COLETÂNEA 1 JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Coordenadores VIVIANE COÊLHO DE SÉLLOS-KNOERR ELOETE CAMILLI OLIVEIRA Organizadores JOSÉ MARIO TAFURI SANDRO MANSUR GIBRAN COLETÂNEA 1 JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ISBN 978-85-87875-06-8 AENA 2013 | Curitiba Campus Milton Vianna Filho: Rua Chile, 1.678 - Rebouças - CEP 80220-181 Telefone: +55 41 3213-8700 Site: www.unicuritiba.edu.br Facebook: www.facebook.com/unicuritiba Twitter: www.twitter.com/unicuritiba YouTube:www.youtube.com/unicuritibaoficial SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................11 A PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO EM FACE DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA AGATHA NATASHA SANTOS RHEINHEIMER BRAGA E ALEXANDRE KNOPFHOLZ.................17 INCONSTITUCIONALIDADE DA FALTA DE UM LIMITE TEMPORAL NAS MEDIDAS DE SEGURANÇA ALESSA MARIA CAVALI ROYER E GUILHERME OLIVEIRA DE ANDRADE..............................41 A HIPNOSE COMO AUXILIAR DA PROVA NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NO BRASIL AMANDA CAROLINE PAULUK E MARIA DA GLÓRIA COLUCCI......................................................73 ASPECTOS SOBRE A (NÃO) PROTEÇÃO À VIDA DO FETO NOS CASOS DE ABORTO DECORRENTE DE CRIME SEXUAL ANA CAROLINA STROZZI DE OLIVEIRA E ROOSEVELT ARRAES.......................................101 COMENTÁRIOS A RESPEITO DA INADMISSIBILIDADE DAS PROVAS ILÍCITAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO ANNA BEATRIZ STRECKER OKAMOTO E ALEXANDRE KNOPFHOLZ........................................133 INFÂNCIA E CRIMINALIDADE: A REPRESENTAÇÃO DO UNIVERSO INFANTOJUVENIL MARGINAL PELO DISCURSO CRIMINOLÓGICO NO BRASIL (18901927) BERNARDO PINHÓN BECHTLUFFT E MARIO LUIZ RAMIDOFF...................................................157 INQUÉRITO POLICIAL COMO UM INSTRUMENTO INQUISITIVO NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ACUSATÓRIO EDUARDO HENRIQUE KNESEBECK E ALEXANDRE KNOPFHOLZ.............................................191 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO CONCURSO DE PESSOAS NO DIREITO PENAL BRASILEIRO FÁBIO PRESTES BARBOSA MEGER E GUSTAVO BRITTA SCANDELARI.............................223 CRIMINOLOGIA E O CONTROLE SÓCIO-PENAL GIANA ENGELHORN JACON E MARIO LUIZ RAMIDOFF...............................................................249 LEGITIMIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO DIANTE DO PRINCÍPIO DA LESIVIDADE GLENYO CRISTIANO ROCHA E GUSTAVO BRITA SCANDELARI................................................281 ENTRE HERMES E THEMIS: O DIÁLOGO COMO MEIO PARA ALCANÇAR UMA JUSTIÇA INTERNACIONAL PENAL HELLEN OLIVEIRA CARVALHO E ROOSEVELT ARRAES.............................................................315 CRIAÇÃO DE ESTEREÓTIPOS E A SEGREGAÇÃO SOCIAL LOUISE DE OLIVEIRA CARNIERI E MARIA LUISA SCARAMELLA................................................349 APLICABILIDADE DA LEI PENAL BRASILEIRA AOS CRIMES CIBERNÉTICOS: UMA VISÃO CRÍTICA LUANA BRUNA OKAMURA E MÁRIO LUIZ RAMIDOFF..................................................................373 A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA: UMA REFLEXÃO SOB A ÓTICA DO CINEMA MARCELA GUEDES CARSTEN DA SILVA E MARIA LUISA SCARAMELLA..................................399 COMBATE À IMPUNIDADE E O NECESSÁRIO DESESTÍMULO À CORRUPÇÃO: UMA ANÁLISE À LUZ DAS RECENTES ALTERAÇÕES NA LEGISLAÇÃO ELEITORAL MAURÍCIO AUGUSTO GARBIN E LUIZ GUSTAVO DE ANDRADE................................................423 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À VIDA PRIVADA, INTIMIDADE E AO SIGILO DAS COMUNICAÇÕES SOB A PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL NATASHA KOLINSKI VIELMO E ALEXANDRE KNOPFHOLZ.........................................................457 A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA PATRÍCIA RIBEIRO DANTAS DE MELO E BERTIN E ALEXANDRE KNOPFHOLZ........................481 PROCESSO E PROCEDIMENTO DA LEI MARIA DA PENHA PRISCILA NÉLIDA HRISTOF CORTEZ FERRAREZI E MARIO LUIZ RAMIDOFF..........................513 A DOENÇA MENTAL COMO CAUSA DE INIMPUTABILIDADE E AS MEDIDAS DE SEGURANÇA APLICADAS RAFAEL VIEIRA VIANNA SANTOS E GUSTAVO BRITTA SCANDELARI.......................................537 A INDETERMINAÇÃO TEMPORAL PARA O CUMPRIMENTO DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA THIELEN NETZEL SERRATO E ALEXANDRE KNOPFHOLZ..........................................................559 POLÊMICAS ACERCA DO ARTIGO 28 DA LEI 11.343/06 VITHÓRIA SIMÕES MANFRON BARROS E GUSTAVO BRITTA SCANDELARI............................589 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 10 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE INTRODUÇÃO A Coletânea Justiça e Cidadania em Debate resulta da elaboração de