio da proporcionalidade.
Logo, pode-se concluir que um prova obtida por meio ilícito somente poderá
ser acatada pro societate desde que não incentive, de maneira alguma, o Estado a
violar direitos fundamentais, uma vez que a principal finalidade da noção de provas
ilícitas é despersuadir o Estado de violar direitos e garantias fundamentais de todo e
qualquer cidadão.
146
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
5 AS PROVAS ILÍCITAS POR DERIVAÇÃO
Partindo-se para análise das provas ilícitas por derivação, cabe expor o
disposto no nos parágrafos do artigo 157 do Código de Processo Penal Brasileiro:
§ 1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo
quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou
quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das
primeiras.
§ 2º Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os
trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal,
seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.
§ 3º Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada
inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes
acompanhar o incidente.
Define-se como provas ilícitas por derivação todo material probatório que
ainda que produzido de maneira válida, em momento subsequente, se apoia, deriva
ou tem fundamento causal em prova já considerada ilícita.
Eugênio Pacelli contextualiza a razão pela qual é indispensável haver norma
legal vedando a utilização de provas desta natureza:
Se os agentes produtores da prova ilícita pudessem dela se valer para a
obtenção de novas provas, cuja existência somente se teria chegado a
partir daquela (ilícita), a ilicitude da conduta seria facilmente contornável.
Bastaria a observância da forma prevista em lei, na segunda operação, isto
é, na busca das provas obtidas por meio de informações extraídas pela via
da ilicitude, para que legalizasse a ilicitude da primeira (PACELLI, 2012, p.
354).
Deste modo, o parágrafo 1° do artigo 157 do Código de Processo Penal
adotou a doutrina norte-americana no sentido de que “a árvore má não pode
produzir bons frutos”, trata-se da teoria dos fruits of the poisonous tree, cuja
tradução é “teoria dos frutos da árvore envenenada”, segundo a qual a ilegalidade
das provas ilícitas contamina suas derivações e, portanto, de igual forma devem ser
desentranhadas do processo.
Algumas restrições, porém, podem ser feitas em relação a tal regra. O próprio
texto legal aponta as duas exceções à teoria dos frutos da árvore envenenada: a
147
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
falta de nexo de causalidade entre a prova considerada ilícita e sua derivação ou
quando a prova derivada puder ser obtida através de fonte independente.
A demonstração de nexo de causalidades neste caso, conforme entende a
jurisprudência
brasileira,
compõem-se
pela
demonstração
inequívoca
de
contaminação, sendo admitido, contudo, qualquer espécie de comprovação
contrária.
Vicente Greco Filho (GRECO FILHO, 2010, p. 190), entretanto, ensina que,
em verdade, ficará tão somente, a cargo do magistrado, pelos meios comuns de
convicção, independente de claras evidências, declarar se o novo material
probatório mantém relação de causalidade com prova ilícita anterior.
Também, em sentido contrário ao entendimento jurisprudencial, Aury Lopes
Jr. afirma que “salvo se ficar inequivocamente demonstrada a independência, as
provas subsequentes deverão ser anuladas por derivação.” (LOPES JÚNIOR, 2009,
p. 591). Para o autor (LOPES JÚNIOR, 2009, p. 591), é erro grave admitir que o
direito processual penal transforme-se em instrumento para legitimar práticas ilegais
no que diz respeito, principalmente, a agentes do Estado.
Discussão semelhante é feita com relação à segunda exceção demonstrada
no parágrafo 1º do artigo 157 do CPP, ou seja, a possibilidade de obtenção por fonte
independente. A nova redação do parágrafo 2 do mesmo artigo, trazida pela Lei nº.
11.690/08, é evidentemente vaga, apesar de tentar explanar o que seria “fonte
independente”.
No entendimento de Eugênio Pacelli:
Note-se que a Lei nº 11.690/08 comete um equívoco técnico. No artigo 157,
§ 2°, ao pretender definir o significado de “fonte independente, afirmou
tratar-se daquela que “por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe,
próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao
fato objeto da prova”. A nosso aviso, essa é a definição de outra hipótese de
aproveitamento da prova, qual seja, a teoria da descoberta inevitável, muito
utilizada no direito estadunidense. Na descoberta inevitável admite-se a
prova, ainda que presente eventual relação de causalidade ou de
dependência entre provas (a ilícita e a descoberta), exatamente em razão
de se tratar de meios de prova rotineiramente adotados em determinadas
investigações (PACELLI, 2012, p. 354).
148
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Segundo o autor, a real definição de fonte independente seria, tão somente,
uma prova que não têm laços com os fatos que geraram a produção da prova
contaminada. (PACELLI, 2012, p. 355)
Aury Lopes Jr. elucida um exemplo de aplicação da teoria da fonte
independente:
O caso Murray v. United States, em 1988, em que os policiais entraram
ilegalmente em uma casa onde havia suspeita de tráfico ilícito de drogas e
confirmaram a suspeita. Posteriormente requereram um mandado judicial
para busca e apreensão, indicando apenas as suspeitas e sem mencionar o
que já haviam encontrado na residência. De posse do mandado, realizaram
a busca e apreenderam as drogas. (...) nesse caso, o mandado de busca
para justificar a segunda entrada seria obtido de qualquer forma, apenas
com os indícios iniciais. Essa fonte era independente e pré-constituída em
relação à primeira entrada ilegal (LOPES JÚNIOR, 2009, p. 586).
O autor encerra o relato sobre o tema com a seguinte crítica:
O princípio da contaminação (fruit of the poisonous tree) constitui um grande
avanço no tratamento da prova ilícita, mas que foi, infelizmente, atenuado, a
ponto de a matéria tornar-se perigosamente casuística. O tal raciocínio
hipotético, a ser desenvolvido para aferir-se se uma fonte é independente
ou não, conduz ao esvaziamento do princípio da contaminação (LOPES
JÚNIOR, 2009, p. 589).
Logo, a inadmissibilidade de todo o material probatório subsequente à prova
ilícita nunca deverá ser automática, mas, é preciso, exame individual a respeito de
cada situação concreta a fim de analisar se, de fato, houve derivação da ilicitude.
Para tanto, indica-se novamente o princípio da proporcionalidade. Nas palavras de
Pacelli:
Impõe-se, portanto, para uma adequada tutela também dos direitos
individuais que são atingidos pelas ações criminosas, a adoção de critérios
orientados por uma ponderação de cada interesse envolvido no caso
concreto, para se saber se toda atuação estatal investigatória estaria
contaminada, sempre, por determinada prova ilícita. Pode-se e deve-se
recorrer, ainda mais uma vez, ao critério da proporcionalidade, que, ao fim e
ao cabo, admite um juízo de adequabilidade da norma de direito ao caso
concreto (PACELLI, 2012, p. 356).
149
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A essência da teoria dos frutos da árvore envenenada trouxe grande avanço
para o tratamento das provas obtidas por meio ilícito, porém, infelizmente, este
princípio tornou-se dependente de análises casuísticas.
6 O ENTENDIMENTO DO STJ E STF SOBRE O TEMA
O entendimento majoritário na jurisprudência quanto às provas de natureza
ilícita a longo período tem sido de inadmissibilidade das mesmas, em conformidade
com a regra constitucional e legal.
No julgado exposto a seguir, a Suprema Corte Constitucional declarou como
ilícita, busca e apreensão realizada em quarto hotel quando ainda ocupado sem o
devido mandado judicial, por este ser considerado espaço privado. Para tanto,
utilizou-se de precedentes do próprio STF que explanavam o entendimento do órgão
quanto às provas obtidas por meios ilícitos, inclusive quanto ás suas derivações.
E M E N T A: PROVA PENAL - BANIMENTO CONSTITUCIONAL DAS
PROVAS ILÍCITAS (CF, ART. 5º, LVI) - ILICITUDE (ORIGINÁRIA E POR
DERIVAÇÃO) - INADMISSIBILDADE - BUSCA E APREENSÃO DE
MATERIAIS E EQUIPAMENTOS REALIZADA, SEM MANDADO JUDICIAL,
EM QUARTO DE HOTEL AINDA OCUPADO - IMPOSSIBLIDADE QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DESSE ESPAÇO PRIVADO (QUARTO DE
HOTEL, DESDE QUE OCUPADO) COMO "CASA", PARA EFEITO DA
TUTELA CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR GARANTIA QUE TRADUZ LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL AO PODER DO
ESTADO EM TEMA DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO EM SUA FASE
PRÉ-PROCESSUAL - CONCEITO DE "CASA" PARA EFEITO DA
PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 5º, XI E CP, ART. 150, § 4º, II) AMPLITUDE
DESSA
NOÇÃO
CONCEITUAL,
QUE
TAMBÉM
COMPREENDE OS APOSENTOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO,
POR EXEMPLO, OS QUARTOS DE HOTEL, PENSÃO, MOTEL E
HOSPEDARIA, DESDE QUE OCUPADOS): NECESSIDADE, EM TAL
HIPÓTESE,
DE
MANDADO
JUDICIAL
(CF,
ART.
5º,
XI).
IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DE
PROVA OBTIDA COM TRANSGRESSÃO
À GARANTIA DA
INVIOLABILIDADE DOMICILIAR - PROVA ILÍCITA - INIDONEIDADE
JURÍDICA - RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. BUSCA E APREENSÃO
EM APOSENTOS OCUPADOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO
QUARTOS DE HOTEL) - SUBSUNÇÃO DESSE ESPAÇO PRIVADO,
DESDE QUE OCUPADO, AO CONCEITO DE "CASA" - CONSEQÜENTE
NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL,
RESSALVADAS AS EXCEÇÕES PREVISTAS NO PRÓPRIO TEXTO
CONSTITUCIONAL. – (...). Doutrina. Precedentes. - Sem que ocorra
qualquer das situações excepcionais taxativamente previstas no texto
constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público poderá, contra a vontade
de quem de direito ("invito domino"), ingressar, durante o dia, sem mandado
judicial, em aposento ocupado de habitação coletiva, sob pena de a prova
resultante dessa diligência de busca e apreensão reputar-se inadmissível,
150
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
porque impregnada de ilicitude originária. Doutrina. Precedentes (STF).
ILICITUDE DA PROVA - INADMISSIBILIDADE DE SUA PRODUÇÃO EM
JUÍZO (OU PERANTE QUALQUER INSTÂNCIA DE PODER) INIDONEIDADE
JURÍDICA
DA
PROVA
RESULTANTE
DA
TRANSGRESSÃO ESTATAL AO REGIME CONSTITUCIONAL DOS
DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS. - A ação persecutória do Estado,
qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para
revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios
ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do "due
process of law", que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas,
uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do
nosso sistema de direito positivo. - A Constituição da República, em norma
revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por
incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em
bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder
Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional,
repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem
de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não
prevalecendo, em consequência, no ordenamento normativo brasileiro, em
matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do "male captum, bene
retentum". Doutrina. Precedentes. A QUESTÃO DA DOUTRINA DOS
FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA ("FRUITS OF THE POISONOUS
TREE"): A QUESTÃO DA ILICITUDE POR DERIVAÇÃO. - Ninguém pode
ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente, em
provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude
por derivação. Qualquer novo dado probatório, ainda que produzido, de
modo válido, em momento subsequente, não pode apoiar-se, não pode ter
fundamento causal nem derivar de prova comprometida pela mácula da
ilicitude originária. - A exclusão da prova originariamente ilícita - ou daquela
afetada pelo vício da ilicitude por derivação - representa um dos meios mais
expressivos destinados a conferir efetividade à garantia do "due process of
law" e a tornar mais intensa, pelo banimento da prova ilicitamente obtida, a
tutela constitucional que preserva os direitos e prerrogativas que assistem a
qualquer acusado em sede processual penal. Doutrina. Precedentes. - A
doutrina da ilicitude por derivação (teoria dos "frutos da árvore
envenenada") repudia, por constitucionalmente inadmissíveis, os meios
probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento
ulterior, acham-se afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da ilicitude
originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por efeito de
repercussão causal. Hipótese em que os novos dados probatórios somente
foram conhecidos, pelo Poder Público, em razão de anterior transgressão
praticada, originariamente, pelos agentes da persecução penal, que
desrespeitaram a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar. Revelam-se inadmissíveis, desse modo, em decorrência da ilicitude por
derivação, os elementos probatórios a que os órgãos da persecução penal
somente tiveram acesso em razão da prova originariamente ilícita, obtida
como resultado da transgressão, por agentes estatais, de direitos e
garantias constitucionais e legais, cuja eficácia condicionante, no plano do
ordenamento positivo brasileiro, traduz significativa limitação de ordem
jurídica ao poder do Estado em face dos cidadãos. - Se, no entanto, o órgão
da persecução penal demonstrar que obteve, legitimamente, novos
elementos de informação a partir de uma fonte autônoma de prova - que
não guarde qualquer relação de dependência nem decorra da prova
originariamente ilícita, com esta não mantendo vinculação causal -, tais
dados probatórios revelar-se-ão plenamente admissíveis, porque não
contaminados pela mácula da ilicitude originária. - A QUESTÃO DA FONTE
AUTÔNOMA DE PROVA ("AN INDEPENDENT SOURCE") E A SUA
DESVINCULAÇÃO CAUSAL DA PROVA ILICITAMENTE OBTIDA DOUTRINA - PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL -
151
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
JURISPRUDÊNCIA COMPARADA (A EXPERIÊNCIA DA SUPREMA
CORTE AMERICANA): CASOS "SILVERTHORNE LUMBER CO. V.
UNITED STATES (1920); SEGURA V. UNITED STATES (1984); NIX V.
WILLIAMS (1984); MURRAY V. UNITED STATES (1988)", v.g..(RHC
90376, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma,
julgado em 03/04/2007, DJe-018 DIVULG 17-05-2007 PUBLIC
18-05-2007 DJ 18-05-2007 PP-00113 EMENT VOL-02276-02
PP-00321 RTJ VOL-00202-02 PP-00764 RT v. 96, n. 864,
2007, p. 510-525 RCJ v. 21, n. 136, 2007, p. 145-147)
O Superior Tribunal de Justiça demonstra entendimento semelhante sobre o
tema. Assim, tem julgado na esteira da interpretação ditada pelo STF, ou seja, não
admite, na grande maioria das vezes, provas obtidas por meios ilícitos nos
processos em que atua. Nesse sentido, apresentam-se as seguintes decisões:
PROCESSUAL PENAL – HABEAS CORPUS – ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA –
INIMPUTABILIDADE – RECURSO – NOVO LAUDO – PROVA
EMPRESTADA – PRONÚNCIA – NULIDADE – [...] Laudo pericial realizado
em outro processo e anexado por cópia na fase recursal constitui prova
emprestada, qualificada como prova ilícita, porque produzida com
inobservância dos princípios do contraditório e do devido processo legal,
não se prestando para embasar sentença de pronúncia. Habeas corpus
concedido. (STJ – HC – 14216 – RS – 6ª T. – Rel. Min. Vicente
Leal – DJU 12.11.2001 – p. 174).
CONSTITUCIONAL – PROCESSUAL PENAL – HABEAS-CORPUS –
PRISÃO EM FLAGRANTE – AÇÃO PENAL – PROVA ILÍCITA, VIOLAÇÃO
A DOMICÍLIO – TRANCAMENTO – [...] São desprovidas de validade
jurídica o auto de prisão em flagrante e a subsequente ação penal fundados
em provas ilícitas, obtidas por meio de operação policial realizada com
vulneração ao princípio constitucional da inviolabilidade do domicílio.
Recurso ordinário provido. Habeas-corpus concedido. (STJ – RHC 8753
– SP – 6ª T. – Rel. Min. Vicente Leal – DJU 11.12.2000 – p.
244).
Entretanto, não é possível afirmar que a jurisprudência acerca da questão da
inadmissibilidade de provas ilícitas no processo penal está pacificada. Pode-se notar
que, em contramão à maioria, existem julgados que escolheram aplicar o princípio
da
proporcionalidade sobre
tal matéria, entretanto,
apenas se
tratar de
proporcionalidade pro reo, conforme se aduz a seguir:
HABEAS CORPUS: CABIMENTO: PROVA ILÍCITA – 1. Admissibilidade, em
tese, do habeas corpus para impugnar a inserção de provas ilícitas em
procedimento penal e postular o seu desentranhamento: sempre que, da
152
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
imputação, possa advir condenação a pena privativa de liberdade:
precedentes do Supremo Tribunal. II. Provas ilícitas: sua inadmissibilidade
no processo (CF, art. 5º, LVI): considerações gerais. 2. Da explícita
proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do
processo (CF, art. 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela
estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real
no processo: consequente impertinência de apelar-se ao princípio da
proporcionalidade – à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem
constitucional brasileira – para sobrepor, à vedação constitucional da
admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração
penal objeto da investigação ou da imputação. [...] ( STF – HC 80949 –
RJ – 1ª T. – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 14.12.2001 –
p. 26)
Deste modo, depreende-se dos julgados acima expostos que, em matéria de
inadmissibilidade de provas, já é possível verificar que a jurisprudência brasileira tem
adotado uma postura mais garantida, concedendo certa prevalência a direitos
fundamentais sobre a atividade persecutória do Estado.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dos princípios do contraditório e ampla defesa nasce o direito à prova, ou
seja, ambas as partes de um processo terão oportunidade de apresentar certo
conjunto probatório que comprove a realidade fática alegada. Entretanto, certas
ressalvas a este direito devem ser consideradas, dentre elas está o princípio da
inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos.
Tal princípio encontra-se assegurado no artigo 5º, LVI, da Constituição
Federal e também, mais especificamente em matéria processual penal, no artigo
157 do Código de Processo Penal. Estas normas, conforme assinala Eugênio
Pacelli, não visam somente propósitos éticos, mas em verdade, “atuam no controle
da regularidade da atividade estatal persecutória, inibindo e desestimulando a
adoção de práticas probatórias ilegais por parte de quem é o grande responsável
pela sua produção” (PACELLI, 2012, p. 335).
Da análise da doutrina e jurisprudência colecionadas neste estudo, constatouse que, no ordenamento jurídico brasileiro, a regra sempre será a inadmissibilidade
de provas que violam normas constitucionais ou legais, devendo ser imediatamente
desentranhadas do processo.
153
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Ainda assim, pode-se concluir que já existem registros de excepcional
admissão desta espécie de prova, porém apenas se constatada ameaça à dignidade
humana ou à liberdade pública de um indivíduo. Trata-se da aplicação da teoria da
proporcionalidade como forma de correção às distorções sucedidas da aplicação
rígida do preceito constitucional acolhendo, assim, o uso da prova viciada, mas
somente em favor do acusado.
Existe, ainda, certa corrente minoritária que defende o uso da teoria da
proporcionalidade inclusive em favor da acusação. Contudo, esta interpretação não
pode ser verificada na jurisprudência brasileira.
A mesma regra das provas ilícitas persiste quanto às chamadas provas ilícitas
por derivação, ou seja, todo material probatório que ainda que produzido de maneira
válida, em momento subsequente se apoia, deriva ou tem fundamento causal em
prova já considerada ilícita. Não obstante, tais provas apenas deverão ser vetadas
se realmente mantém nexo causal com a prova considerada ilícita ou se não havia
possibilidade de serem obtidas por outra fonte independente. É importante destacar,
contudo, que tanto a definição de nexo causal, quanto a de fonte independente
ainda é muito controvertida e discutida pelos doutrinadores do direito processual
penal brasileiro.
Por fim, diante o uso inadequado de qualquer espécie de prova obtida por
meio ilícito, deve-se em primeiro lugar requerer o desentranhamento das mesmas,
ou se a ação penal encontra-se fundada tão somente em provas ilícitas a
consequência deverá ser o trancamento do processo, ou ainda, será devida a
decretação de nulidade de sentença condenatória se esta teve como base provas
desta natureza ou provas ilícitas por derivação.
154
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
REFERÊNCIAS
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emprestada ilícita. Habeas-corpus nº 14.216, da 6ª Turma do Superior Tribunal de
Justiça, Brasília, DF, 12 de novembro de 2001. DJU, p. 174. Juris Síntese
Millennium: Legislação, Jurisprudência, Doutrina e Prática Processual,
JUL/AGO2004, CD-ROM.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Processual Penal. Recurso em Habeascorpus. Prova ilícita, violação a domicílio. Recurso em Habeas-corpus nº 8.753, da
6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 11 de dezembro de 2000.
DJU, p. 244. Juris Síntese Millennium: Legislação, Jurisprudência, Doutrina e Prática
Processual, JUL/AGO2004, CD-ROM.
FEITOSA, Denilson. Direito Processual Penal: teoria, crítica e práxis. 5. ed. Rio de
Janeiro: Impetus, 2008.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2010.
GRINOVER, Ada Pelegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES,
Antônio Scarance. As Nulidades no Processo Penal. 12. Ed. São Paulo: Revista
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LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2011.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Atlas,
2012.
TOURINHO, Fernando da Costa Filho. Processo Penal. 30. ed. São Paulo: Saraiva,
2008.
155
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
156
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
INFÂNCIA E CRIMINALIDADE: A REPRESENTAÇÃO DO UNIVERSO
INFANTO-JUVENIL MARGINAL PELO DISCURSO CRIMINOLÓGICO
NO BRASIL (1890-1927)
CHILDHOOD AND CRIME: THE REPRESENTATION OF THE
JUVENILE UNIVERSE BY THE CRIMINOLOGICAL SPEECH IN
BRAZIL (1890-1927)
Bernardo Pinhón Bechtlufft 1
Mario Luiz Ramidoff2
Acadêmico do curso de Direito do 10º período do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
Graduado pelo Curso de Graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1991); Mestre
pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002);
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná (2007). Pósdoutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina (2012); Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná; Professor Titular do
Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba; Professor do Centro Universitário Internacional - Uninter;
Experiência na área de Direito, com ênfase em: Direito da Criança e do Adolescente; Direito Penal;
Ministério Público; Direito Procesual Penal; Criminologia; e Política Criminal.
1
2
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
A partir da concepção traçada por Phillipe Ariès para a infância, isto é,
compreendendo-a não a partir de um pressuposto naturalístico, uma etapa
necessária da vida humana, mas sim como um constructo histórico-social, podemos
afirmar que o século XX é o século do efetivo reconhecimento da infância como fase
autônoma da vida, distinta ao universo adulto, e, neste sentido, carecedor de uma
específica tutela do Estado na formulação de garantias e na elaboração de
específicas políticas públicas de proteção. O presente trabalho, por sua vez, tem por
objeto a reconstituição da trajetória de argumentos e representações da infância e
da adolescência pelo discurso jurídico e criminológico no Brasil no período de 18901927. Assim sendo, especificamente no que tange à articulação entre o universo
infanto-juvenil e a violência estrutural de uma condição marginal, analisamos, no
conjunto de argumentos sobre o menor infrator, rupturas e continuidades no que
tange ao paulatino deslocamento de uma perspectiva autoritária e repressiva para
os primeiros lineamentos de uma vocação democrática para a proteção da criança e
do adolescente.
Palavras-chave: História do Direito; Criminologia; Direito Penal; Infância e
Adolescência.
159
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
According to the design drawn by Phillipe Ariès for childhood, comprehending it not
from a naturalistic assumption, a necessary stage of human life, but as a historicalsocial construct, we can say that the twentieth century is the century of the effective
recognition of childhood as an autonomous stage of life, distinct from the adult
universe, and in this sense, it requires a specific state protection in the formulation of
guarantees and a development of specific public policies. This work, in turn, is
engaged in the reconstruction of the trajectory of arguments and representations of
childhood and adolescence by legal and criminological discourse in Brazil from 1890
to 1927. Thus, specifically with respect to the relationship between childhood and the
structural violence of a marginal condition, we analyze, at the set of arguments about
the juvenile offender, ruptures and continuities in relation to the gradual displacement
of an authoritarian and repressive perspective for the first lineaments of a democratic
vocation for the protection of children and adolescents.
Keywords: History of Law; Criminology; Criminal Law; Childhood and Adolescence.
160
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo analisar a representação do menor
infrator pelo discurso jurídico e criminológico no Brasil. Para tanto, fixar-nos-emos
nos trabalhos de juristas, criminólogos, médicos e penitenciaristas nos primeiros
anos do Período Republicano, mais especificamente ao longo dos anos 1890 e
1927, ou seja, desde a edição do Código Penal Republicano até a formulação do
primeiro documento normativo que veio a dotar, especificamente, a criança e do
adolescente de um estatuto jurídico próprio: o Código de Menores.
Neste sentido, em um esforço de síntese, permitimo-nos uma articulação de
três temáticas caras à historiografia ao longo do século XX - o direito, a infância e a
adolescência e a violência - a fim de nos indagarmos acerca do alcance do caráter
protetivo do arcabouço legal que se delineia no período trabalhado. O mal-estar em
torno à infância, seja relativamente às práticas criminosas do universo marginal ou à
tecnologia da violência constituída no seu enfrentamento, a permear o trabalho de
todos os autores aqui analisados, se articula a partir de quais pressupostos? Afinal,
por tais discursos, há que se falar em uma outra relação da sociedade brasileira da
Primeira República com a infância, a se projetar numa paulatina modificação das
práticas sociais em torno ao combate ao crime e à marginalidade dos jovens
infratores? Como se articula a tensão, tão presente no discurso jurídico, entre a
repressão da criminalidade e a proteção da sociedade no que tange à criminalidade
infanto-juvenil nas cidades brasileiras do início do século XX?
2 O SURGIMENTO DA PROPOSTA CRIMINOLÓGICA E A DELINQUENCIA
INFANTO-JUVENIL.
A transição do século XIX para o século XX representa, para a análise do
crime e da criminalidade, um momento de profundas transformações no tocante à
quebra dos paradigmas sob os quais o campo jurídico esteve assentado. Aqui, o
desenvolvimento de estudos antropológicos e sociológicos, aliado aos avanços
científicos nos ramos da psiquiatria, psicologia e medicina, acabaram por se traduzir
em uma nova percepção do homem e da sociedade, necessariamente transposta
para o discurso sobre o fenômeno delitivo. No cerne destas modificações, ganha
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
corpo no debate intelectual a criminologia, uma proposta de compreensão científica
do crime, do criminoso e do sistema punitivo que paulatinamente se afastaria dos
postulados metafísicos do pensamento iluminista da Escola Clássica.
Deste modo, tendo em vista a necessidade de compreender o pensamento
jurídico e criminológico em torno à infância e adolescência no período destacado, o
presente capítulo acaba por fazer uma pequena incursão sobre a história da
constituição do campo criminológico, como resposta aos postulados da Escola
Clássica. Após, daremos atenção ao modo como este campo em constituição
trabalhou o problema da delinquência infanto-juvenil no mundo, especialmente no
que tange ao trabalho de três de seus principais autores: Cesare Lombroso (18351909), Enrico Ferri (1856-1929) e Raffaele Garófalo (1851-1934).
Pautada por uma perspectiva em que se mesclavam o contratualismo
(Hobbes, Locke e Rousseau) e o jusnaturalismo (Grotius), a Escola Clássica do
Direito Penal (Beccaria, Carrara) representa a transição de um pensamento
essencialmente filosófico para uma concepção ainda profundamente metafísica,
porém
juridicamente
fundada,
na
elaboração
dos
conceitos
de
crime,
responsabilidade penal e pena (BARATTA, 2002, p. 32-33).
Note-se, neste sentido que a Escola acaba por tomar como pressuposto
básico de análise a ideia cristã de livre-arbítrio. Sendo livre e consciente o indivíduo,
sendo a liberdade um direito natural, que antecederia a sua existência, caberia a ele
orientar-se na vida em sociedade, de modo racional, seja pela prática do ato lícito ou
pelo ilícito. Deste último, em se violando um dever de conduta imposto por seus
iguais, surgiria o direito do Estado à persecução criminal, a fim de retribuir (Kant,
Hegel), através da imposição de uma pena proporcional à violação do pacto social
expresso na lei (Feuerbach), a culpa do agente pelo cometimento do delito.
Deste modo, a proposta da Escola Clássica representa a primeira tentativa
de elaboração do direito penal em torno ao postulado teleologicamente redutor
(ZAFFARONI, 2010, p. 62) , isto é, de contenção ao poder punitivo. Ante as práticas
punitivas do Estado Absolutista, de cariz tirânico, autoritário, inquisitivo e
persecutório, seus autores traduziriam a necessidade de elaboração de um discurso
calcado na racionalização de meios e métodos penais, bem como na humanização
da reprimenda. Vedações à tortura, aos castigos cruéis, às penas de morte:
gradativamente o espectro punitivo adquire uma outra feição, distanciada dos
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
barbarismos praticados no medievo, afirmando-se a liberdade do cidadão ante o
exercício leviatânico do poder pelo Estado.
Ocorre, porém, que longe de se converter em um imperativo civilizatório e/ou
progressista, o caminho traçado por este Direito Penal em gestação revelar-se-ia
bem menos nobre. Assistimos aqui, em realidade, a um deslocamento paulatino das
práticas punitivas, isto é, desde um ethos aristocrático, de proteção do status quo de
uma sociedade estamental e nobiliárquica, para a afirmação de uma vocação
protetiva dos interesses de uma classe burguesa, em ascensão. Assim sendo, com
o avanço do capitalismo, o Direito Penal acaba por se converter no braço armado do
capital na materialização dos desígnios desta nova classe dominante. Por um lado,
ele garante para si o espaço de liberdade frente à atuação de um Estado
centralizador e autoritário, contra o qual a expansão do capital encontrava uma
barreira real. Por outro, encontrará nele um poderoso aliado na subjugação de
grupos
oprimidos,
relativamente
desorganizados,
que,
progressivamente,
conseguem catapultar as suas demandas ao espaço público, contra o capital, pela
afirmação do trabalho.
É neste contexto que surge a criminologia. Do ponto de vista econômicosocial, elucida uma modificação nas estruturas de pensamento em virtude do
conjunto de transformações políticas e sociais que acabam por convulsionar a
ordem social europeia, dado o avanço do capitalismo internacionalista (imperialismo)
e a afirmação, no locus urbano, de uma grande massa de trabalhadores e
miseráveis. Trata-se, portanto, de uma resposta que atende aos anseios da nova
classe dominante, a burguesia nacional, em um momento de crise do capitalismo,
que não logrou êxito na transferência a territórios coloniais da Ásia e África do
excedente populacional das cidades europeias convulsionadas, ainda em expansão.
No que tange ao espectro ideológico, vislumbramos o diálogo do
pensamento positivista e criminológico com a ideologia da defesa social e do fardo
do homem branco, um conjunto eclético de idéias legatárias do pensamento
positivista, cientificista, higienista, racialista e do darwinismo social que se prestaram
à elaboração de uma “nobre” justificação à empresa imperialista. Sem duvida, o
ambiente cultural da Belle Époque era propício para a propagação de tal ideário. A
inexistência de conflitos na Europa durante a Pax Armada (1885-1914) possibilitava
a crença romântica na potencialidade do indivíduo, no progresso da humanidade e
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
no Estado Nacional. Nas ciências humanas, o ambiente é de otimismo: a sociedade
se apresentava como passível de controle e interferência pela sociologia,
denominada física social, e o darwinismo social acabaria por introduzir a questão
racial nos círculos de debates intelectuais do século XIX. O homem branco seria,
portanto, o responsável pela tradução de todos os imperativos civilizatórios que se
impunham nestes círculos às parcelas bárbaras e incultas da humanidade.
Assim, compreendendo-se a ideologia do contexto histórico em torno ao
binômio civilização x barbárie, entendemos que, se a empreitada imperialista
acabava por se justificar como uma contraprestação da barbárie pelos grandes
serviços prestados pelo homem branco ao apresentar-lhe a civilização, esta nova
concepção do Direito Penal acaba por se traduzir no instrumento, por excelência, de
afirmação de uma identidade nacional e luta contra uma alteridade interna, presente
no seio dos Estados Nacionais. A diferença frente ao alter, aqui, já não é mais uma
questão relativamente à ordem sociocultural ou um objeto de análise científica, mas
sim um verdadeiro instrumento para a distensão política entre homens que não
conseguem, ou melhor, não pretendem se ver iguais.
Neste sentido, relativamente à dimensão ideológica do discurso, permitimonos afirmar que a transição do pensamento clássico para o pensamento
criminológico e positivista representa não propriamente uma ruptura (ZAFFARONI;
PIERANGELLI, 2006, p. 156), mas sim a continuidade de uma visão de mundo
centrada na luta contra alteridades socioculturais, conferindo-se legitimidade ao
exercício do poder punitivo, em defesa da sociedade, da identidade nacional, contra
uma alteridade ressignificada e redimensionada: o delinquente.
Por fim, do ponto de vista científico e metodológico, a criminologia e o
positivismo constituem uma ruptura com o pensamento filosófico iluminista que se
projetava sob o campo da dogmática jurídico-penal, através de uma aproximação
com os estudos das ciências humanas e naturais (sociologia, antropologia,
psicologia, psiquiatria). A dominar boa parte do debate intelectual em torno aos
postulados do Direito Penal no fim do século XIX, o positivismo formularia uma série
de críticas à existência do direito natural, conferindo-se ao direito positivo a
exclusividade sobre o pensamento jurídico como um todo. A ideia de livre-arbítrio, no
que diz respeito ao direito penal, se vê igualmente rechaçada pelo surgimento desta
corrente interpretativa, admitindo-se a existência do crime e do criminoso como
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
“patologias sociais” (BITENCOURT, 2010, p. 82). Neste sentido, há clara predileção
pelo estudo dos determinantes e condicionantes a influir no comportamento do
criminoso, encarados seja em uma perspectiva biológica/psicológica (vertente
antropológica) ou em sua relação com o meio físico e social (vertente sociológica).
Em outras palavras, a liberdade do indivíduo na prática do ato criminoso é afastada,
seja porque naturalmente ele revela sob uma feição hereditária, um “atavismo”, uma
“demência moral” (Lombroso), ou porque fatores endógenos - como o processo de
socialização e o meio físico - viriam a influir, como tendências decisivas, na
formação de um comportamento antissocial, uma personalidade criminosa (Ferri).
Disto resulta uma verdadeira revolução na forma de se compreender o
direito penal, deslocando-se o foco da análise da reprovabilidade do ato à
periculosidade, temebilidade do agente. A persecução criminal, do mesmo modo, se
permite articular sob um novo aspecto, para além da feição retributiva, atribuir uma
sanção pelo mal causado, agora o que se pretende é antes a defesa social,
extirpando da vida em sociedade seus elementos perigosos, patológicos,
indesejáveis.
No centro deste debate no campo jurídico e criminológico inaugurado pela
Escola Positivista, constitui-se uma verdadeira panaceia de discursos sobre variados
tipos criminosos, dentre os quais três mereceram especial destaque: o louco, a
mulher e, foco deste trabalho, o menor infrator.
Cesare Lombroso (1835-1909), médico sanitarista italiano, é considerado o
fundador da criminologia, sendo responsável pela primeira elaboração de um
discurso calcado na explicação do fenômeno delitivo, em contraponto à lógica
eminentemente imputativa da Escola Clássica. Para este autor, o crime pode ser
compreendido a partir de um espectro causal, isto é, como o resultado de um
“atavismo”, uma deformação consistente do subdesenvolvimento mental e corpóreo
do indivíduo. Neste sentido, poder-se-ia identificar no sujeito, através de seus
“estigmas” físicos, os indicativos de uma mentalidade criminosa, inata, a interferir
deterministicamente sobre o seu comportamento em sociedade.
Note-se, neste particular, o contraponto feito à ideia de livre-arbítrio, uma vez
que, destinando foco aos caracteres biopsicológicos, Lombroso acaba por afastar a
possibilidade de o sujeito conduzir a sua ação livremente, conforme a sua vontade.
Assim sendo, paulatinamente seria concebida outra lógica punitiva, distanciada da
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ideia de responsabilização moral do sujeito, na aplicação de uma pena, para afirmarse um discurso afeito à periculosidade do agente, destinando-lhe uma medida de
segurança em razão do desígnio de proteção social. O delito, vislumbrado como
“elemento sintomático da personalidade do autor” (BARATTA, 2002, p. 38), deixa de
ser uma medida meramente retributiva, calcada no agente, para se constituir em
uma reação social a um fato perigoso, pois patológico, indesejável.
Assim sendo, Cesare Lombroso, em O Homem Delinquente, voltaria o seu
olhar para a infância porque nesta é que se expressariam os primeiros aspectos de
uma personalidade criminosa, a se caracterizar pelos sentimentos de “cólera”,
“vingança”, “ciúme”, “mentira”, “crueldade”, “preguiça” e “vaidade”, projetando-se
sobre práticas perniciosas que denotariam a falta de um “senso moral” nas crianças:
[...] os germens da demência moral e da delinquência encontram-se, não
excepcionalmente, mas normalmente nas primeiras idades do ser humano.
No feto, encontram-se frequentemente certas formas que no adulto são
monstruosidades. O menino representaria como um ser humano privado de
senso moral, este que se diz dos frenólogos um demente moral, para nós,
um delinquente nato (LOMBROSO, 2010, p. 59)
Deste modo, a externalização de comportamentos tais como a revolta de
“quando não querem tomar banho” ou a agressão levada contra a ama de leite,
quando esta “procurava retirar a teta”, eram vislumbrados por Lombroso como
primeiras manifestações de um atavismo que se projetaria sob o desenvolvimento
biopsíquico do homem adulto. Considerando-se a delinquência seria uma
característica inata, presente na constituição orgânica do indivíduo, adquirida
hereditariamente, conclui Lombroso pelo crime como resultado da impossibilidade
de orientação da ação, desde a infância, conforme a vontade, livre e consciente.
Frise-se, contudo, que o peso conferido aos caracteres antropológicos no
pensamento lombrosiano merece algumas advertências, notadamente no que tange
à alegação de que o autor em questão teria negligenciado fatores psicológicos e
sociais (BARATTA, 2002, p. 39). Fato é que Lombroso vislumbraria, relativamente à
infância e juventude, o processo de socialização do jovem como meio de se aplacar
este impulso primitivo de um ser degenerado. Ora, ainda que considere a
personalidade inata de uma mente perigosa, o criminólogo italiano encara a
possibilidade de a sociedade se voltar contra a demência moral do indivíduo, no
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
curso deste processo de socialização, interrompendo-se, pelo contato com a família
e, principalmente, pela educação, a explicitação de algo que já lhe fora determinado
biologicamente: a vida voltada ao crime.
[...] tem-se a natural explicação de como a demência moral se originou só
por falta de todo o freio nos excessos desde a infância, cujos maus hábitos
não interrompidos pela educação, seria como uma continuação. Esses
meninos, disse Campagne falando dos candidatos à demência moral, são
insensíveis aos louvores e às censuras. Não sentem quando o seu
comportamento se torna penoso à sua família. (LOMBROSO, 2010, p. 71)
De outra sorte, o processo de socialização é encarado, pelos autores da
vertente sociológica, não como meio de enfrentamento da criminalidade, mas sim
como causa direta desta. Neste sentido, ainda que o trabalho dos autores
compartilhe
de
boa
parte
do
referencial
teórico
lançado
por
Lombroso
(BITENCOURT, 2010, p. 89), a análise do delito e do delinquente se prende a um
duplo aspecto, isto é, considerando-se em sua face individual, enquanto tendências
psíquicas e naturais, e social, sob a forma de influências trazidas pelo meio, físico e
social, na afirmação desta mesma vontade.
A questão colocada, portanto, pela idade do delinquente, ainda que esta se
revelasse sob a forma de uma condição antropológica do sujeito, tal como a “raça” e
o “gênero”, não mereceria, de acordo com Enrico Ferri (1856-1929), criminólogo
italiano, exclusividade como fator explicativo do comportamento do criminoso
(FERRI, 1916, p. 147). Pelo contrário, tais fatores de ordem psíquica e orgânica
deveriam ser conjugados à plêiade de elementos telúricos (“clima”, “estações”,
“temperatura”) ou sociais (“densidade populacional”, “família”, “moral”, “crenças
religiosas”, “educação” e “alcoolismo”), a se revelar não como determinantes, mas
sim a partir de sua influência na prática do ato delitivo.
Assim sendo, um processo de socialização deficitário tornar-se-ia o meio por
intermédio do qual as tendências criminosas se explicitariam, condicionando a ação
do sujeito. Na análise dos criminosos natos e habituais, Ferri destaca o problema da
reincidência, explicada não por fatores psíquicos como formadores de uma
tendência delinquente, mas sim pelo hábito, adquirido socialmente, precocemente,
desde a juventude.
167
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Disto surge uma proposta de reversão do quadro que comumente se
impunha sob a análise do comportamento do criminoso: da análise da
responsabilidade
moral
do
agente,
o
autor
propõe
uma
verificação
da
responsabilidade social do ato, a se indicar se o comportamento deste revela
impulsos anômicos e antissociais. E, neste ponto, a infância ganha relevo como
lócus preferencial para a explicitação de tais comportamentos, constituindo-se fator
de grande preocupação social, na formulação de políticas de assistência pública e,
também, visando uma reformulação do quadro jurídico-penal que se impunha ao
menor-infrator, a fim de que o intuito ressocializador se fizesse especialmente
presente na execução penal. Deste modo, pela constituição de outros hábitos
sociais, a sociedade não permitiria o surgimento do futuro “homem incorrigível”.
Note-se, porém, que longe que encampar uma visão pela proteção do menor
em face do poder punitivo estatal, dado o estágio de precocidade de
desenvolvimento de sua personalidade, Ferri acaba por verificar a prevalência do
desígnio de defesa social em face da penalística corrente, a qual buscava um critério
seguro para a fixação da inimputabilidade. Relativamente ao projeto do Código
Penal italiano de 1921, que, no art. 53, estabelecia a idade de 09 (nove) anos para
demarcar o espaço da inimputabilidade, dispunha ele que este patamar “não
corresponde à realidade humana, pelas constatações da antropologia criminal, deve
agora subordinar-se ao critério fundamental da personalidade do delinquente menor”
(FERRI, 2003, p. 441). Deste modo, pugnava o criminológo pela ausência de
critérios, tendo em vista que a particularidade do caso e a gravidade do crime
deveriam orientar o penalista na eventual responsabilização do jovem infrator.
Perante o dado da antropologia criminal que na precocidade nota um
caráter específico do delinquente nato ou por tendência congênita; perante
a observação quotidiana dos crimes de sangue, de incêndio, de furto, etc.,
cometidos muitas vezes com inconsciência, mas frequentemente também
com evidente consciência de malfazer por crianças de idade inferior até aos
nove anos, como é possível conservar aquela presunção absoluta?.
(FERRI, 2003, p. 441-442)
Destaca-se, portanto, uma convergência no pensamento sobre a infância
entre os autores das duas vertentes do positivismo que veio a se afirmar
academicamente no final do século: juridicamente, a infância e a juventude
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
mereceria um tratamento diferenciado. Este, porém não se justifica por uma razão
protetiva, mas sim em termos de uma defesa profilática, eugênica e higienista, da
sociedade contra seus futuros malfeitores, que, pela mente ou pelo hábito, far-seiam presentes no futuro.
No entanto, acreditamos que Ferri que revela uma maior consistência que
Cesare Lombroso na elaboração de seu discurso quanto à delinquência infantojuvenil, expandindo seu universo de análise para além do crime e do criminoso para
refletir, efetivamente, sobre uma política criminal voltada para especificamente para
esta parcela da sociedade. Trata-se, neste sentido, de explicar não apenas o porquê
da prática do ato delitivo, mas também de orientar este específico processo de
criminalização, com a consequente penalização do jovem infrator, conforme os
ditames da prevenção especial (intimidação e ressocialização).
Pelo que se iniciou na legislação (com o notável exemplo da Children Act,
1908) uma orientação, que é o triunfo completo das conclusões da Escola
Positiva e que adota para os delinquentes menores não a tradicional penacastigo, também chamada intimidadora, mas uma série de providências
defensivas, educativas, curativas adaptadas não já aos pretendidos graus
de discernimento e de culpabilidade moral, mas bem assim à diversa
periculosidade e readaptabilidade social de tais delinquentes, conscientes
mas com fraca vontade. Pelo que Prins, com razão, observou que este
sistema repressivo para os delinquentes menores não é senão a
antecipação do mesmo sistema que acabará por aplicar-se a todos os
delinquentes, mesmo adultos. (FERRI, 2003, p. 442)
Em diálogo com a concepção fisiológica de Cesare Lombroso e a visão
sociológica de Enrico Ferri, o trabalho do jurista e criminólogo italiano Raffaele
Garófalo (1851-1934) acabou por privilegiar fatores psicológicos e antropológicos
para a explicação do fenômeno delitivo. Para tanto, buscaria amparo no pensamento
evolucionista de Malthus, Darwin e Spencer, creditando ao delinquente o peso de
uma “anomalia moral”, informada por caracteres biológicos, tal como o relatara
Lombroso, mas também hereditários, isto é, portador de instintos genéticos que
permitiriam enquadrá-lo como uma raça inferior, degenerada, involuída.
Assim sendo, negando-se uma vez mais a ideia de livre arbítrio da Escola
Clássica, a delinquência poderia ser vislumbrada como consequência fatalmente
determinada, por intermédio da qual revelar-se-ia a desnaturação de uma condição
moral e evolutiva da espécie humana, ou melhor, nas palavras do próprio autor, uma
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
“lei de transmissão hereditária do delito” (GARÓFALO, 2005, p. 81). Neste ponto,
aprofundando-se a discussão antropológica de Lombroso a partir dos estudos do
darwinismo social, o autor lançaria as bases de um conceito universal de crime,
chave de seu trabalho: o “delito natural”, que seria “o elemento de imoralidade
necessário para que um ato prejudicial seja considerado pela opinião pública é a
lesão daquela parte do sentido moral, que consiste nos sentimentos altruístas
fundamentais, ou seja, a PIEDADE e a PROBIDADE” (2005, p. 31).
Deste modo, o delito consistiria em uma violação a sentimentos naturais,
próprios à espécie humana, que historicamente se revelariam sempre presentes em
nossa civilização. O trabalho de Garófalo, neste ponto, acabaria por identificar em
uma permanência, no espectro psíquico e biológico, de um aspecto degenerado de
uma raça inferior, consistente na tendência à violação destes dois sentimentos: a
piedade, atinente aos bens da personalidade, e a probidade, relativo aos demais
bens jurídicos assim reconhecidos pela coletividade.
Aprofundando-se, por conseguinte, às razões apresentadas pelos autores
anteriormente analisados, Garófalo acaba por afastar a possibilidade de o processo
de socialização agir de modo positivo, na constituição de um senso moral na psique
do indivíduo, a partir do qual ele aplacaria impulsos primitivos e introjetaria valores
socialmente partilhados. Pelo contrário, não haveria, neste espectro, crença na
possibilidade de adaptação, tamanha a degenerescência do ser em sua constituição
biopsíquica. E, precisamente aqui, a análise da delinquência infanto-juvenil mereceu
destaque na análise de referido autor. Para ele, voltar-se a esta faceta do fenômeno
criminal significaria, antes de mais nada, atentar-se a um longo e tormentoso
processo de constituição hereditária de uma casta de seres degenerados, isto é,
geneticamente predispostos à prática de atos lesivos aos sentimentos aqui
mencionados.
Neste sentido, Garófalo revela a sua desconfiança nos meios que à época já
se colocavam como instrumento possível à superação da delinquência infantojuvenil, especialmente no que tange à ênfase no processo de socialização,
relativamente à educação, como meio por excelência para superação da condição
atávica do criminoso. Ante a possibilidade de lidar com impulsos anômicos,
primitivos e involuídos identificáveis na personalidade do menor infrator, responderia
o criminólogo italiano pela sua quase absoluta impropriedade, haja vista a existência
170
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
de
uma
lei
geral
que
governaria
a
espécie
humana,
impulsionando-o
deterministicamente à prática de atos atentatórios aos sentimentos mais nobres da
coletividade. A imperfeição moral do ser, portanto, seria inafastável, haja vista a
herança biogenética de sua constituição. A este respeito, Garófalo relata (2005, p.
111-112):
É possível que ocorra que um meio deletério abrigue o sentimento de
probidade, ou melhor, venha a impedir seu desenvolvimento durante a mais
tenra idade. Mas o que é positivo é que, uma vez formado o instinto, este
persiste por toda a vida, e que não se deve confiar na correção, por meio da
educação, deste vício moral, quando o caráter se encontra já organizado,
isto é, quando o sujeito já passou da idade adolescente. O que pode sim ser
ensaiado, com esperança de êxito muitas vezes, é a supressão das causas
diretamente determinantes, seja modificando o meio, seja separando o
indivíduo deste mesmo meio, para transportá-lo a outro, no qual poderá
encontrar tais condições de existência que façam que a atividade honrada
lhe seja mais fácil e benéfica que a atividade malfeitora.
Assim sendo, conjugando-se os elementos trazidos sobre a infância por
Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garófalo, entendemos que o discurso
jurídico sobre o menor infrator se permite afirmar paulatinamente, no período
trabalhado, não porque a criança e o adolescente estão em foco, mas sim porque o
crime assume uma outra feição neste campo do saber. Reconhecer juridicamente a
infância na transição do século XIX para o século XX significa aqui buscar
estratégias alternativas de enfrentamento do problema mais amplo da criminalidade,
sendo a abolição das práticas tradicionais, quanto ao enclausuramento dos menores
em conflito com a lei, um dos meios, e não um fim da nova política criminal.
3 INFÂNCIA E CRIMINALIDADE NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1889-1930)
Aliadas
a
estas
mudanças
na
compreensão
do
campo
jurídico,
especialmente no que diz respeito ao direito penal, a análise do fim do século XIX
acaba por manifestar uma profunda transformação relativamente à vida social no
Brasil, a se distinguir do passado por uma gradativa modificação de seus tradicionais
“padrões de sociabilidade” (ARIÈS, 2011, p. 10). Neste sentido, permitimo-nos
vislumbrar, a partir de uma nova disposição da sociedade brasileira para as “trocas
afetivas”, para as “comunicações sociais”, o aprofundamento de um novo sentimento
171
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
para com a infância e, em decorrência deste, um novo comportamento, a se afirmar
o distanciamento do universo infanto-juvenil das práticas sociais correntes em torno
à vida adulta.
Duas ordens de fatores concorrem, a nosso ver, decisivamente, no Brasil,
para esta modificação: a mudança nas relações de trabalho, com o processo
gradativo de abolição da escravidão, e a transformação dos padrões de
sociabilidade advindos com o processo de urbanização, analisados a seguir.
A família tradicional na sociedade brasileira do século XIX é ampla:
corresponde a todos que se colocam sob o manto e a proteção do patriarca. Nisto,
na sua formação, englobam-se não só mulheres e filhos, mas também compadres,
afilhados, parentes, serviçais e escravos. Com o aprofundamento das críticas
abolicionistas na segunda metade do século XIX, e nisto estamos de acordo com a
historiografia revisionista da escravidão no Brasil, modificações profundas se
operaram no que tange às relações de trabalho, que, de certo modo, se viam
imiscuídas no seio das relações familiares. Portanto, desde a proibição do tráfico de
escravos, com a Lei Eusébio de Queirós (1850), passando pela Lei do Ventre Livre
(1871) e a Lei dos Sexagenários (1885), culminando com a abolição da escravatura
com a Lei Áurea (1888), cremos que deste processo se revela uma modificação
profunda não apenas no que diz respeito à organização do trabalho, mas sim, e
fundamentalmente, da própria vida social no Brasil Império.
A abolição da escravidão, neste sentido, longe de representar um avanço
civilizatório no reconhecimento da liberdade jurídica dos ex-escravos, representa a
liberação de um contingente populacional significativo do espaço da casa-grande
dos senhores, da fazenda, em outros termos, da responsabilidade de seus
proprietários, sendo deixados à própria sorte. A se constituir outras formas de
exploração do trabalho que, muito antes de se revelar mais humanas, acabaram por
trazer ainda tantas penúrias para a vida dos cativos emancipados, obliterando a
exploração sob a forma de um contrato assalariado, o fim da escravidão também
dissolve os laços de compadrio que uniam os emancipados à família do senhor.
Portanto, em um espaço onde se torna cada vez mais restrito o seio familiar, isto é,
preso à figura de pais e filhos, os espaços de encontro e de sociabilidade entre seus
membros se vê profundamente modificado, refletindo-se diretamente sob a
172
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
constituição paulatina de um novo sentimento sobre a todos os seus membros,
especialmente sobre este alter, ressignificado: o ex-escravo, emancipado.
Deste modo, cremos que a experiência republicana, não tendo sido
acompanhada de políticas públicas de inclusão social dos ex-cativos, constitui o
verdadeiro fosso para a afirmação da marginalidade social do negro e do pobre na
sociedade brasileira.
Deste modo, a gradativa modificação no nível das infraestruturas
econômico-sociais viria a se refletir no âmbito das relações sociais mais sensíveis,
dentre as quais destacamos as transformações nos padrões de sociabilidade da
família da Primeira República. Ante o conceito amplo supracitado, ganharia corpo
um conceito do núcleo familiar cada vez mais restrito, preso a figura de seus
membros tradicionais. Assim, temos uma explicitação da condição desfrutada pela
criança, pelo jovem. E esta, por sua vez, se dá em dois patamares: por um lado,
dota de sentido uma fase da vida com a qual a sociedade passaria a dialogar com
maior proximidade, especialmente no que tange à elite das grandes cidades; por
outro, explicita as cisões e contradições sociais em torno às quais a vida cotidiana
estava fundada, revelando a precariedade de constituição destes mesmos padrões
de sociabilidade, com a inclusão da família no seio familiar, no espectro periférico,
marginal, desta mesma sociedade.
De outra sorte, porém, acreditamos que o processo de urbanização da
sociedade brasileira constitui no segundo fator de significativa modificação no que
tange aos padrões de sociabilidade da vida cotidiana brasileira, a explicitar uma
mudança substantiva nos espaços de encontro e nas relações entre os membros da
sociedade.
A cidade brasileira do início do século XX revela sua beleza. Como
paradigma do ingresso do país na civilização, na modernidade, a infraestrutura
urbana revoluciona-se através da dinamização do espaço citadino, com políticas de
embelezamento dos locais públicos, constituição de largas e espaçosas avenidas,
edifícios com fachadas art nouveau feitas em mármore e cristal, com o bonde, a
eletricidade e a fábrica a se materializar simbolicamente no progresso da república
nascente (SCHWARCZ, 2012, p. 44). Surgem novas cidades, como Belo Horizonte,
primeira capital planejada do país, sede de política e administrativa de um estado
que busca se reapresentar no cenário político e social afastando-se da imagem da
173
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
economia mineradora decadente. São Paulo, por sua vez, catapultado pela
economia cafeeira a se desenvolver nas cidades do interior, assumiria de vez o
papel de centro comercial e financeiro da nação (2012, p. 45). O Rio de Janeiro, a
partir das reformas urbanísticas levadas a cabo pelo governo de Rodrigues Alves
(1900-1902), assumiria de vez a imagem de cartão postal republicano. A cidade de
Curitiba, por sua vez, ainda que de modo menos intenso que outras capitais, já
emergia no cenário paranaense como um centro político e econômico capaz de
aglutinar em torno de si um grande contingente populacional, formado sobretudo por
núcleos de imigrantes, que fizeram a sua população triplicar nos primeiros vinte anos
republicanos,
reestruturando-se
para
dar
conta
desta
nova
realidade
socioeconômica experimentada.
Contudo, para além do estético, a cidade brasileira revelaria no período os
seus contrastes. Nisso, a transição do século XIX para o século XX, especialmente
no que tange à cidade do Rio de Janeiro, capital federal, foi sentida como um
momento de profunda transformação do espaço urbano. No que tange à sua
demografia, a população se viu alterada significativamente, crescendo enormemente
em termos numéricos, alterando-se sua composição étnica, pelo fim da escravidão e
pela chegada de um enorme contingente de imigrantes europeus, revelando-se um
profundo desequilíbrio entre os sexos. Ainda, a despertar a preocupação das
autoridades, grande parte do contingente populacional que chegava à cidade
mostrava-se sem ocupação ou subempregada.
Condições habitacionais precárias, cortiços, falta de saneamento básico,
propagação de epidemias de varíola e febre amarela: tudo a se congelar em um
cenário extremamente promíscuo, onde o progresso da cidade é vivenciado, par e
passo, com um processo de experimentação e construção social da diferença, da
marginalidade. Em um ambiente convulsionado por tantas transformações sociais,
espaço de encontros e conflitos, a densificação paulatina das relações sociais em
torno ao espaço urbano, em torno à rua, veio a aprofundar, no Brasil em transição
para o século XX, um novo sentimento em torno à sociedade marginal.
Desacompanhada que foi a ocupação deste novo espaço de políticas voltadas à
inclusão social destes novos atores do lócus urbano, a diferença torna-se,
definitivamente, fator de preocupação das autoridades. E, como estratégia de
enfrentamento desta alteridade que se apresenta, o Estado encontra nas práticas
174
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
higienistas e na repressão criminal poderosos aliados, expurgando-se tais elementos
de sua centralidade, de sua visibilidade, inoculando seu mal-estar.
No cerne deste desconforto, a dominar o discurso de políticos e juristas à
época, surge o problema do menor, compreendido em torno a três eixos
fundamentais: o órfão, o exposto ou abandonado e o infrator. A infância e a
adolescência, a dominar as ruas, acabam por sedimentar no imaginário social do
início do século XX a imagem do “pivete”, do “moleque”, da criatura maltrapilha e
malcriada, envolto em um universo violento e marginal, sem ter quem o cuide, quem
o torne distinto o certo do errado, preferindo as ruas à família e aos bancos de uma
escola. De acordo com Betina Hillesheim e Neuza Maria de Fátima Guareschi
(2013):
[...] são crianças pobres, moradoras das periferias das grandes cidades,
preferencialmente do sexo masculino, que vagueiam pelas ruas sem
trabalho ou ocupação, provenientes de famílias tidas como ‘problemáticas’
ou ‘desestruturadas’.
Ante a constatação da existência destas crianças, ou melhor, contra a
existência destas, não se apresentaria uma proposta necessariamente repressiva,
punitiva, mas sim correcionista, reformatória, na constituição ortopédica de um
sujeito dócil, moral, a fim de se superar sua condição marginal. Trata-se, portanto,
da gradativa elaboração de uma específica tecnologia punitiva, ou melhor, no dizer
de Rizzini & Pilotti, de uma “arte de governar crianças” (RIZZINI; PILOTTI, 2011, p.
32). Aqui, temos fórmulas repressivas geralmente se imiscuem em torno às
propostas de assistência, quais sejam o reestabelecimento de laços de afeto e
carinho com a pessoa do menor; aquisição de bens culturais, tais como o incentivo à
leitura, à prática de atividades esportivas e ao processo sócio educacional, à
pedagogia do trabalho, com a aprendizagem de um ofício e constituição de uma
ética burguesa do trabalho; à reestruturação familiar. Isto, a se dirigir sobre a alma
doentia do menor, em uma ação para a sua correção:
O modelo de atendimento almejado, cuja formulação datava do século XIX,
estava calcado na razão científica, a qual pressupunha objetivos, um
método de trabalho e resultados palpáveis, que juntos constituíam o
“maquinismo da assistência” (Britto, 1959, obra de 1929). O método
175
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
preconizava uma organização do atendimento institucional nos seus
diversos aspectos, como a distribuição da clientela, segundo uma
classificação baseada em inúmeros e cada vez mais complexos critérios,
entre eles, o motivo da internação, a inteligência, as aptidões e o caráter do
menor, a ocupação criteriosa do espaço e do tempo dos internos (RIZZINI,
2011, p. 232)
Mas seria esta modificação no que tange ao meio de enfrentamento do
problema
social
gerado
pela
criminalidade
infanto-juvenil
o
resultado
do
reconhecimento da infância como fase autônoma da vida, digna, neste sentido, de
maior proteção por parte do Estado?
Ora, não há como negar que o fenômeno de reconhecimento da infância no
Brasil, no campo sociológico, como fase da vida autônoma ao universo adulto só
viria a ganhar contornos mais definitivos no período trabalhado, isto é, justamente na
transição do século XIX ao século XX. Neste sentido, cremos que a mudança nos
padrões de sociabilidade foi vivenciada de tal modo, após as modificações nas
relações de trabalho e as transformações relativas à dinâmica urbana, que a infância
e a juventude tornar-se-iam explícitas, visíveis aos olhos da sociedade.
Note-se, porém, que isto não significaria dotar tal fase da vida de um
estatuto jurídico protetivo, fato este que implicaria a tendência à universalização dos
discursos e práticas relativas ao menor. Pelo contrário, o período trabalhado é
pródigo em demonstrações de como a infância e a adolescência eram vivenciadas e
experimentadas de forma desigual pelas distintas classes sociais da República
nascente. Assim sendo, se a infância e a adolescência ganhariam destaque nos
círculos intelectuais de juristas e criminólogos no período, este não se deve ao
reconhecimento da infância, mas sim à projeção social de menores em situação
irregular em um período onde o debate intelectual se via profundamente influenciado
pela ideologia da defesa social. E, nisso, acreditamos que a violência vivenciada em
torno à infância e à adolescência, seja das práticas delitivas ou nos domínios da
repressão criminal, ela acaba por se deslocar de um caráter pessoal para assumir
uma feição cada vez mais estrutural, oculta, impessoal e imprevisível, para além do
arcabouço normativo, a se constituir em uma feição higienista, correcionista. Longe
de ser extirpada dos domínios da repressão à criminalidade infanto-juvenil, ela
acaba sendo deslocada, relegada a um modus operandi, marginal, onde
176
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
paulatinamente perderia a sua legalidade, mas não a sua legitimidade, como meio
de repressão aos males sociais do crime e da criminalidade.
E é nesta tensão que se situa o discurso jurídico e criminológico sobre o
menor infrator no início do século XX: na constituição de um espaço repressivo
periférico que se revela cada vez mais imoral e ilegal, porém recobrando sua
legitimidade ante a necessidade de defesa social contra os malefícios do crime e do
criminoso em formação.
4
A
CRIMINALIDADE
INFANTO-JUVENIL
ATRAVÉS
DO
PENSAMENTO
JURÍDICO E CRIMINOLÓGICO NO BRASIL (1890-1927)
Passadas estas considerações sobre o pensamento jurídico e criminológico
no mundo, bem como a análise sobre o processo de modernização da sociedade
brasileira, a se projetar sobre um outro sentimento em torno à infância e a
adolescência, especialmente a marginal, cumpre indagarmos sobre como juristas e
criminólogos brasileiros analisaram o problema da criminalidade infanto-juvenil na
transição do século XIX para o século XX. Para tanto, traçaremos um pequeno
panorama sobre como a questão da inimputabilidade se viu enfrentada pela
legislação penal do período trabalhado, isto é, desde a promulgação do Decreto
Executivo nº 847/1890, o Código Penal Republicano, até a entrada em vigor do
Decreto nº 17.943/1927, o Código de Menores.
Muito embora as legislações tenham historicamente trabalhado com a
menoridade como causa atenuante das penas a serem aplicadas quando do
cometimento de um delito, a demarcação de um espaço de inimputabilidade do
menor infrator constitui hipótese que se revelaria bastante recente na História do
Direito Penal. No Brasil, seguindo a tendência encontrada para as legislações penais
europeias, contrastando-se com o barbarismo das previsões legais encontradas nas
Ordenações Filipinas, o Código Penal Imperial, outorgado em 16 de dezembro de
1830, acabaria por se traduzir na primeira elaboração legislativa que demarcou, no
âmbito do direito penal pátrio, tal espaço de inimputabilidade. Por intermédio da
previsão contida no art. 10, § 1º, previa-se que os menores de quatorze anos não
seriam julgados criminosos.
177
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Note-se, porém, que a inimputabilidade do menor de 14 anos poderia ser
mitigada por força do disposto no art. 13 do Código Penal Imperial, o qual dispunha
que, caso tenham ele cometido algum delito, comprovado o discernimento, “deverão
ser recolhidos ás casas de correção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que
o recolhimento não exceda á idade de dezasete annos” (BRASIL, 1830).
Trata-se, neste sentido, de uma modificação substantiva no que tange ao
tratamento da questão jurídico-penal do menor infrator, haja vista que pela primeira
vez conceber-se-á um instituto de execução criminal, as “casas de correção”,
especificamente para esta parcela da população carcerária. Referida constatação,
porém, merece duas observações: a) o fundamento teórico para tal concepção da
pena a ser aplicada não está no intuito ressocializador, ou seja, delineado em
termos de uma prevenção especial positiva, algo que somente ganharia espaço nos
círculos jurídicos a partir do final do século XIX; e b) a previsão legal da criação das
“casas de correção” não se vê acompanhada, na prática, pela instalação imediata
deste modelo de aplicação da reprimenda penal, algo que apenas começaria a ser
delineado vinte anos após a promulgação do Código Penal Imperial.
Por sua vez, a promulgação do Decreto Executivo nº 847/1890, conhecido
como Código Penal Republicano, promoveria uma alteração no que tange ao modo
de se vislumbrar a culpabilidade e possibilidade de aplicação de uma reprimenda ao
menor infrator. Aqui, demarcar-se-á o espaço de inimputabilidade do menor infrator,
a se distinguir do Código Penal Imperial, pela fixação de três padrões etários,
conforme o disposto no art. 27 de mencionado Código. Assim sendo, existiriam três
idades a se verificar quando da possibilidade de uma sanção penal, reputando-se: a)
absolutamente inimputável o menor de 9 (nove) anos completos, pela inexistência
de capacidade de compreensão do comando proibitivo; b) relativamente inimputável
o maior de 9 (nove) anos e menor de (14) quatorze anos, desde que “obrarem sem
discernimento”; c) imputável, o maior de (14) anos (BRASIL, 1890).
Neste sentido, Tobias Barreto, professor da Faculdade de Direito do Recife,
considerado por muitos o precursor da Criminologia no Brasil, já manifestava, em
seu trabalho Menores e Loucos em Direito Criminal, publicado em 1886, a
necessidade de que o direito penal trabalhasse com uma faixa etária em que a
infância
fosse
reconhecida,
como
fase
a
se
demarcar
um
período
de
178
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
irresponsabilidade e inimputabilidade. A se afastar, portanto, da questão do
discernimento, típica da escola clássica, aduz o autor:
Porquanto os males, que sem duvida resultam de taxar-se, por meio da lei,
uma espécie de maioridade em matéria criminal, são altamente
sobrepujados pelos que resultariam do facto de entregar-se ao critério de
espíritos ignorantes e caprichosos a delicada apreciação da má-fé pueril
(BARRETO, 1886, p. 14).
E, ainda:
Em todo caso, antes correr o risco de ver passar impune, por força da lei,
quando commeta algum crime, o gymnasiasta de treze anos, que já fez os
seus versinhos e sustenta o seu namorico, do que se expôr ao perigo de ver
juízes estúpidos e malvados condemnarem uma creança de dez anos, que
tenha porventura feito uma arte, segundo a phrase da família, e isso tão
somente para dar pasto a uma vingança. (BARRETO, 1886, p. 15)
Tal preocupação, a se projetar sobre a concepção de um discurso jurídico
que cada vez mais restringe o espaço de plena e absoluta irresponsabilidade penal
à primeira infância, posto que somente aqui se poderia verificar a ausência de
discernimento, pode ser revelada pelo confronto entre o art. 13 do Código Penal
Imperial, já mencionado, e a restrição imposta pelo art. 30 do Código Penal
Republicano, o qual assim dispunha que os maiores de 09 (nove) anos e menores
de
14
(quatorze)
que
agissem
com
discernimento
seriam
recolhidos
“a
estabelecimentos disciplinares industriaes, pelo tempo que ao juiz parecer, comtanto
que o recolhimento não exceda á idade de 17 annos”. (BRASIL, 1890)
Há, portanto, a conformação de uma mudança paulatina, no período
trabalhado, em torno ao fundamento teórico da inimputabilidade. Nisto, porém,
acreditamos que, para além do aspecto teórico, o Código Penal da República
acabaria por manter, em sua essência, as práticas relativamente à inimputabilidade
do Código Penal do Império, haja vista que a criminalização de menores de 9 (nove)
anos, possível, em tese, sob a ótica da normativa anterior, constituiria já naquele
tempo uma hipótese esdrúxula, e estatisticamente pouco relevante. Ademais, para
além da questão legal enfrentada pelos juristas e criminólogos, verifica-se que a
criminalidade infanto-juvenil somente vem a se constituir num efetivo problema
179
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
social, isto é, de amplas repercussões no cenário político e social brasileiro, a partir
do século XX. E, neste ponto, as questões advindas do fim da escravidão e da
dinamização do espaço urbano, delineadas anteriormente, viriam a se refletir
decisivamente no discurso de tais autores.
Assim, diferenciando-se tão somente a partir dos dispositivos legais
supramencionados, o Direito Penal Republicano aplicar-se-ia de modo indistinto a
adultos e menores, fato este que perdurará até a entrada em vigor do Decreto nº
17.943/1927, o Código de Menores. Este, por sua vez, representa o primeiro esforço
teórico de superação da discussão acerca da imputabilidade para fixar-se na
elaboração
de
um
sistema
jurídico
com
meios
e
mecanismos próprios,
especialmente concebidos para o menor infrator.
Com efeito, o Capítulo VII do Código de Menores de 1927 viria a estabelecer
as bases para a conformação de um especial regramento penal voltado ao menor
delinquente. Por intermédio da previsão contida no art. 68 de mencionado Código, o
menor de 14 (quatorze) anos não poderia se submeter ao processo criminal,
demarcando-se, sobre esta faixa etária, o espaço da absoluta inimputabilidade.
Art. 68. O menor de 14 annos, indigitado autor ou cumplice de facto
qualificado crime ou contravenção, não será submettido a processo penal
de, espécie alguma; a autoridade competente tomará sómente as
informações precisas, registrando-as, sobre o facto punível e seus agentes,
o estado physico, mental e moral do menor, e a situação social, moral e
econômica dos paes ou tutor ou pessoa em cujo guarda viva. (BRASIL,
1927).
Relativamente aos menores que contassem que 14 (quatorze) a 18 (dezoito)
anos na data do fato delitivo, o Código de Menores de 1927 trazia a previsão, no art.
69, de um procedimento judicial específico, haja vista a sua condição de relativa
inimputabilidade. Com efeito, dispunha mencionado dispositivo:
Art. 69. O menor indigitado autor ou cumplice de facto qualificado crime ou
Contravenção, que contar mais de 14 annos e menos de 18, será
submettido a processo especial, tomando, ao mesmo tempo, a autoridade
competente as precisas informações, a respeito do estado physico, mental e
moral delle, e da situação social, moral e econômica dos paes, tutor ou
pessoa incumbida de sua guarda. (BRASIL, 1927)
180
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Note-se, com relação a ambos os dispositivos, isto é, com relação à
concepção jurídica a reinar sob o absolutamente e o relativamente inimputável, a
influência da Escola Positivista e do pensamento criminológico, notadamente no que
tange à compreensão do delito como fenômeno não decorrente de uma livre vontade
do agente, mas sim em razão de um comportamento patológico. Este, por sua vez,
explicar-se-á em termos de determinismos e condicionantes sociais, morais e
econômicos, a se projetar sobre o estado “mental e moral” do menor. Assim,
distinguindo-se às razões trazidas pela Escola Clássica, mais presentes quando da
elaboração do Código Imperial de 1830 e do Código Republicano de 1890, o Código
de Menores de 1927 acabaria por consagrar uma perspectiva não propriamente
retributiva, mas sim clínica, explicada em termos cientificistas de um “tratamento
apropriado”, uma correção ortopédica de uma alma perigosa, pervertida.
Contudo, embora se vislumbre a existência de uma preocupação para com a
pessoa do menor a se afirmar em um sentimento outro relativamente o seu estágio
de desenvolvimento psíquico, a análise detida de referida legislação faz ressaltar
que o desígnio de defesa social certamente teria de se sobrepor à consideração de
sua particular condição. A este respeito, convém ressaltar os termos do art. 71 do
Código, a partir do qual extrai-se que o cometimento de um crime considerado
grave, conjugado à análise de uma personalidade doentia do menor infrator, teria o
condão de permitir ao Estado a sanção penal junto a estabelecimento especialmente
criado para tal finalidade: o reformatório. Note-se, ademais, que a ausência de tal
estabelecimento permitiria o cumprimento de referida internação inclusive em
prisões comuns, desde que houvesse a separação dos menores delinquentes dos
demais condenados, adultos.
Nesta ordem de ideias, há de se reconhecer, porém, que o recolhimento aos
estabelecimentos penais destinados a adultos revelar-se-ia hipótese que, ao menos
no que tange à previsão legal, deveria ser utilizada excepcionalmente pelo Poder
Público. Trata-se, portanto, de compromisso louvável com a superação de um
problema, acreditamos, bastante recorrente à época na aplicação da medida de
internamento, constituindo um compromisso legal com a superação de inúmeros
problemas sociais advindos da promiscuidade entre os institutos penais destinados a
menores e adultos. Muito embora a prática judicial tenha se mantido mormente
presa a esfera da punitividade indistinta entre tais grupos, conforme restará
181
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
analisado no próximo tópico, não há como negar, a partir da mudança normativa,
uma mudança em curso na concepção de outro direito, não necessariamente
sancionatório.
Assim sendo, acreditamos que, em razão das discussões teóricas
empreendidas no campo do direito penal e da criminologia na transição do século
XIX para o século XX, é possível notar a tendência de paulatina modificação no
tratamento da questão penal em torno ao menor delinquente, a qual se vê
distanciada, em alguma medida, do caráter sancionador do direito penal, afirmandose a necessidade de um tratamento menos punitivo e mais clínico, disciplinar e
educativo.
5
A
REPRESENTAÇÃO
DA
DELINQUENCIA
INFANTO-JUVENIL
PELO
DISCURSO CRIMINOLÓGICO NO BRASIL (1890-1927)
O discurso jurídico da defesa social e os estudos da criminologia
encontraram terreno fértil na América Latina, destinando-se a uma elite cultural,
letrada, de formação bacharelesca e, em menor medida, médica, cujos padrões
culturais e estéticos se viam profundamente influenciados pelo ambiente da Belle
Époque. Trata-se, portanto, de um discurso fora do lugar, isto é, de uma apropriação
de um conjunto de formulações teóricas e científicas que tinham por referencial a
realidade experimentada na Europa pós-Revolução Industrial. Bastante distinta era,
portanto, a realidade social e cultural vivenciada nos países de economias
periféricas, como o caso da América Latina.
Esta é a realidade experimentada pelos círculos de intelectuais de países
periféricos, que passaram a se influenciar, no campo do Direito Penal, pelos
discursos supracitados. Deste modo, no Brasil, tal como nos demais países da
América meridional,
[...] as palavras de Lombroso, Ferri ou Garofalo eram sagradas para os
latino-americanos e tinham de ser assimiladas sem que se levasse em
conta que a história da Itália, e portanto de sua delinquência, era muito
distinta da nossa. Mas precisamente, era porque persistia a recusa em
aceitar nossa história que se voltava o olhar para o europeu. Por sua vez, o
caráter dependente dessas sociedades contribuía para a recusa de nossa
própria história. (OLMO, 2004, p. 161)
182
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Feitas estas considerações sobre o ideário burguês que permeia a
elaboração do discurso jurídico e criminológico na América Latina, cumpre observar,
porém, que, especificamente no que tange aos intelectuais brasileiros, um aspecto
que fora tomado como marginal no discurso destes “cientistas sociais” europeus
acabaria por ganhar relevo na discussão aqui travada. Trata-se da questão racial,
que, influenciada por nossa formação social escravista, mereceria um destaque no
pensamento de tais autores.
Conforme exposto anteriormente, o processo de abolição da escravatura
revelaria, mais que a libertação dos ex-cativos, o reconhecimento social de uma
alteridade, expressa na cultura negra e ameríndia. Encarada sob o prisma racialista,
isto é, compreendendo-se a mistura das raças como fator de degeneração social do
brasileiro, o discurso criminológico dialoga profundamente com o pensamento
cientificista, acreditando-se que, hereditariamente, pela raça, conformar-se-ia uma
vocação, uma tendência criminosa.
Há que se destacar, contudo, que a questão a articulação entre a raça e a
criminalidade seria enfrentada pelos autores não apenas pelo aspecto naturalístico,
psicológico e biologizante, a denotar uma influência irrefletida do pensamento de
Cesare Lombroso. Pelo contrário, questões atinentes ao processo de socialização
do criminoso são levantadas, as quais, transpostas para o universo brasileiro,
denotariam um déficit de aquisição dos chamados “comportamentos morais”. Clovis
Bevilaqua (1859-1944), jurista, filósofo, historiador, fortemente influenciado por
Gabriel Tarde, vem a ponderar o peso de tais condicionantes para afirmar uma igual
preponderância de fatores sociais, ausentes e/ou presentes quando da formação de
uma vontade criminosa:
As conclusões que se podem tirar destas ponderações resumem-se no
seguinte: as duas raças inferiores (negra e cabocla) contribuem muito mais
poderosamente para a criminalidade que os aryanos, creio eu,
principalmente, por defeito de educação e pelo impulso do alcoolismo,
porquanto grande numero dos crimes violentes tem sua origem nos
sambas, si não são durante elles praticados. E por educação entendo eu
aqui aquella que se recebe no lar e no convívio social, ligada à inclinação
recebida hereditariamente (BEVILAQUA, 1896, p. 94).
O discurso criminológico, neste sentido, para além da expectativa de
compreensão do delito e do delinquente, cumpre com um papel legitimador da
183
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
repressão punitiva estatal, através da constituição de estratégias de marginalização
de pessoas e práticas contra o grupo que, por excelência, na realidade social
brasileira, é alocado na posição de alteridade: o negro. Neste sentido, poderíamos
dizer que a diferença e o preconceito raciais contra tal grupo não se vêem revelados,
mas sim constituídos pelo próprio discurso, que, simultaneamente, reconhece e cria
o delinquente, associando-o mormente à figura dos afrodescendentes.
Assim, no processo de seleção e criminalização de grupos marginais, a
política repressiva levada a cabo pelo Estado brasileiro denota a estigmatização de
figuras típicas do imaginário popular de uma sociedade cada vez mais segmentada,
a lidar com seus preconceitos. Dentre estas, encontrar-se-ia o menor infrator, o qual
carregaria uma série de caracteres que se lhe atribuiriam pelo preconceito, em
termos de uma herança biológica, psíquica e social, afirmando-se seu caráter
degenerado, débil, sendo, pois, propenso a uma vida de delinquência. O advogado e
criminólogo Evaristo de Moraes (1871-1939), em sua obra Criminalidade da Infância
e da Adolescência, bem o relata (1916, p. 6-7):
O filho de um alcoólico e de uma prostituta syphilitica pode não apresentar
manifestações syphiliticas, nem mostrar tendência ou predisposição para o
alcoolismo; mas, quase necessariamente, será uma criatura enferma, fraca
de corpo, débil de espírito, menos preparada para a lucta pela vida,
requerendo cuidados especiaes de tratamento e de educação. A criança
nascida de paes debilitados por excesso de trabalho e por falta de
alimentação sufficiente – quaes são os operários, explorados pelo
ganancioso industrialismo do nosso tempo – póde ter o aspecto commum
de todas as crianças, parecendo, aos olhos dos inexpertos, sadia e capaz
de affrontar as agruras da existência; mas, provavelmente, desde os
primeiros tempos do seu contacto com o torvelinho social, se mostrará
pouco apta, inferior aos da sua idade, difficil de educar, propensa à
ociosidade, espírito propicio às suggestões dos viciosos e criminosos.
E a cidade moderna sob a qual se constitui este espaço de produção social
da
diferença,
do
preconceito,
revela-se
extramente
adequada,
por
suas
contradições, à afirmação de um mal-estar em torno à criminalidade infanto-juvenil.
Cândido Motta (1870-1942), advogado e professor da Faculdade de Direito de São
Paulo, de modo um tanto quanto saudosista dos espaços que se constituíam em
torno à vida agrária, faz o seguinte relato da criminalidade infanto-juvenil (1909, p.
31):
184
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
No interior, onde a vida é mais modesta, os costumes mais simples e o
trabalho mais pesado, a criminalidade infantil é relativamente pequena,
sendo de notar que raras são as prisões de menores por motivo de
vadiagem, embriaguez ou mendicidade, ao passo que elas se avultam
quando se trata de homicídios, ferimentos e pequenos furtos. Na capital dáse o contrário; a vida é mais cara, os prazeres inúmeros, as seduções mais
empolgantes, o trabalho mais leve, os maus exemplos e as más
companhias mais constantes, de forma que ali predominam a gatunagem, a
embriaguez, a mendicidade, as rixas, etc.
Do mesmo modo, em 1918, Aurelino Leal (1877-1924), então ocupando o
cargo de Chefe de Polícia do Distrito Federal, sugere a articulação entre a ocupação
desordenada do espaço urbano e a criminalidade praticada pelos menores
infratores. Senão vejamos:
Quem quer que ande pelas ruas da cidade pôde ser testemunha de que
possuímos muitas centenas de menores desoccupados. praticando a
vadiagem que começa innocente, mas que, para elles, sem paes ou com
pães que os não educam, não é sinão o aperitivo, o convite suggestivo, a
provocação fascinante á vadiagem profissional, a grande pepineira dos
criminosos' e das prisões (LEAL, 1918, p. 15-16).
Estes relatos são bastante sugestivos da situação vivenciada relativamente
à criminalidade não apenas pelas cidades do Rio de Janeiro ou São Paulo no início
do século XX, mas por praticamente todas as grandes cidades brasileiras no mesmo
período. O grande número de menores a dominar as ruas, filhos de proletários ou
submetidos a uma realidade familiar desestruturada, a se destacarem na época os
problemas com o alcoolismo, inexistindo escolas públicas, sem um ofício, envoltos
em um ambiente extremamente promíscuo, onde os limites entre o universo adulto e
o infantil praticamente inexistem, bem como entre o lícito e o ilícito. Sendo assim,
neste ambiente oculto pelo discurso oficial, do progresso e da modernidade, dá-se a
tônica das práticas ilícitas que, na incômoda ociosidade, viriam eles a cometer.
Desta feita, a infância marginal se constitui em fator de preocupação das
autoridades, tendo sido os “delitos do ócio”, contrários à ética capitalista do trabalho
que se impunha, os mais combatidos. De acordo com Marco Antônio Cabral dos
Santos (2010, p. 214), as prisões de menores na cidade de São Paulo, entre os
anos de 1904 e 1906, tiveram motivo, em 40% dos casos, pela prática de
“desordens”, em 20% por “vadiagem”, e 17%, por “embriaguez”. Do mesmo modo,
185
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
no que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro, enquanto a repressão à
criminalidade adulta se voltava principalmente contra a figura dos “capoeiras”,
representando este 60% da população carcerária, a repressão ao menor infrator
recaía, de modo significativo, sob aquele que praticava a vadiagem, a mendicância e
pequenos delitos de gatunagem.
A se projetar para além das ruas, a mesma promiscuidade experimentada no
que tange à vida adulta e vida infantil na sociedade marginal das grandes cidades,
ao longo da Primeira República, poderia ser verificada dentro do sistema prisional,
conforme o relato dos penitenciaristas e juristas da época. Trata-se de um universo
de indistinções. E vivenciada em torno a múltiplos aspectos.
Ante o universo adulto, a criança e o adolescente se colocavam em um
mesmo patamar, submetendo-se às mesmas condições carcerárias. A mulher, frente
ao homem, partilhava do mesmo espaço na prisão. Neste sentido, exemplo
elucidativo desta inseparabilidade entre tais universos é a Colônia Correcional de
Dois Rios, situada no Rio de Janeiro. Extremamente criticada por juristas, médicos e
políticos da República Velha, este estabelecimento revelaria, conforme o relato de
RIZZINI, “uma curiosa capacidade de sobreviver às tentativas de extinção” (RIZZINI,
2011, p. 229). Embora formalmente extinta pela Câmara de Deputados, em 1914,
uma década depois ele ainda continuaria em pleno funcionamento, fomentando
críticas ferrenhas, como as elaboradas por Evaristo de Moraes (1916, p. 33):
[A Colônia Correcional de Dois Rios] é um estabelecimento inqualificável,
mantido sob absurda direção da polícia, e no qual se misturam, em
inevitável promiscuidade: condenados adultos, de ambos os sexos,
menores também condenados; outros por ilegal medida de correção familiar
Do mesmo modo, observa-se o surgimento de primeiras propostas de
individualização do tratamento penal, especificamente no que concerne ao menor
infrator, modificando-se as suas práticas punitivas, tal como aquela revelada por
Aurelino Leal (1918, p. 16):
Forçado por esta contingência, estabeleci na Colônia de Dous Rios,
inteiramente separada dos condemnados, sem a disciplina délies, mas com
o caracter educativo que alli é possível manter, uma secção de menores,
186
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ocupada, em geral, por aquelles cuja internação me é solicitada pelos
próprios progenitores ou outros representantes legaes.
Note-se, quanto ao último relato, a indistinção entre a prática do
enclausuramento, meio da política criminal, e a prática do internamento, instrumento
das políticas assistenciais. Na falta de escolas e creches, a se confrontar com a
comoção social diante do grande número de menores em situação irregular, o
estabelecimento penal se destina a todos, isto é, aos órfãos, menores abandonados
e jovens infratores, sendo utilizado inclusive pelos próprios pais no internamento da
infância “moralmente desassistida”. Nas franjas do sistema penal, portanto, é que se
constituem as instituições de assistência e internamento aos jovens carentes,
marginais.
Disto, a se demonstrar pelo discurso dos autores analisados, as primeiras
décadas do século XX acabam por revelar o mal-estar com a situação do menor,
revelando-se, ainda que de maneira tímida, propostas de modificação do quadro
vigente. Tratar-se-ia, portanto, da elaboração de um meio alternativo de
individualização da sanção penal, de distinguir a situação vivenciada por cada um
dos tipos a se constituírem posteriormente na figura do menor em situação irregular.
6 CONCLUSÃO
Na análise do discurso jurídico e criminológico, pelos argumentos trazidos
em especial sobre o menor infrator no Brasil, verificamos que a transição do século
XIX para o século XX denota, para usar a célebre terminologia cunhada por Ariès, a
paulatina elaboração de um “sentimento em torno à infância”, na gradativa
formulação de um discurso com caracteres próprios, distintos ao universo
delinquente adulto, bem como na reversão de práticas que antes desconheciam e
desconsideravam sua particular condição.
Há de se notar, neste sentido, que a elaboração deste mesmo discurso se
pauta não pela afirmação de um espectro não violento, isto é, calcado na proteção
do menor em situação irregular, mas sim, e fundamentalmente, pela constituição sob
a mesma lógica de uma pauta repressiva de uma outra tecnologia punitiva, onde o
desígnio de defesa social se sobrepõe ao mal-estar em torno à situação do menor.