artigos, escritos a partir de pesquisas realizadas por professores e seus alunos, refletindo sobre os direitos e garantias fundamentais, chamando atenção para as suas violações, diretas e indiretas, e a necessidade de correção destas distorções. Inicialmente, Agatha Natasha Santos Rheinheimer Braga e Alexandre Knopfholz analisam a possibilidade e viabilidade de tornar efetiva a reinserção social dos encarcerados com a privatização do sistema penitenciário brasileiro em face do principio da dignidade da pessoa humana. Com o artigo Inconstitucionalidade da falta de um limite temporal nas medidas de segurança, Alessa Maria Cavali Royer e Guilherme Oliveira de Andrade demonstram a necessidade de aplicar os princípios limitadores da pena às medidas de segurança, com enfoque no princípio da vedação de penas perpétuas, a fim de compatibilizar este instituto jurídico penal com a Constituição da República Federativa do Brasil, bem como com um Estado Democrático de Direito. Maria da Glória Colucci e Amanda Caroline Pauluk pesquisaram sobre a hipnose como auxiliar da prova na investigação criminal no Brasil, e analisam a utilidade, relevância e resultados benéficos obtidos com as informações levantadas por este meio durante a investigação, com a produção da perícia psicológica forense. A abordagem dos “Aspectos sobre a (não) proteção à vida do feto nos casos de aborto decorrente de crime sexual” feita por Ana Carolina Strozzi de Oliveira examina a constitucionalidade desta excludente de punibilidade estabelecida pela legislação pátria, por entender que o direito à vida é um direito fundamental e inviolável, devendo o ordenamento jurídico protege-la desde o momento em que o ser humano é gerado. Em comentários a respeito da inadmissibilidade de provas ilícitas no direito processual penal brasileiro, Anna Beatriz Strecker Okamoto e Alexandre Knopfholz, expõem o posicionamento de renomados autores acerca do enfrentamento do tema diante da polarização entre a limitação à atividade persecutória do Estado no que se refere ao direito à prova e a garantia constitucional do acusado, concluindo com a 11 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE análise da questão das provas ilícitas por derivação, de acordo com os parágrafos do artigo 157 do CPP e da Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada. Infância, Criminalidade: A representação do universo infanto –juvenil marginal pelo discurso criminológico no Brasil (1890-1927) pesquisado por Bernardo Pinhón Bechtlufft parte da concepção histórica –social traçada por Phillipe Ariès para a infância, afirmando que o século XX é o século do efetivo reconhecimento da infância como fase autônoma da vida, distinta ao universo adulto, e, neste sentido, carecedor de uma específica tutela do Estado na formulação de garantias e na elaboração de específicas políticas públicas de proteção. Eduardo Henrique Knesebeck demonstra a incompatibilidade do inquérito penal e a ordem constitucional vigente, por serem antagônicos. Conclui que o Inquérito policial é tido como instrumento inquisitivo no sistema processual penal acusatório, e invoca a necessidade de serem observadas premissas principiológicas para a adequação da pena à culpabilidade do agente. Algumas considerações sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro, feitas por Fábio Prestes Barbosa Meger e Gustavo Britta Scandelari, chamam a atenção para os diversos modelos de responsabilização adotados pelo Código Penal Brasileiro após as alterações introduzidas na parte geral pela Lei 7.209/84. Criminologia e o controle sócio penal foi o tema pesquisado por Giana Engelhorn Jacon e Mario Ramidoff e aborda o controle sócio penal exercido pelo Estado, sua atuação através da cominação, aplicação e execução das sanções penais. No artigo Legitimidade dos crimes de perigo abstrato diante do principio da lesividade, Glenyo Cristiano Rocha e Gustavo Britta Scandelari embasados em doutrinas europeias, onde o estudo do tema está mais avançado buscaram com a realização da pesquisa questionar a legitimidade dos crimes de perigo abstrato do ponto de vista teórico - dogmático. Entre Hermes e Themis: O diálogo como meio para alcançar uma justiça internacional penal, artigo resultante de pesquisa realizada por Hellen Oliveira Carvalho e Roosevelt Arraes busca analisar estudos inovadores na área dos Direitos Humanos, em face da sua complexidade diante das concepções culturais a fim de 12 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE estabelecer uma abordagem do Direito Internacional Penal construída por meio da dialética dos princípios do universalismo e do relativismo cultural. A criação de estereótipos e a segregação social, escrito por Louise de Oliveira Carnieri e Maria Luiza Scaramella, analisa o reflexo mantido em nossa sociedade causado pela discriminação e o seu impacto. No artigo Aplicabilidade da lei penal brasileira aos crimes cibernéticos: uma visão crítica, Mário Luiz Ramidoff e Luana Bruna Okamura tratam da efetividade da legislação penal vigente no país para o enquadramento e combate de infrações cometidas em ambientes virtuais e das dificuldades encontradas pelos operadores do direito em aplica-la aos avanços tecnológicos. Sob a ótica do cinema e documentários, Marcela Guedes Carsten da Silva e Maria Luísa Scaramella escrevem sobre criminalização da pobreza trazendo a discussão, analisando e refletindo sobre o sistema carcerário brasileiro. Na Análise da teoria das nulidades à luz da Constituição garantista, Mariana Buhrer Sukevicz e Alexandre Knopfholz investigaram com vistas ao processo penal a necessidade, ante a concepção de Estado Democrático de Direito da revisão da teoria das invalidades para a promoção dos direitos fundamentais do acusado. Combate à impunidade e o necessário desestimulo a corrupção: uma análise das recentes alterações na legislação eleitoral, pesquisado por Maurício Augusto Garbin e Luiz Gustavo de Andrade objetiva o estudo dos atos de corrupção e improbidade administrativa no Brasil e dos mecanismos de controle em face de tais condutas ressaltando alguns dos reflexos e a importância da observação dos princípios basilares da administração pública. Natasha Kolinski Vielmo e Alexandre Knopfholz analisam as situações que permitem a colocação de limites e restrições aos direitos fundamentais à vida privada, intimidade e ao sigilo das comunicações sob a perspectiva constitucional, diante da mitigação do segredo das comunicações telefônicas permitidas pela Constituição de 1988, no âmbito penal. As posições doutrinárias, as questões dogmáticas, a adoção pela lei 9.605/98 e os dispositivos constitucionais relativos à responsabilidade penal da pessoa jurídica são o tema de estudo de Patrícia Ribeiro Dantas de Melo e Bertin e Alexandre Knopfholz. 13 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Em Processo e Procedimento na Lei Maria da Penha, Priscila Nélida Kristof Cortêz Ferrarezi e Mario Luiz Ramidoff abordam a proteção aos direitos da mulher em face da violência contra ela praticada, dando-lhe maior segurança social e jurídica. As medidas de seguranças previstas no Código Penal e as mudanças introduzidas pela Lei 10.216/2001, mais conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, nas quais tem a doença mental como causa de Inimputabilidade, são analisadas por Rafael Vieira Vianna Santos. A indeterminação temporal para o cumprimento das medidas de segurança, objeto de pesquisa de Thielen Netzel Serrato e Alexandre Knopfholz aborda a problemática envolvida e as suas consequências, acarretando a mitigação dos direitos fundamentais dos indivíduos inimputáveis e semi-imputáveis. (liberdade), fundamentada nas questões de segurança pública da coletividade. Com o artigo Polêmicas acerca do artigo 28 da Lei 11.343/02006, Vithoria Simões Manfron Barros e Gustavo Britta Scandelari, trazem informações úteis e relevantes que deveriam ser esclarecidas à população sobre as alterações na lei de drogas. A presente Coletânea, resultado do trabalho exaustivo de pesquisa conjunta dos acadêmicos e seus orientadores do Curso de Graduação em Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA, foram apresentadas como Trabalho de Conclusão, partindo da temática desenvolvida em suas monografias, e indicados para publicação, por comissão examinadora composta por docentes da Instituição de Ensino. Desejamos que a leitura dos temas abordados, envolvendo os direitos e garantias fundamentais, reforcem os ideais de cidadania e justiça, indispensáveis para a nossa sociedade. ELOETE CAMILLI OLIVEIRA Doutora pela UFPR. Mestre pela PUCPR. Professora adjunta nível III da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, representante dos docentes no CEPE UNICURITIBA, professor titular – UNICURITIBA, Supervisora do setor de Registro dos Trabalhos de Conclusão de Curso do UNICURITIBA. 14 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE JOSÉ MARIO TAFURI Mestre e Especialista pela PUCPR. Professor Adjunto do UNICURITIBA, Representante dos Coordenadores no CONSEPE- UNICURITIBA, Coordenador do Curso de Direito – UNICURITIBA 15 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 16 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO EM FACE DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA PRIVATIZATION OF BRAZILIAN PENITENTIARY SYSTEM IN LIGHT OF PRINCIPLE OF HUMAN DIGNITY Agatha Natasha Santos Rheinheimer Braga1 Alexandre Knopfholz2 1 Estudante de Direito do Centro Universitário Curitiba Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), Pós-Graduação em Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é professor horista da disciplina de Processo Penal, nos cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: direito processual penal e direito penal. 