Nisto, em se afirmando o desejo de correção, educação e formação, o discurso
187
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
protetivo vem a revelar seus objetivos não manifestos, quais sejam a constituição e
o enfrentamento da marginalidade social de certos grupos, como o menor infrator,
por outros meios.
Neste particular, a elaboração de um espaço próprio à expressão desta
outra tecnologia punitiva, qual seja a casa de correção, o reformatório, é bem
indicativo do conflito que se estabelece entre a prática e a norma, vez que embora o
recurso à violência contra o menor se vislumbre legítimo, no desejo da sociedade
expurgar seus elementos viciosos, há um deslocamento desta prática para além da
sociedade, muito além de sua sensibilidade, haja vista o paulatino reconhecimento
de sua imoralidade, sua ilegalidade.
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190
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
INQUÉRITO POLICIAL COMO UM INSTRUMENTO INQUISITIVO NO
SISTEMA PROCESSUAL PENAL ACUSATÓRIO
Eduardo Henrique Knesebeck
Alexandre Knopfholz1
1
Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), Pós-Graduação em
Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado em Direito Empresarial e
Cidadania pelo UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é professor horista da
disciplina de Processo Penal, nos cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área
de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: direito processual penal e direito penal.
191
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
192
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
O presente trabalho objetiva demonstrar a incompatibilidade que existe entre o
instituto do inquérito policial e a ordem constitucional vigente, na medida em que
esta determina um sistema acusatório de persecução criminal e aquele desenvolvese à égide do sistema inquisitivo. São sistemáticas completamente antagônicas
entre si, o que acaba por gerar insegurança jurídica e até mesmo inconsistências
entre diferentes decisões judiciais que tratem de assuntos semelhantes. Assim, é
necessário estabelecer premissas principiológicas claras para a consecução do
objetivo último da justiça criminal, que é a adequação da pena à culpabilidade do
agente.
Palavras-chave: Sistema Processual Penal, Constituição Federal, Código de
Processo Penal, Investigação Criminal Preliminar, Inquérito Policial.
193
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
The objective of this paperwork is to demonstrate the incompatibilities between the
institute of Inquérito Policial and the present constitutional order, while this
determinates an accusational system of criminal prosecution and that one develops
under an inquisitional system. Those are completely antagonist methods, which
generates juridical unsafe and even inconsistencies between different court decisions
about similar cases. Therefore, is imperative to establish clear premises about
systemic principles in order to achieve the very objective of the criminal justice, that is
to adequate the penalty to the agent’s concrete culpability
Keywords: Criminal Procedure System, Federal Constitution, Criminal Procedure
Statute, Preliminary Criminal Investigation, Inquérito Policial
194
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho elegeu como campo de estudo o Direito Processual Penal, sob
uma ótica Constitucional. O problema identificado é a existência de um instituto
jurídico, denominado inquérito policial, que guarda característica de cunho
inquisitivo, inserido numa lógica acusatória.
Assim, pretende-se estudar os sistemas processuais penais existentes,
desenhando suas respectivas evoluções históricas, suas características mais
elementares e a forma como cada um se apresenta no Ordenamento Jurídico
Brasileiro.
Após, a intenção é de estudar a investigação criminal preliminar. Estudar-se-á
as suas finalidades e de que forma se relacionam com os sistemas processuais
penais.
Então,
procurar-se-á
estudar
o
inquérito
policial
propriamente
dito,
identificando suas características elementares. Da mesma forma, identificar-se-á a
presença de ideais inquisitivos no seu processamento.
Por fim, perquirir-se-á a constitucionalidade do inquérito policial, ou de alguns
de seus elementos, para então analisar a proposta do referido instituto no Projeto de
Lei do Senado nº 156/2009, cujo objeto é a substituição do Código de Processo
Penal vigente.
A finalidade deste estudo é entender se há compatibilidade entre o inquérito
policial
e
a
Ordem
Constitucional
vigente,
no
que
consistem
eventuais
incompatibilidades e, por fim, verificar se a proposta de substituição de Código de
Processo Penal tem o condão de superar as eventuais incompatibilidades
encontradas.
Para tanto, utilizar-se-á do método dedutivo de pesquisa, tendo por base
doutrina nacional e internacional.
2 INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PRELIMINAR
Antes de passar à análise do procedimento administrativo denominado
Inquérito Policial, cabem breves considerações a fazer do gênero investigação
criminal preliminar, de que o Inquérito Policial é espécie.
195
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Estudar-se-á nesse capítulo as finalidades da investigação criminal, bem
como as modalidades clássicas de seu desenvolvimento, aliadas cada uma a um
sistema processual penal.
2.1 FINALIDADES DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PRELIMINAR
É necessário salientar que a investigação criminal preliminar possui dupla
finalidade. A finalidade material, destinada a apurar as circunstâncias de um fato que
origina a ruptura da Ordem Jurídica, e a finalidade material, que se preocupa em
apurar a existência de justa causa, possibilitando a instalação de uma relação
jurídica processual.
2.1.1 Material – Apuração das Circunstâncias do Crime
Sustenta-se essa classificação no entendimento de que a existência de um
fato supostamente criminoso origina uma relação entre o Estado, polo passivo
mediato do crime, e o autor. Assim, uma atividade estatal faz-se necessária para
reestabelecer o equilíbrio jurídico rompido pelo crime.
Em atendimento ao mandamento da legalidade, por óbvio que as maneiras de
que se arma o Estado para efetivar o seu direito de punir são descritas em Normas,
as quais vinculam a atividade estatal.
No Brasil, essa atividade consubstancia-se em dois momentos distintos, a
investigação criminal preliminar e a ação penal, que, somadas, configuram o
processo penal. Esta fica a cargo do Poder Judiciário e aquela, via de regra, da
Polícia Judiciária, por meio do Inquérito Policial:
Atualmente, no Brasil, tal atividade persecutório penal inicial para desvendar
a autoria e comprovar a materialidade dos ilícitos penais é prevista
constitucionalmente como de atribuição, via de regra, das Polícias
Judiciárias, Polícia Civil e Polícia Federal, através de um procedimento
escrito e formal denominado inquérito policial o qual é presidido por uma
autoridade civil, bacharel em Direito, chamado delegado de Polícia.
(DAURA, 2007, p. 67.)
Tratando unicamente da investigação criminal que corre no âmbito da Polícia
Judiciária, Coriolano Nogueira Cobra, em cuja homenagem a Academia de Polícia
196
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
de São Paulo foi nomeada, afirma que a investigação é fruto da busca por
elementos que desenhem como se deu o fato delituoso.
Podemos, já agora, portanto, definir a investigação policial como sendo o
trabalho executado, normalmente, pelo investigador de polícia, procurando
esclarecer circunstâncias e detalhes de fatos criminosos, com a
preocupação de identificar pessoas com eles relacionadas.
A propósito da expressão “investigação policial”, devemos deixar assinalado
que ela é empregada, também e com certa frequência, num outro sentido.
Na prática e em linguagem policial e forense, a expressão, numa acepção
mais ampla, pode significar Inquérito Policial, porque este, na realidade,
nada mais é do que uma investigação policial. (COBRA, 1987, p. 7.)
Saliente-se que o autor faz referência ao “investigador de polícia” e não ao
Delegado de Polícia ou à autoridade policial. Assim, não é demais presumir que esta
investigação a que se refere não se trata de uma investigação formal, deitada a
autos, com previsão e disciplina legal.
É razoável entender que o autor quis fazer menção àquela averiguação de
fatos destinada à obtenção de explicações insipientes e preliminares acerca do fato
supostamente delituoso. Ou seja, uma investigação com a finalidade material de
meramente levantar dados e identificar pessoas, levando a uma explicação mínima
à sociedade de como os eventos se deram.
Entretanto, a maior parcela da doutrina entende que a investigação criminal
preliminar tem outra finalidade, mais sedimentada, mais estudada e, por isso
mesmo, em posição de prevalência: a finalidade formal da investigação criminal
preliminar.
2.1.2 Formal – Formação da Justa Causa
Em poucas linhas, é necessário entender que o processo penal compartilha
com o processo civil as condições genéricas da ação naquela disciplina:
possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimidade ad causam.
Entretanto, em se tratando o processo penal de uma atividade estatal que, ao
cabo, pode potencialmente aplicar uma punição e restringir a liberdade de um
cidadão, fez-se necessário construir mais uma condição para o início da ação penal:
Embora parte da doutrina, sustentada pelos que propagam a concepção
tradicional das condições da ação penal, inclua a justa causa como
componente do interesse de agir, mais acertado é estabelecê-la como uma
197
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
condição autônoma, a quarta da ação penal, postura que pode ser
visualizada, inclusive, nos ensinos de Afrânio Silva Jardim que, admitindo as
mesmas condições que disciplinam o direito processual civil (ainda que com
abordagem conceitual diversa), na busca por uma maior aproximação com
o direito processual penal […] a apresenta como uma condição autônoma.
Postando-se segundo o entendimento de Breda, que contempla a justa
causa penal na demonstração dos indícios de autoria e na materialidade de
um fato supostamente criminoso, encontra-se Plínio de Oliveira Correa, que
visualiza na justa causa a condição fundamental para o exercício da ação
penal, a qual somente pode se revelar na prova indubitável de um fato
hipoteticamente delituoso, e nos indícios idôneos de sua autoria. (STASIAK,
2004, p. 192.)
Ou seja, para que seja iniciada uma relação jurídica processual criminal é
necessário que o titular da ação penal, qualquer que seja, deva estar municiado com
elementos probatórios da existência do fato e indiciários da respectiva autoria.
Esse binômio materialidade/autoria que é o objeto da investigação criminal
preliminar, enquanto observada sua finalidade formal, que é a formação da justa
causa.
Assim, é perfeitamente possível afirmar que a investigação criminal preliminar
tem autonomia em relação ao processo penal: “O processo penal, em teoria, pode
prescindir da investigação preliminar. Mas a investigação preliminar existe para o
processo. Não obstante, pode não existir o processo e sim a investigação
preliminar”. (LOPES JUNIOR, 2003, p. 40.)
Isto porque, os três planos da autonomia, sujeitos, objeto e atos (Ibid., p.
41.)), são distintos nas duas fases da persecução criminal. Portanto, é necessário
que distintos sejam, também, os institutos de que se valem. É por isso que pode-se
considerar a investigação criminal preliminar um elemento intermediário entre o fato
delituoso (traduzido em linguagem competente por meio da notitia criminis) e a
instalação do processo:
A investigação preliminar pode ser considerada como um inter, uma
situação intermediária que serve de elo de ligação entre a notitia criminis e o
processo penal. Valorativamente, possibilita, com a investigação, a
transição entre a mera possibilidade (notícia-crime) para uma situação de
verossimilitude (imputação/indiciamente) e posterior probabilidade (indícios
racionais), necessária para adoção de medidas cautelares e para receber a
ação penal. Finalmente, na sentença é alcançado um juízo de certeza (para
condenação) ou mantido o grau anterior de probabilidade, que não autoriza
um juízo condenatório. Essa situação escalonada é uma característica do
processo penal, mais ainda porque não é necessariamente de trajetória fixa
(progressiva), senão que pode ser regressiva. […] (LOPES JUNIOR, 2003,
p. 40.)
198
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Assim, pode-se entender que a relação entre Estado e possível delinquente
só é possível se houverem os requisitos mínimos para que se possa acionar a
máquina judiciária. Em outras palavras, se a relação que antes existia entre o
Estado-juiz e o sujeito ativo da infração penal era uma mera possibilidade
(considerando a inafastabilidade da Jurisdição), a instrução preliminar vem
aproximar esses dois polos e conferir concretude a essa expectativa.
O conteúdo dos atos de averiguação e comprovação do Procedimento
Preliminar é bem um direito constitutivo da relação entre o Estado, detentor
dos direitos de acusar e punir, com o imputado. São exatamente os atos de
averiguação que, direcionados para tomar em consideração que um
determinado fato se revista das características de um delito, servem de
base para a formação da relação entre o Estado e o imputado.
(MENDRONI, 2002, p. 67.)
Assim, pode-se definir a investigação criminal como a atividade, estatal ou
não, que destina-se a uma dupla finalidade: apurar as circunstâncias em que se
deram o fato supostamente criminoso e reunir os elementos formados da justa
causa para o exercício da ação penal.
2.2 INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PRELIMINAR ACUSATÓRIA
Há, ao redor do mundo, exemplos de Estados que utilizam-se de valores
acusatórios para desenvolver a sua atividade investigativa. Não que sejam mais ou
menos eficientes do que a investigação inquisitorial, mas admitem maior simetria cm
a fase judicial do processo penal. Vale relembrar que admitir que exista um sistema
processual penal misto, como citado anteriormente, de per si, nega a existência de
um sistema acusatório.
Assim, é mandamental que os princípios e características acusatórias façamse presentes em todo o curso da persecução criminal, tanto na investigação
preliminar quanto na ação penal.
É o que acontece na atividade investigativa alemã, “na qual, a teor do art. 201
da legislação alemã, o acusado terá direito a produzir provas para evitar a
instauração da ação penal propriamente dita” (CHOUKR, 2001, p. 60.).
Parece que os países de tradição germânica adotaram, em volume, a
estrutura acusatória de investigação criminal. É o caso da Áustria:
199
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
No sistema austríaco, como expressão máxima do modelo acusatório, o
Código de Processo Penal prevê que o procurador tem poderes expressos
de condução requisição e valoração do acervo, sendo possibilitada à
autoridade de segurança a realização de investigações sobre os crimes e
delitos de que tenha conhecimento. Deve esta última reportar-se
imediatamente ao titular da ação, informando-lhe as investigações
produzidas.
Não há um juiz instrutor para a maior parte dos casos, restando a estrutura
basicamente entre nós vigente. Existe, tal como no modelo francês, um
órgão de filtragem entre as etapas pré-processual e jurisdicional. (Ibid., p.
71.)
E da Bélgica:
Já a sala de acusação é uma das salas da Corte de Apelo, composta por
três membros, para a qual é enviado, pelo Ministério Público, e não pelo juiz
instrutor, o conteúdo da investigação prévia, que será submetido a
contraditório envolvendo o investigado e o interessado civil, se houver. O
julgamento se dá a portas fechadas e o debate não tratará de outra coisa
senão a sorte da ação penal pública, que poderá ser, basicamente, o
arquivamento, enviando-se portanto o caso para a Cour d’Asises – artigo
223 do Código de Processo Penal belga. (CHOUKR, loc. cit.)
E os sistemas processuais penais edificados à lógica da Common Law não
poderiam ter orientação distinta, haja vista que foi nesse macrossistema que
observou-se a gênese do processo penal acusatório como é conhecido hoje.
É o que ocorre na Inglaterra:
Assim, a persecução penal acaba por ser utilizada na prática pelos
funcionários da polícia, sendo que mesmo esta muitas vezes não apresenta
configuração estatal, acabando por ser exercida pela sociedade civilmente
organizada, ou individualmente pelo ofendido em seu bem jurídico
penalmente tutelado. (CHOUKR, loc. cit.)
E, por fim, a epopeia da investigação criminal preliminar acusatória, nos
Estados Unidos:
Já no modelo estadunidense, onde superadas as divergências legislativas
dos Estados membros no tocante à matéria como fruto máximo de um
modelo federativo levado às últimas consequências, bem como os
eventuais conflitos entre os sistemas estaduais e o modelo federal contido
no Federal Rules os Criminal Prosecution, pode-se afirmar, como já fizera
Fanchiotti, que todo o trabalho realizado pela “polícia judiciária” tem como
destinatário o órgão equivalente ao Ministério Público adotado.
Não há controle judicial valorativo no correr da fase investigativa, e
tampouco existirá quando do “arquivamento” do caso. Ele ocorrerá sim, mas
após o encerramento da coleta de informações e antes do início da ação
penal; na hipótese em que se acreditam presentes os elementos
necessários para sustentá-la, pela chamada “audiência preliminar” ou no
grand jury, quando se aferirá a existência ou não da probable cause, sem a
qual não se exercitará a ação penal. (CHOUKR, 2001, p. 72.)
200
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Assim, é possível identificar duas características comuns na investigação
criminal preliminar acusatório nos vários países que a adotam. A participação do
ofendido e a abstenção jurisdicional nesta fase, limitando-se a atuação eventual e
pontual:
Pode-se afirmar que o sistema acima exposto identifica as maiores
aspirações reformistas, calcadas no ideal acusatório, e retiram desta cena o
julgador, para conferir-lhe um papel garantidor, atuando em incidentes
jurisdicionalizados dentro da investigação. (Ibid., p. 73.)
Ou seja, “a entrada em cena de um ‘julgador’ nessa etapa quebraria a
repartição de papeis preconizada na trilogia acusatória.” (Ibid., p. 75.)
Analisar-se-á, adiante, a logística inquisitiva de investigação criminal
preliminar no Ordenamento Jurídico brasileiro, consubstanciada no Inquérito Policial.
3 INQUÉRITO POLICIAL
Estabelecidas as proposições maiores (sistemas processuais penais) e a
proposição menor (investigação criminal preliminar), é chegado o momento de
analisar tão somente a investigação criminal preliminar que corre inserida em uma
lógica inquisitória, isso na Legislação Processual Penal brasileira: o Inquérito
Policial.
3.1 HISTÓRICO DO INQUÉRITO POLICIAL NO BRASIL
A atividade policial foi legalmente constituída no Brasil em 1842, por
intermédio do Regulamento número 120 de 31 de janeiro daquele ano.(ALMEIDA,
1973, p. 64.)
Entretanto, o procedimento que até hoje perdura com o nomen juri de
Inquérito Policial só veio a ser regulamentado no Segundo Império:
A conceituação do inquérito policial veio com a Lei 2.033, de 20.09.1871,
que em seu art. 42 dizia: “O inquérito policial consiste em todas as
diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas
circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a
instrumento escrito”. (DAURA, 2007, p. 100.)
201
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Ou seja, de maneira geral, o Inquérito Policial já nasce com as feições que
ainda hoje mantém. De certa forma, o procedimento inquisitorial policial ainda o é
hoje tal e qual o era em sua gênese.
Assim, porque interessante aos objetivos do Estado Novo getulista, foi
mantido em sua essência no Código de Processo Penal de 1941:
Unificada a legislação processual penal com a Constituição de 1934 e com
o advento da Carta Constitucional de 1937, providenciou-se a promulgação
do atual Código de Processo Penal (Decreto-lei nº 3.689, de 30-10-1941),
que entrou em vigor em 1º-1-1942. Foi promulgado também o Decreto-lei nº
3.931 de 11-12-1941, com o nome de Lei de Introdução ao Código de
Processo Penal, a fim de adaptar ao novo estatuto processual os processos
pendentes. O novo Código manteve o inquérito policial e o arcaico
procedimento escrito e burocrático […] (MIRABETE, 2005, p. 40.)
E desde então, a única mudança significativa que ocorreu no âmbito do
inquérito policial na legislação foi a alteração do verbete “jurisdições” pela expressão
“circunscrições” no artigo 4º do Código de Processo Penal. Essa mudança evidencia
a tendência pós Constituição de 1988 de execrar o Poder Judiciário da investigação
criminal preliminar.
A seguir, discorrer-se-á acerca das características do inquérito policial para,
então relacioná-las aos ideais inquisitoriais.
3.2 CARACTERÍSTICAS DO INQUÉRITO POLICIAL
Para perquirir acerca das características do procedimento denominado
inquérito policial, o presente estudo utiliza-se da seguinte relação: “A doutrina cita as
seguintes características do inquérito policial: é obrigatório (art. 5º, I); deve ter a
forma escrita (art. 9º); é dispensável (art. 12); é inquisitivo (art. 14) indisponível (art.
17); e sigiloso (art. 20, caput)”. (SILVA; FREITAS, 2012, p. 30.)
Primeiramente, a necessária ressalva a respeito do termo “obrigatório”,
relacionado ao inquérito policial. É aqui que se faz útil a distinção entre finalidade
material e formal da investigação criminal preliminar.
Em se tratando da finalidade formal da instrução antejudicial, o inquérito é
dispensável. Se, de qualquer outro modo, puder o titular da ação penal intentá-la, aí
do inquérito policial pode-se prescindir, quanto a isto, não há dúvidas.
202
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Entretanto, ao tomar-se a finalidade material da investigação criminal, aí
temos que o inquérito policial pode ser obrigatório para a Autoridade Policial,
dependendo do ponto de vista. Explica-se. A finalidade material da investigação
criminal preliminar, como visto, é a apuração das circunstâncias de um crime, porque
a sociedade espera vê-lo elucidado. Daí a ver o seu autor processado criminalmente
há a apuração da justa causa.
Entretanto, o Estado tem o poder-dever de dar explicações a respeito de um
fato que rompeu o equilíbrio jurídico tutelado. Daí porque se diz que a investigação
criminal, por intermédio de seu procedimento típico, torna-se obrigatória. Porque a
Autoridade Policial é mandada pelo Direito a apurar os crimes e o Inquérito Policial é
o meio de que se pode valer para tanto:
Nos termos do inciso I, o inquérito policial deverá ser instaurado de ofício
pela autoridade policial, bastando-lhe tomar conhecimento da perpetração
de um crime (essa é a primeira característica do inquérito policial).
Geralmente, a notícia do crime lhe chega verbalmente, quando então o
inquérito policial será iniciado por portaria. E, quando ele é inaugurado por
portaria, fala-se que a autoridade policial agiu de ofício, independente de
provocação de outrem. (SILVA; FREITAS, 2012, p. 32.)
Note-se que, aqui, a Autoridade Policial age de ofício. Ou seja, agiu de uma
maneira que lhe foi facultada por uma prerrogativa, ou imposta legalmente. É
importante observar que, nessas duas hipóteses é a própria Lei a fonte do agir do
investigador.
Este é o entendimento minoritário. A maior parte doutrina entende de modo
diverso. Defendem estes que, em hipótese alguma o inquérito é indispensável, ainda
sob a inteligência estritamente literal do artigo 5º, I, do Código de Processo Penal:
Finalmente, resta esclarecer que o inquérito policial, embora cumpra um
destacado papel, inegavelmente, não é indispensável à propositura da ação
penal, e tampouco é o único meio de investigação preliminar de que
dispomos. Conforme as regras dos arts. 39, §5º, e 40 do CPP, a acusação
pode dispensar o inquérito se tiver às mãos outras peças de informação que
forneçam ao juiz uma base probatória mínima para a instauração do
processo. Note-se, ademais, o teor do art. 4º, parágrafo único, do CPP, que
prevê expressamente a possibilidade de procedimentos investigatórios
serem realizados por outras autoridades públicas que não as da polícia
judiciária. (DUCLERC, 2008, p. 81.)
203
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Eis porque o inquérito policial é dispensável do ponto de vista formal. A
própria legislação admite alternativas à busca da justa causa para a propositura da
ação penal.
Também, cai por terra a obrigatoriedade do inquérito policial quando as
notícias levadas ao Estado da ocorrência do delito, de per si, trazem os elementos
necessários e suficientes para apresentação da peça acusatória:
O caráter facultativo pressupõe um modelo sumário e parte da constatação
de que é possível que a notitia criminis esteja suficientemente instruída para
demonstrar a probabilidade do fumus comissi delicti, oferecendo razoáveis
elementos que justifiquem a acusação. Dessa forma, o acusador poderá
exercer a ação penal sem prévia instrução preliminar. Isso sói ocorrer nos
delitos de menor potencial lesivo e complexidade probatória, que permitem
a imediata acusação. A maior parte das legislações modernas permite os
juízes diretos, sem prévia investigação, ou simplesmente faculta ao
Ministério Público a decisão sobre a existência ou não de suficientes
elementos para a formação da opinio delicti e o correspondente exercício da
ação penal.
Exemplo claro desse sistema facultativo é o nosso inquérito policial, pois, a
teor dos arts. 39, §5º, e 40 do CPP, o MP pode dispensar o IP se com a
representação forem fornecidos suficientes elementos de convicção. Por
analogia, também se aplica à notícia-crime não qualificada. Inclusive, na Lei
nº 9.099/95, o legislador brasileiro substituiu o inquérito policial pelo mero
termo circunstanciado. (LOPES JUNIOR, 2003, p. 112.)
Com a devida deferência aos doutrinadores que entendem obrigatória a
instauração de inquérito policial pela Autoridade Policial, parece ser mais correta a
linha de pensamento que o inquérito policial é dispensável. Do ponto de vista formal,
o é por dois motivos: é facultado ao titular da ação penal fundamentar a justa causa
em outras peças de informação, e; por vezes, a notícia-crime traz consigo a certeza
da existência do fato e os satisfatórios indícios de sua respectiva autoria.
Encerrada esta breve discussão acerca da polêmica obrigatoriedade ou
dispensabilidade do inquérito policial, tendendo este trabalho à aceitação da última,
passa-se agora a necessidade de que seu procedimento seja, obrigatoriamente,
deitado ao papel.
É mandamental que o inquérito policial seja escrito, não havendo
possibilidade de a ele aplicar a forma oral:
Estudar a forma dos atos do inquérito policial significa, necessariamente,
analisá-los à luz de duas dicotomias: oralidade versus escritura; publicidade
versus sigilo.
No que se refere à primeira das dicotomias citadas, não há grandes
dificuldades, visto que, conforme reza o art. 9º do CPP:
204
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a
escrito ou datilografadas e, nesse caso, rubricadas pela autoridade.
Trata-se, como se vê, de regra expressa, clara, sem nenhuma
incompatibilidade com o texto constitucional, e que não deixa qualquer
dúvida em relação à forma que devem assumir os atos do inquérito, mesmo
aqueles que precisem ser realizados oralmente. (DUCLERC, 2008, p. 89.)
Note-se que são os atos praticados no âmbito do inquérito policial que devem
ser reduzidos a escrito. Em outras palavras, a investigação criminal preliminar,
enquanto atendendo à sua função de descrever fatos, precisa tomar corpo para ser
apresentada ao Estado-juiz. Ou, quando muito, para ficar registrada.
O predomínio da linguagem escrita decorre, no inquérito policial, da
impossibilidade de concentração das diligências investigativas em um só ato. Por
muitas vezes, um elemento colhido na investigação policial leva a outro,
possivelmente distante. Além disso, não é a própria autoridade policial que deve
proceder às investigações, limitando-se a presidi-la e rubricá-la. As atitudes físicas
que compõem o inquérito policial são executados pelos agentes da autoridade
policial (escrivães, agentes, investigadores, peritos, detetives etc.), e, e só então
levadas ao conhecimento do Delegado de Polícia, que os confere validade jurídica,
apondo-lhes sua rubrica. Portanto, pela distância entre o inquérito policial e o fato
seu objeto é que decidiu o legislador pela adoção de sua forma escrita:
A dificuldade de reter o falado na memória conduz, ademais, ao princípio da
concentração ou unidade de ato, que requer condensar o processo em uma
ou várias sessões consecutivas. Quando forem várias as sessões, o
princípio da oralidade só se manterá se existir identidade física do juiz
durante todas as sessões do processo, porque, em outro caso, o atuado
ante o primeiro juiz somente chegaria ao conhecimento do segundo através
da escrita. (LOPES JUNIOR, 2003, p. 114.)
No trecho acima, Lopes Júnior refere-se ao princípio da oralidade. Quando
trata da forma escrita identifica uma problemática: “O inconveniente da forma escrita
[…] é que o órgão que tem de decidir se encontra só com letras mortas e incolores,
perdendo-se o frescor da impressão […]”.(Ibid., p. 115.)
Por óbvio que as diligências policiais não são compradas em uma loja,
prontas e acabadas, escritas e com campo destacado para a rubrica da Autoridade
Policial. Por isso que:
Nada impede que a autoridade empreenda as investigações e realize os
atos oralmente, mas, quando da elaboração do inquérito, os atos devem ser
reduzidos a escrito e rubricados. A forma escrita é uma das características
205
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
do inquérito policial. Atualmente, as peças do inquérito são digitadas ou
datilografadas. (SILVA; FREITAS, 2012, p. 44.)
É por isso que se criou um cargo específico e importantíssimo no âmbito da
polícia judiciária, presente virtualmente em todas as unidades policiais a quem é
confiada a guarda e a instrução do inquérito policial: o Escrivão de Polícia, a quem
“compete o trabalho material de ir pondo em ordem o Inquérito Policial,
transportando para ele os elementos que forem sendo levantados, de acordo com a
orientação e determinações da autoridade policial.”(COBRA, 1987, p. 6.)
Por fim, uma razão apontada por Tourinho Filho para a adoção da forma
escrita para o inquérito policial é que este não é um fim em si próprio. Autônomo,
sem dúvidas, mas destinado a outro ator processual que dele deve tomar
conhecimento e analisá-lo: “Colhidas todas essas informações, que são reduzidas a
escrito ou datilografadas, a Autoridade Policial faz um relatório de tudo quanto fez à
frente das investigações e encaminha esses autos de inquérito […]” (TOURINHO
FILHO, 2009, p. 199.).
Eis que agora passa-se a analisar a indisponibilidade do inquérito policial. Dizse que o inquérito policial é indisponível porque ao Delegado de Polícia, que o
preside, é vedada a iniciativa de por termo ao procedimento. Assim, o destinatário
último das diligências investigatórias, o titular da ação penal, que detém a
prerrogativa de promover-lhes o arquivamento.
Entendendo ser caso de arquivamento, o dominus litis promove a sua
determinação à Autoridade Judiciária que, esta sim, está legitimada a determinar o
arquivamento dos autos de inquérito policial. Ou seja, a autoridade policial jamais
pode interferir no arquivamento dos autos, seja de forma ativa, mediante
requerimento, seja passivamente, assim determinando:
A autoridade policial não pode arquivar o inquérito policial, pois dele não
pode dispor. O inquérito é indisponível, tanto para ela quanto para o
Ministério Público. O arquivamento somente pode ser determinado pelo juiz
do feito. Essa é a quarta característica. Como exaustivamente esposado, o
destinatário da investigação é o representante do Ministério Público. Por
consequência, ele é o único legitimado a requerer o arquivamento do
inquérito policial, não o Delegado. Ainda que a autoridade policial entenda
que o fato é atípico, que nenhuma prova existe contra o investigado ou
indiciado, que agiu acobertado por excludente da ilicitude e que está extinta
a punibilidade, os autos devem ser enviados ao órgão ministerial para que
este decida o rumo a ser dado ao inquérito policial. Essa é a mens legis.
(SILVA; FREITAS, 2012, p. 54.)
206
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Aliado esse entendimento à já analisada dispensabilidade do inquérito policial,
é correto afirmar que a autoridade policial pode decidir por não instaurá-lo.
Entretanto, uma vez iniciado, a ele não pode dar cabo. Ainda mais, nem o juiz, de
ofício, tampouco o acusador podem fazê-lo. Assim, é necessária a atuação do
acusador e do julgador para a determinação de arquivamentos dos autos de
inquérito policial.
O titular da ação penal pública é o Ministério Público e da ação penal
privada o ofendido ou seu representante legal. Assim, é inadmissível que,
após instaurada o inquérito policial possa ser ele arquivado pela autoridade
policial. A Polícia é um órgão auxiliar com a missão de fornecer elementos à
Justiça Pública para a propositura da ação penal. Ainda que fique provada a
inexistência do fato, que não tenha sido apurada a autoria do ilícito penal ou
que o fato não constitua crime, deverá ele providenciar seu encerramento e
encaminhar os autos ao juízo competente; a providência do arquivamento
cabe o juiz, após o requerimento do órgão do Ministério Público (art. 28).
Nem mesmo o juiz pode determinar o arquivamento sem o referido pedido.
A autoridade policial pode deixar de instaurar o inquérito quando verificar
que não ocorreu o ilícito que lhe é noticiado. Instaurado o inquérito, porém,
não pode arquivá-lo. (MIRABETE, 2008, p. 122.)
No que importa à possibilidade de indeferimento do pedido de arquivamento,
o juiz deve, então, enviar os autos ao Procurador-Geral a quem caberá a última
palavra a respeito da procedência ou não do pedido. É uma forma de adequação ao
procedimento acusatório, privilegiando a atuação do órgão acusador, em detrimento
da iniciativa jurisdicional:
Muito embora tenha o CPP fortes ares autoritários, nesse ponto privilegiou o
modelo acusatório quase que na sua pureza, vez que coloca nas mãos do
titular da ação penal pública a derradeira manifestação sobre a
oportunidade ou não de exercitá-la. Esse é o entendimento sobre o
conteúdo do art. 28 do Código de Processo Penal, que acabou por montar
um mecanismo de regulação da atividade do Ministério Público empregado
até mesmo em outros ramos processuais por analogia. Pelo disposto no
mencionado artigo, o Juiz pode discordar do arquivamento promovido pelo
Promotor. No entanto, o controle será exercitado pelo Procurador Geral de
Justiça que, acolhendo o entendimento do magistrado, designará outro
Promotor para oferecer a inicial acusatória ou, entendendo não ser o caso
da propositura de ação, determinará o arquivamento da investigação. A
conclusão que se extrai é que o modelo brasileiro se aproxima daqueles
onde o controle sobre o arquivamento remanesce nas mãos do titular da
ação penal, não cabendo ao órgão julgador a imposição do exercício da
ação penal. O mecanismo de solução do conflito interpretativo é o
hierárquico. (CHOUKR, 2009, p. 118.)
207
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Ou seja, não há, em qualquer momento do arquivamento do inquérito policial,
posição ativa da autoridade policial, limitando-se esta a relatar o inquérito e
submetê-lo ao dominus litis. Este sim legitimado a promover-lhe o arquivamento.
Estas são as características elementares do inquérito policial, sobre as quais
não há muita controvérsia. São, resumidamente: pretensa obrigatoriedade, na
medida em que estaria a autoridade policial imposta por lei a dar-lhe início;
dispensabilidade, eis que é possível que a exordial acusatória seja apresentada com
elementos colhidos em outras espécies de investigação criminal preliminar e até
mesmo na própria notícia-crime; adoção da forma escrita, dada a complexidade das
diligências a serem realizadas e a destinação dos autos à autoridade distinta
daquela que os preside e; indisponibilidade, visto que é defesa à autoridade policial
o arquivamento dos autos de inquérito, bem como sua promoção.
Na subseção seguinte, perquirir-se-á os elementos inquisitivos presentes no
inquérito policial brasileiro.
3.3 ELEMENTOS INQUISITIVOS EM INQUÉRITO POLICIAL
É possível identificar no procedimento policial de investigação criminal
preliminar, diversos elementos inquisitivos, os quais decorrem da falsa ideia de que
existe o sistema processual penal misto, como visto.
O referido sistema, do ponto de vista processual, seria composto de uma fase
acusatória, a ação penal, desenvolvida à guarda do juiz, e uma fase inquisitória, a
investigação criminal preliminar. A ideia de que a instrução pré-processual é
inquisitiva, no Brasil, deriva da análise de sua modalidade típica, o inquérito policial,
no
curso
do
qual
observam-se
diversos
procedimentos
que
negam
a
acusatoriedade.
Esclareça-se ao final: ao abordarmos a inquisitorialidade do inquérito como
sua característica, longe estamos de sucumbir ao sentido gramatical ou
histórico do termo, a ensejar, mutatis mutandis, a concessão de um poder
discricionário e ilimitado à autoridade policial. Em realidade, com tal
designação quer-se essencialmente fazer notar algo em distinção àquilo
que se verifica no âmbito da ação penal, na qual, prevalecendo o princípio
acusatório, as funções de instauração (denúncia) e decisão (sentença) da
demanda criminal estão acometidas a instituições distintas (Ministério
Público e Poder Judiciário). No âmbito do inquérito policial sua inauguração
e conclusão está acometida a uma mesma autoridade (ou instituição)
policial. (FELDENS; SCHMIDT, 2005, p. 23.)
208
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Admitida essa proposição de que a dicotomia ação/investigação enseja a
aceitação do caráter inquisitório do inquérito policial, passa-se a justificá-la pela
análise dos institutos do referido procedimento.
3.3.1 Discricionariedade da Autoridade Policial
Goza,
no
exercício
de
suas
funções,
a
autoridade
policial
de
discricionariedade: “O inquérito policial tem natureza inquisitiva, de modo que a
autoridade tem discricionariedade para decidir desta ou daquela maneira. Essa é a
terceira característica do inquérito policial”. (SILVA, 2012, p. 51.)
A discricionariedade do Delegado de Polícia na presidência do inquérito está
adstrita ao seu entendimento acerca da necessidade de fazer tal ou qual diligência,
na finalidade de apurar as circunstâncias do crime. Note-se que, não sendo seu o
direito de apresentar provocação ao juízo, não deve o investigador preocupar-se em
buscar elementos para formação da justa causa.
Essa atribuição é do titular da ação penal, que terá seu momento de indicar à
Autoridade Policial os atos de investigação que entende necessários de modo a
preencher a finalidade formal da investigação criminal. Neste diapasão é que se diz
que a autoridade policial tem o poder de escolher as diligências que empreenderá
para esclarecer as circunstâncias do fato-objeto. É assegurado, entretanto, o direito
dos envolvidos no crime de requerer à instituição policial a realização de diligências.
Não está, contudo, obrigada a autoridade a deferi-las:
Apesar de ser o inquérito policial um procedimento inquisitivo, em que não
vigora o princípio do contraditório, possibilita a lei que o indiciado requeira
diligência para esclarecimento do fato, em seu benefício. A mesma
faculdade é concedida ao ofendido. Diante do dispositivo também é possível
a ambos requerer a juntada aos autos do inquérito de documentos relativos
ao fato ou à prova dele e de suas circunstâncias. Cabe, entretanto, à
autoridade policial, segundo seu critério, deferir ou não tais requerimentos.
Caso a diligência ou a juntada de documentos possa servir,
presumivelmente à apuração do fato ou de suas circunstâncias, ainda que
favorecendo o indiciado, deve deferir o pedido. (MIRABETE, 2008, p. 118.)
É de salientar que, no trecho acima, o autor defende a tese de que o órgão
investigador não deve fundamentar a justa causa. Esta existe ou não, e é
consequência direta da apuração dos fatos. Quando a autoridade investigadora
209
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
encontra um indício que possa favorecer o investigado, deve, da mesma forma,
fazê-lo juntar aos autos. E deve fazê-lo porque o inquérito policial apura fatos e
circunstâncias, não culpabilidade. Esta deve ser demonstrada no decorrer da ação
penal, sob a guarida do contraditório e da ampla defesa.
Nota-se, aqui, clara desproporção entre a acusação e a defesa. A acusação,
que, a priori, nem teve contato com o fato delituoso pode requisitar diligências e a
Autoridade Policial está obrigada a realizá-las. Se o investigado, por outro lado,
requerê-las, suplicá-las, é garantido ao Delegado o direito de ponderar sobre o
pedido e indeferi-lo:
Então, outra conclusão a que se chega não é a de que, em verdade, o
indiciado não possui nenhum direito de exigir da autoridade policial a
realização de diligências que seriam de seu interesse. Com todas as letras
a lei diz que essas diligências poderão ou não, ser realizadas, a critério da
autoridade policial.
Vejo, então, que o Código de Processo Penal se mantém atrelado ao
princípio da inquisitorialidade no inquérito policial, pois tudo quanto possa vir
a requerer o indiciado deve passar pelo talante da autoridade policial. O
delegado é então o árbitro único dessa providência, desde que requerida
pelo indiciado. É natural, se diligência qualquer venha a ser requisitada pelo
juiz ou promotor, deve ele cumprir, sem nenhuma consideração de
oportunidade ou conveniência. Mas se o miserável do indiciado é o
requerente, tudo fica ao alvedrio da autoridade policial. (ROCHA, 2007, p.
110.)
O “livre-arbítrio”, entre aspas porque limitado pela lei, da autoridade policial
determina, sobremaneira um indício de que o inquérito policial é, inegavelmente,
revestido de institutos que podem ser considerados inquisitivos. É preciso o
ensinamento de Tourinho Filho:
O inquérito também é inquisitivo. Fácil constatar-lhe esse caráter. Se a
Autoridade Policial tem o dever jurídico de instaurar o inquérito, de ofício,
isto é, sem provocação de quem quer que seja (salvante algumas
exceções); se a Autoridade Policial tem poderes para empreender, com
certa discricionariedade, todas as investigações necessárias à elucidação
do fato infringente da norma e à descoberta do respectivo autor; se o
indiciado não pode exigir sejam ouvidas tais ou quais testemunhas nem tem
o direito, diante da Autoridade Policial, às diligências que, por acaso, julgue
necessárias, mas, simplesmente, pode requerer sua realização e ouvida de
testemunhas, ficando, contudo, o deferimento ao prudente arbítrio da
Autoridade Policial, nos termos do art. 14 do CPP (salvo em se tratando de
exame de corpo de delito ou de diligência imprescindível ao esclarecimento
da verdade, ficando esta última a juízo da autoridade, nos termos do art.
184 do CPP), conclui-se, seu caráter é inquisitivo. (TOURINHO FILHO,
2009, p. 216.)
210
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A discricionariedade, ausência da exigibilidade de fundamentação fica
bastante evidente nos comentários de Guilherme Nucci ao Código de Processo
Penal:
a vítima, pessoalmente ou através de seu representante legal, bem como o
indiciado – a pessoa oficialmente apontada como suspeita pela prática do
crime – podem requerer ao presidente do inquérito, que é a autoridade
policial, a realização de alguma diligência que considerem útil à busca da
verdade real (ouvida de alguma testemunha, realização de exame pericial
etc.), podendo ser este pleito deferido ou indeferido, nem necessidade de
qualquer fundamentação. (NUCCI, 2008, p. 113.)
Note-se que o fundamento ideológico da discricionariedade policial é a busca
pela verdade real, que também fundamentou todos os procedimentos inquisitivos
estudados no presente trabalho.
Em suma, a discricionariedade policial em realizar apenas e tão somente as
investigações que a própria autoridade policial entender necessárias traduz-se em
elemento inquisitório do inquérito policial. Isto porque denota um desequilíbrio entre
o Ministério Público, que pode requisitar diligências que não são passíveis de
indeferimento, e a defesa, que depende do “cumpra-se” do Delegado de Polícia.
3.3.2 Sigilo das Diligências
Dando prosseguimento à análise dos elementos inquisitivos observados no
instituto em análise, identifica-se clara oposição aos ideais acusatórios no sigilo
exigido da autoridade policial. A doutrina favorável à adoção do segredo do inquérito
policial o fundamenta na efetividade da investigação policial:
A autoridade policial cuidará para que fique assegurado o sigilo das
investigações necessárias à elucidação do fato. Essa característica, a
quinta, tem por fim resguardar o interesse público, pois o Estado tem todo o
interesse na apuração do crime e de sua autoria e, obviamente, o sigilo é
imprescindível para o sucesso das investigações. Em outros termos, se o
sigilo não for resguardado, o inquérito policial estará fadado ao insucesso.
Impensável uma investigação que não seja sigilosa. Se a regra é o sigilo,
casos haverá em que a divulgação do fato e da autoria venha de encontro
ao interesse público, por exemplo, em crimes que causam clamor público e
que o autor conhecido encontra-se foragido. Nada impede que a autoridade
policial publique a foto em jornais, informe que existe ordem de prisão
contra o investigado e peça auxílio da população. (SILVA; FREITAS, 2012,
p. 59.)
211
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
É de observar-se que a favor da publicidade dos atos do inquérito pesam
somente argumentos contrário à liberdade do réu, na doutrina que defende o
segredo. Defendem estes que a investigação deve ser secreta, para que seja
efetivada. Entretanto, para que se possa trazer o investigado às grades ou submetêlo aos dedos em riste da população, aí sim deve o inquérito ser aberto à opinião
pública. Tudo isso sob a sensação de que o indiciado alguma coisa fez para merecer
ser alvo de investigação, ideal completamente alinhado ao sistema inquisitivo.
Aury Lopes Jr., por sua vez, entende que o sigilo da investigação tem duas
faces. O segredo externo:
Cumpre destacar, seguindo a Manzini, que o segredo refere-se aos atos
instrutórios (e da polícia judiciária), não ao delito em si mesmo, cuja
perpetração na maioria dos casos vem a ser publicamente conhecida pela
natureza mesma das coisas e a consequência das atuais relações sociais.
Assim, a esfera de proteção alcança pelo segredo engloba os atos levados
a cabo na instrução preliminar, como os de investigação e comprovação dos
fatos, e também as conclusões a que, com base nestes elementos, chega
ao órgão do poder público encarregado da atividade investigatória. Não
serve para limitar a divulgação do fato delitivo pelos meios de comunicação.
O fato é público. Secretas são as atuações do órgão instrutor/investigador
[…]. (LOPES JUNIOR, 2003, p. 119.)
E o segredo interno:
O segredo interno se concretiza na proibição para alguns sujeitos
processuais de tomarem conhecimento de determinados atos da
investigação preliminar. Por suposto, existe uma incompatibilidade lógica
entre o segredo interno e a publicidade externa (ausência de segredo
externo), de modo que o primeiro pressupõe a impossibilidade do segundo.
Em outras palavras, o segredo interno pressupõe também o externo.
Também devemos partir da premissa de que o segredo interno não alcança
aos órgãos do Estado, de modo que jamais a investigação preliminar
poderá ser secreta para o juiz ou promotor, independente de quem seja o
titular. Logo, o segredo interno atinge fundamentalmente o sujeito passivo.
(LOPES JUNIOR, 2003, p. 124.)
Com outra dicção: o segredo externo, para Lopes Júnior, é aquele que
impede que pessoas estranhas à investigação tenham acesso às minúcias que ali se
desenvolveram. O segredo interno, por sua vez, garante acesso dos órgãos estatais
a todos os atos investigativos e proíbe o acesso do investigado a qualquer um deles.
Fauzi Hassan Choukr defende que o sigilo das investigações não é apenas
inquisitivo. É também inútil para todos os fins a que se propõe:
212
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Diante do cenário presenciado, pode-se concluir que o sigilo, enquanto
previsão derivada da CR e da CADH, tal como regulado pelo Código de
Processo Penal, não satisfaz qualquer dos objetivos a que se propõe. Não é
suficiente para disciplinar a administração do sistema penal, pois a
divulgação do produto do meio de investigação que deveria ter permanecido
em sigilo pode ser feita sem qualquer constrangimento ao longo da
investigação ou do futuro processo penal; não é suficiente para
salvaguardar as pessoas envolvidas que, sem qualquer poder reação contra
a quebra do sigilo, podem se rebelar apenas por meio de medidas
compensatórias patrimoniais, se e quando assim reconhecidas ao final de
um processo judicial com tal objeto; não traduz o equilíbrio entre a
necessidade da preservação da investigação e a liberdade de imprensa,
sendo que esta última, num desvio patológico, apresenta-se como distorção
da informação e acaba por não cumprir seu papel vital no espaço
democrático: não é livre nem informa. (CHOUKR, 2009, p. 89.)
Há, no entanto, que considerar-se a possibilidade de acesso do defensor do
investigado aos autos. Consubstanciando-se a defesa técnica como garantia
fundamental, é de ressalvar-se a necessidade de garantir ao defensor do indiciado o
acesso aos autos:
Portanto, em síntese, o sigilo não é, atualmente, de grande valia, pois se
alguma investigação em segredo precise ser feita ou esteja em andamento,
pode o suspeito, por intermédio de seu advogado, acessar os autos e
descobrir o rumo que o inquérito está tomando. (NUCCI, 2008, p. 119.)
É tão flagrantemente contrário ao sistema acusatório o sigilo da investigação
transcorrida em inquérito policial que o Supremo Tribunal Federal editou Súmula
Vinculante garantindo ao advogado do investigado o acesso ao feito. Trata-se da
Súmula Vinculante nº 14, de 2009, a qual confere ao advogado o acesso ao que já
foi registrado nos autos do inquérito.
O sigilo do inquérito é extremamente autoritário, sem sombra de
questionamentos. Entretanto, é sintoma de um elemento ainda mais alinhado com o
sistema inquisitório de persecução criminal, que lhe sustenta.
É a impossibilidade de exercício do contraditório, sobre a qual trata a próxima
subseção.
3.3.3 Ausência de Contraditório.
É aqui que se traduz, de maneira mais inequívoca possível, a afinidade do
inquérito policial com a lógica inquisitiva de persecução criminal. Como visto na
213
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
análise dos sistemas processuais penais, o do tipo inquisitivo veda a possibilidade
do réu manifestar-se no processo, salvo para confessar a autoria do crime
Esta é a característica nuclear do sistema acusatório, que visa garantir que o
acusado disponha de todas as formas de defender-se das investidas do Estado.
Nessa ordem de ideias, pode-se afirmar que quando é conferido ao processado a
possibilidade de contraditar o que lhe é imputado, há, ao menos, indícios de
acusatoriedade.
No inquérito policial isso não acontece. Primeiramente, é necessário salientar
que a doutrina entende que a natureza jurídica do inquérito policial não é processual,
mas procedimental:
O inquérito policial não é um processo, mas simples procedimento. O
Estado, através da polícia, exerce um dos poucos poderes de autodefesa
que lhe é reservado na esfera de repressão ao crime, preparando a
apresentação em juízo da pretensão punitiva que na ação penal será
deduzida através da acusação. O seu caráter inquisitivo é, por isso mesmo,
evidente. A polícia investiga o crime para que o Estado possa ingressar em
juízo, e não para resolver uma lide, dando a cada um o que é seu.
(MARQUES, 2000, p. 164.)
Retirando o caráter processual da atividade investigativa a cargo da polícia, é
conferida a tendência ao inquérito policial de mitigar valores e garantias que, no
processo, são de titularidade do acusado. O entendimento de que o inquérito policial
é procedimento administrativo, pois, teria o condão de subtrair do investigado o
direito ao contraditório.
Em se considerando a finalidade formal da investigação criminal preliminar, o
inquérito policial destina-se à colheita de elementos que ensejem a propositura da
respectiva ação penal: “Tradicionalmente a investigação preliminar é encarada como
uma etapa administrativa, cuja finalidade é a de fornecer elementos para o
legitimado ativo propor ou não a ação penal.” (CHOUKR, 2001, p. 124.)
Assim, não há a necessidade, ou mesmo o interesse, de garantir ao
investigado a possibilidade de defender-se, o que poderá ser feito na eventual e
futura ação penal. Isso em uma ótica inquisitiva.
É o que ensina Francisco Monteiro Rocha:
Isto posto, vemos que o indiciado fica totalmente tolhido no seu propósito de
apresentar provas, já na fase de investigações policiais. Essa não
possibilidade do contraditório nessa fase é o que caracteriza o inquérito
policial como peça inquisitorial. (ROCHA, 2008, p. 110.)
214
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Conforme defendido anteriormente, a admissão da existência de um sistema
processual misto enseja a negação de que ele seja acusatório. Essa dicotomia entre
a ação penal e a investigação criminal preliminar é outro elemento que evidencia a
natureza inquisitiva do inquérito policial.
Entretanto, conforme insistentemente frisado neste trabalho, a característica
que mais espelha a natureza inquisitorial do procedimento é a figura do acusado no
processo.
4.3.4 Indiciado Como Objeto de Investigação
E, por fim, analisa-se o estatuto do investigado na investigação por inquérito
policial. Perfilando-se a discricionariedade da autoridade policial, o sigilo das
investigações, a ausência do contraditório e a negação do caráter processual do
inquérito policial, a conclusão a que se chega é a de que o investigado é dele mero
objeto.
É o que leciona Tourinho Filho:
Se o inquérito é eminentemente, não contraditório, se o inquérito policial,
por sua própria natureza é sigilos, podemos, então afirmar ser ele uma
investigação inquisitiva por excelência. Durante o inquérito, o indiciado, na
verdade, não passa de simples objeto de investigação. Certo que a
Constituição lhe assegura uma série de direitos, inclusive o de silenciar.
Mas, quanto a ter o direito de exigir esta ou aquela prova, não. Sob esse
aspecto, ele não passa de objeto de investigação. Só sob esse aspecto. No
inquérito não se admite o contraditório. A autoridade o dirige secretamente.
Uma vez instaurado o inquérito, a Autoridade Policial o conduz à sua causa
finalis (que é o esclarecimento do fato e sua respectiva autoria), sem que
deva obedecer a uma sequencia previamente traçada em lei. Ora, o que
empresta a uma investigação o matiz da inquisitorialidade é, exatamente, o
não permitir o contraditório, a imposição da sigilação, a ausência de
concatenação dos atos e a não intromissão de pessoas estranhas durante a
feitura dos atos persecutórios. Nela não há Acusação nem Defesa. A
Autoridade Policial, sozinha, é que procede à pesquisa dos dados
necessários à propositura da ação penal. Por isso tudo, o inquérito é peça
inquisitiva. (TOURINHO FILHO, 2009, p. 216.)
A soma de todos esses elementos, por si só, denota uma gritante afinidade do
inquérito policial com o procedimento inquisitivo. É quase redundante o próprio
Tourinho Filho arrematar: “Tal dispositivo é uma decorrência do caráter inquisitivo do
inquérito policial, pois que o indiciado não é um sujeito em face da Autoridade
Policial, mas, sim, um objeto de investigação”.(Ibid., p. 217.)
215
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A figura objetiva do indiciado é tão evidente, que José Frederico Marques
chega a condenar a sua “intromissão” no processamento do inquérito policial:
Logo, é também desaconselhável uma investigação contraditória
processada no inquérito. Ao contrário do que pensam alguns, não se deve
tolerar um inquérito contraditório, sob pena de fracassarem as investigações
policiais, sempre que surja um caso de difícil elucidação. À polícia judiciária
deve ser dado um amplo campo de liberdade de ação, limitado tão-só pelas
sanções aos atos ilegais que seus agentes praticarem. É, aliás, o que mais
condiz com seu caráter de atividade administrativa, que se exercita no
interesse da ordem pública e do bem comum, como preparação
indispensável a uma atuação eficaz da persecutio criminis ulterior, através
do Ministério Público.
Nesse ponto foi sábio o Código, deixando à discrição da autoridade que
preside ao inquérito admitir os depoimentos de testemunhas do réu ou do
ofendido. A investigação policial não pode ser tumultuada com a intromissão
do indiciado. Somente quando o caso a averiguar é duvidoso, deve a polícia
atender aos pedidos de prova formulados pelo réu ou pelo ofendido. A
necessidade, porém de praticar tais atos instrutórios fica entregue à
apreciação discricionária da autoridade policial. (MARQUES, 2000, p. 168.)
E vai além, defende ainda, que no curso da investigação criminal pela polícia
judiciária o único direito que não pode ser vulnerado é sua liberdade:
Em todas essas hipóteses, quer agindo discricionariamente, quer atuando
estritamente vinculada à lei, mantém a autoridade policial ao réu, como
objeto de investigações, e não como sujeito ou titular de direitos. O que o
indiciado pode exigir é tão-só, que lhe seja respeitado o status libertatis, de
forma que é vedado à polícia, fora dos casos estritamente legais, prender o
réu ou recusar-lhe a fiança […]. (Ibid., p. 165.)
Tão ignominiosa, e até pejorativa, é a situação do indiciado, potencial réu e
eventualmente condenado, que a doutrina encontra dificuldades para descrevê-la
com palavras além de “objeto”.
Seguindo essa tendência, faz-se a já costumeira recapitulação do apurado na
presente subseção.
Existem institutos admitidos no inquérito policial brasileiro que permitem ao
estudioso do Direito classificá-lo como instrumento inquisitivo. São eles: a
discricionariedade da autoridade policial, que pode recusar diligências requeridas
pelo indiciado; o sigilo das investigações, negando ao investigado o direito de ter
acesso aos autos; a natureza procedimental do inquérito policial, que permite a
subtração do direito ao contraditório e; a qualidade que se confere ao indiciado de
objeto de investigações, enquanto num processo acusatório ele seria sujeito de
direitos.
216
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Encerra-se aqui a análise do inquérito policial como atualmente está
disciplinado na legislação brasileira.
217
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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222
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO CONCURSO DE
PESSOAS NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
SOME CONSIDERATIONS ABOUT THE CO-PERPRETATION ON
BRAZILIAN CRIMINAL LAW
Fábio Prestes Barbosa Meger1
Gustavo Britta Scandelari2
Acadêmico de Direito no Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
Bacharel em Direito pela Universidade Positivo (UP). Pós-graduado em Direito Constitucional pela
Unibrasil. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)
em convênio com o Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Mestre em Direito do Estado
pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor de Cursos de Pós-Graduação (lato sensu)
em Direito. Professor de Direito Penal na graduação do UNICURITIBA. Associado fundador do
Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Membro da Comissão da Advocacia Criminal
da OAB/PR. Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). Membro do Instituto dos
Advogados do Paraná (IAP). Advogado.
1
2
223
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SUMÁRIO
Resumo. Abstract. 1 Introdução. 2 Teorias sobre autoria e participação. 2.1 O
conceito unitário de autor. 2.2 O conceito extensivo de autor. 2.3 O conceito restritivo
de autor 2.3.1 Teoria objetivo-formal. 2.3.2 Teoria objetivo-material. 2.4 Teorias
subjetivas. 2.5 Teoria do domínio do fato. 2.6 Sobre os delitos de infração de dever.
2.6.1 A autoria nos delitos de infração de dever na visão de Claus Roxin 3 A autoria
e participação no Brasil. 3.1 O código penal do Império. 3.2 O código penal da
República 3.3 O código penal de 1940. 3.4 A Lei n° 7.209/84 e a reforma de 1984 ao
código penal e as questões sobre autoria e participação. 4 Conclusão. Referências.
RESUMO
224
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
O presente artigo objetiva demonstrar quais são as diferentes formas pelas quais o
legislador brasileiro abordou as questões referentes à autoria e participação no
Código Penal Brasileiro vigente. No entanto, para que fique mais clara essa
apresentação, é preciso apontar-se para as diferentes teorias que se preocuparam
em desenvolver essa problemática, portanto, após ser feita a análise das diversas
teorias, poder-se-á observar com maior acuidade os diferentes modelos de
responsabilização que foram adotados nos Código Penais que já vigeram no Brasil.
Contudo, dar-se-á maior visibilidade para o Código Penal atual, que teve sua parte
geral alterada pela Lei 7.209/84.
Palavras-chave: autoria e participação, Código Penal Brasileiro, Direito Penal
ABSTRACT
225
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
This study aims to demonstrate which forms were used by the brazilians legislators to
approach the questions relatives to the co-perpetration in the actual Brazilian
Criminal Code. However, to make this presentation clearer, it’s necessary to point to
the different theory’s that occupy with this sort of problem but, after this short analysis
about this theory’s, it will be possible to understand the models that were adopted in
the Criminal Codes that applied in Brazil. Although, this study will focus in the actual
Brazilian Criminal Code, that were altered by the law 7.209/84.
Keywords: co-perpetration, Brazilian Criminal Code, Criminal Law.
1 INTRODUÇÃO
226
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Este artigo tem como objetivo a análise das questões relativas ao Concurso
de Pessoas3 no Direito Penal Brasileiro. Dessa forma, discorrer-se-á, principalmente,
a respeito da problemática que gira em torno das teorias de autoria e participação e
quais delas teriam sido adotadas pelo legislador pátrio.
Tendo em vista a complexidade das questões inerentes à autoria e
participação, o presente trabalho se iniciará com uma breve explanação sobre as
diferentes teorias que tentaram elucidar os problemas que surgem quando se tenta
fundamentar a responsabilização de diferentes intervenientes na realização de fato
passível de se subsumir à abstração legal.
Para, posteriormente, perpassar-se pelos diferentes Códigos Penais que já
vigeram no país e a diferente abordagem que disponibilizaram sobre o tema desse
artigo, a fim de que na conclusão seja feita a análise da opção vigente no que diz
respeito à responsabilização penal dos diferentes intervenientes que praticam um
fato delituoso.
Nessa toada, preciso que se observe um ponto de partida relevante antes que
se passe ao trabalho: são somente nos casos em que há Concurso de Pessoas, ou
seja, quando duas ou mais pessoas agem conjuntamente para o cometimento de um
fato criminoso, que se encontram dificuldades para delimitar a autoria e,
consequentemente, a participação. Por isso, há que se considerar o ponto de vista
do jurista alemão Günter Stratenwerth sobre a autoria:
“Con respecto a la autoría no es necesario gastar ni una palabra cuando, en
el caso concreto, solo uma persona aparece como causante del suceso
adecuado al supuesto de hecho típico: si ella ha realizado los aspectos
objetivos y subjetivos del supuesto de hecho típico penal, y lo ha hecho
antijurídicamente (y si es posible también culpablemente), precisamente por
estos motivos, será el autor, y resultaría tautológico nombrarlo
expresamente.”4
Sendo assim, tem-se que considerar que as teorias que tratam a respeito da
autoria e participação surgem para tentar elucidar as questões que decorrem do
concurso de pessoas na prática delitiva.
2 AS TEORIAS SOBRE AUTORIA E PARTICIPAÇÃO
3
O termo Concurso de Pessoas foi o tema adotado pelo Legislador pátrio quando da alteração
realizada na Parte Geral do Código Penal em 1984.
4 STRATENWERTH, Günter. Derecho Penal: parte geral, I. Tradução Gladys Romero. Madrid:
Edersa, 1982. p. 228.
227
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
2.1 CONCEITO UNITÁRIO DE AUTOR
O conceito unitário de autor é famoso por não diferenciar autor e partícipe,
desta forma, considerando autores todos aqueles que contribuam causalmente para
prática delitiva, teoria da conditio sine qua non.
No entanto, este conceito não se funda simplesmente na causalidade, mas,
também, na teoria da equivalência das condições, a qual equipara todas as ações
que preencham o critério da causalidade, não distinguindo qualitativamente as
condutas praticadas pelos agentes:
“El nexo causal jurídico-penalmente relevante adquiere su máxima
extensión si se lo determina con ayuda de la llamada teoria de la condición
o de la equivalencia. De acuerdo con ella, todas las condiciones que
coadyuvan a la producción del resultado tienen idêntico valor: causa en
sentido jurídico penal es toda condiciòn que no pueda suprimirse
mentalmente sin que desaparezca el resultado (fórmula de la condicio sine
qua non). Toda acción que pone una condición, realiza – en los delitos de
resultado – el supuesto de hecho típico objetivo y, por lo tanto, puede
conducir a la responsabilidad jurídico-penal. Esto rige sin tomar en
consideración el hecho de que otras condiciones hayan sido también
necesarias para la producción del resultado y aún cuando se tratara de
improbables casualidades. Concretamente no se pone a ello ni la
participación culpable del afectado, ni la intervención de un tercero. La
imputación solamente se limita en los niveles posteriores de la estructura
del delito.” 5
O conceito unitário de autor tem em sua defesa o fato de acabar com as
lacunas de punibilidade, mas, mesmo assim, este conceito não escapa às críticas,
vez que produz, dentro da análise de alguns casos limites, soluções que não podem
ser toleradas.
A aplicação do conceito unitário afasta o principio da legalidade, já que podem
ser punidos como autores aqueles que praticam condutas não descritas pelo tipo
penal que lhes é imputado. Além disso, nos delitos de mão própria e especiais
aqueles que não praticam o fato ou não possuem a qualificação prevista no tipo
podem ser sancionados como autores, o que também fere a princípio da reserva
legal. Dentro da perspectiva da aplicação do referido conceito, pode-se ainda
identificar a extensão da punibilidade nos casos de tentativa:
5
STRATENWERTH, 1982, p. 81.
228
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
“En contra del concepto unitario de autor, pese a que a primera vista pueda
aparecer como sencillo y prático, concurren graves objeciones. Por una
parte, al convertise todas las contribuciones al hecho en la causación de
lesiones del bien juridico, se pierde lo injusto específico de la acción de
cada tipo. Por outra parte, en los delitos de propia mano y especiales habría
que considerar también autores a intervenientes extraños por la pura
causalidad de su cooperación, a pesar de que precisamente no actúan de
propia mano o no están cualificados para ser autores. Además, el abandono
del principio de accesoriedad determinaria la supresión de las fronteras del
tipo. El concepto unitário de autor conduce también a una ampliación
indeseable de la punibilidad, puesto que la tentativa de cooperación
resultaria punible en todos aquellos casos en los que el tipo permite la
punibilidad de la tentativa, mientras que de lo contrario la tentativa de
participación únicamente tiene señalada pena dentro de estrechos limites.” 6
As críticas recebidas por este conceito são insuperáveis, dessa forma, em
busca de elaborar uma forma diversa de abordar a questão que gira em torno da
autoria e participação, surgiram outras teorias que se ocuparem desta de temática, e
que agora serão analisadas.
2.2 CONCEITO EXTENSIVO DE AUTOR
O conceito extensivo de autor possui grandes semelhanças com o conceito
unitário de autor, isto porque, ambos fundam-se na causalidade e na teoria da
equivalência das condições. Porém, existe uma circunstância que os distingue.
A distinção entre estes conceitos deriva do fato de que no sistema jurídico em
que é aplicado o conceito extensivo existem normas que qualificam a participação
como atenuação da pena7.
Mariana Tranchesi Ortiz, também considerando esta diferença, afirma que é
da conjunção entre o conceito unitário com a legislação penal, que prevê a
participação como atenuação, que surge o conceito extensivo de autor:
“A combinação da concepção unitária da colaboração ao delito com uma
legislação penal disciplinadora da participação conduziu à formulação do
conceito extensivo de autor, segundo o qual o partícipe é partícipe não
6
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: Parte General, vol. II. Trad. Santiago Mir
Puig; Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981. p. 890.
7 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro, volume I: parte geral. São Paulo:
Editora Revistas dos Tribunais, 2008, p. 571.
229
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
porque sua contribuição ao crime possua, em si, menor relevância, mas
porque a lei previu expressamente uma hipótese que lhe limita a
punibilidade.”8
Ademais, para este conceito o partícipe é autor, porém, beneficiado por uma
causa de restrição da pena, ou seja, não há uma verdadeira distinção entre autoria e
participação, já que, essencialmente, para este conceito todos os que contribuem
para prática de um delito são autores:
“Según ella, también el inductor y el cómplice son en sí autores, pero el
establecimento de especiales preceptos penales para la participación pone
de manifiesto que estas formas de intervención en el marco del concepto
global de autor deben tratarse de forma distinta de la autoría misma. La
inducción y la complicidad, aparecen, así, como causas de restricción de la
pena.”9
Desta forma, as críticas que se fizeram ao conceito unitário de autor são
válidas para o conceito extensivo de autor, que pouco inova sobre a questão da
autoria e participação no Direito Penal.
2.3 CONCEITO RESTRITIVO DE AUTOR
O conceito restritivo de autor se distingue dos conceitos analisados acima
pelo fato de diferenciar as condutas daqueles que contribuem para pratica de fato
penalmente relevante:
“O conceito restritivo é aquele que melhor se coaduna com a perspectiva
das teorias positivas, uma vez que não apenas admite a existência de duas
classes distintas de intervenção delitiva, mas também pressupõe a
existência de diferenças intrínsecas entre ambas, que não se situariam
apenas no âmbito da culpabilidade, mas conformariam o próprio injusto.” 10
A distinção entre autor e partícipe no conceito restritivo de autor se dá pelo
estabelecimento de critérios objetivos. Desta forma, a definição da autoria afasta-se
do critério causal:
8
ORTIZ, Mariana Tranchesi. Concurso de agentes nos delitos especiais. São Paulo: IBCCRIM,
2011. p. 48.
9 JESCHECK, 1981, p. 895.
10 TRANCHESI, op. cit., p. 55-56.
230
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
“A admissão de diferenças objetivas entre as condutas de autoria e as de
participação em sentido estrito, pelo conceito restritivo de autor, conduz à
ruptura com o dogma causal, que tão fortemente embasou as concepções
unitária e extensiva. Para a concepção restritiva, a realização do tipo delitivo
não equivale à interposição de um condição causal ao resultado
(naturalístico ou normativo).”11
Além disso, é importante pontuar que, diferentemente do que ocorre com o
conceito extensivo, onde a participação é simples atenuação da pena, na aplicação
do conceito restritivo há uma ampliação da punibilidade para que se alcance a
conduta do agente:
“A razão de ser dessa diferença estrutural é simples: na medida em que,
para o conceito extensivo, todos aqueles que interpõem uma causa para o
delito devem ser considerados autores, a previsão normativa das formas de
participação apenas pode ser explicada sob a ideia de que constituem
causas de restrição da punibilidade. Já no que diz respeito à postura
restritiva, segundo a qual a conduta típica é perpetrada pelo autor, apenas
se admitindo a participação como uma hipótese de ampliação do âmbito do
punível é que se torna justificável a repressão da conduta do partícipe.”12
As principais teorias que buscaram descrever os critérios objetivos em que se
distinguiriam, no conceito restritivo, as condutas de autores e partícipes são as
teorias objetivo-formal e objetivo-material, que serão descritas abaixo.
2.3.1 Teoria Objetivo-Formal
A teoria objetivo-formal parte da ideia de que só pode ser autor “aquele que
executa, total ou parcialmente, a conduta que realiza o tipo (de ilícito)” 13. Sendo
assim, as outras condutas que possuam relação causal com o resultado seriam
determinadas como contribuições dos partícipes:
“Según esto, autor es, sólo, quien comete por si mismo la acción típica,
mientras que la sola contribuición a la causación del resultado mediante
11
TRANCHESI, 2011, p. 56.
Ibidem, p. 57.
13 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral: Tomo I: Questões Fundamentais: a
doutrina geral do crime. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Portugal: Coimbra Editora, 2007, p.
759.
12
231
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
acciones no típicas no puede fundamentar autoria alguna (concepto
restrictivo de autor).”14
Entretanto, as dificuldades surgem da incapacidade deste critério demasiado
formalista em determinar os autores nos delitos de resultado, já que nestes o tipo
penal não define qual conduta é proibida, mas pune qualquer tipo de conduta que
produza o resultado danoso. Assim como, nos casos de autoria mediata em que o
autor utiliza-se de um instrumento para realizar o fato delituoso. Sobre estas
dificuldades esclarece Stratenwerth:
“Sin embargo, tanto aquí como allí, se impone la necesidad de delimitar el
concepto de “acción ejecutiva” de modo más preciso (conf. supra No. 653):
? ejecuta el delito de homicidio doloso el que hace caer a la víctima en la
trampa o sólo aquél que dispara el tiro mortal? Enfrentados a esta cuestión,
los representantes de la teoria formal objetiva han respondido, en primer
término, que el autor sólo sería aquél que realiza el supuesto de hecho
“personalmente” (Graf zu Dohna, Der Aufbau de Verbrechenslehre 3ra. ed.,
1947, 59). No obstante, de este modo no se eliminan las dificultades: ? con
qué derecho se podria decir por ejemplo, que solamente el disparo ha
realizado la acción adecuada al supuesto de hecho personalmente, o a la
inversa: con qué derecho se incluye al otro como coautor? Pero, por otra
parte, se presentan nuevas dificultades, especialmente cuando el “autor” se
sirve de um instrumento inocente en la comisión del delito, es decir, cuando
precisamente no ejecuta el hecho con propria mano. Esta complicaciones
sólo permiten a la teoría formal – objetiva explicitar el critério del que, en
realidad, había partido: el critério del “uso común del lenguaje”, es decir,
aquél que puede permitir extender los verbos (“matar”, “sustraer”, etc.)
utilizados en los supuestos hecho legales, hasta alcanzar los casos de
utilización instrumental de otra persona, o sea, la comisión por mano ajena
(Beling, Grundzüge des Strafrechts, 11ª. edición, 1930, 37, 39 y ss.). Este
recurso al uso del lenguaje, significa la renuncia a la formulación de critérios
distintivos precisos. La teoría formal–objetiva tan sólo puede proporcionar,
como en la tentativa, un primer punto de apoyo.” 15
Em busca de solucionar algumas das dificuldades da teoria objetivo-formal foi
formulada a teoria objetivo-material:
“O que em desfavor dela se aponta é que – paralelamente ao que vimos
acontecer com a correspondente teorização dos actos de execução na
tentativa – ela não é, por si própria e sem outros desenvolvimentos,
suficientemente explícita quanto à definição dos critérios prático-normativos
da autoria, importando procurar, atrás das palavras da lei com que se
exprime o tipo de ilícito, o que significa “executar o facto”; para o que se
torna por sua vez indispensável determinar que elementos do
14
15
JESCHECK, 1981, p. 892.
STRATENWERTH, 1982, p. 228-229.
232
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
comportamento assumem relevo para a distinção, e porquê. A isso vieram
as chamadas teorias material-objectivas.”16
Sem mais, passamos a descrição da teoria objetivo-material.
2.3.2 Teoria Objetivo-Material
Conforme exposto acima, é da falta de aptidão da teoria objetivo-formal em
determinar autores e partícipes nos crimes de resultado que fez surgir a teoria
objetivo-material.
A teoria objetivo-material busca valorar, objetivamente, as diferentes condutas
praticadas pelos agentes na intervenção delitiva. Nos dizeres de Mariana Tranchesi
Ortiz, os autores seriam aqueles que praticassem a conduta mais relevante para a
realização do delito:
“O critério material a que recorre a teoria objetivo-material é o do valor
objetivo da contribuição de cada qual dos intervenientes, identificando-se o
autor como aquele que realiza a contribuição objetivamente mais importante
para o sucesso delitivo.”17
Esta graduação das contribuições dos diferentes intervenientes também não
satisfaz a problemática da autoria, uma vez que não é só o “suceso externo” 18 que
determina a diferença entre as diversas contribuições para a pratica de fato
penalmente relevante.
Nesta toada, é necessário utilizar-se, novamente, das palavras de Günter
Stratenwerth:
“Buscar la característica de la acción ejecutiva, en una relación causaI
especialmente intensa com respecto al resultado adecuado al supuesto de
hecho, es un intento que se há manifestado como irrealizable: en principio,
no es posible distinguir las causa necesarias o imprescindibles de las que
tienen solamente un papel secundário (Feuerbach, Lehrbuch des peinlichen
Rechts, 9ª. ed., 1826, 44 y s.). Pero, además, tampoco se pueden distinguir
las causas de las condiciones, o la causalidad física de la psíquica (Frank, II
prévio al § 47, pág. 104); y aún cuando esto no fuese así, tales distinciones
nada tienen que ver com el nucleo de la cuestión, como se advierte em
cuanto se admite que la autoría tiene que depender (por lo menos también)
de momentos subjetivos, tales como el conocimiento de los hechos.
16
DIAS, 2007, p. 759-760.
TRANCHESI, 2011, p. 68.
18 JESCHECK, 1981, p. 894.
17
233
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Precisamente esta objeción, también, es válida frente todas las teorias que
tan sólo se quieren apoyar en critérios objetivos-exteriores.”19
O autor português Jorge de Figueiredo Dias vai um pouco mais além do
conceito citado acima ao sustentar que a teoria objetivo-material, por fundar-se na
causalidade, não ultrapassa o conceito extensivo de autor: “Perante a falência das
teorias objectivas da autoria fundadas na categoria da causalidade e defensoras, por
isso, de um conceito extensivo de autor, procurou-se no lado subjectivo do crime o
fundamento da autoria”20.
Por fim, o que se destaca é que da incapacidade das teorias objetivas em
solucionar os diferentes problemas de autoria e participação que surge a teoria
subjetiva.
2.4 TEORIAS SUBJETIVAS
É, na verdade, a falta de outro critério, que não o objetivo, para distinguir
autoria e participação, que faz surgir as teorias subjetivas, sendo que estas
elegeram parâmetros subjetivos dos intervenientes e do crime para que fossem
determinadas a autoria e a participação nos fatos relevantes para o Direito Penal.
Neste sentido, esclarece Jorge de Figueiredo Dias sobre o fundamento da
autoria pautado pelo lado subjetivo do ilícito-penal:
“Este seria encontrado em realidades puramente internas e psíquicas,
sejam elas a vontade, a intenção, os motivos, os sentimentos ou as atitudes
interiores do agente, por aí conduzindo à aceitação de um conceito de
autoria que a distinguiria substancialmente da participação. Segundo uma
formulação já antiga, mas ainda hoje porventura não superada, é autor
quem realiza o facto de outrem com vontade de autor (com animus
acutoris), participante quem colabora no facto de outrem com vontade de
partícipe (com animus socii). Por outras palavras, o autor quer o facto como
próprio, o partícipe quer o facto como alheio.”21
Portanto, para aqueles que adotaram estas teorias, autor seria aquele
possuiria animus auctoris e partícipe aquele que possuísse animus socii, ou seja,
seriam considerados autores aqueles que tivessem ânimo de ter o delito como
19
STRATENWERTH, 1982, p. 229.
DIAS, 2007, p. 764.
21 DIAS, loc. cit.
20
234
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
próprio e partícipes seriam aqueles que tivessem ânimo de, apenas, participar em
ato de outra pessoa.22
Porém, da aplicação prática destes critérios surgiram inúmeros absurdos,
como, por exemplo, não se considerar como autor o individuo que agiu e executou,
livremente, um fato delituoso.
Portanto, por mais que as teorias subjetivas tenham auxiliado na evolução
dos critérios para apuração da autoria e participação e o critério subjetivo tenha seu
valor, não prosperou.
2.5 TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO
Os critérios objetivos e subjetivos para a determinação da autoria e
participação foram agrupados por Hans Welzel na teoria do domínio final do fato,
este autor é considerado o precursor da referida teoria, todavia, citando Claus Roxin,
Figueiredo Dias resume o caminho percorrido pela doutrina até a mais atual vertente
da teoria do domínio:
“Na tentativa, em todo o caso, de se ir mais longe na determinação do
sentido normativo da figura em apreço, não deixa de constituir um bordão
precioso – como sempre – o estudo de sua história dogmática. A idéia terá
sido preconizada pela primeira vez por Lobe, o qual, partindo embora das
teorias subjectivas, acentua que não basta à autoria uma vontade
realização do tipo (elemento subjectivo), mas é preciso (elemento objectivo)
“que a vontade também domine e dirija a execução que serve a sua
realização... Na participação falta o domínio da acção de execução que tem
por objectivo a produção do resultado”. O passo seguinte – sem dúvida de
maior ressonância – foi dado por Welzel que, lançando o conceito mesmo
no centro da doutrina da acção final, defende que “o domínio do facto cabe
àquele que leva até à execução a sua decisão volitiva consciente da
finalidade”; ao mesmo tempo que acentua vivamente que esta concepção
constitui apenas decorrência “das determinações fundamentais do conceito
final de acção e do conceito pessoal do ilícito na acção dolosa”. Um
enriquecimento e ao mesmo tempo uma inflexão decisivos do conceito
ocorrem depois por obra de Gallas – que sustenta que a concepção do
domínio do facto não é, ao contrário do que pensava Welzel e como a
evolução demonstrou, nada de consubstancial à doutrina da acção final –,
ao colocar um elemento declaradamente objectivo como ponto de partida do
conceito de domínio do facto que o vincula ao tipo de ilícito, e ao assinalarlhe a função (normativa ou valorativa) de “parâmetro para um interpretação
mais aprofundada da conduta típica”. É todavia com Roxin e a sua
monumental investigação dogmática, justamente intitulada Autoria e
Domínio do Facto, que o conceito é largamente desenvolvido e precisado,
22
TRANCHESI, 2011, p. 50.
235
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
conduzindo a conclusões claras, se bem que não conceitualmente
“fechadas”, e se arvora, assim, em uma verdadeira teoria.”23
Desta feita, apesar de historicamente resumido o caminho percorrido até o
trabalho de Roxin, o mais atual e completo trabalho sobre este tema, serão
analisadas as particularidades do conceito formulado por Hans Welzel. Sendo
assim, parece importante a consideração feita por Mariana Tranchesi que, ao
analisar o trabalho de Welzel, dimensionou-o relacionado à teoria final da ação, vez
que dominaria o fato aquele que direciona ação tendo em vista o fim que pretende:
“Conforme a teoria do domínio final do fato, nos delitos dolosos, o papel de
autor reconhece-se naquele que dirige a ação típica com vistas a
determinado fim, em razão de sua decisão volitiva. O conceito de domínio,
assim, bem se compadece com a teoria finalista da ação, pois traduz
justamente a ideia segunda a qual o desencadeamento causal de uma
determinada conduta (dolosa) não é algo que se desprende do agente que
o impulsiona, mas está vinculado a uma finalidade que controla o sucesso
naturalístico.”24
Portanto, como se depreende desta citação, a primeira elaboração de Welzel
da teoria do domínio do fato está intimamente relacionada com a vontade que dirige
o acontecimento delituoso em busca de um fim determinado, teoria final da ação,
sendo que a alcunha autor seria conferida àquele que pudesse, objetiva e
subjetivamente, encontrar-se em uma posição de controle sobre a realização,
utilizando o termo empregado pela autora citada, do sucesso naturalístico.
Entretanto, a primeira elaboração de Welzel sofreu algumas mudanças devido
às críticas recebidas pela inaptidão da teoria do domínio final do fato em resolver
alguns casos limites, por exemplo, quando há concurso de pessoas nos delitos
especiais e alguns dos intervenientes não possuam a qualificação exigida pelo tipo
penal. O autor tentou mitigar estas dificuldades através da incorporação de critérios
normativos:
“Nesse contexto, o critério do domínio inicialmente idealizado por Welzel
passou a ser reformulado de tal modo a incorporar elementos normativos
aptos a fornecer soluções àquelas hipóteses às quais uma noção
puramente naturalística de domínio não respondia de forma satisfatória.” 25
23
DIAS, 2007, p. 766-767.
TRANCHESI, p. 86.
25 TRANCHESI, 2011, p. 89.
24
236
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Para tanto, a autoria nos casos limites citados acima ficaria vinculada às
características pessoais e sociais e não apenas ao domínio final do fato:
“Apenas com a concorrência das citadas características pessoais é que
determinado sujeito teria o domínio do fato não apenas em seu aspecto
final, mas também em seu caráter “social”, e assim se converteria em autor
do delito”26
Antes de se analisar a grande contribuição feita por Claus Roxin à teoria do
domínio do fato e a fim de demonstrar a separação que há entre a teoria do domínio
do fato e a teoria final da ação, é importante que se observe um trecho da obra de
Stratenwerth, que, ao falar sobre os pressupostos do domínio, afasta-o do dolo:
“Los presupuestos del domínio del hecho, sin embargo, no dejan de ofrecer
dificultades. Sin duda, de su conexión sistemática con la teoría de la acción
se deduce que el dolo, como voluntad final de realización, resulta
imprescindible en el aspecto subjetivo. El que obra sin dolo no puede ser
autor de um delito doloso de acción. Pero el dolo, por si solo, no permite
fundamentar todavia el domínio del hecho, lo que ya se pone de manifiesto
cuando se comprueba que el partícipe (instigador o cómplice) carece
precisamente del domínio del hecho a pesar de obrar con dolo. La
circunstancia de que el cómplice abandone al autor la decisión sobre la
consumación del hecho no tiene incidência alguna respecto de lo que acaba
de afirmarse: también en esta hipótesis, el cómplice tiene la voluntad final
de realización, dado que, por lo menos, acepta la producción del resultado
del delito.”27
Diante do exposto acima, pode-se passar ao trabalho de Claus Roxin. Este
autor parte da ideia de que não há como se criar uma teoria sobre autoria aplicável a
todas as classes de delitos e, por isso, a teoria do domínio do fato seria aplicável
apenas aos delitos dolosos:
“Embora alguma pretensão de generalização se encontre na proposta de
Roxin, é certo que, comparativamente aos conceitos de cunho normativos
vistos até aqui, o domínio do fato exposto na famosa obra Autoria e domínio
do fato em direito penal não pretende resolver todas as hipóteses de
concurso de pessoas, mas apenas aquelas que envolvam delitos comuns,
comissivos e dolosos, admitindo-se a impossibilidade de impor um único
conceito de autor para todas as manifestações delitivas.” 28
26
Ibidem, p. 90.
STRATENWERTH, 1982, p. 232.
28 TRANCHESI, 2011, p. 91-92.
27
237
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Sendo assim, ele parte para a análise da teoria do domínio nos crimes
dolosos e, para isso, afirma que existem três formas diferentes para dominar o fato
delituoso, quais sejam: domínio da ação; domínio da vontade e domínio funcional do
fato.
O domínio da ação se evidencia nos casos de autoria direta, quando não há
concurso de pessoas e um único indivíduo age pessoalmente para realizar o crime.
O domínio da vontade encontra-se nos casos de autoria mediata em que o
homem de trás utiliza-se o homem da frente como instrumento de sua vontade, são
três casos em que este tipo de domínio se realiza: quando o homem da frente atua
sob coação ou erro; quando o homem da frente é inimputável e, por último, quando
o homem da frente faz parte de uma organização de poder liderada pelo homem de
trás.
O domínio funcional é aquele em que os autores dividem as tarefas para
pratica do fato de delituoso, portanto, permitindo a responsabilização da coautoria.
Por fim, como dito acima, para o autor alemão a teoria do domínio do fato não
se aplica aos delitos especiais, de mão própria e omissivos. Portanto, “Roxin
introduz a idéia da infração de dever como critério de atribuição da responsabilidade
a título de autor. ”29
2.6 SOBRE OS DELITOS DE INFRAÇÃO DE DEVER
Neste momento, se analisará as diferentes teorias que surgem a fim de
esclarecer como se dá o processo de responsabilização decorrente desta separação
entre os delitos de resultado e os chamados delitos de infração de dever.
Antes de tudo, convém esclarecer que tal distinção não é aceita em sua
totalidade, bem como que surgem diversas críticas e abordagens distintas sobre a
responsabilização nos delitos de infração de dever.
Para tanto, cuidar-se-á da teoria de Claus Roxin no que abrange a esta parte
de seu trabalho.
29
Ibidem, p. 94.
238
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
2.6.1 A autoria nos delitos de infração de dever na visão de Claus Roxin
Aos delitos de infração de dever, conforme já foi dito acima, não se aplica a
teoria do domínio do fato. Entretanto, agora, não serão perquiridos quais são os
motivos que levaram à adoção de tal medida por Roxin.
Por mais que pareça difícil se desvencilhar desta questão, o autor alemão
afasta-se da discussão a respeito dos motivos que levam o legislador a criar tipos
penais que impõem, aos agentes que executam o fato previsto, uma especial
característica, reduzindo, assim, em tese, o grupo de pessoas que podem realizar a
conduta proibida. Para tanto, justifica que a teoria dos delitos de infração de dever é
um critério para que se possa aferir a autoria nestas situações específicas:
“Não há como tratar da infração de dever como fundamento dos delitos
especiais sem partir da análise da teoria idealizada por Roxin, ainda que se
possa questionar sua caracterização, conforme a classificação empregada
por Gómez Martín, como formulação ‘pura’, haja vista que o próprio Roxin,
na última edição de seu Autoria e domínio do fato em direito penal, refira
que a teoria dos delitos de infração de dever consistiria em mero critério de
imputação da autoria nos delitos especiais, negando-lhe função no sentido
de justificar a essência da limitação típica nesses delitos” 30
Não se ignora a discussão sobre os delitos especiais31 e sua ratio essendi.