2 17 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SUMÁRIO Resumo 1 Introdução 2 Da Dignidade da Pessoa Humana 3 Execução Penal no Brasil 4 Privatização das Penitenciárias 4.1 Modelos Norte Americano e Francês 4.2 Experiências Brasileiras 4.3 Óbices e Vantagens do Sistema Privatizador 4.4 As Parcerias Público Privadas e a Viabilidade Da Privatização 5 Considerações Finais. Referências 18 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO O presente artigo objetiva analisar a viabilidade da privatização do sistema penitenciário brasileiro, sob a ótica da dignidade humana. Para tanto, analisa-se o fundamento da pena, os sistemas penitenciários desde o seu surgimento, a legislação brasileira atinente à execução da pena privativa de liberdade, a onda do movimento privatizador e a sua aplicação nos mais diversos graus, as vantagens e desvantagens da adoção da privatização e, ainda, a efetividade conferida à dignidade nos cárceres brasileiros atuais. Por fim, procura-se discutir, à luz da Constituição Federal, da dignidade humana e da realidade carcerária, a proposta privatizadora das penitenciárias brasileiras, o seu alcance e dinamismo, a fim de demonstrar a possibilidade de melhoria nos índices de reinserção social, bem como de se executar a pena com condições dignas, visando, sempre, a realização da letra da lei na ânsia de que sejam levados a efeito os direitos do apenado enquanto ser humano encarcerado. Palavras-chave: privatização das penitenciárias, dignidade humana, pena privativa de liberdade, execução penal. 19 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT The present article aims to analyze the feasibility of the Brazilian penitentiary system privatization from the perspective of human dignity. For this, it analyzes the foundation of sentence, prison systems since its inception, the Brazilian legislation regards, the execution of the sentence of imprisonment, the privatization wave movement and its application in various degrees, the advantages and disadvantages of the adoption of privatization and also the effectiveness afforded to dignity in Brazilian prisons today. Finally, we try to discuss, in light of the Constitution, human dignity and the reality of prison, the proposal for privatizing prisons in Brazil, its scope and dynamism in order to demonstrate the possibility of improvement in indices of social reintegration, as well as to execute the sentence in decent conditions, aiming always, the realization of the letter of the law in their eagerness to be led to effect the rights of the convict as an incarcerated human being. Keywords: privatization of prisons, human dignity, custodial sentence and criminal execution. 20 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objeto o estudo da viabilidade da privatização das penitenciárias brasileiras à luz da dignidade humana. Neste sentido, adotar-se-á o princípio da dignidade como base da discussão, eis que, fundamento da ordem constitucional brasileira e norte de todo o sistema. A partir deste analisar-se-ão os sistemas penitenciários que se desenvolveram ao longo da história e a Lei de Execução Penal, principalmente no que concerne à aplicação da pena privativa de liberdade, seus fundamentos e disposições. Ainda, tratar-se-ão dos malefícios e benefícios da proposta privatizadora, da sua aplicação em outros países e a forma como foi aplicada, bem como a possibilidade de sua aplicação no território brasileiro. 2 DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O sistema constitucional brasileiro se submete a uma estrutura hierárquica, na qual a Constituição é o norte de todo o conjunto normativo. Nesta perspectiva, a dignidade, que é o fundamento da própria ordem jurídica, propõe-se a ser a norma de maior valor axiológico de todo o ordenamento. Atributo do ser humano e pressuposto da condição humana, a dignidade da pessoa humana, se ausente, daria ensejo à coisificação do indivíduo. Nesta perspectiva, definiu-a Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p.60): [...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. No sistema constitucional brasileiro, a dignidade foi adotada como princípio fundamental apenas na Constituição de 1988, passando a ser, além de valor ético e moral, uma norma jurídica positivada, formalmente e materialmente constitucional, o que ocasionou profundas alterações no sistema jurídico-constitucional que passou a ser prioritariamente modelado com base em princípios ao invés de preceitos. Deste 21 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE modo, como pressuposto político do Estado Democrático de Direito, este princípio condiciona o fim “dignidade do homem” à posição do Estado como meio, sendo este o fator legitimador das ações estatais, conforme explica Sarlet (2001, p.66), “reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal”. Ainda que seu conceito seja impreciso, sujeito a constantes atualizações e diversificações, as situações em que a dignidade é vilipendiada são fáceis de identificar em virtude da concretude alcançada por este princípio. Todas as situações que ensejam na degradação humana são indignas. A dignidade, neste sentido, traz consigo o ideal de justiça, independente de qualquer merecimento. É, como já explanado, qualidade inerente ao ser humano, que independe de requisito ou condição, e como tal pressuposto do Estado. Na esfera penal não é diferente. Este princípio tem ampla relevância, uma vez que fornece garantias ao homem de que este não receberá qualquer tratamento que se revele como afronta à sua dignidade pessoal, repelindo toda ação tendente a reduzi-lo a um mero objeto. Entretanto, diariamente se verifica uma afronta a tal enunciado diante do caos em diversos presídios brasileiros, uma vez que os presidiários são submetidos a condições animalescas e indignas de existência, afastando qualquer possibilidade de promoção da ressocialização, o que é, pelo menos em tese, o fim precípuo da pena. 3 EXECUÇÃO PENAL NO BRASIL A pena, conforme Cezar Roberto Bitencourt (2011, p. 514), “constitui um recurso elementar com que conta o Estado e ao qual recorre, quando necessário, para tornar possível a convivência entre os homens”. Para o sistema jurídico penal brasileiro, o fundamento da pena vincula-se à teoria mista heterogênea, unificadora ou eclética, articulada por Adolf Merkel, na Alemanha, e desenvolvida por Franz Von Liszt. Para tanto, a escola alemã trabalhou com os aspectos mais marcantes das teorias relativas e absolutas, sob o desiderato de mesclar as características de retribuição e prevenção. 22 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Neste sentido, tem-se que a ideia de retribuição está intimamente vinculada à teoria absoluta. Para esta, a punição é um mal necessário àquele que praticou o delito, devendo, no entanto, ser limitada pelo grau de sua culpa, em atenção aos princípios da individualização da pena e da culpabilidade. A prevenção, por sua vez, é intrínseca às teorias relativas. Nestas, a finalidade da pena é reafirmar a soberania da norma penal para a sociedade, de modo que o corpo social a cumpra em razão de sua legitimidade, e, também, propiciar a ressocialização do apenado. Portanto, a sanção penal é dotada de pluralidade funcional, uma vez que pune o delinquente pelo crime praticado, mas, também, pretende a sua reinserção social, conforme se depreende do artigo 59, do Código Penal. Assim, o sistema penal é composto pelas penas privativa de liberdade e de multa, além das restritivas de direito, as quais devem, ao menos em tese, servir para atingir os objetivos propostos – ressocializar e retribuir. Conforme Bitencourt (2011, p.642), [...] não podemos ficar presos às duas formas clássicas e tradicionais de sanção penal: a pecuniária e a pena privativa de liberdade. Devemos buscar outras alternativas, como as penas substitutivas, ditas restritivas de direitos, como fez nosso legislador, e como fizeram as modernas legislações ocidentais. A Reforma Penal brasileira, evidentemente, sem chegar ao exagero radical “não intervenção”, apresenta avanços elogiáveis na busca da desprisionalização de forma consciente e cautelosa. A pena privativa de liberdade, a que se atenta este estudo, envolve diversos estabelecimentos penais para a sua aplicação, dos quais, apontam-se as penitenciárias, a colônia agrícola ou industrial e a casa do albergado. A penitenciária é o estabelecimento destinado ao cumprimento da pena de reclusão em regime fechado. De acordo com o artigo 88 da LEP, a cela individual deve conter elementos que proporcionem condições dignas de existência ao condenado, tais como um ambiente salubre e uma área mínima de 6,00 m². Em que pese a Lei de Execução Penal esteja em estrita consonância com as previsões da ONU, suas previsões não condizem com a realidade carcerária brasileira. Nesta linha, Luís Régis Prado (2011, p. 111) dispôs que, ainda que a Lei se esforce 23 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE [...] no sentido de determinar a criação de um terreno que harmonize a restrição da liberdade (provisória ou definitiva) com o próprio intento da justiça penal, o que se percebe atualmente é uma estrutura carcerária que se afunda nela mesma, pois ao contrário do que se espera, caminha na contramão da finalidade que fundamenta a sua razão de ser. Vale ressaltar que exceções, ao que atualmente se entende por regra, quando se trata de estabelecimentos penais, existem, no entanto muito longe de fomentarem