Porém, esta questão não será analisada nesse artigo. Dessa forma, os esforços se
concentraram em apontar a relevância e o modo em que se configura a autoria
nestes casos para Roxin.
A responsabilidade penal a título de autoria nos delitos de infração de dever,
segundo
a
visão
do
autor
sob
análise,
seria
sempre
do
intraneus
independentemente de ter contribuído para a consumação do crime, sendo que sua
ausência implicaria na não realização do delito especial – o que não impede que
outro delito, que não seja o especial, considere-se praticado:
“”Nos delitos de infração de dever, a figura central do acontecer típico, para
Roxin, será sempre o intraneus, com total independência de sua efetiva
contribuição para o resultado delitivo, pois – assim se entende – sem ele
não há delito (ao menos, não há delito especial). Por sua vez, ainda que
tenha dominado objetiva e subjetivamente o fato, o extraneus será sempre
partícipe.”32
30
TRANCHESI, 2011, p. 139.
Assim como Mariana Tranchesi, nos utilizaremos da expressão “delitos especiais” para expressar o
que a doutrina brasileira comumente chama de “crimes próprios”..
32 TRANCHESI, op. cit., p. 143.
31
239
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Portanto, o autor nestes casos é o agente qualificado e partícipe todo aquele
que, não possuindo a qualidade necessária, contribui para o acontecimento delitivo.
É o que se depreende da citação abaixo:
“Desse modo, enquanto nos delitos de domínio autor é quem controla o
acontecer típico - sendo partícipe o cooperador sem domínio do fato – nos
Pflichtdelikte é autor aquele que infringe o especial dever. A participação,
neste caso, seria definida como colaboração sem infração de dever.” 33
A coautoria nos delitos de infração de dever se reservaria aos casos em que
todos intervenientes detivessem a qualificação especial, todavia, segundo a crítica
de alguns autores, até mesmo nestes casos não estaria certa a coautoria, vez que
cada um dos intervenientes estaria individualmente vinculado ao dever protegido
pela norma e, sendo assim, caracterizando-se a autoria colateral e não coautoria:
“Bem identificou Roxin que sua teoria dos delitos de infração de dever
redundaria na significativa limitação do âmbito da coautoria, como
realização conjunta da ação principal. Afinal, conforme o critério do domínio
do fato, a coautoria existiria sempre que se pudesse verificar um codomínio
ou, noutras palavras, um domínio funcional do acontecer típico pelos
diversos intervenientes. Segundo o critério da infração do dever, só haveria
coautoria nas (raras) hipóteses em que se verificasse pluralidade de
intraneus, e estes, submetidos a um mesmo especial dever, infringissem-no
simultaneamente.
A excepcionalidade da coautoria nos delitos de infração de dever tem a ver
com o caráter pessoal – personalíssimo, segundo alguns – desse mesmo
dever, que vincula individualmente o intraneus. Assim, quando cada qual
infringe sua obrigação oriunda de outros ramos do Direito, a tendência é
identificar-se hipótese de autoria colateral e não de coautoria. Assim, pois,
na linha de crítica de importantes autores, a ideia da coautoria não se presta
à teoria dos delitos de infração de dever.” 34
Neste momento, resta apenas um ponto relevante a ser considerado, o fato
de que, da forma que se esboça os delitos de infração de dever na visão de Roxin, é
possível a responsabilização a título de participação do extraneus mesmo que o
intraneus pratique a conduta proibida culposamente.
“A mudança de critério acaba por influenciar, segundo o pensamento de
Roxin, a compreensão não só do conteúdo da autoria e da participação
nesses delitos, mas também a relação entre ambas as categorias. Assim
porque, se nos delitos de domínio não se admitiria participação em uma
33
34
Ibidem, p 144.
TRANCHESI, 2011, p. 143-144.
240
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
conduta principal não dolosa, nos delitos de infração de dever não se
verificaria tal limitação. Nesses delitos, como o único exigível para a
imputação de responsabilidade a título de participação seria a “intervenção
sem infração de dever especial”, em nada influenciaria que a conduta do
autor fosse levada a cabo com ou sem dolo.
Desse modo, Roxin acaba por propor uma acessoriedade que se poderia
considerar “aquém da mínima” para os delitos de infração de dever, ao
sustentar que a punibilidade da contribuição a tais delitos dependeria, tão
somente, da existência de uma conduta principal objetivamente típica.” 35
Feita a última ressalva, passamos adiante para análise da evolução da
legislação brasileira para na conclusão poder-se fazer algumas considerações a
respeito do tema deste artigo.
3 AUTORIA E PARTICIPAÇÃO NO BRASIL
3.1 Código Criminal do Império
O Código Criminal do Império de 1830 foi a primeira legislação penal
promulgada no Brasil independente por Dom Pedro I 36, sendo que nesse estava
prevista a distinção entre autores e cúmplices, conforme se percebe da leitura dos
artigos 4° , 5° e 6°, nos quais estavam estabelecidas as disposições sobre autoria e
cumplicidade.
O referido artigo 4° dispunha sobre a autoria e eram considerados autores
aqueles que praticassem, cometessem, constrangessem ou mandassem alguém
cometer crimes; já o artigo 5° dispunha sobre cumplicidade: todos aqueles que
diretamente concorressem para prática de um delito seria considerado cúmplice; por
último, o artigo 6° punia a receptação e o favorecimento como cumplicidade 37.
A cumplicidade era sancionada com a pena da tentativa, prevista no artigo 35
do referido Código, esta sanção representava que cúmplice era punido pela pena do
crime consumado reduzida por um terço38.
35
Ibidem, p. 145
BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes: Uma investigação sobre os Problemas da Autoria e da
Participação no Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. p. 1.
37 Ibidem, p. 3.
38 Ibidem, p. 4.
36
241
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
3.2 Código Penal da República
O Código Penal da República de 1890 não alterou o conteúdo código anterior
no que diz respeito à autoria e cumplicidade, vez que no artigo 17 havia previsão
expressa de que os agentes do crime eram autores ou cúmplices39.
Os parágrafos do artigo 18 estabeleciam quais eram as condutas
consideradas de autor, quais sejam:
“Art. 18 – São autores: § 1" - Os que directamente resolverem e executarem
o crime; § 2" - Os que, tendo resolvido a execução do crime, provocarem e
determinarem outros a executai-o por meio de dádivas, promessas,
mandato, ameaças, constrangimento, abuso ou influencia de superioridade
hierarchica; § 3" - Os que, antes e durante a execução, prestarem auxílio,
sem o qual o crime não seria commettido; § 4 - Os que directamente
executarem o crime por outrem resolvido.”40
Antes de serem analisados os artigos 19 e 20 que ainda tratam sobre a
autoria, aponta-se para o fato de que o código republicano punia como autor do
delito o superior hierárquico que por abuso ou influência determinasse ou
provocasse terceiro a praticar um fato delituoso.
No artigo 19 estava previsto que aquele que mandasse ou provocasse
terceiro a cometer um delito seria responsabilizado como autor, sendo lhe imputável
qualquer outro crime praticado pelo terceiro no intuito obter o resultado, bem como
os crimes que resultassem da conduta. Entretanto, o artigo 20 dispunha que se o
mandante retirasse a tempo sua cooperação pelo crime não poderia ser
responsabilizado41.
O artigo 21 estabelecia a responsabilidade dos cúmplices, que seriam
aqueles que, não tendo mandado ou provocado o crime, fornecessem instruções ou
39BATISTA,
2005, p. 7.
Ibidem, p. 8.
41 Art. 19 - Aquelle que mandar ou provocar, alguem a commetter crime, é responsável como autor: §
40
1º - Por qualquer outro crime que o executor commetter para executar o de que se encarregou; § 2º
Por qualquer outro crime que daquelle resultar. Art. 20 - Cessará a responsabilidade do mandante si
retirar a tempo a sua cooperação no crime.
242
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
auxiliassem na execução do crime; aqueles auxiliassem a fuga, a ocultação de
instrumentos do crime ou a apagar os vestígios; a receptação e favorecimento 42.
Por fim, o artigo 64 previa para a cumplicidade a mesma pena da tentativa,
mesma sanção do Código Criminal do Império43.
3.3 Código Penal de 1940
O Código Penal de 1940 encerra a distinção entre autoria e participação,
adotando
causalidade
e
equivalência
das
condições
como
critérios
para
determinação da autoria. O referido código teve como inspiração o código italiano de
1930 e, nos dizeres de Nilo Batista, simplificou a legislação penal:
“O código penal de 1940, inspirando-se confessadamente no código
italiano de 1930 quanto à orientação adotada, conferiu-nos as normas mais
simplificadas que jamais regeram a matéria no desenvolvimento histórico do
direito penal brasileiro. ”44
As questões relativas à autoria e participação encontravam-se reguladas nos
artigos 25, 26 e 27, do Título IV da Parte Geral do código.
O artigo 25 adota um “conceito extensivo, de base causal” 45, vez que dispôs:
Art. 25 – Quem de, qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este
cominadas. É da própria leitura deste artigo que se observa a nova opção legislativa
pelo conceito referido acima. Portanto, patente a distinção dos códigos analisado
anteriormente para com este.
42
Art. 21 - Serão cúmplices: § l° - Os que, não tendo resolvido ou provocado de qualquer modo o
crime, fornecerem instrucções para commettel-o, e prestarem auxilio à sua execução; § 2° - Os que
antes ou durante a execução prometterem ao cnmmoso auxilio para evadir-se, occultar ou destruir os
instrumentos do crime, ou apagar os seus vestígios; § 3" - Os que receberem. occultarem. ou
comprarem cousas obtidas por meios criminosos, sabendo que o foram, ou devendo sabeI-o, pela
qualidade ou condições das pessoas de quem as houverem; § 4° - Os que derem asylo ou prestarem
sua casa para reunião de assassinos e roubadores. Conhecendo-os comotaes e o fim para que se
reunem.
43
Art. 64 – A cumplicidade será punida com as penas da tentativa e cumplicidade da tentativa com as
penas desta, menos a terça parte. Quando, porém, a lei impuzer á tentativa pena especial, será
applicada integralmente essa pena à cumplicidade.
44
45
BATISTA, 2005, p . 14-15.
Ibidem, p. 15.
243
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
O artigo 26 estabelecia a incomunicabilidade das circunstâncias de caráter
pessoal, salvo quando elementares ao crime. E o artigo 27 dispunha que os
partícipes não seriam punidos se o crime não fosse, pelo menos, tentado.
Esta mudança de postura foi citada na exposição de motivos do código:
“O projeto aboliu a distinção entre autores e cúmplices: todos os que tomam
parte no crime são autores. Já não haverá mais diferença entre participação
principal e participação acessória, entre auxílio necessário e auxílio
secundário, entre a ‘societas criminis” e a “societas in crimine” 46.
A parte geral do código de 1940 sofre, em 1984, uma grande mudança
principalmente na parte referente às penas e medidas de segurança e no que se
refere à teoria do delito. Entretanto, naquilo que diz respeito à autoria e participação
a alteração foi mais modesta47.
3.4 A Lei n° 7.209/84 e a Reforma de 1984 ao Código Penal e as Questões Sobre
Autoria e Participação
As alterações que se deram nas disposições referentes à autoria e
participação, em conformidade com aquilo que já foi dito acima, foram pequenas
comparadas às mudanças implementadas em outros pontos da Parte Geral do
Código Penal. Contudo, não se deixou de se evidenciar uma nítida evolução destes
institutos.
É preciso que se destaque a inclusão, na disposição do antigo artigo 27,
artigo 29 após as alterações, de prescrição normativa que estabeleceu que a análise
da culpabilidade deve ser realizada distintamente em relação a cada interveniente 48.
Por outro lado, nota-se a conversão da participação de menor importância de
atenuante (inciso III, do antigo artigo 48) para causa de diminuição pena, alteração
que se apresenta como benéfica ao acusado, uma vez que o partícipe que atue de
forma menos importante poderá, dependendo do caso concreto, sofrer condenação
abaixo do mínimo legal. Esta nova disposição encontra-se no § 1°, do artigo 29.49
46
TRANCHESI, 2011, p. 73.
BATISTA, 2005, p. 24.
48 Ibidem, p. 25.
49 BATISTA, loc. cit.
47
244
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
No tocante à disposição referente à participação em crime menos grave, que,
da redação original do Código, levava à responsabilidade objetiva do partícipe
(parágrafo único, do artigo 49), houve mudança que conformou a disposição
normativa ao princípio da culpabilidade (§ 2°, do artigo 29).50
As disposições referentes à incomunicabilidade das circunstâncias de caráter
pessoal, salvo quando elementares do tipo, e à impunibilidade de meros atos
preparatórios foram mantidas (artigo 30 e 31, respectivamente).51
Por fim, constata-se a manutenção da agravante para os casos em que haja
concurso de agente (artigo 62), bem como destaca-se as disposições do § 2°, do
artigo 20, e do artigo 22 que tratam de modalidades de autoria mediata, por mais
que não o digam expressamente.52
4 CONCLUSÃO
Primeiramente, convém apontar que nos primeiros Códigos Penais que foram
promulgados em nosso país o legislador preocupou-se em fazer distinção entre
autores e partícipes, apesar dessa distinção ser ainda incipiente.
Contudo, essa distinção encerrou-se com o advento do Código Penal de
1940, que adotou a teoria unitária de autor. No entanto, após inúmeras críticas à
essa teoria e sua adoção pelo legislador, sobreveio a Lei 7.209/84, que alterou a
parte geral do Código Penal e, conforme dito acima, também a parte atinente ao
Concurso de Pessoas.
Sendo assim, é necessário que se façam algumas ponderações a respeito da
teoria que foi adotada pelo Código Penal Brasileiro vigente, ou seja, aquele de 1940
que foi alterado pela Lei n° 7.209/84. Portanto, a pretensão era distinguir a forma
pela qual se daria a responsabilização dos diferentes intervenientes que praticam
um fato delituoso, tendo em vista que a disposição alterada não fazia essa distinção.
Porém, apresenta-se uma situação contraditória na parte geral do Código
Penal no que diz respeito à autoria e participação, pois, apesar de aparentemente
não haver adotado nenhuma teoria e haverem autores que defendam ter sido
adotada a teoria restritiva de autoria, é flagrante que as disposições dos artigos 20, §
50
BATISTA, 2005, p. 25.
BATISTA, loc. cit.
52 BATISTA, loc. cit.
51
245
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
2°, e 22 do Código apontam para a responsabilização penal conforme a teria do
domínio do fato, a qual possibilita que os autores mediatos sejam responsabilizados
pelo fato criminoso praticado por instrumento que agiu sem dolo.
Dessa forma, é preciso observar-se as contradições inerentes ao próprio
Código Penal, uma vez que também se denota da leitura do artigo 13 resquícios da
teoria da causalidade.
Portanto, parece importante que o legislador tome um partido e deixe claro
afinal qual é a teoria adotada, já que a moldura de aplicação disponibilizada aos
juízes demonstra-se extensa, o que não se compatibiliza com os princípios que
regem o Direito Penal.
246
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
5 REFERÊNCIAS
BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes: Uma investigação sobre os Problemas da
Autoria e da Participação no Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2005.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral. 14.
ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 454
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral: Tomo I: Questões
Fundamentais: a doutrina geral do crime. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais;
Portugal: Coimbra Editora, 2007.
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: Parte General, vol. II.
Tradução Santiago Mir Puig; Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981.
ORTIZ, Mariana Tranchesi. Concurso de agentes nos delitos especiais. São
Paulo: IBCCRIM, 2011.
STRATENWERTH, Günter. Derecho Penal: parte geral, I. Tradução Gladys
Romero. Madrid: Edersa, 1982.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro, volume I: parte
geral. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2008.
247
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
248
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
CRIMINOLOGIA E O CONTROLE SÓCIO-PENAL
CRIMINOLOGY AND THE SOCIAL CRIME CONTROL
Giana Engelhorn Jacon1
Mário Luiz Ramidoff2
1
Graduanda em Direito pelo UNICURITIBA/PR.
Graduado pelo Curso de Graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1991); Mestre
pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002);
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná (2007). Pósdoutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina (2012); Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná; Professor Titular do
Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba; Professor do Centro Universitário Internacional - Uninter;
Experiência na área de Direito, com ênfase em: Direito da Criança e do Adolescente; Direito Penal;
Ministério Público; Direito Procesual Penal; Criminologia; e Política Criminal.
2
249
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SUMÁRIO
RESUMO. ABSTRACT. 1. INTRODUÇÃO. 2. ESTADO E CONTROLE SOCIAL. 3.
CONTROLE
SÓCIO-PENAL.
4.
PROCESSOS
DE
CRIMINALIZAÇÃO.
5.
SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL. 6. PODER DAS AGÊNCIAS PENAIS. 7.
CONSIDERAÇÕES PENAIS. REFERÊNCIAS.
250
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
O presente artigo objetiva estudar o controle sócio penal exercido pelo Estado, sua
atuação através da cominação, aplicação e execução das sanções penais, bem
como sua parcela de responsabilização perante as condutas delituosas, sob o ponto
de vista de sua participação na criação da realidade criminal. Esta análise se
fundamentou em estudos compostos pela verificação da existência de instituições de
controle dentro de uma sociedade e seus diferentes graus de influência; sendo
decorrente, a constatação da relevância do Direito Penal no exercício do controle
social, a partir da análise de seus caracteres diferenciadores, quais sejam:
subsidiário, coercitivo e programático. Ao fim, debateu sobre os processos de
criminalização: primário e secundário, os fenômenos da seletividade e etiquetagem
do sistema penal (labelling approach) e o poder das agências penais perante esses
processos.
Ainda,
ressalta-se
que
a
metodologia
de
pesquisa
consistiu
essencialmente em buscas bibliográficas, com a análise de artigos, textos e obras
pertinentes ao tema pesquisado, uma vez que se trata de um assunto
fundamentalmente teórico.
Palavras-chave: controle sócio penal; processos de criminalização; seletividade do
sistema penal; labelling approach.
251
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
The following article's main goal is to study the social crime control exercised by the
State, its performance through formulation, application and execution of penalties, as
well as its plot of responsibility before criminal conducts, from the point of view of its
participation on the development of criminal reality. This analysis has grounded itself
in studies composed by the verification of control institutions' existence within a
society and its different levels of influence; being due, the confirmation and relevance
of the Criminal Law on the practice of social control, from the analysis of its
differential characteristics, namely: subsidiarity, coercive and programmatic. By the
end, it debated on the criminalization processes: primary and secundary, the
phenomenon of the criminal system's selectivity, the labelling approach and the
power of the criminal agencies before these processes. At last, it is noteworthy that
the research methodology consisted mainly of literature searches, with the analysis
of articles, texts and books relevant to the research topic, since this is a basically
theoretical subject.
Keywords: social crime control; criminalization processes; criminal system’s
selectivity; labelling approach.
252
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como escopo uma análise do controle sócio penal, a
atuação estatal nos processos de criminalização: de elaboração e aplicações de
sanções penais; e a recorrente seletividade do sistema penal.
Assim, teve como problematização a análise da parcela de influência e
responsabilidade estatal na criação da realidade criminal, uma vez que o Estado é
quem rege o controle sócio penal, bem como condiciona os processos de
criminalização.
Com efeito, discutiu a influências das instituições de controle dentro do
Estado, tais como a Polícia, o Direito, as instituições escolares, moda, família, mídia,
entre outras; e determinou como foco a atuação do Direito Penal nesse controle
social. Nesse sentido, destacou três caracteres que diferenciam o Direito Penal dos
demais ramos do Direito: seu caráter coercitivo (repressivo-punitivo); subsidiário e
programático.
Ao fim, avaliou o processo de criminalização primário – a elaboração de leis –
e o secundário – a aplicação das sanções penais, momento que destacou a
seletividade do sistema penal e sua ocorrência através de uma seleção quantitativa
e qualitativa das condutas delituosas e dos delinquentes. Nesse sentido, encerrou
enfatizando o poder das agências penais dentro dos processos de criminalização e
do controle sócio penal.
Em resumo, esse trabalho é relevante na análise da parcela de
responsabilidade estatal na prática de condutas delituosas, verificando até que ponto
os processos de criminalização que definem a realidade criminal influenciam na
prática dessas condutas.
2 ESTADO E CONTROLE SOCIAL
Para entender como funciona o Direito e a sua função de controle social,
primeiramente deve se analisar quem detém a premissa desse controle. Aquele que
detém o poder para controlar a sociedade: o denominado Estado.
253
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
O Estado Moderno, forma de Estado atual, surgiu no século XVIII, da
necessidade da classe burguesa em alcançar o poder político; uma vez que era uma
classe social economicamente bem sucedida, mas sem destaque social.
Assim, passando por uma fase do Estado Absolutista para um Estado Liberal,
o Estado Moderno foi configurando as formas da atual sociedade capitalista,
conforme refletiu Wolkmer (1990, p.9):
A categoria teórica Estado deve ser entendida, no presente ensaio, como a
instância politicamente organizada, munida de coerção e de poder, que,
pela legitimidade da maioria, administra os múltiplos interesses antagônicos
e os objetivos do todo social, sendo sua área de atuação delimitada a um
determinado espaço físico.
Assim, conclui-se que o Estado é um instituto outorgado pelos indivíduos que
os compõe, capaz de administrar os interesses e objetivos do todo social por possuir
poder, inclusive de coerção, para tal.
Ainda, também nessa linha, o sociólogo Anthony Giddens (2005, p.343)
detalhou mais esse conceito e definiu o Estado como:
Um mecanismo político de governo (instituições como um parlamento ou
congresso, além de servidores públicos) controlando determinado território,
cuja autoridade conta com o amparo de um sistema legal e da capacidade
de utilizar a força militar para implementar suas políticas. Todas as
sociedades modernas são estados-nações, ou seja, estados nos quais a
grande massa da população é composta por cidadãos que se consideram
parte de uma única nação.
Este Autor ressaltou que o Estado possui uma delimitação territorial para sua
atuação, bem como acrescentou que ampara seu poder de controle em um sistema
legal e militar, ou seja, que o controle social exercido pelo Estado estrutura-se no
Direito e na milícia.
Continuando a conceituação de Estado, não se pode olvidar a definição
simples de Weber (1992, p. 36), no qual o Estado é uma “comunidade humana que
pretende, com êxito, o monopólio legítimo da força física, dentro de um determinado
território”. Destacando que a partir dessa definição de Estado, Weber (1992, p. 37)
definiu a política como “a participação no poder ou a luta para influir na distribuição
do poder, seja entre estados ou grupos dentro de um Estado.
254
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Seguindo essas conceituações de Estado e de sociedade anteriormente
descritas, compreende-se que o Estado é o instituto que tem legitimidade para
representar uma sociedade, mais especificamente, os indivíduos que compõe uma
sociedade.
Nesse sentido, os indivíduos que compõem uma sociedade delegam seus
poderes para grupos de pessoas que se responsabilizam pela organização e
estruturação de determinadas áreas da sociedade.
Essa organização estatal é de extrema necessidade e importância, uma vez
observado que o convívio social é um gerador natural de conflitos, devendo haver
por parte do Estado um controle que possibilite minimizar e conter esses conflitos.
Esse controle que delimita e organiza as ações do coletivo, bem como as
ações individuas de cada sujeito é o chamado controle social.
À vista disso, percebe-se a existência de grupos de poder que juntos compõe
a estrutura de poder estatal. Desta forma, permitem ao Estado o exercício do
controle social, e assim, uma melhor organização do convívio em coletividade.
Os grupos que compõem essas estruturas são as instituições da sociedade,
tais como a família, os centros educacionais, os partidos políticos, a mídia, a religião.
Aquelas que orientam e formam a opinião social.
Assim, na visão de Zaffaroni e Pierangeli, cada instituição tem uma parte no
controle social, algumas com maior amplitude de influência na sociedade e outras
com menor. Mas certo que o controle social, é um conglobamento de instituições
que visam formar uma opinião comum entre a sociedade.
Esse controle é um dos elementos que constitui e equilibra o poder estatal, e
assim, o Estado, por isso de sua importância.
Ademais, verifica-se que esse controle social pode ser de duas formas, como
classificado por Zaffaroni e Pierangeli, uma figura difusa, na qual se inclui os meios
de comunicação em massa, a moda, a família, o preconceito; e sua forma
institucionalizada, as escolas e universidades, a polícia, a Medicina, o Direito.
Com relação a estes grupos, nota-se que alguns destes são mais próximos da
estrutura de poder estatal, ou seja, que oferecem uma maior influência no exercício
do controle social; sendo que a contraponto, existem aqueles mais distantes, mais
marginalizadas e ainda que possuam influência esta é diminuta. Nas palavras de
Zaffaroni e Pierangeli (2009, p. 58):
255
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
O certo é que toda a sociedade apresenta uma estrutura de poder, com
grupos que dominam e grupos que são dominados, com setores mais
próximos ou mais afastados dos centros de decisão. De acordo com essa
estrutura se controla socialmente a conduta dos homens [...] Deste modo,
toda sociedade tem uma estrutura de poder (político e econômico) com
grupos mais próximos e grupos mais marginalizados do poder, na qual,
logicamente, distingue-se graus de centralização e marginalização.
Nesse sentido, pode-se concluir que as sociedades divergem e se
assemelham quando possuem instituições de influência iguais ou diferentes. Para
tal, toma-se como exemplo a grande divergência entre o mundo ocidental e oriental,
uma vez que estes hemisférios possuem instituições de maior influência na estrutura
estatal diferentes.
Nessa linha, pode-se fazer a comparação de diversos países, diversos
Estados, que se assemelharam ou divergem conforme suas instituições de
influência.
Há divergentes qualificações de fatos como delituosos de acordo com o
contexto cultural, e as variações transculturais fazem com que um fato seja
normal em uma cultura e crime em outra, sendo lembrado o exemplo da
incriminação do álcool nos países islâmicos nos quais se admite, no
entanto, a poligamia, punida nos países ocidentais (REALE JUNIOR, 2006,
p. 10).
Assim, considerando que os grupos de poder são aqueles que determinam o
rumo da sociedade através de seus diferentes graus de influência, observa-se que
aquele que detém o poder desse controle é quem exerce o controle social.
Desta forma, pode-se concluir que o controle social é exercido através de
uma manipulação de ideologias feita pelos grupos de poder dominantes de uma
sociedade.
Como já exposto, o detentor desse poder é o Estado, sendo sua estrutura de
poder composta por centros políticos. Nesse sentido, frisa destacar a importância
dessa manipulação de idéias pelo Estado.
Isto ocorre, pois os centros detentores do poder estatal necessitam que suas
ideais prevaleçam e vinculem na sociedade, para isso, precisam de uma teorização
que fortifique seu discurso. Toda prática necessita de uma teoria para embasá-la.
Assim, os discursos dos grupos de poder transformam suas idéias em teorias e o
Estado as interpretam como melhor lhes convém.
256
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Com esse pensamento, Zaffaroni e Pierangeli descaracterizaram a reflexão
padrão sobre poder e saber. Debatendo contrariamente a doutrina positivista que
prescreveu: quanto mais conhecimento adquirido, mais poder se tem. Em
contraposto os Autores concluíram que: “é o poder que condiciona o saber”
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 59).
Assim, mostraram que atualmente as sociedades são lideradas por ideologias
que fortificam o discurso do poder e condicionam através desse um saber. Ou seja,
existe uma manipulação da realidade social pelo poder.
A realidade social é uma construção do Estado. Os centros de poder,
utilizando-se de discursos ideológicos como melhor lhes convém, estabelecendo
regras de condutas que a sociedade deve obedecer.
Para melhor justificar esta teoria Zaffaroni e Pierangeli explicaram que a
teorização de algo não visa um bem ou um mal. As melhorias ou prejuízos que uma
teoria acarreta estão na sua aplicação.
Assim, o autoritarismo não tomou de Hegel a parte liberal, e sim a exaltação
do estado; o racismo não tomou do evolucionismo as advertências
prudentes, mas ostentou uma “ortodoxia” evolucionista jamais sustentada
com a seriedade por seus criadores; [...] o psicologismo quietista toma de
Freud ou das outras correntes psicanalíticas o seu aspecto de “técnica”,
mas passam por alto os contextos sociológicos originários etc.
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 61).
Nessa linha, a manutenção do poder estatal está relacionada com a
manipulação da sociedade, esta necessita concordar e acatar o discurso - a
ideologia - que esta sendo apresentada a ela.
Assim, não há uma verdade ou mentira, há um discurso apresentado - uma
forma de interpretar a realidade social – que deve ser recebido pela sociedade.
Justo é assimilar que a verdade não pode expressar-se por inteiro em seus
conceitos, simplesmente porque a verdade é infinita e a conceituação – isto
é, a ideologia – é um recurso finito. Portanto, toda a referência ideológica à
verdade, inevitavelmente, sempre é parcial (ZAFFARONI; PIERANGELI,
2009, p. 62).
Desta forma, percebe-se que os problemas sociais então na forma em que se
manipulam e vinculam essas teorias. Os centros políticos deveriam sempre se
257
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
preocupar para que as ideologias apresentadas sejam aquelas que proporcionem às
melhores vantagens a sociedade como um todo.
Isto exposto, passa-se a analisar a influência do Direito, e principalmente do
Direito Penal para o exercício do controle estatal.
3 CONTROLE SÓCIO – PENAL
Conforme elucidado nas definições de Estado na seção acima, o mesmo é
composto por grupos de poder que viabilizam uma estrutura de poder. Estes grupos
são as instituições da sociedade: a escola, a mídia; a religião, entre outras. A
estrutura de poder é o centro político do Estado.
Uma importante instituição estatal para o controle social é o Direito. Como já
dito pelo sociólogo Anthony Giddens, o qual explicou que o Estado ampara-se em
um sistema legal para a implementação de suas políticas, ou seja, para o exercício
de seu controle.
Assim, considerando que a forma usual para o Estado exercer seu controle
social é através do aparato legal; conclui-se que o Direito nada mais é que uma
regularização de conflitos e uma forma de organização da sociedade.
Para tanto, embora o Direito seja um só, este se divide em diferentes áreas
de atuação que proporcionam um melhor controle e organização da sociedade.
Assim, dentro do Direito existem divisões que possibilitam a organização interna
deste, as quais delimitam quais matérias serão reguladas por determinadas áreas do
Direito, e com isso, quais as áreas do Direito que possuem competência para
resolver quais tipos de conflito.
Nesse sentido, existem as divisões entre matéria civil, do trabalho, do
consumidor, por exemplo. Os atos da vida civis são regulados pelo Direito Civil,
assim como as relações trabalhistas são reguladas pelo Direito do Trabalho e as
relações de consumo pelo Direito do Consumidor. Cada área do Direito é
responsável por resolver conflitos de determinadas espécies.
O Direito Penal tem como matéria a punição de condutas que visam
prejudicar os bens jurídicos dos cidadãos, tais como a vida, o patrimônio, a
258
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
liberdade. Os seja, é a garantia, através da coerção, de proteção a alguns direitos
fundamentais previstos em nossa constituição.
Quanto ao fator delimitador das matérias abrangidas por cada área do Direito.
Essa delimitação é feita pelas leis do país. Assim, a matéria civil é aquela prescrita
no Código Civil, enquanto a matéria trabalhista é aquela prescrita na CLT e a
matéria de competência penal é aquela prescrita do Código Penal.
Com isso em mente, analisa-se a reflexão que Zaffaroni e Pierangeli iniciam
um de seus livros:
Se dispensamos o código e as leis penais e formulamos uma pergunta
indiscreta à realidade social, não necessitamos maior aprofundamento para
percebermos que nada há em comum entre a conduta de quem emite um
cheque sem provisão de fundos e a de quem ataca uma mulher e a estupra,
isto é, que se trata de duas ações com significando social completamente
distinto (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 55).
Nessa linha de raciocínio, conclui-se que mesmo que muitas vezes não
tenham uma classificação social igual, ou seja, que seu impacto na sociedade não
proporcione as mesmas consequências ou impressões, as condutas penalmente
puníveis são aquelas descritas pelo Direito Penal, descritas nas leis penais. O
Direito Penal é um fator que une condutas com significados sociais diferentes para
um mesmo senso comum de punibilidade.
Adiante, estabelece-se uma discussão da relevância do Direito Penal para o
exercício do controle social por parte do Estado e a forma como isso se efetiva. Para
tanto, devem-se analisar quais são os objetivos e características do Direito Penal e
assim, da legislação penal, que o diferenciam dos demais ramos do Direito.
Nesse sentido, um primeiro caráter a ser destacado é a subsidiariedade do
Direito Penal. Em análise, primeiramente, como já exposto acima, deve-se lembrar
que o Direito é uma das instituições que auxiliam no controle social. Todavia,
recorda-se a existência de outras instituições que exercem essas funções, estando
as
mesmas
classificadas
por
Zaffaroni
e
Pierangeli
como
difusas
e
institucionalizadas.
Nessa linha, vale comparar essa classificação de Zaffaroni e Pierangeli com o
pensamento de Reale Junior. Nas palavras do último, esta classificação baseia-se
em instituições de caráter informal (a figura difusa elaborada por Zaffaroni e
259
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Pierangeli); e aquelas de caráter formal (a forma institucionalizada disposta por
Zaffaroni e Pierangeli). Ainda, importa destacar, que o Autor considera o Direito
Penal como a principal instituição de caráter formal.
Assim, o Autor ressaltou em sua obra que as instituições de caráter informal
devem agir antes das de caráter formal, sendo o Direito Penal o último remédio para
o controle social. Em seus termos:
O controle social exerce-se, primeiramente, por via da família, da escola, da
igreja, do sindicato, atuante na tarefa de socializar o indivíduo levando-o a
adotar os valores socialmente reconhecidos e os respeitar,
independentemente da ação repressiva do Direito Penal, que constitui uma
espécie de controle social, mas de caráter formal e residual, pois só atua
diante do fracasso dos instrumentos informais de controle (REALE JUNIOR,
2006, p. 3).
Nesse sentido, explica no capítulo inicial de sua obra que, primeiramente,
uma criança, quando nasce, sofre a influência de todos os meios institucionais
informais, citando principalmente a família, a escola e a mídia; sendo que essas
instituições definem o padrão de conduta que a criança irá seguir.
Além disso, elucida que os indivíduos de uma sociedade possuem um
autocontrole para aceitar que nem tudo o que deseja pode ser alcançado.
Explicando que alguns sujeitos, quando por motivos diversos, perdem este
autocontrole, é o momento em que este irá ferir um bem jurídico protegido alheio
para conseguir o que precisa.
Assim, concluiu que a atuação do Direito Penal deve vir depois que as
instituições informais forem insuficientes para manter o controle social, bem como
quando o indivíduo perde seu autocontrole. Nas palavras do Autor:
Quando os controles sociais informais de vinculação com a sociedade
convencional são insuficientes ou deixam de existir, ou quando do há déficit
de autocontrole, e põe-se acima de qualquer relação custo benefício a
vontade do indivíduo de satisfação imediata dos desejos, surge a
possibilidade da prática delituosa, que fere os mais altos e relevantes
interesses da sociedade. Busca esta, então, impedir e depois reprimir a
realização do crime por meio das instâncias formais de controle, ou seja,
recorrendo à estatuição de normas cogentes, positivadoras e protetoras de
valores sociais, que imponham sanções redutoras de direitos àqueles que
as infrinjam (REALE JUNIOR, 2006, p. 9).
260
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Ainda, explica que o Direito Penal é essencial para o sentimento de
segurança de uma sociedade, pois o mesmo se utiliza da força para garantir a
proteção dos bens jurídicos prezados. Sem ele, a sociedade não conseguiria
combater as atitudes lesivas que fogem ao controle social. Assim, reforça-se que o
Direito Penal é o último meio a ser utilizado para garantir a ordem social.
Adota-se a ameaça de restringir direitos, punir, com a intenção de assegurar
a obediência às regras consagradoras dos interesses relevantes para a vida
social, legitimando-se o uso da força para garantir a preservação de valores
essenciais revelados pela história e reconhecidos pela coletividade. Se não
houvesse o Direito Penal a sociedade sentir-se-ia desprotegida, pois
incapacitada de responder por meio da ameaça de sanções aos atos lesivos
que desestabilizam a convivência social (REALE JUNIOR, 2006, p. 9).
Assim, conclui-se possuir o Direito Penal um caráter subsidiário ou
fragmentário, ou seja, o Direito Penal como a ultima ratio, uma vez que o mesmo
deve ser o último meio de ação do aparato estatal, exatamente por ser uma medida
incisava que causa restrições de direitos.
O recurso à intervenção penal cabe apenas quando indispensável em
virtude de que tem o Direito Penal caráter subsidiário, devendo constituir a
ultima ratio e por isso ser fragmentário, pois o antijurídico penal é restrito em
face do antijurídico decorrente do Ordenamento, por ser obrigatoriamente
seletivo, incriminando apenas algumas das condutas lesivas e
determinando desvalor, as de grau elevado de ofensividade (REALE
JUNIOR, 2006, p. 25).
Também nesse sentido, o autor Claus Roxin expôs que a aplicação da pena
só será justificada se não houver outros meios, menos gravosos, para garantir a
proteção ao bem jurídico. Em suas palavras, “[...] mesmos nos casos em que um
comportamento tenha de ser impedido, a proibição através de pena só será
justificada se não for possível obter o mesmo efeito protetivo através de meios
menos gravosos” (ROXIN, 2008, p. 52).
Adiante, outro destaque está no caráter coercitivo do Direito Penal, sendo a
coerção penal diferente das outras coerções impostas pelo Direito por conter uma
carga punitiva-repressiva em suas sanções, que restringe direitos do agente.
261
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Todos os ramos do Direito se baseiam em coerções para que as normas
jurídicas sejam respeitadas. Entretanto, percebe-se uma diferença na coerção penal
com relação ao resto das áreas do Direito.
Nesse sentido, numa análise do regime jurídico-penal, visualiza-se que as
normas penais selecionam aquelas condutas que quando executadas comprometem
a paz social como um todo. Assim, este se utiliza de uma sanção para prevenir ou
reparar condutas que desencadeariam um abalo social geral.
Em síntese: sustentamos que o Direito Penal tem, como caráter
diferenciados, o de procurar cumprir a função de prover à segurança jurídica
mediante a coerção penal, e esta, por sua vez, se distingue das restantes
coerções jurídicas, porque aspira assumir caráter especificamente ou
particularmente reparador (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 93).
Ademais, como conceituado por Zaffaroni e Pierangeli, a coerção penal se
classifica em duas vertentes. Primeiramente, falando de uma coerção penal stritu
sensu, encontra-se a pena. A pena é a forma específica do Direito Penal exercer sua
coerção, com o intuito principal de proporcionar segurança jurídica à sociedade.
A pena, como sanção principal do Direito Penal, tem como objetivo prevenir
condutas delitivas ou reparar os danos causados por estas quando da sua
execução.
Em um sentido latu sensu, inclui-se todas as formas coercitivas do Direito
Penal, tais com as internações de incapazes e medidas se segurança. Aquelas
soluções que saem do caráter estritamente punitivo do sistema penal.
Afirma-se que a prevenção de futuras condutas delitivas pode ser alcançada
ou pretender-se alcançá-la mediante a prevenção geral ou a prevenção
especial. Para uns a prevenção se realiza mediante a retribuição exemplar e
é a prevenção geral. Que se dirige a todos os integrantes da comunidade
jurídica. Para outros, a prevenção deve ser especial, procurando com a
pena agir sobre o autor, para que aprenda a conviver sem realizar ações
que impeçam ou perturbem a existência alheia (ZAFFARONI; PIERANGELI,
2009, p. 95).
Em conclusão, entende-se que o caráter acentuadamente coercitivo do Direito
Penal baseia-se na aplicação de sanções, sendo sua principal a pena.
262
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Ademais, cabe elucidar o caráter programático do Direito Penal, o qual
caracteriza a legislação penal como possuidora de um fim definido.
Deste modo, considerando que o Direito Penal passa por duas fases,
primeiramente a de criação, feita pelos políticos e então sua aplicação, feita pelos
operadores do Direito. A importância em determinar parâmetros para o Direito Penal
inclui a criação de leis e reformas legais melhores por parte do legislador, assim
como, uma melhor aplicação prática das leis penais pelos operadores do Direito,
conforme a realidade fática com que se deparam.
Assim, da análise dos objetivos da legislação e assim o seu caráter
programático, descobre-se qual a melhor lei a ser criada para alcançar o objetivo
ensejado e como melhor interpretar essa lei para que seja coerente na sociedade.
Nesse sentido, encontram-se dois objetivos clássicos visados pelo Direito
Penal: a segurança jurídica e a defesa social.
Quando analisado o Direito Penal sobre a ótica da segurança jurídica,
concretizou-se que a sanção penal deve visar as pessoas que não cometem as
condutas delituosas, assim, caracterizando uma prevenção geral na sociedade; ou
seja, a pena deve prevenir que aqueles que não cometeram crimes os cometam.
De outro lado, considerando o objetivo como sendo a defesa social, percebese uma tendência a se considerar a sanção penal sob a ótica de uma prevenção
especial na sociedade. Com isso, as sanções penais se destinam a controlar os
autores de crimes cuja objetividade é a repressão penal disciplinadora.
Assim, a sanção penal baseada na prevenção geral esta fundamentada num
caráter de retribuição, enquanto a constituída pela prevenção especial baseia-se
num caráter de reeducação e ressocialização.
A retribuição deve devolver ao delinquente o mal que este causou
socialmente, enquanto a reeducação e a ressocialização devem prepará-lo
para que não volte a reincidir no delito (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p.
85).
Contudo, a teoria mais bem aceita pela doutrina envolve uma conjugação das
duas proposições citadas, na qual a retribuição seria o fim da pena em concreto,
enquanto a ressocialização seria o visado pela execução da pena.
263
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Deste modo, o Direito Penal quando cria as suas leis visa intimidar os
cidadãos, prevenindo que estes cometam delitos. Entretanto, quando um autor de
uma conduta delituosa é criminalizado visa-se a sua reentrada na sociedade,
reeducá-lo para o convívio social.
Debatendo sobre a segurança jurídica, percebe-se que a função de todo
Direito e prover a segurança jurídica. No sentido de que a convivência em sociedade
estabelece uma necessidade de coexistência, e assim, de respeito dos cidadãos
para com eles mesmos.
Assim, o Direito nada mais é que uma forma de regular condutas humanas,
tornando-as previsíveis. Desta forma, impedindo uma guerra civil, na qual os
cidadãos entrariam em conflito interno.
Em resumo, o Direito Penal ao assegurar a segurança jurídica assegura a
ordem social. Desta forma, concretiza-se que o Direito protege os bens jurídicos, ou
seja, os direitos de cada indivíduo da sociedade.
Ademais, quando refletindo sobre a participação do Direito Penal na aplicação
de penas para garantir a segurança jurídica, como explicado por Zaffaroni e
Pierangeli (2009, p. 87):
A pena, necessariamente, implica uma afetação de bens jurídicos do autor
do delito (de sua liberdade, na prisão ou reclusão; de seu patrimônio, na
multa; de seus direitos, nas penas restritivas). Esta privação de bens
jurídicos do autor deve ser por objeto garantir os bens jurídicos dos demais
integrantes da comunidade jurídica.
Todavia, esta pena deve ter um limite sancionatório. Este limite é determinado
socioculturalmente e se molda conforme a época e a sociedade, como explicado
pelos Autores:
A ingerência nos bens jurídicos do infrator se faria necessária para motivarse conforme as normas e reforçar assim o sentimento de segurança
jurídica, neutralizando o alarme social do delito, mas não pode exceder
deste grau de tolerância socialmente determinado, e por conseguinte,
historicamente condicionado, sob pena de que esta mesma ingerência
cause um alarme social, isto é, afete o próprio sentimento de segurança
jurídica (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 87).
264
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Contudo, ressalta-se que devido a pluralidade de grupos sociais dentro de
uma comunidade os sentimentos de segurança jurídica, bem como os limites
aceitáveis da pena são diferentes para cada um.
Assim, não existe um sentimento de segurança jurídica geral, que se aplica a
todos os indivíduos da sociedade, o que se visa e chegar o mais próximo disto,
diminuindo estas diferenças e igualando a tutela dos bens jurídicos. Deste modo, o
Direito não deve esquecer que o sentimento de segurança jurídico é comunitário e
deve ser construindo baseado nesse pilar.
Em outro plano, encontra-se o caráter de defesa social do Direito Penal.
Destarte, como explicado por Zaffaroni e Pierangeli, o conceito de defesa social está
muito próximo da segurança, uma vez que quando se fala de social, fala-se em uma
defesa da sociedade e sendo a sociedade essa coexistência que definimos, não há
o que se diferenciar; ambos buscam essa proteção social. “Se a segurança jurídica é
o asseguramento da coexistência e a coexistência é o social, vemos que a distância
entre ambos os conceitos se encurta até a superposição” (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 2009, p. 88).
Entretanto, também explica que reside uma diferenciação entre proteção,
garantia e tutela jurídica com relação a defesa social envolvendo a organização
estrutural na sociedade. Nesse sentido, a defesa seria uma prevenção dos bens
jurídicos ainda não afetados, uma defesa de bens que podem ser afetados no futuro.
Resumindo, a defesa social bem entendida não pode ser algo distinto da
segurança jurídica, salvo que se entenda que a primeira em sentido
organicista ou antropomórfico e a segunda como um conceito puramente
formal, ambas as pretensões que desembocam em uma legislação que
aniquila os direitos humanos, por desconhecimento de todos os limites a sai
ingerência (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 89).
Desta forma, conclui-se que o Direito Penal se diferencia dos demais ramos
do Direito principalmente por possuir três caracteres, quais sejam, subsidiário,
coercitivo e programático.
265
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
4 PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO
Como mencionado anteriormente, o Direito Penal é prescrito pelas leis
penais. A importante reflexão está em perceber que essa penalização disposta pelo
Direito Penal se dá através do sistema penal. Assim, o sistema penal é a forma
aplicada do Direito Penal.
Desta forma, reaviva-se a discussão sobre o controle social exercido pelo
Estado através do Direito Penal, passando a focalizar em sua execução através do
sistema penal.
Nesse sentido, em sua estruturação e organização, o sistema penal
estabeleceu dois processos de criminalização para exercer seu poder punitivo
visando o controle e organização da sociedade. Esses processos foram divididos
entre primário e secundário. Conforme Vera Regina Pereira de Andrade (2003, p.
175):
Na estrutura organizacional do moderno sistema penal, podem-se distinguir,
pois, duas dimensões e níveis de abordagem: a) uma dimensão definicional
ou programadora do controle penal que define as regras do jogo para as
suas ações e decisões e os próprios fins perseguidos, que define, portanto,
o seu horizonte de projeção; b) uma dimensão operacional que deve
realizar o controle penal com base naquela programação. O sistema é, pois,
um conceito bidimensional que inclui normas e saberes (enquanto
programas de ação ou decisórios), por um lado, e ações e decisões, em
princípio racionalizadas, por outro.
Sendo assim, na visão da Autora, destaca-se a ocorrência, primeiramente, de
uma seleção dos bens que serão juridicamente protegidos pelo Direito Penal, bem
como as condutas puníveis devido à violação desses bens (processo primário). Para
depois ocorrer um enquadramento de indivíduos no tipo penal pela prática das
referidas condutas (processo secundário).
O processo de criminalização primário concretiza-se pela formulação de leis
penas que prescrevem crimes e suas respectivas sanções, ou seja, a edição de leis.
O legislador efetua a definição dos bens penalmente protegidos, bem como quais
serão as condutas tipificadas como crime e as sanções que deverão ser aplicadas
266
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
aos casos concretos. Sendo assim, a execução do processo primário é realizada
principalmente pelas agências políticas.
Em definição de Zaffaroni e Pierangeli (2009, p. 43), a criminalização primária
seria “o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a
punição de certas pessoas”.
Com isso, visualiza-se o primeiro momento que uma ação é considerada
ofensiva a sociedade, devendo ser punida para buscar a sua não ocorrência. Deste
modo, esse processo propicia que a legislação penal do sistema exerça uma
seleção dos bens jurídicos que serão protegidos, as condutas criminalizáveis e os
indivíduos puníveis. Nesse sentido:
O Direito Penal entendido como lei ou legislação penal integra a dimensão
programadora do sistema. Tem, nesse sentido, um caráter “programático”,
já que a normatividade penal não realiza, por si só, o programa:
simplesmente o enuncia, na forma de um “dever-ser” (ANDRADE, 2003, p.
175).
Portanto, esse processo configura o primeiro momento de enquadramento de
pessoas como autores de um crime, uma vez que concretiza a definição de quais
condutas serão criminosas e por quais condutas, no futuro, os autores serão
criminalizados, somada a sua punição. Assim, conclui-se que esse processo inicia a
seletividade do sistema penal, uma vez que a edição de uma lei nomeia quais
indivíduos serão punidos e por quais condutas.
O processo de criminalização secundário envolve a aplicação das normas
criadas pelo processo primário. É a adequação de uma conduta concreta àquela
primeira conduta prescrita, criminalizada.
Entretanto, a lei não pode assegurar por completo a sua aplicação devido à
complexidade de condutas que ocorrem faticamente. Essa situação de lacunas, em
casos concretos, obriga os intérpretes a utilizarem princípios, regras e juízos de valor
pessoais para promover a tutela jurídica mais adequada para cada caso.
Com isso, as agências responsáveis por essa punição - são elas
principalmente as judiciais, policiais e penitenciárias – possuem uma abertura de
interpretação fática.
267
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A lei penal configura tão-só um marco abstrato de decisão, no qual os
agentes do controle social formal desfrutam ampla margem de
discricionariedade na seleção que efetuam, desenvolvendo uma atividade
criadora proporcionada pelo caráter ‘definitorial’ da criminalidade [...], pois,
entre a seleção abstrata, potencial e provisória operada pela lei penal e a
seleção efetiva e definitiva operada pelas instâncias de criminalização
secundária, medeia um complexo e dinâmico processo de refração
(ANDRADE, 2003, p. 260).
Assim, a legislação penal prescreve condutas, programando o sistema, para
que então a Polícia e o Judiciário apliquem essas normas e executem as sanções
penais, operacionalizando o sistema.
5 SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL
Em análise do processo de criminalização primário, conclui-se que as leis
penais visam à proteção de bens jurídicos. Contudo, os conteúdos dessas normas
são variáveis, ou seja, há a proteção pelo Direito Penal de diversos bens jurídicos,
contudo, cada bem possui uma norma protetora correspondente.
Quando observado, percebe-se que a tendência do sistema penal são
legislações com grande preocupação a bens patrimoniais e estatais e um relapso a
bens gerais como a vida, saúde, liberdade. Isso fere a ideia de que as normas
penais seriam igualitárias, atingindo igualmente as pessoas em função de suas
condutas. Na verdade, esse processo é profundamente seletivo, atingindo apenas
determinado grupo de pessoas. Conforme Andrade:
Quanto aos “conteúdos” do Direito Penal abstrato, esta lógica se revela no
direcionamento predominante da criminalização primária para atingir as
formas de desvio típicas das classes e grupos socialmente mais débeis e
marginalizados. Enquanto é dada a máxima ênfase à criminalização de
condutas contrárias às relações de produção (crimes contra o patrimônio
individual) e políticas (crimes contra o estado) dominantes e a elas dirigidas
mais intensamente à ameaça penal; a criminalização de condutas contrárias
a bens e valores gerias como a vida, a saúde, e liberdade pessoal e outros
tantos não guarda a mesma ênfase e intensidade da ameaça penal dirigida
à criminalidade patrimonial e política (ANDRADE, 2003, p. 279).
268
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Essa seleção de criminalização do processo primário ocorre, principalmente,
através do sistema de formulações técnicas dos tipos penais, observando-se, como
exemplo, a atribuição dos mecanismos de agravantes e atenuantes aos tipos penais.
Desta forma, o sistema penal consegue punir de forma mais severa os crimes
que lhes convir e mais brandamente aqueles que não afrontam seus interesses. O
foco deixa de ser a proteção ao cidadão individual e passe a ser o controle da
sociedade.
Em análise seguinte, visualiza-se o poder punitivo exercido pelo processo de
criminalização secundário, o qual é realizado em face de pessoas específicas, visto
que deve ser analisado perante os casos concretos. Com isso, o mesmo realiza um
processo de estigmatização e seletividade do sistema penal, uma vez que as
agências podem punir aqueles que quiserem, seguindo um padrão preconceituoso
ou desigual para essa seleção.
Para Zaffaroni e Pierangeli, a estigmatização da sociedade se desenvolve a
partir da divulgação massiva de autores de crimes comuns e grosseiros - no sentido
de menor ofensa a sociedade, aqueles que afrontam apenas o patrimônio e não a
vida, integridade ou liberdade da pessoa humana - como sendo os únicos
delinquentes da sociedade. Em suas palavras:
Os atos mais grosseiros cometidos por pessoas sem acesso positivo à
comunicação social acabam sendo divulgados por esta com os únicos
delitos e tais pessoas como os únicos delinquentes. A estes últimos é
proporcionado um acesso negativo à comunicação social que contribui para
criar um estereótipo no imaginário coletivo. Por tratar-se de pessoas
desvaloradas, é possível associar-lhes todas as cargas negativas existentes
na sociedade sob a forma de preconceitos, o que resulta em fixar uma
imagem pública do delinquente com componentes de classe social, étnicos,
etários, de gênero e estéticos (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 46).
Com isso, o processo de criminalização secundário seleciona perante a
sociedade os autores de crimes mais vulneráveis - devido as suas características
físicas de estigmatização e sua capacidade de executar apenas atos toscos, com
baixa ofensa a seguridade social - e os criminaliza. Sendo assim, torna-se
impossível para estes sua saída da criminalidade, uma vez que o sistema penal
trabalha para que sejam criminalizados. Assim, as pessoas punidas pelo sistema
269
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
penal não são aquelas que cometem os crimes mais graves e sim aquelas sujeitas
ao mesmo devido a sua vulnerabilidade.
Isto leva à conclusão pública de que a delinquência se restringe aos
segmentos subalternos da sociedade, e este conceito acaba sendo
assumido por equivocados pensadores humanistas que afirmam serem a
pobreza, a educação deficiente, etc., as causas do delito, quando, na
realidade, são estas, junto ao próprio sistema penal, fatores condicionantes
dos ilícitos desses segmentos sociais, mas, sobretudo, de sua
criminalização, ao lado da qual se espalha, impune, todo o imenso oceano
de ilícitos dos outros segmentos, que os cometem com menor rudeza ou
mesmo com refinamento (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 48).
Sendo assim, há uma punibilidade decrescente do sistema, onde em primeiro
lugar se penaliza autores de crimes toscos e de fácil estigmatização devido a sua
vulnerabilidade, para então criminalizar aqueles que estão em uma posição de não
vulnerabilidade, mas que por algum descuido foram pegos pelo sistema.
Na visão de Vera Regina Pereira de Andrade essa seletividade do sistema
penal, deriva de duas variáveis estruturais: uma seleção quantitativa e uma seleção
qualitativa.
A ideia de seleção quantitativa envolve o proposital relapso estatal em punir
diversas condutas criminosas, visando a não sobrecarga do sistema penal. No
sentido de que o Estado deixa de punir muitas condutas delituosas, prescritas no
processo de criminalização primário, pois a efetiva punição e penalização de todas
estas ações desencadearia um caos social.
Esta teoria baseia-se principalmente em dois fenômenos: o do colarinho
branco e da cifra oculta. O primeiro originou-se dos estudos de Sutherland, o qual
analisou estaticamente as condutas delituosas praticadas por pessoas que
ocupavam uma posição de alto prestígio na sociedade estadunidense e
permaneceram impunes ao sistema, devido à estruturação da sociedade e do
sistema penal.
O segundo, a cifra oculta, esclarece que a criminalidade real é profundamente
conflitante com a criminalidade estatística. Pois, além dos crimes não punidos,
devido a seus autores não estarem numa posição de vulnerabilidade social, existe o
fenômeno da criminalidade oculta, aquela que não chega ao conhecimento da
Polícia, visto que:
270
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Nem todo delito cometido é perseguido; nem todo delito perseguido é
registrado; nem todo delito registrado é averiguado pela polícia; nem todo
delito averiguado é denunciado; nem toda denúncia é recebida; nem todo
recebimento termina em condenação (ANDRADE, 2003, p. 262).
Numa análise desses fenômenos, percebe-se que a efetiva criminalização de
todas as condutas delituosas praticadas pela população em geral ocasionaria a
punição da maioria populacional da sociedade diversas vezes, tendo em vista as
reiteradas atitudes criminosas em uma sociedade. Assim, ressalta-se que essa
situação que não seria admitida ou sustentada pela população, principalmente pela
camada de destaque na cadeia social.
Nas palavras de Zaffaroni (1991, p. 21):
Se o sistema penal concretizasse o poder criminalizante programado,
provocaria uma catástrofe social. Se todos os furtos, todos os adultérios,
todos os abortos, todas as defraudações, todas a s falsidades, todos os
subornos, todas as lesões, todas as ameaças, todas as contravenções
penais etc. fossem concretamente criminalizadas, não haveria habitante que
não fosse criminalizado. Diante da absurda suposição, absolutamente
indesejável, de criminalizar reiteradamente toda a população, torna-se obvio
que o sistema penal está montado para que a legalidade processual não
opere em toda sua extensão.
Com isso, fica clara a ideia paradoxal de que para a perpetuação do sistema,
este deve programar-se para que não funcione em sua magnitude. Assim, constatase uma predominância proposital referente a uma imunidade a certos autores
delituosos e a criminalização de outros.
Num segundo momento, explana-se sobre uma seleção qualitativa, na qual a
seleção da criminalização secundária baseia-se nas qualidades, valores e
características dos autores de delitos.
É a já referida estigmatização dos cidadãos mais vulneráveis - devido
principalmente a sua formação social - como os principais delinquentes da
sociedade.
Trata-se, portanto, de uma matriz fundamental na produção (e reprodução)
de uma imagem estereotipada e preconceituosa da criminalidade e do
criminoso vinculada aos baixos estratos sociais que condiciona, por sua
vez, a seletividade do sistema penal, num círculo de representações
extraordinariamente fechado que goza de uma secular vigência no senso
271
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
comum em geral e nos operadores do controle penal em particular
(ANDRADE, 2003, p. 271).
Com isso, conclui-se a existência de “um processo de seleção de pessoas às
quais se qualifica como delinquentes e não, como se pretende, um mero processo
de seleção de condutas qualificadas como tais” (ANDRADE, 2003, p. 267).
Nesse ponto, deve-se fazer uma importante consideração a respeito da teoria
do labelling approach. Em tradução, a palavra labelling significa etiquetagem,
enquanto approach constitui abordagem, ou seja, esse fenômeno refere-se à
abordagem direta do sistema penal que etiqueta, nomeia e configura determinadas
pessoas, mas precisamente específica camada social, como os principais
delinquentes da sociedade.
Assim, ao contrário da ideia da criminologia positivista que pregava que os
autores de crimes eram uma minoria social que desenvolviam tendências
delinquentes devido a condições de anomalias físicas ou fatores ambientais e
sociais que foram inseridos. A Criminalidade atual:
[...] não é uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica
pré-constituída à reação (ou controle) social, mas uma qualidade (etiqueta)
atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de
interação social; isto é, de processos formais e informais de definição e
seleção (ANDRADE, 2003, p. 205).
Desta forma, reflete-se que “a clientela do sistema penal é constituída de
pobres, não porque tenham uma maior tendência para delinquir, mas porque têm
maiores chances de serem criminalizados e etiquetados como delinquentes”
(ANDRADE, 2003, p. 270).
Assim, conclui-se por uma seletividade intrínseca ao sistema e sua relevância
em desfavor das camadas mais pobres da sociedade.
272
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
6 PODER DAS AGÊNCIAS PENAIS
Como explicado anteriormente o sistema penal é dividido em agências que
condicionam sua estruturação, assim pode-se dividir o mesmo em três grandes
setores: os segmentos da Polícia, do Poder Judiciário e do Poder Legislativo.
Esses segmentos que atuam na atividade institucionalizada do sistema,
caracterizando uma tripartição do mesmo. Assim, as agências não atuam
separadamente; sua atuação é conjunta e sua interferência no sistema penal é em
consonância. Como explicam Zaffaroni e Pierangeli (2009, p.66):
Trata-se de três grupos humanos que convergem na atividade
institucionalizada do sistema e que não atuam estritamente por etapas,
posto que têm predomínio determinado em cada uma das etapas
cronológicas do sistema, podendo seguir atuando ou interferindo nas
restantes. Assim, o judicial pode controlar a execução, o executivo ter a seu
cargo a custódia do preso durante o processo, o policial ocupar-se das
transferências de presos condenados ou informar acerca da conduta do
liberado condicional.
Todavia, cada agência possui uma função específica e a interferência
demasiada dos setores sobre a competência uns dos outros não é salutar, haja vista
que desequilibraria a organização tripartidária do sistema. Assim:
Em geral, em quase toda a América Latina se tem observado uma clara
tendência em reduzir ou neutralizar a interferência do Poder Judiciário, para
possibilitar a intervenção de organismos do Poder Executivo. A
centralização do poder punitivo nas mãos dos órgãos executivos é fato
comprovado amplamente, com que se desequilibra seriamente a tripartição
dos poderes do Estado democrático (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p.
67).
Ademais, as agências que compõem o sistema penal possuem diferentes
graus de influência na operacionalidade desse sistema, e assim, na sua seletividade.
Numa análise do sistema penal, encontram-se dentro deste, primeiramente,
os legisladores, aqueles que atuam configurando os padrões do sistema, através da
edição de leis. Outrossim, compreende nos setores estáveis da estruturação, as
273
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
agências jurídicas, quais sejam: o segmento policial, judicial e de execução da pena.
Por fim, também não se pode esquecer da participação da população no sistema.
Desta forma, primeiramente, discursando sobre a influência dos legisladores
na criminalização de condutas, percebe-se que seu poder reside da configuração de
padrões das condutas. Cabe a eles decidir as condutas que serão punidas,
selecionando as mesmas, e assim, como já dito, compondo o primeiro processo de
criminalização.
Entretanto, o poder de seleção que reside no Poder legislativo é menor do
que o pretendido, uma vez que mesmo sendo as leis que definem quais as condutas
penalizáveis, não cabe ao mesmo aplicar essa seleção. Assim, mesmo a regra
estando “no papel” não significa que será aplicada.
Os legisladores são os primeiros que dão os padrões de configuração,
embora frequentemente eles mesmo ignorem o que realmente criam, pois
superestimam seu poder seletivo. Na realidade, tem maior poder seletivo
dentro do sistema penal a polícia do que o legislador, pois esta opera mais
diretamente sobre o processo de “filtração” do sistema (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 2009, p. 67).
Assim, maior poder possuem as agências policiais, pois são elas que
trabalham diariamente e diretamente nessa filtração de condutas e assim realizando
a seleção das mesmas. O advento de um processo penal e a consequente punição
de uma conduta delituosa só ocorrerá após a prévia investigação da polícia.
Desta maneira, pode-se considerar que a “porta de entrada” do processo de
criminalização, a seleção de condutas e pessoas, ocorre através das agências
policiais.
Sob essa ótica, também as agências jurídicas não possuem um grau de
seleção tão amplo quanto as agências policiais. Sua contribuição reside em aplicar
uma punição aquelas condutas previamente selecionadas pela polícia, por isso seu
poder de seleção é diminuto. As agenciais jurídicas só entram em atuação depois da
prévia seleção policial sobre os crimes
Assim, dentre uma prévia seleção das condutas criminalizadas pelo processo
primário, as agências policiais são responsáveis por punir uma realidade de crimes
toscos praticados por delinquentes estigmatizados. Apenas após essa dupla seleção
274
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
é que as agências judiciais realizam sua penalização. Sendo assim, o controle social
exercido pelas mesmas é mínimo.
Em razão disso, os poderes executivos latino-americanos jamais aceitaram
a formação de uma polícia dependente do Poder Judiciário. Formalmente, a
polícia judiciária, na prática, é limitadíssima, mormente quando o Poder
Executivo possui um especial interesse na apuração ou não apuração de
determinado fato com aparência de delito (ZAFFARONI; PIERANGELI,
2009, p. 67).
Vale ressaltar que a seleção realizada pelo processo primário é incapaz de
individualizar condutas devido a sua necessidade, falsamente realizada, de
empregar uma abrangência geral. Com isso, temos que o verdadeiro poder de
punição é operado pelas agências policias. Nas palavras de Zaffaroni e Batista
(2003, p. 52):
Na prática, a polícia exerce o poder seletivo e o juiz pode reduzi-lo, ao
passo que o legislador abre um espaço para a seleção que nunca sabe
contra quem será individualizadamente exercida [...] que a criminalização
secundária é quase um pretexto para que as agências policiais exerçam um
formidável controle configurador positivo da vida social, que em nenhum
momento passa pelas agências judiciais.
Todavia, sob essa ótica, ressalta-se que a maior seleção de condutas que
serão criminalizadas está fora da estruturação estável do sistema. O maior controle
de seleção de condutas está nas mãos do povo, uma vez que só é possível a
criminalização das condutas reportadas ao Estado.
Assim, mesmo que o legislador tenha criminalizado a conduta e as polícias,
promotores e juízes estejam capacitados para empregar uma correta punição a essa
conduta delituosa. A conduta só será crime quando chegar ao conhecimento do
Estado.
Ademais, nota-se que cada agência dentro do sistema possui uma ideologia
específica; e ainda, dentro de cada segmento, várias são as ideologias existentes.
Esse conflito de interesses e ideologias é a causa de falhas do sistema e a
falta de um funcionalismo adequado. O sistema deveria trabalhar em consonância,
buscando soluções em conjunto, enquanto na realidade trabalham conforme
ideologias próprias egoísticas e culpam as falhas do sistema aos outros segmentos.
275
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Em geral, há uma manifesta separação de funções com contradição de
discursos e atitudes, o que dá por resultado uma compartimentalização do
sistema penal; a polícia atua ignorando o discurso policial e atividade que o
justifica; a instrução, quando é judicial, ignora o discurso e a atividade
sentenciadora; a segunda instância ignora as considerações da primeira
que não coincidem com seu próprio discurso de maior isolamento; o
discurso penitenciário ignora todo o resto. Cada um dos segmentos parece
pretender apropriar-se de uma parte maior do sistema, menos o judicial, que
vê retalhada suas funções sem maior alarme (ZAFFARONI; PIERANGELI,
2009, p. 71).
A partir disso, desses conflitos entre os discursos jurídicos, é possível
perceber a origem dos problemas operacionais do sistema, tais como: a
estigmatização e seleção dos aprisionado, a vulnerabilidade de parte da sociedade
perante o sistema, cifra oculta, labelling approach, entre outros.
Desta forma, verifica-se necessária a comunicação entre os segmentos do
sistema, para que com uma atuação conjunta destes, seja possível um melhor
funcionalismo e uma melhor estruturação da sociedade. A cominação, aplicação e
execução das sanções penais adequadas gerariam uma melhor preservação do
convívio social.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente artigo delimitou-se, em uma breve pesquisa, o controle sócio
penal e a participação/responsabilização do Estado na criação da realidade criminal.
Através deste, não se pretendeu trazer soluções inovadoras – principalmente devido
à complexidade do tema – mas apenas buscou-se uma melhor compreensão da
atuação do Direito Penal no âmbito estatal.
Com efeito, verificou-se que o Estado é uma instituição legitimada por leis,
com poder outorgado pela população, para diminuir conflitos de interesse e prover
melhores condições de convívio social.
Nesse sentido, conclui-se que o controle social exercido pelo Estado através
do Direito Penal é diferenciado, uma vez que este é composto por três caracteres
peculiares e essenciais, quais sejam: subsidiário, coercitivo e programático.
Primeiramente, analisou-se que a coerção exercida pelo Direito Penal se
diferencia dos demais ramos do Direito, na medida em que impõe um caráter
repressivo-punitivo. O Direito Penal repreende certas condutas que lesam os bens
276
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
jurídicos e as pune através de restrições de direito. É uma coerção incisiva aos
direitos do cidadão delinquente.
Exatamente por restringir certos direitos fundamentais do indivíduo, o Direito
Penal deve ser constituído de um caráter subsidiário, ou seja, deve ser a ultima ratio,
a última medida de controle social a ser tomada pelo Estado. Assim, apenas após
esgotados outros recursos para a solução do conflito, será legitima a intervenção
penal.
Todavia, o caráter de maior relevância para o controle sócio penal está no
caráter programático do Direito Penal; este dispõe que o Direito Penal tem uma
missão definida. Sendo assim, todas as fases do Direito Penal – de criação,
aplicação e execução – são definidas e elaboradas pelo Estado, sendo por esse
motivo o detentor do controle sócio penal.
Nesse ponto, foi ressaltado que a pena é a forma pela qual o Direito Penal
impõe sua coerção. A aplicação da pena possibilita e legitima o caráter repressivopunitivo da coerção penal.
Desta forma, considerando a discussão dos caracteres do Direito Penal,
principalmente seu caráter programático (fim definido) e o controle sócio penal
exercido pelo Estado, verificou-se a formação de dois processos de criminalização
dentro da máquina estatal: o primário e o secundário. Sendo a seletividade do
sistema penal o principal problema derivado destes.
Em seu âmbito primário, o processo de criminalização se baseia na
elaboração de normas penais e sanções correspondentes. Em uma esfera
secundária, encontra-se a aplicação das normas e sanções prescritas no processo
primário, conforme a adequação do caso concreto. Insta destacar que o processo
primário é realizado pelos legisladores, enquanto o secundário pelos aplicadores do
Direito.
Assim, o problema da seletividade do sistema se encontra na manipulação
dos processos de criminalização para punir condutas delitivas específicas,
basicamente infrações penais contra o patrimônio, geralmente de valores baixos;
atos praticados, principalmente, pela população de baixa renda.
Em conclusão, verifica-se que esta triagem de condutas potencialmente
puníveis ocorre principalmente através de duas seleções: a quantitativa e a
qualitativa.
277
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A seleção quantitativa demonstrou que o sistema penal é programado para
não funcionar em toda a sua amplitude, pois a quantidade de fatos puníveis que
ocorrem diariamente torna impossível a atuação estatal. Todo cidadão, em algum
momento no decorrer de sua vida, já cometeu alguma infração penal. Se o sistema
penal punisse todas as condutas delitivas, puniria toda a população, assim, acabaria
perdendo seu poder de atuação e legitimidade, uma vez que toda a coletividade
seria punida.
Desta forma, o sistema se focou na punição de espécies bem definidas de
condutas, ou seja, aquelas que ofendem o patrimônio, geralmente, em valores
baixos.
Juntamente com essa seleção quantitativa, talvez decorrente desta, surgiu a
segunda seleção: a qualitativa, a qual definiu uma estigmação dos “potenciais
delinquentes” da sociedade – dentro do rol daquelas espécies de condutas
consideradas relevantemente puníveis – atingindo, como já elucidado, uma
população de baixa renda. Em decorrência disto, determinou-se a criação e o
fomento de um sistema de etiquetagem (labbeling approach) do delinquente em
potencial.
Nesse sentido, as agências penais, dentro de sua área de atuação, trabalham
em função desse sistema de seletividade. Os legisladores criam regras e sanções
penais tendo por objetividade a punição desses determinados tipos de conduta; a
Polícia tem como ideal de criminoso esse determinado perfil de indivíduos; a
população teme esse mesmo perfil; e o Judiciário condena esses mesmos
indivíduos etiquetados.
Desta forma, conclui-se que o sistema penal se fechou em um ciclo vicioso de
punição de determinados tipos de condutas e indivíduos, no qual o controle sócio
penal exercido pelo Estado volta-se, primacialmente, na contenção destas mesmas
condutas e indivíduos. Assim sendo, o Estado estigmatizou, e de certa forma
segregou, uma relevante parcela da população ao etiquetá-la como a parcela
potencialmente criminosa da sociedade. Situação que fere princípios fundamentais
do Estado Democrático (Constitucional) de Direito, cujo corolário principal é o da
igualdade.
278
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
REFERÊNCIAS
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violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003.
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2005.
REALE JUNIOR, Miguel. Instituições de direito penal: parte geral. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006.
ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1992.
WOLKMER, Antônio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Porto Alegre:
Sérgio Fabris Editores, 1990.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro:
Renavam, 1991.
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro: teoria geral do
direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro: parte geral. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
279
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
280
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
LEGITIMIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO DIANTE DO
PRINCÍPIO DA LESIVIDADE
LEGITIMACY OF THE ABSTRACT RISK CRIMES AGAINST THE
OFFENSE PRINCIPLE
Glenyo Cristiano Rocha1
Gustavo Brita Scandelari2
Graduado em Direito pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA (2014). Pós-graduando no
curso de especialização em Direito Contratual da Empresa no Centro Universitário Curitiba –
UNICURITIBA. Advogado.
2 Graduado em Direito pela Universidade Positivo (2006). Pós-graduado em Direito Constitucional
pela Unibrasil. Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política
Criminal (ICPC) em convênio com a UFPR. Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Professor de
Cursos de Pós-Graduação em Direito. Professor de Direito Penal no UNICURITIBA. Associado
fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Membro da Comissão da
Advocacia Criminal da OAB/PR (2011/2012 e 2013/2015). Membro da Associação Internacional de
Direito Penal (AIDP). Membro do Instituto dos Advogados do Paraná. Advogado.
1
281
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SUMÁRIO
1 – Introdução. 2 - Harm Principle. 3 - Teorias do Bem Jurídico. 3.1 - Winfried
Hassemer e a Teoria Pessoal do Bem Jurídico. 3.2 - Bem Jurídico Como Ponto de
Fuga das Figuras de Imputação, de Bernd Schünemann. 3.3 - Vigência da Norma
Como Objeto de Proteção Juridico-Penal, por Günther Jakobs. 3.4 - O Bem Jurídico
Relacional de Stratenwerth. 3.5 Roxin e a Proteção Subsidiária de Bens Jurídicos.
3.6 - Teoria do Bem Jurídico e o Harm Principle, por Hirsch. 4 - Dano, Perigo
Concreto e Perigo Abstrato. 4.1 - Delitos de Mera Conduta e Delitos de Resultado.
4.2 - Perigo Abstrato e Lesividade (Ofensividade). 4.3 - Delitos de Acumulação. 5 Análise Sobre os Crimes de Perigo Abstrato. 5.1 - Sociedade de Risco. 5.2 Aspectos de Política Criminal. 5.3 - Perigo Abstrato em Relação às Teorias do Bem
Jurídico. 5.4 - Perigo Abstrato e o Harm Principle. 6 - Considerações Finais.
Referências.
282
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
A presente pesquisa visa solucionar uma questão amplamente debatida na doutrina
atual, que é a legitimidade dos crimes de perigo abstrato diante do princípio da
lesividade, tendo em vista a pretensa incapacidade de criar qualquer resultado
danoso a partir das condutas tipificadas. Fundamentando o raciocínio necessário ao
desenvolvimento, são apresentadas diversas teorias do bem jurídico, de origem
europeia, onde a discussão é mais intensa e profunda, demonstrando suas
particularidades e pontos de distinção, evidenciando as várias acepções possíveis
ao tema. A evolução técnico-científica justifica o expansionismo penal, e torna
imprescindível a tipificação de novas condutas para acompanhar a modernização. O
Harm Principle, elaborado por John Stuart Mill, representa uma solução viável para a
aplicação da lei penal, conjugando a subsunção típica com a necessidade de
ocorrência de dano ou risco efetivo de dano. Intenciona-se, com a realização desta
pesquisa, verificar se há legitimidade nos crimes de perigo abstrato de um ponto de
vista teórico-dogmático, em consonância com os preceitos legais e garantias
historicamente estabelecidas, próprias do Direito Penal.
Palavras-chave: Bem Jurídico, Harm Principle, Perigo Abstrato, Sociedade de
Risco.
283
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
This research focus on solving a highly debated question at the actual academic
production, which is the legitimacy of the abstract risk crimes against the offense
principle, considering the alleged inability of creating any harmful result from a
typified behavior. Basing the rationality required to the development, are presented
many legal interest theories, with european origin, where the discussion is more
intense and deeper, demonstrating its particularities and distinguish points, showing
the many possible meanings to the theme. The technical-scientific evolution justifies
the penal expansionism, and makes indispensable the typification of new behaviors
to follow the modernization. The Harm Principle, elaborated by John Stuart Mill,
represents a viable solution to the enforcement of the criminal law, conjugating the
typical subsumption with the need of harm occurrence or effective risk of harm. The
intention, with the realization of this research, is to verify if there is any legitimacy in
the abstract risk crimes from a theoretical-dogmatic point of view, in harmony with the
legal precepts and guaranties historically established, typical of the Criminal Law.
Keywords: Legal Interest, Harm Principle, Abstract Risk, Risk Society.
284
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
Este artigo foi redigido a partir de uma concepção reiteradamente discutida há
tempos, em que se teoriza que os crimes de perigo abstrato seriam ilegítimos. O
principal argumento utilizado é que, diante do princípio da lesividade, condutas
meramente perigosas não poderiam ser punidas por não lesionarem efetivamente
qualquer bem jurídico, vez que sua perfectibilização prescinde de resultados no
mundo exterior.
Tal problema adquire relevância diante do momento expansionista em matéria
penal, cuja produção legislativa ocorre de maneira desenfreada, pretensamente
acompanhando o processo de modernização.
Para verificar sua eventual confirmação em um aspecto dogmático,
desconstruir-se-á o raciocínio em elementos essenciais, cuja compreensão
individual e posterior reintegração possibilitem a tomada de conclusões.
Se o problema é baseado na ausência de lesão a bens jurídicos pelos crimes
de perigo abstrato, alguns pontos básicos precisam ser compreendidos para habilitar
a construção de um posicionamento idôneo sobre o tema: O que é um bem jurídico?
O que são os crimes de perigo abstrato? Qual o pressuposto do princípio da
lesividade? Qual o panorama atual em termos de política criminal?
O estudo do Harm Principle e da teoria do bem jurídico iniciam o apanhado
intelectual. São conceitos que, como aponta Andrew Von Hirsch, podem se
complementar de alguma forma, mas não costumam ser tratados conjuntamente, até
mesmo porque o seu desenvolvimento se deu em bases territoriais distintas.
Como forma de demonstrar a inquietude teórica sobre o tema, serão
apresentados diversos posicionamentos doutrinários acerca da natureza do bem
jurídico e, como será logicamente visto adiante, diferentes posicionamentos levam a
diferentes conclusões.
2 HARM PRINCIPLE
O Harm Principle é preconizado por John Stuart Mill na obra “Sobre a
Liberdade”, publicada originalmente em 1859. O autor realiza um grande estudo
285
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
sobre o comportamento humano, historicamente considerado, e passa a dotar seus
esforços na tentativa de delimitar as hipóteses em que a punição estatal
(amplamente considerada, para além do Direito Penal) seria legítima.
Prevê que a tendência no desenvolvimento das liberdades civis seria “do
fortalecimento da sociedade e da diminuição do poder do indivíduo, esta intromissão
não é um daqueles malefícios que tendem a desaparecer espontaneamente, mas
que, pelo contrário, se tornam cada vez mais fortes” (MILL, 1997, p. 21). Tal
tendência se concretizou, e o cenário atual demonstra grande expansão do aparato
estatal e de seu intervencionismo.
Analisando a evolução humana sob os aspectos político e social, começa a
traçar os contornos do seu princípio:
a única finalidade que justifica que a humanidade interfira, individual ou
colectivamente, na liberdade de acção de qualquer dos seus membros é a
sua própria protecção. Que o único objetivo da utilização legítima do poder
que qualquer membro da comunidade civilizada, contra a sua vontade, é
para evitar que outros sejam prejudicados. (MILL, 1997, p. 17).
Não caberia, nesse aspecto, a punição por condutas que fossem somente
moralmente reprováveis, ou ainda cuja ofensa não extrapolasse a si mesmo. Cada
indivíduo tem o direito de guiar sua vida da maneira que achar mais adequada e,
portanto, a intervenção estatal deveria ser a exceção, uma ultima ratio de fato. A
sanção legítima puniria condutas que provoquem mal a outras pessoas.
O importante é não obstaculizar a autodeterminação. Somente a liberdade,
dentro das individualidades de cada pessoa, permitira a evolução. A evolução,
enquanto livre desenvolvimento humano, é desejada, mas não a qualquer custo. A
esfera de liberdades de alguém não pode invadir a esfera de liberdades de outrem,
até mesmo porque isso impediria este de evoluir livremente e alcançar seus
objetivos.
O fundamento para a sujeição às restrições impostas seria que todos
recebem a proteção da sociedade, e que devem retribuir isso seguindo determinado
padrão de conduta:
286
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Embora a sociedade não seja baseada num contrato, e ainda que nenhuma
finalidade importante resulte de se inventar um contrato para dele se
deduzirem obrigações sociais, todos os que recebem a proteção da
sociedade ficam a dever-lhe uma retribuição pelo benefício recebido, e o
facto de se viver em sociedade torna indispensável que cada indivíduo seja
obrigado a seguir uma determinada linha de conduta em relação aos
restantes. Esta conduta consiste, em primeiro lugar, em não se lesar os
interesses uns dos outros; ou, por outro lado, determinados interesses que,
através de uma expressa estipulação legal ou de um acordo tácito, devem
ser considerados como direitos; e, em segundo lugar, cada indivíduo deve
suportar a sua quota-parte (a ser fixada com base num princípio equitativo)
dos esforços e sacrifícios necessários para defender a sociedade ou os
seus membros de quaisquer danos e ataques. (MILL, 1997, p. 72).
Generalizando o princípio, na tentativa de condensá-lo em um conceito, a
punição seria cabível apenas para os casos em que houver lesão a interesses e
direitos de terceiros na busca de objetivos que não sejam legítimos. Nas palavras do
próprio autor, o princípio é composto por duas máximas:
Estas máximas são, em primeiro lugar, que o indivíduo não é responsável
perante a sociedade pelos seus actos, desde que estes não digam respeito
a ninguém a não ser ele próprio. Conselhos, instruções, persuasão e evitar
a presença, se alguém entender que tal é necessário, são as únicas
medidas através das quais a sociedade pode justificadamente exprimir o
seu desagrado ou condenação pela sua conduta. Em segundo lugar, que o
indivíduo é responsável pelos actos que são prejudiciais aos interesses de
outrem, podendo ser punido social ou legalmente, se a sociedade for da
opinião que um ou outro modo de castigo é necessário para sua protecção.
(MILL, 1997, p. 95).
Ao que parece, o objetivo principal é assegurar aos indivíduos a devida
liberdade para desenvolver-se livremente, desde que suas ações, tendo por
parâmetro o interesse geral, não prejudiquem outrem.
3 TEORIAS DO BEM JURÍDICO
O próximo passo é compreender a natureza do bem jurídico. O que é? E o
que é apto a ser um bem jurídico? Esse é o ponto chave. O costume, ao menos na
tradição brasileira, é afirmar simplesmente que o bem jurídico é o objeto da ação, ou
seja: a vida é o bem tutelado no homicídio, portanto a lesão ao bem “vida” é
287
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
criminalizada; o patrimônio é o bem tutelado no furto, portanto a lesão ao bem
“patrimônio” é criminalizada.
Ocorre que a doutrina europeia se antecipa e trava, há tempos, discussão
sobre a natureza do bem jurídico, principalmente diante da evolução social e,
consequentemente, do Direito Penal. Nesse aspecto, doravante serão apresentados
os posicionamentos de alguns autores, que em alguma medida divergem
conceitualmente.
3.1 WINFRIED HASSEMER E A TEORIA PESSOAL DO BEM JURÍDICO
Hassemer discorre que, historicamente, os bens jurídicos servem para
descriminalizar, pois a atuação legiferante em matéria penal se referiria somente a
condutas que ameaçassem bens jurídicos.
Porém, tal critério não poderia ser o único, ainda que seja necessário. Além
desse, existem vários princípios relativos à limitação de punibilidade, como a
subsidiariedade, a danosidade social, o respeito à dignidade humana, Direito Penal
do fato e taxatividade da lei penal. O legislador deve proteger os bens que estiverem
sistematicamente inseridos nesses limites.
Ao passo em que a legislação moderna passa a se ocupar com a
supraindividualidade, inviabilizando a determinação precisa do sujeito passivo das
condutas ora criminosas, deixa de proteger interesses meramente individuais e
passa a proteger também instituições ou funcionamento de sistemas. Os padrões
antigos não são mais suficientes, e há uma ampliação indistinta dos bens jurídicos.
Acresça-se ainda que uma sociedade moderna amplia as possibilidades de
ação e, com novas instituições, cria novas possibilidades de lesão. Seria
míope querer salvar os princípios jurídicos clássicos minimizando a
importância dessa evolução. Intenso tráfico de drogas, desgaste do meio
ambiente e atentados ameaçadores a estruturas econômicas ou de
tecnologia e comunicação conduzem a novos problemas sociais, que
devem ser enfrentados pela teoria do bem jurídico. (HASSEMER, 2011, p.
20).
288
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Para acompanhar o desenvolvimento da sociedade, é necessário assimilar os
novos problemas sociais e partir para uma proteção que não é mais exclusivamente
individual, mas social:
Essa tradição consiste em funcionalizar os interesses da coletividade e do
Estado a partir do indivíduo: bens jurídicos universais têm, nessa medida,
somente uma base, quando comprovadamente forem interesses indiretos
do indivíduo. Na origem dessa tradição está uma compreensão liberal de
Estado, para a qual o Estado não é fim em si próprio, mas deve apenas
promover o desenvolvimento e a garantia das possibilidades vitais do ser
humano. (HASSEMER, 2011, p. 21).
Em última análise, deve haver uma teoria pessoal do bem jurídico, entendido como
interesses humanos que precisam de proteção penal e, com isso, poderiam ser
tuteladas instituições intangíveis também, desde que isso resulte na proteção de
humanos, ainda que indiretamente. Não significa negar a existência de bens
jurídicos do Estado ou da coletividade, mas que estes sejam úteis aos interesses
dos seres humanos.
3.2 BEM JURÍDICO COMO PONTO DE FUGA DAS FIGURAS DE IMPUTAÇÃO, DE
BERND SCHÜNEMANN
Bernd Schünemann elege como bens jurídicos todos aqueles que o sujeito
precisa para seu livre desenvolvimento, desde que não obtidos em detrimento do
desenvolvimento dos outros, imprescindíveis para a convivência pacífica e que
digam respeito à liberdade de escolha dos indivíduos:
O conceito de lesão ou (em perspectiva inversa) o de bem expressa,
também, não um interesse qualquer, mas apenas um interesse urgente da
convivência pacífica pode ser objeto da proteção penal, de modo que meras
inconveniências que aflijam o indivíduo ou meras incompletudes da
organização social não bastam para justificar o apelo ao Direito Penal.