as mudanças necessárias, representando exemplos isolados a serem seguidos. O estado deficiente e precário em que se encontram as penitenciárias faz com que o objetivo da ressocialização esteja cada vez mais distante de ser alcançado. Destarte, é notória a falência do instituto prisional, a qual, conforme Bitencourt (2011b, p. 164), resulta do déficit de atenção que “a sociedade e, principalmente, os governantes têm dispensado ao problema penitenciário, o que nos leva a exigir uma série de reformas, mais ou menos radicais, que permitam converter a pena privativa de liberdade em meio efetivamente reabilitador”. Quanto à colônia agrícola, industrial ou similar, estas devem abrigar os condenados em regime semiaberto. Para tanto, as condições de segurança são menos rigorosas e pretende-se a reinserção do condenado por meio de cursos profissionalizantes, aparelhagem moderna que proporcione a sua capacitação, prática esportiva e salas de ensino. No entanto, “não obstante a literalidade do texto, é notória a falência do regime semiaberto, que pode ser identificada por diversos fatores” (MARCÃO, 2010, p.137). Isto porque, da prática, extrai-se que tal regime não se coaduna com a sua finalidade, em razão da falta de estabelecimentos suficientes para a demanda carcerária, da desatenção à progressividade de regime, da superlotação dos estabelecimentos de regime fechado em virtude do transporte dos condenados em regime semiaberto para este e a inexistência de resultados práticos a fim de se dar cumprimento às finalidades da pena. Por fim, a casa do albergado, que, em conformidade com o artigo 93 da Lei de Execução Penal, tem a função de abrigar os condenados em regime aberto e em limitação de fim de semana. Quando possível, “o prédio destinado a casa do albergado deverá situar-se em centro urbano separado dos demais estabelecimentos, e caracterizar-se pela ausência de obstáculos físicos contra a fuga” (MARCÃO, 2010, p. 141), a fim de verificar a responsabilidade dos apenados. 24 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Todavia, em razão da falta de estabelecimentos desta categoria, as penas privativas de liberdade em regime aberto e restritiva de direito de limitação de fim de semana, quando aplicadas, acabam sendo cumpridas em regime domiciliar. 4 PRIVATIZAÇÃO DAS PENITENCIÁRIAS À época da Revolução Francesa, em razão de os poderes político e econômico serem controlados pela realeza, a classe burguesa pugnou pela separação entre estes, visando à detenção do controle social. Mais tarde, na ânsia por um maior domínio social, a burguesia passou a comandar também o poder político, instaurando-se, assim, o que se chamou de Estado Liberal, Estado, este, caracterizado pela livre iniciativa e regulação automática dos mercados. Após a Segunda Guerra, as dificuldades práticas desta medida restaram mais perceptíveis e, com isto, vislumbrou-se a necessidade de um Estado mais ativo, que interviesse nas relações econômicas, um Estado Social que pudesse instaurar novamente o equilíbrio econômico social. Ocorre que, a excessiva burocracia e a utilização sem freios das políticas intervencionistas ocasionaram um grande déficit nos cofres públicos e, para esse novo contexto, foi necessário, mais uma vez, o reposicionamento do Estado. Com isto, reduziu-se a participação estatal e instaurou-se o Estado neoliberal, cuja característica essencial é a restrição da intervenção estatal às atividades estritamente necessárias, delegando aos particulares a execução das demais tarefas. Neste contexto, por volta da década de 80, deu-se início à política privatizadora, na qual foram transmitidos à iniciativa privada os serviços até então acolhidos pelo Estado. Pois bem. No campo penitenciário, privatizar consiste, em suma, em transferir para a iniciativa privada a execução da pena privativa de liberdade, o que pode ocorrer em diversos graus e formas, de acordo com o contexto social no qual é aplicada. Partindo deste princípio, podem-se indicar quatro modelos básicos de privatização (CARVALHO FILHO, 2002, p. 63): 25 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE [...] a empresa financia a construção e arrenda o estabelecimento para o Estado por determinado número de anos (30, por exemplo), diluindo-se os custos ao longo do tempo; a empresa transfere unidades produtivas para o interior de presídios e administra o trabalho dos presos; a empresa apenas fornece serviços terceirizados no âmbito da educação, saúde, alimentação, etc.; e, por fim, a forma mais radical, a empresa gerencia totalmente o presídio, conforme regras ditadas pelo poder público, sendo remunerada com base num cálculo que leva em considera o número de presos e o número de dias administrados. Assim, tem-se que as três primeiras formas se revelam como privatizações parciais ou em sentido estrito. Nestas, reservam-se à iniciativa privada apenas as atividades materiais, enquanto que ao Estado cabem aquelas de cunho jurisdicional. A última modalidade elencada por Carvalho Filho, por sua vez, consiste na privatização total ou sentido amplo, espécie esta que desvincula totalmente a administração pública do cumprimento da pena, competindo, desta forma, apenas ao particular a execução da pena. Deste modo, tem-se que a privatização é o gênero do qual se extraem diversas espécies, sendo o seu conceito amplo e aberto, sujeito à moldura do contexto social em que se insere. 