(SCHÜNEMAN, 2011, p. 37).
O autor entende que o bem jurídico desempenha importante papel na
estrutura do delito, além de restringir as condutas que são capazes de afetá-lo, pois
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
seu processo de delimitação substancial abrange uma série de princípios que
acabam por solidificar a proibição.
3.3 VIGÊNCIA DA NORMA COMO OBJETO DE PROTEÇÃO JURIDICO-PENAL,
POR GÜNTHER JAKOBS
A teoria adotada por Günther Jakobs é bastante distinta, e seu argumento é
de que o Direito Penal tutelaria, na verdade, a própria vigência da norma. Isso
significa dizer que o bem jurídico não possui um conteúdo definido previamente, mas
qualquer conteúdo que permita a manutenção da forma de Estado e sociedade:
A contribuição que o Direito penal presta à manutenção da configuração
social e estatal está em garantir as normas. A garantia consiste em que as
expectativas imprescindíveis para o funcionamento da vida social, na forma
dada e na exigida legalmente, não se deem por perdidas no caso de serem
defraudadas. Por isso, - ainda que contradizendo a linguagem usual – se
deve definir como o bem proteger a firmeza das expectativas normativas
essenciais face à decepção, firmeza diante das decepções que tem o
mesmo âmbito que a vigência da norma posta em prática; este bem se
denominará a partir de agora bem jurídico-penal.3 (JAKOBS, 1997, p. 45,
tradução nossa).
A contribuição do Direito Penal seria à manutenção da configuração social e
estatal, garantindo que as expectativas relativas ao funcionamento da vida social
não se percam.
3.4 O BEM JURÍDICO RELACIONAL DE STRATENWERTH
Günter Stratenwerth inicia explicando que interesses sempre existem em
qualquer norma, sendo dirigidos a algo e, simultaneamente, reflexos desse algo,
No original: “La contribución que el Derecho penal presta al mantenimento de la configuración social
y estatal reside en garantizar las normas. La garantia consiste en que las expectativas
imprescindibles para el funcionamiento de la vida social, en la forma dada y en la exigida legalmente,
no se den por perdidas en caso de que resulten defraudadas. Por eso, - aun contradiciendo el
lenguaje usual – se debe definir como el bien a proteger la firmeza de las expectativas normativas
esenciales frente a la decepción, firmeza frente a las decepciones que tiene el mismo ámbito que la
vigencia de la norma puesta en práctica; este bien se denominará a partir de ahora bien jurídicopenal.”.
3
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ainda que não sejam esse algo. É inviável, portanto, lesionar um interesse e,
partindo dessa perspectiva, o bem jurídico não pode ser um interesse. Também não
poderia ser um valor, pois valores igualmente não podem ser lesionáveis.
Para superar essas propostas, afirma que o bem jurídico não é um objeto,
nem um juízo de valor, mas a relação valorada entre um ser humano e um interesse.
A fim de tornar esse bem digno de proteção, deve ser conferido a uma pessoa, de
maneira a assegurar seu desenvolvimento pessoal.
Assim, não seria qualquer ofensa que ensejaria a punição, mas apenas
aquelas que interfiram no “estado lesionável” do bem jurídico:
como se sabe, o furto em nada altera os direitos de propriedade. Toda
atribuição tem, contudo, seu lado fático, correspondendo a ela a
possibilidade de utilizar o bem, de conduzir a própria vida (e talvez de gozála), de fazer uso das próprias capacidades físicas e da própria liberdade etc.
Nessa relação encontra-se o verdadeiro substrato do bem jurídico, o
‘estado’ lesionável e que por isso tem de ser protegido contra lesões, isto é,
contra a eliminação ou diminuição das possibilidades de vida que esse
estado representa. (STRATENWERTH, 2011, p. 108).
Há ainda bens jurídicos que tutelam, em última análise, as normas que regem
a sociedade. São consequências da violação da norma e não a violação em si.
Quanto a essa dimensão de bens jurídicos, Stratenwerth afirma que:
Esse campo de convicções personalíssimas não pode, contudo, ser descrito
em seu conteúdo, ser materializado, e talvez seja essa a razão para que se
fale na paz pública como o bem jurídico protegido, uma vez que, apesar de
ser secundária, ela se mostra mais substancial do que o apelo às normas
que regulam o respeito às convicções alheias. (STRATENWERTH, 2011,
p.110).
Considerando as diferenças dos objetos de proibição penal, o autor retoma a
perspectiva de que não se encontrou, historicamente, um conceito de bem jurídico
com aplicação a todos os delitos. Para Stratenwerth, não se trata de algo pendente
de solução, mas algo cuja solução é impossível.
3.5 ROXIN E A PROTEÇÃO SUBSIDIÁRIA DE BENS JURÍDICOS
291
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Claus Roxin inicia seus escritos sobre o tema refletindo que o legislador tem o
direito de estabelecer penas a partir de uma atribuição constitucional que pressupõe
a existência de um direito do Estado penalizar, mas o legislador constitucional
silenciou quanto a quais condutas poderiam ser legitimamente punidas. O conceito
material de delito deveria ser entendido como “proteção subsidiária de bens
jurídicos”. A lesão a um bem jurídico seria, portanto, um pressuposto da
punibilidade.
Para delimitar a autorização da intervenção jurídico-penal, parte-se da função
do Direito Penal, entendida como a “existência pacífica, livre e socialmente segura,
sempre e quando estas metas não possam ser alcançadas com outras medidas
político-sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos” (ROXIN,
2009, p. 16), fronteira para além da qual não se pode criminalizar quaisquer
condutas.
Conceitua o bem jurídico como todas as “circunstâncias reais dadas ou
finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos
humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema
estatal que se baseia nestes objetivos” (ROXIN, 2009, p. 16).
A grande diferença nessa acepção é que não se limita a bens jurídicos
individuais, mas também abrange os da generalidade. Não haveria, porém,
legitimidade em todos os bens jurídicos supraindividuais, mas apenas naqueles que
servem ao indivíduo.
O conceito de bem jurídico não se afasta da derivação das incumbências do
Estado e dos direitos fundamentais, de maneira que todos os preceitos penais estão
submetidos às limitações constitucionais. Não é um conceito estático, pois aberto às
mudanças sociais e aos progressos do conhecimento científico.
O conceito de bem jurídico somente proporciona um critério para
desenvolvimento da matéria jurídica e de orientação para o legislador e aplicadores
do direito devem consultar para criação de leis e interpretação de cada caso
concreto.
Distingue bem jurídico e objeto da ação, que por vezes parecem ser o
mesmo, mas aquele é o bem ideal que se incorpora no objeto atacado, enquanto
apenas os objetos individuais da ação são lesionáveis.
292
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
3.6 TEORIA DO BEM JURÍDICO E O HARM PRINCIPLE, POR HIRSCH
Enquanto Mill considerava o harm principle o único critério válido para
penalização de comportamentos, Joel Feinberg, que teorizou a partir do referido
princípio, utiliza também outros critérios, como o efeito ofensivo intrínseco a uma
conduta, chamado de offense to others, mas também rejeita os critérios do
paternalismo e da proteção penal das tradições morais.
Hirsch realiza um estudo sobre o princípio do dano, partindo do conceito de
dano em paralelo com a noção de interesse. Haveria o dano quando uma conduta
despreza um interesse, que deve ser entendido como um recurso sobre cuja
integridade tenha direito outra pessoa. Recurso seria um meio ou uma capacidade
que normalmente possui um certo valor para a manutenção de um padrão de
qualidade de vida.
O autor traça um paralelo entre o conceito de dano, mencionado no parágrafo
anterior, e o conceito de bem jurídico, afirmando que a partir do harm principle é
possível construir algo parecido com um bem jurídico. Adverte que a discussão do
bem jurídico está muito mais desenvolvida que a discussão em torno do harm
principle, mas que ainda assim a combinação das duas teorias pode resultar em
alguns ensinamentos para a doutrina penal alemã.
O panorama da discussão na Alemanha gira em torno da necessidade de
manutenção da teoria do bem jurídico devido à falta de claridade e vagueza com
conceito. Uma solução apontada por Hirsch seria a utilização de harm to others
como uma maneira de limitar a definição de bem jurídico.
Os fundamentos do princípio do dano são amplos, o que torna possível uma
legítima maior aplicação, como passa a explicar:
A lesividade para outras pessoas deve, portanto, contemplar-se a partir
deste princípio de modo individualista; trata-se, assim, sobretudo de lesões
a pessoas de carne e osso. Apesar da evidente prioridade dos interesses
individuais, o harm principle permite também a proibição de condutas
coletivamente lesivas, como por exemplo o delito fiscal, sem que seja
necessário chegar tão longe como chegam os membros da Escola de
Frankfurt, que consideram que os bens jurídicos coletivos não são nada
além da soma dos bens jurídicos dos indivíduos. O harm principle pode
293
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
abarcar condutas lesivas de bens coletivos, porém por outro lado exige que
a ratio desses bens coletivos, ao menos em casos normais, seja
proveniente da proteção da qualidade de vida dos seres humanos, isto é,
que o prioritário são os interesses pessoais. Assim, por exemplo, a razão
pela qual deve ser protegida a Fazenda Pública deve extrair-se do fato de
que em um Estado social a arrecadação de impostos reverte-se na
qualidade de vida dos cidadãos.4 (HIRSCH, 2007, p. 44, tradução nossa).
Prossegue indicando que a ênfase na lesão de interesses de terceiros pode
colaborar com a diferença entre o desprezo de interesses de terceiros e dos
interesses do próprio agente, que ocorre na teoria do bem jurídico.
Um dos pontos centrais da discussão do Legal paternalism é se o Direito
deveria intervir quando uma conduta autolesiva possa conduzir a danos muito
graves e irreparáveis. A justificação dessas normas é proveniente da gravidade e
irreparabilidade dos danos autoinfligidos, a intensidade e duração da intervenção e a
coerência e aparente racionalidade dos motivos que o agente tenha para agir.
O Offense Principle parte de um pressuposto distinto do harm principle, pois
determina que certas ofensas despertam sentimentos indesejados em outras
pessoas, pelo que, na visão de Feinberg, essas condutas deveriam ser penalmente
proibidas quando tornem difícil que os outros cidadãos possam ignorá-las. Hirsch
critica esse posicionamento, pois mesmo nessa hipótese acredita ser indispensável
a ocorrência de dano para ensejar a punição.
4 DANO, PERIGO CONCRETO E PERIGO ABSTRATO
O Direito Penal Clássico preocupava-se com os crimes de dano e perigo
concreto, mas no Direito Penal Econômico os crimes de perigo abstrato, antes
No original: “La lesividad hacia otras personas debe, por tanto, contemplarse desde ese principio de
un modo individualista; se trata, así, sobre todo de lesiones a personas de carne y hueso. A pesar de
la evidente prioridad de los interesses individuales, el harm principle permite en todo caso la
prohibición de conductas colectivamente lesivas, como por ejemplo el delito fiscal, sin que sea
necessario aquí llegar tan lejos como llegan los miembros de la Escuela de Frankfurt, que consideran
que los bienes jurídicos colectivos no son sino la suma de los bienes jurídicos de los indivíduos. El
harm principle puede abarcar conductas lesivas de bienes colectivos, pero por otro lado exige que la
ratio de esos bienes colectivos, al menos en los casos normales, radique en la proteccíon de la
calidad de vida de los seres humanos, esto es, que lo prioritario son los interesses personales. Así,
por ejemplo, la razón por la que debe ser protegida la Hacienda pública debe extraerse del hecho de
que en un Estado social la recaudación de impuestos revierte en la calidad de vida de los
ciudadanos.”.
4
294
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
exceções, passam a ser a regra. Para esclarecer esse ponto, faz-se necessária a
distinção entre essas espécies de técnicas de tipificação.
Introdutoriamente, Eugenio Raúl Zaffaroni distingue perigo e dano quanto à
afetação do bem jurídico:
Há dano ou lesão quando a relação de disponibilidade entre o sujeito e o
ente foi realmente afetada, isto é, quando, efetivamente, impediu-se a
disposição, seja de forma permanente (como ocorre no homicídio) ou
transitória. Há afetação do bem jurídico por perigo quando a tipicidade
requer apenas que essa relação tenha sido colocada em perigo.
(ZAFFARONI, 2006, p. 482).
Os crimes de dano dependem da realização do resultado de uma conduta.
Os delitos de perigo concreto são aqueles em que o perigo é uma elementar
do tipo, estando expressamente previsto no texto legal, mas não restrito à sua
literalidade. A conduta deve aproximar-se da realização de dano e, para sua
configuração, deve haver dois momentos de análise: O primeiro juízo, antes da
ocorrência do fato (ex ante), deve verificar que a conduta apresentou uma
possibilidade de dano e o segundo juízo, posterior ao fato (ex post), conferirá se o
dano esteve perto de efetivamente ocorrer, se houve alta probabilidade de dano ao
bem jurídico (D’AVILA, 2009, p. 110). Este raciocínio demonstra conformidade com o
apresentado por Luis Greco:
Ponto comum à grande maioria dos que se importam em definir o que seja
perigo concreto é a perspectiva com base na qual ele deve ser ajuizado:
trata-se da perspectiva ex post, isto é, levam-se em conta todas as
circunstâncias reais, mesmo as somente conhecidas e cognoscíveis após a
realização do fato. (GRECO, 2011, p. 99).
O tipo traz consigo uma presunção relativa de que aquela conduta é
potencialmente lesiva, portanto é necessário provar a ocorrência do perigo na
situação fática da conduta analisada.
Os delitos de perigo abstrato são “aqueles crimes cujo tipo não exige nem
uma lesão, nem um perigo concreto para o bem jurídico protegido” (GRECO, 2011,
p. 99). É uma técnica que prevê uma conduta perigosa por si própria, em que há a
295
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
presunção do perigo tão somente pela ocorrência da conduta. Segundo a lição da
doutrina:
O tipo de perigo abstrato é a técnica utilizada pelo legislador para atribuir a
qualidade de crime a determinadas condutas, independentemente da
produção de um resultado externo. Trata-se de prescrição normativa cuja
completude se restringe à ação, ao comportamento descrito no tipo, sem
nenhuma referência aos efeitos exteriores do ato, ao contrário do que
ocorre com os delitos de lesão ou de perigo concreto. (BOTTINI, 2010, p.
113).
Para a configuração de um crime de perigo abstrato, a rigor, recorrendo a
interpretação meramente literal, é necessária apenas uma análise ex ante factum,
ou seja, previamente ao fato, ocasionando que “a prova da causalidade e do
resultado torna-se desnecessária, em princípio basta a mera prática da conduta
descrita para que se incorra na sanção.” (GRECO, 2011, p. 4).
Nesse sentido, pode-se afirmar que “os crimes de perigo abstrato, por outro
lado, prescindem da referência a fenômenos externos à atividade descrita como
ilícita. Sob o aspecto formal, a mera prática da conduta indicada na norma exaure os
aspectos objetivos do tipo penal” (BOTTINI, 2010, p. 114).
Não há, portanto, necessidade de que haja qualquer resultado, pois “o núcleo
do injusto penal é a conduta praticada: o desvalor reside na ação e não no resultado,
dispensado para a configuração formal do ilícito” (BOTTINI, 2010, p. 115).
Existem, ainda, os delitos de perigo abstrato-concreto, os quais podem ser
definidos como aqueles que:
[...] descrevem a conduta proibida e exigem expressamente, para a
configuração da tipicidade objetiva, a necessidade da periculosidade geral,
ou seja, que a ação seja apta ou idônea para lesionar ou colocar em perigo
concreto um bem jurídico. Estes tipos penais atrelam a conduta proibida a
um critério material de injusto, que será a criação de um risco não permitido,
mesmo que não realizado concretamente. (BOTTINI, 2010, 118).
É uma categoria mais contida que o perigo abstrato tradicional, pois a
tipificação não se fundamenta tão somente na criação de um risco, mas pressupõe a
potencialidade lesiva da conduta em relação a um bem jurídico.
296
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
4.1 DELITOS DE MERA CONDUTA E DELITOS DE RESULTADO
Com a finalidade de esclarecer embasar a análise que segue, convém
conceituar os crimes de mera conduta e os crimes de resultado Jorge de Figueiredo
Dias define os crimes de resultado como aqueles em que “o tipo pressupõe a
produção de um evento como consequência da actividade do agente” (DIAS, 2007,
p. 306), enquanto os crimes de mera conduta (por ele denominados de “crimes de
mera actividade”), são aqueles em que “o tipo incriminador se preenche através da
mera execução de um determinado comportamento” (DIAS, 2007, p. 306).
Há uma confusão conceitual que embaralha esses conceitos com os de
perigo e dano, mas os delitos de dano não são o mesmo que os de resultado, bem
como os de perigo não se confundem com os delitos de mera conduta. Essa
distinção é apresentada por Luís Greco:
Afinal, enquanto a distinção entre delitos de lesão e de perigo se refere ao
bem jurídico, a distinção entre delitos de resultado e de mera conduta parte
da existência ou não de um objeto da ação espácio-temporalmente diverso
da conduta do agente. (GRECO, 2011, p. 40).
Os tipos de resultado (também chamados de “materiais”) exigem um
resultado específico, ou seja, que a conduta cause determinada consequência. Os
tipos de mera conduta (denominados também de “formais”), por outro lado, apenas
descrevem determinada conduta, sendo que o tipo se preenche com a realização da
conduta, pouco importando o efeito decorrente desta.
4.2 PERIGO ABSTRATO E LESIVIDADE (OFENSIVIDADE)
Realizado o panorama geral, o momento passa a ser de entender a grande
discussão acerca dos crimes de perigo abstrato. O debate reside em sua
legitimidade, em especial à questão de sua possível inconstitucionalidade face à
ausência de lesividade das condutas tipificadas.
297
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A fim de seguir um raciocínio lógico e evitar uma confusão conceitual já de
início, faz-se necessária a apresentação introdutória do referido princípio, partindo
então para uma análise da crítica apresentada por uma divergência doutrinária.
Nilo Batista explica que, “à conduta do sujeito autor do crime deve relacionarse, como signo do outro sujeito, o bem jurídico (que era objeto da proteção penal e
foi ofendido pelo crime – por isso chamado de objeto jurídico do crime)” (BATISTA,
2007, p. 91), situação em que “o bem jurídico põe-se como sinal da lesividade
(exterioridade e alteridade) do crime que o nega, ‘revelando’ e demarcando a
ofensa” (BATISTA, 2007, p. 95).
A lesividade é pressuposto de um direito penal voltado à proteção de bens
jurídicos, como expõe Zaffaroni:
[...] se a norma tem sua razão de ser na tutela de um bem jurídico, não pode
incluir em seu âmbito de proibição as condutas que não afetam o bem
jurídico. Consequentemente, para que uma conduta seja penalmente típica
é necessário que tenha afetado o bem jurídico. (ZAFFARONI, 2006, p.
481).
Conforme disserta Fabio Roberto D’Avila, “a liberdade, enquanto valor
constitucional fundamental, somente pode ser restringida quando o seu exercício
implicar a ofensa de outro bem em harmonia com a ordem axiológico-constitucional”
(D’AVILA, 2009, p. 53).
Ao abordar o assunto, Eduardo Sanz de Oliveira e Silva adere à necessidade
de lesão a um bem jurídico, explicando que “ainda que a perigosidade seja
pressuposta, há que se verificar a ofensividade típica do delito de perigo abstrato,
bem como da conduta em si” (SILVA, 2005, p. 275) e, se o caso concreto demonstre
uma situação incapaz de ofensa a um bem jurídico, necessariamente acarretaria na
“exclusão de punibilidade por impossibilidade concreta do instrumento lesar ou
colocar em perigo o bem jurídico, o que acabaria por não perfazer o ilícito-típico
justamente por ausência de ofensividade ao bem jurídico pela conduta” (SILVA,
2005, p. 275).
Ainda que a mera conduta seja suficiente para preencher o tipo penal, é
plenamente possível a ofensa a um bem jurídico, a qual enseje legitimamente uma
persecução penal.
298
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Um embasamento cabível a esse raciocínio é de que “não há conduta sem
resultado” (ZAFFARONI, 2006, p. 404). Ainda que nos crimes de perigo abstrato não
se exija um resultado material e específico, parte-se de pressuposto que todos os
tipos exigem um resultado, pois a conduta tipificada certamente culminará em algum
efeito, de maneira indissociável, mas a estes delitos pouco importa qual será o
resultado (ZAFFARONI, 2006, p. 405).
A simples realização de um resultado não delimitado previamente, por si só,
não é suficiente para dar razão a qualquer tipificação. É necessário que a ação
resulte em uma lesão ao bem jurídico.
Fábio D’Avila sustenta que “ao falarmos em uma necessária restrição do ilícito
penal às hipóteses de efetiva ofensa a bens jurídicos, não estamos propondo uma
limitação do direito penal aos crimes de dano e aos crimes de perigo concreto”
(D’AVILA, 2009, p. 77), pois é possível compatibilizar o conceito de perigo abstrato
com o requisito de ofensa a bens jurídicos através da consideração dos efeitos da
conduta sobre o bem jurídico (D’AVILA, 2009, p. 107).
4.3 DELITOS DE ACUMULAÇÃO
O Direito Penal tem sido utilizado para prevenção de uma maneira diferente
da tradicional. Outrora a punição ocorreria devido a um fato danoso, cujo resultado
seria proveniente de uma conduta específica, havendo perfeito e aparente nexo de
causalidade entre a conduta e o resultado.
Jesús-María Silva Sánchez, ao conduzir o tema, explica que essa forma de
tipificação “dispensa uma valoração do fato específico, requerendo somente uma
valoração acerca de qual seria a transcendência global de um determinado gênero
de condutas que viesse a ser considerado lícito” (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 117).
Para justificar a ocorrência de uma possível ilicitude, o autor propõe uma
pergunta-chave: “o que aconteceria se todos os intervenientes neste setor de
atividade realizassem a conduta X – quando existe, ademais, uma séria
probabilidade de que muitos deles o façam –, caso fosse considerada lícita?” (SILVA
SÁNCHEZ, 2002, p. 117).
299
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
O problema dessas condutas não residiria em cada uma delas isoladamente,
mas no impacto que sua intensa repetição causaria. A preocupação não é com a
conduta de alguém, mas com a conduta de todos.
Como explica Pierpaolo Cruz Bottini:
Trata-se de ações que, isoladamente, não representam uma ameaça, em
potencial para bens jurídicos tutelados, mas sua reiteração ou multiplicação
acaba por consolidar um ambiente de riscos efetivos para estes interesses
protegidos. O núcleo do injusto não é a potencialidade lesiva da conduta
individual, mas o risco que a repetição destas condutas ocasiona ao bem
protegido. (BOTTINI, 2010, p. 126).
Pondera, ainda, que, devido a sua natureza, os delitos por acumulação
somente poderão ser tipificados através dos crimes de perigo abstrato, tendo em
vista que “não será possível atrelar, por critérios causais, o dano potencial a um ato
isolado, porque este fenômeno decorre de um somatório de ações similares, que
podem ser praticadas por agentes diversos” (BOTTINI, 2010, 127).
5 ANÁLISE SOBRE OS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO
5.1 SOCIEDADE DE RISCO
A obra do sociólogo alemão Ulrich Beck é de grande importância para a
análise do contexto social contemporâneo. O livro La Sociedad del Riesgo, que,
embora não tenha sido a primeira obra a tratar do tema, foi a que adquiriu maior
relevância, sendo frequentemente invocada para embasar o momento atual e
justificar a política criminal que tem sido adotada.
Teoriza que, na modernidade, a produção social de riqueza é acompanhada
da
produção
social
de
riscos
produzidos
pelo
avanço
técnico-científico.
Simultaneamente ao crescimento exponencial das forças produtivas no processo de
modernização, surgem riscos e potenciais de auto ameaça, em uma medida
desconhecida até o momento (BECK, 2006, p. 29).
Ao núcleo do problema da sociedade de risco, corresponderia uma questão
essencial:
300
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Como se podem evitar, minimizar, dramatizar e canalizar os riscos e perigos
que se tem produzido sistematicamente no processo avançado de
modernização e limitá-los e reparti-los, expostos na figura de “efeitos
secundários latentes” de tal modo que nem obstaculizem o processo de
modernização e nem ultrapassem os limites do “suportável” (ecológica,
médica, psicológica, socialmente)?5 (Tradução nossa) (BECK, 2006, p. 30).
O processo de modernização também é caracterizado pelo autor como
reflexivo: ao mesmo tempo em que é objeto de análise, é um problema a ser
resolvido. A sociedade, que depende desse avanço, é integralmente afetada pela
produção dos riscos e seus efeitos, independentemente da camada social em que
os indivíduos se encontrem.
Nesse cenário de uma sociedade com riscos globais, muitas vezes invisíveis,
mas com enorme potencial de destruição, estaria, em tese, legitimada a intervenção
estatal para coibir condutas que ainda não causam um dano, mas têm
potencialidade suficiente para tanto.
Algumas condutas não ocasionam resultados de maneira imediata, mas
impactam de maneira remota, de maneira que nem sempre a relação de causalidade
é visível. Com isso, muitos defendem que o Direito Penal deveria ser uma
ferramenta de proteção de interesses supraindividuais, servindo para prevenção e
proteção da existência humana, não apenas na atualidade, mas até mesmo das
gerações futuras.
5.2. ASPECTOS DE POLÍTICA CRIMINAL
Cumpre destacar que, antes mesmo de entrar no mérito da discussão, há um
grande problema a se levar em consideração para a construção de um raciocínio
jurídico que sirva para as pessoas, não sendo apenas uma idealização dogmática
realizada a partir de belas palavras e coerência sistemática. Há um enorme
descompasso entre a teoria e a prática quando se trata da realidade brasileira. Por
mais que os fundamentos da punição de determinadas práticas encontrem um
No original: “¿cómo se pueden evitar, minimizar, dramatizar y canalizar los riesgos y peligros que se
han producido sistemáticamente en el proceso avanzado de modernización y limitarlos y repartilos allí
donde hayan visto la luz del mundo en la figura de <<efectos secundarios latentes >> de tal modo que
ni obstaculicen el proceso de modernicazión ni sobrepasen los límites de lo <<soportable>>
(ecológica, médica, psicológica, socialmente)?”.
5
301
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
paralelo plenamente justificável em teorias abstratas e etéreas, sua efetivação no
sistema penal é distorcida e maléfica.
O Direito Penal afeta pessoas, por mais óbvio que isso possa parecer. Porém,
tal obviedade jamais pode ser esquecida! É de extrema importância lembrar que
cada amontoado de papel tramitando há anos em todos os graus de jurisdição
representam uma vida humana, plenamente digna, que está prestes a ter sua
liberdade restringida por uma decisão judicial. Os impactos desta restrição são
devastadores e passíveis de acabar com a vida de qualquer indivíduo, uma vez que
“viver” é um termo colocado em um plano distinto do “sobreviver”.
A questão do expansionismo penal deve ser tratada com cautela. Chegou-se
ao momento em que há a punição pela possibilidade do sujeito cometer uma
conduta que pode ou não criar um risco que, por sua vez, pode ou não vir a se
concretizar em um dano.
É difícil encontrar um posicionamento pronto e acabado de qual seria a
solução correta a ser adotada, mas é necessário conjecturar algumas possibilidades.
O atual momento reflete um grande e desenfreado expansionismo. É evidente
reconhecer que novas normas penais são criadas em alta velocidade, muitas vezes
sem atenção à própria sistemática normativa em que são inseridas. São criadas
punições atendendo ao clamor social, visando a retribuição de casos específicos
com alto apelo midiático, ou então se utiliza o Direito Penal como mero instrumento
de apoio para a efetivação de políticas administrativas, para coagir o indivíduo a agir
de acordo com a vontade do Estado.
A expressão “Ultima Ratio” frequentemente deixa de ter qualquer significado e
a intervenção penal passa a ser a primeira opção. Não se pensa mais em
intervenção mínima, mas em intervenção imediata e “necessária”. A liberdade
certamente não tem mais o mesmo valor que deveria ter e é cada vez mais
desprezada e ignorada.
O legislador não parece conhecer ou dar qualquer valor à alteridade, e sua
atuação provavelmente não passa por qualquer teoria penal conhecida. Conhecer o
Direito Penal em seus detalhes é bastante complexo, mas fazer leis severas
assegura vantagem eleitoreira diante das massas que querem a resposta imediata a
qualquer situação ocorrente na realidade social, ainda que isso seja um
302
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
retribucionismo simplista, que acarreta em prejuízos enormes para a própria
sociedade como um todo.
A adoção do expansionismo resulta em alguns problemas de grande
magnitude. O aumento do número de tipos acaba por aumentar geometricamente os
processos em tramitação no Poder Judiciário. É evidente que não há meios para um
magistrado dar conta de toda a demanda processual existente com a devida cautela
e a necessária análise dos autos em sua integralidade.
Também são prejudicadas as finalidades da pena. Ocorre efetivamente a
retribuição pelo crime cometido, mas dentro da matriz de prevenção somente ocorre
a mais cruel delas, a especial negativa, que é a mera inocuização do infrator. Nesse
aspecto, perde-se por não conseguir ressocializar o indivíduo, sendo que,
observando por um viés humanista, esta seria a mais importante das funções
propostas.
O fenômeno da “impunidade”, que se reflete na inépcia estatal em cobrir
todos os delitos a que se propõe em abrangência legislativa, inviabiliza a prevenção
geral em qualquer de seus vieses.
No outro extremo, o abolicionismo também não seria a solução adequada.
Por mais que seja relativamente fácil enumerar as diversas mazelas da atual
situação penal, não é viável ou mesmo desejável abolir o sistema por inteiro. Não é
de se repudiar o abolicionismo, pois em um plano teórico ideal provavelmente seria
a melhor solução, mas este cenário está longe de se concretizar. Com uma política
criminal eficaz, o Direito Penal é justificável e seus resultados podem ser benéficos,
em alguma medida, para todos os envolvidos. Nesse aspecto, a dificuldade continua
sendo a atual forma com que as coisas vêm se concretizando, retornando à
dificuldade prática.
A possibilidade mais ponderada seria o reducionismo penal. Diminuir o
número de tipos a um núcleo essencial de crimes, que sejam unanimemente
passíveis de coerção penal. Não significa, porém, que novas normas não devam ser
criadas. A sociedade está em constante evolução e, com isso, é evidente que novas
condutas encontrarão a necessidade de criminalização. O Direito Penal não pode
ser estanque e deve acompanhar o desenvolvimento social, mas sem esquecer das
garantias e direitos conquistados e consolidados durante toda essa evolução.
303
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Reduzir o número de tipos implicaria a redução de número de processos e,
com isso, cada processo poderia ser analisado mais detidamente, com maior
atenção e respeito ao cidadão representado naqueles autos.
Outra consequência da adoção desta política seria a alteração substancial da
população carcerária. A segregação ocorreria apenas para um número reduzido de
indivíduos, possibilitando, em termos práticos, a concretização das diversas
finalidades da pena. Em uma ótica ideal, o sujeito submetido ao sistema prisional
poderia ter alguma contribuição para a sua ressocialização ou, na pior das
hipóteses, que o encarceramento não tenha a consequência diametralmente oposta
a esta.
Para todas as condutas que não mais seriam reguladas pelo Direito Penal,
existem os outros âmbitos do Direito, reforçando a ideia de “Ultima Ratio”.
Muitas das condutas ora taxadas como crimes poderiam facilmente ser
passíveis de reparação civil ou sancionadas administrativamente, desonerando o
aparato estatal quanto à resposta penal. Neste prisma, porém, o problema seria a
discricionariedade a que se submeteriam. O Direito Penal, enquanto sistema dotado
de várias garantias que proporcionam um processo supostamente justo, tende a
impossibilitar grandes discricionariedades. A punição por meio de sanções
administrativas possibilitaria a perseguição política e o aumento de corrupção
através de favorecimentos, por exemplo.
Em uma análise sobre uma das técnicas mais utilizadas em questão de
tipificação de novas condutas, essas considerações são pertinentes. A ciência do
Direito deve ter rigor teórico inigualável, mas não pode se dissociar da realidade em
que será aplicada, cujo desrespeito incorre na dura pena de ser um instrumento
plenamente ineficaz.
5.3 PERIGO ABSTRATO EM RELAÇÃO ÀS TEORIAS DO BEM JURÍDICO
Em meio à doutrina, é possível encontrar críticos ferrenhos aos delitos de
perigo abstrato. Gustavo L. Vitale é um dos autores que tece suas críticas sobre o
tema. Baseado na premissa da ausência de afetação a bens jurídicos:
304
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A categoria dos “delitos de perigo abstrato” foi criada de um modo contrário
às normas constitucionais que exigem, como pressuposto de imposição de
toda pena estatal, a prova de afetação a bens jurídicos de terceiras
pessoas. Isso acontece porque frequentemente se afirma que os citados
“delitos” são dessa natureza porque presume-se, sem admitir prova em
contrário, que afetam um bem jurídico alheio (ainda que, em verdade, isso
não ocorra). Com isso não apenas se violenta o direito humano à presunção
de inocência (que exige ao Estado, como condição para impor penas, a
prova de todos e cada um dos pressupostos de punibilidade – e que,
correlativamente, não requer ao imputado a prova de nenhuma
circunstância de ausência de punibilidade –), mas que, além disso, se
permita a punição sem afetação alguma à disponibilidade de direitos de
terceiras pessoas.6 (VITALE, 1998, p. 93, tradução nossa).
A posição emanada pelo referido jurista é semelhante à adotada por vários
outros autores. Sustentam, em síntese, que os crimes de perigo abstrato não seriam
legítimos pelo fato de que são incapazes de afetar um bem jurídico.
No entanto, esse posicionamento não está necessariamente correto ou
errado, mas depende de um embasamento teórico que justifique a possibilidade ou
não da ocorrência dessa lesão.
As teorias do bem jurídico demonstradas anteriormente são bastante
versáteis, e possuem peculiaridades que as fazem únicas e, portanto, detentoras de
características
especiais
que,
quando
analisadas
individualmente,
podem
eventualmente legitimar a categoria dos crimes de perigo abstrato em um contexto
lógico.
Entre as teorias exploradas, verifica-se que alguns autores analisam o
conteúdo do bem jurídico, enquanto outros tecem considerações de uma perspectiva
formal.
Para defender a legitimidade do perigo abstrato, o argumento utilizado é de
que a lesão deve ser a um bem jurídico, enquanto fruto do desenvolvimento teórico.
Diferente seria afirmar que a lesão deve ser naturalística, ou que o resultado deve
ser inteiramente perceptível, pois nem todas as condutas implicam um resultado
No original: “La categoria de los “delitos de peligro abstracto” ha sido creada de un modo contrario a
las normas constitucionales que exigen, como presupuesto de imposición de toda pena estatal, la
prueba de la afectación a bienes jurídicos de terceras personas. Ello sucede por cuanto suele
pretenderse que los citados “delitos” son tales por el hecho de presumirse, sin admitir prueba en
contrario, que afectan un bien juridico ajeno (aunque, en verdad, ello no ocurra). Con ello no sólo se
violenta el derecho humano a la presunción de inocencia (que exige al Estado, como condición para
imponer penas, la prueba de todos y cada uno de los presupuestos de punibilidade – y que,
correlativamente, no requiere al imputado la prueba de ninguna circunstancia de no punibilidad –),
sino que, además, se permite la punición sin afectación alguna a la disponibilidad de derechos de
terceras personas.”.
6
305
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
dessa natureza. Importante é distinguir as definições de bem jurídico e objeto da
ação.
Um exemplo de teoria que contrapõe a ideia de ausência de lesão a bem
jurídico é a proposta por Günther Jakobs, que nega a existência de um conteúdo
único dos bens jurídicos, sendo que a tipificação ocorreria com base na manutenção
da forma de sociedade e do Estado. Sob este prisma, os bens jurídicos não
representam um objeto específico, mas a própria vigência da norma é tutelada, de
modo que o resultado naturalístico é perfeitamente prescindível.
Insta ressaltar que o momento da discussão é teórico, em questão de
produção legislativa. Para esse momento, discute-se a necessidade de aptidão de
uma conduta a lesionar um bem jurídico, o que não significa que ela sempre o fará.
No âmbito prático, de aplicação da lei, é necessária a constatação da lesão a um
bem jurídico, não bastando mera adequação típica. Nesse sentido, Gonzalo D.
Fernández se manifesta:
Ainda quando a conduta seja adequada à descrição típica de
comportamento, marca apenas a primeira constatação no juízo imputativo,
que deve complementar-se com um elemento adicional, formado pela
afetação concreta desse bem jurídico, anteposto e protegido pela lei. 7
(FERNÁNDEZ, 1998, p. 425, tradução nossa).
Em geral não há, quanto ao tema, uma única resposta válida. Por maior que
seja a insegurança jurídica em que isso possa resultar, os diversos discursos podem
caracterizar diversas soluções. É certo é que a discussão não está finalizada, mas
em pleno desenvolvimento, e todas as análises deverão ser feitas considerando a
evolução social e a realidade a que as teorias serão aplicadas.
5.4 PERIGO ABSTRATO E O HARM PRINCIPLE
Independentemente da teoria adotada, o harm principle se mostra uma
escolha segura para delinear os contornos do bem jurídico e sua relação com os
No original: “aun cuando la conducta sea adecuable a la descripción tipica de comportamiento, ello
marca apenas la primera constatacíon en el juicio imputativo, que debe complementarse con un
elemento adicional, conformado tan luego por la afectación concreta de ese bien jurídico, antepuesto
y protegido por la ley.”.
7
306
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
crimes de perigo abstrato. Em um momento de política criminal expansionista, é
imprescindível estabelecer critérios rígidos para a produção legislativa.
Importante ressaltar que não há de se confundir a noção de bem jurídico com
a de harm principle. A proposta é, na verdade, estabelecer uma relação entre os
dois conceitos, a fim de que esta ponte sirva de orientação teórica.
Conforme visto, não há um conceito pacífico e bem determinado de bem
jurídico. Há, porém, rica discussão sobre o tema e uma condição que se repete
várias vezes: A criminalização de condutas deve servir para possibilitar o livre
desenvolvimento do indivíduo.
Partindo desse pressuposto, a tipificação de novas condutas poderia ser
entendida
como
uma
espécie
de
resposta
estatal, utilizando-se
de
sua
coercitividade, para assegurar que cada indivíduo tenha condições de buscar seu
crescimento em todos os aspectos, sem que terceiros o impeçam disso.
Essa ideia está em harmonia com o princípio da Dignidade da Pessoa
Humana, o qual é classificado como fundamento da República Federativa do Brasil,
de acordo com a Constituição Federal de 1988.
Primeiramente, cumpre apresentar um conceito de Dignidade da Pessoa
Humana desenvolvido por Ingo Wolfgang Sarlet:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva
de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e
consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste
sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a
pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano,
como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma
vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e
corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão
com os demais seres humanos. (SARLET, 2001, p. 60).
Da mesma forma que o conceito de bem jurídico, o Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana também não possui uma delimitação precisa, e a maior parte dos
conceitos apresentados na doutrina brasileira são bastante amplos.
A amplitude conceitual, porém, não pode se confundir com imprecisão, nesse
caso. Por mais que os conceitos sejam amplos, o são para possibilitar a maior
abrangência possível, e para que sua concretização seja cabível no maior número
possível de casos concretos.
307
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Outra característica do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é a sua
dupla dimensão. Possui um caráter positivo, em que o Estado deve atuar para
prover as condições necessárias para o desenvolvimento do sujeito, e um caráter
negativo, de abstenção, em que o Estado deve garantir que os outros indivíduos não
atrapalhem esse desenvolvimento. Nesse sentido, a doutrina se posiciona:
Neste contexto, não restam dúvidas de que todos os órgãos, funções e
atividades estatais encontram-se vinculados ao princípio da dignidade da
pessoa humana, impondo-se lhes um dever de respeito e proteção, que se
exprime tanto na obrigação por parte do Estado de abster-se de ingerências
na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, quando no
dever de protegê-la (a dignidade pessoal de todos os indivíduos) contra
agressões oriundas de terceiros, seja qual for a procedência, vale dizer,
inclusive contra agressões oriundas de outros particulares, especialmente –
mas não exclusivamente – dos assim denominados poderes sociais (ou
poderes privados). Assim, percebe-se desde logo que o princípio da
dignidade da pessoa humana não apenas impõe um dever de abstenção
(respeito), mas também condutas positivas tendentes a efetivar e proteger a
dignidade dos indivíduos.
[...] o princípio da dignidade da pessoa humana impõe ao Estado, além do
dever de respeito e proteção, a obrigação de promover as condições que
viabilizem e removam toda sorte de obstáculos que estejam a impedir às
pessoas de viverem com dignidade. (SARLET, 2001, p. 108).
Toda esta noção pode ser igualmente transferida para o Direito Penal e a
teoria do Bem Jurídico. O Estado, enquanto garantidor da abstenção de ingerências
alheias que obstaculizem o livre desenvolvimento do indivíduo, tipifica essas
condutas para que, caso a intervenção ocorra, haja a devida resposta penal.
O Harm Principle, de forma semelhante, pugna pela intervenção estatal tão
somente
quando
houver prejuízo
a
outrem.
Poderia
discutir-se
sobre
a
compatibilidade do referido princípio com a questão dos crimes de perigo abstrato,
encarando o termo “prejuízo” como dano efetivo. Porém, o termo é mais amplo,
englobando um leque de situações que vai além do próprio dano, incluindo o perigo
abstrato. John Stuart Mill utiliza como exemplo uma situação em que não há
resultado naturalístico, mas há uma ofensa social passível de punição:
Quem não tem pelos interesses e sentimentos dos outros a consideração
que lhes é devida, não sendo a isso obrigado por um dever mais imperioso,
ou justificado por admissível preferência pessoal, é objecto de condenação
moral por essa falta, mas não por causa desta, nem pelos erros que podem,
desde há longa data, ter conduzido a ela e que dizem meramente respeito à
308
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
sua pessoa. Do mesmo modo, quando um indivíduo, devido à conduta que
apenas lhe diz respeito, se torna incapaz de desempenhar um determinado
dever público de que foi incumbido, esse indivíduo é culpado de uma ofensa
social. Ninguém deve ser punido simplesmente por estar embriagado; mas
um soldado ou um polícia devem ser punidos por se encontrarem
embriagados enquanto estão de serviço. Em suma, sempre que há
efectivamente um dano ou risco efectivo de danos, quer para um indivíduo
quer para o público, o caso é retirado da esfera da liberdade e passa a
situar-se no âmbito da moralidade ou da lei. (MILL, 1997, p. 83).
Não é, porém, em qualquer caso que o autor entende ser cabível essa forma
de punição. É preciso que a ação implique alguma forma de lesão a alguém ou à
sociedade de maneira geral, sendo inviável castigar condutas que não apresentem
qualquer violação ou que o façam apenas em relação ao próprio agente:
Mas quanto à simples contingência, ou, como poderá ser chamado, dano
construtivo que um indivíduo causa à sociedade por conta de uma conduta
que não viola qualquer dever específico para com o público, nem provoca
um sofrimento perceptível a nenhum indivíduo, a não ser a ele próprio, esta
é uma inconveniência que a sociedade pode tolerar pelo bem da liberdade
humana. (MILL, 1997, p. 84).
Mill ressalta essa característica, e também posiciona-se acerca da punição
antecipada de condutas, que em termos práticos frequentemente se valem do perigo
abstrato como técnica de tipificação:
O direito inerente da sociedade de evitar crimes contra si através de
precauções antecipadas sugere as limitações óbvias à máxima de que não
deverá haver ingerência, a título de prevenção ou de castigo, na má
conduta que diz respeito meramente ao próprio indivíduo. (MILL, 1997, p.
98).
Importa esclarecer que, quando John Stuart Mill menciona punições, não
necessariamente serão de natureza penal. Do mesmo modo, a restrição de
liberdade a que se refere não é necessariamente a liberdade de locomoção, mas as
liberdades individuais de maneira geral.
Diante do exposto, o Harm Principle se mostra perfeitamente compatível com
os crimes de perigo abstrato, porém estabelece padrões aparentemente seguros
para sua implementação.
309
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Seguindo a doutrina proposta por Mill, a tipificação de condutas que não
resultem em dano real, como ocorre nos delitos de perigo abstrato, é aceitável,
desde que haja risco efetivo de lesão a terceiro ou ofensa social a partir da não
observância de um dever público.
A proposta é satisfatória, mas em termos práticos colide com diversos tipos
existentes no ordenamento jurídico brasileiro e apresenta certo descompasso com a
tendência imposta pela sociedade do risco.
Em muitos casos, a necessidade de risco efetivo de lesão a terceiro, que
pode ser considerado o parâmetro mais importante da doutrina do Harm Principle,
resta prejudicado, pois incompatível com a extensão intrínseca às noções de
causalidade remota e delitos por acumulação, por exemplo.
Com isso, a sua aplicação na prática legislativa não seria possível na
integralidade das situações, mas certamente pode ser uma diretriz prioritária a ser
observada nos casos em que haja identidade com a natureza da conduta a ser
tipificada.
Porém, em que pese a restrição seja flagrante no processo legiferante, que
engloba um número abstrato e amplo de situações hipotéticas, é passível de
extensa utilização na jurisprudência. A lei prevê uma generalidade, mas caberia aos
magistrados verificarem a ocorrência do dano ou risco efetivo de dano em cada caso
concreto, restringindo as punições tão somente às hipóteses em que haja essa
incidência.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão sobre a legitimidade dos crimes de perigo abstrato não parece
estar próxima de se encerrar, mas pode ser apaziguada. Diante do raciocínio
formulado neste artigo, essa técnica de tipificação pode ser considerada
perfeitamente legítima. Os critérios propostos introdutoriamente podem ser
retomados e respondidos agora, a fim de auxiliar nas conclusões.
Ficou constatado que não há um conceito único sobre o que seja o bem
jurídico. O debate fomentado na doutrina europeia se mostra bastante aprofundado,
e diversas são as teorias que buscam explicar sua natureza. É inviável descartar
uma única teoria, principalmente porque todas têm seus pontos de relevância e são
310
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
dotadas de coerência sistêmica, portanto é possível apenas discordar de
determinada teoria.
Os crimes de perigo abstrato preveem condutas intrinsecamente perigosas,
cujo risco é presumido. De qualquer modo, o princípio da lesividade deve ser
respeitado e, portanto, é imprescindível que haja lesão a um bem jurídico, que não
exige resultado naturalístico.
Em termos de política criminal, o cenário é de crescente expansionismo, com
intensa atuação legiferante e criação diuturna de novos tipos penais, que
frequentemente mostram desacordo com toda a legislação já produzida. O Direito
Penal, muitas vezes, deixa de ser a ultima ratio e passa a abranger condutas que
não deveriam estar sob sua égide.
No entanto, abolir o perigo abstrato não pode ser a solução para este
problema, pois sua utilização viabiliza que o Direito Penal acompanhe o
desenvolvimento social.
Pensar em uma única “solução” para um problema arraigado culturalmente é
algo delicado. Um bom caminho seria a racionalização da atividade legislativa,
revendo a legislação posta, criminalizando condutas com verdadeiro impacto social
e não cedendo a pressões. Um panorama como esse, porém, parece estar longe de
se concretizar.
311
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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313
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
314
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ENTRE HERMES E THEMIS: O DIÁLOGO COMO MEIO PARA
ALCANÇAR UMA JUSTIÇA INTERNACIONAL PENAL
BETWEEN HERMES AND THEMIS: THE DIALOGUE AS A WAY TO
ACHIEVE INTERNACIONAL CRIMINAL JUSTICE
Hellen Oliveira Carvalho1
Roosevelt Arraes2
1Acadêmica
do 9º período do curso de Direito (ênfase: Direitos Humanos e Direito Internacional
Público), Unicuritiba; Acadêmica do 7º período do Curso de Ciências Sociais (área de estudo:
Antropologia), UFPR; Pesquisadora do Grupo de Iniciação Científica de Direito Internacional Penal,
Unicuritiba.
2 Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), especialista em Ética (2004),
mestre (2006) e doutorando (2014) em Filosofia Jurídica e Política pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. Atualmente é professor e pesquisador do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA e membro-pesquisador do Departamento de Filosofia na Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. Tem experiência na área de Filosofia do Direito, com enfoque nas teorias
modernas e contemporâneas da Justiça, e, em fundamentos do direito público (constitucional,
eleitoral, penal e administrativo).
315
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
316
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
Este trabalho destina-se a analisar estudos inovadores no âmbito dos Direitos
Humanos, os quais possibilitam pensar a justiça internacional penal sob uma nova
perspectiva, a fim de se estabelecer uma abordagem do Direito Internacional Penal
construída por meio da dialética dos princípios do universalismo e do relativismo
cultural. Para tanto, o presente trabalho discute a complexidade dos Direitos
Humanos, que na maioria das vezes tentam se impor em face de concepções
culturais que sequer têm em sua bagagem linguística conceitos fundamentais para a
sua existência. Fato é que o princípio da universalidade sempre se faz presente, e,
ainda, segue desbravando culturas sem analisar as peculiaridades das diferentes
comunidades. Por outro lado, o relativismo cultural pura e simplesmente aplicado
também apresenta diversas limitações. Adotar uma ou outra corrente de
pensamento, diametralmente opostas, cuja discussão está longe de cessar, não
parece ser a resposta mais apropriada para o Direito Internacional Penal. Diante
desse impasse, deve-se encontrar uma terceira via de abordagem entre os dois
extremos que possibilite uma análise interdisciplinar atualizada e condizente com a
demanda social. Assim, uma pretensa solução é alcançar o universalismo por meio
do diálogo entre culturas. As proposições de Joaquín Herrera Flores e Boaventura
de Sousa Santos possibilitam o entendimento de que o primeiro passo se dá com o
rompimento do olhar “de cima para baixo’’. Sendo assim, a caminhada do Direito
Internacional Penal deve se dar vis-à-vis às novas lentes dos Direitos Humanos.
Palavras-chave: Direitos Humanos, Direito Internacional Penal, Universalismo,
Relativismo Cultural, Terceira Via.
317
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
This paper is intended to examine innovative studies in Human Rights, which enable
international criminal justice to think from a new perspective, in order to establish an
International Criminal Law approach built through the dialectic of the principles of
universalism and cultural relativism. Therefore, this paper discusses the complexity of
Human Rights, which most often try to impose upon cultural conceptions that do not
even have in their linguistic luggage fundamental concepts to their existence. The
fact is that the principle of universality always prevailed, and continues to break
cultures without considering the peculiarities of the different communities. On the
other hand, cultural relativism simply applied also presents several limitations.
Adopting one or another school of thought, that are diametrically opposed, whose
discussion is far from ceasing, does not seem to be the most appropriate response to
the International Criminal Law. Faced with this impasse, we must find a third way to
approach the two extremes that enables an interdisciplinary analysis updated and
consistent with the social demand. Thus, an alleged solution is to achieve
universalism through dialogue between cultures. The propositions of Joaquín Herrera
Flores and Boaventura de Sousa Santos enable the understanding that the first step
is the disruption of the look "top-down''. Thus, the International Criminal Law path
should be taken vis-à-vis to the new lenses of Human Rights.
Key words: Human Rights, International Criminal Law, Universalism, Cultural
Relativism, Alternative Ways.
318
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
A relevância do tema abordado se insere na crescente importância atribuída
ao Direito Internacional Penal e a sua discussão a partir de um direito alternativo
proposto por alguns pensadores da área de Direitos Humanos. A transposição do
direito interno para além das fronteiras territoriais do estado como resultado do
interesse estatal na proteção da ordem pública (JANCOV, 2009, p. 1), deve buscar a
coesão social, sendo que qualquer imposição de regras tidas como universais, mas
que apenas traduzem pensamentos eurocêntricos deve ser afastada.
A internacionalização de direitos é um processo - embora muitas vezes se
pense óbvio - de natureza extremamente delicada, na medida em que se baseia em
valores supostamente comuns, partilhados por uma comunidade internacional, e
traduz uma nova realidade que precisa ser construída e consolidada (DELMASMARTY, 2004, p. 66).
A questão posta em discussão busca mostrar que embora os legisladores e
os juízes de direitos internacionalmente reconhecidos sejam nacionais de diversos
continentes, eles normalmente se formaram nas mesmas universidades e seguem
um raciocínio de jurisdição indubitavelmente ocidental. Essa constatação limita o
alcance dos tribunais penais internacionais em termos de ética, pois embora o
acordo entre esses pensadores e aplicadores seja condição necessária para
legitimar um universalismo, está longe de ser, por si só, suficiente para justificar a
natureza predominante de tal princípio (DELMAS-MARTY, 2004, p. 66).
A
teoria
da
universalidade
busca
proteger
os
seres
humanos
independentemente das idiossincrasias que os diferenciam (DONNELLY, 2003 p.
15), uma vez que existem certos valores aceitos pela comunidade internacional
como um todo, e que alguns atos transcendem a singularidade dos interesses
nacionais; portanto, devem ser temas dispostos de forma a buscar certa
generalidade, ou ainda, devem ser invariavelmente perseguidos.
A partir de normas jus cogens, que restringem a ética universal da
comunidade internacional, pois agregam o ethical minimum reconhecido por todos
os estados (JANCOV, 2009, p. 48), é que se chega a direitos como a dignidade da
pessoa humana, os quais possuem caráter universal, indivisível e inalienável.
319
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
De outra forma, o princípio do relativismo cultural tem como seu marco
fundador as proposições de Franz Boas (2010, p. 87), o qual defende que
“civilização não é algo absoluto, mas é relativa, e nossas ideias e concepções são
verdadeiras apenas na medida de nossa civilização".
A validade desse pensamento se dá na medida em que cada sociedade tem
sua dinâmica própria construída historicamente dentro de seu contexto específico e
único. Ao observar sistemas culturais sem partir de conceitos ocidentais modernos
de moral e ética ganha-se, e muito, na riqueza de detalhes particulares de cada
grupo social.
Embora ambas as escolas tenham oferecido avanços e retrocessos em
relação à abordagem dos direitos humanos, fato é que, quando se trata das
codificações de direito internacional, a universalidade sempre se fez presente3,
deixando quase nada ou muito pouco de análise discricionária nas mãos dos
operadores do direito.
Observa-se assim que o direito internacional penal está envolto pelo princípio
universalista que segue desbravando culturas sem analisar as peculiaridades de
cada grupo de indivíduos. No entanto, embora essa posição tenha se mostrado
limitada, o relativismo cultural, pura e simplesmente aplicado, também não traz
soluções prontas que garantam a efetividade da aplicação da lei de forma justa, ao
fim e ao cabo e, como bem observado por Eric Hobsbawm (1995, p. 13), não se
pode relativizar o holocausto.
Adotar uma ou outra corrente de pensamento, que são diametralmente
opostas e cuja discussão parece estar longe de cessar, não parece ser a resposta
mais apropriada para o Direito Internacional Penal. Logo, idealmente, deve-se
encontrar uma terceira via de abordagem entre os dois extremos que incite os
debates internacionais entre homens de diferentes culturas e possibilite uma análise
interdisciplinar atualizada e condizente com a demanda da sociedade.
É a partir da constatação da necessidade de uma nova via de entendimento
para a justiça internacional penal que este trabalho busca delinear alguns aspectos
alusivos em relação aos princípios do universalismo e do relativismo cultural nesse
âmbito.
3Vale
citar como exemplos de codificações com um cunho universalista a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789; a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; a
Declaração de Viena, de 1993 e o próprio Estatuto de Roma, de 2002.
320
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A síntese universal dos direitos humanos deve ser buscada sem deixar de
reconhecer, em primeiro plano, as diferenças étnicas ou de gênero dos diferentes
estados, e também dos grupos díspares dentro deles. Para Herrera Flores (2009, p.
193), o universal não deve ser considerado um ponto de partida, ao contrário, ao
universal deve-se chegar, e esse caminho envolve um processo de luta, de diálogo e
de confrontação.
Para Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 432), a solução para o embate é
a superação da discussão acerca do universalismo e do relativismo, uma vez que
somente dessa maneira é que a noção de direitos humanos será revista para uma
perspectiva multicultural de modo a abarcar uma operação de baixo para cima ou
contra hegemônica.
Dessa maneira, depois de superado o embate entre os princípios em questão,
a pesquisa realizada irá propor que para se alcançar um 'mínimo irredutível' - direitos
sem os quais o ser humano estaria reduzido à “vida nua” (AGAMBEN, 2004, p.1216) - há que se garantir a emancipação das mais diversas 'gentes', para que a
proteção de certos aspectos inerentes à qualidade do ser humano seja buscada por
meio de um universalismo de confluência.
Em outras palavras, os bons ventos da justiça só baterão às portas do Direito
Internacional Penal a partir de um diálogo mobilizador que busque a conciliação
entre as mais diversas gentes e as poderosas forças políticas, sociais e econômicas.
Para alcançar isso, teoria e prática, ideias e políticas públicas, Themis e Hermes,
justiça e conciliação, devem caminhar de mãos dadas.
2
PRESSUPOSTOS
ESSENCIAIS
PARA
A
CONSTRUÇÃO
DA
IDEIA
CONTEMPORÂNEA DE DIREITOS HUMANOS
De todos os ramos do direito, pode-se dizer que o âmbito dos direitos
humanos foi um dos últimos a ganhar a devida importância e a despertar o interesse
dos estudiosos. É bem verdade que a experiência humana em sociedade existiu
desde sempre, porém, o desenvolvimento histórico dos direitos inerentes à pessoa
humana sempre foi lento e gradual.
321
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Até meados dos anos 40 do século XX, eram os direitos fundamentais que
faziam, ou pelo menos, tentavam fazer frente ao desrespeito em relação a certas
questões próprias à natureza humana. Neste prisma, tem-se que o texto era
positivado tão somente na esfera constitucional de um determinado estado
(CANOTILHO, 2008, p.34).
Segundo Flávia Piovesan (2008, p.118), certos acontecimentos do século XX
revelaram que a proteção aos direitos humanos deve transcender o âmbito de um
estado, pois a partir do momento em que vige a lógica da destruição, e as
instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteger os direitos
humanos, emerge a necessidade de reconstruí-los como referencial e paradigma
ético que aproxime o direito da moral.
No processo de internacionalização dos direitos humanos, o esforço conjunto
era em busca da cidadania que representasse a máxima do ‘direito a ter direitos’
(LAFER, 1988, p.117). Hannah Arendt defende que a igualdade em dignidade e
direitos, base dos direitos humanos, não é dada como pressuposto pelo direito
natural ou pela crença no progresso histórico; para ela, “Nós não nascemos iguais.
Nós nos tornamos iguais como o resultado da organização humana na medida em
que é norteada pelo princípio da justiça” (ARENDT, 1990, p. 335).
Contudo, para garantir a internacionalização de tais direitos, a civilização teve
de enfrentar lutas sociais, políticas, religiosas e econômicas ao longo dos séculos.
Diante disso, a história, mais do que qualquer outra ciência, traz o retrato dessa
busca. Para Norberto Bobbio (1992, p.6), os direitos do homem são, antes de tudo,
direitos históricos, porque nascem em circunstâncias definidas, caracterizadas por
lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes.
A historicidade dos direitos humanos é uma questão delicada na medida em
que embora eles não tenham sido revelados em um momento de luz, a referência a
um passado milenar parece ser equivocada por não levar em consideração
construções e conceitos fundamentais para que tais conquistas se compreendam
como direitos humanos na atualidade.
Para Ricardo Marcelo Fonseca (2011, p.274), a fundamentação e a aplicação
dos direitos humanos deve ser contextualizada no espaço e no tempo, pois pensar o
passado do direito enquanto um objeto inserido e relacionado com todo o seu
322
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
entorno e também como um objeto com contornos próprios é crucial na
compreensão do processo de lutas pela afirmação dos direitos.
2.1 A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO
A modernidade jurídica tem raízes remotas, porém, o desejo de libertar os
indivíduos de antigos condicionamentos e fazer dele o pilar da nova ordem se
estendeu até o século XX. Ao invés de ser uma estratégia ingênua, Paolo Grossi
(2008. p. 21) elucida que o plano era muito mais astuto, uma vez que buscava
fundações sólidas e intocáveis que justificassem a tutela exercida por determinados
interesses de grupo.
Tal modelo pressupunha indivíduos sem história, como representantes de
uma entidade abstrata que justificasse a busca por uma moral e leis universais. Na
busca por essa abstração, é o jusnaturalismo - fundado a partir da existência de um
direito natural e independente do positivismo - que oferecerá respostas aos anseios
da sociedade (GROSSI, 2008, p. 21).
A nova igualdade era, no entanto, meramente jurídica, já que a abstração
favorecia certa parcela da população que já tinha condições outras que a colocava
em uma situação de vantagem. Ao contrário, para a maioria da população, que
desconhecia essa igualdade proveniente de um conjunto de valores e pretensões
humanas legítimas que não decorreriam do direito positivo, continuava sendo uma
realidade inatingível.
Em outras palavras, a paisagem jurídica moderna era reducionista, pois
tentava angariar em regras gerais uma complexidade de culturas, de pessoas e de
costumes. Os fatos brutos de uma sociedade não têm força para se tornarem
direitos sem que se leve em consideração o indivíduo em seu próprio âmbito social,
econômico e de negócios (GROSSI, 2008, p. 21).
Joaquín Herreira Flores (2009. p. 82) afirma que a maior falácia nos direitos
humanos é a falácia do naturalismo, teoria em qual a parte se apresenta como todo,
e o particularismo como um universalismo, ou seja, entende que a experiência de
uns poucos deve ser entendida como “fatos” incontroversos e universalizáveis a
todos.
323
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
2.1.2. A Delimitação dos Princípios do Universalismo e do Relativismo Cultural
Com a adoção da Declaração Universal dos Direitos do Homem reconheceuse pela primeira vez o princípio de que cada um tem direito à dignidade e ao
respeito, a ser reconhecido a qualquer pessoa, assim como ninguém pode ser
excluído das vantagens do direito e da justiça. Tal reconhecimento, de acordo com
os universalistas, representa uma ruptura fundamental com um passado no qual os
Direitos Humanos só abrangiam os privilegiados e estavam conscritos ao âmbito dos
estados.
Segundo Antonio Enrique Pérez Luño (1998 p. 46-47), os direitos humanos
universais
nascem
com
a
modernidade,
correlacionados
com
o
preceito
jusnaturalista que defende que os direitos naturais, inerentes a todas as pessoas,
devem ser reconhecidos pelo poder político, por meio do direito positivo. Assim, os
direitos humanos só existem enquanto baseados em um ethos universal, pois sem
essa conotação, tais direitos seriam direitos de grupos, entidades ou determinadas
pessoas (PÉREZ-LUÑO, 1998, p. 46-47).
Para Norberto Bobbio (1992, p. 50), o universalismo – que pressupõe que
todos os indivíduos pertencem, igualmente, ao gênero humano – foi uma conquista
lenta, e nasceu a partir de uma perspectiva filosófica de que ninguém pode subtrair
do indivíduo a ideia de que o homem enquanto tal em direitos, por natureza, nasce
livre e igual.
A ideia universalista também está muito presente no pensamento kantiano, o
qual busca bases a priori, universais, ou seja, comuns a todos. Segundo Ricardo
Marcelo Fonseca (2011, p. 283), para Kant existem categorias do entendimento e
dados da intuição sensível com mecanismos de funcionamento absolutamente
idênticos em todas as pessoas à medida que todos recortam a realidade (o
fenômeno) da mesma maneira no ato de conhecer.
Para Ferrajoli (2003, p. 19), o universalismo dos direitos fundamentais e seu
nexo com a igualdade se constituíram devido ao fato de que quase todos os direitos
foram instituídos não já como direitos do cidadão, senão como direitos da pessoa;
em outras palavras, tem-se que o direito à cidadania possui natureza supranacional,
vez que é inato a todos os seres humanos.
324
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Com efeito depreende-se, então, que a busca pela institucionalização global
dos direitos inerentes ao homem defende que qualquer escusa cultural para justificar
o desrespeito em relação a esses direitos deva ser considerada ilegal e combatida
por toda a comunidade internacional.
A consideração da diversidade cultural, no entanto, não pode ser entendida
como um obstáculo à universalidade; antes deve ser vista como uma contribuição,
pois é a partir das particularidades ou da diversidade do gênero humano que se
buscam os valores universais. Segundo Cançado Trindade, “a diversidade cultural
há que ser vista, em perspectiva adequada, como um elemento constitutivo da
própria universalidade dos direitos humanos, e não como um obstáculo a esta.’’
(TRINDADE, v. III, 2003, p. 336).
Os relativistas acreditam que cada ser humano tem sua dinâmica própria
construída historicamente dentro de seu contexto específico e único; sendo assim,
não há como pressupor direitos universais que se baseiem apenas naquilo que é
natural e compartilhado entre todos os indivíduos. Nesse sentido, Jack Donelly
(2003, p. 15) adverte que a natureza humana é um projeto social mais do que uma
concepção pré-social já dada.
Flávia Piovesan (2011, p. 44) elucida que, para os relativistas, a noção de
direito está intrinsecamente ligada ao sistema político, econômico, cultural, social e
moral vigente em determinada sociedade; dessa maneira, cada cultura possui um
discurso próprio em relação aos direitos fundamentais. A recusa a uma moral
universal parte do pressuposto de que a história do mundo é plural, pois as culturas
não são homogêneas e estáticas. Contra a visão hegemônica da cultura
eurocêntrica ocidental, os relativistas responderão que as culturas são complexas,
variáveis, múltiplas, fluidas, enfim, são criações humanas. Segundo Piovesan, “na
análise dos relativistas, a pretensão de universalidade desses instrumentos
simboliza a arrogância do imperialismo cultural do mundo ocidental, que tenta
universalizar suas próprias crenças.” (PIOVESAN, 2008, p. 151).
Segundo Ruth Benedict (2000, p. 48), cada cultura explora apenas algumas
dentre as tantas alternativas possíveis pela qual a vida pode conduzir-se; assim, a
generalização pura e simples não tem força ou interesse intelectual, não passa de
uma grande banalidade à qual faltam minuciosidade ou surpresa, exatidão ou
revelação.
325
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Clifford Geertz propõe (2001, p. 125) que “precisamos buscar relações
sistemáticas entre fenômenos diversos, não identidades substantivas entre
fenômenos similares”. Defende, então, que encontrar algo comum entre os seres
humanos buscando em um grupo homogêneo é um instrumento empregado pelos
defensores de um universalismo puro e simples. Ao tratar da definição de homem,
Geertz (2008. p. 32) afirma que as relações devem ser buscadas em fenômenos
diversos, ele imagina que deva existir algo de comum no tocante a esse aspecto;
porém, a busca por um padrão cultural deve compreender as mais diversas culturas.
Ao contrário do que se pensa, o objetivo não é se utilizar de elementos
culturais para desrespeitar os cidadãos, a busca é pela democratização dos
documentos internacionais que enumeram direitos como se universais fossem
partindo do pressuposto de que são culturamente divididos por toda a humanidade.
A inquietude causada pelo universalismo dos direitos humanos é bem representada
por Costa Douzinas (2011, p. 2):
Direitos humanos e cláusulas de boa governança são rotineiramente
impostas pelo Ocidente sobre os países em desenvolvimento como
condição para acordos comerciais e de ajuda. Os direitos humanos são a
ideologia após o final muito alardeado de ideologias, a utopia “última” após
o final da história. É por isso que precisamos pensar de forma crítica os
direitos humanos. Seu triunfo é cheio de paradoxos e contradições.
Se já não bastasse isso, ainda há que se lembrar de que são justamente os
países que mais fizeram uso do mecanismo do estado de exceção, no qual segundo
Giorgio Agambem (2004, p.12-16) o ser humano estaria reduzido à “vida nua", os
que buscam a custos altos impor padrões universais.
Assim, as declarações universais não devem ser vistas como proclamações
gratuitas de valores eternos metajurídicos, mas sim como uma figura original da
inscrição da vida natural na ordem jurídico-política do estado-nação. A razão e os
princípios estabelecidos pelas declarações universais sofreram um grande golpe
quando, especialmente no século XX, ficou demonstrado que a razão não somente
liberta e emancipa como também pode eventualmente aprisionar, destruir, matar e
cometer genocídios (FONSECA, 2011, p. 279).
Com o intuito de resolver esse impasse, Cançado Trindade (2003, v. III, p.
301) expõe que o respeito ao próximo constitui um princípio básico comum a todas
326
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
as culturas, crenças e religiões, porém, não há como negar que certos padrões
sociais e culturais de conduta se mostram discriminatórios. A liberdade cultural que
representa padrões culturais de uma coletividade, ou seja, a sincera auto identidade
do indivíduo com a cultura não só pode, como deve, figurar nos direitos humanos. Já
em relação à liberdade invocada a partir de um passado cultural como meio de
manipulação política, essa deve, definitivamente, ser devidamente monitorada e
punida.
Para Joaquín Herrera Flores (2009, p. 39), o que deve ser rechaçado são as
pretensões intelectuais que se apresentam como neutras, e os seres humanos como
ideias abstratas, isso porque “nem todos temos por igual os direitos, ou seja, os
instrumentos e meios para levar adiante nossas lutas pelo acesso aos bens
necessários para afirmar nossa própria dignidade” (FLORES, 2009, p. 47).
Somente poderemos enfrentar as novas realidades que se apresentam a
partir de um saber crítico que entenda os conflitos de interesse que se encontram
por trás de todo debate cheio de ideologias. Apenas uma visão crítica é capaz de
conceber os direitos humanos por uma nova ótica que entenda que a dignidade da
pessoa humana não é um preceito universal porque cada cultura lista um rol de
premissas garantidoras de dignidade. Segundo Herrera Flores, somente a luta por
uma vida mais digna de ser vivida pode ser universal (2009, p. 68).
2.2 A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS INTRÍNSECOS AO HOMEM
Embora a história desempenhe papel fundamental, não se pode perder de
vista que a internacionalização dos direitos humanos se deu em um momento muito
específico que, sem dúvida, favoreceu o florescimento de tais ideias. Diante da
situação em que se encontrava a humanidade pós-guerra o objetivo era, antes de
mais nada, buscar, sob uma perspectiva jusnaturalista do direito, aquilo de comum
que havia entre os seres humanos (BOBBIO, 1992, p.66).
Para Celso Lafer (1994, pg. XXVI), o processo de internacionalização dos
direitos humanos foi a primeira resposta jurídica da comunidade internacional ao fato
de que o direito de todo ser humano só começaria a partir do momento que o ‘direito
a ter direitos’ tivesse uma tutela internacional. A razão do estado e a soberania dos
governantes passou a ser delimitada e analisada de forma vinculada com a
327
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
democracia e com a paz. Sendo assim, a base das relações entre estado e seres
humanos não é a soberania estatal, mas a solidariedade humana (TRINDADE, v. I,
2003, p. 107).
Assim, de uma vez por todas é mister demarcar a importância histórica das
lutas e dos reconhecimentos dos direitos nas lutas; porém, o que não pode ser
afastado de maneira alguma é o contexto social em que ocorreram. Herrera Flores
(2009, p. 49) afirma que toda interpretação implica fixar a relação de um objeto com
a estrutura social em que – e para que – surge.
Contra as barbáries cometidas durante a segunda guerra mundial, o
movimento que se presencia é o constitucionalismo global (CANOTILHO, 2008, p.
134), que além de proteger os direitos fundamentais, limita o poder do estado,
mediante a criação de um aparato internacional de proteção de direitos. Noutras
palavras, os estados não têm mais liberdade suficiente para dispor dos direitos
fundamentais de seus cidadãos do modo que melhor lhes aprouver.
Para Pietro Costa (2010, p. 70), é razoável que após terem surgido sobre
cinzas, os novos sistemas europeus queiram se consolidar sobre o valor absoluto da
pessoa e sobre direitos que a ela devam ser assegurados.
Em direção à limitação do caráter absoluto da soberania, “a pessoa e os
direitos aparecem como o centro de uma ordem que encontra no estado não o fim,
mas um instrumento” (COSTA, 2010, p.96).
Nesse jaez, promulga-se a Declaração Universal, a qual defende que os
direitos são o parâmetro a partir do qual se avalia a legitimidade do estado, cuja
tarefa coincide com a tutela e a realização dos próprios direitos (COSTA, 2008,
p.71).
A Declaração caracteriza-se não só pela amplitude dos direitos nela proclamados,
mas também pela universalidade do alcance desses direitos. Ao consagrar valores
básicos universais, o escopo basilar de tal documento é delinear uma nova ordem
pública mundial fundamentada no respeito à dignidade humana e na universalidade
dos direitos do homem, que não se entendem mais como derivados das
peculiaridades sociais e culturais de determinada sociedade. Segundo Flávia
Piovesan (2008, p. 137), a universalidade dos direitos humanos traduz a absoluta
ruptura com o legado nazista que condicionava a titularidade de direitos à
pertinência à determinada raça. Segundo o que preleciona o próprio preâmbulo da
328
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Declaração, agora a condição de pessoa é requisito único e exclusivo para a
titularidade de direitos.
É inegável a contribuição da Declaração Universal dos Direitos Humanos e de
todos os documentos com tal caráter que a seguiram; parece até que, para aquele
momento de perigo da história (FONSECA, 2009, p. 162), o esforço da reflexão não
tinha outra opção a não ser buscar uma explicação histórica para a solução de seus
impasses.
No entanto, a falta de eficácia real dos pressupostos previstos em tal
documento também vem trazendo enorme ônus à sociedade, vez que o alcance da
famosa dignidade da pessoa humana depende necessariamente de uma série de
outros direitos que, ou não são nem previstos em certos ordenamentos jurídicos ou,
quando são, não alcançam o resultado esperado.
Nesse prisma, não há como negar que o documento em questão levou em
consideração sociedades desenvolvidas, ou seja, toda e qualquer abstração foi feita
a partir da análise de um determinado grupo de pessoas, que certamente não possui
tudo de cultura, de economia e de sociedade que a diversidade dos indivíduos
guarda consigo.
Bem por isso o universalismo eurocêntrico previsto especialmente na
Declaração de 1948 deslegitima qualquer intervenção humanitária por melhor que
seja sua intenção, isso porque parte do pressuposto de que certos direitos estão
sendo violados por desrespeito, por descaso, por falta de educação formal, e não
leva em consideração a forma de pensar dos diferentes grupos e a situação de
miséria em que se encontram.
A dignidade da pessoa humana, só é possível para uma parcela da população
que já tem assegurados outros direitos básicos (FLORES, 2009, p.101). Assim, os
documentos que buscam traçar diretrizes básicas são guias; todavia, não são
capazes por si só de estabelecer a justiça no mundo.
3 A CONCEPÇÃO DE UM DIREITO INTERNACIONAL PENAL
O julgamento de Nuremberg ensejou parte do pressuposto de que existem
certas exigências fundamentais de vida na sociedade internacional. Segundo Celso
Lafer (1988, p.169), essas exigências de ordem pública internacional precisavam ser
329
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
tipificadas em norma internacional geral como ilícito penal, na medida em que
comportamentos considerados como atentados contra os próprios fundamentos da
sociedade deveriam acarretar não só a reparação civil, mas também a
responsabilidade penal individual dos responsáveis.
Finalmente, no ano de 1998, o Comitê Preparatório para a Criação de um
Tribunal Penal Internacional criado pela Assembleia Geral das Nações Unidas,
finalmente encaminhou para a Conferência Diplomática em Roma, um Projeto de
Estatuto e um Projeto de Lei Final (JANCOV, 2009, p. 30) que foram aprovados
juntamente com um Ato Final em 17 de julho de 1998. Cerca de quatro anos após
essa data, o Estatuto do Tribunal Internacional entrou em vigor.
Assim, nasce de fato uma antiga e renovada aspiração, a justiça penal
internacional, necessária devido a evolução do direito penal interno para além das
fronteiras territoriais do estado como resultado do interesse estatal de proteção da
ordem pública. A ideia basilar desse ramo do direito é a de que os indivíduos têm
deveres internacionais que transcendem as obrigações nacionais de obediência
impostas pelos estados de maneira individual. Nas palavras de Antonio Cassese
(2003, p. 15),
O Direito Internacional Penal é um corpo de regras internacionais
destinadas tanto a proibir os crimes internacionais quanto a impor aos
estados a obrigação de processar e punir ao menos alguns desses crimes.
Ele também regula os procedimentos internacionais para processar e julgar
pessoas acusadas desses crimes (grifo nosso).
Assim como todos os documentos assinados em prol da humanidade no
século XX, o objetivo do Direito Internacional Penal não podia ser outro além da
imposição de certos valores que se creem universais. A limitação desse pensamento
não se encontra, necessariamente, na busca da universalização de certos direitos;
muito pelo contrário: não se defende, neste trabalho, que não há nada que não deva
ser protegido universalmente.
A vulgaridade dessa ideia está no fato de que o universal buscado pela
Declaração Universal de 1948 - e que serviu de modelo para todos os outros
processos de internacionalização que se seguiram - foi baseado em um modelo
ocidental-liberal de pensamento, que abstrai as distintas circunstâncias em que se
desenvolvem a vidas das pessoas.
330
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Embora a universalização dos Direitos Humanos seja necessária para que se
obtenha uma base ética entre os povos, o que tem havido é uma imposição jurídica
a certas sociedades que muitas vezes sequer têm qualquer noção de direito4, ou
seja, em um contexto como esse, qualquer imposição já vem inundada de uma
concepção colonialista.
Disto se depreende a dificuldade na elaboração de uma norma internacional
(especialmente penal) que se pretenda de fato legítima, isso porque não há como se
conceber uma norma penal de tal natureza que seja considerada imparcial.
3.1 O ESTATUTO DE ROMA E ALGUMAS QUESTÕES QUE ENSEJAM
REFLEXÃO
Segundo Fernanda Jancov (2009, XXI), o Estatuto de Roma possui como
objetivo primordial equacionar a garantia do direito à justiça, o fim da impunidade e a
soberania do estado à luz do princípio da subsidiariedade 5 entre sua jurisdição e a
jurisdição dos estados-parte.
Aqui reside uma das grandes questões do direito internacional penal, que é a
análise discricionária feita pelo tribunal para determinar se um estado tem vontade
(willingness) de levar a cabo o inquérito ou o procedimento; ou se tem capacidade
(ability) para fazê-lo.
Considerando que todos os casos que se encontram no TPI dizem respeito a
conflitos africanos, pode-se concluir que o tribunal faz uso de parâmetros específicos
traçados vis-à-vis com questões políticas, sociais e econômicas. Dessa forma, o
princípio da subsidiariedade pode ser facilmente controlado pela corte, considerando
que tanto a questão de falta de vontade como o quesito de falta de capacidade são
muito relativos, e justificá-los torna-se fácil em um contexto como o africano.
4Essa
questão pode se estender também para a linguística, visto que certas sociedades se quer tem
palavras para descrever certos conceitos ocidentais, um exemplo disso, é o caso da China. Segundo
o jurista Chung-Sho, a China não possuía uma expressão correspondente à noção ocidental de
‘’direito subjetivo’’. Os primeiros tradutores chineses de obras políticas e jurídicas ocidentais tiveram
que inventar um novo vocábulo, chuan-li (poder-interés), para tentar uma tradução conceitual de
alguma maneira sensata (CHUNG-SHO, 1949).
5Em consonância com esse princípio, o Tribunal Internacional Penal somente poderá exercer sua
jurisdição se o Estado competente para conhecer o fato não o fizer ou não tiver a possibilidade de
fazê-lo.
331
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Outra questão a se debater diz respeito à jurisdição da corte. De acordo com
o art. 13 do Estatuto de Roma, a provocação para que a jurisdição do TPI seja
exercida pode ocorrer de três formas distintas: por parte do Estado-Parte (self
referral), pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS), ou ainda pelo
promotor do tribunal (SCHABAS, 2011, p. 158).
Embora os casos descritos no art. 13(a) e (c) devam respeitar o fato de um
estado ser membro signatário do TPI, a terceira forma de provocar a jurisdição do
tribunal (art. 13(b)) não necessariamente precisa considerar esse requisito. Sendo
assim, aqui reside mais um ponto controverso, afinal, nesse caso específico, a
jurisdição da corte é praticamente universal não fosse o fato de o TPI poder aceitar
ou não a denúncia feita pelo CS. Conforme afirma Flávia Piovesan e Daniela Ribeiro
Ikawa (2002, p. 212-213),
A relação entre o Tribunal Penal Internacional e o Conselho de Segurança
tem implicações diretas sobre os Estados-Partes no estatuto, pois altera,
num primeiro momento, o grau de igualdade entre esses Estados e, num
segundo momento, o grau de imparcialidade da justiça no âmbito
internacional.
Não fosse o poder concedido ao CS pelo art. 13(b) do estatuto, o artigo 16 do
mesmo documento também concede prerrogativas sem precedentes a essa
instituição. Segundo esse artigo, o CS pode interromper inquéritos ou procedimentos
criminais no TPI, ou impedir que prossigam, mediante Resolução aprovada nos
termos do disposto no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas.
O preâmbulo do Estatuto de Roma, também deve ser analisado com cautela à
medida que trata os seres humanos como se todos partissem de pressupostos
econômicos e sociais similares e pudessem efetivar imediatamente o que foi previsto
em um documento internacional.
Segundo o estatuto, o entendimento dos estados-parte é o de que todos os
povos estão unidos por laços comuns e suas culturas foram construídas sobre uma
herança que partilham. O preâmbulo ainda faz uso de ideias, tais como ‘comunidade
internacional no seu conjunto’ e ‘crimes de maior gravidade que afetem a
comunidade internacional no seu conjunto’.
332
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Segundo Danilo Zolo (2007, p. 88), atualmente, a universalidade dos direitos
humanos não corresponde à universalidade de sua proteção internacional, uma vez
que os particularismos dos estados nacionais se opõem a essa ideia. Ainda, afirma
que do ponto de vista de culturas não ocidentais, os direitos humanos estão
estritamente vinculados a standards racionais de cultura ocidental, tais como o
formalismo jurídico, o individualismo e o liberalismo ocidental.
A ideia de que os direitos podem funcionar como trunfos, como ‘ases na
manga’, para resolver conflitos políticos é ingênua e falsa, porque a referência aos
direitos muitas vezes acentua e torna os contrastes mais rígidos em vez de resolvêlos, principalmente quando os próprios direitos se encontram em uma relação de
antinomia recíproca (ZOLO, 2007, p. 89).
Destarte, o que se busca mostrar por meio da análise do preâmbulo do
estatuto e das reflexões apresentadas é que esses documentos que se propõem
universais, mostram uma visão unilateral do mundo. Há diversas outras
necessidades que devem ser garantidas antes que certas culturas estejam aptas a
discutir suas limitações.
Na tentantiva de propor uma solução a esse impasse, Will Kymlicka (1998, p.
122) propõe que o indivíduo seja protegido não como algo abstrato, mas como
membro de uma comunidade cultural na qual sua identidade se constitui e sua
capacidade de auto-proteção aumenta.
Mantendo em mente o caráter indissociável entre direito e política, conclui-se
que o preâmbulo do Estatuto de Roma, nos mesmos moldes de documentos tais
como a Declaração de 1948, busca impor o ritmo da música a ser dançada, a partir
de objetivos a-históricos, abstratos e universais. A busca por novas ideias que
tentem unir as idiossincrasias, incitar a discussão e buscar a proteção da vida
humana não é a solução, mas pode ser o começo de uma de mudança de
pensamento.
4
UMA PRETENSA SOLUÇÃO BUSCADA PARA SE ALCANÇAR
UNIVERSALISMO POR MEIO DO DIÁLOGO ENTRE AS CULTURAS
O
O termo from below expressa o caráter resistente ou mobilizador das ações
comunitárias, da sociedade civil e de outros atores não estatais, na sua oposição às
333
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
poderosas forças políticas, sociais, e econômicas hegemônicas (MCEVOY;
MCGREGOR, 2008, p. 5).
Assim, qualquer visão que tenha como ponto de partida um contexto particular e
seja difundida como se fosse universal não passa de um exemplo do que é
conhecido como universalismo tradicional. Não se pode negar o fato de que os
direitos humanos que temos hoje não foram uma construção de “baixo para cima’’, e
sim um conceito que surgiu em um contexto particular (Ocidente) e difundiu-se por
todo o globo como se fosse o mínimo ético necessário para se lutar pela dignidade
(FLORES, 2009, p. 43).
Para discutir a justiça internacional penal à parte de normas pré-concebidas
unilateralmente, deve-se passar, necessariamente, pelo fundo comum de valores
que chamamos de Humanidade. Segundo Delmas Marty (2004, p. 71), o que emana
assim de modo implícito da noção penal de crime contra a humanidade é a
consagração penal de uma humanidade plural, envolvendo ao mesmo tempo a
singularidade de cada ser e sua igual vinculação com a comunidade humana.
4.1 JOAQUÍN HERRERA FLORES E O UNIVERSALISMO DE CHEGADA
Na obra “A (re)invenção dos Direitos Humanos”, Herrera Flores buscará
responder ao seguinte questionamento: como pressupor a existência de direitos
humanos se as comunidades são desiguais no desenvolvimento de suas condições
básicas?
Com isso não se busca destruir qualquer bem comum que possa unir a
humanidade; muito pelo contrário, o intuito é propor a construção de uma nova
racionalidade libertada da jaula de ferro na qual os direitos humanos foram
encerrados pela ideologia de mercado e por sua legitimação formalista e abstrata
(FLORES, 2009, p. 92). Assim, a sistematização dos direitos humanos não pode se
dar à parte das nossas lutas e compromissos; falar desses direitos indubitavelmente
requer falar em primeiro plano da luta pela dignidade humana.
A construção dos direitos humanos deve ser baseada em intervenções sociais
públicas, diálogo, participação, ou seja, deve partir do pressuposto do “devemos ter”
e não do que “temos”, do “devemos ser” e não do “somos”. Os direitos se
apresentam como fatos que já existem; no entanto, qualquer norma deve partir do
334
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
conjunto de valores que impera nas mais diferentes sociedades concretamente
consideradas, e não de um particularismo especial que se pretende universal.
Diante disso, para assegurar uma teoria realista e crítica dos direitos
humanos, alguns deveres básicos devem ser respeitados, tais como: o
estabelecimento de uma visão realista do mundo, pois ser realista é saber
exatamente onde estamos e aonde queremos ir; a conscientização e mobilização
dos indivíduos, por meio do ‘empoderamento’ do cidadão; e o contato com os
contextos jurídicos nos quais vivemos (FLORES, 2009, p. 61-66).
Assim, os mais diversos indivíduos devem ser chamados a compartilhar seus
problemas na medida em que nossa visão ocidental é poluída, incapaz de enxergar
as necessidades dos outros – dos não ocidentais ou até mesmo de grupos díspares
dentro da nossa própria sociedade.
Segundo Herrera Flores (2009, p. 107), “trabalhar com e para os direitos
humanos pressupõe, pois, ir contra a banalização das desigualdades e injustiças
globais”. Não é outro o entendimento de Jean Paul Sartre (2004, p. 89),
Se me dão este mundo com suas injustiças, não é para que eu as
contemple com frieza, mas para que eu as anime com a minha indignação e
para que as revele e crie sobre a natureza delas, quer dizer, sobre os
abusos que devem ser suprimidos.
É importante ressaltar que nem sequer a dignidade humana dos direitos
humanos, como a concebemos, é universal, isso porque cada cultura lista um rol de
premissas garantidoras de dignidade. O universal é, tão somente, a luta por uma
vida melhor (FLORES, 2009, p. 82). A proposta não é afastar qualquer conceito
universal, e sim afirmar que a participação das mais diversas sociedades é
pressuposto básico para a universalização de certos valores.
Portanto, contra as abstrações que não deixam de ser a justificação da ordem
dominante existente, procura-se construir uma teoria que abandona as idealizações
de um único sistema e aposta em uma visão materialista da realidade. Uma teoria
crítica dos direitos humanos analisará o mundo real, repleto de situações de
desigualdade, diferenças e disparidades, de impurezas e mestiçagens, afinal
somente o impuro pode ser objeto dos nossos conhecimentos (FLORES, 2009, p.
86).
335
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
O objetivo da visão complexa é incorporar os mais diferentes contextos físicos
e simbólicos na experiência do mundo. Assim, essa visão assume a realidade e a
presença de múltiplas vozes, todas com o mesmo direito a se expressar, a
denunciar, a exigir e a lutar (FLORES, 2009, p. 158).
Na tentativa de se desvencilhar dessas limitações, superando o universal e o
multicultural, Herrera Flores propõe um modelo intercultural que cria condições para
o desenvolvimento das potencialidades humanas, de um poder constituinte difuso
que se componha de generalidades compartilhadas à qual chegamos, não das quais
partimos (FLORES, 2009, p. 164). Isso é senão dar poder as mais diversas lutas por
dignidade. Assim,
O que não aceitamos é considerar o universal como um ponto de partida ou
um campo de desencontros. Ao universal, há de se chegar –
universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes) de um
processo de luta discursivo, de diálogo ou de confrontação em que se
rompam os pressupostos e as linhas paralelas. (grifo nosso). (FLORES,
2009, p. 163).
Pensar os direitos unilateralmente é deixá-los sob controle do mais forte. Para
que a outra face do direito seja iluminada, deve-se dar voz aos excluídos, aos
oprimidos, aos dominados. O ideal de que todas as culturas ofereçam suas opções
de uma posição mínima de simetria – senão de igualdade – só poderá ser alcançado
quando a busca por direitos for posterior à construção de condições sociais,
econômicas, políticas e culturais que propiciem o desenvolvimento das capacidades
humanas nos contextos em que se situam.
E como a utopia não é mais do que a abertura do possível, Herrera Flores
morreu acreditando que “apesar de tudo, apesar de todos os desatinos e crueldades
que se comentem, continuamos desejando rosas, as rosas que nos fazem acreditar
que existe a possibilidade do milagre” (FLORES, 2009, p. 187).
4.2 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS E UMA CONCEPÇÃO MULTICULTURAL
DOS DIREITOS HUMANOS
No texto “Por uma concepção multicultural de direitos humanos”, Boaventura de
Sousa Santos, buscando responder preocupações também expressadas por
336
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Joaquín Herrera Flores, partirá do seguinte questionamento: Como poderão os
direitos humanos ser uma política simultaneamente cultural e global?
Assim, o objetivo de Boaventura é desenvolver um quadro analítico capaz de
reforçar o potencial emancipatório da política dos direitos humanos no duplo
contexto da globalização. Busca-se, então, apontar as condições que permitem
conferir aos direitos humanos tanto o caráter global quanto a legitimidade local
(SANTOS, 2010, p. 432).
Boaventura (2010, p. 432) defende o cosmopolitismo6 do subalterno em luta
contra a sua subalternização. Assim, para poderem operar como forma de
cosmopolitismo, como globalização contra-hegemônica, os direitos humanos têm de
ser reconceitualizados como multiculturais. Concebidos como direitos universais,
como tem acontecido, os direitos humanos tenderão sempre a ser um instrumento
de choque de civilizações, ou seja, uma arma do Ocidente contra o resto do mundo
(SANTOS, 2010, p. 438).
Assim, a proposta estabelecida consiste em transformar a conceitualização e
a prática dos direitos humanos de um localismo globalizado para um projeto
cosmopolita. Apenas a relação equilibrada e mutuamente fortalecedora entre a
competência global e a legitimidade local permitirá a abrangência global dos direitos
humanos.
Essa
transformação
somente
será
possível
a
partir
de
um
multiculturalismo emancipatório (SANTOS, 2010, p. 438).
As premissas dessa transformação cosmopolita dos direitos humanos seriam,
primeiramente, a superação do debate entre universalismo e relativismo cultural, que
segundo Boaventura, trata-se de um debate cujos conceitos opostos são igualmente
prejudiciais para uma concepção emancipatória de direitos humanos (SANTOS,
2010, p. 441).
A segunda premissa dessa transformação cosmopolita dos direitos humanos
é identificar preocupações isomórficas em diferentes culturas. Em terceiro lugar,
aumentar a consciência de incompletude cultural como tarefa prévia para a
concepção multicultural de direitos humanos. Depois, há que se definir qual versão
de dignidade humana propõe um círculo de reciprocidade mais amplo do que as
6
Conjunto muito vasto e heterogêneo de iniciativas, movimentos e organizações que partilham a luta
contra a exclusão e a discriminação sociais e a destruição ambiental produzidas pelos localismos
globalizados e pelos globalismos localizados, recorrendo a articulações transnacionais tornadas
possíveis pela revolução das tecnologias de informação e de comunicação.
337
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
outras. E por fim, uma política emancipatória de direitos humanos deve saber
distinguir entre a luta pela igualdade e a luta pelo reconhecimento igualitário das
diferenças a fim de poder travar ambas as lutas eficazmente.
A luta pelos direitos humanos necessita de um diálogo intercultural e de uma
hermenêutica diatópica. A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os
topoi7 de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a
própria cultura a que pertencem e exige produção de conhecimento coletiva,
participativa, interativa, intersubjetiva e reticular, uma produção baseada em trocas
cognitivas e afetivas que avancem por intermédio do aprofundamento da
reciprocidade entre elas (SANTOS, 2010, p. 452).
A hermenêutica diatópica deve ser fruto de acordos mútuos e centrar-se em
perplexidades e desconfortos que apontem na mesma direção, apesar de
formulados
em
linguagens
distintas
e
quadros
conceituais
virtualmente
incomensuráveis. Assim, pressupõe a aceitação do seguinte imperativo transcultural:
Temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito
a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza (SANTOS, 2010, p. 452).
Na forma como têm sido concebidos, os direitos humanos são um localismo
globalizado, uma espécie de esperanto que dificilmente poderá se tornar a
linguagem quotidiana da dignidade humana nas diferentes regiões culturais do
globo. Compete à hermenêutica diatópica, proposta por Boaventura, transformá-los
em uma política cosmopolita que ligue em rede línguas diferentes de emancipação
pessoal e social e as torne mutuamente inteligíveis e traduzíveis.
Assim, o projeto de uma concepção multicultural dos direitos humanos pode
parecer tão utópico quando o universalismo de chegada ou de confluência, para
Herrera Flores. No entanto, como bem observado por Boaventura de Sousa Santos
(2010, p. 458), não é tão utópico quanto o respeito universal pela dignidade humana,
e nem por isso este último deixa de ser uma exigência ética séria.
7Os
topoi são determinados por Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 443) como os lugares comuns
retóricos mais abrangentes de uma determinada cultura.
338
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
5
A CAMINHADA DO DIREITO INTERNACIONAL PENAL VIS-À-VIS AS
NOVAS LENTES DOS DIREITOS HUMANOS
Foi demonstrado até aqui que à universalidade dos Direitos Humanos deve
ser incluída a diversidade. O indivíduo não pode mais ser tratado de forma genérica
e abstrata, e sim inserido em um contexto peculiar e particular. Assim, segundo
Flávia Piovesan (2006, p. 29), determinados sujeitos de direitos e determinadas
violações de direitos exigem uma resposta específica e diferenciada. Ao lado do
direito à igualdade, surge também o direito à diferença.
A igualdade só pode ser alcançada mediante a redistribuição somada ao
reconhecimento; isso também pode ser expresso pela necessidade de uma
igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza,
alimente ou reproduza as igualdades (SANTOS, 2010 p. 32).
As cortes internacionais efetivam os direitos humanos, pois constituem um
dos instrumentos mais poderosos no sentido de persuadir os Estados a cumprir
obrigações concernentes a tais direitos. E, ao mesmo tempo, essas cortes só
existem pela força ‘empoderante’ dada a elas pelos próprios direitos humanos.
Sendo assim, direitos humanos e cortes internacionais estão amarrados um ao
outro, por meio em uma relação indissociável.
A proposta deste trabalho é, então, questionar um dos ramos mais
conservadores do direito: o direito penal e sua extensão internacional. Buscar gerir
problemas em “escala mundial” a partir de ferramentas jurídicas unificadas sob o
pretexto de existência de um “núcleo axiológico rígido”, universal, parece ser
impraticável sem que se esteja de fato a colocar em prática outros objetivos que não
a proteção de bens jurídicos amplamente valorados.
Além disso, é digno de ironia afirmar que finalmente há um sistema de justiça
penal internacional e observar que, passados dez anos da ratificação de seu
estatuto, somente ditadores periféricos foram réus no TPI.
Contra uma justiça internacional estagnada e conservadora reside a proposta
de Joaquín Herrera Flores e Boaventura de Sousa Santos, os quais buscam propor
a reconstrução de valores por meio de uma abordagem mais justa dos direitos
humanos.
339
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
No processo de construção normativa democrática, a aceitação do outro não
é suficiente para garantir um diálogo frutífero, é necessário, ainda, o reconhecimento
genuíno do diferente. Segundo Costas Douzinas (2009, p. 375), “os direitos
humanos constroem seres humanos. Sou humano porque o outro me reconhece
como tal, o que, em termos institucionais, significa que sou reconhecido como
detentor de direitos humanos”.
O TPI pode estabelecer-se como inestimável canal democrático desde que
mantenha seu debate vis-à-vis com as novas tendências dos direitos humanos. Esse
mecanismo superaria o conceito do ‘outro’, tão importante às teorias repressivas e
aos mecanismos geradores de preconceitos, e levaria à lógica constatação de que o
outro não é ninguém mais que a continuidade de nós mesmos.
Para tanto, a aproximação do TPI com a comunidade que está sendo
investigada ou julgada pela corte é essencial. No entanto, essa relação encontra
uma série de obstáculos, tais como o fato da corte estarem um país diferente
(Holanda), o orçamento limitado do TPI, e o mero fato de que, muitas vezes, a corte
tem que fechar a porta às vítimas de um conflito internacional pois, apesar de ter
alguns mecanismos de reparação, o TPI, ao fim e ao cabo, visa à retribuição.
Nas palavras de Bassiouni (2004, p. 86), o principal objetivo do sistema
jurídico internacional de punição é a preservação da ordem mundial e a manutenção
da paz e da segurança. No entanto, essa busca deve, necessariamente, olhar na
mesma direção dos imediatamente afetados pelo conflito analisado. De pouco
adianta que a busca por justiça seja idealizada e levada a cabo por pessoas alheias
à comunidade em questão, e que as decisões tomadas não correspondam com a
vontade dos que sofreram dano diretamente.
Os fundamentos de um sistema de justiça criminal devem ser a prevenção, a
punição e a reabilitação (SCHARF, 1999, p. 507). No entanto, cada sociedade
entende de forma muito particular esses conceitos. O continente africano,
historicamente, abordou o tema da justiça dando maior valor à justiça restaurativa, e
concedendo amplo espaço ao perdão público. Nem por isso as sociedades africanas
deixam de respeitar inúmeros valores básicos que fundamentam os direitos
humanos. A diferença reside tão somente na maneira pela qual esses direitos são
avaliados, e a forma com que são implementados (DONELLY, 2003, p. 78).
340
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Existem dois conceitos da cultura religiosa africana que sustentam a ênfase
dada à reconciliação: a teologia cristã e o conceito tradicional de ubantu, que
enfatiza a comunidade sobre o indivíduo (GRAYBILL; LANEGRAN, Fall 2004). Modelos
criminais ocidentais se concentram nos elementos mais restaurativos de justiça, ao
passo que muitas sociedades na África e em outros lugares preferem confiar em
métodos mais restauradores. Enquanto sistemas retributivos dão maior ênfase ao
crime e à punição, os sistemas restauradores enfatizam o dano e a necessidade de
reparar a injustiça (EYBER; AGER, 2002, p. 871).
A distância física entre a corte e os países julgados, de fato, é um fator
relevante e que indubitavelmente não colabora no tocante ao diálogo entre o TPI e
as comunidades afetadas. Esse distanciamento, além de físico, é também ético, no
que diz respeito à escolha das situações e dos juízes da corte. Atualmente, o TPI
está julgando 8 situações: Uganda, República Democrática do Congo, Sudão,
República Centro-Africana, Quênia, Líbia, Costa do Marfim e Mali. Não é preciso um
esforço intelectual-geográfico grande para compreender que todos, sem exceção,
estão em continente africano. Os que ontem foram colonizados, hoje estão sendo
julgados, ou seja, duplamente penalizados pelos mesmas forças políticas.
Segundo informações do próprio site do TPI, atualmente a divisão judicial da
corte conta com 18 juízes, além dos 6 que continuam seu mandato até que seus
casos se finalizem de acordo com o Art. 36(10) do Estatuto de Roma. Do
levantamento desses dados, conclui-se que dos 24 juízes, apenas 5 são do
continente africano, ou seja, enquanto 100% dos casos são de países africanos,
apenas cerca de 21% dos juízes são nacionais de países da África.
Segundo Delmas-Marty (2004, p.67), embora os juízes dos tribunais penais
internacionais venham de vários continentes e pertençam a diferentes culturas,
muitas vezes eles se formaram pelas mesmas universidades, são recrutados na
maioria das vezes entre juízes ocidentais e trabalham em língua inglesa ou francesa.
E essa condição, claramente presente no TPI, limita sim o alcance da corte em
termos de ética.
O maior envolvimento de representantes das comunidades em todo o processo
no TPI seria significativo, permitindo assim a participação de vítimas e agressores,
particularmente em sociedades que valoram mais processos de justiça restaurativa,
341
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
os quais reconhecem que o crime não se limita a afetar os indivíduos, mas a
sociedade como um todo.
Sendo assim, pode-se cogitar o fato de até mesmo a corte passar a ser
itinerante, ou, pelo menos, manter parte significativa dos procedimentos nos países
os quais julga. Isso, a priori, pode parecer utopia; no entanto, há cerca de 20 anos, a
criação de um tribunal penal internacional também o era, e nem por isso esse
projeto não se realizou.
Outrossim, poderia haver um juiz - nacional do país que está sendo julgado com função consultiva na corte. Ou seja, qualquer uma das câmaras (primeira
instância, julgamento e apelação) poderia pedir que esse juiz elaborasse pareceres
em relação a méritos específicos. Sendo assim, ao indiciar um país, o TPI poderia
indicar um nacional, com experiência em direito, para ocupar essa função.
Apenas dessa forma é possível vislumbrar uma corte aberta ao diálogo e mais
engajada com os cidadãos do estado que está sendo julgado. Idealmente, a
participação teria que se dar da forma mais ampla e participativa possível; no
entanto, diante das realidades fáticas, o TPI deve, no mínimo, fazer com que as
pessoas se identifiquem com a justiça que está sendo perseguida. Diminuir a
distância física e nomear um nacional para acompanhar o caso pode ser um começo
à abertura do diálogo, que é necessária e deve se consolidar o mais brevemente
possível.
Assim, se o desenvolvimento de uma sociedade mais justa tem em seu cerne a
deliberação, o TPI tem que se abrir o mais brevemente possível às discussões
críticas propostas acerca dos direitos humanos. Quando a justiça é buscada e
efetivada por pessoas em concreto, a consciência do papel social que ocupam
facilita o entendimento da justiça e a aceitação da verdade em nível comunitário.
De tal forma, é apenas por meio do empoderamento das pessoas envolvidas nos
crimes julgados pelo TPI, com o intuito de escutar o que as mais diversas vozes
entendem por dignidade humana, que a corte poderá se desvincular da ideia de que
é um mero instrumento nas mãos do Ocidente para punir os inimigos.
342
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
5 CONCLUSÃO
Este trabalho procurou demonstrar que pensar os direitos humanos a partir de
uma
perspectiva
jusnaturalista,
que
pressupõe
indivíduos
a-históricos,
representantes de uma entidade abstrata que justifica a busca por uma moral e leis
universais (GROSSI, 2008, p. 21), é algo que não pode mais prosperar. Pelo
contrário, os direitos humanos devem sempre ser pensados e aplicados de forma
contextualizada no espaço e no tempo (FONSECA, 2011, p. 274).
A paisagem jurídica moderna é reducionista, pois tenta angariar em regras
gerais uma complexidade de culturas, de pessoas e de costumes (PÉREZ-LUÑO,
1998, p. 46-47). É nesse contexto que surgiram os direitos humanos universais que
defendem que os direitos naturais, inerentes a todas as pessoas, devem ser
reconhecidos pelo poder político, por meio do direito positivo. A ideia da
universalidade dos direitos humanos teve seu auge em 1948 com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, que selecionou certas culturas para serem
detentoras da verdade universal.
Contra esse pensamento levantam-se os relativistas, que consideram que a
noção de direito está intrinsecamente ligada ao sistema político, econômico, cultural,
social e moral vigente em determinada sociedade (PIOVESAN, 2011, p. 44); sendo
assim, cada cultura possui um discurso próprio em relação aos direitos que entende
serem fundamentais.
Dessarte, ambos os princípios considerados por si só apresentam limitações;
diante disso, busca-se agora novas saídas para incluir as diversidades e ao mesmo
tempo buscar algo em comum que una os seres humanos.
O desenrolar do direito internacional e dos direitos humanos após 1948
demonstrou que aquilo que se acreditava ser intrínseco ao humano abstratamente
considerado não passava da universalização de uma perspectiva particular
(FLORES, 2009, p. 82 e ss). Não podia ser diferente a abordagem do Direito
Internacional Penal, que amparado pela tradicional teoria dos direitos humanos,
tenta criminalizar apenas certas condutas e não outras, nos levando a crer que as
decisões do TPI não tem outro cunho senão o político.
Embora o Estatuto de Roma seja mais comedido do que a Declaração de
1948 em relação aos termos utilizados para expressar o universalismo de tal
343
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
documento, algumas situações previstas no texto do estatuto que criou o TPI
demonstram que muitas das decisões são excessivamente discricionárias – vide o
fato de 100% das situações do TPI serem de países africanos e o Conselho de
Segurança
deter
o
poder
de,
ao
final,
se
sobressair
ao
princípio
da
complementariedade.
Assim, esta pesquisa buscou demonstrar que documentos internacionais, os
quais garantem direitos essenciais aos mais diversos povos, partem do pressuposto
que todos os seres humanos têm condição, de antemão, de efetivar essa busca pela
dignidade humana. No entanto, o real entendimento de necessidade das diferentes
comunidades apenas será possível por meio do ‘empoderamento’ dos cidadãos, que
até então jamais tiveram a chance de dividir sua concepção de dignidade humana.
Apenas por meio desse universalismo de confluência8, e não mais de uma visão “de
cima para baixo’’, será possível encontrar algo que seja intrínseco a todo e qualquer
ser humano (FLORES, 2009, p.64).
Assim, Herrera Flores não afirma que todas as ideias concebidas sobre
direitos humanos são erradas, fruto do colonialismo e do imperialismo, apenas
propõe que da maneira com que tais direitos foram construídos eles não podem se
pretender universais.
Para que os direitos humanos possam operar como forma de cosmopolitismo,
como
globalização
contra-hegemônica,
eles
devem,
necessariamente,
ser
reconceitualizados como multiculturais. Para Boaventura de Sousa Santos (2010, p.
458), os diálogos interculturais devem ser capazes de transformar os direitos
humanos em uma política cosmopolita que ligue em rede línguas diferentes de
emancipação pessoal e social e ao mesmo tempo as torne mutuamente inteligíveis e
traduzíveis.
A partir da consideração de que o TPI dá efetividade aos direitos humanos, e
os direitos humanos formam a base de todo aparato jurídico e moral da corte, a
caminhada da jurisdição internacional penal não pode se dar em passos mais lentos
do que o desenvolvimento proposto aos direitos humanos.
8Esse
processo é denominado, por Joaquín Herrera Flores, como multiculturalismo crítico ou de
resistência. O único essencialismo válido para uma visão complexa do real é aquele que cria
condições para o desenvolvimento das potencialidades humanas, de um poder constituinte difuso que
se componha não de imposições ou exclusões, mas sim de generalidades compartilhadas às quais
chegamos, não das quais partimos.
344
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Tal e qual a busca de Themis por justiça jamais poderia ser difundida não
fosse Hermes para trafegar pelo mundo em busca da conciliação, o TPI deve
sempre, tanto e mais buscar a justiça por meio da participação dos mais diversos
interlocutores.
Para a construção de metas de diálogo e ideias dialeticamente construídas
que se proporão universais pode-se até, por que não, beber da fonte da democracia
deliberativa, por meio da qual os cidadãos deliberam, trocam opiniões, debatem os
motivos e buscam soluções conjuntas para políticas públicas. As opiniões não são
simplesmente um resultado fixo de interesses privados, mas sim uma construção
dos cidadãos com respeito a fundamentos constitucionais e questões de justiça
básica (RAWLS, 1999, p. 138-139).
Assim, os direitos humanos, e por conseguinte sua aplicação pelas Cortes
Penais Internacionais, em especial pelo TPI, devem ser algo constantemente em
transformação, pois como bem observado por Costa Douzinas (2009, p. 384) até a
presente data os direitos humanos são um ‘mito concretizado’ das sociedades pósmodernas, e tal ideia é válida tão somente aos que sofrem violações em maior e
menor grau nas mãos dos poderes que declaram seu triunfo.
Sempre haverá obstáculos para a concretização dos direitos humanos, no
entanto eles não devem ser entendidos como utopia (FLORES, 2009, p. 113). A
história do TPI é consideravelmente recente, bem por isso que o repensar, recriar,
reformar, readaptar, reorientar, e rediscutir devem fazem parte do dia a dia da corte.
Somente assim ideais universalmente construídos poderão ser, enfim, legitimamente
defendidos. Na caminhada do direito internacional penal rumo a uma justiça mais
transparente e participativa, os que acreditam na defesa da dignidade da pessoa
humana seguirão desejando Flores.
345
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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348
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
CRIAÇÃO DE ESTEREÓTIPOS E A SEGREGAÇÃO SOCIAL
THE CREATION OF STEREOTYPES AND THE SOCIAL
SEGREGATION
Louise de Oliveira Carnieri9
Profª. Doutora Maria Luiza Scaramella10
9
Graduanda em Direito na UNICURITIBA
Possui doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2010), com
estágio no "Institut des Textes et Manuscrits Modernes" (ITEM), na "École Normale Supérieure"
(2006-2007), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (2004) e
graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1998). Atualmente é
professora de Sociologia e Antropologia do Direito no Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA),
membro do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR), na Universidade de São Paulo (USP), e do
grupo de pesquisa "Trajetórias e etnografia: narrativas, eventos, experiências", na UNICAMP (ambos
cadastrados no CNPq). Tem experiência na área de Ciências Sociais com ênfase em Antropologia,
atuando principalmente nas seguintes áreas e temas: antropologia, antropologia do direito, sociologia,
abordagem biográfica, trajetória, história de vida, narrativas biográficas.
10
349
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SUMÁRIO
1 – Introdução. 2 – Criação de Estereótipos. 3 – Segregação social. 4 –
Considerações Finais. Referências.
350
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo realizar uma análise acerca da criação de
estereótipos, bem como a segregação social, que a sociedade brasileira trás como
herança da época da escravidão e reflete em nossa sociedade, gerando grande
impacto. Pretende-se ainda com esse trabalho identificar a dificuldade dos exdetentos para retomar a vida em sociedade, assim como para encontrar um
emprego que dignifique ou com real possibilidade de crescimento.
Palavras-chave: Estereótipos. Segregação social. Preconceito.
351
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
The aim of this article is to perform an analysis upon the creation of stereotypes, as
well as the social segregation, in which the Brazilian society inherited from the
slavery period that still reflects in our society today, generating great impact.
Furthermore, it is intended in this project identify the deterrents of the former inmates
to resume their lives in society, as to find a dignifying job or a job with real growth
possibilities.
Keywords: Stereotypes. Social Segregation. Prejudice.
352
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
Com o presente trabalho pretende-se analisar quais as causas da
estigmatização social, qual a origem do preconceito e como ele se desenvolveu e é
visto pela sociedade moderna, juntamente com a visualização da influência da mídia
relacionada à criminalidade e por fim, indagar a segregação social existente com
detentos e ex-detentos e a dificuldade de reingressar a vida em sociedade e
encontrar um trabalho.
Analisa-se a criação de estereótipos que ocorre no Brasil, bem como a
influência da era escravocrata nos dias atuais, a herança trazida que faz com que a
sociedade continue com um pensamento retrógrado de sujeito ideal, criando um
padrão tido como o ideal a ser seguido, sendo que aqueles que não se encaixam
são rotulados e subjugados.
Averígua-se ainda a situação do sujeito típico tido como “marginal” que
erroneamente está associado à criminalidade, verificando a influência e os reflexos
desse pré-conceito, bem como a criação do “inimigo social”, com a ideia de que essa
pessoa deve ser punida com toda a força estatal de maneira mais rígida e severa. O
abismo que a sociedade cria entre diversas classes, raças, gêneros, entre outros,
faz com que a desigualdade seja uma realidade brasileira crescente com pouca ou
nenhuma disposição de mudança.
Ainda, remete-se ao latente preconceito da sociedade, que cria paradigmas e
divide as pessoas em grupos, utilizando como fundamento para tal divisão critérios
pré-concebidos, segregação que atinge também crianças e adolescentes. Verificase ainda a necessidade de que o Estado, visando à igualdade entre as pessoas,
respeite o direito inerente a todas as pessoas, promovendo a criação de políticas
públicas para a melhor distribuição de recursos.
2 CRIAÇÃO DE ESTEREÓTIPOS
Quando se fala em pobreza, logo vem à cabeça das pessoas a palavra
“criminalidade”. Ao se falar em criminalidade, remete-se a um sujeito “típico”
353
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
desenvolvido pela sociedade como aquela pessoa que nasce nas comunidades
carentes e cresce no meio da pobreza com pouco ou nenhum recurso. Esse sujeito
aos olhos da sociedade é visto como sujeito propenso a ingressar no mundo do
crime, devido as suas raízes e as circunstâncias nas quais se enquadra.
Ao criar um estereótipo de como deve ser o “marginal”, a sociedade aumenta
o preconceito com este sujeito e dificulta a tentativa de mudar essa visão de que,
essa pessoa, já tem em sua essência a vontade de não respeitar as normas sociais,
o que não correspondendo à realidade fática. Não se pode dizer que por nascer em
uma comunidade carente ou pelo modo como vive que será determinada a escolha
do sujeito pelo caminho da criminalidade.
Criou-se um paradigma que, o “delinquente” será definido por sua cor,
pobreza ou estilo de vida, tendo esse sujeito, em sua essência, um desvio de
conduta, motivo pelo qual deve ser incriminado preventivamente e punido mais
severamente que autores de outros crimes. Ao manter essa linha de pensamento, a
sociedade cria sentimentos repulsivos contra essa pessoa desejando que esta, ao
cometer um delito, desapareça, morra, ou no mínimo, tenha uma pena mais dura,
pensamento que tem reflexo no sistema penitenciário. Há, de acordo com Adorno
(2002), um sentimento que leva à “exclusão moral” do presidiário ou ex-presidiário
pela sociedade.
Foram realizadas em São Paulo pela Comissão Justiça e Paz, órgão das
pastorais católicas. Revelaram acentuada desconfiança nos direitos
humanos e acentuada imagem negativa dos presos, o que levou à
conclusão de que estava em curso, na sociedade brasileira, um processo de
exclusão moral, pelo qual delinquentes e infratores das leis penais eram
percebidos como pessoas não apenas destituídas do direito a ter direitos,
mais que isso, também destituídas de humanidade, razão por que poderiam
até ser eliminadas sem julgamento. (ADORNO, 2002).
Conforme Adorno revela em seu artigo, o aumento da criminalidade e da
violência cumulado com a baixa capacidade de o Estado impor leis e normas é uma
das causas do aumento da exclusão, pois a sociedade teme que se determinado
sujeito não for punido de maneira extremamente rigorosa, vai encontrar brechas no
sistema e na lei, conseguindo então a impunidade.
No Brasil ainda nos dias de hoje, vê-se a persistência do modo errôneo de
pensar que, direitos humanos significam proteger o criminoso ou lhe conceder
354
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
benefícios, quando apenas remetem aos direitos inerentes à pessoa humana, ou
seja, a qualquer cidadão.
A criação da figura de um sujeito típico criminoso se estende também as
crianças e adolescentes, sendo definidos como “trombadinhas” ou “delinquentes”
geralmente por fazerem parte de uma comunidade carente.
A sociedade visualiza o crime muitas vezes como “traição”, que é reflexo do
problema da exclusão social enfrentado por essas pessoas, que sofrem o abandono
estatal não tendo ou tendo contato mínimo com escola, educação, saúde, trabalho,
saneamento básico, entre outros. Ao ter esse pensamento, a sociedade faz uma
divisão entre “cidadãos” e “inimigos” conforme prevê Juarez Sirino dos Santos
(2008):
O cidadão é autor de crimes normais, que preserva uma atitude de
fidelidade jurídica intrínseca, uma base subjetiva real capaz de manter as
expectativas normativas da comunidade, conservando a qualidade de
pessoa portadora de direitos, porque não desafia o sistema social. [...] O
inimigo é autor de crimes de alta traição, que assume uma atitude de
insubordinação jurídica intrínseca, uma base subjetiva real capaz de
produzir um estado de guerra contra a sociedade, com a permanente
frustração das expectativas normativas da comunidade, perdendo a
qualidade de pessoa portadora de direitos, porque desafia o sistema social.
(SANTOS, 2008, p. 5)
Não se deve falar em inimigo social, pois todas as pessoas que fazem parte
de uma sociedade são detentores de direitos e deveres e, mesmo que determinado
sujeito venha a praticar um delito, devem ser mantidos os direitos inerentes à
pessoa humana ao sujeito que violou as normas.
A imagem de um inimigo social usa como base, as áreas urbanas de baixa
renda que normalmente são alvo de quadrilhas para o tráfico, por se tratarem de
áreas vulneráveis, ou seja, as favelas e áreas de ocupação são controladas por
grandes “grupos” devido ao baixo poder aquisitivo desse lugar, criando um sistema
de comércio onde as dívidas são pagas com vidas, o que aumenta a violência
nestas áreas.
Sobre o assunto, explica Misse (2010):
Nesse sentido, a sujeição criminal também se “territorializa”, ganha
contornos espaciais e amplifica-se nos sujeitos locais e mesmo nas crianças
e adolescentes cuja sujeição é esperada. Como tal, não pode ser
355
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
compreendida exclusivamente apenas no plano da interação contextual e
do desempenho de papéis sociais, pois se mostra ancorada num plano
macro de acumulação social da violência em tipos sociais constituídos e
representados por sujeitos criminais produzidos em contextos sóciohistóricos determinados. Aqui a sujeição criminal poderia ser compreendida,
ao mesmo tempo, como um processo de subjetivação e o resultado desse
processo para o ponto de vista da sociedade mais abrangente que o
representa como um mundo à parte. (MISSE, 2010, p. 15).
A cultura associada a essas pessoas de origem humilde faz com que elas
tenham grande dificuldade de tentar alterar essa realidade moldada, pois são vistas
como potenciais “bandidos”, o que cria um grande obstáculo para tentar entrar no
mercado de trabalho, pois sofrem preconceito.
Ao não ver alternativa diante da dificuldade em se colocar no mercado de
trabalho devido a pouca escolaridade e a falta de profissionalização, acrescida do
grande preconceito e, com a necessidade de ajudar os seus familiares, muitas vezes
essas pessoas acabam recorrendo ao mundo da criminalidade, por se tratar de um
caminho de mais fácil acesso.
Acerca do assunto discorre Misse (2010):
Na sujeição criminal encontramos esses mesmos processos, mas
potencializados por um ambiente de profunda desigualdade social, forte
privação relativa de recursos de resistência (ou ocultação social) à
estigmatização e pela dominação (mais que apenas pelo predomínio) da
identidade degradada sobre todos os demais papéis sociais do indivíduo. O
rótulo “bandido” é de tal modo reificado no indivíduo que restam poucos
espaços para negociar, manipular ou abandonar a identidade pública
estigmatizada. Assim, o conceito de sujeição criminal engloba processos de
rotulação, estigmatização e tipificação numa única identidade social,
especificamente ligada ao processo de incriminação e não como um caso
particular de desvio. (MISSE, 2010, p. 19).
Para que seja possível mudar essa realidade é necessário abandonar esse
paradigma criado, pois ao selecionar características para definir como deve ser o
“bandido”, aquele sujeito que representa ameaça e perigo, que deve ter uma
incriminação preventiva e que está destinado a criminalidade, percorre-se um
caminho à contramão do princípio da igualdade previsto na nossa Carta Magna.
A crescente desigualdade social faz com que seja difícil a preservação dos
direitos humanos nas comunidades da periferia. É de grande importância que o
356
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Estado, comece a distribuir mais recursos para áreas de baixa renda, principalmente
educacionalmente. A porcentagem de pessoas analfabetas ou semianalfabetas que
ingressão no sistema penitenciário é muito alta, sendo que grande parte está tendo
seu primeiro contato com o Estado na cadeia.
Dessa forma outro aspecto relevante a ser aqui considerado é o perfil da
população penitenciária no Brasil, que segundo os dados fornecidos pelo
Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, a maior parte
da massa carcerária deste país é composta por jovens com menos de trinta
anos e de baixa escolaridade (97% são analfabetos ou semianalfabetos). O
restante, quase que na totalidade, são pessoas que não tiveram condições
de concluir os estudos por razões variadas inclusive por terem sido iniciadas
no crime ainda cedo. (SANTOS, 2005).
Além da necessidade da melhor distribuição de recursos, é imprescindível a
mudança da visão que a sociedade estabeleceu sobre um estereótipo. A
incriminação de uma pessoa, seja ela criança, adolescente ou adulto não pode ser
um processo simples definido por características levianas. Ao criar um estereótipo
de “marginal” determinando suas características e ao desejar punições mais severas
para este sujeito que nasce “predestinado” ao ingresso no mundo do crime, estamos
retroagindo e voltando aquele conceito antiquado que estabelece que aquele que vai
contra as normas sociais, deve ser punido com a máxima força estatal, pois essa
visão distorcida nos leva a desejar que a pena tenha caráter de castigo e vingança,
ignorando a finalidade da pena que é a ressocialização para o sujeito que
transgrediu as normas possa ingressar na sociedade.
É importante frisar que é muito difícil que as punições sejam equânimes, visto
que os crimes cometidos têm características diferentes. É inadmissível que em uma
sociedade moderna ainda exista essa ideia preconceituosa de que o infrator das
normas tem necessariamente que pertencer a uma classe desfavorecida.
Ao dizer que as punições não devem ser equânimes, refere-se à punição
diferente para crimes diferentes. Porém o que se vê é a punição diferente para
pessoas diferentes, mesmo que o delito seja igual com características semelhantes,
ou seja, o sujeito oriundo de uma classe social desfavorecida que transgrediu as
normas será punido mais rigorosamente devido a suas origens.
Ainda há que se falar na falha do Estado ao proporcionar defesa para a
pessoa carente que cometeu o delito e está respondendo ao processo penal,
357
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
indicando defensores que muitas vezes não estão qualificados para exercer esse
papel de fundamental importância. Em contrapartida, as pessoas que possuem
recursos para contratar um especialista, possuem ampla defesa e dedicação
exclusiva, aumentando suas chances de diminuição da pena ou até mesmo a não
imputação desta.
Observa-se que, grande parte dos crimes cometidos envolve a população
carente, com pouco ou nenhum recurso. O que não se deve deixar de lado é a falha
do sistema policial na criação de uma estatística dos crimes: por um lado se
esquece que as maiores vítimas da violência estão em regiões periféricas e de baixa
renda; por outro, não há estatísticas que envolvem as classes mais abastadas,
sendo essa relação entre condição social e desvio de conduta fortemente
contestável.
As pessoas realizam erroneamente a associação da criminalidade com a
pobreza, utilizando o argumento de que a violência é maior nos crimes cometidos
pelo “inimigo social”. É possível ver essa injustiça social também na força da punição
promovida pelo Estado, sendo que, dificilmente um sujeito pertencente a uma classe
social favorecida, será visto cumprindo pena em um sistema prisional, porém o
inverso é tido como padrão.
De acordo com Sergio Adorno (2002), entre 13 e 16 de abril de 1995, o Jornal
do Brasil/Vox Populi realizou uma pesquisa de opinião conforme indicado abaixo:
73% dos brasileiros não confiam na Justiça. As respostas dadas ao
questionário mostraram que, no entender da maioria da população, a lei não
é igual para todos. Embora esse princípio esteja estabelecido no Artigo 5º.
Da Constituição. Para 82% dos 3.075 entrevistados, a lei é mais rigorosa
para alguns, privilegiando outros. O Vox Populi perguntou se negros e
brancos, pobres e ricos recebem o mesmo tratamento para crimes iguais.
Para 80%, não há dúvida: o pobre será julgado mais rigorosamente; e 62%
acreditam que o negro receberá punição mais pesada. (ADORNO, 2002).
O que fica comprovado é que, mesmo após mais de 10 anos da realização da
pesquisa pouco ou quase nada se alterou na mentalidade dos brasileiros. Esse
preconceito não é apenas uma realidade atual, ao contrário, a ideia de que uma
parcela da sociedade não é possuidora de direito está presente desde a época da
escravatura, tendo os escravos características que o determinavam como tais.
358
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A segregação social que ocorre no Brasil, separando os indivíduos por classe
social, raça, religião, entre outros, é fruto de um sistema prejudicado que vem desde
a época da colonização brasileira.
Desde a independência política das colônias portuguesas, verifica-se a
segregação sofrida pelos escravos, que eram tratados como objetos, os quais
pertenciam a um senhorio que tinha amplos poderes sobre a vida e o destino destes.
Com a criação do Código Penal em 1830 a situação para os escravos
não se alterou, sendo que conforme estudos de Andrei Corner (2006), havia apenas
um único artigo que mencionava os escravos, que determinava que quando não
fossem condenados à morte ou a pena de galés, teriam penas que seriam
cumuladas de açoites, sem prejuízos ao trabalho.
A pena de galés era uma pena ao qual o sujeito era condenado ao
trabalho forçado, sendo que geralmente os escravos tinham seus pés acorrentados
com correntes de ferro e trabalhavam, sem direito a nenhuma contraprestação, ao
governo.
A Constituição Federal de 1824 do Império determinava que as cadeias
fossem seguras, limpas e bem arejadas, fato que até os dias atuais são
questionáveis em grande parte, senão em todos os sistemas penitenciário, devendo
ainda ter separação dos réus de acordo com a natureza do crime praticado e a
classificação penal.
Para os escravos, eram reservados os piores espaços nas prisões,
denominado calabouço, recebendo vestuário e alimentação de pior qualidade, sendo
obrigados a prestação de serviços externos e internos para os outros encarcerados.
Em 1874, criou-se uma prisão vislumbrada, pelo menos em seu projeto, como
ideal panóptico, a chamada Casa de Correção da Corte, porém pouco ou nada se
alterou para os escravos e africanos, que agora tinham como lugar reservado o
andar térreo e o sótão, lugares tidos como insalubres devido à alta temperatura do
local e a grande umidade, sendo reservado aos demais presos os andares
intermediários. A lógica do sistema prisional revelou aos poucos sua verdadeira
função, que era a de controle e vigilância.
O projeto panóptico de penitenciária foi elaborado por uma sociedade da
Inglaterra em 1826 e, tinha como principal objetivo uma prisão com melhorias, sendo
que seriam “quatro raios, com duzentos cubículos cada um, totalizando 800 celas.
359
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
[...] As celas seriam distribuídas ao longo de um corretor central havendo também os
corredores externos” (KOERNER, 2006, p. 211).
Ademais, apesar de um projeto ideal para o sistema carcerário, a Casa de
Correção na Corte apresentava diversos erros na sua construção e se tornou nada
mais do que um sistema bruto e cruel de aprisionamento de escravos e outros
infratores.
Não obstante a segregação ocorrida dentro do sistema penitenciário da
colônia, os negros e pardos denominados “livres” não tinham liberdade de ir e vir nas
ruas, eram tidos suspeitos, sendo que a polícia, em suas rondas noturnas, detinha
estes sujeitos para verificar se eram escravos fugitivos.
Ainda, nas relações íntimas entre escravo e proprietário, eram possíveis todos
os atos que o senhorio julgasse necessário para preservar a boa ordem, incluindo
castigos físicos, suplícios, intimidação, entre outros. Um dos objetivos dos
proprietários de escravos era, como bem observado por Koerner (2006), a
destruição da identidade anterior, com intuito de “adestrar” o escravo, e moldá-lo ao
“servo perfeito”, devendo este ser totalmente submisso.
Com o passar dos anos, as reformas penais visaram melhorias para os
chamados homens livres, sendo esta uma visão mais humanitária, porém, os
escravos eram ainda separados lugares insalubres, que se não os matasse os
tornaria inutilizável para o seu senhor, sendo que se nenhum senhorio fosse
requerer a soltura daquele escravo, ele morreria na cadeia.
Tomando a análise de Koerner (2006) e mesmo de DaMatta (1997), vemos
que o sistema social brasileiro é amplamente fragmentado, dividindo a sociedade
entre dominantes e dominados, superiores e inferiores, de modo hierarquizado para
manter o preceito de que, cada pessoa deve saber o seu lugar, demonstrando a
densa carga autoritária que o sistema carrega.
No Brasil os traços da escravidão são latentes, tendo em vista que mesmo
abolida, nunca houve um efetivo sistema que objetivasse promover a igualdade.
Ou seja, apesar de a escravatura ter sido abolida no Brasil em 1888, o negro
era tido antes de tudo como suspeito, não tendo a mínima autonomia sequer para
caminhar nas ruas após o toque de recolher, podendo ser recolhido as casas de
detenção sem grandes explicações, sendo realizada a separação, de quem na
teoria, deveria ser igual.
360
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A exclusão social é um processo histórico, sendo que a parcela alvo desta,
geralmente tem como características a situação de carência, a segregação e a
discriminação, sendo essa última a mais relevante. O Brasil sendo um país
democrático deveria realizar a aplicabilidade da igualdade entre todos perante a lei
que está prevista na Constituição Federal de 1988, porém o que ocorre, conforme
ilustrado pela célebre frase de Rui Barbosa é que, os desiguais são tratados na
medida de suas desigualdades. Nesse sentido, de acordo com Koerner (2006), a
frase de Rui Barbosa mostra-se com um caráter dúbio, que é o de justamente acirrar
as desigualdades, não atribuindo o mesmo tratamento para as pessoas, dando
ênfase a exclusão social.
A separação social é amplamente difundida no Brasil, o que faz com que a
sociedade reste fragmentada, difundido erroneamente um sistema que realiza a
segregação de pessoas, privilegiando apenas uma parcela da sociedade, os
denominados “bem apessoados” ou “apadrinhados”.
Mesmo após a criação de uma constituição com base no princípio da
igualdade entre as pessoas, verifica-se que esta “herança maldita” carregada desde
a época da abolição está presente e continua realizando a individualização das
classes sociais, selecionando e determinando a posição que determinadas pessoas
devem ocupar na sociedade, restando para determinada classe/grupo social, pouca
ou nenhuma possibilidade de alterar esta realidade criada.
Segundo o autor Roberto DaMatta (1997), a segmentação baseada no
sistema hierárquico, faz com que o sistema social seja corrompido, sendo que a lei
que teoricamente deveria ser universal e igualitária é vastamente utilizada como
forma de privilegiar alguns indivíduos, servindo dessa forma como elemento
fundamental de sujeição é diferenciação política e social.
O sistema de leis que deveria servir como forma de difundir e promover o
tratamento igualitário entre as pessoas, ocasiona em verdade, um sistema que
promove o aprisionamento de determinados grupos. Essa herança de diferenciação
gera um aumento na desigualdade social, fazendo com que seja persistente a
situação autoritária e hierárquica no Brasil, da perspectiva cultural, minando a prática
democrática.
Ainda, importante é o papel das políticas públicas que devem ser criadas pelo
Estado para a diminuição da injustiça social, pois estas têm o poder de diminuir esta
361
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
lacuna criada para separar a sociedade entre sujeitos que merecem a proteção
estatal e inimigos sociais.
Ao invés da criação de políticas sociais, o que se vê é a criação de políticas
penais que são utilizadas como mecanismo de contenção de uma massa vista pela
sociedade como uma ameaça, um perigo. Essa desigualdade não é uma
exclusividade do Brasil, sendo vista em outros países, como os Estados Unidos.
Sobre o assunto, relata Loic Wacquant (2008):
Finalmente, as limitações orçamentárias e a moda política de “menos
governo” convergiram para intensificar as tendências da reificação do
welfare assim como as do encarceramento. Diversas jurisdições, como o
Texas e o Tennessee, consignam uma parte considerável dos seus
condenados a estabelecimentos privados e subcontrata firmas
especializadas para a administração dos beneficiários da assistência
pública, pois o estado não tem capacidade administrativa para implementar
sua nova política de combate à pobreza. Essa é uma maneira de tornar
pessoas pobres e prisioneiros (cuja grande maioria era pobre em liberdade
e voltará a ser pobre quando libertada) “lucrativos”, em termos ideológicos e
econômicos. (WACQUANT, 2008).
Não obstante a isto, exerce grande influência no estereótipo criado pela
sociedade a mídia que, contribui fortemente, para a construção da imagem do
sujeito “marginal”. É indiscutível que a mídia tem o poder de formar opiniões, pois
quando a sociedade define um sujeito como típico ao ingresso na criminalidade,
normalmente essa ideia criada é reforçada pela mídia.
Sobre o tema, aduz Almeida (2003):
[...] para evitar os desmandos jornalísticos e televisivos urge uma regulação,
não censura mas um controle. Acusar sem provas também é uma violência,
o cidadão é presumidamente inocente, o Estado é que deve provar ser ele
culpado. Ainda que não haja defesa, o Estado tem que provar a culpa,
senão a justiça irá inocentar o acusador por ausência de provas. Isso
possibilita que alguns culpados sejam julgados inocentes, porém se justifica
e é até plausível, desde que seja para que inocentes jamais sejam julgados
culpados. Devemos proteger os inocentes ainda que para isso seja
necessário proteger também os culpados. (ALMEIDA, 2003).
Quando o Estado realizar uma distribuição de rendas que atenda as principais
necessidades da população carente, estará trilhando um caminho que contribuirá
362
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
para o fim da exclusão social, aumentando sua capacidade de instituir as leis e as
normas, fazendo-as serem respeitas.
3 A SEGREGAÇÃO SOCIAL
A sociedade em sua essência cria paradigmas e divide as pessoas em grupos
que geralmente são determinadas por algumas características, tais como gênero,
raça e posição socioeconômica. Essa separação é um problema que teve o seu
início desde que a sociedade começou se organizar como tal, não se tratando de um
problema contemporâneo, visto que desde a colonização já era visível essa
diferenciação, fundada em critérios pré-concebidos.
A segregação da sociedade se verifica com um aspecto mais amplo sobre a
separação por classes, mas a sociedade realiza a separação das pessoas nos dias
atuais também determinadas por outras características, tais como separação racial,
por gênero e por etnias.
O preconceito da sociedade se verifica não só sobre aspectos raciais,
abrangendo uma parte muito ampla de pessoas, mas também emerge de categorias
de classe, gênero, etc.
O processo de exclusão social não é definido apenas por uma
“característica”, podendo ser diversificado conforme prevê Alba Zaluar (1997):
Do ponto de vista da teoria dos sistemas simbólicos, podemos afirmar que
qualquer sistema classificatório ou qualquer comunidade, como identidade
que se diferencia de outras, cria exclusão: grupos religiosos, étnicos,
raciais, familiares, tribais, localidades, nações etc. Mas tais grupos criam a
exclusão por processos diferentes e por critérios distintos, tendo maior ou
menor flexibilidade, fronteiras mais ou menos fluidas, além de laços ou
relações entre seus membros de natureza bastante diversa (ZALUAR,
1997).
Ao determinar critérios para subdividir as pessoas, fundado em características
levianas, a sociedade alimenta o preconceito, criando um obstáculo para aqueles
sujeitos que não se encaixam nos padrões estabelecidos. Não obstante, este préconceito é fomentado pelo Estado, que abandona essas pessoas socialmente,
deixando-as em condições precárias.
363
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Na sociedade contemporânea, as pessoas também estão subdividias por
classes econômicas, sendo que aquele que pertence a uma comunidade carente e
cresce em meio à pobreza, terá que enfrentar uma enorme barreira de dificuldades.
Determina-se que, aquela pessoa que nasce no “morro”, na “favela”, estaria
determinada ao cometimento do ilícito penal. Se dita isso quase como se fosse uma
regra, ou seja, ao nascer em uma área carente, o sujeito teria o seu destino traçado
a criminalidade. Trata-se quase de uma regra imposta pela sociedade, um
parâmetro estabelecido, a criança nascida em família de poucos recursos é tida
como “pivete”, fato geralmente determinado pelas roupas que esta veste, um
adolescente de classe baixa é denominado “marginal”.
Quando se vê uma criança ou adolescente na rua, pedindo dinheiro no
semáforo, não se leva em conta a razão que a levou a estar ali. Quando o Estado
abandona as áreas carentes, ele contribui para a criminalização. A falta de escolas,
creches, saneamento básico, condições mínimas de existência, previstas pelo
princípio do mínimo existencial necessário para garantir a dignidade humana é
desrespeitado sem escrúpulos nestas determinadas áreas.
O Estado ao excluir socialmente algumas parcelas populacionais, faz com
que cresça o abismo já existente entre aqueles sujeitos aos quais existe a ampla
preocupação governamental e aqueles que foram excluídos da proteção estatal. Ao
subdividir a sociedade entre os “bons” e os “maus”, os que são merecedores da
proteção estatal e os que não são, abre-se margem para o crescimento constante da
desigualdade entre estes sujeitos. É inconcebível que, em pleno século XXI ainda
haja exclusão social, visto que afronta diretamente a Carta Magna, que está em
vigor desde 1988.
A criação de uma política estatal de inclusão social se faz necessária para
preservar os direitos dos cidadãos, para que esses também respeitem suas
obrigações, sendo que pela falta de informação muitos desconhecem os deveres e
direitos inerentes a qualquer sujeito.
Alba Zaluar (1997) discorre que:
As políticas sociais devem ser implementadas não porque os pobres
constituam um perigo permanente à segurança, não porque venham a ser
as classes perigosas, mas porque um país democrático e justo não pode
existir sem tais políticas. (ZALUAR, 1997).
364
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Nas áreas populacionais de baixa renda, denominadas favelas, existe a total
falta de infraestrutura, havendo falta dos recursos mínimos necessários, tais como
água potável, coleta de lixo e saneamento básico. Nestas áreas geralmente ocorre à
superlotação e o que se vê frequentemente é o total descaso do Estado com as
pessoas que lá habitam.
A falta de estrutura nas escolas ou mesmo a inexistência destas nas favelas,
sendo que para ter acesso ao estudo, normalmente os adolescentes tem que se
deslocar de suas casas por muitos quilômetros, geralmente a pé devido à falta de
transporte público, para outros bairros da região, motivo pelo qual grande
porcentagem dos jovens abandonam a escola antes de atingir o ensino médio.
Com a falta de estudo, excesso de tempo livre, falta de perspectiva de futuro
e com o chamativo mercado de tráfico de drogas que tem rendimento lucrativo e
possui fácil acesso, muitos jovens acabam ingressando a criminalidade, pois é um
mercado altamente atrativo devido ao grande retorno financeiro.
Ensina Zaluar (1997) que:
Atraídos por essa identidade masculina, os jovens, nem sempre os mais
destituídos, incorporam-se aos grupos criminosos em que ficaram à mercê
das rigorosas regras que proíbem a traição e a evasão de quaisquer
recursos, por mínimo que sejam. Entre esses jovens, o entanto, são os mais
destituídos que portam o estigma de eternos suspeitos, portanto
incrimináveis, quando são usuários de drogas, aos olhos discriminatórios
das agências de controle institucional. (ZALUAR, 1999).
Estes jovens, muitas vezes convivem apenas com um dos pais, seja esta
presença familiar materna ou paterna, necessitando desde cedo ajudar com a renda
em casa. É incontestável que nas favelas é alta a taxa de desempregos e, esta falta
de empregos cumulada com a necessidade de ajudar a família, faz com que o
mercado do tráfico de drogas, que é exercido nos morros das áreas populacionais
carentes, seja chamativo e de fácil acesso.
Sobre o assunto, discorre Pero (2005):
Um outro fato marcante é que a taxa de desemprego entre moradores das
favelas é de 20%, sendo significativamente maior do que para os não
moradores (15%). Esse resultado sugere a existência de algum efeito
discriminatório no emprego de trabalhadores que moram em favelas, com
365
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
um aspecto ainda mais preocupante se considerarmos o fato de que a
maior diferença entre as taxas de desemprego de moradores e não
moradores em favelas está entre os chefes de família. (PERO, 2005, p. 12)
Nas favelas, normalmente há uma alta taxa de criminalidade, que é
corroborada pela falta de estrutura e falta de saneamento básico, juntamente com a
falta de ensino público. Como característica essencial destas áreas, tem-se a
concentração de alta taxa de pobreza aliada com a desestruturação urbana gerada
pela falta de planejamento.
Explana Alba Zaluar (1999):
A violência estrutural passa a ser distinguida das outras formas de violência:
a institucional, a doméstica, a interpessoal. A dificuldade principal desta
abordagem é que violência torna-se um sinônimo de desigualdade,
exploração, dominação, exclusão, segregação e outros males usualmente
associados à pobreza ou a discriminação de cor e de gênero. Não oferece,
pois meios para pensar aquelas ações caracterizadas pelo excesso ou
descontrole no uso da força física (ou dos seus inúmeros instrumentos) nas
interações sociais, passíveis de controle democrático. (ZALUAR, 1999).
Além disto, é grande a preocupação com as crianças, que muitas vezes ficam
aos cuidados dos irmãos mais velhos ou de vizinhos quando seus pais ou
responsáveis saem para trabalhar, não tendo a devida atenção exigida e nem
acesso aos recursos necessários. Importante e necessário é o desenvolvimento de
políticas púbicas visando à criação de creches para que essas crianças não fiquem
a mercê vagando pelas ruas enquanto seus pais trabalham, devendo estas creches
ser estruturadas com profissionais qualificados e recursos necessários.
O Estado deve criar políticas institucionais de investimento nas áreas
carentes, visando principalmente à criação de escolas para os jovens, capaz de
oferecer estudo digno aos moradores das favelas, para que estes consigam ter uma
perspectiva de futuro longe da criminalidade.
Um ideal de escola pública seria a criação de escolas com turnos em período
integral, método frequentemente usado em outros países, onde durante um turno os
alunos teriam conteúdo escolar curricular e no contra turno praticariam esportes do
mais diversos e aulas com cursos técnicos visando à profissionalização.
366
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Nestas escolas em turno integral, o foco não seria só o conteúdo didático,
como também haveria ampla preocupação com a prática de esportes visando
inclusive à saúde e bem estar dos jovens como também e o aprendizado em cursos
profissionalizantes.
Ainda, sobre a matéria, leciona Cancian (2010):
Os dados são da última pesquisa realizada em colégios da rede pública
pelo Ministério da Educação, em parceria com universidades federais. Em
Curitiba, 36 escolas públicas funcionam nesse sistema – são os centros de
educação integral. Na rede privada de ensino, há pelo menos mais três que
aplicam essa mesma proposta – e o número só tende a aumentar. [...] Na
educação infantil, esse procedimento já é bastante usual entre as escolas. A
continuidade no ensino fundamental se mostra como uma necessidade de
pais que trabalham em ambos os períodos e não têm com quem deixar os
filhos em casa. (CANCIAN, 2010).
Quando se pensa na escolarização das crianças e adolescentes, tanto
quando se fala em creches ou escolas públicas de qualidade, tem-se como
consequência direta a diminuição de tempo ocioso na vida dos jovens e o
consequente afastamento das ruas, mudando o foco para a educação.
Dificilmente um jovem focado na escola, com hora de almoço, lanche e lazer
recreativo vai adentrar na criminalidade. Deve-se investir nos jovens para que o
resultado tenha reflexo quando adultos, melhorando o mercado de trabalho com
profissionais qualificados e melhor preparados.
O primeiro passo para começar a romper os paradigmas criados pela
sociedade deve ter como principal aliado e colaborador o Estado que deve criar
políticas públicas que visem alterar esse pensamento retro de que, quem nasce na
favela está destinado a ingressar no mundo do crime. A criação de escolas de
qualidade terá como consequência direta pessoas melhor instruídas, o que abaixa
relativamente o índice de criminalidade.
Outra medida indiscutivelmente necessária e que deve ser analisada com
ampla atenção é a necessidade de melhor distribuição de recursos, principalmente
no que concerne a saneamento básico nas áreas populacionais carentes, pois o
Estado ao não abranger determinadas áreas com recursos mínimos de saúde e
higiene, afronta diretamente os princípios básicos que preveem o mínimo necessário
para preservar a dignidade da pessoa humana.
367
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Outro fato que aumenta a criminalidade nas áreas pobres é a globalização
dos produtos, visto que no século XXI vê-se que o consumismo se transformou
frequentemente em um vício tido pelas pessoas. Esse consumismo tende a afetar
principalmente os jovens, que estão em fase de descobrir e moldar seu caráter e,
nessa etapa são amplamente influenciados pelos amigos, colegas e pelo “status”
que determinado objeto tem perante os outros.
Ora, ainda que o consumismo não possa ser usado como “desculpa” ou
motivo para o cometimento do ilícito penal, é equivocado pensar que um jovem que
está fora da escola, com baixa escolaridade, sozinho em casa devido ao trabalho
dos pais e que busca se adequar um grupo não irá à busca do que o faça se sentir
integrado ao grupo, motivo pelo qual muitas vezes são levados ao cometimento de
delitos, exigidos pelos “amigos” como prova de que aquele sujeito merece fazer
parte de determinado conjunto.
As pessoas sentem a necessidade de se encaixar em grupos, estabelecer
vínculos, sendo que os jovens sentem essa necessidade aflorada, sendo essencial
buscar um padrão, um exemplo a ser seguido. Quando o jovem está na escola, os
vínculos criados lá dentro geralmente não estão relacionados à criminalidade, sendo
que quando o adolescente não está estudando e como consequência possui muito
tempo ocioso, converte esta necessidade de se encaixar em um grupo para o que
está ao seu alcance e, indiscutível é que as favelas e “morros” estão sendo chefiado
pelos traficantes de drogas, motivo pelo qual os jovens tornam-se alvos
interessantes para os chefes de milícias para ingressarem na criminalidade.
A despeito disso, Vergara (2002) discorre:
É bom lembrar que a maior parte da criminalidade gerada em meio à
pobreza tem como vítimas os próprios pobres, que ainda vivem o drama de
não ter a quem recorrer, visto que, em muitos bairros de baixa renda, a
presença da polícia e de serviços de saúde é muito menor. Isso é
verdadeiro especialmente em relação aos crimes violentos, enquanto os
crimes contra o patrimônio, guiados muito mais pela oportunidade, ocorrem
nas regiões mais ricas das cidades, onde há patrimônio para ser subtraído.
[...] Há muita divergência sobre a causa dessa correlação. Argumenta-se
que a adolescência é uma idade em que: 1) as influências de amigos e o
desejo de amizade são especialmente forte; 2) há necessidade crescente
de dinheiro mas só existem subempregos à disposição; 3) há necessidade
de afirmação de valores individuais, em contraposição aos aceitos pela
sociedade. (VERGARA, 2002).
368
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
O Estado não pode ignorar o problema latente que envolve a violência gerada
pela criminalidade e pela exclusão social, sendo que diversos estudos apontam que,
os homicídios geralmente envolvem homens com idade mediana entre 15 e 24 anos,
pobres e moradores da favela, sendo que o principal motivo é para que os chefes do
tráfico, estes jovens são facilmente descartados.
Ainda, conforme ilustrado pela autora Alba Zaluar (1994):
Constata-se, também, que essas mortes violentas estão atingindo
principalmente homens jovens entre 14 e 29 anos, na proporção média de 8
homens para cada mulher em todo Brasil. [...] É o quadro de um país em
guerra. (ZALUAR, 1994, p. 214)
Outro importante fator que envolve a criminalidade é o uso de drogas ilícitas,
sendo que grande parte dos roubos e furtos são realizados com intuito de conseguir
dinheiro para saldar dívidas feitas com traficantes, pois estes não perdoam e,
aqueles que não conseguem quitar suas dívidas, geralmente pagam o saldo devedor
com a própria vida.
Ainda, conforme estudo de Alba Zaluar (1994):
Assim, o reducionismo serviu como álibi para que continuassem a agir os
responsáveis pelas atividades claramente ilegais e discriminatória contra
aqueles que, estes sim, o Estado deveria defender e tratar em centros de
saúde: os jovens, especialmente os mais pobres, que continuam sendo
extorquidos e criminalizados pelo uso de drogas e que, por isso, acabam
nas mãos de traficantes e assaltantes. Alguns destes jovens foram também
as vítimas de chacinas, as quais, quando esclarecidas, exibiram seus reais
motivos: a cobrança de “dívidas” [...].(ZALUAR, 1994, p. 215)
Muitos dos sujeitos de classe baixa que cometem o ilícito penal e são detidos
pela polícia, ao ingressar no sistema penitenciário tem o seu primeiro contato com
certos recursos estatais, tais como água encanada, sistema de esgoto, entre outros.
Além disto, o Estado tem como grande falha a defesa insuficiente prestada pelos
advogados da defensoria pública as pessoas que não tem condições financeiras
para arcar com um advogado particular.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
369
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Conclui-se que a criação de estereótipos é uma herança presente em nossa
sociedade, que foi trazida desde a época da escravidão, perdurando até os dias de
hoje, sendo que pouco se alterou no modo de pensar, o que se traduz em uma
contínua segregação social.
Deve-se ressaltar que a segregação social é uma realidade latente no Brasil,
atingindo não apenas classes baixas, como também etnias, ideologias, entre outros
supracitados nesta monografia.
Não obstante a precariedade do sistema carcerário algumas vezes os
detentos sofrem o abandono familiar, razão pela qual muitas vezes perdem a
perspectiva de futuro.
Quando libertos, os ex-detentos tem grande dificuldade de retornar a vida em
sociedade, visto que encontram barreiras fundadas no preconceito social.
Ademais, esse preconceito atinge-os principalmente durante a busca por um
emprego no mercado de trabalho, dificilmente conseguindo a oportunidade de um
trabalho digno ou que tenha efetiva possibilidade de ascensão social.
370
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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371
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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372
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
APLICABILIDADE DA LEI PENAL BRASILEIRA AOS CRIMES
CIBERNÉTICOS: UMA VISÃO CRÍTICA
APPLICABILITY OF THE BRAZILIAN CRIMINAL LAW TO THE
CYBER CRIMES: A CRITICAL OVERVIEW
Mário Luiz Ramidoff
Graduado pelo Curso de Graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1991). Mestre
pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002).
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná (2007). Pós-doutorado
pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2012).
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná. Professor Titular do Centro
Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Professor do Centro Universitário Internacional – UNINTER.
Luana Bruna Okamura
Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
373
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SUMÁRIO
1. Introdução – 2. Dos crimes cibernéticos – 2.1. Histórico – 2.2. Conceito e
Classificação – 2.3. Sujeitos – 2.4. Competência – 3. Dispositivos Legais Aplicáveis
e Projetos de Lei – 4. Responsabilidade dos Provedores – 5. Conclusão – 6.
Referências.
374
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
O presente artigo tem por escopo demonstrar o posicionamento do Direito Penal
brasileiro frente à evolução tecnológica dos meios de informação e comunicação,
utilizados para o cometimento de atos ilícitos. Para tanto, pesquisamos se os tipos
penais previstos no Código Penal e na legislação esparsa são suficientes para o
enquadramento e combate de infrações relacionadas ao ambiente virtual, que
podem ocasionar danos a bens jurídicos tutelados pelo Direito.
Depois,
descrevemos acerca dos agentes criminosos e fizemos uma análise da competência
para julgamento destes atos delituosos. E, diante das recentes legislações
específicas e dos projetos de lei existentes, pretende-se explanar acerca da
elaboração de um modelo capaz de suprir de forma efetiva os anseios da sociedade.
Destaque para a função primordial do Estado na tutela de garantias constitucionais
fundamentais, embora se observe que os operadores do Direito encontram
dificuldades em acompanhar os avanços tecnológicos.
PALAVRAS-CHAVE:
Direito
Penal
brasileiro,
crimes
cibernéticos,
avanços
tecnológicos.
375
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
This article has the purpose to show the position of the Brazilian Criminal Law front of
the cyber-crimes. For that, we researched if the Penal Code and the sparse laws are
enough for frame and combat the cyber-crimes, which may cause harm to properties
legally protected by law. After, we described about the virtual criminal and we made a
review of the competence for judge these crimes. Then, with the analysis of recent
specific laws, we presented the elaboration of a model able to effectively satisfy the
expectations of the society. Emphasis on the important role of the State in the
protection of constitutional guarantees, although, there is evidence that the law
operators have difficult to follow the technology advances.
KEY-WORDS: Brazilian Criminal Law; cyber-crimes; technology advances.
376
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
O avanço tecnológico associado à popularização da Internet tem contribuído
substancialmente para o desenvolvimento sociocultural, possibilitando a coleta e o
compartilhamento de dados e informações em larga escala a nível global. Porém, ao
mesmo
tempo,
usuários
com
vasto
conhecimento
técnico
aproveitam-se
indevidamente dos dispositivos eletrônicos e da Internet para a prática de diversos
atos ilícitos. Tais atos, até então, não restaram totalmente tipificadas em nosso
ordenamento, fazendo com que a ciência do Direito, sobretudo o Penal, tenha de
assumir uma posição.
Diante fato, infere-se que com a crescente utilização do meio virtual, a
criminalidade e os crimes tornaram-se ilimitáveis. Sendo que, na maioria das vezes,
estes delitos ficam impunes: pela falta de dados imprescindíveis à investigação
policial; pela falta de políticas de segurança e de orientação da vítima; pelas
“brechas” da lei; pela dificuldade em se identificar o delinquente; dentre outros
fatores, perdurando assim uma sensação de impunidade. Nesse contexto, o agente
criminoso atuante no âmbito virtual fica cada vez mais fortalecido e disposto a
aprimorar seus conhecimentos e, por conseguinte, seu comportamento criminoso.
Portanto, na medida em que a sociedade evolui, com o advento de novas
tecnologias, em um mundo globalizado e sem fronteiras, o Direito deve acompanhála. Para tanto, os operadores do Direito devem reformular, na medida do possível,
tipos penais previstos no Código Penal e na legislação esparsa, a fim de abarcar
esses atos lesivos, e criar novos tipos penais capazes de coibir as infrações
(prevenção), além de resguardar os bens jurídicos tutelados pelo ordenamento
jurídico. Ademais, é preciso, também, que sejam criados mecanismos de controle
que garantam a identificação do autor dessas práticas.
Assim, diante da difusão dos crimes cibernéticos, o Estado deve prever os
mecanismos com os quais irá prevenir e reprimir tais práticas ilícitas seja em âmbito
civil ou penal, além de definir órgãos e setores especializados na investigação
criminal e no combate a essa “nova” criminalidade.
Um dos maiores problemas verificados, ao se voltar para eles, é a questão da
competência para julgamento da autoria do crime, já que a Internet é uma rede
377
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
mundial, no qual, a execução, a consumação e o resultado de um crime podem
ocorrer em diferentes países.
2 DOS CRIMES CIBERNÉTICOS
2.1 HISTÓRICO
Devido a grande variedade de práticas delituosas no âmbito virtual e do
caráter transnacional da Internet, é difícil relatar, de modo preciso, quando houve a
primeira ocorrência de um crime cibernético.
Ivette Senise Ferreira afirma que os crimes virtuais iniciaram-se na década de
60, mas que o exame criminológico dessas condutas só foi realizado a partir da
década seguinte. Nesse sentido:
Ulrich Sieber, professor da Universidade de Würzburg e grande especialista
no assunto, afirma que o surgimento dessa espécie de criminalidade
remonta à década de 1960, época em que aparecem na imprensa e na
literatura científica os primeiros casos do uso do computador para a prática
de delitos, constituídos, sobretudo por manipulações, sabotagens,
espionagem e uso abusivo de computadores e sistemas, denunciados,
sobretudo em matérias jornalísticas. Somente na década seguinte é que
iriam iniciar-se os estudos sistemáticos e científicos sobre essa matéria,
com o emprego de métodos criminológicos, analisando-se um limitado
número de delitos informáticos que haviam sido denunciados, entre os quais
alguns casos de grande repercussão na Europa por envolverem empresas
de renome mundial, sabendo-se, porém, da existência de uma grande cifra
negra não considerada nas estatísticas (Ferreira, 2005, p.239).
Segundo Sandro D’Amato Nogueira, foi no ano de 1997 que ocorreu o
primeiro caso esclarecido de crime cibernético no Brasil, no qual um jornalista
passou a receber centenas de e-mails de cunho erótico-sexual, juntamente com
mensagens de ameaça a sua integridade física. O crime passou a ser investigado e
conseguiu-se chegar ao autor das mensagens, um analista de sistemas que foi
condenado a prestar serviços junto a Academia de Polícia Civil, dando aulas de
informática para policiais. Contudo, cabe ressaltar que, antes mesmo da ocorrência
deste fato, já houve outros casos de crimes virtuais, no entanto, foram situações não
investigadas e/ou solucionadas.
378
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
2.2 CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO
Crimes de informática, crimes de computador, crimes virtuais, crimes
telemáticos, crimes cibernéticos, delitos informáticos. Estas são apenas algumas das
designações aos delitos que atingem dispositivos informáticos, a própria Internet ou
aqueles praticados por essas vias. Até hoje, não há um consenso doutrinário quanto
ao nomen juris destes delitos.
Além das diversas nomenclaturas, tanto o conceito quanto a classificação dos
crimes de informática tampouco são uniformes. Para Carla Rodrigues Araújo de
Castro:
Crime de informática é aquele praticado contra o sistema de informática ou
através deste, compreendendo os crimes praticados contra o computador e
seus acessórios e os perpetrados através do computador. Inclui-se nesse
conceito os delitos praticados através da Internet, pois pressuposto para
acessar a rede é a utilização de um computador (CASTRO, 2003, p. 9).
Diante da conceituação supracitada, depreende-se que os crimes de
informática podem ser distinguidos em duas categorias. Esta é a classificação mais
aceita pela doutrina brasileira, propugnada por Hervé Croze e Yves Bismuth:
a) os crimes cometidos contra um sistema de informática, independentemente
da motivação do agente. São os crimes de informática propriamente ditos;
b) os crimes cometidos contra outros bens jurídicos, por meio de um sistema
de informática, isto é, tecnologias da informação e comunicação utilizadas para a
prática de crimes comuns, ex.: difamação e discriminação racial. Não há
essencialidade do meio eletrônico para a concretização do ato ilícito, e os bens já
são protegidos por outras normas penais incriminadoras.
No mesmo sentido, Damásio classifica os crimes em puros (próprios) e
impuros (impróprios): puros ou próprios como aqueles praticados por meio de um
sistema eletrônico, no qual a realização e a consumação do crime também se
operam no ambiente virtual. Sendo, neste caso, o sistema computacional
(segurança dos sistemas, titularidade das informações e integridade dos dados, da
máquina e periféricos) o objeto jurídico tutelado. E, por sua vez, os impuros ou
impróprios como aqueles em que o agente utiliza o sistema de informática como
379
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ferramenta para a prática de condutas lesivas a bens diversos dos eletrônicos, por
exemplo: a pedofilia.
Todavia, como dito anteriormente, existe mais de uma classificação para os
crimes de informática. Tomando como exemplo, segundo Túlio Vianna, os crimes
podem ser impróprios, próprios, mistos e mediatos, diferentemente de Damásio que
os classifica somente em puros e impuros. Para Vianna, os crimes de informática
são:
1) impróprios – quando o computador é usado como instrumento para a
execução do crime, porém não há ofensa ao bem jurídico inviolabilidade dos dados
ou informações. Exemplo: crimes contra a honra cometidos por meio da Internet;
2) próprios – quando o bem jurídico protegido pela norma penal é a
inviolabilidade dos dados ou informações. Exemplo: artigo 313-A, do Código Penal,
acrescentado pela Lei nº. 9.983/2000 (inserção de dados falsos em sistema de
informações);
3) mistos – quando há crimes complexos em que a norma busca, além da
proteção da inviolabilidade dos dados, a tutela de bens jurídicos de natureza diversa.
São delitos derivados do acesso não autorizado a sistemas computacionais;
4) mediatos ou indiretos – quando o delito-fim não informático herdou essa
característica do delito-meio informático realizado para poder ser consumado.
Exemplo: o acesso não autorizado a um sistema computacional bancário para a
realização de um furto. Neste caso, tendo em vista que a intenção criminosa é
alcançada pelo cometimento de mais de um tipo penal, o agente somente será
punido pelo furto e não pelo crime-meio informático, em razão da consumação
daquele (crime-fim). Assim sendo, o crime-fim absorve o crime-meio (princípio da
consunção).
2.3 SUJEITOS
Muitas vezes, por não haver a necessidade de nenhuma forma de
identificação ou qualquer tipo de controle no acesso a Internet, qualquer cidadão
pode deliberadamente acessá-la usando pseudônimos (nome fictício). Esse fato
acaba evidenciando uma das maiores falhas do ambiente virtual que é a falta de
identificação de usuários, seja pelo seu RG ou CPF.
380
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Para que o usuário possa ser localizado, o provedor lhe atribui um número de
protocolo de Internet (IP – Irternet Protocol) exclusivo, composto por quatro séries
numéricas de 0 a 255, pelo período de conexão.
É através desse protocolo único para cada conexão, que se pode detectar de
onde o usuário esta acessando, podendo identificar o provedor e a localidade
aproximada em que foi realizada a conexão.
Para se aplicar a devida sanção penal, é crucial a imputação objetiva pela
prática do evento criminoso ao autor, bem como a sua comprovação no mundo
fático. Assim, deve-se ter fixo um sujeito infrator, vez que o direito penal não pode
alcançar pessoas meramente abstratas, virtuais, e muito menos, aplicar a sanção
penal àquele que pela sua conduta não concorreu para a caracterização do evento
criminoso.
Surgiu, então, a necessidade de se traçar um perfil denominando grupos que
praticam estes delitos. Nesse sentido, Tourinho Filho (1998, p. 34) afirma que: "O
problema da qualificação do acusado é de suma importância, porquanto, em se
tratando de qualidade personalíssima, não poderá ser atribuída a outra pessoa que
não a verdadeira culpada.”. Logo, a pretensão punitiva deve recair sobre o sujeito
que realmente cometeu o crime.
Atualmente, qualquer pessoa pode figurar como agente ativo de um crime
cibernético, haja vista a facilidade no acesso a informações e a prática do
anonimato. Além disso, juntamente com a sensação de impunidade frente ao mundo
virtual, é cada vez mais frequente que usuários comuns cometam atos ilícitos.
Diante de todo o exposto, cabe diferenciar a figura do hacker e do cracker.
Apesar de grande parte das pessoas acreditarem que o hacker é o criminoso da
informática, esta não é a nomenclatura mais adequada. Tanto doutrinadores, bem
como profissionais ligados à informática, preferem chamá-lo de cracker.
Em geral, os hackers e os crackers possuem vasto conhecimento sobre
informática e sistemas operacionais, porém, a principal distinção é a finalidade de
suas práticas, na medida em que os primeiros são pessoas que realizam atividades
positivas, não criminosas. Por isso, os hackers muitas vezes são contratados por
empresas para o desenvolvimento de tecnologias de segurança, desenvolvendo
antivírus, sistemas de bloqueio a acesso de dados não permitidos, dentre outras
381
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
funções; de modo a procurar por eventuais falhas que comprometam dados sigilosos
ou o próprio funcionamento do sistema e corrigindo-as.
Nesse sentido, Sandro D’Amato Nogueira traz o conceito de hacker:
HACKER – Este indivíduo em geral domina a informática e é muito
inteligente, adora invadir sites, mas na maioria das vezes não com a
finalidade de cometer crimes, costumam se desafiar entre si, para ver que
consegue invadir tal sistema ou página na internet, isto apenas para mostrar
como estamos vulneráveis no mundo virtual. Várias empresas estão
contratando há tempos os Hacker’s para proteção de seus sistemas, banco
de
dados,
seus
segredos
profissionais,
fraudes
eletrônicas,
etc.(NOGUEIRA, 2008, p. 61).
Outro termo comumente associado aos hackers é o White Hat, para Marcos
Flávio Araújo Assunção, seriam justamente os hackers do bem (= hackers dos
chapéus brancos), pois não causam danos e, geralmente, agem por diversão ou
desafio. Entretanto, com base no conceito acima transcrito, o fato dos hackers não
procurarem causar danos, não significa que não podem cometer crimes.
Em relação ao cracker, este sim é considerado o criminoso do mundo virtual,
que faz uso de seu conhecimento apenas para benefício próprio ou destruição. Em
outras palavras, ao invés de desenvolver medidas para correção de uma falha, que
torna o sistema vulnerável, os crackers criam códigos para explorar essa falha e
conseguir destruir determinado sistema ou obter informações pessoais, dados
sigilosos, senhas, etc. Logo, pode-se dizer que a motivação dos crackers é
criminosa, agindo normalmente premeditadamente com objetivo criminoso de obter
vantagens ilícitas.
Ao contrário do hacker, o cracker também pode ser denominado como Black
Hat, conforme aponta Marcos Flávio Araújo Assunção (2008, p.13): “Hacker BlackHat: “Hacker do Mal” ou “chapéu negro”. Esse, sim, usa seus conhecimentos para
roubar senhas, documentos, causar danos ou mesmo realizar espionagem industrial.
Geralmente tem seus alvos bem definidos [...].”.
Os criminosos virtuais ainda podem ser subdivididos conforme a área de
atuação ou nível de conhecimento. Vejamos os seguintes exemplos:
Carder: são pessoas que utilizam informações bancárias como números de
cartões de crédito, cartões de conta corrente ou poupança, ou contas em sites de
382
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
movimentações bancárias, para beneficio próprio como comprar produtos, fazer
transferência para contas de laranjas, entre outros atos ilícitos.
Defacer:
são
os
indivíduos
conhecidos
como
pichadores
virtuais,
especializados em alterar a forma das páginas de sites na Internet. Eles utilizam a
técnica Deface para pichar sites, explorando vulnerabilidades para conseguir acesso
administrativo a um site para alterar a página inicial do mesmo, por uma que ele
(invasor) criou. Geralmente, a página criada pelo invasor serve como um meio ilícito
de protesto contra o site ou ideologia do site. Existem várias técnicas de Deface,
entre elas estão SQL Injection e Cross Site Scripting (XSS). Basicamente, o SQL
Injection permite inserir dados no site e/ou apagar as tabelas do banco de dados;
enquanto Cross Site Scripting (XSS) é uma técnica que tem por objetivo explorar
códigos de Javascript (linguagem de programação) e ler cookies (grupo de dados
trocados entre o navegador e o servidor de páginas) para uma possível invasão.
Phreaker: é o criminoso virtual especializado em ações voltadas para os
sistemas de telecomunicações (telefonia móvel e fixa). Os Phreakers utilizam
técnicas para burlar os sistemas de segurança das companhias telefônicas, muitas
vezes para fazer ligações gratuitas ou conseguir créditos.
Lammer: diferente do hacker e do cracker, o lammer não possui bom
conhecimento em informática, mas tão-somente um conhecimento limitado, e que
procura tutoriais na Internet que ensinam a fazer invasões para a realização de
ações simples.
Por fim, pode-se dizer que há a figura do Script Kiddie. Para experts em
informática, diferente do noob (=newbie) que pode ser caracterizado como aprendiz
de hackers, o Script Kiddie é o aprendiz de crackers. Normalmente são pessoas que
ainda não tem domínio de técnicas para prejudicar dispositivos informáticos e obter
benefícios próprios. Trata-se de crackers inexperientes.
Quanto ao sujeito passivo dos crimes cibernéticos, podem ser pessoas físicas
ou jurídicas (públicas ou privadas), titulares do bem jurídico tutelado, que utilizam
qualquer tecnologia informática (computador, smartphone, pager, caixa eletrônica,
tablete, etc.), estejam conectados ou não a Internet. Conforme Sandro D’Amato
Nogueira (2008, p. 63): “Qualquer um de nós pode ser vítima, todos nós que temos
acesso à rede mundial de computadores estamos arriscados a sermos vítimas dos
383
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
delitos informáticos”. Logo, qualquer pessoa está vulnerável a ser lesado, isto é, está
à mercê de sofrer as consequências da ação do criminoso virtual.
Sempre haverá o sujeito passivo, porém nem sempre este saberá que está sendo
vítima de um crime virtual, até que a ação criminosa tome maiores proporções.
2.4 COMPETÊNCIA
A grande dificuldade é a definição da competência para processo e
julgamento dos crimes cibernéticos.
Em relação ao local do crime, o Brasil adota a teoria da ubiquidade, de acordo
com o que prescreve o artigo 6º do Código Penal, isto é, o local onde ocorreu a ação
ou omissão, bem como onde se produziu ou deveria produzir o resultado. Neste
caso, a lei penal de um Estado só impera dentro dos seus limites territoriais e o lugar
do crime é tanto aquele em que se inicia a execução, quanto aquele em que houver
o resultado. Logo, o crime de informática iniciado ou com resultados verificados no
Brasil será apreciado conforme a legislação brasileira.
É importante destacar o disposto no artigo 72 do Código de Processo Penal
brasileiro que estabelece a competência pelo domicílio ou residência do réu no caso
de desconhecimento do lugar da infração. E, ainda, o artigo subsequente (artigo 73,
do CPP) que prevê uma exceção, no qual, tratando-se de ação exclusivamente
privada, o querelante poderá optar pelo foro de domicílio/residência do réu ou pelo
local da infração.
No entanto, a maior dificuldade em se estabelecer a competência
jurisdicional deve-se ao caráter transnacional (sem fronteiras) da Internet, sua
velocidade e mobilidade, podendo haver conflitos de jurisdição como, por exemplo:
determinado autor do crime esteja em um país e a vítima em outro; o que pode ser
crime em um lugar pode não ser em outro; com o uso da Internet pode-se obter
acesso a um sistema num determinando país, manipular dados em outro e obter
resultados em um terceiro país; dentre outras hipóteses.
Nossos dispositivos legais mandam aplicar a lei brasileira aos crimes
cometidos no território nacional, ou seja, no âmbito de validade espacial do
ordenamento jurídico do Brasil. Neste sentido, conforme o Manual Prático de
Investigação do Ministério Público Federal:
384
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Nos termos do artigo 109, inciso IV, da Constituição brasileira, compete aos
juízes federais processar e julgar os crimes cometidos em detrimento de
bens, serviços ou interesses da União, suas entidades autárquicas ou
empresas públicas. Assim, é competência da Justiça Federal julgar os
crimes eletrônicos praticados contra os entes da Administração Federal
indicados nesse inciso.
[...]
Quanto à hipótese prevista no inciso V do artigo 109 da Constituição, ou
seja, os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando
iniciada a execução no país o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no
estrangeiro, vale lembrar que as condutas tipificadas no artigo 241 do
Estatuto da Criança e do Adolescente e também o crime de racismo
(tipificado na Lei 7.716/89) tem previsão em convenções internacionais de
direitos humanos. Como a consumação delitiva normalmente ultrapassa as
fronteiras nacionais quando os dois crimes são praticados através da
internet, a competência para julgá-los pertence à Justiça Federal.
A competência da Justiça Federal para processar e julgar a divulgação na
Internet de material pornográfico envolvendo crianças e adolescentes já foi
reconhecida por quatro Tribunais Regionais Federais (1ª, 3ª, 4ª e 5ª
Regiões) brasileiros.
Outros delitos não abrangidos pelas hipóteses acima mencionadas – por
exemplo, os crimes contra honra de particular, praticados através da rede –
deverão ser investigados e processados no âmbito das Justiças Estaduais,
já que o simples fato do crime ter sido cometido por meio da internet não é
suficiente para justificar a competência da Justiça Federal (MPF, 2006).
Logo, em razão da matéria, a Internet, em tese, estaria sujeita a
regulamentação da ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações), e, por
conseguinte, a competência seria da União, desde que fosse considerado um
serviço de telecomunicação. Tal fato teria amparo legal na Constituição Federal no
artigo 21, inciso XI, que prevê a competência da União para explorar, diretamente ou
mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações,
nos termos da lei. No entanto, ocorre que a União é competente para amparar o
serviço público propriamente dito (a rede), mas não prevê regulamentação para
alguns crimes, não podendo, portando, considerar no caso dos crimes virtuais a
competência de tal órgão. Cabe, portanto, analisar o contexto de cada caso
individualmente.
Em suma, de acordo com o trecho do Manual anteriormente citado, a Justiça
Federal tem competência para processar e julgar, nos termos do artigo 109, incisos
IV e V, da Constituição Federal (CF):
- os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada
a execução no país, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou
reciprocamente;
385
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
- os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens,
serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas
públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da justiça militar e
da justiça eleitoral.
Vale ressaltar que, em relação aos crimes de pornografia infantil e racismo, o
Brasil é signatário da Convenção da ONU sobre os direitos da criança (1989) e da
Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação
racial (1968).
Assim, conforme entendimento já consolidado, além dos casos que atentem contra a
União, suas autarquias ou empresas públicas; havendo a previsão em tratado
internacional e o caráter transnacional do crime cibernético, a competência
jurisdicional será da Justiça Federal (precedentes do STF, STJ e TRF’s da 1ª, 3ª, 4ª
e 5ª Regiões), cabendo à Justiça Estadual a competência jurisdicional nos demais
casos.