4.1 Modelos Norte Americano e francês O problema prisional, conforme explica Luiz Flávio Borges D’Urso, não é apenas estatal, mas de toda a sociedade. E, em meio ao caos penitenciário, a proposta privatizadora, tornou-se a mais viável e eficaz, devendo, entretanto, ser aplicada conforme o contexto social e legal de cada país. Nos Estados Unidos, a superlotação dos presídios e o elevado custo com o sistema da época foram fatores preponderantes para desencadear uma discussão acerca do problema penitenciário. Foi então que, em meados da década de 80, a privatização surgiu como proposta ao caos carcerário americano, conforme descreveu Laurindo Dias Minhoto (2000, p. 64): É precisamente num contexto de explosão da população penitenciária, de escalada dos gastos, de degradação das condições de alojamento que, por sua vez, tem levado à intervenção judicial no sistema, e de uma postura do público que, ao mesmo tempo em que exige penas mais duras para os 26 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE violadores da lei penal, recusa-se a autorizar os recursos necessários à construção de novos estabelecimentos, que as prisões privadas têm sido propostas e apresentadas como solução à crise do sistema penitenciário norte-americano. Contudo, além de ser uma fonte de economia ao Estado, a privatização revelou-se como objeto de exploração da iniciativa privada, "com a perspectiva de gerar altíssimos lucros, razão pela qual o empresariado norte-americano passou a exercer forte pressão para que essa ideia fosse concretizada, tendo finalmente o Estado cedido" (CORDEIRO, 2006, p. 91), o que ainda é objeto de muitas discussões. Com efeito, cumpre salientar que, embora os resultados da privatização americana tenham se revelado positivos, a experiência deste país limitou-se a um expoente carcerário, qual seja, os jovens delinquentes e aqueles em fase final de cumprimento da pena, em razão dos elevados custos do encarceramento face ao aumento de presos provocado pela política da tolerância zero adotada neste país. Atualmente, vislumbra-se que a tendência americana é de que a privatização total dos estabelecimentos penais ceda lugar à terceirização dos serviços, num sistema de cogestão em que a contratação de serviços e a construção dos presídios sejam da iniciativa privada, enquanto as demais funções pertençam ao Estado. A França, por sua vez, do mesmo modo que os Estados Unidos, enfrentou uma grave crise carcerária, em razão da superlotação e das péssimas condições oferecidas aos presidiários, além do fato de que toda a política criminal francesa se encontrava em ruínas. Contudo, o modelo de gerência privada adotado por este país foi diferente do americano. O sistema francês baseou-se em um “modelo de dupla responsabilidade, no qual o Estado e o particular firmaram uma parceria para gerenciar e administrar o estabelecimento penitenciário" (CORDEIRO, 2006, p. 109). Isto é, havia uma gestão mista na qual a iniciativa privada se responsabilizava pela construção do estabelecimento prisional, ao mesmo tempo em que, em conjunto com o setor público, realizava os ditames da execução penal daquele país, em um quadro de funções previamente distribuído e organizado. Nas palavras de João Marcello de Araújo Junior (1995, p. 81), 27 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Este sistema de cogestão tem alguns pontos primordiais definidos em contrato, a saber: ao Estado cabe a indicação do Diretor Geral do estabelecimento, seu relacionamento com o juízo de execução penal e a responsabilidade pela segurança interna e externa da prisão, à empresa contratada compete a organização do trabalho, da educação, do lazer, da alimentação, do fornecimento de vestimentas e demais serviços relacionados ao preso, incluindo assistência médica, social e jurídica; esta empresa receberá uma quantia por preso/dia pela prestação desses serviços. Desta forma, verificou-se, na França, uma forma de privatização mais sútil, em que cabia ao particular e também, ao poder público, a execução da pena, diferente do sistema de privatização total adotado pelos Estados Unidos, em que a gestão dos presídios era exclusivamente da iniciativa privada. 