3 DISPOSITIVOS LEGAIS APLICÁVEIS E PROJETOS DE LEI
A legislação nacional já prevê alguns tipos penais, como é o caso do artigo 72
da Lei nº. 9.504/97, que trata dos três tipos penais eletrônicos de natureza eleitoral:
Art. 72. Constituem crimes, puníveis com reclusão, de cinco a dez anos:
I - obter acesso a sistema de tratamento automático de dados usado pelo
serviço eleitoral, a fim de alterar a apuração ou a contagem de votos;
II - desenvolver ou introduzir comando, instrução, ou programa de
computador capaz de destruir, apagar, eliminar, alterar, gravar ou transmitir
dado, instrução ou programa ou provocar qualquer outro resultado diverso
do esperado em sistema de tratamento automático de dados usados pelo
serviço eleitoral;
III - causar, propositadamente, dano físico ao equipamento usado na
votação ou na totalização de votos ou a suas partes (BRASIL, Lei nº 9.504,
de 30 de setembro de 1997).
Em relação aos direitos autorais, estes estão garantidos pela Constituição da
República Federativa do Brasil. Tanto o artigo 12, caput, §§ 1º e 2º, da Lei Federal
nº. 9.609/98, quanto o artigo 184, do Código Penal brasileiro tipificam o crime de
violação de direitos autorais, sendo que a referida lei federal prevê, especificamente,
sanção para quem violar direitos de autor de programa de computador.
386
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Ainda, para determinados crimes comuns (ex.: calúnia, estelionato)
envolvendo dispositivos informáticos, aplica-se os tipos penais já descritos no
Código Penal de 1940. Vejamos os seguintes exemplos:
Crimes contra a honra: subdividem-se em calúnia, difamação e injúria. Eles
estão previstos, respectivamente, nos artigos 138, 139 e 140, do Código Penal.
O CP apresenta o conceito de crime de calúnia, dizendo ser o fato de atribuir
a outrem, falsamente a prática de um fato definido como crime. Julio Fabbrini
Mirabete traz a seguinte explicação acerca deste tipo penal:
Pratica o crime quem imputa, atribui a alguém, a prática de crime, ou seja, é
afirmar, falsamente, que o sujeito passivo praticou determinado delito. É
necessário, portanto, para a configuração da calúnia, que a imputação verse
sobre fato determinado, concreto, específico, embora não se exija que o
sujeito ativo descreva suas circunstâncias, suas minúcias, seus
pormenores. Trata-se de crime de ação livre que pode ser cometido por
meio da palavra escrita ou oral, por gestos e até meios simbólicos. Pode ela
ser explícita (inequívoca) ou implícita (equívoca) ou reflexa (atingindo
também terceiro). A imputação da prática de uma contravenção não
constitui calúnia, mas pode caracterizar o delito da difamação (MIRABETE,
2003, p. 687).
Para Damásio, o crime de calúnia constitui:
Crime formal, porque a definição legal descreve o comportamento e o
resultado visado pelo sujeito, mas não exige sua produção para que exista
crime, não é necessário que o sujeito consiga obter o resultado visado, que
é o dano a honra objetiva do agente (JESUS, 2007, p. 219).
Com base nas conceituações supracitadas, o crime de calúnia tutela a honra
objetiva do indivíduo e para a sua consumação é necessário que terceira pessoa
tome conhecimento do fato.
Em relação ao crime de difamação, Damásio explica que:
Difere da calúnia e da injúria, enquanto a calúnia
definido como crime, na difamação o fato é
reputação do ofendido. Além disso, o tipo de
normativo da falsidade da imputação, o que é
difamação (JESUS, 2007, p. 225).
existe imputação de fato
meramente ofensivo a
calúnia exige elemento
irrelevante no delito da
387
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
O artigo 139, do CP estabelece este crime como sendo o fato de atribuir a
outro a prática de conduta ofensiva à sua reputação. Neste caso, há a tutela da
honra objetiva, e o crime se consuma quando terceiro toma conhecimento do fato,
visto que a difamação fere a moral da vítima, com a intenção de torná-la passível de
descrédito na opinião pública.
E, por fim, Julio Fabbrini Mirabete dispõe acerca do crime de injúria descrito
no artigo 140, do CP:
A conduta típica é ofender a honra subjetiva do sujeito passivo, atingindo
seus atributos morais (dignidade) ou físicos, intelectuais, sociais (decoro).
Não há na injúria imputação de fatos precisos e determinados, como na
calúnia e difamação, mas apenas de fatos genéricos desonrosos ou de
qualidades negativas da vítima, como menosprezo, depreciação,
etc.(MIRABETE, 2003, p. 692).
Neste tipo penal, caberá ao julgador analisar cada caso concreto, visto que é
difícil saber se realmente houve a ofensa, isto é, se a real intenção do agente era
ofender.
A injúria fere a honra subjetiva, que constitui o sentimento próprio do cidadão.
Neste crime, há a imputação de qualidade negativa ao sujeito passivo, abatendo seu
ânimo, e ofendendo verbalmente, fisicamente ou por escrito, a dignidade ou o
decora da vítima.
Torna-se muito complexa a distinção entre brincadeira e real imputação de
injúria, podendo citar, como exemplo, a pessoa que ao ver uma foto da amiga em
um site da Internet faz um comentário sobre seus atributos físicos, sem a intenção
de injuriar.
A pedofilia é outro crime comum que pode estar associado ao uso de
dispositivos informáticos. É frequente a ocorrência deste crime, e é motivo de
comoção social, porém não é raro encontrar na Internet, imagens ou vídeos com
conteúdos pornográficos envolvendo menores. Diante disso, a pedofilia é um dos
poucos crimes que tem sua atuação no ambiente virtual tipificada, através do artigo
241, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90), que dispõe:
388
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Art. 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que
contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou
adolescente:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou
divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou
telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo
explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias,
cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo;
II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às
fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo (BRASIL,
Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990).
A referida lei sofreu algumas alterações no ano de 2008, visando proporcionar
maior combate a pedofilia, vez que, por exemplo, antes de sua modificação, não
havia punição para pessoas que mandavam e-mails contendo arquivos envolvendo
sexo ou conteúdo pornográfico com crianças e/ou adolescentes.
Além dos crimes supracitados, também, pode-se fazer referência aos crimes
de estelionato (artigo 171, do CP), de dano ao patrimônio (artigo 163, do CP), de
sabotagem informática (artigo 202, do CP), dentre outros.
No Brasil, há, ainda, diversos projetos de lei que estão em trâmite perante no
Congresso Nacional. Como exemplo, podemos citar o PLC (projeto de lei da
Câmara) 89/2003, de autoria do Deputado Luiz Piauhylino, que busca alterar o
Decreto-Lei nº. 2.848/40 – Código Penal e a Lei nº. 9296/96, dispondo sobre os
crimes cometidos no campo da informática e suas penalidades, propondo, ainda,
que o acesso de terceiros não autorizados a informações privadas mantidas em
redes de computadores, dependerá de prévia autorização judicial.
Neste ano, entraram em vigor as Leis nº. 12.735/2012 e nº. 12.737/2012 que
tratam especificamente dos crimes virtuais. Ambas foram aprovadas pela Câmara
dos Deputados, pelo Senado e sancionadas pela presidente Dilma no ano passado.
A primeira diz respeito à Lei Azeredo (oriunda do PL 84/99) e a segunda, que foi
apelidada de Lei Carolina Dieckmann (oriunda do PL 2793/2011), tipifica alguns
crimes cibernéticos, como a invasão de dispositivos informáticos, clonagem de
cartões de crédito ou débito e a indisponibilização/perturbação de serviços
telemáticos.
389
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
As referidas leis só entraram em vigor no início do mês de abril deste ano
(02/04/2013). Dentre elas, a Lei “Carolina Dieckmann” foi a que causou maior
repercussão. Esta lei dispõe basicamente que, aquele que invadir dispositivo
informático alheio (computadores, tablets, notebooks, celulares, entre outros),
conectado ou não à Internet, alterar ou destruir dados/informações, criar programas
de violação de dados ou divulgar e negociar informações obtidas de forma ilícita, isto
é, sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo informático, poderá
ser punido com multa e até com pena privativa de liberdade. Também estabelece
que se o crime praticado com fins ilícitos for cometido contra o presidente da
República, do Supremo Tribunal Federal (STF), governadores, prefeitos, entre
outros cargos públicos, a pena poderá ser aumentada de um terço à metade. Ainda,
passou a ser crime interromper serviço telemático ou de informática de utilidade
pública, e o uso de dados de cartões de débito e crédito sem autorização do
proprietário também está previsto na lei, sendo equiparado à falsificação de
documento particular.
Para alguns doutrinadores e profissionais de segurança da informação,
alguns pontos da lei ainda ficaram em aberto, isto é, seus dispositivos são amplos,
podendo gerar uma dupla interpretação. Além disso, acreditam que as penas são
pouco inibidoras, não contribuindo de modo efetivo no combate ao crime cibernético
no Brasil, e permitindo o enquadramento destes atos em crimes de pequeno
potencial ofensivo. Embora, muitas vezes, o que acontece é que uma apropriação
indevida de dados pode ser mais prejudicial que um furto comum e, por isso, não
deveria ter pena mais baixa, por exemplo: casos de espionagem que podem levar à
concorrência desleal.
O artigo 2º da referida lei, é considerado polêmico, pois condiciona o crime à
violação indevida de mecanismo de segurança. Em sua redação, a infração é
definida como a invasão de dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede
de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o
fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações. Logo, tendo por base a
literalidade do dispositivo legal, a necessidade de haver a violação de um
mecanismo de segurança (ex.: códigos, senhas ou dados biométricos) pode tirar a
responsabilidade de quem cometeu o crime por falta de atenção da vítima. E, o
parágrafo primeiro deste mesmo artigo pode criminalizar profissionais da área de TI
390
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
(Tecnologia da Informação) que trabalham na busca de brechas de segurança em
sistemas, vez que sua redação estabelece punição para quem produz dispositivo ou
sistemas eletrônicos que permitem invadir dispositivos.
Diante das questões levantadas, deve-se esclarecer que a invasão, para ser
criminosa, deve se dar sem a autorização expressa ou tácita do titular dos dados ou
do dispositivo. Logo, o profissional que realiza teste de “intrusão” nos sistemas, em
tese, não pode ser punido, por não estarem reunidos todos os elementos do crime.
Porém, para isso, é recomendável que as empresas de segurança contratantes
adaptem seus contratos de serviços e pesquisa neste sentido, prevendo
expressamente a exclusão de eventual incidência criminosa nas atividades
desenvolvidas.
Outra questão polêmica acerca da lei que prevê os crimes cibernéticos é a
finalidade de “obter dados”. Para parte dos juristas, o simples acesso não seria
crime, só se falando em obtenção no sentido de adquirir cópia dos dados. Já para
outra corrente, o mero acesso a dados já agride o bem jurídico tutelado pelo Direito
Penal, e demonstra a intenção em obter dados, uma vez que já permite ao criminoso
virtual, em determinados casos, beneficiar-se com as informações obtidas.
Diante deste paradigma, é o Judiciário quem vai interpretar e julgar estas
questões, vez que o agente que invade determinado dispositivo informático, sem
autorização, para tão somente demonstrar a insegurança e cooperar para o
aprimoramento dos controles, teoricamente, não responderia pelo crime. Ou ainda, a
vítima que eventualmente forneça credenciais/dados de acesso ou até mesmo
ingresse voluntariamente em determinado sistema que libera o seu acesso, em tese,
não teria amparo legal, podendo o agente, diante do caso concreto, responder por
outros delitos do Código Penal, de acordo com a extensão do dano.
Apesar das críticas, a lei pode ser considerada benéfica, na medida em que
demonstra, de certo modo, que houve uma preocupação do legislativo com questões
relacionadas ao ambiente virtual, definindo normas que amparam os usuários das
redes. Entretanto, embora a nova lei seja considerada uma evolução, para
profissionais da área de Inteligência Tecnológica da Polícia Judiciária, ela não trouxe
nenhuma mudança significativa, vez que não dispõe de mecanismos para que a
Polícia tenha maior acesso aos dados dos provedores de serviços que auxiliem na
391
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
resolução do caso, tendo em vista que o procedimento de investigação consiste,
basicamente, em:
1)
Identificar o crime e o meio empregado. Exemplos: e-mail (terra,
hotmail, etc.), sala de bate-papo (chats), página da web (blogs, sites, etc.), redes
sociais (orkut, facebook, etc.), entre outros;
2)
Preservar as evidências para salvar e garantir a integridade dos dados
(materialidade do crime), sempre que possível, notificando e contando com a
colaboração dos provedores;
3)
Identificar os responsáveis pelo serviço (sites nacionais [.br] -
www.registro.br / sites estrangeiros - www.whois.com);
4)
Obter a quebra do sigilo de dados telemáticos (IP). Neste caso é
necessária ordem judicial para obtenção destes dados de conexão por parte dos
provedores de serviço e de acesso à Internet (logs): endereço IP, data, hora e
referência GMT da conexão e dados cadastrais do investigado. Caso não haja
vínculo do provedor com o Brasil, será necessário recorrer à cooperação
internacional;
5)
Obter a quebra do sigilo de dados telemáticos do usuário para
identificar a máquina de onde o crime foi praticado (a partir do IP fornecido);
6)
Por fim, para a obtenção de provas de autoria e materialidade do crime:
poderá ser realizada a busca e apreensão do computador, a oitiva do assinante da
conexão, o laudo pericial no computador e demais materiais apreendidos, e ainda,
se necessário, a interceptação de e-mails.
Portanto, trata-se de uma investigação complexa, no qual a obtenção de
dados exige a participação da Justiça, o que acarreta em um procedimento moroso,
fazendo com que na maioria das vezes a vítima desista de procurar a Polícia. Além
disso, não há lei que estabeleça a obrigatoriedade no armazenamento destes logs
de conexão por determinado período pelos provedores, sendo que, atualmente, a
média de guarda é de somente três meses, o que é relativamente pouco tempo
diante do andamento dos procedimentos judiciais. Cabe citar a lei estadual de São
Paulo nº. 12.228/06, que estabeleceu a obrigatoriedade das lan houses e cybercafés
de promoverem o cadastro de seus clientes (inclui nome completo, data de
nascimento, endereço, telefone, RG) e ainda manterem o registro dos horários –
inicial e final – de conexão, além do equipamento utilizado pelo cliente, pelo período
392
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
de 60 meses. A referida lei estadual tem como objetivo coibir os crimes de
informática nestes estabelecimentos, com a identificação dos usuários.
Em relação à Lei nº. 12.735, conhecida como Lei Azeredo, após um longo
processo de tramitação perante o Congresso Nacional, pode-se dizer que esta lei
carregou pouca coisa de seu projeto original, vez que sua redação era considerada
excessivamente restritiva, pois atribuía aos provedores, por exemplo, a função de
fiscalizar os usuários da rede.
Além disso, em sua redação original, o projeto de lei do Senador Eduardo
Azeredo pretendia tipificar uma das práticas mais utilizadas pelos criminosos, que é
a disseminação de vírus, seja para obtenção de senhas de banco, seja para induzir
a vitima ao depósito de pagamentos indevidos. Essa prática, portanto, ainda não
pode ser punida ante a falta de tipicidade da conduta. Neste caso, só poderá ser
punido o agente que difunde códigos maliciosos, os chamados vírus, e que, em
decorrência desse fato cometa outra atividade ilícita prevista em nosso ordenamento
jurídico.
Por fim, a Lei Azeredo indica que as Polícias Judiciárias, mediante regulamentação,
devem estruturar equipes e setores especializados para o combate de crimes
cibernéticos. E, estipula que, em casos de crime de discriminação (Lei 7.716 de
1989), o juiz poderá solicitar a retirada de conteúdo discriminatório não somente de
rádio, televisão ou Internet, mas de qualquer meio possível; dentre outras
providências.
4 RESPONSABILIDADE DOS PROVEDORES
Primeiramente, cabe fazer a seguinte diferenciação: os provedores de
serviços são os que oferecem utilidades na Internet, remuneradas ou não, como
hospedagem, e-commerce, serviços de e-mails, chats, dentre outros (ex. Google,
Mercado Livre, Yahoo, Microsoft, Facebook, etc). Ainda, registram dados de
conexão e podem ou não exigir dados cadastrais. Já provedores de acesso são os
que fornecem acesso à Internet (rede mundial de computadores), sendo que estes,
por sua vez, exigem o cadastro do usuário titular do meio eletrônico/Internet utilizado
para o crime. (ex. Embratel, Net, GVT, Brasil Telecom, Claro, etc.).
393
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Em regra, o crime cibernético se dá nos provedores de serviços ou por meio
destes serviços, que não exigem cadastro de dados pessoais para a utilização,
ensejando, muitas vezes, a ocorrência do anonimato.
Inicialmente, deve-se acionar o provedor de serviços, para que este informe
os dados de conexão (data, hora - GMT, IP). Com estes dados, deve-se, na
sequência, acionar o provedor de acesso, para que este informe os dados físicos
(nome, RG, CPF, endereço, telefone, etc.) do titular da conta de Internet que estava
conectado na exata data e hora identificada pelo provedor de serviços. É com esta
correlação, envolvendo provedor de serviços e provedor de acesso, que se pode
chegar à autoria de crimes envolvendo o meio virtual.
Diante das informações apresentadas, a questão da responsabilidade recai
sobre os provedores de serviços. Neste caso, poderá haver responsabilidade civil,
uma vez que sua atividade pode ocasionar danos a terceiros.
De acordo com Maria Helena Diniz a responsabilidade civil pode ser definida
como:
A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem uma
pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão
de ato por ela mesmo praticado, por pessoa por quem ela responde por
alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal (DINIZ, 2006,
p. 40).
Logo,
o
provedor
de
serviços
pode
responder
solidariamente
ou
subsidiariamente pelos atos praticados pelo usuário. Por exemplo, por negligência,
depois de devidamente notificado, o provedor deixou de retirar conteúdo ofensivo.
No entanto, não se considera o dano moral um risco inerente à atividade dos
provedores de serviços e não se pode exigir que a fiscalização, por parte destes, de
todo conteúdo postado, pois isso eliminaria o maior atrativo da rede, que é a
transmissão de dados em tempo real e poderia ensejar numa violação à
privacidade/intimidade.
Na esfera penal, pelo fato dos servidores terem a guarda dos logs de
conexão, isto é, informações que possibilitam a identificação da máquina (ex.:
computador), é considerado um forte aliado nas investigações criminais, caso venha
a contribuir para a liberação de dados.
394
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Vale frisar que os provedores de acesso à Internet também detem
informações que o cliente repassou através do cadastro e as informações de tudo
que foi acessado, modificado, enviado ou recebido pelo seu cliente, podendo assim
aumentar consideravelmente a probabilidade de identificar criminosos e na
instrumentalização de provas.
5 CONCLUSÃO
Os crimes cibernéticos trouxeram a crescente necessidade de adequação e
modificação das normas penais presentes no ordenamento jurídico, bem como a
criação de novos tipos penais, até então, objetos de projetos de lei.
Dentre os problemas enfrentados para o combate aos crimes cibernéticos
estão: a ausência de canal único de denúncias, uma cooperação internacional pouco
eficiente, muitas lan houses e redes abertas, a falta de estrutura na área pericial, o
pouco comprometimento dos provedores, a constante capacitação dos crackers,
falta de identificação dos usuários da rede, a possibilidade de camuflagem dos
dados e a utilização de dados falsos dificultam a identificação do sujeito ativo, dentre
outros fatores.
Além disso, pelo caráter transnacional da Internet, um dos maiores
enfrentamentos é a questão da competência para julgamento das infrações penais.
Diante fato, o que se faz necessário é uma ação conjunta a nível global, de maneira
que se acorde e regulamente - prevenindo e reprimindo – a prática de atos ilícitos no
meio virtual. Esta é apenas uma possibilidade, o que se faz mister é o
acompanhamento das transformações tecnológicas e das novas formas de
criminalidade, a fim de que o Estado possa exercer sua função, conferindo maior
segurança aos usuários dos meios eletrônicos de informação e comunicação,
punindo infratores, bem como resguardando direitos fundamentais inerentes a todo
cidadão.
Assim, dentre as formas de combate à criminalidade no ambiente virtual
pode-se citar: a criação de novas estratégias de segurança (ex.: passwords –
senhas, firewall – dispositivos de segurança de dados das redes de computadores),
de novas formas de controle e incriminação das condutas lesivas e a necessidade
de uma ação conjunta dos países, por meio de convenções/tratados.
395
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Verificou-se que os provedores de serviços nem sempre podem ser
responsabilizados por infrações no ambiente virtual, haja vista a impossibilidade de
se conhecer e ter controle sobre todo o conteúdo difundido pela Internet.
Por fim, pode-se dizer que é possível é identificação do agente criminoso que
faz uso de seu vasto conhecimento para fins ilícitos. No entanto, ainda perdura um
processo burocrático e demorado, do qual muitas pessoas não tem conhecimento,
deixando de buscar o auxílio adequado (delegacias especializadas); fazer denúncias
(que pode ser feita através da Internet); ou retardando a investigação do caso, o que
pode acarretar em prejuízos, no sentido de comprometer a obtenção de provas para
o processo, vez que nos crimes cibernéticos a perícia é de suma importância. Por
sua vez, solucionado o caso, poderá ser imposta indenização por danos morais e/ou
materiais previstos em lei e até mesmo pena privativa de liberdade ao infrator.
396
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
6 REFERÊNCIAS
ASSUNÇÃO, Marco Flávio Araújo. Segredos do hacker ético. 2. ed. Florianópolis:
Visual Books, 2008.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA: UMA REFLEXÃO SOB A ÓTICA
DO CINEMA.
THE CRIMINALIZATION OF POVERTY: A REFLECTION FROM THE
PERSPECTIVE OF THE CINEMA
Marcela Guedes Carsten da Silva1
Professora Dra. Maria Luisa Scaramella2
1
Acadêmica do 8º período do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba.
Possui doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2010), com
estágio no "Institut des Textes et Manuscrits Modernes" (ITEM), na "École Normale Supérieure"
(2006-2007), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (2004) e
graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1998). Atualmente é
professora de Sociologia e Antropologia do Direito no Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA),
membro do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR), na Universidade de São Paulo (USP), e do
grupo de pesquisa "Trajetórias e etnografia: narrativas, eventos, experiências", na UNICAMP (ambos
cadastrados no CNPq). Tem experiência na área de Ciências Sociais com ênfase em Antropologia,
atuando principalmente nas seguintes áreas e temas: antropologia, antropologia do direito, sociologia,
abordagem biográfica, trajetória, história de vida, narrativas biográficas.
2
399
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
400
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
A proposta deste artigo é discutir e propor uma reflexão quanto ao sistema
carcerário brasileiro a partir da ótica dos documentários: O Prisioneiro da Grade de
Ferro - Autorretratos de Paulo Sacramento, Ônibus 174 de José Padilha e Juízo e
Justiça de Maria Augusta Ramos. A análise fornecia pela ótica cinematográfica nos
apresenta outra perspectiva, como uma resposta “contra cultura” proveniente da
parcela da sociedade que é preponderante no sistema prisional. Como uma forma
de preencher as lacunas deixadas pelo processo penal, considerando o sujeito de
direito muito além das tipificações que lhe são correspondentes, pela existência de
circunstâncias que vão além dos parcos fatos narrados nos autos.
A análise fornecida pelo cinema considerando as produções fílmicas
pensadas sob a ótima de Marc Ferro como documentos históricos, e a fim de se
lançar uma nova perspectiva para se pensar o processo penal, bem como todo
contexto que o rodeia, este trabalho propõe uma análise de quatro documentários
que visam problematizar questões concernentes a dilemas sociais vividos
atualmente.
Palavras-chave: Criminalização da Pobreza, sistema penitenciário, sociologia,
cinema.
401
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
The purpose of this article is to discuss and propose a reflection on the
Brazilian prison system from the perspective of the documentaries: “O Prisioneiro da
Grade de Ferro- autoretratos” from Paulo Sacramento, “Ônibus 174” from José
Padilha, “Justiça” and “Juízo” from Maria Augusta Ramos. The analysis provided by
the film presents us with another perspective, as a response "against culture" from
the portion of society that is prevalent in the prison system. As a way to fill the gaps
left by the criminal proceedings, considering the subject of rights beyond the
typifications that are relevant for the existence of circumstances beyond the meager
facts presented in the record. The analysis provided by the cinematic optical presents
us another perspective, as a response "against culture" from the portion of society
that is predominant in the prison system. As a way to fill the gaps left by the criminal
proceedings, whereas the subject of law far beyond the crime that you are
corresponding, by the existence of circumstances beyond the meagre facts narrated
in the records.
The analysis provided by the film considering the movie productions designed
under the great of Marc Ferro as historical documents, and in order to launch a new
perspective to think about the criminal proceedings, as well as all the surrounding
context, this paper proposes an analysis of four documentaries that aim to discuss
issues concerning social dilemmas experienced today.
Key Words: Criminalization of poverty, penitentiary system, sociology, cinema.
402
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 BREVE ANALISE SOBRE A HISTÓRIA E O CINEMA
O Cinema, já usado pelo Estado como ferramenta para propagar suas
ideologias, bem como sua capacidade de comunicar-se em massa, serve também
como ferramenta de análise histórica. Nesse sentido, Ferro apresenta o cinema
como uma forma de contra poder, pois pode “sem intenção do cineasta, revelar
zonas ideológicas e sociais das quais ele não tinha necessariamente consciência, ou
que ele acreditava ter rejeitado” (FERRO, 1992, p. 16).
Portanto, podemos afirmar que as produções cinematográficas
são
documentos privilegiados, na medida em que despertam no nosso inconsciente
óptico, não necessariamente de uma forma proposital, a busca de novos caminhos
deixados pelo diretor. Independente da vontade, quase que como uma negligência,
a câmera captura cenas que carregam elementos que são inerentes a imagem, ou
seja, transparecessem certos aspectos da nossa convivência. Um exemplo de tal
acontecimento é quando, por exemplo, temos situações em que um filme enseja
várias intepretações que não necessariamente seriam as inicialmente idealizadas.
Aliado a este caráter independente (leia-se aqui independente no sentido de
poder abarcar varias interpretações cinematográficas), o cinema é uma forma de se
apresentar a “conta cultura”. Quando temos grupos de marginalizados, que não
teriam muita representatividade nos registros tradicionais, tomando a frente e se
impondo na medida em que assumem o controle dos seus próprios registros
iconográficos, acabam por complementar os elementos da história tradicional. Assim
como Ferro afirma, “Eu somente escrevi as linhas para lançar o alarde: certamente o
cinema não é toda História. Mas sem ele, não se poderia ter o conhecimento do
nosso tempo” (FERRO, 1992, p. 81).
A escolha de filmes se deu pelo fato de cada um deles mostrar algo que leve
a uma reflexão quanto ao sujeito sendo pensando além dos autos. A escolha da
categoria documentário veio por conta dos elementos artísticos que lhe cercam. A
retratação das pessoas comuns, não de atores profissionais transparece aspectos
particulares da nossa convivência, possibilitando uma releitura do sujeito. No curso
de Direito aprendemos que não é possível encontrar a “verdade real”, mesmo que
todos os esforços estejam voltado a isso. Destarte, é no mínimo válida a
consideração destes testemunhos, que se personificam como depoimentos de
403
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
setores da sociedade que são geralmente excluídos, como formas de se pensar a
aplicabilidade da lei?
2 PRISIONEIRO DA GRADE DE FERRO: AUTORETRATOS
Em 2001 Paulo Sacramento e sua equipe ministraram aulas de vídeo dentro
do então maior presídio da América Latina, o Carandiru, para os moradores dos
pavilhões nº 6, 8 e 9. Depois de quase sete meses o material arrecadado virou a
produção premiada no 8º Festival Internacional de Documentários – É Tudo
Verdade.
As cenas registradas variavam entre os momentos de convivência comum
dentre os presos até os momentos mais obscuros à nossa realidade fora do cárcere.
Os próprios presos passaram a registrar seu cotidiano, além da equipe que os
acompanhava.
Na primeira cena do filme temos a imagem da penitenciária sendo
“desimplodida”, a cena aparece como se os prédios estivessem sendo reconstruídos
a partir dos estilhaços. Em uma entrevista (GARDINER; VALENTE, 2004)
Sacramento esclareceu que o seu objetivo era passar a ideia de que o filme não
estava sendo produzido numa época em que um presídio estava sendo destruído,
mas justamente o contrário, para que o filme fosse situado na época em outras
vagas estavam sendo geradas, que outros presídios estavam sendo construídos, o
que ele resgata no final do filme quando em das cenas finais do documentário,
temos o pronunciamento de Geraldo Alckmin, no seu discurso de inauguração de
uma das novas dimensões da penitenciária, enaltecendo os números o número de
vagas criadas nos últimos 100 anos, fazendo uma comparação à outros governos
em relação ao número de vagas criadas para a penitenciária. Reconhecendo a
grandiosidade de seu feito como um recorde, senão do mundo, pelo menos do
Brasil.
Em um das cenas do documentário, dois detentos “dichavam” a maconha
enquanto explicam como funciona a comercialização da droga, um dos homens faz
o seguinte questionamento:
404
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
- Será que se o Estado estivesse dando mais atenção pra nós estaria
acontecendo isso aqui, agora nesse momento? Nós não estaríamos numa
oficina, trabalhando, fazendo um curso ou qualquer outra coisa?
- Eu acho que a preferência deles é essa mesmo. Por causa que, jamais eles
vai querer nós bem informado para bater de frente com as patifaria do jeito
que eles agem né mano. Se nós... Se nossa mente estivesse mais aberta,
mais um estudo, mais uma informação melhor, nós ia bater de frente com
eles e nós ia puxar o tapete deles. Pra quem nunca fez nada, não aprontou
nada, já não tem espaço no mercado de trabalho, eles vão querer abrir pra
nós?
Com o objetivo de democratizar a criação da própria imagem, trazendo a
perspectiva do próprio detento, Paulo Sacramento nos traz imagens que
desmistificam a imagem comumente veiculada pela mídia quanto aos presos.
Motivado principalmente pela mediocridade com que a mídia se posiciona quando a
estes assuntos, o diretor buscou produzir algo com que os presos se identificassem
e que servisse como uma forma de se entender os problemas e as contradições
desta realidade.
O documentário aborda não só a rotina, mas também mostra a vida de vários
presos, mostrando toda a cultura desenvolvida dentro do presídio. Um dos pontos
mais interessantes na produção é quanto a expressão artística.
Além disso, temos também os registros das alas da penitenciária,
desde a ala hospitalar em que constatamos o nível de precariedade da insuficiência
da assistência, que não consegue vencer o número de casos que aparece no
pavilhão todos os dias, e nos casos em que se requer um procedimento cirúrgico,
vemos a questão da insuficiência estatal.
É visível a vontade dos presos em se apresentar, como uma forma de
revelar todo um talento que existe e é esquecido por trás da figura estigmatizante
que lhe é imposta, até como uma forma de demonstrar que eles podem progredir na
vida.
Sacramento nos coloca diante de cenas que poderiam ser cômicas, se não
fossem tristes considerando a seriedade da matéria. Ao vemos as cenas do detento,
William Guimarães de Souza, que passa pela análise da Comissão Técnica de
Classificação (CTC), responsável por orientar o magistrado quando a concessão de
progressão de regime, nos leva ao questionamento inevitável quanto a maneira que
a análise é conduzida.
405
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Do questionário sobrevém um relatório fundamentando um parecer
desfavorável ao pedido de progressão para o regime semiaberto. A manifestação do
técnico aponta as ‘inquietadoras características’ constatadas em William que o
impediriam de obter o benefício, tais como ‘imaturidade psíquica’, ‘crítica inadequada
sobre o delito’ e ‘egocentrismo’, o que seria aceitável caso o plano anterior não
tivesse mostrado as perguntas feitas ao detendo. Inquirições genéricas como ‘Você
sabe com que idade você largou das fraldas?’ perfazem um questionário que acaba
sendo impessoal, considerando o tempo de entrevistas e a profundidade das
perguntas, chegando até mesmo serem irônicas como, ‘Você é amigo de alguém
importante, assim, como Bill Clinton, Madonna?’ entre outras.
Nas cenas seguintes, e fazendo um contra ponto com a atuação do CTC
temos as celas isoladas, as chamadas “solitárias”, um conjunto de dezoito celas que
em média suportariam seis detentos cada, que geralmente estão pagando alguma
penitência por ter infringido alguma regra disciplinar da casa. A equipe consegue
passar a câmera pela abertura da porta, possibilitando o registro do local em que os
presos ficam.
Constata-se que o número máximo inicialmente indicado de presos por cela é
desrespeitado, e logo vemos celas abrigando 14 pessoas. Nesse contexto, verificase o revezamento ‘horizontal e vertical’ no qual os presos são obrigados a se
revezar para conseguirem dormir e pegar um ar livre que entra pela estreita janela
no alto da cela. Comumente o espaço é ordenado com redes improvisadas que
possibilitam uma maior comodidade, na medida do possível, embora seja
considerável a ausência de condições básica de higiene, como, por exemplo, a falta
de papel higiênico, pasta de dente, água para beber e para dar a descarga. “O
inferno dentro da cidade grande”, assim classificado por um dos presos, a ponto de
termos, no depoimento do detendo Robinho a seguinte constatação: “eu acho que é
muito mais humano dar um tiro na cabeça do outro”.
Ao final temos o registro dos depoimentos de vários funcionários que
passaram pelo Carandiru, logo concluímos que não só a penitenciária precisa de
uma reforma, mas principalmente a necessidade de se repensar o sistema penal
como um todo.
Quando questionado sobre qual era sua conclusão após ter realizado o filme,
o Paulo Sacramento fala sobre como existe um desperdício da capacidade e
406
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
criatividade dos presos. Antes do lançamento oficial do filme, foi realizada uma pré
estreia na Penitenciária Feminina da Capital em São Paulo, o Jornal do Brasil
registrou alguns dos depoimentos das presas após a sessão. Muitas ficaram
impressionadas com a situação precária da Penitenciária Masculina, já outras
ficaram satisfeitas ao ver a realidade carcerária sendo publicizada. Um das presas, a
Sra. Vilma, afirmou “o que eu vi pesa, dói, machuca, por mostrar um lugar pior que o
nosso. Mas é importante para que a sociedade veja outras facetas do ser humano
preso. Pois aqui dentro perdemos nossa melhor parte: a capacidade de amar.”
(FONSECA, 2004).
De uma forma fascinante o documentário expande nossa visão sobre aquelas
indivíduos, penetrando em suas personalidades, histórias de vida e principalmente
desmistificando a simples ideia de redução a um papel social do individuo tido então
como “criminoso”.
Em uma entrevista concedida à Eduardo Valente e Ruy Gardnier, na sessão
do Cineclube realizada no Cine Odeon em Abril de 2004, Paulo Sacramento e
Aloysio Raulino - diretor e direito de fotografia respectivamente - responderam a
alguns questionamentos e falaram mais sobre a produção do documentário.
Segundo o diretor, a proposta era dar a oportunidade para que os próprios presos
produzirem sua imagem, para que os próprios presos pudessem se reconhecer no
filme. (OLIVEIRA, 2004).
Se no início do filme temos os nomes de seus respectivos números, no final
temos o resgate da individualidade e da reconstrução da personalidade dos sujeitos
que então eram reduzidos a um artigo. A capacidade de reaver os outros papéis
sociais desempenhados pelos protagonistas é talvez, um dos maiores ganhos do
filme. A evolução da narrativa proporciona esse percurso do prisioneiro que ao longo
do filme vai tomando proporções mais humanas, desmistificando sua imagem.
A produção de Sacramento vem como uma forma de alarde, não como algo a
ser esquecido após a sessão, mas como uma forma de se fomentar toda uma
discussão acerca da conduta Estatal frente a falência das suas políticas quanto ao
sistema carcerário e de repressão ao crime.
Em uma das cenas finais do filme, como uma forma de personificar esta ideia,
temos a declamação de um poema por um dos presos, Claudinho:
407
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Silêncio total pavilhão 8.
Quem sou eu? O filho do sofrimento.
Menino de rua, delinquente, marginal.
É um menino igual a tu fostes, só com uma diferença.
Nasceste em família forte, não tão forte quando a morte.
Que não queres evitar.
Tirando o guri da rua e dando para ele um lar.
Antes que alguém o arme e ele venha te matar.
A manchete vai ser boa no noticiário popular.
“Mataram o Doutor à toa ao tentarem lhe roubar”
O doutor foi sepultado, o menino algemado.
Foi parar lá na FEBEM, onde dizem passar bem.
Fica ligeiro moro polícia
O crime tá voltando
Original
Paz, justiça, liberdade.
O poema termina com o lema do PCC – Primeiro Comando da Capital, que
vêm como uma forma de mensagem a ser dita. O diretor se refere a este momento
como uma leitura bem avançada do filme, no sentido de nos questionarmos sobre
como esta sendo a atuação do Estado frente aos frequentes problemas de
criminalidade.
Ao analisarmos o poema, temos não somente um momento de desabafo de
uma história que se repete constantemente, mas também da constatação de que o
problema não esta sendo solucionado, e com certeza após vermos as imagens do
documentário, esta longe de ser. As políticas repressivas do Estado que “em nome
da justiça” camuflam uma verdadeira guerra que ocorre diariamente, somente
agravam os índices de criminalidade que não diminuem por conta de uma legislação
mais rígida.
Enquanto as práticas criminais estão se atualizando cada vez mais, vemos o
Estado respondendo sempre da mesma forma, e junto a isso o evidente fracasso em
sua tentativa frustrada de conter os desvios da sociedade. Pode-se dizer que o filme
não só nos coloca frente a outra perspectiva da realidade, mas também nos deixa
com aquela angústia e sensação de incomodo. Aquela sensação que devemos, de
certa forma incitar nas pessoas, para que proporcione uma discussão quanto as
políticas do Estado.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
3 ÔNIBUS 174
Da produção de José Padilha podemos destacar a questão da construção
bibliográfica de Sandro, personagem principal da trama vivenciada no dia 12 de
Julho de 2000 durante o episódio que ficou conhecido como sequestro do ônibus
174. A abordagem do filme é feita por uma montagem paralela entre imagens
veiculadas na época pelas emissoras e os depoimentos de pessoas que
conheceram Sandro de alguma forma. A história narra desde a trajetória do garoto
que passou a viver com a tia após o assassinato da mãe, até o momento em que ele
foge e passar a viver nas ruas do Rio de Janeiro.
No decorrer do filme temos vários relatos sobre a infância de Sandro, e logo
percebemos que ele foi exposto a várias situações de violência, o que o levou a se
tornar uma pessoa agressiva e introspectiva.
Quando analisamos as imagens do dia do sequestro, é notório o impacto da
mídia e dos espectadores que rodeavam o local. Se na conduta de Sandro podemos
perceber que ele finalmente consegue ser percebido pela sociedade, apesar de
estar se impondo pela força, podemos destacar também que a conduta dos policiais
sofreu o mesmo grau de influencia. Segundo Rodrigo Pimentel, ex capitão do BOPE,
em seu depoimento este afirmou que a oportunidade de ter acertado Sandro com
um tiro de uma sniper e ter acabado com aquele episódio existiu, entretanto a cena
seria chocante e a conduta teria uma repercussão negativa frente as milhares de
pessoas que assistiam.
O episódio termina quando Sandro saí do ônibus, aparentemente exausto e já
menos agressivo, com a refém – Geisa Firmo Gonçalves – como escudo. Neste
momento, o oficial Marcelo Oliveira Santos, em uma ação precipitada, sai agachado
pela frente do veículo, aproximando-se por trás de Sandro, disparando contra este
em seguida. As câmeras conseguem captar o caos que se estabeleceu no momento
e certamente tal atitude deu outro fim a história. Pelas imagens percebemos que
imediatamente após o tiro do policial, Sandro dispara atingindo a refém. Em seguida
os dois corpos caem no chão e rapidamente os bombeiros levam a garota para o
hospital. Outro oficial, o Capitão Ricardo de Souza Soares retira Sandro do local,
colocando-o dentro da viatura para evitar o linchamento pelos espectadores. Ao
chegarem ao hospital constata-se que Sandro morreu por asfixia. Após a perícia
409
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
constatou-se que dos quatros tiros que atingiram Geise, um era proveniente da arma
do policial Marcelo, que teria errado a pontaria, sendo que os outros três pertenciam
a arma portada por Sandro.
Utilizando-se das análises da dissertação de Luiz Eduardo Figueira que
estudou a lógica da construção da verdade no Tribunal do Júri, desenvolvendo seu
projeto a partir do caso Ônibus 174, temos os relatos sobre como se procedeu o
julgamento dos oficiais que foram acusados de matar Sandro.
Inicialmente, Soares fora denunciando por homicídio junto com outros seis
policiais, antes de serem remetidos ao Tribunal do Júri quatro policiais foram
“impronunciados”, ou seja, o Juiz por acreditar que não existiria nenhum indício de
intenção de participar da conduta descrita na denúncia não mandou para Júri os Srs.
Paulo Roberto Alves Monteiro (motorista da viatura) e Luiz Antônio de Lima Silva (o
ocupante do assento da carona). Portanto, somente os acusados Ricardo de Souza
Soares, Flávio de Val Dias e Márcio de Araújo David foram pronunciados. Quando
as denuncias sobre o Coronel Penteado e o policial Marcelo dos Santos, foram
rejeitadas.
Ao longo da análise de Luiz Eduardo Figueira, percebemos que a fala da
defesa constantemente irá reduzir Sandro a uma só categoria: a do delinquente que
cometeu um crime e que deve ser punido, apesar de já star morto. O advogado de
defesa direciona seu discurso no sentido de que a ação dos policia não poderia ser
incriminada tendo em vista que a pessoa que foi vítima era um delinquente.
Seguindo
esta
linha
de
pensamento,
temos
uma
pessoa
que
é
constantemente ignorada pelo Estado e rejeitada pela sociedade, que representa um
tipo social pejorativamente chamado de “marginal”, estereotipado como pobre,
negro, mal vestido e todas as outras características que vão distancia-lo do modelo
considerado “normal”.
Na verdade, Sandro representa mais do que um morador de rua, ele era tudo
aquilo que a sociedade rejeita em si mesma e que tenta constantemente fugir.
Portanto, naquele momento de tensão em que todos estão prestando atenção em
seus movimentos, ele demonstra que existe, burlando aquela capa de invisibilidade
que o contornava normalmente.
410
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Por outro lado, a promotoria rebate este argumento constantemente,
chamando atenção para o fato de que não se pode dar a prerrogativa do poder de
executar arbitrariamente. Vejamos um trecho da fala da promotoria:
[...] Condenamos o capitão e o soldado do BOPE”. Mas e daí?! E a família
deles?! E os filhos?! Por isso, a doutor promotor de justiça3, disse assim: “se
tivesse atirado minutos antes, estaria em legítima defesa de terceiro, conduta
lícita, louvada por todos, talvez condecorado o policial”. Então, o resultado
morte, nesse caso do Sandro, não era antijurídico, dependendo do momento
em que ele fosse causado. No caso, aqui, o desvalor, a censura, não é do
resultado, mas é da conduta: como fizeram, não poderiam ter feito. Me
parece, repito, que condená-los a pena mínima de doze anos, não resolveria
nada.
Temos aqui então um embate. Se por um lado a ação dos policiais não foi
correta, a condenação por homicídio duplamente qualificado seria uma forma de se
desincentivo a profissão do policial. Por outro lado, o ocorrido não poderia ser
deixado de lado, afinal seria uma forma de se dar carta branca para as execuções
arbitrárias por parte da polícia.
O Advogado de defesa desenvolve o resto de sua fala fazendo um jogo moral,
num o tom estigmatizante sobre Sandro, como se houvesse uma distância entre a
natureza humana destas pessoas classificadas como “marginalizadas”. Tal fato pode
ser vislumbrado em um trecho de suas alegações finais, quando comenta sua
reação ao ver o caso pela televisão “Liguei a televisão e, na televisão, estava esse
homem, com aquela baba, com aquele olhar, com aquele cheiro. Eu senti o cheiro
dentro de casa, na minha casa, a muitos quilômetros de distância”.
Tanto a acusação quanto a defesa reforçam seus argumentos na medida em
que os trechos do documentário de José Padilha é projetado no Tribunal. Se por um
lado a defesa destaca o histórico criminal de Sandro, no momento em que o filme
mostra seu histórico criminal, a promotoria vai utilizar dos elementos que mostram
como Sandro teria sido vítima de vários atos de violência, como por exemplo no
depoimento de um dos meninos que esteve internado junto de Sandro junto ao
Instituo Padre Severino, relatando os vários episódios de maus tratos aos quais
foram submetidos, afirmando no final que a casa de detenção para menores em
nada ajudou na sua reeducação, mas pelo contrário somente colaborou para o
surgimento de um sentimento de revolta.
3
Refindo-se ao outro promotor de acusação.
411
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
À medida em que o advogado que defendia os policias ressaltava também o
fato de Sandro ter precedentes criminais e como era seu estilo de vida criminoso.
Principalmente nos momentos em que o filme reproduz as cenas de violência
praticadas por Sandro no episódio do ônibus, construindo a imagem de uma pessoa
violenta e perigosa. O Promotor utiliza-se da construção bibliográfica de Sandro para
mostrar o lado do garoto que desde cedo teve o desemparo completo, mostrando
tanto o lado da exclusão quanto o lado da ausência do amparo social.
Ademais, para comprovar a intenção de matar pelos agentes da polícia, o
Promotor faz a interpretação do momento posterior a saída de Sandro do ônibus e a
hora em que o policial defere o tiro que gera toda a confusão. Alegando que pelas
imagens, os policias não tinham como imaginar que o policial teria errado o tiro,
mesmo por que Sandro estava com a camiseta ensanguentada, portanto o que
aconteceu dentro da viatura foi uma tentativa de terminar o que o outro policial já
havia começado. Já o advogado leva o debate para o lado do policial, que em sua
ação heroica retira o rapaz do meio da multidão para evitar um linchamento. E que
se realmente houvesse vontade de matar, ele teria deixado a população fazê-lo.
Como uma chance tivesse sido dada a Sandro. Em contrapartida, o Promotor elenca
características dos policiais, citando um relatório da ONU que teria concluído que a
polícia do Rio de Janeiro era que tinha o maior número de execuções do Brasil, ou
seja, utilizando características externar para justificar seus argumentos.
Considerando que nosso dispositivo constitucional determina que os crimes
ditos hediondos serão processados pelo Tribunal do Júri, sabe-se que neste caso a
decisão cabe a um Conselho de Sentença e não a um Juiz propriamente dito. No
caso, este conselho formado por jurados leigos decidirão se o réu é culpado ou não,
motivados pelas suas convicções pessoais. Ou seja, na medida da sua identificação
social, os jurados irão reprovar ou não a conduta do réu, produzindo suas próprias
interpretações dos fatos, influenciados pelo discurso tanto do promotor de justiça
quando do advogado de defesa.
A culpabilidade do sujeito vai sendo construída levando em contra,
principalmente, como ele fala e como ele esta se veste. Existem casos em que o
próprio Juiz se vê em uma situação de pré-julgamento ou um julgamento superficial
do réu. E essa prática vai além, abrange as situações diárias que no decorrer dos
anos excluíram e expulsaram várias pessoas do meio social comum.
412
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Ao final do julgamento, acusação argumenta a necessidade de uma
condenação, entretanto não necessariamente um que envolva a privação de
liberdade, mas que respondam pelas consequências de terem agido de forma
arbitrária. A promotoria chega a conclusão que a condenação por homicídio
duplamente qualificado seria uma punição demasiada, sendo a favor da se condenar
sem incidência da qualificadora e com a atenuante, por ter ocorrido após violenta
emoção. Afinal, o Direito é um instrumento para promover a justiça pela lei, mas
neste caso específico, devido as circunstâncias, deveria promover apesar desta. Por
fim, temos a leitura do veredicto dos jurados, os pronunciados foram absolvidos pela
maioria dos votos, ou seja, quatro votos a três.
Neste caso, o documentário proporcionou o desenvolvimento da biografia de
Sandro, e com certeza os fatos que foram trazidos pelas sua construção história
advindos dos depoimentos do documentário agregaram à análise feita pelo Júri.
Frente aos acontecimentos explanados pela produção de José Padilha o julgamento
toma outra proporção, pois vemos quão complexa a questão se torna ao
envolvermos seu passado e principalmente, se pensarmos em Sandro não somente
como um incurso em um artigo do código penal, mas sim como uma pessoa que
antes de mais nada teve seus direitos básicos violados. Não no sentido de justificar
sua ação, seria uma análise no mínimo equivocada, mas nos mostra que este
problema que permeia quase a maioria das ocorrências penais depende a cima de
tudo, de políticas públicas. É evidente os as consequências da ausência do Estado,
permeada pela pobreza, e faz-se essencial ressaltar que equivocadamente liga-se
os acontecimentos numa linha casuística, como se necessariamente um
acontecimento levasse ao outro, sendo que na verdade não.
4 JUÍZO E JUSTIÇA
Em “Justiça”, produzido em 2004 por Maria Augusta Ramos, temos a
retratação da realidade do Judiciário por uma perspectiva que aborda as questões
de tensão dos problemas da violência urbana. A partir de imagens que pretendem
provocar a reflexão do espectador, nos deparamos com situações que nos faz
questionar o que realmente entendemos por justiça.
413
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Se em “Justiça” vemos a decadência das penitenciárias e a clara tendência
do sistema penal em criminalizar a pobreza, em “Juízo”, produzido em 2006 pela
mesma diretora, vemos a origem deste problema. É evidente a relação da carência
de políticas públicas com a questão da criminalidade, entretanto, vemos a pobreza
sendo camuflada por atos infracionais, propiciando cada vez mais a absorção desta
parcela da sociedade pela máquina carcerária, proporcionado não uma reeducação
ou reintegração à sociedade, mas sim o desenvolvimento de uma carreira criminal.
Pela sequência de cenas a partir da captação das imagens por uma câmera
fixa objetivando transparecer um olhar de espectadores deste, como chamado pela
diretora “teatro da justiça” vemos a desconstituição do sujeito. Se inicialmente
olhamos para os personagens com olhares carregados do estigmatizante caráter de
“criminoso”, temos ao longo das narrativas essa alteração que ocorre deforma
gradual, na medida em que vamos conhecendo mais sobre as vidas dos réus.
Justamente por mostrar os sujeitos além dos fatos presentes nos autos, como uma
forma de humanizar sua imagem. Como por exemplo, o caso do menino em “Juízo”
acusado de matar seu pai.
O caso desperta a curiosidade por se tratar de um dos crimes mais graves da
narrativa. Pela transcrição do diálogo podemos sentir quão complexa é a questão,
na audiência a Juíza pergunta:
Juíza: É verdade isso?
Alexandre: É
Juíza: Você matou seu pai? Por quê?
Alexandre: Por que ele me batia muito, em mim e na minha mãe!
Juíza: Ele batia em você e na sua mãe e o que...
Alexandre: Ele estava “doidão”, chegava do serviço “doidão” e me batia.
Juíza: Doidão de que?
Alexandre: Cerveja e cachaça.
Juíza: E quando ele batia em você e na sua mãe ele estava sempre
bêbado?
(o garoto acena com a cabeça).
Num outro momento da audiência:
Juíza: Ta arrependido? De ter matado teu pai?
Alexandre: To.
Juíza: Ta sentindo falta dele?
Alexandre: Falta não, por que ele não me dava nada.
Juíza: O que ele tinha que te dar que ele não te dava?
Alexandre: Ah, um pouco de carinho, mas ele nem falava comigo.
414
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Juíza: Mas se eu perguntar para você qual a lembrança boa que você tem
do teu pai, o que você vai me dizer?
Alexandre: Nenhuma.
Ou seja, o caso de maior relevância em nenhum momento ultrapassou as
outras medidas socioeducativas aplicadas, considerando a ponderação psicológica
acerca do que aquele fato representava para o garoto. Neste caso, vemos que
apesar de sua conduta ser gravíssima, chama a atenção para outros problemas
como a questão da desestruturação familiar.
Vemos que os problemas enfrentados pelos detentos maiores de idade não
diferem muito dos enfrentados pelos menores de infratores. A começar pelo
tratamento hostil desde as audiências até episódios de violência pelos agentes
penitenciários (com raras exceções), até quanto aos locais eles habitam. Se nas
penitenciarias de “Justiça” temos cenas de superlotação e locais insalubres em
“Juízo” temos locais tão precários quanto, principalmente tratando-se do Instituto
Padre Severino, a única instituição em que houve reiteradas reclamações sobre o
abuso do violência pelos agentes de segurança.
Além disso, em 2004 a Human Rights Watch visitou a casa de internação e
divulgou um relatório criticando as más condições. Relatos como o caso a morte do
menino que se recusou a dividir um biscoito com outro adolescente e por isso foi
espancado até a morte ou e talvez o mais memorável de todos, o caso do então
diretor administrativo, Paulo Roberto de Souza, que em 1999 foi encontrado em seu
gabinete por PM’s em sua sala acariciando um menos nu. No entanto esse não foi o
único caso, outras vítimas relataram que eram obrigadas a fazer sexo com Souza.
Em 2011 o Instituto Padre Severino foi fechado para modificações, sendo
reinaugurado em 2012 para inaugurar o Centro de Socioeducação Dom Bosco
(LEONI; LEITE, 2012).
Outra semelhança que pode ser estabelecida entre as duas produções é
quanto a questão da delegação da responsabilidade à outro órgão, seja a outra
instância do Judiciário ou para o próprio Executivo, como forma de se eximir da
culpa. Algo visto principalmente nas falas dos magistrados frente a relatos de
problemas enfrentados pelos réus.
Vejamos a transcrição de um destes momentos, em uma das primeiras
audiências de “Justiça” temos um cadeirante que é conduzido a sala de audiências,
415
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
posiciona-se na frente do magistrado que passa a questioná-lo sobre os fatos.
Como de praxe, a linguagem rebuscada vai agravando a distância entre o homem
agora visto como réu, e o próprio Juiz. A acusação seria plausível, se não tendesse
ao absurdo ao supor que um cadeirante teria assaltado uma casa e, para tanto,
necessariamente ter pulado um muro para fugir. Ao final da audiência o detento fala:
Detento: Dr. Meritíssimo, se eu for retornar lá para DP, se o senhor pudesse
dar uma autorização para mim mandar para o hospital. Por quê po... Por
que la no “xadrez” lá, são 79 lá no xadrez. Pra mim...
Juiz: O que você tem? Esta doente?
Detento: Não, pra mim dar uma evacuada tenho que ficar me arrastando no
chão. Pra mim tomar banho, não tenho condições de tá lá. E lá eu tenho
dificuldade de certas coisas
Juiz: Mas eu só posso te remover se eu tiver uma recomendação médica.
Só se o médico pedir a sua remoção, por isso é assunto médico, isso não é
assunto de Juiz. Se o médico disser que você precisa de atendimento, que
precisa ser removido, você será removido. Fora disso não!
A diretora consegue demonstrar, de uma forma intrigante, como os discursos
dos réus são filtrados e transformados em uma linguagem legal, de acordo com os
dispositivos dos códigos sem que ao menos considerar elementos essenciais para
as análises dos respectivos casos.
Este ritual de formalismo e frieza é visto em quase todas as audiências,
demostrando como caminhamos para um campo de insensibilidade que acaba
acometendo os atuantes da área do Direito, talvez pelo habito ao lidar com a esta
realidade, mas não seria este um problema senão gravíssimo dos operadores do
Direito na medida em que eles mesmos vão esquecendo ou ignorando os dramas
humanos por trás dos processos?
Por fim, podemos destacar algo que é constatado a partir das análises da
sequencia das produções de Maria Augusta Ramos. Não raramente, senão de forma
majoritária,
a
população
que
habita
as
penitenciárias
em
“Justiça”
são
predominantemente negros ou pardos, advindos de locais marcados pela ausência
de políticas públicas do Estado (escolas, infraestrutura, saúde, etc.), permeados pela
pobreza, mas principalmente, estigmatizados pela sociedade. Sendo que em “Juízo”
vemos esta mesma população só que mais jovem, sendo captada para o sistema
carcerário cada vez mais cedo.
416
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Em tempos como este em que nossas instituições de uma forma quase que
hipócrita destinas a “correção” das pessoas são verdadeiros reprodutores de
violência e incitadores da estigmatização social, é no mínimo suicida acharmos que
estas instituições penais estão servindo a sua função inicialmente idealizada.
5 SOBRE A POSIÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS
Após as análises dos documentários anteriores e, pautando-se nos
ensinamentos de Aldaíza Sposati, podemos vislumbrar algo comum em todos os
documentários, a questão da concepção errônea quanto o que seriam os direitos
sociais inerentes ao cidadão.
Partindo da equivocada tendência da monetarização dos direitos sociais na
medida em que colocamos como sinônimo de política social o combate a pobreza,
considerando as tendência neoliberais particulares do nosso país desde o período
da ditadura militar até o período de redemocratização, acompanhamos uma
consequente desqualificação quanto o que seriam esses direitos básicos do
cidadão.
Se
considerarmos
que
o
Brasil
passou
por
um
procedimento
de
redemocratização incompleto, sendo que tal fenômeno não atingiu em sua plenitude,
na medida que não alcançou as instâncias políticas e judiciais e, tendo em vista a
crise econômica subsequente ao período militar enfrentada pelo Brasil, causando
índices de inflação altíssimos, temos como consequência direta um desiquilibrando
na situação econômica da sociedade.
Somado a isso, podemos destacar também como característica deste
contexto, o emprego informal como uma alternativa ao desemprego, principalmente
pela sua facilidade e não necessidade de conhecimento técnico. Entretanto, acabou
sendo confundido com outras práticas paralelas, como forma de se obter renda,
práticas de “empreendimentos econômicos criminosos” (ZALUAR, 2007).
Aliado a isto temos como aponta Sposati uma assimetria no desenvolvimento
e na percepção destes direitos sociais. Normalmente o alcance destas políticas, nos
países latino americanos, tende a seguir a legislação trabalhista, frustrando a
universalização de tais direitos, restringidos apenas a concessão aos trabalhadores
formais.
417
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Antes de ser uma questão de superar a desigualdade, deve-se entender que
esse procedimento de reconhecimento dos direitos inerentes ao cidadão como uma
demonstração da possibilidade real de inclusão advém não pela sua capacidade
aquisitiva, mas justamente por este ser um cidadão. Sendo este um dos desafios
para o século 21. (SPOSATI,2001).
Ao longo da sua análise, conclui-se que a políticas sociais passaram a
desenvolver-se de forma apartada, dando margem a atuação, por exemplo, de
organizações não governamentais. Ressaltando que devemos ter cautela em não
cairmos na ideia errônea que altera o ponto de vista quando a estas políticas,
“deslocada do campo das necessidades sociais (a serem providas por políticas
sociais universais) para a atenção a necessitados sociais. Esse deslizamento
encobriria a cidadania e os direitos sociais por "boas ações" aos mais frágeis”
(SPOSATI, 2001).
Ao fazermos isso, perdermos o caráter universalista, passando a ser
interpretado como “melhoria social” e não uma plenitude a fim de se concretizar a
cidadania. E, justamente pela discrepância do acesso a tais direitos, temos entre os
próprios cidadãos a reprodução das desigualdades. Sendo assim, devemos almejar
essa homogeneização dos alcance de tais direitos, exigindo a presença do Estado,
espaço que facilmente é ocupado por entidades filantrópicas. Devemos tanto buscar
a “universalidade”, no sentido de uma aplicação igual, quanto o “universalismo”, que
seria o diálogo entre as diferentes politicais sociais.
Não podemos reduzir a ideia de inclusão social ao combate a pobreza, sem
que os outros direitos sejam propiciados. Estaríamos resumindo o processo de
inclusão do sujeito na medida em que sua capacidade de consumo fosse suprida,
nas palavras de Aldaíza, “combater a miséria e a pobreza implica em política
econômica e não só social” (SPOSATI, 2001).
Portanto, devemos não só buscar uma intercomunicação entre os direitos
sociais, no sentido de se desmercantilizar suas condições de acesso, bem como
desmistificar sua aparência de caridade, considerando que seria uma prerrogativa
de qualquer cidadão, independente de sua capacidade aquisitiva.
Por fim, Aldaíza Sposati elenca quais seriam os desafios para o século XXI: i)
reposicionar o sentido de direitos socais sem que recaiam em políticas de combate a
pobreza; ii) a incorporação dos outros direitos sociais, sua intercomunicação e
418
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
aplicabilidade universal. A socióloga alerta para evitarmos a “culpabilização do
indivíduo pobre”, bem como reconhece que a pobreza é uma problema
multidimensional, intimamente ligado ao lastro do modelo econômico adotado. Se
resumirmos a questão da pobreza, descaracterizaria sua qualidade de direito e
cidadania. Afinal, o enfrentamento da pobreza não se restringe ao percebimento de
renda, mas a uma consequente interligação de políticas públicas que forneçam
suporte ao cidadão. Ampliar as condições de consumo não consubstancia a
condição de cidadão, isso somente corrompe a noção de direitos sociais. O caminho
equivocado da monetarização desses direitos nos leva a uma desqualificação e
desconstrução daquilo que entendemos como sujeitos de direitos, culminando numa
consequente “robotização social”.
Diante disso, o que vemos é a dificuldade da sociedade, do estado e suas
instituições
em
abandonar
a
lógica/pratica
–
lembrando
Loic
Wacquant
(WACQUANT, 2008) – de criminalização da pobreza. Diante da fragmentação das
políticas publicas e do seu parco alcance, o que vemos é a continua utilização de
politicas penais e a judicialização indevida de situações como forma de controlar e
administrar a pobreza no nosso país.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se, após toda a reflexão exposta que afastar o inexorável,
escondendo-se por trás das palavras, munido de uma tranquilidade (um tanto quanto
assustadora) somente agrava o problema da invisibilidade social.
A importância dos documentários que tratam sobre o sistema penitenciário e
a sua realidade inseparável, vêm como uma forma de “contra cultura”. Buscando dar
materialidade ao inenarrável, objetivando reavivar a angústia necessária ao
tratarmos dos casos do permeiam a seara da área penal.
O indivíduo deve ser considerado além da sua tipificação objetiva, mesmo por
que julgar alguém, extraído do seu contexto em um país em que a
desproporcionalidade social é alarmante, somente dissemina a hegemonia dos
costumes e verdades de uma parcela da sociedade sobre a outra. Ou seja,
considerando que temos, majoritariamente, membros das classes mais altas
ocupando os respectivos cargos responsáveis pela “justiça” no Brasil, veremos, não
419
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
coincidentemente, a criminalização da pobreza e a monetarização dos direitos
sócias. Logo, é de se esperar que a prisão funcione como uma alternativa para a
higienização social. Entretanto, vemos ai um sentido equivocado sendo atribuída a
ideia de cidadão.
Espera-se com esse trabalho, despertar um sentimento necessário para se
tratar esta matéria. Deseja-se angústia pra que não sejamos levianos. Empatia para
que as leis não sejam aplicadas sem sentido, mas a cima de tudo, deseja-se
despertar a consciência social, pois nenhuma mudança reformará tal pensando
deturbado, senão tivermos uma reforma na sociedade.
420
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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RAMOS, Maria Augusta. Juízo. Direção: Maria Augusta Ramos. Produção: Diler
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421
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SACRAMENTO, Paulo. Prisioneiro da Grade de Ferro: autorretratos. Direção:
Paulo Saramento. Produção: Gustavo Steinberg e Olhos de Cão. [S.I] Idê Lacreta e
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WACQUANT, Loic. O lugar das prisões da nova administração da pobreza. Novos
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ZALUAR, Alba. Democratização inacabada: fracasso da segurança pública. Revista
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422
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
COMBATE À IMPUNIDADE E O NECESSÁRIO DESESTÍMULO À
CORRUPÇÃO: UMA ANÁLISE À LUZ DAS RECENTES
ALTERAÇÕES NA LEGISLAÇÃO ELEITORAL
COMBATING IMPUNITY AND THE NEED TO DISCOURAGE
CORRUPTION: AN EXAMINATION BASED IN THE RECENT
CHANGES IN ELECTORAL LEGISLATION
Maurício Augusto Garbin 1
Luiz Gustavo de Andrade 2
Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2003), pós-graduação pela
Universidade Candido Mendes do Rio de Janeiro (2005) e Mestrado em Direito pela Faculdade de
Direito de Curitiba (2008). Atualmente é professor da Faculdade de Direito de Curitiba do Centro
Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Integra a Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos
Advogados do Brasil, Seccional Paraná (OAB-PR) e a Comissão de Controle da Administração
Pública da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Paraná (OAB-PR). É advogado militante no
Paraná.
1
2
423
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SUMÁRIO
1. Introdução. 2. Origens e reflexos da corrupção e impunidade no Brasil. 3.
Mecanismos de controle preventivos e repressivos e a Lei n° 8.429/92. 4. As
recentes alterações na legislação eleitoral e o combate à corrupção. 5. Conclusão.
424
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
O presente artigo objetiva o estudo dos atos de corrupção e improbidade
administrativa no Brasil e dos mecanismos de controle em face de tais condutas
deletérias. Para tanto, procede-se à análise histórica do fenômeno, por meio da
percepção das suas origens quando da Colonização e das principais características
e acontecimentos brasileiros que contribuíram para a reprodução e desenvolvimento
do problema. Ressaltam-se alguns dos reflexos e a importância da observação dos
princípios basilares da administração pública. Examinam-se os mecanismos de
controle da improbidade administrativa e estudam-se algumas das disposições da
Lei de Improbidade Administrativa. Analisam-se as recentes alterações na legislação
relativas ao tema e algumas das propostas de mudanças provindas de movimentos
de combate à corrupção. Conclui-se pela importância e necessidade de alterações
na legislação, contudo, não sendo a única solução para o problema, que passa,
principalmente pela maior conscientização de todos para com a coisa pública.
Palavras-chave: Corrupção, Improbidade, Impunidade, Eleitoral
425
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
This article aims to study the acts of corruption and misconduct in Brazil and the
administrative control mechanisms in the face of such harmful conduct. To do so, it
proceeds to the historical analysis of the phenomenon, through the perception of
their origins when the colonization and the main characters and Brazilian events that
contributed to the reproduction and development of the problem. It emphasizes some
of the reflections and the importance of observing the basic principles of public
administration. It examines the mechanisms of control of administrative misconduct
and studies some of the provisions of the Law of Administrative Misconduct. It
analyzes the recent changes in legislation relating to the theme and some of the
proposals of changes that are coming from the movements against corruption. It
concludes by the importance and need for changes in the law, however, not being
the only solution to the problem, which passes mainly through greater awareness for
all exchequer.
Keywords: Corruption, Dishonesty, Impunity, Electoral
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
A corrupção faz parte do cotidiano do brasileiro, sendo noticiada diariamente
pelos meios de comunicação, e fazendo com que, boa parte da população, não
confie nos representantes eleitos. Além do descrédito ao representante, é nítido
também o sentimento de impunidade.
Presentes desde a colonização, os atos corruptos e ímprobos encontraram no
Brasil solo fértil para sua reprodução, marcando, profundamente a história do país.
O segundo item deste artigo buscará demonstrar os porquês da ocorrência tão
comum destes atos, utilizando-se, para tanto, de uma análise histórica. No mesmo
item averiguar-se-ão os principais reflexos do problema.
Existem, há décadas, mecanismos de combate à corrupção e à improbidade,
bem como, leis que versam acerca dos atos deletérios. A análise dos meios de
combate aos atos deletérios e de alguns dispositivos previstos em diplomas legais
relacionados ao tema serão o objeto de estudo do terceiro item.
Ademais, observa-se, em um período recente, o advento de uma série de
mudanças na legislação brasileira visando a redução da impunidade, a diminuição
da influência do poder econômico e a busca de maior igualdade nas eleições.
Presencia-se, ainda, uma inquietação provinda da sociedade, com a ascensão de
novos movimentos de combate à corrupção e a apresentação de projetos de lei de
iniciativa popular. O exame das alterações já realizadas e de algumas de possível
acontecimento será objeto do quarto item deste artigo.
É necessário, então, o estudo do tema para a elucidação da conectividade
entre a impunidade e os atos ímprobos e corruptos e se, alterações na legislação
eleitoral se mostram realmente efetivas no combate desses vícios.
2 ORIGENS E REFLEXOS DA CORRUPÇÃO E IMPUNIDADE NO BRASIL
Os atos corruptos e ímprobos são exemplos de afrontas diretas aos princípios
regentes da administração pública, consagrados constitucionalmente. Contaminados
de antivalores e de presença diária nos noticiários brasileiros, ocasionam além de
grandes prejuízos para a população, com a redução de verbas destinadas à
427
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
investimentos públicos, uma tímida indignação popular, face ao tamanho do
problema.
O melhor estudo do fenômeno, com a apresentação de possíveis soluções,
deve, necessariamente, observar o caráter histórico que tais atos detém,
percebendo que são reproduzidos por estas terras desde o descobrimento. É
justamente deste ponto que a análise do tema deve partir, ou seja, do colonizador
português, tendo em vista que, dentre as inúmeras heranças
deixadas pelos
lusitanos no Brasil, uma é do tipo que nenhum sucessor gostaria de receber: a
corrupção.
Sem dúvida, foi Portugal que deu origem aos modelos e formas arquetípicas
mais originárias de nosso modo de ser sócio-político. O Brasil herdou de
Portugal o primeiro modelo de organização do Estado e a concomitante
força moral que o sustentava. Foi certamente através do descobrimento que
os caracteres primordiais – acompanhando os navegadores, imigrantes e
aventureiros e unidos a outros valores e antivalores originados das
peculiaridades da nova terra – se moldaram, produzindo nossas tendências
sociopolíticas. Sem um retorno às raízes culturais lusitanas não disporíamos
de elementos suficientes para explicar adequadamente muitos fenômenos,
inclusive, o da corrupção (ZANCANARO, 1994, p. 53).
Portugal, antes do descobrimento, dispunha de características inerentes ao
desenvolvimento de um Estado tendente à reprodução de atos carregados de
antivalores. Primeiramente destaca-se que o Estado Português era o de Dominação
Patrimonial, decorrido do modelo de Dominação Tradicional, explicado por Max
Weber (1968), e organizado em torno de uma administração estamental.
Em Portugal a extrapolação da política e da administração domésticas para
fora do circuito familiar era encontrada, primeiramente, nas atitudes do rei. O
soberano dispunha de posição de prevalência incontestável, possuindo total controle
dos bens estatais e dos subordinados. Acerca desta posição superior, importante a
lição de Raymundo Faoro (2012. p. 38):
Na monarquia patrimonial, o rei se eleva sobre todos os súditos, senhor da
riqueza territorial, dono do comércio – o reino tem um dominus, um titular da
riqueza eminente e perpétua, capaz de gerir as propriedades do país, dirigir
o comércio, conduzir a economia como se fosse empresa sua.
428
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
As atitudes do rei dificultavam, principalmente, a diferenciação entre o que era
patrimônio público e o que era patrimônio privado da Coroa. Ademais, não eram
raras as situações em que este, agindo em causa privada, atuava ao arrepio das
Leis que ele mesmo instituíra.
Outra característica sempre presente em Portugal foi a da sobreposição do
fausto sobre o trabalho. Este traço inclusive, ajudou a formar o português
aventureiro e explorador, o famoso conquistador de novas terras.
Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais
nobiliante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana
pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de
grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação
(HOLANDA, 1995, p. 38).
Para sustentar tal modo de vida viram-se necessárias as expedições
portuguesas, que acabaram por aumentar o domínio e o território da Metrópole. O
soberano, a fim de manter o controle sobre o maior território, se viu obrigado a
delegar algumas de suas funções. Através da concessão de poderes e da troca de
favores à “funcionários públicos” - na maioria das vezes pessoas de sua confiança e
convívio - o potentado estendia seus ideais de governo por todo o reino. Os antigos
empregados da casa do rei, ou de sua família, deste modo, acabaram se tornando
servidores do Estado, passaram a deter certo poder e importância, sempre com a
premissa de que seus atos eram atos de interesse da monarquia. É neste ponto que
nasce outra característica primordial para o entendimento da reprodução histórica
dos atos de corrupção no Brasil, a organização estamental do estado, desde a
colonização.
O estamento, por sua vez, de natureza mais complexa e diversa, verdadeira
camada ou espécie social, constitui uma comunidade política, um círculo
qualificado superior, destinado ao pleno exercício do poder, possuindo seus
membros consciência de sua formação e agrupamento. O indivíduo alcança
os privilégios do grupo pelo prestígio social que detém entre seus pares,
assim como pelo conceito de sua honra social perante a comunidade
(GHIZZO NETO, 2012, p. 29-30).
Tendo em vista a proximidade que tinham para com o soberano e até mesmo
a confiança que deste possuíam, era de se esperar que os atos dos “funcionários
429
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
públicos” fossem baseados à imagem e semelhança das ações provindas da Coroa.
Assim, formou-se, desde logo, um corpo de administradores tendentes à confusão
entre o patrimônio público e privado e à reprodução dos atos de pouco baixo
conteúdo valorativo.
Affonso Ghizzo Neto (2012, p. 23-24) reconhece a o pouco respeito pelo
coletivo e compromisso para com a racionalidade que se desenvolveu em Portugal,
muito pelo ideal de vida de luxo e bem-estar sem esforço. Este tipo de ideal acabou
aportando no Brasil com a vinda dos colonizadores em 1500.
Como se não bastasse as características já encontradas nos habitantes
portugueses, alguns fatores locais, inerentes da Colônia, ainda agravavam a
situação. Em primeiro lugar, a grande porção territorial descoberta, em que se
demonstrava necessário o povoamento, bem como a distância para com a
Metrópole, dificultavam o controle e fiscalização do Estado.
Imensa se demonstrava a fragilidade jurídica, caracterizada pela convivência
de ordenamentos provenientes da Coroa Portuguesa, de ordens do estamento já
instalado nas terras colonizadas e de regramentos impostos pelos senhores,
importantes figuras principalmente nas localidades interioranas. Em cada canto do
país se predominava uma ordem, sendo que nos principais centros urbanos a Coroa
mostrava sua força, que ia se esvaindo quanto mais passos ao interior do território
fossem dados. A população, encontrando tamanha desorganização, mal tinha
ciência de qual regramento devia respeitar, tendendo-se a uma desobediência total
das regras normativas.
Além de pouco ciente para com os regramentos, a população ainda
demonstrava-se pouco identificada para com o território. Não se via no povo o
sentimento próprio de uma nação, eram apenas aventureiros em busca do ganho
fácil, que pouco se importavam com o modo de agir e com o resultado de suas
condutas na terra a ser explorada, ansiando pela volta à Metrópole para desfrutarem
da vida como nobres.
O terceiro e também relevante fator diz respeito à falta de identificação dos
servidores portugueses enviados, com o desenvolvimento e preservação do
próprio país, pautada na ideia egoística de que o eventual ganho a ser
individualmente obtido, teria que ser sempre, e por qualquer meio,
potencializado, a fim de ser proporcional aos perigos e sacrifícios
enfrentados pelo europeu na nova terra (PADILHA FILHO, 2010, p. 22).
430
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Todos estes fatores, somados, resultavam em uma característica muito
comum no território da Colônia: a impunidade de atos ilegais. A impunidade deve ser
entendida como a força motriz de todo o sistema estamental desenvolvido no país,
tendo em vista que a certeza da não punição garantia a segurança para a
reprodução dos atos deletérios.
Antonio Frederico Zancanaro (1994, p. 155) salienta o caráter decisivo da
impunidade como alicerce de reprodução do sistema patrimonial, destacando que a
ausência de castigo aos atos deletérios - tanto em terras portuguesas como em
brasileiras - era justificada principalmente pelas relações de amizade e parentesco.
Não padece dúvida, portanto, que a corrupção político-administrativa
encontra seu realimentador na impunidade dos delitos. Na cultura lusobrasileira dificilmente o corrupto é chamado a prestar contas de seus atos. E
quando isto ocorre, são muitos os álibis que lhe permitem fugir às sanções
da lei. O próprio sistema patrimonial realimenta a impunidade, gerando uma
extraordinária segurança em quem manipula o poder a seu favor. As
intrincadas amarras de caráter afetivo e sentimental que impregnam o
fenômeno conferem a garantia de impunidade. Tal segurança garante as
condições de uso e abuso do poder cedido em benefício próprio e no de
parentes e amigos. A impunidade dos delitos tornou-se, portanto, uma
superestrutura lógica do sistema patrimonial de dominação.
Assim, conviveu o país, desde o início de sua colonização, com a propagação
de antivalores e a grande quantidade de atos deletérios, que eram realimentados e
garantidos pela certeza da não punição. Com marcas tão profundas, era de se
esperar que tais características perdurassem pelos períodos posteriores.
Durante a Monarquia brasileira o panorama não era outro, o soberano, dotado
de poder ainda maior, com o advento do Poder Moderador, continuava agindo de
modo a não estabelecer limites entre seu patrimônio particular e o estatal. Abaixo
dele, um corpo de funcionários tendentes aos mesmos atos, que viam no Estado a
grande oportunidade de uma vida com lucros e sem muito trabalho. A população,
por sua vez, não via seus anseios e interesses próprios representados e convivia,
cada vez mais, com um cenário de corrupção e impunidade, que contaminava todos
os graus da administração. (FAORO, 2012, p. 447).
Esperavam-se mudanças com o surgimento dos ideais Republicanos e a
posterior proclamação da República, em 1889, porém, o que se viu foi a
permanência de muitos dos valores já conhecidos durante os períodos anteriores.
431
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A postura pouco democrática que orientou a instalação da república
nacional não correspondeu às expectativas e acaloradas discussões que
eram diariamente travadas, nos mais diversos estratos sociais da época.
Representava, o regime republicano, um ideal de progresso no cenário
político, um pensamento de vanguarda, a exemplo dos inúmeros avanços
tecnológicos testemunhados naquele momento. O encanto cedeu lugar à
frustração (PADILHA FILHO, 2010, p. 27).
A participação popular foi diminuta desde o início, por mais que o voto seja
uma característica inerente a este sistema. Destaca Raymundo Faoro a ínfima
porcentagem de comparecimento dos eleitores aos pleitos da época que, entre 1898
e 1926, flutuou entre 3,4% e 2,3% da população total. Somente nas eleições de
1930 foi registrada a participação de mais de um milhão de eleitores, o que
representava o percentual de 5,7% do total de habitantes. Destaca Raymundo Faoro
(2012, p. 698) a ínfima porcentagem de comparecimento dos eleitores aos pleitos da
época que, entre 1898 e 1926, flutuou entre 3,4% e 2,3% da população total.
Somente nas eleições de 1930 foi registrada a participação de mais de um milhão de
eleitores, o que representava o percentual de 5,7% do total de habitantes.
Passado o período da República do café-com-leite, de destaque foram os
governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. O primeiro, pela concessão de
novos direitos, a se destacar os trabalhistas; o aumento dos direitos eleitorais; a
ascensão de novas pessoas ao poder político; e um grande inchaço da máquina
estatal. O segundo, pelo financiamento de grandes obras públicas, com o plano de
metas (“Cinquenta anos em cinco”). Ambos, por possuírem altos índices de atos
ímprobos e corruptos.
Foi o fim da sociedade patrícia, o começo da entrada em massa do povo na
política e a expansão da máquina estatal iniciados em 1930, mas
acelerados após 1945, que abriram as portas para o florescimento da
corrupção na forma de clientelismo, patrimonialismo, nepotismo, ou simples
gatunagem de dinheiro público. Mais recursos disponíveis, mais demandas
dos eleitores e menos escrúpulos dos políticos operaram a mudança. A
corrupção entrou em curva ascendente. (CARVALHO, 2008 apud
AVRITZER, 2008, p. 242)
A corrupção era tanta, que o carro chefe de campanha do presidente que viria
a ser eleito no período pós Juscelino, era a eliminação da corrupção, tendo inclusive
432
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
como símbolo de campanha a memorável “vassoura”. Jânio Quadros acabou eleito
em 1960, Porém, com pouco tempo de governo e após sofrer diversas pressões,
acabou renunciando, tendo assumido, em seu lugar, João Goulart, ex-partidário de
Vargas.
Logo após, em 1964, foi de destaque o golpe militar, que impuseram um
regime de forte censura e ínfima participação popular, implementando um discurso
contra o comunismo e a corrupção. O grande problema é que as duas figuras, do
comunista e do corrupto, eram muitas vezes confundidas pelo militar. Além disso,
como é de conhecimento geral, atos de corrupção auxiliaram na propagação do
regime, que por vários anos limitou a liberdade e a participação da nação nas
decisões estatais. Não há duvidas de que um governo autoritário, sem participação
popular, como o presente na ditadura, dificulta muito o controle populacional acerca
do patrimônio comum, estatal.
Com a queda da Ditadura Militar e volta de Democracia, materializada através
da promulgação da Constituição de 1988 e da realização de novas eleições, os
escândalos de corrupção foram notícias em todos os governos, até o atual.
No governo do primeiro Presidente da República eleito, descobriram-se
esquemas de corrupção que levaram a instauração de procedimento de
impeachment contra Fernando Collor de Mello, que acabou por renunciar ao
mandato antes do julgamento do processo. Ao fim, restou o alagoano condenado à
perda do mandato e suspensão dos direitos políticos.
O governo subsequente, de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB,
destacou-se
pelo
amplo
programa
de
privatizações.
Passaram
por
este
procedimento importantes empresas nacionais, que continuam sendo de destaque
até os dias atuais, como a Companhia Vale do Rio Doce, a Telebrás e a Eletropaulo.
Os leilões de privatização foram alvo de grandes críticas, principalmente da
esquerda nacional, tendo em vista que, inclusive, abriu-se a possibilidade de o
próprio Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, financiar
parte dessas compras, fazendo com que recursos públicos acabassem auxiliando a
aquisição, por particulares, de bens públicos, restando nítido o favorecimento a
algumas companhias.
Entretanto, em mais de vinte anos, nenhum escândalo de corrupção teve
maior repercussão no país do que o chamado “mensalão”. Um grande esquema de
433
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
corrupção, articulado por diversas lideranças políticas, dentre elas: José Dirceu, exministro da Casa Civil do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva; José
Genoíno, ex-presidente do PT; Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT; João Paulo
Cunha, Deputado Federal; e Marcos Valério, empresário e publicitário.
Depois de quatro meses e meio de sessão, em dezembro de 2012, o
Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento da Ação Penal nº 470. Dos 38 réus
do processo, 25 foram condenados, sendo apontado como mandante do esquema o
ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu, e como principal operador, o empresário
Marcos Valério. Ademais, foram condenados a suspensão dos direitos políticos e
consequente perda do mandato, os deputados federais João Paulo Cunha, Pedro
Henry e Valdemar Costa Neto. Importante ressaltar a inexistência, até o momento,
de trânsito em julgado das condenações, que ainda estão pendentes de análise e
julgamento de Embargos Infringentes.
Era de se esperar que mais de 500 anos de um cenário impregnado de
antivalores gerassem grandes reflexos sobre a população, os governantes e o
patrimônio público.
Em relação ao patrimônio público, percebe-se atualmente que a corrupção
causa grandes desfalques aos cofres estatais, fazendo com que a população sinta
anualmente a falta destes valores, vivendo em um país carente de investimentos em
âmbitos básicos, como saúde e educação. Em relatório recente, datado de março de
2010, elaborado pelo Departamento de Competitividade e Tecnologia (Decomtec),
da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP, concluiu-se que os
custos com a corrupção são estimados entre 1,38% a 2,3% do PIB, o que
resultariam nos montantes entre R$ 41,5 bilhões a R$ 69,1 bilhões (em reais de
2008) (Disponível em <www.fiesp.com.br/arquivo-download/?id=2021>. Acesso em:
16 abr. 2013.).
Mais preocupantes que os dados apurados em relação aos custos da
corrupção, são as pesquisas que demonstram a consciência da população frente ao
problema. Destaca-se que a população verifica a existência da corrupção, porém, é
dificultosa ainda a percepção de como a corrupção afeta a todos os brasileiros.
Neste diapasão, salientam-se os seguintes dados, apresentados na Pesquisa Social
Brasileira – PESB, em que foram realizadas 2.364 entrevistas por todo o Brasil, no
ano de 2002: 74% das pessoas afirmaram que cada um deve ter cuidado sobre o
434
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
que é seu, deixando a coisa pública sobre cuidado exclusivo do governo; 56% da
população consultada afirmou que se deve auxiliar o governo na administração,
somente nos momentos em que ele cuida da coisa pública, quando ele é vigilante
sobre ela.(GHIZZO NETO, 2012, p. 82).
Pesquisas como estas salientam a gravidade do problema, tanto em termos
de custos quanto de falta de consciência e educação cívica dos brasileiros.
Evidenciam, além disso, o panorama de confusão entre coisa pública e privada e o
distanciamento existente entre o cidadão e o bem público, características históricas
presentes desde o Brasil Colônia, como já foi visto. Valmor Antonio Padilha Filho
(2010, p. 38) salienta que o caráter histórico do fenômeno da corrupção no Brasil
culminou na formação de uma população pouco consciente para com o erário
público:
(...) Partindo-se da premissa de que o sujeito é produto do seu meio, ou
pelo menos, na moldura de seus padrões de conduta está sujeito à sua
influência, pode-se sustentar que a sua preocupação inicial (do brasileiro),
ou primordial, sempre se deu com a preservação daquilo que lhe pertence
diretamente, é palpável, que pode ser facilmente visualizado, quantificado:
questão de sobrevivência. (...) Não se percebe nitidamente uma
responsabilidade, uma necessidade, em preservar, aquilo que, para ele, é
do outro, ou pior, é considerado de ninguém.
Após a realização da análise histórica e de alguns dos reflexos da corrupção
e improbidade, as definições e o entendimento dos conceitos desses fenômenos
ficam facilitados.
Primeiramente, há de se destacar a correlação entre a corrupção, o alcance e
a manutenção do poder político e o poder econômico. O último possui grande
influência no atual sistema de representação no Brasil, pelo forte papel de
financiador das campanhas eleitorais, formador de correntes políticas e angariador
de votos.
O poder econômico incide diretamente nas eleições, influenciando seu
resultado. Contrapõem-se as ideias e o debate para com o dinheiro e as influências.
O produto da prevalência dos segundos é a contaminação do pleito.
À proporção que a riqueza invade a disputa eleitoral, cada vez se torna mais
avassaladora a influência do dinheiro, espantando os líderes políticos
genuínos, que também vão cedendo, ainda que em menor escala, a
435
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
comprometimentos econômicos que não conseguem de todo escapar,
sendo compelidos a se conspurcarem com métodos corruptores. (...) É
bastante insidiosa a ação corrosiva do poder econômico, espalhando-se
pelas artérias de influência pública, minando-as por todos os lados, ora
imperceptível e se necessário ostensivamente, com as modalidades mais
imagináveis de recompensas, sempre conversíveis em valor econômico,
para o objetivo político colimado (RIBEIRO, 1998, p. 52-53).
A necessidade de diminuição da influência do poder econômico sobre o poder
político é gritante, visando a garantir a maior representatividade dos cidadãos pelos
políticos. “A boa regulação e a defesa da concorrência são antídotos fundamentais
contra a corrupção” (OLIVEIRA in FERRAZ JÚNIOR; SALOMÃO FILHO; NUSDEO,
2009, p. 170-171).
Além de demonstrarem a relação entre domínio econômico e político, os atos
corruptos e ímprobos são frontalmente contrários aos princípios basilares da
administração pública no Brasil. Dentre estes, enfatizam-se os previstos no artigo
37, da Constituição Federal, quais sejam: da moralidade, da legalidade,
impessoalidade, publicidade e eficiência.
De destaque, ainda, o princípio da probidade administrativa, que chega a ser
defendido por autores, como Mateus Bertoncini (in OLIVEIRA; CHAVES;
GHIGNONE, 2010, p. 13-15), como um direito fundamental de terceira geração,
inerente a todos os povos e nações, por seu caráter transnacional, universal e geral.
Desta forma, o respeito à moralidade, à probidade administrativa e aos
demais princípios regentes da administração pública impõe-se como fundamental
em qualquer ato provindo dos agentes públicos. A ligação entre Ética e Política é
pressuposto da Democracia. Em termos de princípios, o cidadão parece
contemplado e protegido, porém, ao se analisar a realidade, encontra-se assolado
por um cenário de descaso com o bem público, improbidade e corrupção, agravados
a cada dia pela impunidade.
Necessária a análise, então, dos instrumentos de controle e combate a
corrupção e a improbidade, a fim de se perceber a possibilidade de mudanças no
preocupante panorama atual.
436
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
3 MECANISMOS DE CONTROLE PREVENTIVOS E REPRESSIVOS E A LEI N°
8.429/92
Os mecanismos de controle da probidade administrativa se dividem em dois
grandes grupos, os controles preventivos e os repressivos. As definições de cada
um decorrem de seus próprios nomes, como não é custoso se depreender.
O controle preventivo da probidade administrativa possui duas características
essenciais, o fato de ser antecipatório e educativo, ou seja, além de evitar com que o
ato corrupto aconteça (evitando o dano), ainda grava na população e nos
governantes os valores inerentes à administração proba e ética.
Ana Cristina Melo de Pontes Botelho (2010, p. 148-149) aponta que, dentre
os atuantes do controle preventivo, destacam-se os órgãos da administração
pública, por meio da elaboração de Códigos de Conduta e Ética dos servidores; os
Tribunais de Contas, com ações de auditoria e avaliação; e a Controladoria Geral da
União, com a criação de mecanismos como a Secretaria de Prevenção da
Corrupção e Ações Estratégicas e suas ramificações.
Ademais, de destaque a atuação preventiva do Ministério Público, tendo em
vista que, dentre as suas atribuições, se destacam a defesa dos interesses sociais e
do regime democrático e o zelo pelo respeito aos Poderes e serviços de relevância
pública, todas previstas nos artigos 127 e 129, da Constituição da República
Federativa do Brasil.
Affonso Ghizzo Neto (2012, p.206) enfatiza a necessidade do desempenho
preventivo realizado pelo Parquet:
Sem prejuízo da sua atuação tradicional na área repressiva, muitas vezes
necessária e obrigatória, o Ministério Público está legitimado (poder-dever)
constitucionalmente a agir preventivamente em busca da observância e do
respeito ao princípio (direito e garantia) da moralidade administrativa.
Assim, é recomendado ao membro do Ministério Púbico, valendo-se de
suas prerrogativas constitucionais, exercer prioritária e efetivamente o
controle preventivo da corrupção, valendo-se, inclusive, da articulação com
os Poderes constituídos e do envolvimento com os movimentos organizados
provenientes dos anseios sociais.
A atuação preventiva é, incontestavelmente, a mais eficiente das formas de
controle. Isto se deve ao fato de que a prevenção não é apenas a maneira menos
437
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
custosa, pois se instaura antes mesmo da consumação dos atos deletérios e da
ocorrência de prejuízos, mas também a mais educativa, com maior possibilidade de
inserção de princípios e valores ao cotidiano dos administradores e da sociedade em
geral.
Entretanto, como visto, não é só a atuação preventiva a existente como meio
de controle dos atos corruptos e ímprobos. A segunda forma de controle é a
repressiva, que também possui duas características a ela inerentes: a da
recuperação dos recursos ilegalmente tomados e o fornecimento do exemplo, a
demonstração de que qualquer agente está sujeito ao controle e às sanções.
O meio de controle repressivo, deste modo, vem a combater frontalmente um
aspecto histórico no cenário nacional, o do sentimento de impunidade.
A ineficácia das instituições responsáveis pela fiscalização e apuração de
crimes e danos ao patrimônio público é decisiva para a manutenção do
sentimento de impunidade que está presente na população brasileira,
colocando em risco nossa ainda tímida democracia. (...) Torna-se então
senso comum a ideia de que todo mundo mete a mão, permitindo até a
opção política por candidatos a cargos públicos que roubam mas fazem
(AZEVEDO; REIS, 1994, p. 20-21).
O controle repressivo acompanha a divisão tripartite dos poderes, adotada
constitucionalmente, sendo classificado em legislativo, administrativo e judiciário.
Neste panorama, cada poder da administração pública é responsável por seu
controle interno e, reciprocamente, pela fiscalização das atuações dos outros e
repressão nos casos em que se demonstrar necessário.
O controle administrativo é classificado como controle interno. Ele é expresso
em duas frentes: a primeira pela possibilidade de autocontrole, com a reforma de
atos eivados de vício ou por conveniência e oportunidade (Súmula 473, do STF); e a
segunda, que garante a investigação, o recurso e o procedimento administrativo,
decorrentes do poder disciplinar e do direito de petição, previsto no artigo 5º, XXXIV,
da Constituição.
O controle repressivo legislativo é definido como controle externo e é exercido
através das maneiras política e financeira.
A atuação política deve observar não somente o caráter de edição de leis,
mas também, seu caráter de vigilância das funções administrativas. Um mecanismo
de destaque na atuação do controle legislativo é a instauração das Comissões
438
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Parlamentares de Inquérito, as CPI’s, que tem como função principal a colheita de
provas e o auxílio ao Ministério Público em futuras denúncias (GARCIA; ALVES,
2011, p. 179-181).
Em relação à atuação financeira do poder legislativo há de se destacar os
atos autônomos e auxiliares do Tribunal de Contas da União. Essa vigilância da
Corte de Contas está prevista no artigo 70, da Constituição Federal. Phillip Gil
França (2010, p. 94), em sua obra, destaca sua importância:
As contas; a adequação entre o recebido e o gasto; a correição do dinheiro
público empregado de acordo com políticas de Estado factíveis, impessoais
e com verdadeiras finalidades de atingir o maior bem comum possível
devem ser feitas por um órgão técnico, como o Tribunal de Contas. Da
mesma forma que os demais meios de controle da Administração, a
valorização, a fortificação e o respeito do trabalho desta instituição são
chaves-mestra para a realidade de um Estado forte, promotor do cidadão.
Por fim, porém não menos importante, é o controle exercido pelo Poder
Judiciário. É uma forma de controle externo da administração de fundamental
importância, pois lhe conferiu a Constituição da República, no artigo 5°, XXXV, a
última palavra acerca de lesão ou ameaça de direito. A intervenção do Judiciário é,
então, justificada, principalmente nos casos em que os agentes públicos atuem ao
arrepio da lei e dos princípios formadores da administração pública.
O Judiciário precisa firmar o seu papel na sociedade que protege, impondo
o seu poder/dever de coibir atos que atentem ao direito, tendo em vista que
este detém a prerrogativa da aplicabilidade coativa da lei aos litigantes,
assumindo sua posição como órgão controlador das atividades normativas
do executivo e como peça central da manutenção da estabilidade social do
Estado nacional. (...) Isto posto, conclui-se que a inafastável atuação do
Judiciário na aplicação do direito no caso regulatório concreto é capital para
a estrita observância da segurança jurídica dos atos da Administração
Pública e proteção do cidadão (...) (FRANÇA, 2010, p. 116).
A atuação do Poder Judiciário, em relação ao tema, está diretamente ligada,
então, com a aplicação e respeito às leis que tratam do controle dos atos ímprobos.
Dentre essas Leis, a de maior destaque é, sem dúvida, a Lei n° 8.429/92.
A lei em questão enumerou as situações que configuram atos ímprobos,
estabeleceu as sanções de possível cominação e os procedimentos administrativo e
439
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
judicial aplicáveis em sendo constatado o ato deletério. Assim, algumas disposições
merecem estudo mais detalhado.
Destaca-se, em primeiro lugar, a grande abrangência em relação à sujeição
ativa, sendo passível de enquadramento na lei, qualquer agente público, inclusive
aqueles que exercerem cargo, mandato, emprego ou função transitória, sem
remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra
forma de investidura ou vínculo. O tratamento dado à sujeição ativa reflete a
preocupação para com o interesse e patrimônio públicos. Interesse e patrimônio
público, aliás, que demonstram o real sujeito passivo do ato de improbidade, toda a
coletividade, cada brasileiro integrante do Estado.
Os artigos 9º, 10 e 11 trataram de estabelecer um parâmetro acerca de quais
atos seriam enquadrados como ímprobos. Assim, dividiram-se em três grandes
grupos de atos: os que gerem enriquecimento ilícito, os que causem prejuízo ao
erário e os que importem em lesão aos princípios da administração pública.
Algumas considerações acerca desses atos são de importante análise. A
primeira delas é que todos, sem exceção, importam em desrespeito aos princípios e
valores da administração pública. No entanto, a edição do artigo 11 foi necessária
porque nem todos os atos, concretamente, causam prejuízos ao erário ou geram
enriquecimento ilícito, mas, mesmo assim, são contrários às previsões do artigo 37,
da Constituição Federal.
Em segundo lugar, destaca-se que a Lei estabeleceu, expressamente, que a
forma culposa somente seria possível em relação às condutas que se amoldassem
ao artigo 10, sendo, ainda assim, necessária a demonstração da negligência, da
imprudência ou da imperícia da conduta. Deste modo, meras ilegalidades ou erros
provocados por falta de habilidade do agente público não são o objeto da Lei de
Improbidade. Conclui-se ser de fundamental importância, a comprovação da má-fé
do agente público, quando da configuração do ato ímprobo.
O objetivo da Lei de Improbidade é punir o administrador público desonesto,
não o inábil. Ou, em outras palavras, para que se enquadre o agente
público na Lei de Improbidade é necessário que haja o dolo, a culpa e o
prejuízo ao ente público, caracterizado pela ação ou omissão do
administrador público. Meros equívocos formais ou inabilidade do agente
público são insuficientes para justificar a possibilidade jurídica da ação de
improbidade (MATTOS, 2005, p. 7-8).
440
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Em relação ao artigo 11, que define como ímprobos os atos que atentem
contra os princípios da administração pública, qualquer ação ou omissão que viole
os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, é
importante ressaltar a divergência Doutrinária em relação à abrangência do princípio
da legalidade.
São confrontadas duas teses, a primeira daqueles que acreditam que a
ilegalidade do ato, por si só, ensejaria a sua configuração como ímprobo (GARCIA;
ALVES, 2011, p. 280). Para outra parte da doutrina, como Mateus Bertoncini (2007,
p. 165-166), a mera ilegalidade do ato, em que não encontradas a desonestidade e
a imoralidade, não teria o condão para eventual caracterização de ato ímprobo.
Na jurisprudência, por sua vez, são recorrentes os entendimentos no sentido
de que não se configuram como atos ímprobos aqueles eivados de mera ilegalidade,
constituídos por incapacidade ou inabilidade do agente. Neste sentido, o seguinte
trecho de voto, proferido em 17 de agosto de 1999:
A punição deve ser adequada a um administrador inábil e despreparado.
(...) De fato, a lei alcança o administrador desonesto, não o inábil,
despreparado, incompetente e desastrado. Com razão, o aresto guerreado
ao sustentar que: “...a improbidade administrativa, no ato contra a
legalidade, deve dizer necessariamente, com a falta de boa-fé, com a
desonestidade, com a conduta tipo do ilícito.” (BRASIL. Superior Tribunal
de Justiça. Recurso Especial nº 213.994 - MG, Primeira Turma, Relator para
o acórdão Ministro Garcia Vieira, j. 17 ago. 1999).
A Lei de Improbidade Administrativa estabelece, ainda, no artigo 12 e incisos,
as sanções de possível cominação. Estas estão divididas em três naturezas: civil,
administrativa e política.
As sanções de caráter cível são divididas entre: a perda dos valores
acrescidos ilicitamente ao patrimônio (aplicável às condutas que se amoldem ao
artigo 9° e seus incisos); o ressarcimento integral do dano (sempre aplicável aos
artigos 9° e 10, e, logicamente, somente aplicável às condutas do artigo 11 quando
destas resultar algum dano); o pagamento de multa (aplicável às condutas previstas
nos três artigos, apenas se variando os valores); e as proibições de receber
benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios e de contratação com o Poder Público
(aplicáveis às condutas previstas nos três artigos, apenas se variando o prazo da
proibição entre elas).
441
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A sanção de caráter administrativo imposta na Lei de Improbidade é a perda
da função pública. Esta penalidade é aplicável às condutas que se amoldem em
qualquer das categorias de atos ímprobos, sendo necessário o trânsito em julgado
da sentença condenatória para que seja efetivada (artigo 20, da Lei nº 8.429/92).
A perda da função pública não se confunde as sanções de perda de mandato
eletivo e suspensão dos direitos políticos. As últimas são classificadas como
sanções de caráter político sendo necessário, em ambas, o trânsito em julgado da
sentença condenatória. Estas sanções são aplicáveis aos três grandes tipos de
condutas classificadas como ímprobas, sendo imprescindível a explícita indicação
da suspensão na sentença condenatória.
É forçoso advertir que as sanções poderão ser aplicadas isolada ou
cumulativamente, com base na gravidade do fato, de acordo com a redação
conferida ao caput do artigo 12, pela Lei nº 12.120/2009. Os critérios de dosimetria,
para a aplicação das sanções que não possuem prazos ou quantidades fixas, estão
dispostos no parágrafo único do artigo 12, devendo o Juiz considerar a extensão do
dano causado somada ao proveito patrimonial obtido. Ainda, deverá o Juiz observar
critérios como o da proporcionalidade, razoabilidade e a boa-fé do agente quando da
cominação das penalidades, sendo vedado o excesso (ARRUDA ALVIM in
OLIVEIRA; CHAVES; GHIGNONE, 2010, p. 178).
A Lei de Improbidade Administrativa ainda fornece a regulamentação do
Procedimento Administrativo (nos artigos 14 e 15) e do Processo Judicial (artigo 17).
Neste aspecto, importante ressaltar a independência dos dois institutos, bem como a
possibilidade de o segundo aproveitar-se do primeiro, principalmente em relação à
coleta de evidências.
Por fim, destacável o disposto no artigo 73, § 7° da Lei nº 9.504/97, que
estabeleceu
que
as
condutas
vedadas
estabelecidas
naquele
diploma,
caracterizariam, atos de improbidade administrativa, sujeitos às sanções previstas
no artigo 12, III, da Lei 8.429/92.
As condutas vedadas dispostas na Lei das Eleições têm como principal
justificativa a necessidade de manutenção da isonomia dos candidatos na disputa
pelo cargo eletivo, ou seja, ao se incorrer em qualquer delas, a validade do pleito –
como real resultado da vontade e consciência popular – estará ameaçada por
desrespeito da igualdade de oportunidades dos candidatos. O principal objetivo da
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Lei das Eleições, então, ao estabelecer esta série de condutas é o de coibir o uso
dos recursos estatais, da máquina administrativa, em favor da candidatura de
qualquer pleiteante a mandato.
O abuso de direito é das mais graves violências contra o regime jurídico
republicano, e ele se manifesta tanto pelo abuso de poder político, quanto
pelo abuso de poder econômico. Ambos compreendem arbitrariedade e
discriminação. O abuso de autoridade, espécie de abuso de poder político,
se caracteriza pelo uso exorbitante de faculdades administrativas, pelo
privilégio, pela discriminação. (AMARAL; CUNHA, 2002, p. 283).
As sanções de possível cominação através da própria Lei das Eleições são: a
suspensão imediata da conduta; a aplicação de multa, duplicável a cada
reincidência; e a cassação do registro ou do diploma, nos casos de conduta grave.
Entretanto, com relação ao enquadramento de tais condutas como ímprobas,
percebe-se a notável disparidade entre a conduta vedada e a sanção a ela aplicada
através da Lei de Improbidade Administrativa, se comparadas a outros tipos de atos.
Isto porque, tratou a Lei das Eleições, de enquadrar as condutas vedadas como atos
ímprobos que atentam contra os princípios da administração pública, passíveis das
sanções do artigo 12, III. Destaca-se que algumas das sanções previstas neste
artigo, como a suspensão dos direitos políticos e a proibição de contratar com o
Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, são de
período notadamente inferior às passíveis de imposição face às condutas previstas
nos artigos 9º e 10. Porém, não se percebem grandes diferenças entre as condutas
previstas como vedadas pela Leis das Eleições e as condutas dos artigos 9º e 10, ao
menos não a ponto de justificar essa disparidade na graduação da pena.
Ressalvada a colocação supra, as condutas vedadas poderão ainda, gerar
efeitos no tocante à elegibilidade do candidato, conforme previsão do artigo 1°, I, da
Lei Complementar 64/90, com redação conferida através da Lei Complementar
135/2010, que será objeto de estudo do próximo item.
4 AS RECENTES ALTERAÇÕES NA LEGISLAÇÃO ELEITORAL E O COMBATE
À CORRUPÇÃO
Realizado o apanhado histórico da corrupção e da improbidade – com a
apuração de alguns de seus reflexos – e estudados os mecanismos de controle
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
preventivos e repressivos e as disposições legais mais tradicionais e de maior
relevância em relação ao tema, percebe-se, ainda, a presença de algumas lacunas
na legislação, que além de gerarem dúvidas, facilitam a propagação dos atos
deletérios.
Para o preenchimento destas lacunas, muitas vezes, a própria Justiça
Eleitoral acaba atuando normativamente, como na criação de Resoluções e na
formulação de respostas a consultas acerca da matéria eleitoral. Para tanto, o
Tribunal Superior Eleitoral se vale da sua legitimidade constitucional para a edição
de atos normativos, reforçada através do disposto no Código Eleitoral, em seu artigo
23, incisos IX e XII. Entretanto, as resoluções são fonte de dúvidas e
frequentemente matéria de consultas.
A fim de diminuir as recorrentes dúvidas e consolidando em muito o
posicionamento adotado pelo TSE em diversas questões, foram editadas duas
importantes Leis, a de nº 11.300/2006 e a de nº 12.034/2009, as chamadas
“minirreformas eleitorais”. Vê-se, notadamente, em ambas, a preocupação com a
atualização da legislação eleitoral, com maior regulamentação de temas como
propaganda eleitoral, participação de ambos os sexos nos pleitos, financiamento e
prestação de contas. É claro que muitas dessas alterações significam, em última
análise, meios de combate à corrupção, pois conferem maior igualdade de
condições e representatividade ao pleito, com menor influência do poder econômico.
A busca por maior igualdade é legítima e está relacionada à influência do
poder econômico sobre o sistema eleitoral vigente no país. Quanto maior a
intervenção do poder econômico sobre as eleições, é elevada a desigualdade do
pleito e são maiores as chances de se elegerem candidatos compromissados com
seus “investidores de campanha”, exemplificados atualmente no país pela classe
financeira (DIAS, 2004, p. 146). Deste modo, o pesado investimento em campanhas
eleitorais somado à pouca fiscalização é uma das fontes primárias de corrupção
administrativa, por eleger, cada vez mais, os chamados “políticos de rabo preso”.
Dentre as mudanças realizadas pelas “minirreformas” em relação à maior
igualdade e representatividade, destacam-se, primeiramente, as que objetivam a
maior participação feminil nos pleitos. A Lei 12.034/2009 trouxe modificações na Lei
Partidária (9.096/95), ocasião em que foram inseridas normas de reserva de cota
para participação política feminina, expressadas no artigo 44, V (reserva de cota de
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
recursos) e no artigo 45, IV (reserva de cota de tempo de propaganda). Paulo
Henrique dos Santos Lucon (2010, p. 570) discorre acerca das normas de
participação da mulher:
Em uma interpretação puramente gramatical, esse dispositivo viola a
Constituição Federal que estabelece a igualdade entre sexos. Entretanto, é
sabido não haver igualdade de oportunidades de participação das mulheres
em muitas situações da vida. Na política, isso não tem sido diferente. Por
isso, os recursos provenientes do Fundo Partidário serão aplicados na
criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação
política das mulheres (...).
Outra mudança, no mesmo sentido, foi a realizada no artigo 10, § 3°, da Lei n°
9.504/97, que dispõe que devem ser preenchidas, pelos partidos ou coligações, o
número mínimo de 30% das vagas, por um dos sexos, e o máximo de 70%, pelo
outro. Neste caso, como não existe referência direta a qual sexo se quer proteger,
apenas se garantindo número mínimo de qualquer um, não há o que se aventar
acerca de eventual inconstitucionalidade do dispositivo.
São de destaque as alterações feitas nos meios de controle do atual modo. A
Lei 11.300/2006, por exemplo, trouxe novidades em relação à necessidade - por
parte de partidos, coligações e candidatos – da divulgação na internet de relatórios
que explicitem recursos e gastos estimáveis realizados em campanha, com
indicação de doadores e doados (art. 28, § 4º) e a limitação dos tipos de doações
(art. 23, §4°, I e II). Ainda, são importantes as proibições de distribuição de brindes
por candidatos (art. 39, §6°), de showmícios (art. 39, §7º) e de distribuição gratuita
de bens, valores ou benefícios, por parte da Administração Pública (art. 73, § 10º).
Essas condutas, certamente, são impactantes nas condições do pleito.
Em relação aos meios de controle, foram procedidas significativas mudanças
nos artigos 30, 30-A, 41-A e 73, da Lei 9.504/97. Primeiramente, destaca-se que, os
últimos três dispositivos supracitados, podem, além das sanções específicas, virem
a gerar os efeitos da inelegibilidade, prevista pelo artigo 1º, I, j, da Lei Complementar
64/90. Adotou-se, ainda, para processamento das ações, o rito da representação do
artigo 22, da Lei de Inelegibilidades, principalmente por seu caráter de maior
efetividade e celeridade.
De plano, a segunda “minirreforma” eleitoral incluiu ao artigo 30 da Lei das
Eleições quatro incisos. Estes incisos formaram as balizas ao julgador das contas de
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
campanha, consistindo-se em: aprovação, aprovação com ressalvas, desaprovação
e não prestação.
Nas duas primeiras situações, as contas são aprovadas, não percebendo o
candidato maiores problemas. No caso da não prestação das contas, nota-se que
esta obsta a diplomação de candidatos eleitos, além de poder configurar crime de
desobediência. Para a desaprovação das contas, caso do inciso III, a falha existente
tem que ser sobremaneira incisiva, devendo o julgador proceder a uma análise
profunda das contas em cada caso concreto. O próprio dispositivo salienta que a
falha deve necessariamente comprometer a regularidade das contas.
Ponto controverso é o dos efeitos gerados pela desaprovação das contas.
Sustenta Rodrigo López Zílio (2012, p. 413) que “a rejeição das contas, por si só, na
tem qualquer efeito sobre o candidato eleito, sendo necessário o ajuizamento de
uma ação eleitoral específica para o afastamento do mandato eletivo.” Entretanto,
para alguns autores, como Olivar Coneglian (2012, p. 216), quando desaprovadas
as contas, o efeito imediato deveria ser o barramento da obtenção de certidão de
quitação eleitoral.
Inserido através da Lei n° 11.300/2006, o artigo 30–A, da Lei das Eleições,
regulamenta a possibilidade de representação face à captação e dispêndio ilícitos de
recursos, mais conhecido pelo exemplo do “caixa dois”. A mesma Lei também previu
a aplicação, no que fosse cabível, do procedimento descrito no artigo 22, da LC
64/90 e a negação ou cassação do diploma (§§ 2° e 3°).
Thales Tácito Cerqueira (2010, p. 230) destaca que, para a aplicação do
artigo 30-A, da Lei 9.504/97, não se é exigida a potencialidade do dano, porém
devem ser observadas a proporcionalidade e a razoabilidade, quando do
julgamento. Processualmente, o dispositivo teve sua redação alterada pela Lei n°
12.034/2009 especificamente na inserção do prazo para a representação de quinze
dias contados da diplomação, bem como o prazo de recurso de três dias para
recurso da decisão que julgue a representação (§ 3°).
A Lei 12.034/2009 alterou a redação dos parágrafos do artigo 41-A, que veda
a captação ilícita de sufrágio. A principal alteração está no § 1º, que evidenciou a
adoção de duas teorias: a Teoria da Anuência Implícita e a Teoria do Dolo
Específico. Na primeira, firmou-se que, para a caracterização da prática do tipo
previsto no caput, é desnecessário o pedido explícito de voto, assim, o candidato
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
pode vir a ser responsabilizado por compra de votos, mesmo que sua atitude tenha
sido implícita. Já a Teoria do Dolo Específico se depreende da expressão “bastando
a evidência do dolo, consistente no especial fim de agir”, constante do § 1°. Assim, é
necessário que o candidato ofereça a vantagem com o fim específico da obtenção
do voto do eleitor (CERQUEIRA, 2010, p. 355).
No §2° restou tipificado o caso de captação ilícita de sufrágio por candidato
que se utilize grave ameaça ou violência a fim de obter o voto dos seus eleitores.
Foram, ainda, provocadas mudanças processuais nos §§ 3º e 4º, referentes ao
ajuizamento da representação e a possibilidade de recurso das decisões.
No tocante às condutas vedadas, as principais alterações conferidas foram:
incluir a sanção de cassação do registro ou do diploma para o agente que incorrer
nas condutas de distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da
Administração Pública (art. 73, §10), em abuso de autoridade (art. 74), ou ainda
realizar shows artísticos pagos com recursos públicos para a realização de qualquer
tipo de inauguração; restou proibida a simples presença de candidatos em
inaugurações (art. 77), não cabendo mais a discussão acerca da participação efetiva
do candidato no evento.
A Lei 12.034/2009 regulou de forma extensiva a matéria da propaganda
eleitoral. Disposta entre os artigos 36 a 58-A, da Lei nº 9.504/97, já incluindo o direito
de resposta, diversas foram as alterações previstas pela “minirreforma”, objetivando,
principalmente, o maior controle das veiculações, a maior igualdade de condições de
propaganda e a menor influência do poder econômico sobre as veiculações.
Dentre estas alterações destacam-se as limitações de tamanho de 4m² para
faixas, placas e cartazes (art. 37, § 4º), à vedação de outdoors e à proibição do uso
de trios elétricos (art. 38, § 10). Ainda, foram feitas alterações nas propagandas
eleitorais na imprensa escrita, no rádio e televisão (arts. 43-57). Por fim, em relação
à propaganda na internet, restaram vedados o anonimato (art. 57-D) e a veiculação
de propagandas pagas, ou em sites de pessoas jurídicas, sob pena de multa (57-C e
parágrafos).
Após a análise das “minirreformas”, imprescindível também o estudo das mais
importantes alterações realizadas através da Lei Complementar 135/2010, a Lei da
Ficha Limpa, nas disposições da Lei de Inelegibilidades (Lei Complementar 64/90).
Destaca-se o caráter popular desta Lei, como o resultado de um grande processo de
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
recolhimento de assinaturas, coordenado pelo Movimento de Combate à Corrupção
Eleitoral (MCCE) e pela Articulação Brasileira contra a Corrupção e a Impunidade
(ABRACCI), contando com a adesão de mais de um milhão de brasileiros.
Em relação as alterações, percebe-se que a maioria delas concentrou-se no
artigo 1°, I, da antiga Lei de Inelegibilidades, buscando não só o enquadramento de
mais situações como passíveis de conferir os efeitos da inelegibilidade à certo
candidato, mas, principalmente, garantir a efetividade destes efeitos, reduzindo o
sentimento de impunidade. Esta preocupação está evidente em diversos incisos no
aumento do prazo de inelegibilidades de 3 para 8 anos.
O lapso anterior – de três anos – era criticável em razão de sua exigüidade.
Considerando-se que as eleições ocorrem a cada quatro anos, a imposição
da sanção trienal não impedia quem a sofresse de se apresentar como
candidato para o mesmo cargo no certame seguinte; impedia-o apenas de
disputar a eleição intermediária. Nesse sentido, a ineficácia da regra geral
era de todo censurável, sendo evidente que não se tratava de sanção séria,
mas meramente simbólica. A mudança operada pela LC nº 135/2010
otimiza a eficácia da regra em apreço, pois impede que o beneficiário de
abuso de poder concorra nos quatro pleitos seguintes. Na prática, esse
longo afastamento pode significar sua “morte política”. (GOMES, 2012, p.
269).
Outro ponto merecedor de destaque é o da desnecessidade, em diversos
casos, de trânsito em julgado da sentença condenatória para que a inelegibilidade
começasse a surtir efeitos. A Lei estabelece apenas a necessidade de a decisão ser
proferida por órgão colegiado, sendo possíveis inclusive as decisões providas do
Tribunal do Júri, nos casos de inelegibilidade por condenação criminal. Neste ponto,
geraram-se dúvidas em relação ao princípio da presunção de inocência no âmbito
do Direito Eleitoral.
A principal fonte de críticas em relação à Lei da Ficha Limpa, sem dúvidas, foi
a aplicação da Lei da Ficha Limpa a fatos pretéritos, ou seja, a incidência da
inelegibilidade de oito anos à fatos anteriores à sua publicação. No sentido da
impossibilidade, pertinente a lição de Thales Tácito Cerqueira (2010, p. 728):
Pois bem, ao permitir a retroatividade da LC n. 135/2010 para casos já
julgados (coisa julgada) ou em curso antes da publicação da nova lei,
ferindo o art. 16 da CF/88, temos a consagração do que denominamos
“Direito Eleitoral do Inimigo”:
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
a) “antecipação da punição do inimigo” sem qualquer espécie de
contraditório e ampla defesa, apenas um comunicado da Justiça Eleitoral
dizendo que antes não estava inelegível, mas agora estará, ou, ainda, que
antes sua inelegibilidade era de três anos, mas agora foi aumentada para
oito anos;
b) “desproporcionalidade das penas e relativização e/ou supressão de
determinadas garantias processuais” – as penas são aumentadas para 8
anos, algumas a partir da condenação até 8 anos após o cumprimento da
pena, além de supressão de todas garantias processuais, porquanto, ao
retroagir, a lei para casos julgados (coisa julgada) ou em curso (em vez de
condenações servirem para próximas eleições), o contraditório e ampla
defesa está ou totalmente “estuprado” (ferindo coisa julgada) ou “mitigado” (
no caso do processo em curso);
c) criação de lei severa destinada à clientela – a LC n. 135/2010 é uma lei
altamente positiva, mas, a partir do momento que também deseja retroagir,
desvia-se de sua finalidade moralizadora para servir de instrumento de
atingir “inimigos”, clientela de políticos condenados, razão pela qual jamais
o STF pode (ou poderia) permitir esse instrumento de vingança
Entretanto, apesar das críticas apresentadas, em julgamento conjunto das
ADC 29 e 30, e da ADI 4578, em fevereiro de 2012, o Supremo Tribunal Federal, por
decisão não-unânime, deliberou pela constitucionalidade total da Lei da Ficha Limpa.
Em relação ao princípio da presunção de inocência, de destaque os votos que
diferenciaram o âmbito penal e processual penal do eleitoral, entendendo pela
primazia do princípio da moralidade, como visto no voto do Ministro Joaquim
Barbosa. A inelegibilidade foi tratada como o descumprimento de uma condição, da
condição da elegibilidade, e não como uma pena propriamente dita (BRASIL.
Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.578, Relator
para o acórdão Ministro Luiz Fux, j. 16 fev. 2012).
Em relação aos argumentos levantados acerca da existência de ofensa a
coisa julgada, foi considerado não haver direito adquirido à elegibilidade, se tratando
de condição a ser preenchida pelo candidato quando do momento da eleição à que
se pretende disputar. No que diz respeito à irretroatividade das Leis, interessante a
diferenciação levantada entre retroatividade autêntica e retroatividade inautêntica
(retrospectividade), pelo Relator, Ministro Luiz Fux, sustentando ser visível, na Ficha
Limpa, o enquadramento da retrospectividade, que seria permitida no ordenamento
jurídico (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
4.578, Relator para o acórdão Ministro Luiz Fux, j. 16 fev. 2012).
Ainda, de destaque a mudança realizada através da inserção do inciso XVI ao
artigo 22. Restou, por ela, abandonado posicionamento já consolidado na
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Jurisprudência, da necessidade da potencialidade do fato para a incidência da
inelegibilidade, aplicando-se, sendo indispensável, com a nova redação, a gravidade
do fato. Luiz Gustavo de Andrade (2010) explica:
Com advento da lei da ficha limpa, acrescentou-se o inciso XVI, no art. 22,
da LC 64/90, dispondo que para a configuração do ato abusivo, não será
considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição. Sem
dúvida uma inovação que demonstra preocupação com a moralização das
eleições. Entretanto, é bom ressaltar que o legislador, no mesmo
dispositivo, estabeleceu que os tribunais, por outro lado, deverão levar em
consideração a "gravidade das circunstâncias" que caracterizam o ato.
Assim, certamente a defesa dos candidatos passará a alegar que o ato não
era grave, forçando a jurisprudência a estabelecer critérios para qualificar
uma conduta como grave ou não-grave.
Entretanto, vê-se que as modificações trazidas através das “minirreformas” e
da Lei Complementar 135/2010, embora muito significativas, não tocaram em
importantes pontos, que devem ser debatidos. Um desses pontos é o das doações
ocultas. A possibilidade de doações sem identificação facilita a ocorrência de
financiamentos de campanha com verbas provenientes de fontes ilegais, ou, por
doadores que tenham interesse em proveitos futuros, caso seus financiados sejam
eleitos.
Dados recentes demonstram que a ocorrência de doações sem identificação
tem se tornado o principal meio de financiamento de campanhas. Pesquisas
recentes revelaram que 71% das doações a candidatos a prefeito de capitais do
país, nas eleições de 2012, foram ocultas. (D’AGOSTINO, 2012)
Ainda sobre as doações ocultas, esclarecedoras as palavras de Paulo
Henrique dos Santos Lucon (2010, p. 564):
É sabido e ressabido que se um financiador não deseja ter seu nome
vinculado a um candidato, ele doa ao partido político. O partido, tendo
recebido os recursos, repassa o dinheiro ao candidato. (...) As
irregularidades, se existentes, somente aparecerão muito tempo depois das
eleições. Esse sistema “partido-ponte” não permite a fiscalização a contento
e possibilita doações de origem altamente questionável. Doações
provenientes de origem ilícita maculam as eleições e devem ser combatidas
com veemência.
O fato de as alterações deixarem à margem discussões como a das doações
ocultas, somados aos exemplos de êxito da Lei n° 9.840/99 e da Lei Complementar
450
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
n° 135/2010 e à insatisfação da população em relação aos seus representantes faz
com que surjam, cada vez mais, movimentos populares que almejem mudanças.
Esse tipo de procedimento é demonstrativo da força da população em um
regime democrático, uma população tendente a ser cada vez mais consciente e
zelosa para com a coisa pública e participativa em relação ao regime político.
Por participação política não se deve entender apenas a manifestação de
vontade na escolha de representantes, mas uma série de atos tendentes à
manutenção do controle de tudo o que se faz no exercício do poder político,
desde a militância num partido político, até a participação em grupos de
interesse ou de pressão. (KNOERR, 2009, p. 45)
Nessa esteira, em ação encabeçada pelo Movimento de Combate à
Corrupção Eleitoral (MCCE), juntamente com o Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, entre outras instituições, surgiu em período recente e vem
tomado força o projeto Eleições Limpas3, que vem buscando a adesão da
população, por meio de coleta de assinaturas, para a realização de alterações mais
significativas no sistema eleitoral brasileiro, objetivando, basicamente, a diminuição
dos gastos nas eleições e do número de candidatos, o fortalecimento dos ideais
partidários e o maior controle dos financiamentos de campanha. Pode-se dizer que o
projeto, em última análise, objetiva, como seu próprio nome diz, “limpar as eleições”,
ou seja, diminuir a corrupção eleitoral, as influências e o abuso do poder político e
econômico.
As principais mudanças seriam: restrições nos financiamentos de campanha,
proibindo a participação de pessoas jurídicas e limitando a de pessoas físicas;
mudança nas eleições proporcionais, com a adoção de sistema de dois turnos, em
que no primeiro se votam nos partidos e no segundo nos candidatos; a permissão de
propagandas pagas na internet; e a consideração, como propaganda eleitoral,
apenas das propagandas pagas, excluindo-se as gratuitas.
Em relação ao financiamento de campanha e a necessidade de mudanças,
importante a lição de Francisco de Assis Vieira Sanseverino (in RAMOS, 2012,
p.263-269), que assevera como constitucional apenas o sistema misto, públicoprivado, por ser plural. Entretanto, registra a necessidade da busca por maior
3
Movimento Eleições limpas. Disponível em: <https://eleicoeslimpas.org.br/> Acesso em: 12 ago.
2013.
451
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
publicidade e transparência, com o fim das doações ocultas e das doações por
pessoas jurídicas (que não possuem capacidade eleitoral ativa nem passiva). Como
consequência da maior publicidade, salienta o autor a necessidade do aumento da
fiscalização e punição, como na criação de sanções aos candidatos que recebam
doações além do limite legal e na possibilidade de acompanhamento das contas
durante a campanha.
Em relação à votação em dois turnos, um problema reside na escolha dos
nomes que participariam do segundo turno, pois esta poderia ser feita por meio de
listas fechadas dos partidos. Fernando Gustavo Knoerr (2009, p. 68) aponta que a
adoção de listas fechadas pode significar a oligarquização partidária, sustentando
que, para que tal mudança não fosse prejudicial, seria imprescindível uma maior
democratização dos partidos políticos.
Por fim, destaca-se a proposta de se classificar como propaganda eleitoral,
apenas a propaganda paga. Com isso, uma infinidade de propagandas não seriam
alcançadas pelo crivo da Justiça Eleitoral, fugindo de sua competência, visto que,
com a desconfiguração da propaganda gratuita como meio de propaganda eleitoral,
eventuais abusos nela presentes não seriam mais passíveis de julgamento pela
Justiça Especializada. A alteração pretendida é passível de diversas críticas, tendo
em vista a importância do tema das propagandas eleitorais nos pleitos, e a
necessidade de existência de um rígido controle sobre o que é veiculado, sob pena
de se ceifar a igualdade entre os candidatos.
Após tais considerações, não pode se negar a importância da maior
participação da população, conscientizando-se, fiscalizando os agentes públicos,
sendo cautelosa com a coisa pública, ou até mesmo apresentando projetos de
iniciativa popular. Essa maior participação é sempre benéfica à subsistência e
reprodução do regime democrático.
5 CONCLUSÃO
Através do artigo concluiu-se que o fenômeno da corrupção é histórico no
país, gerando grandes prejuízos e se configurando como afrontas diretas aos
princípios regentes da administração pública.
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Viu-se que são necessárias rígidas legislações quando se tratam de atos
corruptos e ímprobos, tendo em vista a importância da moralidade e da probidade do
agente público ao tratar da coisa pública. Importantes, ainda, as alterações
realizadas buscando a redução da influência do poder econômico no pleito e a
diminuição da impunidade, principalmente as provindas da sociedade, como a Lei da
Ficha Limpa.
Entretanto, como se viu, não somente de leis e punições é que se faz um
Estado mais probo e ético. Se assim fosse, os atos corruptos e ímprobos seriam de
escala mínima no país, tendo em vista a já extensa existência de legislação relativa
ao tema. A realidade, porém, é distante disso.
A necessidade de conscientização da população para a escolha do seu
representante e de discernimento do representante para com o erário público é mais
que clara. A prevenção, mais do que a punição, se destaca como um caminho mais
coerente para a diminuição da corrupção no país.
O cidadão não deve ter o governante que merece, ele deve ter o governante
que escolhe, a partir de uma escolha consciente e convicta.
453
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À VIDA PRIVADA, INTIMIDADE E AO
SIGILO DAS COMUNICAÇÕES SOB A PERSPECTIVA
CONSTITUCIONAL
THE FUNDAMENTAL RIGHT TO PRIVACY, TO INTIMACY AND TO
SECRECY OF TELEPHONE COMMUNICATIONS IN
CONSTITUCIONAL PERSPECTIVE
Natasha Kolinski Vielmo1
Alexandre Knopfholz2
1
2
GRADUANDA EM DIREITO PELO CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA (UNICURITIBA).
Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), Pós-Graduação em
Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado em Direito Empresarial e
Cidadania pelo UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é professor horista da
disciplina de Processo Penal, nos cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área
de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: direito processual penal e direito penal.
457
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SUMÁRIO
1- Introdução. 2- Direitos da personalidade. 3- Direitos fundamentais. 4- Esfera
particular do indivíduo. 5- Direito à vida privada. 6- Direito à intimidade. 7- Direito ao
Sigilo das Comunicações. 7.1- Princípio da inviolabilidade das comunicações. 7.2 Limites ao sigilo das comunicações. 7.3 - Limites ao sigilo das comunicações
telefônicas. 8 - Conflito aparente entre direitos fundamentais. 9 - Considerações
Finais. Referências.
458
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
O Estado Democrático de Direito tem assento na proteção dos direitos
fundamentais individuais. O sigilo das comunicações telefônicas, através da regra da
inviolabilidade, é um dos meios de se garantir efetividade aos direitos fundamentais
à intimidade e à vida privada para proteção da esfera particular do indivíduo,
estando previsto no art. 5º, XII da Constituição Federal de 1988. Entretanto, o
constituinte originário permitiu expressamente a mitigação do segredo das
comunicações telefônicas no âmbito penal. Considerando esta violação autorizada,
o objetivo do presente estudo é verificar, com auxílio do método dedutivo e utilização
de pesquisa bibliográfica, quais situações permitiriam a colocação de limites e
restrições legais aos referidos direitos fundamentais.
Palavras-chave:
Direito
à
vida
privada,
Direito
à
intimidade,
Sigilo
das
comunicações telefônicas.
459
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
The Rule of Law is based on the protection of individual fundamental rights. The
secrecy of telephone communications, by the rule of inviolability, is a mean of
guaranteeing the fundamental right to intimacy and privacy. This way to protect the
private sphere is referred to in article 5, XII, of the Federal Constitution of the
Brazilian Republic of 1988. Nonetheless, the legislator who drawn up the Constitution
allowed the mitigation of this right in criminal scope. Considering this authorization of
violation, the goal of this present study is to verify, using the deductive method and
"bibliographic research", which situations admit the placement of limits and legal
restrictions on these fundamental rights.
Keywords: Right to privacy, Right to intimacy, The secrecy of telephone
communications.
460
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende estudar o âmbito de proteção dos direitos à
intimidade e à vida privada enquanto direitos da personalidade e liberdades
fundamentais como meio de garantir o livre desenvolvimento do indivíduo mediante
o reconhecimento pelo Estado de uma esfera de não interferência na liberdade da
pessoa humana.
Deste modo, a Constituição Federal declarou invioláveis os direitos à
intimidade e à vida privada e para garantir a efetividade destes assegurou também,
com fundamento no direito à liberdade de expressão e de manifestação do
pensamento, o direito ao sigilo das comunicações em geral, pelo princípio da
inviolabilidade das comunicações.
No âmbito das telecomunicações o objetivo desta regra de segredo é a
proteção do emissor e receptor contra a interceptação e divulgação por terceiro do
conteúdo comunicado. Todavia, cabe verificar não só se esta regra tem aplicação
absoluta e caso contrário, analisar em que condições e por quais motivos pode ser
legítima a intervenção neste âmbito de proteção, como também os possíveis
conflitos entre direitos fundamentais, quais sejam, o interesse público do
esclarecimento da verdade e da produção da prova pelo Estado com o direito à vida
privada, à intimidade e ao sigilo das comunicações.
2 DIREITOS DA PERSONALIDADE
Denominam-se direitos da personalidade o conjunto de direitos essenciais à
pessoa humana e que devem ser resguardados para garantia do seu pleno
desenvolvimento.
Consoante Bittar (1989, p. 6):
Consideram-se como da personalidade os direitos reconhecidos à pessoa
humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos
no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos no
homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a
intelectualidade e outros tantos.
461
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Deste modo, por serem intrínsecos à pessoa humana, os bens jurídicos vida,
liberdade, honra e intimidade, entre outros, são direitos protegidos enquanto primeira
categoria de bens do indivíduo. “A proteção que se dá a esses bens primeiros do
indivíduo, são denominados de direitos de personalidade” (SZANIAWSKI, 2005, p.
70).
Tais bens podem ser divididos, conforme Bittar (1989, p. 59) em três grupos,
quais sejam: bens de ordem física, psíquica e moral. No primeiro conjunto
destacam-se
os
elementos
extrínsecos
da
personalidade,
compreendidos
especialmente no direito à vida e à integridade física. Quanto aos bens de ordem
psíquica, ressalta-se o direito ao exercício das liberdades individuais, o direito à
intimidade e ao segredo, dentre outros elementos ínsitos da personalidade. Por
último, como valores de ordem moral atinentes ao modo como a coletividade valora
o indivíduo, destacam-se os bens jurídicos identidade, reputação e honra.
Para Sampaio (1988, p. 51), em que pese o anseio dos indivíduos por
autonomia diante do Estado ser de longa data, a construção teórica dos direitos da
personalidade é relativamente nova e ainda existem discussões doutrinárias a
respeito da natureza desses direitos. Nada obstante, o Ordenamento Jurídico
Brasileiro reconheceu sua existência e para tanto garantiu proteção através do
direito positivo. É o que se verifica dos artigos 5º, caput, e incisos IV, VI, IX, X, XIII,
XV, XVI, XVII da CF; existem ainda outros dispositivos esparsos no texto
constitucional, haja vista que os direitos arrolados no art. 5º pelo legislador não
esgotam a proteção neste âmbito. Szaniawski (2005, p. 144) acerca da
normatização assim explica:
Enquanto tratou o constituinte de cuidar da tutela da personalidade humana
através de uma cláusula geral, consubstanciada no princípio da dignidade
da pessoa humana, expresso no inciso III, do art. 1º, como princípio
informador matriz, especializou o constituinte no art. 5º, alguns direitos da
personalidade destinados a fortalecer a tutela da personalidade humana,
mediante as garantias fundamentais expressas na Constituição.
Verifica-se, todavia, que os mesmos direitos tutelados pelos direitos da
personalidade sob o panorama das relações privadas (o direito à vida, à liberdade, à
integridade e à intimidade, a título meramente exemplificativo), ou seja, entre
particulares, ao serem analisados sob o ângulo de proteção do sujeito de direitos
462
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
perante o Estado (relações de direito público) são discriminados como “liberdades
públicas” ou “direitos fundamentais”.
Quanto à expressão “direitos fundamentais”, Sarlet (2007, p. 33) salienta que,
[…] tanto na doutrina, quanto no direito positivo (constitucional ou
internacional), são largamente utilizadas (e até com maior intensidade),
outras expressões, tais como “direitos humanos”, “direitos do homem”,
“direitos subjetivos públicos’’, “liberdades públicas”, “direitos individuais”,
“liberdades fundamentais” e “direitos humanos fundamentais”, apenas para
referir algumas das mais importantes.
Sobre os diferentes planos de observação, público e privado, leciona Bittar
(1989, p. 3) que, “Alguns desses direitos, quando enfocados sob o aspecto do
relacionamento com o Estado e reconhecidos pelo ordenamento jurídico positivo,
recebem o nome de “liberdades públicas.”
Assim, como bem ressalva Bittar (1989, p. 24),
[…] a doutrina – principalmente na França- distingue os direitos da
personalidade das liberdades públicas, como institutos diversos, quanto ao
plano e quanto ao conteúdo. As liberdades públicas distanciam-se dos
direitos do homem, com respeito ao plano, pois, conforme se expôs, os
direitos inatos ou direitos naturais situam-se acima do direito positivo e em
sua base. São direitos inerentes ao homem, que o Estado deve respeitar e,
através do direito positivo, reconhecê-los e protegê-los. Mas esses direitos
persistem, mesmo não contemplados pela legislação, em face da noção
transcendente da natureza humana. Já por liberdades públicas, entendemse os direitos reconhecidos e ordenados pelo legislador: portanto, aqueles
que, com o reconhecimento do Estado, passam do direito natural para o
plano positivo.
Por conta disso, passa-se à análise dos direitos à intimidade e à vida privada
sob a ótica das liberdades fundamentais.
3 DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os direitos fundamentais, de acordo com Afonso da Silva (2007, p. 180),
463
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
[…] são direitos constitucionais na medida em que se inserem no texto de
uma constituição ou mesmo constem de simples declaração solenemente
estabelecida pelo poder constituinte. São direitos que nascem e se
fundamentam, portanto, no princípio da soberania popular.
Para Mendes (1999, p. 413) “os direitos fundamentais são, a um só tempo,
direitos subjetivos e elementos essenciais da ordem constitucional objetiva.” Por
conseguinte, forçoso concluir que essas liberdades fundamentais assentam a base
do ordenamento jurídico brasileiro, bem como determinam as diretrizes para as
políticas públicas nacionais.
Acerca da terminologia empregada, o doutrinador Afonso da Silva (2007, p.
178) justifica, dentre as várias possibilidades, a utilização do conceito “direitos
fundamentais do homem”, por entender que ela se apresenta como a expressão
mais adequada de seu conteúdo:
[…] no qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de
situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não
convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no
sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente
reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não
como o macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana. Direitos
fundamentais do homem significa direitos fundamentais da pessoa humana
ou direitos fundamentais
Diante da essencialidade dos direitos fundamentais, Sarlet (2007, p. 79)
recorda que a Constituição Federal de 1988 acentuou a importância destes
incluindo-os em posição de relevo no texto constitucional:
Dentre as inovações, assume destaque a situação topográfica dos direitos
fundamentais, positivados no início da Constituição, logo após o preâmbulo
e os princípios fundamentais, o que, além de traduzir maio rigor lógico, na
medida em que os direitos fundamentais constituem parâmetro
hermenêutico e valores superiores de toda a ordem constitucional e jurídica,
também vai ao encontro da melhor tradição do constitucionalismo na esfera
dos direitos fundamentais.
Ademais, considerando ser o sustentáculo para manutenção do Estado
Democrático de Direito, os direitos fundamentais do homem foram elevados a
464
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
cláusula Pétrea e constituem hoje disposição legal taxativamente blindada que deve
ser aplicada imediatamente (SARLET, 2007, p. 79).
Sobre a cláusula de imutabilidade ensina Sarlet (2007, p. 79) que
Esta maior proteção outorgada aos direitos fundamentais manifesta-se,
ainda, mediante a inclusão destes no rol das “cláusulas pétreas” (ou
“garantias de eternidade”) do art. 60, §4º, da CF, impedindo a supressão e
erosão dos preceitos relativos aos direitos fundamentais pela ação do poder
Constituinte derivado.
Ainda com o objetivo de assegurar a proteção dos direitos considerados
nucleares para proteção do indivíduo na relação verticalizada com o Estado, os
direitos contemplados como fundamentais da pessoa humana caracterizam-se pelo
seu caráter inalienável, dado que são direitos intransferíveis; irrenunciáveis, vez que
mesmo em caso de não serem exercidos estes não poderão nunca ser renunciados;
e imprescritíveis, visto que poderão ser sempre exigíveis. No que tange a
imprescritibilidade dos direitos fundamentais, Silva (2007, p. 181) ilustra que “a
prescrição é um instituto jurídico que somente atinge, coarctando, a “exigibilidade
dos direitos de caráter patrimonial, não a exigibilidade de direitos personalíssimos,
ainda que não individualistas, como é o caso”.”
Quanto à classificação do conteúdo, os direitos fundamentais são
identificados como individuais ou, conforme ilustra o mencionado autor, “direitos
fundamentais do homem-indivíduo, que são aqueles que reconhecem autonomia
aos particulares, garantindo a iniciativa e independência aos indivíduos diante dos
demais membros da sociedade política e do próprio Estado” (AFONSO DA SILVA,
2007, p. 191).
É, portanto, em função do reconhecimento desta esfera de independência e
não interferência frente ao Estado que os direitos fundamentais são também
chamados de direitos de defesa ou direitos negativos, pois pressupõe uma não
intervenção do Estado, por meio de seus órgãos, na esfera de liberdade da pessoa
humana, de maneira a garantir a livre manifestação da personalidade. Mendes
(1999, p. 414.) explica que, “como observado, enquanto direitos de defesa, os
direitos fundamentais
asseguram
a
esfera
da
liberdade
individual
contra
465
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
interferências ilegítimas do Poder Público, provenham elas do Executivo, Legislativo
ou, mesmo, do Judiciário”.
Dentre os direitos da personalidade que no âmbito constitucional são
contemplados pelos direitos de viés fundamental e, por conta disso, especialmente
assegurados pelo Estado, sobressaem o direito à intimidade e à vida privada, os
quais integram o plano de existência particular do indivíduo.
4 ESFERA PARTICULAR DO INDIVÍDUO
Como demonstrado, os direitos de personalidade incluem os direitos
essenciais ao desenvolvimento do indivíduo destinados a resguardar a dignidade da
pessoa humana.
Segundo Oliveira (2009, p. 84.),
[…] como garantia fundamental ao exercício de dignidade humana, a
liberdade foi também tutelada na ordem constitucional vigente, que autoriza,
como pressuposto para a consolidação da democracia, a escolha do sujeito
em manter-se individualizado e desenvolver-se, internamente, sem
intromissão e repressão do outro.
Deste modo, levando em conta que a personalidade humana é complexa e
atua dinamicamente, para garantir a proteção ao seu livre desenvolver é
indispensável tutelar a esfera interna de existência dos indivíduos evitando a
ingerência alheia.
Consoante Szaniawski (2005, p. 115.),
A pessoa humana, como ser social, vive em sociedade integrada dentro de
uma comunidade de personalidades. Assim, cumpre à ordem jurídica tornar
possível a cada ser humano realizar sua tarefa ética, seu desenvolvimento
criador, sua evolução pessoal e espiritual.
Sampaio (1988, p. 27) identifica a relação existente entre o direito à liberdade
e a esfera da vida privada:
466
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Recolhemos da liberdade um desdobramento imediato, referível a própria
existência humana, uma autodeterminação em matéria de sexualidade, de
vida familiar, de tempo de vida e morte, de informações pessoais,
autodefinidora do caráter identificador “da pessoa”, ganhe esta o matiz que
quiser e puder. A esse desdobramento, nominamos vida privada.
Diante disso, Costa Júnior (2007, p. 24) afirma a existência de duas esferas
distintas da existência humana - a esfera interna ou privada e externa ou individual:
[...] contrapõe-se à esfera individual a esfera particular ou privada. Aqui,
não se trata mais do cidadão no mundo, relacionado com os semelhantes,
como na esfera individual. Trata-se, pelo contrário, do cidadão na intimidade
ou no recato, em seu isolamento moral, convivendo com a própria
individualidade.
De modo semelhante, Bittar (1989, p. 105) trata de definir o alcance da esfera
privada:
Na esfera privada propriamente dita, tem-se a pessoa em seu interior ou em
sua intimidade (esfera da confidencialidade ou do segredo, reservada ao
intelecto próprio) e, portanto, inatingível por ação arbitrária de terceiro.
Existem, assim, fatos, ações ou dados cuja extrapolação não interessa à
pessoa, que pode, pois, evitar, juridicamente, sejam postos a conhecer, ou
a sancionar, a divulgação realizada sem, ou contra, o seu consentimento
(art.5, X).
Em função desta separação entre o espaço público e privado e para proteção
à livre existência, a Constituição Federal, em seu art. 5, X, declarou invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Portanto, como expõe
Afonso da Silva (2007, p. 205), a Constituição
[…] erigiu, expressamente, esses valores humanos à condição de direito
individual, mas não o fez constar do caput do artigo. Por isso, estamos
considerando-o um direito conexo ao da vida. Assim, ele figura no caput
como reflexo ou manifestação deste.
Da mesma forma, pela terminologia utilizada, o legislador quis indicar ao
intérprete a existência de conteúdos diversos abarcados pelo direito à intimidade e
pelo direito à vida privada (AFONSO DA SILVA, 2007, p. 206). Sampaio (1988, p.
467
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
28.) entende que “com a Constituição de 1988, enumerando no inciso X do art. 5º,
destacadamente a intimidade e a privacidade, não haveriam de ser confundidos os
dois sentidos.” Então, quando trata de prevenir a ingerência do arbítrio de terceiros
na esfera particular, trata-se de direito à vida privada. De outro lado, diz-se direito à
intimidade quando se busca em um momento posterior impedir a divulgação de fato
conhecido por terceiro referente à esfera intima da pessoa humana3.
5 DIREITO À VIDA PRIVADA
Em que pese a Constituição Federal ter garantido o direito à vida privada e à
intimidade de modo autônomo, muitos autores os entendem enquanto sinônimos.
Isso se verifica também em razão de que, como expõe Afonso da Silva (2007, p.
208), “não é fácil distinguir vida privada de intimidade. Aquela, em última análise,
integra a esfera íntima da pessoa porque é o repositório de segredos e
particularidades do foro moral e íntimo do indivíduo”.
Assim analisado, o direito à vida privada visa proteger a fruição da vida livre
de perturbações e a garantia do segredo no âmbito particular, independentemente
de eventual divulgação posterior das confidencialidades inerentes à vida privada,
motivo pelo qual eventual lesão a esse direito antecederia a lesão do direito à
intimidade.
Segundo o autor, o direito à vida privada parte, pois, “da constatação de que a
vida das pessoas compreende dois aspectos: um voltado para o exterior e outro
para o interior” (AFONSO DA SILVA, 2007, p. 208). Enquanto no aspecto exterior o
indivíduo integra a sociedade mediante as relações sociais que trava, a vida interior
do indivíduo abrange o universo de seus familiares, amigos e principalmente de si
mesmo. Logo, o conteúdo do direito à vida privada está fundamentalmente ligado ao
aspecto interior da vida humana.
3
Carlos Alberto Bittar observa que “Autores existem, ainda, que adotam – a par das divergências de
nomenclatura – conceituações diversas, como, por exemplo, quanto ao direito ao respeito à vida
privada (no direito italiano, de “segretezza”) e ao direito à intimidade (ou de “riservatezza”),
salientando que, enquanto com o primeiro se procura evitar a invasão da esfera privada, com o
segundo se busca elidir a divulgação do fato conhecido. Outros, ao revés, já entendem ambas as
posições no direito à intimidade”. É o caso do autor que entende como sinônimos o direito à vida
privada e à intimidade.
468
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
6 DIREITO À INTIMIDADE
De acordo com Bittar (1989, p. 102), “de grande relevo no contexto psíquico
da pessoa é o direito à intimidade, que se destina a resguardar a privacidade em
seus múltiplos aspectos: pessoais, familiares e negociais.”
Por isso, a proteção fundamental ao direito à intimidade é para o fim de evitar
o conhecimento de elementos da vida particular do indivíduo por terceiros. Explica a
respeito o citado autor que,
[…] nesse sentido, pode-se acentuar que consiste no direito de impedir o
acesso de terceiros aos domínios da confidencialidade. Trata-se de direito,
aliás, em que mais se exalça a vontade do titular, a cujo inteiro arbítrio
queda a decisão sobre a divulgação. (BITTAR, 1989, p. 104).
Sobre o conteúdo do direito à intimidade, Costa Jr. (2007, p. 27) lembra que
“na expressão direito à intimidade são tutelados dois interesses, que se somam: o
interesse de que a intimidade não venha a sofrer agressões e o de que não venha a
ser divulgada.”
Com amparo nestes objetivos, o direito à intimidade abraça as seguintes
garantias: a inviolabilidade do domicílio, do sigilo da correspondência e do segredo
profissional (AFONSO DA SILVA, 2007, p. 206).
Acerca da proteção ao domicílio, Afonso da Silva (2007, p. 207) aponta que:
Ao estatuir que a casa é o asilo inviolável do indivíduo (art. 5, XI), a
Constituição está reconhecendo que o homem tem direito fundamental a um
lugar em que, só ou com sua família, gozará de uma esfera jurídica privada
e íntima, que terá que ser respeitada como sagrada manifestação da
pessoa humana.
Já o sigilo de correspondência relaciona-se com o direito à liberdade de
expressão e comunicação; o dever de segredo diz respeito ao profissional, que em
razão da profissão, vem a tomar conhecimento de confidencialidade alheia. Neste
caso, o titular do segredo será protegido uma vez que o profissional se obriga a
guardar com fidelidade. (AFONSO DA SILVA, 2007, p. 207).
469
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
7 DIREITO AO SIGILO DAS COMUNICAÇÕES
Segundo Szaniawski (2005, p. 373), “com o intuito de salvaguardar o direito
ao respeito à vida privada e familiar do indivíduo, as Constituições dos países
democráticos têm assegurado o sigilo das comunicações, garantindo, desse modo, o
direito ao segredo dos cidadãos.” Por esse motivo, também a legislação brasileira
protegeu o direito fundamental ao sigilo das comunicações, conforme previsão do
art. 5º, XII da Constituição Federal.
Além de direito fundamental, como exposto inicialmente, Cambi (2004, p.143)
relembra que, “a inviolabilidade das comunicações telefônicas se insere na tutela
dos direitos de personalidade, notadamente no direito a privacidade.” Segundo ele, o
direito de conversar no telefone é um direito de personalidade visto que para
desenvolver-se é preciso trocar livre e confidencialmente ideias e opiniões.
Para Szaniawski (2005, p. 309), o respeito ao segredo das comunicações
“encontra seu fundamento no direito à liberdade de opinião, de expressão e de
manifestação do pensamento, que é expressamente tutelado pelo art. 220 da
Constituição.”
Concorde Mendes (2011, p. 330), “o sigilo das comunicações é não só um
corolário da garantia da livre expressão de pensamento; exprime também aspecto
tradicional do direito à privacidade e à intimidade”. Segue justificando que quebrar o
segredo da comunicação significaria “frustrar o direito do emissor de escolher o
destinatário do conteúdo de sua comunicação”.
É assim que, nas lições de Szaniawski (2005, p. 305), “o direito ao segredo
das comunicações consiste na possibilidade da manutenção sigilosa das
comunicações em geral, tutelando sua inviolabilidade em caráter consideravelmente
amplo”. Para ele estariam abrangidos, portanto, o direito ao segredo da
comunicação epistolar, telefônica, telegráfica e via internet.
7.1 PRINCÍPIO DA INVIOLABILIDADE DAS COMUNICAÇÕES
Acorde Sampaio (1988, p. 457), o princípio da inviolabilidade das
comunicações pessoais enquanto reforço considerável à proteção da intimidade
surgiu com o princípio da inviolabilidade da correspondência, como destaca:
470
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Da França ao mundo, o principio converteu-se em norma constitucional
ainda no Século XIX. Assim foi reconhecido pela Constituição brasileira de
1824 e pela Carta Política da Confederação Helvética de 1874. Hoje recebe
merecida proteção jurídica, no âmbito penal, civil e constitucional,
estendendo-se a outras formas de comunicação, além da correspondência
epistolar, de modo a melhor definir-se como principio da inviolabilidade das
comunicações pessoais.
Neste diapasão, para ele,
O princípio da inviolabilidade das comunicações pessoais patrocina o
respeito à intimidade, à medida que retira da curiosidade alheia algo que
pode dizer da reserva pessoal, às vezes de sua própria intimidade, como o
conteúdo de suas comunicações (SAMPAIO, 1988, p. 457).
Quanto à aplicação deste princípio nas telecomunicações, o referido autor
acrescenta que
O regime de disciplina deferida aqui é análogo ao do direito à inviolabilidade
de correspondência. Protegem-se emissor e receptor contra a interceptação
e divulgação por terceiro do conteúdo comunicado, assim como um em
relação ao outro, contra a gravação e divulgação da comunicação mantida,
para alguns.(SAMPAIO, 1988, p. 463).
Não obstante, a regra da inviolabilidade das comunicações não tem aplicação
absoluta, conforme se analisará.
7.2 LIMITES AO SIGILO DAS COMUNICAÇÕES
Sarlet (2007, p. 386) explica “que todo direito fundamental possui um âmbito
de proteção (um campo de incidência normativa ou suporte fático, como preferem
outros) e todo direito fundamental, ao menos em princípio, está sujeito a
intervenções neste âmbito de proteção.”
Nesse prisma, Sampaio (1988, p. 379) aponta que tais direitos não são
ilimitados em razão da
471
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
[…] multiplicidade de aspectos e projeções valorativas dos direitos humanos
que pode levar a situação de aparente conflito, imprimindo a necessidade
de opção. Também pode desafiar outros “valores” da vida em sociedade,
colocando um ponto de interrogação sobre a prevalência que se deva
conferir: ao direito fundamental ou aos valores-princípios em questão.
Em vista disso, a noção da impossibilidade de proteção dos direitos
fundamentais de maneira absoluta, “não tem oferecido maiores dificuldades, tendo
sido,
de
resto,
amplamente
aceita
no
direito
constitucional
contemporâneo”(SARLET, 2007, p. 387).
No tocante ao direito à intimidade, Bittar (1989, p. 106) elenca uma série de
interesses da coletividade que podem sustentar a necessidade de eventual
limitação, entre eles:
exigências de ordem histórica, científica, cultural ou artística; exigências de
cunho judicial ou policial, inclusive com o uso de aparatos tecnológicos de
detectação de fatos; exigências de ordem tributária ou econômica;
exigências da informação, pela constituição de bancos, empresas, ou
centros, públicos ou privados, de dados, de interesse negocial, e de
agências de divulgação comercial (de elementos de cunho patrimonial);
exigências de saúde pública e de caráter médico-profissional e outras.
Se, de fato, como acentua Costa Jr. (2007, p. 51),
[…] não é lícito desnudar a vida particular ou familiar de um indivíduo, seus
hábitos e vícios, suas aventuras e preferências, nulla necessitate iubente, a
contrario sensu (sem que nenhuma necessidade promova, em sentido
contrário), será legítimo desvendá-la, presentes determinadas justificativas.
Por isso, segue aduzindo o autor que não raramente se verificam hipóteses
“em que o interesse do indivíduo é superado pelo interesse público, justificando-se o
sacrifício da intimidade”, de modo a reduzir seu âmbito de proteção, sem, no
entanto, eliminá-la (COSTA JUNIOR, 2007, p. 52).
Em concordância com os ensinamentos de Arantes Filho (2009, p. 222),
Retoma-se aqui a precisa lição da doutrina brasileira: deve-se proceder à
ponderação entre o interesse publico na restrição do sigilo e o interesse
privado de quem tem o seu segredo revelado, em observância ao principio
da proporcionalidade.
472
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Pois bem. A Constituição Federal em seu art. 5º, XII, ao passo que resguarda
o direito fundamental ao sigilo das comunicações, ressalva expressamente a
hipótese de intervenção no âmbito de proteção das comunicações telefônicas nos
seguintes termos:
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último
caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer
para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
Acerca dessa disposição, Szaniawski (2005, p. 431) entende acertada a regra
constitucional acima, devendo sim encontrar exceções no âmbito penal, como
explica:
[…] diante da existência de um delito e por necessidade de investigação
criminal, cujo fundamento nos dá a segurança pública, que visa a garantia
dos cidadãos no seio da sociedade e a necessidade de apurar ou reprimir
delitos. O próprio interesse público e o direito à liberdade do homem
determinam a colocação de limites e restrições legais aos direitos e
garantias individuais.
Por essas razões, o autor infere que o direito ao segredo das comunicações
em geral não é tutelado pelo direito brasileiro de modo ilimitado,
[…] encontrando-se exceções legais ao sigilo absoluto, que se fundam em
interesses superiores de combate à criminalidade, quando poderão ser
utilizadas as interceptações de comunicações e infiltrações em casos de
investigação criminal e de instrução processual penal, que, assegurando
um mínimo do direito ao segredo das comunicações do investigado,
serão sempre processadas em autos apartados e sob segredo de justiça
(SZANIAWSKI, 2005, p. 313, grifo nosso).
Sob outra perspectiva, “onde não se diga respeito à necessária investigação
criminal, a qualquer violação de segredo de qualquer meio de comunicação, haverá,
inegavelmente, um grave atentado ao direito de personalidade do interceptado”
(SZANIAWSKI, 2005, p. 432).
Diante disso, Mendes (2011, p. 239) reforça a conclusão de “que direitos,
liberdades, poderes e garantias são passíveis de limitação ou restrição. É preciso
473
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
não perder de vista, porém, que tais restrições são limitadas”, de modo que a
limitação deve estar em conformidade com as finalidades que conduziram a sua
imposição.
7.3 LIMITES AO SIGILO DAS COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS
Acerca das espécies de limitações ao direito fundamental, Sarlet (2007, p.
386) indica “que os direitos fundamentais podem ser restringidos tanto por expressa
disposição constitucional como por norma legal promulgada com fundamento na
Constituição.” No caso desta última, Mendes (2011, p. 228) explica que estas são
“aquelas limitações que o legislador impõe a determinados direitos individuais
respaldado em expressa autorização constitucional.”
Para Sampaio (1988, p. 383), a restrição ao direito fundamental por atuação
legislativa “se dá em função de que “nenhuma medida legislativa poderá ser adotada
sem ter uma base legal (princípio da legalidade)”.” Mas não é só. De acordo com
Mendes (2011, p. 230),
[…] a técnica que exige expressa autorização constitucional para
intervenção legislativa no âmbito de proteção dos direitos individuais traduz,
também, uma preocupação de segurança jurídica, que impede o
estabelecimento de restrições arbitrária ou aleatórias.
Da análise das restrições por atuação legislativa, subdividem-se estas em
reserva legal simples e reserva legal qualificada. Conforme Sarlet (2007, p. 392),
enquanto as simples autorizam o legislador a intervir sem estabelecer pressupostos
objetivos,
[…] as reservas legais qualificadas, têm como traço distintivo o fato de
estabelecerem pressupostos e/ou objetivos a serem atendidos pelo
legislador ordinário para limitar os direitos fundamentais, como bem
demonstra o clássico exemplo do sigilo das comunicações telefônicas (5º,
XII, CF): “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último
caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer
para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
474
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Considerando o exposto, assegura-se que a ressalva apresentada pelo art.
5º, XII, da Constituição Federal, referente ao direito ao sigilo das comunicações
telefônicas, constitui uma restrição legal qualificada, haja vista que “a Constituição
não se limita a exigir que eventual restrição ao âmbito de proteção de determinado
direito seja prevista em lei, estabelecendo, também, as condições especiais, os fins
a serem perseguidos ou os meios a serem utilizados” (MENDES, 2011, p. 234).
Por esse motivo, Mendes (2011, p. 235) manifesta que “a restrição à
inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas somente poderá concretizarse mediante ordem judicial, para fins de investigação criminal ou instrução
processual penal, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer”, razão pela qual
“não pode o legislador autorizar a interceptação telefônica para investigações de
caráter administrativo-disciplinar ou, no caso, de investigações relacionados com
eventual propositura de ações de improbidade”.
8 CONFLITO APARENTE ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Levando em conta que os direitos fundamentais não são absolutos, como
anteriormente explanado, em se verificando uma situação em que “ambos os direitos
conflitantes são fundamentais, são direitos primeiros, que são legitimamente
tuteláveis pela Constituição e demais normas ordinárias” (SZANIAWSKI, 2005, p.
268), Szaniawski ensina que será preciso averiguar qual o direito preponderante no
caso concreto.
Relaciona o autor que dentre os “conflitos do direito de personalidade com
outro direito, também primeiro, tutelado pela Constituição, encontramos o direito à
prova, que é um direito fundamental” (SZANIAWSKI, 2005, p. 268). Este direito, com
poucas exceções, ressalta o mencionado estudioso, “encontra seus fundamentos na
obrigação de boa-fé que todos devem ter no processo e no princípio da descoberta
da verdade, pois ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário
para o descobrimento da verdade” (SZANIAWSKI, 2005, p. 270).
Concorde Avolio (1995. p. 152), “o direito à prova constitui um desdobramento
do princípio do contraditório, não se reduzindo ao direito de propor ou ver produzidos
os meios de prova, mas, efetivamente, na possibilidade de influir no convencimento
do juiz.”
475
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Contudo, Sampaio (1988, p. 396) entende não ser possível estabelecer, “uma
regra geral de prevalência do interesse da Justiça sobre o interesse individual”,
posto que “em muitos pontos, o interesse público do esclarecimento da verdade
cruza com o direito à intimidade de uma das partes em questão. Ou até de
terceiros.” Além do mais, Szaniawski (2005, p. 277) adverte que “esta problemática
deve ser enfrentada tanto no processo civil como no processo penal, pois a busca
da verdade em qualquer processo poderá violar os direitos de personalidade do
indivíduo sujeito a essa verificação.”
Szaniawski ( 2005, p. 272) examina que, ao menos em teoria,
[…] não deveriam existir limites ou restrições à admissibilidade de qualquer
meio de prova no processo, uma vez que esta pretende sempre demonstrar
a verdade dos fatos, colimando com a realização da justiça. Mas, muitas
vezes, a prova pode ser obtida por meios ilícitos ou, até mesmo, criminosos.
É o caso, por exemplo, da utilização da prova ilícita no processo, em que
estão em conflito
[…] o direito à prova através de todos os meios, para alcançar-se a verdade,
e o direito da parte contrária de opor-se a tal meio de prova, por constituirse este num grave atentado ao direito ao respeito à vida privada, sendo tal
prova denominada de prova ilícita. (SZANIAWSKI, 2005, p. 368).
A fim de evitar tais excessos na averiguação da verdade, a Constituição
Federal proíbe expressamente a utilização das provas obtidas de modo ilícito. Sobre
isso reflete Cambi (2004, p. 147): “Ora, se o direito a privacidade não é absoluto, o
direito a prova também encontra limitações na Constituição”.
No entendimento de Avólio (1995, p. 153), consideram-se ilícitas as provas
que na sua obtenção infringiram normas ou princípios de direito material, mas que
sua ilicitude repercute também no plano processual e como consequência, será
inutilizada.
Em razão deste conflito aparente entre direitos, Baltazar Jr. (2006, p. 239)
justifica a necessidade de positivação do direito ao sigilo das comunicações e sua
posterior limitação, regulamentada pela Lei 9.296/96, como se lê:
476
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Esse conflito entre a proteção da vida privada e as necessidades da
investigação criminal, bem como o fato de que, na comunicação telefônica,
não há possibilidade de averiguação posterior do que foi dito, pois as
palavras se esvaem no próprio momento em que proferidas, levaram à
inclusão na Constituição, precisamente no inciso XII do art. 5º, de referência
específica ao sigilo das comunicações telefônicas.
Dessa feita, a Lei 9.296/1996 ao dispor taxativamente quais as hipóteses em
que se permite a violação autorizada cessou a discussão acerca da existência de
um conflito aparente entre direitos, destacando-se ainda que a possibilidade de
mitigação do direito ao sigilo das comunicações, na forma da lei, não importará na
sua exclusão.
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É de se ressaltar que os direitos à intimidade e vida privada, previstos
no art. 5, X, da Constituição Federal de 1988, são denominados direitos da
personalidade de ordem psíquica, na medida em que constituem um conjunto de
direitos inerentes ao homem e, portanto, essenciais ao desenvolvimento da pessoa
humana, por isso protegidos enquanto primeira categoria de bens do indivíduo.
Observou-se que esses mesmos direitos à intimidade e vida privada, quando
enfocados sob o aspecto das relações entre indivíduos e Estado, são chamados de
liberdades públicas ou direitos fundamentais, uma vez que ao serem positivados
pelo Estado passam a assentar toda a base do ordenamento jurídico, garantindo a
manutenção do Estado Democrático de Direito.
Além disso, são também conhecidos como direitos de defesa ou negativos
por reconhecerem a autonomia dos particulares e estabelecerem a não interferência
do Estado na esfera de liberdade da pessoa humana, especialmente na esfera
particular do indivíduo, que protege a livre existência. Nesta, sobressaem-se, com
maior destaque, os direitos fundamentais à vida privada e à intimidade: enquanto o
primeiro previne a ingerência arbitrária de terceiros no aspecto interior da vida
humana, o segundo visa impedir o conhecimento de elementos da vida privada do
indivíduo.
Deste modo, com o intuito de salvaguardar o direito à intimidade e à vida
privada, foi constitucionalmente assegurado o direito ao sigilo das comunicações
477
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
pelo princípio da inviolabilidade das comunicações telefônicas, fundado na liberdade
de manifestação do pensamento.
Todavia, foi possível verificar que, em função da multiplicidade de interesses
coletivos, é impossível a garantia absoluta dos direitos fundamentais, razão pela
qual eles estão sujeitos à intervenção no seu âmbito de proteção. É o que ocorre
com a regra da inviolabilidade das comunicações quando a Constituição Federal,
expressamente, mediante reserva legal qualificada, ressalva a hipótese de redução
da sua proteção diante da existência de um delito e do dever do Estado de
investigar. Não obstante, eventuais restrições ao direito ao sigilo das comunicações
telefônicas são limitadas pelas próprias finalidades que conduziram a sua imposição.
Constatou-se, então, que existe um conflito aparente entre direitos
fundamentais: de um lado o interesse público do esclarecimento da verdade e a
prerrogativa da produção da prova pelo Estado que se cruzam, de outro lado, com o
direito à vida privada, à intimidade e o sigilo das comunicações.
Esta
“incompatibilidade” foi resolvida pela Lei 9.296/1996 que, obedecendo uma
exigência legal da Constituição Federal, estabeleceu as hipóteses e os requisitos
formais para mitigação de direitos fundamentais.
Todavia, caberá sempre o exame do caso concreto para a autorização ou não
da interceptação, atendendo-se à excepcionalidade da medida e ao cumprimento
dos dispositivos legais, posto que não existe uma regra geral de preponderância
entre liberdades públicas.
478
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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480
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA
THE CORPORATE CRIMINAL LIABILITY
Patrícia Ribeiro Dantas de Melo e Bertin1
Alexandre Knopfholz2
Acadêmico do curso de Direito do 9º período do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), Pós-Graduação em
Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado em Direito Empresarial e
Cidadania pelo UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é professor horista da
disciplina de Processo Penal, nos cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área
de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: direito processual penal e direito penal.
1
2
481
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
482
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
O presente trabalho objetiva demonstrar a pertinência da previsão da
responsabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, por
parte do projeto do Novo Código Penal. Sobre este instituto far-se-á uma breve
análise histórica, para em seguida estabelecer uma análise das posições
doutrinárias favoráveis e contrárias a inserção da responsabilidade penal da pessoa
jurídica no ordenamento brasileiro, ponderando questões dogmáticas, dificuldades
de adequação ao Direito Penal Clássico, bem como a dificuldade em se estabelecer
um indivíduo culpado pela prática ilícita. Por fim, pretende-se, abordar a adoção da
responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil pela Lei 9.605/98 dos crimes
ambientais, bem como análise dos dispositivos constitucionais que supostamente
trazem essa previsão, e a adoção em outros países.
Palavras-chave: responsabilidade penal da pessoa jurídica, ordenamento jurídico
brasileiro, posições doutrinárias, adoção em outros países.
483
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
The present study aims to demonstrate the relevance of the possible
acceptance of corporate criminal liability by the Brazilian law system. For that
purpose, it will be made a brief historical analysis, and than an investigation about
the doctrinal positions for and against its adoption in the Brazilian legal system,
analyzing dogmatic issues, the difficulties of adequacy on the classic criminal
system, as well as the difficulties of establishing a subject responsible for violating
the law. Lastly, it will be studied the adoption of the corporate criminal liability by the
9.605/98 law of the environment crimes, also an analysis of the constitutional devices
that supposedly accept it, and the adoption in other countries.
Keywords: corporate criminal liability, Brazilian law system, doctrinal positions,
adoption in other countries.
484
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
O ordenamento brasileiro é fruto dos ideais iluministas da revolução francesa,
e com isso toda conformação do Direito Penal é pautada nos paradigmas do Direito
Penal clássico, ou seja, na teoria geral do delito (culpabilidade, antijuridicidade e
tipicidade) e na responsabilidade subjetiva, da pessoa natural.
E é neste paradigma clássico, em sua estrutura dogmática, e na teoria da
ficção,
que
se
fundamentam
os
doutrinadores
contrários
a
adoção
da
responsabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, a qual
foi prevista no projeto de reforma do Código Penal de 1940, para a prática de crimes
contra ordem econômica e administração pública. Para os doutrinadores favoráveis
leva-se em consideração a corrente moderna, já presente em muitos países, que
trás a adoção da responsabilidade objetiva, devido a força e influência que as
grandes corporações passaram a ter na sociedade globalizada e os novos bens
jurídicos e direitos a serem tutelados.
Além destes fatos cumpre salientar que com relação aos crimes ambientais já
há previsão legal para a responsabilização penal das empresas, fomentando a
controvérsia com relação a este instituto. Portanto, o intuito deste artigo é entender o
surgimento e posições doutrinárias acerca deste instituto para esclarecer a
pertinência de sua adoção no ordenamento jurídico brasileiro.
2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS
Dentro da conformação do Direito Romano podem-se identificar determinadas
estruturas que em muito se assemelhavam com o conceito que se tem hoje de
diferenciação entre a pessoa física e jurídica, bem como a responsabilização desta
última.
Na Roma antiga havia a distinção entre obrigações das universitas,
comparáveis a corporações, e seus membros os singuli, caracterizando-se nos
primórdios de uma diferenciação entre pessoa jurídica e pessoa física. Entretanto,
mesmo com esta separação, as corporações eram tidas como pura ficção, e não
485
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
realidade social ou jurídica, e por este motivo não possuíam responsabilidade
criminal. (SHECAIRA, 2011, p. 7)
Além deste modelo, tinha-se a possibilidade de exercer a actio dolus malus, a
acusação contra o Município, quando o coletor dos impostos exercesse sua função
de forma irregular, com cobranças em demasia, enriquecendo de maneira ilícita. No
caso descrito era possível se insurgir contra o Município, o que poderia ser
considerado como um mecanismo primitivo de admissão da responsabilização de
uma corporação com relação a um dano causado a população.
Na Idade Média a concepção do modelo de responsabilização da pessoa
jurídica
também
não
é
prevista,
entretanto
podem-se
perceber
institutos
semelhantes igualmente como no Direito Romano.
Neste período tem-se o modelo do Estado Soberano, o qual concentrava
todos os poderes para si, corroborando para os abusos deste poder, e contribuindo
para o questionamento deste modelo, trazendo assim a necessidade de uma
responsabilização deste ente para com seus excessos.
Uma maior proximidade com o conceito de responsabilização da pessoa
jurídica era identificado nos glosadores, esta escola tinha o conceito de um ente
coletivo, as universitas como corporações, quando considerava que as decisões do
conjunto de membros desta entidade configuravam-se como uma decisão única.
No entanto, embora os glosadores não tivessem conhecido um conceito de
pessoa jurídica, não ignoravam a figura da corporação, entendida como a
soma e a unidade dos membros titulares de direito. Essas corporações
podiam delinqüir. Havia crime da corporação quando a totalidade de seus
membros iniciava uma ação penalmente relevante por meio de uma decisão
conjunta. (BITENCOURT, 2011, p. 28)
A corporação respondia criminal e civilmente por suas decisões coletivas, se
a decisão não se caracterizasse como de todo o grupo representado pela
corporação havia a responsabilização do membro que cometeu o delito
individualmente. Os glosadores trouxeram esta imputabilidade à corporação como
ente que representava uma decisão de um determinado grupo de pessoas, o que se
tornava mais fácil do que se punir individualmente.
Os canonistas, por sua vez, conferem uma evolução significativa no conceito
de pessoa jurídica, admitindo-o no caso da instituição eclesiástica. Isto se deu pela
486
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
“[...] dificuldade prática em explicar o fenômeno real das organizações eclesiásticas,
a partir da concepção dos glosadores [...]”. (BITENCOURT, 2011, p. 29)
Com a conferência de capacidade jurídica para as universitas, que divergia da
capacidade de seus integrantes, tem-se que a igreja passou a identificar Deus, no
caso representado pelo Papa, como o titular dos direitos eclesiásticos, e não os
membros que compunham a organização. Com isto, as instituições eclesiásticas
passam a ser consideradas como entes sujeitos de direitos, desenvolvendo o
modelo anterior, no qual as corporações respondiam pelas decisões do coletivo,
mas apenas seus membros eram considerados pelos glosadores como titulares de
direitos.
Com os pós-glosadores as universitas adquiriram a possibilidade de delinquir,
praticando crimes, e responder pelos mesmos. As corporações detinham
capacidade como fictio iuris, e respondiam por crimes próprios, relacionados com
atividades essenciais à corporação, ou impróprios, as quais só poderiam ser
realizadas por um representante. No primeiro caso quem respondia pelo crime
cometido era o ente jurídico, no segundo o sujeito que praticou o delito,
estabelecendo a distinção entre crime imputado ao sujeito, e crime imputado ao ente
coletivo. (BITENCOURT, 2011, p. 30)
Com o movimento iluminista e a Revolução Francesa, que trouxe os conceitos
de igualdade fraternidade e liberdade, tem-se um pensamento voltado para o
indivíduo que rechaça os modelos de dominação destes entes coletivos opressores,
e com isso tem-se o abandono da responsabilização penal da pessoa jurídica, para
se difundir uma responsabilização individualista.
Entretanto, o motivo para este fenômeno envolve apenas questões políticas, e
como na pós-modernidade percebe-se que as corporações voltaram a exercer
grande poder e influência social, tem-se a volta deste modelo no ordenamento
jurídico de diversos países.
487
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
3
POSICIONAMENTOS
ACERCA
DA
RESPONSABILIDADE
PENAL
DA
PESSOA JURÍDICA
Como se pôde perceber a responsabilização penal do ente moral não é uma
criação da modernidade, seu surgimento remete a períodos longínquos da história,
principalmente quando corporações ou agrupamentos adquiriam destaque na
sociedade.
Por este motivo, parte da doutrina considera que, como na atualidade as
corporações voltaram a ganhar poder e importância na sociedade, por serem
responsáveis pelas principais mudanças sociais, a criminalidade do grupo deve ser
reconhecida em detrimento da criminalidade individual, reconhecendo novos bens
jurídicos de caráter coletivo como a saúde pública, fazenda pública e o meio
ambiente, (BUSATO, 2012, p.26) os quais sofrem influência significativa destes
agrupamentos, e cuja responsabilização individual de seus membros, devido a sua
organização
hierárquica
e
fracionariedade,
torna-se
de
difícil
alcance.
(SCHUNEMANN, 1988, p.530)
A doutrina majoritária, entretanto, rechaça veementemente a ideia de
considerar como responsável penalmente o ente coletivo, pelo fato do ordenamento
jurídico brasileiro se basear nos ideais iluministas da Revolução Francesa do culto
ao homem. O impedimento para esta parcela doutrinária encontra-se no avanço
científico-dogmática da teoria geral do delito (culpabilidade, antijuridicidade e
tipicidade), a qual estabelece os parâmetros para o Direito Penal clássico, que se
pauta na responsabilidade subjetiva e no indivíduo físico.
É esta preocupação mais com a forma do que com o conteúdo, mais com a
coerência interna do sistema do que com suas consequências, mais com a
preservação de um status quo da falácia da segurança jurídica do que com
a permeabilidade do sistema para com as intercorrências sociais que
conduz à diatribe entre os que rechaçam e os que defendem a
responsabilidade penal das pessoas jurídicas. (BUSATO, 2012, p. 34)
E para melhor entender a divisão de posicionamentos que surge na doutrina,
faz-se necessária uma análise dos argumentos favoráveis e contrários a adoção
deste instituto.
488
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
3.1 POSIÇÃO CONTRÁRIA
Primeiramente deve-se salientar que o Direito Penal clássico coloca-se como
ultima ratio, ou seja, última instância a se recorrer na garantia dos bens jurídicos
socialmente relevantes. Antes de se valer do direito penal, deve-se esgotar todos os
outros meios de garantia do ordenamento jurídico, e isto se torna a principal crítica à
expansão do direito penal, vez que, o direito penal na modernidade passou a ser
utilizado como primeiro recurso de tutela, em contraposição a sua real natureza,
trazendo a discussão da possibilidade de penalização do ente moral. (SHECAIRA,
2011, p. 258)
É necessário ponderar também que para esta linha de pensamento, a simples
dificuldade em penalizar o real agente que praticou o ilícito dentro da conformação
empresarial, principal argumento favorável como veremos mais adiante, não pode
servir de justificativa para que princípios que pautam nosso ordenamento jurídico
sejam violados ou deixados de lado.
Para melhor entender o cerne da problemática da responsabilização do ente moral é
necessário citar duas teorias distintas usadas para explicar a natureza da pessoa
jurídica, a teoria da ficção, e da realidade. A primeira, criada por Savigny, preceitua
que o ente coletivo trata-se de algo irreal, de existência fictícia, sendo incapaz de
delinquir, visto que os delitos são praticados por seus membros, pessoas físicas que
o compõe. Nas palavras de Shecaira:
Ora, os delitos que são imputados à pessoa jurídica são praticados sempre
pelas pessoas físicas que a compõem (diretores, membros, funcionários) e
pouco importa que o interesse da corporação tenha servido de motivo ou de
fim para o delito. É que o direito penal refere-se ao homem natural, que
dizer refere-se a um ser livre, inteligente e sensível. A pessoa jurídica, ao
contrário, está desprovida desse caráter, não sendo mais do que um ser
abstrato que o direito penal não pode atingir. (SHECAIRA, 2011, p. 89)
Já a segunda, defendida por Otto Gierke, vê o ente moral como um ente real,
independente do indivíduo que o compõe, “o ente corporativo existe, é uma
realidade social. É sujeito de direitos e deveres, em consequência é capaz de dupla
responsabilidade: civil e penal”. (PRADO, 2002, p. 260)
489
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A incompatibilidade tida pela doutrina majoritária encontra respaldo no
princípio presente nos países adeptos do sistema romano-germânico da societas
delinquere non potest, “segundo o qual é inadmissível a punibilidade penal das
pessoas jurídicas, aplicando-se-lhes somente a punibilidade administrativa ou civil
[...]” (BITENCOURT, 2011, p. 26), a punibilidade só pode recair sobre as pessoas
naturais que compõe a pessoa jurídica como autores ou partícipes. (PRADO, 2011,
p. 131). Este posicionamento é defendido pelo penalista René Ariel Dotti, ao trazer a
questão da possibilidade de deixar que os verdadeiros responsáveis pelo crime
fiquem em pune, enquanto se responsabiliza o órgão que os representa (DOTTI,
2011, p. 166).
Admitir a responsabilização penal da pessoa jurídica seria inserir a
responsabilidade objetiva em um sistema penal pautado pela responsabilidade
subjetiva, que é o caso do ordenamento jurídico brasileiro, e ai resta a dúvida se há
a possibilidade de adequar o modelo adotado da teoria geral do delito para
recepcionar está figura jurídica ou não.
Na caracterização da responsabilidade penal subjetiva têm-se elementos
essenciais, que não se encontram presentes na pessoa jurídica, quais sejam: “a)
capacidade de ação no sentido penal estrito; b) capacidade de culpabilidade
(princípio da culpabilidade); c) capacidade de pena (princípio da personalidade da
pena) [...]”. (PRADO, 2002, p. 219)
3.1.1 Capacidade de ação
Segundo o modelo causalista, criado por Franz Von Liszt (sistema causalnaturalista), ação seria uma atividade realizada pelo ser humano a partir de sua
vontade, produzindo um efeito modificador no mundo exterior (VON LISZT, 1889,
p.193). Já o conceito trazido pela teoria social de acordo com Daniela de Freitas
Marques seria “[...] toda atividade humana social e juridicamente relevante, segundo
os padrões axiológicos de uma determinada época, dominada ou dominável pela
vontade” (MARQUES, 2001, p.67). E por fim, o conceito finalista de Welzel, ação
passou a ser uma atividade humana voluntária voltada para um fim que pode ser
lícito, no qual não há intenção de promover o ilícito, mas por negligência,
490
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
imprudência ou imperícia, ocorre o resultado lesivo ou ilícito, no qual existe a
intenção da lesão.
Dentre todos os conceitos trazidos pela doutrina percebe-se um fator comum,
que é o fato da conduta só poder existir enquanto exercício humano proveniente da
vontade dirigida a uma finalidade. Conforme coloca o professor René Ariel Dotti “No
sistema positivo brasileiro, a possibilidade de atribuição de um delito é privativa das
pessoas físicas”. (DOTTI, 2004, p. 303)
Para os críticos da responsabilização penal da pessoa jurídica, ela é incapaz
de praticar uma ação, por tratar-se de um ente representativo de um grupo de
pessoas, e este grupo, por meio de seu Conselho diretivo, estabelece decisões, que
serão implementadas através da pessoa jurídica. Trata-se de um instituto criado por
um coletivo de indivíduos que não possui consciência, nem vontade para tomar
decisões e agir de forma autônoma.
A responsabilidade subjetiva é o modelo adotado pelo nosso ordenamento em
respeito ao princípio da Dignidade da pessoa humana “[...] que, ao inserir o homem
no centro do Direito Penal, trata-o como um ser livre e com capacidade de
autodeterminação. ” (KNOPFHOLZ, 2013, p. 165), por este motivo a conduta é um
ato típico do ser humano, vez que “[...] deve haver, para a responsabilização penal,
liame psíquico entre o fato criminoso e seu autor, e não mera ligação entre ação (ou
omissão) e resultado [...]”. (KNOPFHOLZ, 2013, p. 166)
En otras palavras: sólo podrá ser sujeto con capacidade de acción quien
posea individualidade psicológica. Pero, como la persona jurídica carece de
voluntad en este sentido no es capaz de acción y sólo puede ser concebida
como una ficción. Sólo las personas físicas pueden actuar y, por lo tanto,
pueden tener capacidade para delinquir: societas delinquere non potest.
(BACIGALUPO, 1998, p. 63)
E por mais que a ação, segundo a teoria finalista, esteja voltada apenas para
sua finalidade, não exclui a necessidade de um ser humano com capacidade para
discernir frente às consequências de sua conduta que culminarão em determinado
fim. Deste entendimento tem-se a complexidade do modelo de uma ação como
dolosa ou culposa, diferente do que trazia o modelo causal.
491
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A doutrina finalista da ação não se preocupa apenas com o conteúdo da
vontade, o dolo, que consiste na vontade de concretizar as características
objetivas do tipo penal, mas também com a culpa. O Direito não deseja
apenas que o homem não realize condutas dolosas, mas também, que
imprima em todas as suas atividades uma direção finalista capaz de impedir
que produzam resultados lesivos. As ações que, produzindo um resultado
causal, são devidas à inobservância do mínimo de direção finalista no
sentido de impedir a produção de tal consequência (sic), ingressam no rol
dos delitos culposos. (JESUS, 2002, p. 235)
O dolo e a culpa constituem-se como elementos essenciais para verificação
do grau de reprovabilidade da conduta, e sua previsão está extensamente disposta
no ordenamento jurídico penal brasileiro, bem como em diversos outros. É o modelo
que vige na sociedade, no qual o dolo passou a integrar a conduta como elemento
subjetivo do tipo, na tentativa de buscar um julgamento que culmine na pena mais
justa de acordo com o grau de vontade de lesividade da conduta praticada.
Para o estabelecimento de culpa ou dolo, segundo maior parte da doutrina, é
necessário que haja uma conduta humana, para avaliar se houve vontade no
cometimento do crime, ou se ele ocorreu por negligência ou imperícia. No caso o
dolo apresenta-se como elemento cognitivo e volitivo, o conhecimento do fato ilícito
e a vontade de praticá-lo.
3.1.2 Capacidade de culpabilidade
Culpabilidade é a relação subjetiva entre o autor do fato e sua consequência.
Trata-se da “[...] reprovabilidade da conduta ilícita (típica e antijurídica) de quem tem
capacidade genérica de entender e querer (imputabilidade) e podia, nas
circunstâncias em que o fato ocorreu, conhecer a sua ilicitude, sendo-lhe exigível
comportamento que se ajuste ao direito”. (FRAGOSO, 2004, p. 240)
A culpabilidade, dentro de um contexto moderno, vincula o autor ao fato,
aspecto esse que a doutrina denomina imputação subjetiva. A
desaprovação que se atribui ao autor do delito é resultado de um enlace
eminentemente individual; depende de sua personalidade, suas particulares
relações afetivas, psicológicas, espirituais, fundamentalmente éticas (mas
não morais). (SHECAIRA, 2011, p. 79)
492
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
O autor do ilícito deve conhecê-lo, ou dispor de meios para tanto, para assim
ter a possibilidade de decisão entre a prática da conduta reprovável ou não, pois a
culpabilidade se pauta pela vontade e consciência do indivíduo. O conceito de culpa
trás o entendimento de “[...] um juízo de censura ético-pessoal, com fundamento na
liberdade do homem, na sua vontade consciente e livre [...]”, (DIAS, 2007, p. 296)
considerado como algo próprio do ser humano.
Dos pressupostos que a compõe a culpabilidade, a imputabilidade dispõe
sobre a capacidade de ser culpável, de lhe ser imputada uma pena pelo
cometimento de determinado delito, neste elemento convergem os conceitos de
compreensão do ilícito, e a vontade de seu cometimento baseado neste
entendimento. Por este motivo, que os menores de idade, considerados incapazes
juridicamente, não podem ser declarados culpados do cometimento do crime, bem
como as pessoas com doenças mentais, indivíduos que não possuem o
desenvolvimento necessário para compreender e discernir sobre o que a lei
estabelece como bom e como reprovável.
Este caráter de compreensão e vontade de praticar o ilícito, que compõe a
imputabilidade, são características que só podem ser atribuídas a pessoas físicas,
entes fictos não possuem vontade nem discernimento. Ademais, em não possuindo
consciência do ilícito não há como se cobrar conduta diversa da praticada.
Quanto à consciência da ilicitude, tem-se a necessidade do indivíduo dispor
de meios para saber que aquela conduta era ilícita, e isto se pressupõe pelo fato das
leis estarem codificadas e descritas em suportes físicos de acesso geral, ninguém
pode se eximir de pena alegando desconhecimento da lei, pois a lei é um
mecanismo proveniente de um dos três poderes estatais, que visa garantir os
direitos dos cidadãos e limitar a atuação estatal. “É suficiente que o sujeito tenha a
possibilidade de conhecer a ilicitude da conduta, não se exigindo que possua real
conhecimento profano do injusto”. (JESUS, 2002, p. 463)
Quanto à pessoa jurídica também é difícil encaixá-la nestes moldes tendo em
vista que não é um ente pensante para poder ter conhecimento sobre algo.
A pretensão de se incriminar as pessoas coletivas esbarra na
impossibilidade de se conceber que uma empresa comercial, por exemplo,
tenha possibilidade de formar “consciência de ilicitude” da atividade que é
desenvolvida pelos seus prepostos e servidores. Nem seria razoável
493
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
formular-se um juízo de reprovabilidade penal pelo desempenho de uma
instituição financeira, embora seja possível estabelecer-se o juízo externo
de reprovação pelo seu comportamento nocivo junto ao mercado mobiliário.
Mas, trata-se de um julgamento que deságua na imputação da
responsabilidade administrativa, fiscal e civil; jamais de natureza criminal.
(DOTTI, 2011, p. 185-186)
Outro pressuposto da culpa, a exigibilidade de conduta diversa, está na
possibilidade do indivíduo não praticar o ilícito, praticando uma conduta legal, lícita.
No caso de não possuir de outros meios para defender-se, se não praticar o ilícito,
pode ser configurado como legítima defesa, dentro outros institutos. Exige-se a
possibilidade de conduta conforme o direito, o que parte do pressuposto de um juízo
de valor inerente a pessoa física.
A culpabilidade, então, em todos os seus pressupostos, prescinde de uma
vontade e de uma cognição que são características da pessoa física, e configuram a
dificuldade de amolde da responsabilização da pessoa jurídica nestes aspectos. A
responsabilidade prescinde de culpa, e a culpa não pode recair sobre fato alheio, ou
seja, não pode recair sobre uma suposta ação de um ente fictício quando cometida
por seus dirigentes, o que acabaria por ferir o princípio da culpabilidade. (PRADO,
2011, p. 134)
Para que se tenha culpa é necessário consciência da ilicitude, e apenas a
pessoa natural é capaz de ter esta cognição e entendimento sobre o ilícito e
capacidade de se auto determinar, praticando o ato delitivo a partir de sua vontade,
que é inerente ao ser humano. O ente coletivo trata-se de uma ficção, suas “ações”
são o reflexo da vontade e cognição de seus membros, ele por si só não possui
personalidade e existência real, portanto não pode praticar uma ação nem ser-lhe
imputada a prática de um ilícito.
Ademais a culpabilidade também é utilizada como medidor de pena após a
condenação, “o dado básico para a individualização judicial da pena é, sem dúvida,
a culpabilidade”, (LUISI, 2011, p. 40) ela se torna parâmetro a ser seguido pelo juiz,
para aplicação da pena, bem como a avaliação de outros elementos, como conduta
social, personalidade, comportamento da vítima etc. E dentre estes fundamentos,
muitos prescindem do status de ser humano. Com relação ao ente moral não há os
pressupostos judiciais mais primordiais para a formação da pena-base, com relação
ao procedimento de individualização da pena. (SANTOS, 2011, p. 290)
494
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
3.1.3 Capacidade de pena
A capacidade da pena tem relação com o princípio da personalidade da pena,
ou seja, nenhuma pena passará da pessoa do condenado, o que pressupõe que a
pena nunca será imposta a outrem que não o real autor do ilícito, e não sobre um
grupo de pessoas, aos quais não se pode precisar quem é efetivamente responsável
pelo crime.
Se não é possível aplicarmos a sanção de maneira individualizada à pessoa
jurídica, mas sempre tomando como referencia à atuação de seu dirigente,
não se preserva íntegro o princípio constitucional da individualização da
pena. A individualização não pressupõe somente a existência de duas
sanções a dois acusados, mas uma sanção penal verdadeiramente
autônoma, especificamente voltada à pessoa condenada, como fundamento
em uma responsabilidade própria e distinta do corréu, diferenciada em
razão de cada “individualidade”. (BREDA, 2011, p. 294)
Tem-se a possibilidade de ao se condenar a pessoa jurídica, a pena recair
sobre sócios minoritários, ou acionistas que não participaram da confecção ou
planejamento do ilícito, mas por fazerem parte da estrutura hierárquica acabam por
sofrer as consequências em igual medida. Portanto, a pena deixa de se restringir
àquele que lhe cabe, como garantia constitucional do Estado democrático de direito,
e passa a ter a possibilidade de atingir terceiros inocentes.
Outrossim, o princípio da personalidade pressupõe os conceitos de autoria e
participação inerentes a pessoa natural, de indivíduos que possuam capacidade
cognitiva possuindo personalidade e vontade para cometer a infração penal, e
seguindo esta lógica a pessoa jurídica não poderia ser considerada como autor ou
participe. (SANTOS, 2011, p. 288)
Com relação à função da pena tem-se modernamente que ela se estabelece
para afirmar a concepção de bem jurídico para maioria da sociedade. (SHECAIRA,
2011, p. 95) A pena visa punir condutas antijurídicas, estipulando ao transgressor a
redução de seus direitos ou bens jurídicos, sendo fundamental que este sujeito
possa sentir os efeitos gerados pelo ilícito praticado. (BACIGALUPO, 1998, p. 132) E
neste sentido não possui a pessoa jurídica capacidade para sentir os efeitos da
penalização, fazendo com que seja excluída uma das principais funções da pena.
495
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
3.2 POSIÇÃO FAVORÁVEL
O
maior
argumento
para
a
parcela
doutrinária
que
defende
a
responsabilização penal da pessoa jurídica está na dificuldade de estabelecer a
autoria pelo ilícito dentro de uma complexa conformação hierárquica e fragmentada,
em que a estrutura empresarial se dimensiona. “Aspectos como a estrutura
organizacional da pessoa jurídica e a distinção entre titularidade, poder e condução
da sociedade constituem dificuldades a serem superadas em casos tais”.
(KNOPFHOLZ, 2013, p. 137).
O processo de tomada de decisões dentro da empresa acaba por ser
descentralizado e muitas vezes os próprios dirigentes do ente moral não tem
conhecimento da totalidade de serviços e ações que estão sendo realizadas
internamente, ou por intermédio da empresa. O mesmo ocorre com funcionários de
menor nível hierárquico que executam tarefas sem ter conhecimento do resultado
final ilícito objetivado pela empresa.
O que acaba por transparecer no âmbito social é a vontade da empresa ao
estabelecer seus produtos e serviços voltados a um objetivo de mercado, enquanto
que na sua estrutura funcional, os indivíduos que a compõe, permanecem ocultos
pela figura que o ente jurídico socialmente representa.
O que normalmente ocorre hoje é a penalização de pequenos membros das
empresas, trabalhadores ou empregados de nível hierárquico inferior, cuja sanção
comprova-se ineficaz para atingir as condutas ilícitas praticadas pela empresa em
maior escala, vez que a tentativa de penalizar os membros com maior influência
dentro do ente moral, como diretores, acaba por se perder na falta de material
probatório.
Na estrutura empresarial as decisões não advêm apenas de um indivíduo ou
grupo, cada célula, ou seja, cada setor dentro da empresa tem sua importância e
sua responsabilidade por determinado projeto ou serviço prestado. Para se chegar
na conduta ilícita de fato, praticada pela empresa, passasse pelo crivo de diversos
setores e áreas da empresa, os quais tem seus próprios superiores, não se pode
arbitrariamente impor a responsabilidade ao grupo de diretores, ou administradores,
496
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
pois o processo de tomada de decisão diverge em cada estrutura empresarial, o que
caracteriza a dificuldade de se individualizar a conduta penalmente reprovável.
En una empresa econímica, al tener lugar la ejecución imediata
regularmente en el nível inferior o más bajo por médio de órganos
subordinados que no disponen ni de un propio poder de decisión, ni de las
informaciones necessárias para el enjuiciamento de la peligrosidad de su
propio comportamento, mientras que las decisiones concretas son
adoptadas generalmente por la gerencia intermedia o superior, a la que el
nível más alto de la dirección, en el que confluyen en primer término todas
las informaciones, ni siquiera necessita comunicar órdenes expresas, [...].
(SCHUNEMANN, 2009, p. 125)
Ademais diz-se também que a vontade da associação, trata-se de uma
vontade especial, a conformação da vontade de todos os indivíduos que a compõe,
o que corrobora para a teoria de que se trata de um ente real, com existência real na
sociedade, sendo algo mais do que somente a soma de seus membros.
(BACIGALUPO, 1998, P.73) Seguindo esta lógica tem-se que “[...] a sociedade se
manifesta por seus órgãos diretivos, e a partir do momento em que uma decisão é
tomada, em nome da sociedade, deixa de existir a vontade individual para existir a
vontade da pessoa jurídica”. (SILVA, 2011, p. 254)
Outrossim, se a própria empresa possui deveres jurídicos e personalidade
jurídica perante a sociedade, levando em consideração sua importância para a
mesma, além da possibilidade de cumprir suas obrigações, também pode causar
danos a sociedade. (SHECAIRA, 2011, p. 101)
Sus argumentos toman como punto de partida el reconocimiento de la
creciente importância de las personas jurídicas en la vida social. El
reconocimiento de derechos y obligaciones a las mismas supone, a su vez,
el reconocimiento de certa liberdad social. El uso indebido de esa libertad
social que se le concede a la persona jurídica también debe tener como
consecuencia la exigência de responsabilidade penal. (BACIGALUPO,
1998, p. 133)
Com relação à função social da pena, ela deve ser imposta de forma justa,
todo momento em que um sujeito atue de forma a violar sua liberdade social,
prejudicando a sociedade. (BACIGALUPO, 1998, p. 133) E esta mesma lógica pode
ser aplicada ao se penalizar o ente moral, quando ele cometer uma conduta
497
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
reprovável, no caso seria uma sanção visando diminuir a autonomia econômica da
empresa. Neste sentido a pena continua apresentando caráter retributivo, sendo
imposta ao ente moral e não aos seus membros em específico como uma pena
coletiva.
Há que se lembrar de que a formação do modelo penal clássico adotado pelo
ordenamento jurídico brasileiro provém do ideal iluminista da revolução francesa, na
qual é refutado o antigo regime arbitrário de governo, para se ter uma nova estrutura
de Estado que atue de maneira a tutelar os direitos do indivíduo. O homem torna-se
centro das questões políticas e sociais, e com isso surgem os direitos fundamentais
de primeira geração, os quais se caracterizam por proteger o indivíduo contra a
atuação indiscriminada estatal.
Entretanto hoje, não só existem os direitos fundamentais de segunda
geração, que tratam de direitos sociais, como também os direitos fundamentais de
terceira geração, que abrangem os novos bens jurídicos provenientes da
modernidade e da sociedade de risco, como o meio ambiente, direitos do
consumidor, os quais tratam-se de direitos do coletivo, não adstritos a um indivíduo
ou grupo em específico, mas a toda humanidade. “Enquanto os direitos de primeira
geração têm como preocupação o indivíduo, os direitos fundamentais de 3 a geração
se direcionam à proteção de toda a coletividade, onde, aliás, está inserido o
homem”. (SILVA, 2011, p. 267)
Nota-se a necessidade de mudança dos paradigmas penais, e conformação
das questões dogmáticas para abarcar as novas estruturas da sociedade moderna
de risco. Paulo César Busato trás o entendimento de que os institutos dogmáticos
que a maioria doutrinária utiliza para refutar a adoção da responsabilidade penal dos
entes morais, não trazem nenhum empecilho real para tanto.
A capacidade de ação não deve ser interpretada por fatores psicológicos,
levando-se em consideração qual a intenção de quem atua, mas sim qual a
mensagem enviada por esta ação. (BUSATO, 2012, p. 34) A ação não está adstrita
a um movimento, ou a uma vontade interna, mas sim ao efeito e significado social
produzido.
Quanto ao dolo, ou seja, a vontade de causar o dano, trata-se não de um
estado mental, mas sim de algo atribuído, imputado ao sujeito que pratica o ilícito,
498
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
“Ou seja, o dolo não é algo que existe, que seja constatável, mas sim, o resultado de
uma avaliação a respeito dos fatos, que faz com que se impute a responsabilidade
penal”. (BUSATO, 2012, p. 45) É um juízo de valor, que cabe ao juiz avaliar
conforme a situação de fato, e por isso não obsta qualquer impedimento a
penalização das corporações.
4 PREVISÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Primeiramente, deve-se citar a suposta previsão de responsabilização penal
da pessoa jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, no Código Criminal do Império
em 1831, e no Código Penal de 1890, em seu artigo 103, parágrafo único, o qual
dispunha que se o crime fosse cometido por uma corporação, ela seria dissolvida.
Entretanto este dispositivo penal estaria em desacordo com o artigo 25 do
mesmo Código, o qual trazia o conceito da responsabilidade penal como algo
exclusivamente pessoal, logo tratava-se de uma má redação da norma penal que
levou a esta interpretação errônea.
A responsabilidade penal da pessoa jurídica, como já mencionado, foi
inserida em nosso ordenamento pela Lei 9.605 de 1998, a qual dispõe sobre os
crimes ambientais, e em seu artigo 3o trás a possibilidade da pessoa jurídica ser
penalizada civil, administrativa e penalmente.
Esta previsão se justifica pelos dois artigos da Constituição Federal que
fazem menção a esta possibilidade, o artigo 173, § 5o, que dispõe que será
estabelecida responsabilidade do ente moral, sem prejuízo da pessoa natural, com
punições compatíveis com sua natureza.
E o artigo 225, § 3o do mesmo dispositivo legal, o qual discorre que tanto as
pessoas físicas como jurídicas, sujeitar-se-ão as sanções penais pelas infrações
ambientais cometidas.
Estes dispositivos legais são a base que serve de fundamento à
argumentação da minoria doutrinaria favorável à responsabilização de empresas no
âmbito penal, “O legislador constituinte reconheceu, sabiamente, que a impunidade
gerada pelo artifício de proteger o aparato empresarial não mais seria fomentada
com a inovação criminal proposta” (SANCTIS, 1999, p. 61). São dispositivos que
499
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
demonstram a influência dos direitos fundamentais de terceira geração no
ordenamento moderno.
Entretanto, a maioria doutrinaria coloca que esses dispositivos constitucionais
não se caracterizam como a adoção por parte do legislador constituinte, tendo em
vista o artigo 5o da Constituição Federal, em seu inciso XLV, que trata da
responsabilidade pessoal. Sobre este aspecto tem-se o disposto por Luiz Vicente
Cernicchiaro, “A sanção penal, no entanto, está vinculada à responsabilidade
pessoal (art. 5o, XLV, CF/88). Hoje, dela é inseparável. A Constituição brasileira,
portanto, não afirmou a responsabilidade penal da pessoa jurídica [...]”.
(CERNICCHIARO, 1995, p. 164)
Para a parcela desfavorável da doutrina o artigo 173, § 5 o da Constituição
Federal, coloca que as punições à pessoa jurídica serão de acordo com sua
natureza, logo não há o reconhecimento de responsabilidade penal, posto que só
pode ser sancionada de acordo com sua essência que levaria ao uso de punições
no âmbito administrativo e civil. Ademais a redação original deste parágrafo,
elaborada na Comissão de Sistematização, estabelecia a responsabilidade criminal
das empresas, entretanto o Plenário da Constituinte não aprovou esta redação, mas
sim a que se encontra atualmente.
É óbvio que o Constituinte ao dar ao parágrafo em questão uma redação
diferente da proposta pela Comissão de Sistematização, com ela não
concordou. Ou seja: é solar que o Constituinte ao não aprovar a redação
que expressamente estabelecia a responsabilidade penal da pessoa
jurídica, a repeliu. E limitou-se a dizer, sem necessidade real, que a punição
da pessoa jurídica tem que se compatibilizar com a “ontologia” da pessoa
jurídica, ou seja, com sua natureza. (LUISI, 2011, p. 37)
Entretanto, o caso de se aplicar penas de acordo com a natureza da pessoa
jurídica também pode ser entendido como a previsão de sanções penais para as
mesmas por parte do legislador constituinte, pois tendo em vista que no âmbito
criminal cabem vários tipos de sanções, seria óbvio não adotar sanções penais
incompatíveis com a natureza do ente moral, ou seja, que estabelecessem penas
físicas, corporais, às pessoas jurídicas.
O fato do legislador constituinte tratar apenas de bens jurídicos de ordem
ambiental e econômica em seu texto não exclui a criminalização dos entes morais
500
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
por lesões causadas a outros bens, (SANCTIS, 1999, p. 64-65) apenas estabelece
uma preocupação maior para com esses bens, deixando a cargo do legislador
infraconstitucional tutelar outros bens e direitos.
Quanto ao artigo 225, § 3o da Constituição Federal já anteriormente
mencionado ao usar as expressões “condutas” e “atividades” teria deixado implícito
a distinção de que as pessoas naturais exerceriam condutas, as quais ensejariam
sanções penais, e as pessoas jurídicas praticariam atividades que levariam às
sanções administrativas dispostas no texto constitucional. Também tem-se o
entendimento de que a maneira correta de interpretar tal dispositivo seria colocando
a palavra “respectivamente” após a expressão “sanções penais e administrativas”,
assim as sanções penais estariam para as pessoas naturais e as sanções
administrativas para as pessoas jurídicas.
E mesmo com a promulgação da Lei de crimes ambientais supracitada, parte
da doutrina ainda afirma que dito dispositivo legal não implica na adoção efetiva da
responsabilidade penal das empresas, posto que as polêmicas quanto à princípios
constitucionais e aspectos doutrinários persistem.
Não há como, em termos lógico-jurídicos, quebrar princípio fundamental
como o da irresponsabilidade criminal da pessoa jurídica, ancorado
solidamente no sistema de responsabilidade da pessoa natural, sem
fornecer, em contrapartida, elementos básicos e específicos conformadores
de um subsistema ou microssistema de responsabilidade penal, restrito e
especial, inclusive com regras processuais próprias. (PRADO, 2011, p. 154)
Com relação à legislação infraconstitucional dos crimes ambientais, para
aqueles que admitem a pena do ente moral trata-se da adoção incontestável e
expressa da responsabilização penal deste agente no ordenamento brasileiro,
entretanto aqueles que criticam dizem que a referida lei apresenta falhas inegáveis,
“Isso significa não ser ela passível de aplicação concreta e imediata, pois lhe faltam
instrumentos hábeis e indispensáveis para a consecução de tal desiderato”.
(PRADO, 2011, p. 154)
Percebe-se que mesmo com dispositivos constitucionais legislando sobre o
tema, e com previsão de legislação infraconstitucional da responsabilidade penal
501
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
das pessoas jurídicas a discussão sobre sua pertinência em nosso ordenamento
persiste.
O próprio ordenamento francês já admite a penalização da pessoa jurídica,
bem como outros países, o que corrobora para a conclusão de que trata-se de uma
corrente moderna, e de uma discussão relevante.
5 DIREITO COMPARADO
Mesmo com os entraves dogmáticos, atualmente tem-se o surgimento de uma
nova criminalidade, em que é percebida a adoção da responsabilidade penal da
pessoa jurídica por diversos países que antes rechaçavam este instituto.
Percebe-se que a dicotomia entre os ideais abolicionistas e funcionalistas
subsiste no direito penal atual. A primeira vertente converge para uma dogmática
tradicional, na qual o direito penal se estabelece como ultima ratio, já a segunda trás
a ideia de um novo direito penal, “que abandone as garantias dogmáticas e aumente
sua capacidade funcional, para dessa forma fazer frente aos novos desafios do
complexo mundo em que vivemos [...]”. (SILVA, 2011, p. 258)
Atualmente são três os sistemas relacionados a adoção da responsabilidade
da pessoa jurídica existentes nos países, o sistema que reconhece plenamente sua
adoção, de maioria dos países do common law e alguns do civil law; o sistema que
refuta integralmente tal adoção, seguido pela maioria dos países da Europa
continental; e por fim um meio termo que vige principalmente no ordenamento
alemão. (SHECAIRA, 2011, p. 26)
5.1 DIREITO FRANCÊS
O ordenamento francês por muito tempo considerou a pessoa jurídica com
apenas um ente fictício, o qual não poderia ser responsabilizado penalmente, vez
que a lei penal só poderia recair sobre os membros da empresa, posto tratarem-se
de pessoas naturais com responsabilidade individual.
Todavia com as alterações efetuadas no Código Penal francês em 1994, seu
artigo 121-2 passou a prever a responsabilização dos entes coletivos. Em termos
502
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
teóricos isto consistiu na consagração da pessoa jurídica como detentora de uma
vontade própria, a qual diverge da vontade individual de cada um de seus membros,
podendo ela ser penalizada pela prática de ilícitos, desde que este seja praticado
por um de seus representantes e em seu interesse. Dentre as penas aplicáveis temse previsão de:
[...] multa, interdição definitiva ou temporária de exercer uma ou várias
atividades profissionais ou sociais, controle judiciário por 5 anos ou mais,
fechamento definitivo ou temporário do estabelecimento utilizado para a
prática do delito, a exclusão definitiva ou temporária dos mercados públicos,
a interdição do direito de emitir cheques, o confisco do objeto do crime, a
publicação da decisão judicial e a dissolução. (SHECAIRA, 2011, p. 41)
Neste sentido tem-se a responsabilidade por reflexo, em que o critério
subjetivo, de dolo e culpa, estaria na pessoa individual que representando o ente
coletivo praticou o ilícito, possibilitando a responsabilidade objetiva do mesmo.
Esta previsão, no entanto, não se trata de uma inovação no direito francês,
havia previsão de penalização às comunidades de cidades, grupos e companhias
que praticassem ilícitos, até advir a consolidação do princípio do societas delinquere
non potest, com o Código Penal de 1810. “Portanto, a atual previsão da
responsabilidade penal da pessoa jurídica obedeceu a uma lógica de continuidade
evolutiva, sedimentada com o passar do tempo”. (PRADO, 2011, p. 145) Tem-se
também que no ordenamento francês ao legislador nacional cabe eleger uma
espécie
de
responsabilização
que
atenda
aos
princípios
da
efetividade,
proporcionalidade e dissuasão. (PRADO, 2011, p. 145)
5.2 DIREITO INGLÊS
No caso da Inglaterra, maior representante desse sistema, a adoção de
penalização do ente moral decorreu da Revolução industrial, pois as corporações
passaram a ganhar considerável destaque no quadro social e praticar mais crimes,
com isso passou-se a sancionar os entes coletivos por infrações omissivas e
comissivas. A responsabilidade da pessoa jurídica foi afirmada por um dispositivo
503
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
geral presente no Interpretation Act, de 1889, o qual aumentou a abrangência do
termo “pessoa”, para cingir também o ente coletivo.
Este tipo de responsabilidade, em um primeiro momento, abrangeu apenas a
prática de crimes de menor potencial ofensivo, e a partir de 1948, com o Criminal
Justice Act, que inaugurou a oportunidade de substituição de penas privativas de
liberdade em penas de ordem pecuniária, (SHECAIRA, 2011, p. 28) teve-se uma
significativa ampliação nesta responsabilidade, que passou a abranger toda a sorte
de crimes. (PRADO, 2011, p. 142)
Atualmente as pessoas jurídicas são passíveis de pena tanto por crimes
menos ofensivos, quanto por crimes graves, desde que estejam de acordo com sua
natureza, logo, aplica-se a responsabilidade objetiva ou strict liability, caracterizada
por não necessitar da comprovação de culpa, aplicando-se a responsabilidade
subjetiva nos casos em que for necessária presença de mens rea (dolo ou culpa).
Dentre as penas aplicadas à pessoa coletiva tem-se dissolução, apreensão,
limitação de atividades e penas pecuniárias.
Também deve-se dispor sobre a teoria da identificação, em que um membro
da sociedade, ou seja, uma pessoa natural que pratica o ilícito, tem por sua vontade
a vontade do ente coletivo. O problema que trás a teoria da identificação, é que para
penalizar a pessoa jurídica, deve-se identificar a pessoa física responsável pelo
controle da empresa.
5.3 DIREITO NORTE-AMERICANO
Os Estados Unidos, sendo outro representante do sistema da common law,
admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica de forma ampla e como regra
dentro da sua conformação federativa, sendo apenas alguns Estados que não
admitem tal responsabilidade. “Nos Estados Unidos o princípio da responsabilidade
criminal da pessoa jurídica é mais amplo do que na Inglaterra. A chamada
responsabilidade corporativa atinge até mesmo os sindicatos [...]”. (SILVA, 2011, p.
262)
No direito americano a empresa responde por atos ilícitos culposos praticados
por um de seus empregados no exercício de suas funções dentro da empresa,
504
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
mesmo que o ilícito não traga nenhum benefício para a corporação. Também
responde “quando o fato criminoso for cometido a título de dolo se praticado por um
executivo de nível médio”. (SHECAIRA, 2011, p. 30)
No Código Penal de Nova York, de 1882, está prevista a responsabilidade
penal das pessoas jurídicas com pena de não mais de cinco mil dólares, quando for
condenada pelo cometimento de um ilícito por parte de uma pessoa natural, a qual
também responderá pelo crime. O Código Penal da Califórnia de 1976, trás previsão
similar, na qual é responsabilizada penalmente a empresa pela prática de ilícito por
parte de um agente executivo ao atuar no âmbito de sua posição empresarial e em
favor do ente moral.
Mesma previsão trás o Model Penal Code, e o Código Criminal Federal de
1988, que estabelece que as empresas juntamente com as pessoas naturais, serão
punidas, de maneira direta ou indireta, pelo cometimento de ações lesivas ao
patrimônio público ou ligadas ao crime organizado. (SHECAIRA, 2011, p. 31)
Com o aumento dos crimes econômicos as penas às corporações passaram
a ser mais severas, o Ciminal Fine Enforcement Act de 1984, aumentou a
possibilidade de penas pecuniárias ao invés de penas restritivas de liberdade, bem
como expandiu seu valor econômico (SHECAIRA, 2011, p. 32) para se fazer mais
efetivo como meio punitivo.
Entretanto as corporações passaram a reverter essas penas pecuniárias,
numa maior onerosidade a seus produtos e serviços disponibilizados no mercado, e
com isso, em 1991 o Federal Sentencing Guidelines, propôs que as empresas que
adotarem medidas preventivas de crime, mesmo praticando o ato lesivo, terão a
aplicação de penas mais brandas.
Assim, cria-se a figura da good citizen corporations ou do corporate ethos,
que garantirá à empresa, em troca de sua colaboração com a prevenção do
crime, além de uma melhor imagem e da garantia de confiança para
implementar autonomamente seu sistema de prevenção e controle, uma
redução de sua sanção caso haja o cometimento de algum delito.
(SHECAIRA, 2011, p. 32)
No direito americano o ilícito praticado por corporações é reconhecido a 100
anos. Anteriormente o modelo se estabelecia de acordo com o vicarious corporate
liability civilista, em que era necessária a atuação ilícita de pessoa natural
505
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
representando a corporação, para que se transferisse a imputação à pessoa jurídica.
Entretanto, com o passar do tempo, em âmbito federal, a base penal passou a ser a
organizational negligence, na qual era penalizada a corporação por não impedir a
conduta delitiva de seus empregadores. (SHECAIRA, 2011, p. 33)
5.4 DIREITO ALEMÃO
Para o direito penal alemão a penalização se foca na conduta humana, por
este motivo não se admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica, o que se
admite são sanções por infrações menos graves, impostas a estes entes pelo direito
penal administrativo. O artigo 30 da OWIG, de 1975, estabelece a pena de multa,
em caráter acessório, à pessoa jurídica, quando a pessoa física praticar um delito ao
representar a pessoa moral.
A adoção deste tipo de penalização se caracteriza pelo fato deste
ordenamento considerar que a pessoa jurídica não possui personalidade e, por este
motivo, não poderia ser-lhe imputada sanção de caráter penal. (SHECAIRA, 2011, p.
49) A pena de multa não subsiste como única forma de penalização, o referido
dispositivo legal também trás a possibilidade do confisco de bens dentro outras.
Por mais que tenha-se trazido a tona a questão da responsabilidade penal
das empresas, especialmente quanto a crimes de ordem econômica e ambiental, a
comissão alemã de reforma do sistema penal de sanções, em 2000, recusou
qualquer modificação do modelo penal clássico vigente, para uma estrutura penal
mais repressiva. Todavia em 2002 teve-se uma extensão das penas de multa
aplicadas às empresas, possibilitando sua aplicação mesmo quando da falta dos
diretores da empresa. (SHECAIRA, 2011, p. 52)
6 PROJETO DO CÓDIGO PENAL
Atualmente está em discussão no Senado Federal a proposta de reforma do
Código Penal de 1940, PLS 236/2012, que prevê a responsabilização penal das
empresas em casos de crimes contra a administração pública, sistema financeiro, a
economia popular e a ordem econômica.
506
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
O artigo 41 do referido dispositivo atribui penalização apenas às pessoas
jurídicas de direito privado, excluindo os entes públicos, além de delimitar o âmbito
dos tipos de delitos que podem ser praticados pelas mesmas. Também tem-se a
disposição de que elas só podem ser sancionadas se o ilícito for praticado por
decisão de uma pessoa natural, representando legal ou contratualmente a empresa,
ou por seu órgão colegiado, agindo no interesse do ente moral, ou seja, tem-se o
“[...] afastamento da possibilidade de atribuir à empresa um papel que não seja de
mero instrumento de prática delitiva [...]”. (BUSATO, 2012, p. 57)
Percebe-se que a comissão adotou uma postura cautelosa com relação a
adoção deste tipo de responsabilidade, fazendo uma série de restrições a sua
aplicação, tendo em vista a dificuldade de adequar este instituto no ordenamento
jurídico penal brasileiro. Neste sentido a responsabilização adotada tem grande
semelhança com a responsabilidade reflexiva, presente no ordenamento francês, na
qual se penaliza a pessoa natural pelo ilícito, e por reflexo alcança-se a pessoa
jurídica.
Com
isso,
identifica-se
uma
convergência
às
correntes
modernas,
estabelecidas em outros países, como no caso da França e de Portugal, que
passaram a adotar a responsabilização penal das empresas.
Cumpre salientar que não se pode extrair do anteprojeto a base teórica de tal
inovação, ou seja, se permanecem as estruturas clássicas da concepção finalista, ou
se há a inserção de concepções de caráter funcionalista. Ademais a maneira como
foi estruturada a responsabilização penal dos entes morais no anteprojeto trás
criticas tanto de doutrinadores favoráveis, que clamam pela responsabilização total,
sem restrições e direta, quanto da doutrina majoritária e desfavorável.
Busato estabelece algumas questões que permanecem sem explicação, quais
sejam:
[...] se o projeto adotaria um esquema de autorresponsabilidade ou de
heterorresponsabilidade penal das pessoas jurídicas; em que bases seria
reconhecida a ação da pessoa jurídica; que limites seriam impostos pelo
princípio de culpabilidade em face de tal responsabilidade e, mesmo, qual a
natureza jurídica das consequências do delito praticado por pessoa jurídica.
(BUSATO, 2012, p. 55)
507
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Além destas questões critica-se o fato de somente serem autores de infrações
as pessoas jurídicas de direito privado, bem como a restrição de penalização à
alguns grupos de bens jurídicos. Mesmo que alguns vejam como uma grande
inovação o anteprojeto permanece como tal devido a inúmeras críticas pelas
inovações trazidas e pelas pretendidas, como, por exemplo, a diminuição da
maioridade penal, por se tratarem de temas polêmicos e que exigem extrema
cautela caso seja pertinente sua introdução no ordenamento penal brasileiro.
7 CONCLUSÃO
A questão da pertinência de aplicação da responsabilidade penal da pessoa
jurídica, tendo em vista a previsão do novo Código Penal, de criminalização do ente
moral por crimes cometidos contra a ordem pública, sistema financeiro, e economia
popular, torna-se um assunto de difícil solução.
Entretanto, como percebido no direito internacional esta adoção trata-se de
um movimento lógico da sociedade levando-se em consideração sua conformação
atual e o fato de que as empresas detêm cada vez mais poder e influência na
sociedade pós-moderna.
A previsão de responsabilidade da pessoa jurídica supõe-se tratar de algo
natural, inerente a sociedade atual, entretanto, os países que antes a rechaçavam e
hoje admitem esta responsabilização detém maior cultura jurídica para tanto, tendo
maior cuidado e preparo para sua aplicação e se valendo de mecanismos como a
teoria da identificação do direito inglês, ou da responsabilidade por reflexo do direito
francês. Trata-se de um movimento lógico da pós-modernidade e da globalização, o
qual sedimentou-se com o decorrer do tempo.
A globalização trouxe, difusão e democratização de riscos e derrubou as
fronteiras econômicas e sociais entre os países, com isso tem-se uma padronização
das culturas nas mais diversas instâncias.
Entretanto, está padronização deve ser tida com parcimônia e cuidado,
preservando-se as culturas e tradições inerentes a cada país. Pode-se prever uma
evolução natural aos ordenamentos jurídicos, e hoje a tendência é a adoção de
padrões universais, a exemplo dos direitos humanos, iguais a todas as nações,
508
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
entretanto, não pode-se apenas reproduzir padrões externos sem modificar sua
estrutura para adequá-la às bases jurídicas do ordenamento brasileiro.
Como pode ser visto a previsão da responsabilidade penal do ente moral, por
mais que se justifique de acordo com a conformação atual, foi visivelmente
estabelecida de maneira apressada e sem o devido zelo, tanto que recebe críticas
de ambos os lados doutrinários.
É necessário um refinamento desta ideia, levando em consideração que o
nosso ordenamento pauta-se em regras clássicas e na responsabilidade individual e
subjetiva, e inspirar-se em modelos externos, como no caso francês da
responsabilidade por reflexo.
O Brasil não possui uma cultura jurídica própria de tal sorte que seja o
bastante para impedir quaisquer discrepâncias jurídicas que a adoção da
responsabilidade das empresas possa trazer. Logo, há que se ter cautela e maior
estudo, até que tenha uma conformação jurídica sólida que possibilite segurança na
adoção da responsabilidade dos entes coletivos.
509
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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510
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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511
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
512
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
PROCESSO E PROCEDIMENTO DA LEI MARIA DA PENHA
PROCESS OF LAW AND PROCEDURE OF MARIA PENHA
Priscila Nélida Hristof Cortez Ferrarezi1
Mario Luiz Ramidoff2
do 8º período do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba,
pelo Curso de Graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1991); Mestre
pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002);
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná (2007). Pósdoutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina (2012); Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná; Professor Titular do
Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba; Professor do Centro Universitário Internacional - Uninter;
Experiência na área de Direito, com ênfase em: Direito da Criança e do Adolescente; Direito Penal;
Ministério Público; Direito Procesual Penal; Criminologia; e Política Criminal.
1Acadêmica
2Graduado
513
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SUMÁRIO
RESUMO 1 INTRODUÇÃO 2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER 2.1 CONCEITUAÇÃO 2.2 ESPÉCIES
2.2.1
Violência de Gênero 2.2.2 Violência Contra a Mulher 2.2.3 Violência Doméstica 3
SUJEITO ATIVO E SUJEITO PASSIVO 3.1 SUJEITO ATIVO 3.2 SUJEITO
PASSIVO 4 LEI MARIA DA PENHA (LEI 11.340/2006) 4.1 POLITIZAÇÃO DO
PROBLEMA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER 4.2 PANORAMA ANTERIOR A
CRIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA 4.3 MECANISMOS DE PROTEÇÃO À
MULHER 5 CONCLUSÃO REFERÊNCIAS
514
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
Um dos graves problemas que atinge a humanidade é o fenômeno da violência. O
uso intencional da força física ou o abuso de poder, contra outra pessoa, grupo ou
comunidade, trazem impactos e danosas consequências para a humanidade. A
violência contra a mulher, vista a partir das relações de gênero, distingue um tipo de
dominação, de opressão e de crueldade nas relações entre homens e mulheres,
estruturalmente construído, reproduzido na cotidianidade e subjetivamente assumido
pelas mulheres, atravessando classes sociais, raças, etnias e faixas etárias. No
entanto, a maior consciência de seus direitos e o aprimoramento dos registros
policiais vêm fazendo com que a violência cometida contra a mulher adquira maior
visibilidade na sociedade brasileira, culminando na Lei Maria da Penha.
Palavras-chave: mulheres, homens, violência, gênero, Lei Maria da Penha
515
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
One of the serious problems affecting mankind is the phenomenon of violence. The
intentional use of physical force or abuse of power, against another person, group or
community impacts and bring harmful consequences for humanity. Violence against
women, seen from gender relations, distinguishes one type of domination,
oppression and cruelty in relationships between men and women, structurally built,
reproduced in the everyday and subjectively assumed by women across social
classes, races, ethnicities and age groups. However, greater awareness of their
rights and the improvement of police records have been causing the violence
committed against women acquire greater visibility in Brazilian society, culminating in
the Maria da Penha Law.
Keywords: women, men, violence, gender, Maria da Penha Law
516
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
Hodiernamente, a violência contra a mulher, praticada no ambiente familiar é
uma das mais cruéis, pois o lar, considerado local acolhedor e de conforto, passa a
ser um ambiente de perigo contínuo.
A percepção social de que a violência contra a mulher é um problema de
extrema gravidade contribui para o reconhecimento de sua existência e das sérias
consequências que atingem, física e psicologicamente, as suas vítimas.
A situação de vulnerabilidade da mulher vítima em relação ao seu agressor é
evidente, por isso o Estado deve disponibilizar meios, através de políticas públicas
de gênero para fornecer amparo e proteção para que ela possa resolver o problema
e recomeçar uma nova vida livre da violência.
O advento da Lei Maria da Penha representa um grande avanço na geração de
meios de defesa para a mulher, buscando resgatar a cidadania feminina. Porém,
para seu cumprimento, faz-se necessária a implementação de ações que articulem
todas as instituições responsáveis e conscientizem a população sobre os direitos
das mulheres.
Assim, este estudo tem como objetivos específicos, proceder à definição de
violência de gênero, violência doméstica e violência contra a mulher e analisar a Lei
Maria da Penha;
2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E VIOLÊNCIA CONTRA A
MULHER
2.1 CONCEITUAÇÃO
O termo violência deriva do latim violentia, e significa qualidade de violento; ato
violento; ato de violentar.
E, para o senso comum, violência é sinônimo do uso da força física, psicológica
ou moral para obrigar outra pessoa a fazer alguma coisa contra a sua vontade.
Impedir que o outro manifeste sua vontade, oprimir, constranger, tolhendo a
liberdade, são formas de violar direitos essenciais do ser humano. Em geral, a
517
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
violência está ligada ao uso de força física, psicológica ou intelectual para obrigar
outra pessoa a fazer algo que não quer.
A liberdade, que corresponde à primeira geração dos direitos humanos, é
violada quando o homem submete a mulher ao seu domínio. Também não
há como deixar de reconhecer, nesta postura, afronta aos direitos humanos
de segunda geração, que consagra o direito à igualdade. De outro lado,
quando se fala nas questões de gênero, ainda marcadas pela
verticalização, é flagrante a afronta à terceira geração dos direitos humanos
que tem por tônica, a solidariedade (DIAS, 2010, p.41).
Quanto às espécies, são apresentadas a seguir:
2.2 ESPÉCIES
2.2.1 Violência de Gênero
Gênero diz respeito a relações de poder e à distinção entre atributos culturais
atribuídos a cada um dos sexos e suas peculiaridades biológicas. Veja-se:
Gênero é o sexo socialmente modelado, ou seja, as características tidas
como masculinas e femininas são ensinadas desde o berço e tomadas
como verdadeiras, pela sua repetição cultural. Essas características
socialmente atribuídas se fundam na hierarquia e na desigualdade de
lugares sexuados (SAFFIOTI & ALMEIDA, 1995, p.118).
A violência de gênero abrange a que é praticada por homens contra mulheres,
por mulheres contra homens, entre homens e entre mulheres (ARAÚJO; MATTIOLI,
2004, p.17). Deve-se considerar que a mulher também pode atuar como agente de
violência no relacionamento com um homem, porém, cultural e historicamente, na
grande maioria dos casos, ela é a vítima preferencial.
“A violência contra a mulher constitui uma questão de saúde pública, além de
ser uma violação explícita dos direitos humanos” (GOMES; MINAYO; SILVA, 2007,
p.118),
518
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Suas várias formas de opressão, de dominação e de crueldade incluem
assassinatos, estupros, abusos físicos, sexuais e emocionais, prostituição forçada,
mutilação genital, violência racial e outras (SCHRAIBER et al. 2002).
A visibilidade da violência contra a mulher - entendida como uma expressão da
violência de gênero, deve muito de sua força ao movimento feminista que, junto com
a politização da questão ambiental, constitui o mais importante movimento social do
século XX. A partir da segunda metade desse século, sua estratégia de ação se
centrou na desconstrução das seculares raízes culturais da inferioridade feminina e
do patriarcalismo, nas denúncias das diversas formas de violência, nas tentativas de
modificar as leis que mantinham a dominação masculina e na construção de novas
bases de relação, protagonizada por mudanças de atitude e de práticas nas relações
interpessoais.
A vitimização da mulher no espaço conjugal, por exemplo, foi um dos
maiores alvos da atuação do movimento feminista, que nos últimos 50 anos
vem buscando desnaturalizar os abusos, os maus-tratos e as expressões
de opressão. Assim, problemas que, até então, permaneciam como
segredos do âmbito privado – “em briga de marido e mulher, ninguém mete
a colher” – passaram a ter visibilidade social (GOMES; MINAYO; SILVA,
2007, p.118).
Assim, a expressão gênero tornou-se relevante para compreender a interação
e a cumplicidade com que se constroem as relações entre homens e mulheres,
ambos marcados por uma cultura machista e patriarcal.
Para entender a problemática da violência de homens contra mulheres a partir
da perspectiva de gênero, faz-se necessário analisar os processos de socialização e
sociabilidade masculinas e os significados de ser homem em nossas sociedades.
A adequada compreensão de tal fenômeno não dispensa a percepção de que a
violência contra a mulher tem três fases.
Para se compreender melhor tal fenômeno, há que se perceber que a
violência contra a mulher tem fases: inicia-se com a (1) construção da
tensão, chegando à (2) tensão máxima, finalizando com a (3) reconciliação.
Há um escalonamento da intensidade e da frequência das agressões, que
depende das circunstâncias da vida do casal. Não obstante as variáveis
(circunstâncias da vida do casal), já se constatou que a repetição cíclica das
etapas tende a fazer com que a agressão seja cada vez mais grave e
habitual.Dentre os fatores que levam as mulheres vítimas de violência a
permanecer no relacionamento com o parceiro violento, merecem destaque
os seguintes: medo de que o agressor torne-se ainda mais violento,
519
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
concretizando ameaças, caso esta o denuncie ou o abandone; esperança
de que o agressor mude o seu comportamento, fazendo cessar a agressão;
preocupação com a manutenção da integridade da família e vergonha de
expor publicamente os episódios de violência (BIANCHINI, 2011).
Os homens são educados, desde cedo, para responder a expectativas sociais,
de modo proativo, em que o risco e a agressividade não são algo que deve ser
evitado, mas experimentado cotidianamente. A noção de autocuidado, muitas vezes
é substituída por uma postura destrutiva e autodestrutiva (MEDRADO; LYRA, 2003,
p.22).
Tal noção desenvolve-se de diferentes maneiras e em diferentes lugares: nas
brincadeiras infantis, na mídia segmentada por idade e sexo, nas ruas, escolas,
casas, bares, quartéis, mosteiros, prisões, na guerra. Não importa o lugar.
Importantes são os recorrentes mecanismos de brutalidade constitutivos do tornarse homem, pois a violência é, muitas vezes, considerada uma manifestação
tipicamente masculina para resolução de conflitos. Os homens são, em geral,
socializados para reprimir suas emoções. A raiva e a violência são formas que
acabam por se tornar socialmente aceitas como expressões masculinas de
sentimentos.
Logo, essas manifestações “aceitas”, e até mesmo estimuladas pela
sociedade, podem representar portas abertas para atos violentos graves que
atentam inclusive contra a vida de muitas mulheres e dos próprios homens
(MEDRADO; LYRA, 2003, p.22).
2.2.2 Violência Contra a Mulher
A “violência contra a mulher”, é
aquela que ocorre no ambiente doméstico ou em relações familiares ou de
afetividade, caracterizando-se pela discriminação, agressão ou coerção,
com objetivo de levar à submissão ou subjugação do indivíduo, pelo simples
fato de esse ser mulher (NUNES apud BENFICA;VAZ; DUTRA, 2007. p.25).
Logo, trata-se de uma agressão que vai além dos limites da integridade física,
comprometendo também aspectos da saúde sexual e psicológica, causando
520
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
consequências sérias e aumentando a sensação de vulnerabilidade, perda e traição,
em virtude de o agressor se tratar de alguém em quem se confia e com quem se
divide a intimidade e privacidade.
No mundo todo, a violência contra a mulher atinge as mulheres em todas as
idades, raças, etnias, graus de instrução, classes sociais e orientação sexual. A
violência de gênero em seus aspectos de violência física, sexual e psicológica, é um
problema intrínseco ao poder, onde impera o domínio dos homens sobre as
mulheres, além da existência de uma ideologia dominante, que lhe dá sustentação
(CARNEIRO, 2003, p.9). Senão, veja-se:
É importante ressaltar que, independente do tipo de violência praticada contra
a mulher, todas têm como base comum as desigualdades que predominam em
nossa sociedade. São muitas as formas de violência de gênero: as desigualdades
salariais, o assédio sexual no trabalho o uso do corpo da mulher como objeto, nas
campanhas publicitárias; o tratamento desumano que muitas recebem nos serviços
de saúde. Todas representam uma violação aos direitos humanos e atingem a
cidadania das mulheres. A violência de gênero, também conhecida como violência
doméstica e sexual, aí incluídos o assédio moral e sexual e o tráfico nacional e
internacional de mulheres e meninas, é ainda mal dimensionada, necessitando
maiores investimentos em pesquisas e medidas legislativas e jurídicas adequadas
(CARNEIRO, 2003, p.9).
A violência familiar causa a desestruturação familiar, comprometendo o futuro
da mulher, do marido e dos filhos do casal, e há ainda os efeitos negativos sobre a
sociedade.
2.2.3 Violência Doméstica
Violência doméstica é “a agressão contra a mulher, num determinado
ambiente (doméstico, familiar ou de intimidade), com finalidade específica de objetála, isto é, dela retirar direitos, aproveitando da sua hipossuficiência” (CUNHA;
PINTO, 2008, p.48).
Apesar de alguns preconizarem a necessidade de habitualidade, não nos
parece correto, considerando não somente o espírito dos tratados, mas do
521
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
próprio legislador pátrio ao tipificar como violência doméstica “qualquer
ação ou omissão”; aliás, exigir habitualidade é admitir que o Estado deve
tolerar, antes de agir, uma agressão(CUNHA & PINTO. 2008. p.48).
O termo “violência doméstica” é utilizado em virtude de compreender a
agressão no ambiente caseiro, envolvendo pessoas com ou sem vínculo familiar,
“inclusive as esporadicamente agregadas, integrantes dessa aliança” (CUNHA;
PINTO, 2008, p.49). Tal definição abrange os empregados domésticos.
Por fim, é importante ressaltar que a violência doméstica é uma espécie de
violência contra a mulher que, por sua vez, é uma espécie de violência de gênero.
3 SUJEITO ATIVO E SUJEITO PASSIVO
3.1 SUJEITO ATIVO
Para que se configure a violência doméstica, conforme a Lei Maria da Penha,
não é necessário que as partes sejam marido e mulher, nem que sejam ou estejam
casados. Veja-se:
- Na união estável a agressão é considerada como doméstica, mesmo que
a união já tenha findado. O sujeito ativo tanto pode ser um homem como
outra mulher, bastando estar caracterizado o vínculo de relação doméstica,
de relação familiar ou de afetividade. Ou seja, não importa o gênero do
agressor.
- Netos ou netas que cometam agressões contra a avó.
- Também responde pela prática e violência de âmbito familiar a parceira da
vítima, quando ambas mantém uma união homoafetiva (art. 5º, parágrafo
único).
- Conflitos entre mães e filhas, sogras e noras ou entre irmãs, com
motivação de ordem familiar.
- Tanto o patrão como a patroa, em conflito com a empregada doméstica.
- Companheiras de quarto ou coabitantes de repúblicas são equiparadas
aos entes tutelados na Lei Maria da Penha (DIAS, 2010, p.54-55).
3.2 SUJEITO PASSIVO
Quanto ao sujeito passivo, há a exigência de uma qualidade especial: ser
mulher.
522
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Esposas, companheiras ou amantes, filhas e netas do agressor, sua mãe,
sogra, avó ou qualquer outra parente do sexo feminino com quem o agressor tenha
um vínculo e natureza familiar estão no âmbito de abrangência do delito de violência
doméstica como sujeitos passivos.
O Superior Tribunal de Justiça - STJ reconhece que o namoro é uma relação
íntima de afeto e a agressão levada a afeito por ex-namorado configura violência
doméstica.
Ainda, lésbicas, transexuais, travestis e transgêneros, que tenham identidade
social com o sexo feminino são amparados pela Lei Maria da Penha. “Ainda que
parte da doutrina encontre dificuldade em conceder-lhes o abrigo da Lei, descabe
deixar à margem da proteção legal aqueles que se reconhecem como mulher.
Felizmente, assim já vem entendendo a jurisprudência” (DIAS, 2010, p.56-58).
Ainda, ocorre uma hipótese que tem levado a questionamentos sobre a
constitucionalidade da Lei: ocorre quando, na mesma ação, são vítimas pessoas de
diversos sexos. Por exemplo, quando uma filha e um filho são agredidos pelo pai.
Pela agressão contra a filha, aplicam-se as medidas protetivas da Lei Maria da
Penha. Já pela agressão contra o filho, se a lesão for de pequeno potencial ofensivo,
incide a legislação dos Juizados Especiais. Fora isso, aplica-se o Código Penal.
Como uma das vítimas está ao abrigo de lei especial, não há duplicidade de
processos. O processo deve tramitar no Juizado de Violência Doméstica. Mas com
relação à vítima masculina, aplica-se a legislação dos Juizados Especiais (Lei nº
9.099/95). Tal possibilidade não deve levar à subsunção de uma prática delitiva à
outra (DIAS, 2010, p.58).
Existe também a possibilidade de o sujeito passivo não ser necessariamente
mulher. A Lei prevê mais de uma majorante ao crime de lesão corporal em sede de
violência doméstica (CP, art. 129, § 11): se o crime for cometido contra pessoa
portadora de deficiência. A pena do agressor será dilatada quando o alvo da lesão
corporal for deficiente físico, de qualquer sexo.
4 LEI MARIA DA PENHA (LEI Nº 11.340/2006)
Para melhor compreender a Lei Maria da Penha, é importante considerar a
trajetória do feminino ao longo da história. Homem e mulher são diferentes, como
523
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
também o são, macho e fêmea, na natureza. A fase biológica dessa diferença gera
desigualdades naturais, inevitáveis nas outras espécies animais, notadamente
quanto às funções de reprodução. E a raça humana, consciente de sua própria
existência, tem como escolher entre amenizar as desigualdades ou realçá-las.
Porém, é possível verificar que, no decorrer da História, os seres humanos têm
agigantado as desigualdades por meio da dominação patriarcal.
Além das relações de gênero, este desequilíbrio também alcançou a interação
entre as nações, etnias e classes sociais. Na relação entre os que subjugam e os
que são subjugados, tal desequilíbrio gera, quase sempre, o conflito, que,
exacerbado, gera a violência. Considerando o fato de que não é próprio da natureza
humana submeter-se eternamente nestas relações desiguais – e muitas vezes
violentas -, surgem focos de resistência e luta.
O atual modelo de vida – racional, competitivo, antiecológico, beligerante –
vem atravessando, há décadas, intensa crise global. Dela resultaram
progressos científicos notáveis, especialmente nas ciências exatas e
naturais, como Matemática, Física, Química, Biologia, Medicina. Mas
também nasceram e floresceram males devastadores: guerras insanas,
degradação ambiental, desigualdades, miséria e fome. O mundo colhe hoje,
tanto os bons como os maus frutos dessa caminhada (HERMANN, 2012,
p.14).
É importante ressaltar que a resistência não é apenas das mulheres, mas
também do feminino, compreendido como padrão valorativo e de organização social.
A opressão gera reação, às vezes sutil, às vezes através da força. A dominação
masculina ocorre há milhares de anos, e a resistência feminina se manifesta de
muitas maneiras e por muitas estratégias: ou delineada pela negação da alteridade,
ou seja, pela busca da igualdade absoluta, ou pela valorização da diferença, anseio
por respeito à alteridade.
Mesmo depois de muita luta e de muitas conquistas femininas, a
desigualdade, a dominação e a violência ainda subsistem, e seu principal reduto é o
espaço onde deveria prevalecer o afeto e o respeito: dentro de casa.
O marco da violência doméstica, que vitima principalmente mulheres, é
expressão de resistência do patriarcado em declínio. O modelo patriarcal
[...] resiste simbolicamente no espaço doméstico. Essa resistência simbólica
524
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
se reproduz no plano global, vitimizando nações periféricas, minorias
discriminadas e outros tantos diferentes dentro da espécie humana
(HERMANN, 2012, p.15).
A presença de mulheres em espaços de poder caracteristicamente
masculinos tem abalado as estruturas do patriarcado. E existe resistência por parte
dos homens. Quando a mulher invade o universo masculino, o ônus que lhe é
imposto consiste em masculinizar comportamentos, posturas e decisões, o que
significa abrir mão da ótica feminina e aderir a valores androcêntricos. Apesar de
marcante presença em lugares simbólicos de poder, o feminino ainda não colheu
valorização compatível com essas conquistas.
A inserção política, cultural e decisória de tantas mulheres em espaços
públicos contribuiu muito para a atual crise do patriarcado, marcante no
contexto da grande crise de valores e modelos que a civilização atravessa,
mesmo porque o domínio patriarcal não se restringe às relações de gênero;
é também determinante de outros preconceitos e discriminações – raça,
etnia, cor, classe e outras diferenças – convergindo à estrutura
hierarquizada e excludente da sociedade contemporânea (HERMANN,
2012, p.35).
Assim, as mulheres seguem em luta. Levantam bandeiras, conquistam
espaços, saem às ruas e praças, reivindicam seus direitos de voto e greve, pela
igualdade de oportunidades e salários, por inclusão num mundo racional e
masculino. Nessa trajetória, em alguns momentos declaram guerra aos homens e,
em outros, optam pela racionalidade competitiva do paradigma masculino, para
alcançar seu lugar no mercado de trabalho e nos espaços públicos. Contudo, ainda
sofrem discriminação nos salários, ainda são minoria no Poder e ainda precisam
provar em dobro capacidade e competência para manterem suas conquistas.
No lar, as mulheres debatem-se entre amor e ódio, entre a doçura da
intimidade e a ofensa, entre o carinho e a bofetada. Muitas atravessam a infância, a
juventude, maturidade e velhice vivendo e revivendo este ciclo perverso, em um
visível conformismo. Outras, ainda, encontram a doença, a invalidez e até a morte
precoce. E algumas, conscientes de seus direitos, rebelam-se num exercício heroico
de bravura, o que lhes custa muita dor e sofrimento. Recorrem à Justiça, apelam por
proteção e socorro, buscam amparo na Lei Maria da Penha.
525
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
4.1 POLITIZAÇÃO DO PROBLEMA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
O mascaramento e a potencialização da violência doméstica, em grande parte
decorrem das próprias características do território de sua ocorrência. “O problema
circunscreve-se a um espaço fechado, ambíguo e fortemente estruturado do ponto
de vista simbólico, no qual as categorias de conhecimento/reconhecimento contêm,
tendencialmente, maior peso emocional que o cognitivo” (ALMEIDA, 1998, p.89).
Porém, considerando o que é amplamente divulgado na literatura de gênero e
violência, o que é pessoal é político. Assim, é preciso que se resgate o caráter
político da violência doméstica, não a subordinando a outras manifestações de
violência. A significação contida no “pessoal é político” deve perpassar as práticas
individuais e coletivas, públicas e privadas. A busca do estatuto político da violência
contra a mulher e de sua visibilidade como objeto de políticas públicas é de
fundamental importância (OSTERNE, 2008, p.250).
O espaço público é o cenário político por natureza. Nele as pessoas têm a
liberdade de se expor, discutir e chegar a um senso comum necessário à produção
de um mundo comum. Na esfera pública, exige-se das pessoas a discussão de
assuntos reconhecidos como importantes para a coletividade. Cada um pode
expressar suas ideias. A pluralidade de ideias é fundamental nas decisões tomadas
em conjunto.
O fenômeno da violência contra a mulher deixou de ser um problema policial
e passou ao âmbito social. Estudar e pensar a violência significa estudar e pensar a
sociedade. O estudo de suas causas constitui elemento de exercício da própria
cidadania. A dinâmica da violência contempla, ao mesmo tempo, esferas individuais
e coletivas, pois que envolve pessoas, grupos e classes sociais. Não se pode tratar
da violência contra a mulher como problema isolado (OSTERNE, 2008, p.275).
As informações trazidas pelas mulheres nas denúncias de violência
doméstica devem ser organizadas e levadas à possibilidade de ampla visibilidade,
capaz de apontar políticas sociais coletivas e democráticas que enfrentem o
problema em seu circuito produtivo (OSTERNE, 2008, p.276).
O Estado deve atuar como órgão promotor e articulador de atos políticos que
garantam um Estado de Direito. Em outras palavras, um Estado que possa estar à
526
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
frente de políticas públicas capazes de alterar as visíveis desigualdades sociais
existentes no País, em diálogo com a sociedade e com as organizações que as
representem.
As políticas públicas devem atingir e modificar a vida das mulheres,
oportunizando condições para o estabelecimento de relações mais igualitárias entre
homens e mulheres. Devem pautar-se pelos princípios de igualdade e respeito à
diversidade; da equidade; da autonomia das mulheres; da justiça social; da
transparência dos atos públicos; e da participação e controle social (OSTERNE,
2008, p.268-269).
4.2 PANORAMA ANTERIOR À CRIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA
Antes mesmo da promulgação da Lei Maria da Penha, inúmeras medidas em
favor das vítimas de violência doméstica vinham sendo implantadas.
Em 1984, surgem as primeiras iniciativas na área da saúde. Atendendo
reivindicações do movimento das mulheres, o Ministério da Saúde elaborou o
Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher - PAISM.
Em setembro de 1992, a primeira casa de apoio foi a Viva Maria, na cidade de
Porto Alegre, onde se prestava atendimento por equipes de auxiliares operacionais e
técnicos das áreas de enfermagem, serviço social, pedagogia, psicologia e direito, a
mães e filhos envolvidos em episódios de violência doméstica.
Em 2004, foi lançada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da
Mulher – Princípios e Diretrizes.
Mas a primeira providência significativa foi a criação das Delegacias da Mulher,
multiplicadas hoje em todo o território nacional. Assim, as mulheres foram
encorajadas a denunciar qualquer agressão sem o medo da exposição e do vexame
público que tais fatos acarretam.
Também foram criados abrigos e instituições onde as vítimas e seus
dependentes recebem amparo e atendimento adequado. Tais ambientes devem ser
lugares sigilosos que tragam segurança à mulher e seus filhos, proporcionem-lhes
acolhimento e acompanhamento psicológico e social, e garantam o resgate da
autoestima e da cidadania.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Importante serviço presta a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, que
funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana. Esta Central dispõe de
atendentes especializadas para orientar as vítimas, esclarecer as dúvidas sobre
denúncia e acolhimento, fornecer orientações e alternativas para se proteger do
agressor. Também informa a mulher sobre seus direitos, sendo-lhe fornecida a
relação dos serviços especializados e os tipos de estabelecimentos que pode
procurar em sua cidade, como delegacias de atendimento, defensorias públicas,
postos de saúde, instituto médico legal para casos de estupro, centros de referência,
casas-abrigos e outros mecanismos de promoção de defesa de direitos da mulher.
As estatísticas dão conta que, a cada 15 segundos, ocorre uma agressão
doméstica ou sexual contra uma mulher. Apesar disso, nem todos os Estados
contam com serviços de atendimento às vítimas. A Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres – SPM do governo federal mantém um quadro dos serviços
disponíveis. Assim, urge que se leve atendimento especializado a todas as vítimas,
em todos os cantos do país.
4.3 MECANISMOS DE PROTEÇÃO À MULHER
Diante da necessidade de cumprir os tratados assumidos pelo Brasil em âmbito
internacional, foi criada a Lei nº 11.340 de 7 de agosto de 2006, para a qual foi
atribuído o “nome” Lei Maria da Penha, devido ao caso de Maria da Penha Maia
Fernandes que, “diante da inoperância da legislação brasileira” (SOUZA, 2009,
p.22), num ambiente de reiterada violência doméstica durante seis anos de
casamento, acabou sendo vítima de tentativa de homicídio por parte do seu então
marido. A situação de continuadas agressões (arma de fogo, eletrocussão e
afogamento) culminou em um quadro de paraplegia irreversível. Maria da Penha
acirrou sua luta pelos direitos humanos das mulheres em âmbito internacional,
resultando em condenação ao Estado brasileiro perante a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos - OEA, pela
sua omissão na implementação de medidas investigativas e punitivas contra o
agressor. Somente após 19 anos de julgamento é que o marido de Maria da Penha
foi recolhido à prisão, e ficou apenas dois anos em regime fechado.
528
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Na estrutura familiar não pode coabitar prática de qualquer tipo de violência,
além do que “a violência doméstica não encontra qualquer suporte jurídico por
contrariar as regras mais elementares dos costumes, dos princípios gerais de direito,
[...], além da legislação expressa em contrário” (PARODI;GAMA, 2009, p.17).
Em vista disso, o Estado brasileiro assumiu, ratificando documentos
internacionais de proteção à mulher, o compromisso de adotar medidas que
garantam os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e
familiares, de forma a preservá-las de todas as formas de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (CUNHA;PINTO, 2008,
p.41).
A Lei Maria da Penha criou mecanismos para coibir a violência doméstica e
familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição da República
de 1988, bem como nos termos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. A violência doméstica contra
a mulher, anteriormente, era abarcada pela Lei nº 9.099, de 26 de setembro de
1995, que implantou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais.
A Lei nº 9.099/95 permitiu a divisão da criminalidade em duas modalidades: de
“pequena criminalidade” e a “grande criminalidade”. Assim, a violência doméstica
mais comum foi, por esta lei, incluída nas pequenas criminalidades, podendo ser
julgada pelos juizados especiais, já que não teria uma grande repercussão social.
Sob o aspecto jurídico, a Lei nº 9.099/95, caracterizada pela prioridade à
informalidade, incluía a violência doméstica contra a mulher como um delito de
menor potencial ofensivo, o que trouxe repercussões desastrosas sobre as vítimas
dessas ações, levando à banalização da pena aplicada aos agressores.
A finalidade da Lei nº 9.099/95 foi alcançada, já que a justiça tornou-se mais
rápida, apesar de a pena ser mais branda, fundamentada nos princípios da
oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade (arts. 2º e
62 da Lei nº 9.099/95). Mas no que se refere à proteção da mulher contra a violência
doméstica, as medidas adotadas (penas de multa - pagamento de multa e penas
restritivas de direitos – entrega de cestas básicas de alimentos, de higiene pessoal
ou de remédios destinadas às entidades de caridade, por exemplo), não eram
529
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
suficientes para punir adequadamente (e exemplarmente) o agressor e nem serviam
como efeito pedagógico (SIRVINKAS, 2007, p.109).
Com a Lei nº 11.340/2006 criaram-se os Juizados de Enfrentamento da
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal
que podem responder às necessidades das mulheres.
Sendo assim, a lei em comento visa prevenir as diversas formas de violência
doméstica e familiar contra a mulher, a criação e ampliação de serviços públicos,
campanhas educativas e mecanismos ágeis de acesso à justiça para o atendimento
à mulher em casos envolvendo este tipo de violência. Também insere diversos
mecanismos recomendados pela Convenção de Belém do Pará, dentre eles a
obrigação do Estado na criação desses serviços e a capacitação de seus agentes
para que possam atender adequadamente as mulheres nessa situação. Além disso,
cria medidas de proteção imediatas, tanto de caráter penal como de caráter civil, tais
como o afastamento do agressor do lar, a separação de corpos, a regulamentação
de guarda dos filhos, a fixação de alimentos, dentre outras. Prevê ainda mudanças
na aplicação de penas, pois ficarão vedadas, nos casos de violência doméstica
familiar contra a mulher, as penas restritivas de direito de prestação pecuniária,
cesta básica e multa (BENFICA; VAZ; DUTRA, 2007, p.36).
No Quadro 4, Anexo IV, apresenta-se um comparativo da legislação no que diz
respeito à investigação, procedimentos, apuração e solução para as ocorrências de
violência contra a mulher, antes e depois da criação da mencionada Lei.
A Lei em estudo, a partir do Capítulo III, em seu art. 10, estabelece os seus
comandos à autoridade policial, a quem cabe, no atendimento à mulher em situação
de violência doméstica e familiar, entre outras providências:
I) Garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato
ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;
II) Encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao instituto
médico legal;
III) Fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou
local seguro, quando houver risco de morte;
IV) Se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de
seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;
V) Informar à ofendida os direitos a ela conferidos na lei e os serviços
disponíveis.
530
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Assim, verifica-se que a mencionada Lei busca prevenir a violência doméstica
com medidas integradas de prevenção e por meio de políticas públicas que
fomentem a integração de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria,
Segurança Pública, Assistência Social, Saúde, Educação, Trabalho e Habilitação.
Visa ainda promover estudos e pesquisas, implementar centros de atendimento
multidisciplinar, realizar campanhas educativas, e desenvolver outros mecanismos
para a prevenção da violência.
Neste contexto, é importante destacar a atuação do Ministério Público a quem
cabe, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher: requisitar força
policial e serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e de
segurança, entre outros; fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de
atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar; adotar, de
imediato, as medidas administrativas e judiciais cabíveis no tocante a quaisquer
irregularidades constatadas; e cadastrar os casos de violência doméstica e familiar
contra a mulher (CAVALCANTI, 2008, p.692-693).
A referida lei está longe da perfeição. Porém, apresenta uma adequada
estrutura para atender a complexidade do fenômeno da violência contra a mulher, já
que prevê mecanismos de prevenção, assistência às vítimas, políticas públicas e
punição para os agressores. Trata-se de uma lei que prioriza o cunho educacional e
de promoção de políticas públicas de assistência às vítimas (CHAVES; ALVES;
ROSENVALD, 2008, p.671).
Assim sendo, tal Lei
revela presença organizada das mulheres no embate humano, social e
político por respeito. Sua presença está marcada na ênfase à valorização e
inclusão da vítima no contexto do processo penal, na preocupação com
prevenção, proteção e assistência aos atores do conflito, no resguardo de
conquistas femininas, como espaço no mercado de trabalho (HERMANN,
2012, p.18).
Eis que, a Lei em estudo “emerge como resposta estatal à prática de violência
degradante contra a mulher, tratando de forma específica um mal que há muito
tempo aflige muitas famílias no território nacional” (PARODI; GAMA, 2009, p.15).
531
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Tal solução legislativa, com fundo ideológico firmado nas experiências de
algumas mulheres no domínio cruel de seus maridos e companheiros, pretende
estabelecer harmonia nas relações familiares entre cônjuges ou companheiros, para
que se ponha fim à violência contra a mulher.
5 CONCLUSÃO
A luta contra a discriminação, exclusão e violência feminina tem crescido.
Atualmente, as mulheres, conscientes de seus direitos, buscam por direitos
equânimes, igualdade entre homens e mulheres e uma vivência livre de padrões
opressores.
O fenômeno da violência doméstica contra a mulher, concretizada sob a forma
de crimes contra a pessoa, honra e patrimônio, há tempo demandava resposta
eficaz por parte do Estado, por ser este partícipe da promoção do bem-estar e da
dignidade da pessoa humana.
A Lei Maria da Penha, criada para prover a prevenção e combate a tal
fenômeno, inova o ordenamento jurídico pátrio, expressando o imprescindível
respeito aos direitos humanos das mulheres, tipificando as condutas delitivas e
delineando políticas integradas de enfrentamento. Não se trata de normativa
puramente punitivista: sua essência situa-se nas normas, princípios, diretrizes e
políticas públicas de prevenção e proteção, providências, procedimentos, medidas,
planos, estratégias, instrumentos e mecanismos de caráter assistencial e combativo
da violência de gênero.
Tal lei concedeu tratamento diferenciado ao conflito ao criar Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e dotá-los de aparato preventivo e
assistencial à vítima, ao agressor, aos familiares e, muitas vezes, até mesmo às
testemunhas.
A legislação tem o mister de acompanhar a dinâmica evolução da sociedade
para permitir que o Estado intervenha para garantir a integridade física e psíquica
dos membros de qualquer forma de família.
A concretização da igualdade de gêneros se constitui em um direito humano
basilar, e sua efetivação amplia os horizontes de realização pessoal da mulher,
vencendo obstáculos situados no preconceito e na discriminação.
532
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
Contam-se milênios de opressão e violência contra a mulher na História da
humanidade, e há apenas sete anos a sociedade brasileira conta com uma lei
específica para o seu atendimento.
A Lei Maria da Penha não resolve o problema de violência doméstica, mas dá
meios para a mulher conseguir seguir a vida longe do agressor.
Dar efetividade às diretrizes preventivas, protetivas e assistenciais da Lei Maria
da Penha por certo trarão repercussões em outros espaços de desigualdade,
visando, como finalidade maior, a disseminação de uma nova cultura, pautada no
respeito e no consenso, que privilegie uma tomada de consciência social que
reconheça a igualdade entre homens e mulheres, na família e na sociedade.
533
COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
A DOENÇA MENTAL COMO CAUSA DE INIMPUTABILIDADE E AS
MEDIDAS DE SEGURANÇA APLICADAS
THE MENTAL ILLNESS AS CAUSE OF UNIMPUTABILITY AND THE
SECURITY MEASURES APPLIED
Rafael Vieira Vianna Santos
Gustavo Britta Scandelari1
1
Bacharel em Direito pela Universidade Positivo (UP). Pós-graduado em Direito Constitucional pela
Unibrasil. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)
em convênio com o Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Mestre em Direito do Estado
pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor de Cursos de Pós-Graduação (lato sensu)
em Direito. Professor de Direito Penal na graduação do UNICURITIBA. Associado fundador do
Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Membro da Comissão da Advocacia Criminal
da OAB/PR. Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). Membro do Instituto dos
Advogados do Paraná (IAP). Advogado.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
SUMÁRIO
1. Introdução; 2. Classificação de comportamentos como doenças; 3. A
inimputabilidade no Código Penal brasileiro; 4. Medidas de segurança; 5. Lei
10.216/2001 – Lei da Reforma Psiquiátrica; 6. Conclusão.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar um estudo sobre as medidas de
segurança aplicadas aos inimputáveis dentro do direito penal brasileiro, mais
precisamente abordando os inimputáveis derivados de doenças mentais. Para isso
será analisado como a doença mental pode causar a inimputabilidade acusado, bem
como quais as medidas de segurança prevista no Código Penal e quais as
mudanças previstas pela Lei 10.216/2001, mais conhecida como Lei da Reforma
Psiquiátrica.
Palavras-Chave: Inimputabilidade, Semi-imputabilidade, Doenças Mentais, Direito
Penal, e Lei 10.216/2001.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
ABSTRACT
This paper aims to present a study on the security measures applied to unimputable
within the Brazilian criminal law, specifically addressing the unimputable derived from
mental illness. For it will be analyzed how mental illness can cause unimputability, as
well as what security measures provided for in the Criminal Code and changes
envisaged by Law 10.216/2001, better known as the Psychiatric Reform Law.
Key Words: Unimputable, Semi-Unimputable, Mental Illness, Criminal Law, and Law
10.216/2001.
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
1 INTRODUÇÃO
De tempos em tempos novas classificações de doenças e transtornos
mentais são lançadas pelos especialistas da área de saúde. Nos últimos anos,
porém, o que se tem percebido é que o número de novas doenças mentais
presentes no CID (Classificação Internacional de Doenças) e no DSM (Manual
Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais) tem aumentado em uma escala
assustadora. Uma vez que estes transtornos e/ou doenças mentais podem causar a
inimputabilidade do sujeito que pratica um ato ilícito, é importante que se saiba como
ocorre esta declaração de inimputabilidade e quais suas consequências.
Além disso, é importante conhecer quais as medidas de seguranças que são
aplicadas a estes inimputáveis, uma vez que a eles não é permitida a aplicação de
uma pena. Estas medidas, porém, são alvos de algumas críticas pela doutrina e
também por militantes do movimento antimanicomial já que, apresentam algumas
lacunas que acabam por torna-las, em certos casos, piores do que a aplicação de
penas “normais” aos acusados.
Por fim, será analisada a Lei da Reforma Psiquiátrica, (Lei 10.216/2001), que
surgiu como uma resposta às reivindicações feitas, principalmente pelos militantes
do movimento antimanicomial, e traz algumas melhorias e garantias para os doentes
mentais. Embora esta lei seja mais ampla do que o assunto abordado neste artigo,
já que versa sobre todos os portadores de doenças mentais, alguns de seus
parágrafos tem aplicação direta aos inimputáveis derivados de doenças mentais, o
que faz necessário sua análise.
2 CLASSIFICAÇÃO DE COMPORTAMENTOS COMO DOENÇAS
A cada ano o número de comportamentos sociais classificados como doenças
mentais tem tido um aumento significativo. Segundo Dale Archer (Archer apud
VINES, 2013), a “caixa da normalidade” está cada vez menor e a culpa é do excesso
de diagnósticos de doenças mentais. Ou seja, percebe-se que a cada dia que passa
a medicina tem trabalhado para incluir um número cada vez maior de
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COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE
comportamentos, que antes eram tidos como normais, na lista de comportamentos
que caracterizam transtornos mentais.
Este resultado pode ser entendido de duas maneiras. Por um lado, pode-se
entender que o maior número de doenças classificadas se dá pelo avança das
tecnologias em identificar tais problemas no seio da sociedade. Por outro lado, há
quem defenda que esse acumulo de diagnósticas possuí outro significado,
patrocinado pela indústria farmacêutica, que teria um grande interesse em “criar”
novos modelos de doenças, para os quais, certamente, já possuí uma forma de
tratamento.
De acordo com Thomas Szasz (2010, p. X), velhas doenças, como a
homossexualidade e a histeria desapareceram, enquanto outra nova, como vícios
em apostos e consumo de 
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