4.2 Experiências Brasileiras Os cárceres brasileiros não enfrentam problemas tão diferentes dos demais países. A superlotação é um problema global e tornou-se o alicerce das condições precárias a que são submetidos os apenados. Neste sentido é o relatório “O Brasil atrás das grades", realizado pela Human Rights Watch, que procura descrever a situação vivenciada pelos brasileiros encarcerados (MARINER, 2012): Os presos brasileiros são normalmente forçados a permanecer em terríveis condições de vida nos presídios, cadeias e delegacias do país. Devido à superlotação, muitos deles dormem no chão de suas celas, às vezes no banheiro, próximo ao buraco do esgoto. Nos estabelecimentos mais lotados, onde não existe espaço livre nem no chão, presos dormem amarrados às grades das celas ou pendurados em redes. A maior parte dos estabelecimentos penais conta com uma estrutura física deteriorada, alguns de forma bastante grave. Assim, em razão dos graves problemas que assolam o sistema penitenciário brasileiro, a questão penitenciária passou a ser objeto de discussões doutrinárias e legislativas, resultando na apresentação de proposta de privatização ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária por Edmundo Oliveira, a qual restou rejeitada sob o fundamento de contrariedade à ordem constitucional. Com efeito, a pressão política em torno da melhoria da estrutura carcerária brasileira fez com que fossem adotadas medidas hábeis a minimizar as mazelas do 28 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE cárcere, como a construção de dois protótipos de prisões privatizadas na modalidade terceirização de serviços: uma no Ceará e outra no Paraná, ainda que alvos de crítica por um segmento da sociedade. A Penitenciária de Guarapuava/PR, considerada a pioneira no Brasil, foi inaugurada em 1999. Com esta experiência, o Estado permaneceu “com a tutela do Estabelecimento, nos aspectos relacionados à Direção, segurança e controle de disciplina" (KUEHNE, 2013), não tendo, a iniciativa privada, afetado a atividade jurisdicional. Ainda, no que tange à mão de obra, possibilitou-se "a atividade laborativa dos internos, mediante remuneração, viabilizados os instrumentos de locação de serviços dos internos, com o Fundo Penitenciário do Estado" (KUEHNE, 2013), sendo este um dos fatores fundamentais à diminuição dos índices de reincidência. A Penitenciária Industrial do Cariri/Ceará, por sua vez, foi a segunda a ser implantada no território brasileiro. Da mesma forma que na experiência paranaense, ao poder executivo coube a "responsabilidade pela segurança interna e externa, enquanto as demais atividades ficariam sob a responsabilidade da iniciativa privada" (CORDEIRO, 2006, p. 123). Em ambos os estados, em que pese a resistência de parcelas da sociedade, foram construídos outros protótipos de prisões privatizadas, os quais obtiveram os mesmos resultados destas experiências, tais como, a execução da pena com condições dignas e a diminuição da reincidência. 4.3 Óbices e Vantagens do Sistema Privatizador A política privatizadora não encontra óbice apenas no aspecto constitucional, mas no ético e no político criminal. As posições são as mais diversas, e os argumentos prós e contras também (ARAUJO NETO, 2013): Discute-se, atualmente, não a prisão como consequência pela prática de um delito, mas o modelo de administração das penitenciárias (também chamadas de prisões), constituindo-se foco de debates acirrados, a demonstrar a existência de pontos de vista absolutamente inconciliáveis. Para os que defendem uma mudança na política penitenciária brasileira, a fim de permitir a participação de empresas (privadas) na gerência de estabelecimentos carcerários, a privatização (expressão que se generalizou) 29 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE é uma tentativa experimentada em alguns países que não pode deixar de ser implementada, já que, independentemente de uma reflexão aprofundada, no Brasil, qualquer um é capaz de concluir que o cárcere, do modo como ora se administra, não recupera o internado, ao revés, agride aquele que precisa de ajuda. Os que se posicionam em sentido contrário, por outro lado, veem na privatização a impossibilidade de delegação de poder de punir, que é inerente à própria essência do Estado, e, sobretudo, não concebem, sob o aspecto ético-moral, que uma empresa possa gozar de lucros às custas do sofrimento humano. A parte doutrinária contrária à privatização das penitenciárias argumenta que, sendo a execução penal uma atividade de cunho jurisdicional, é indelegável e, portanto, passível de ser exercida apenas pelo Estado, sob pena de inconstitucionalidade. Isto porque, sendo a atividade penitenciária atributo da Administração Pública, não é possível que seja transferida aos particulares a sua execução sem prévia regulamentação em lei, em razão do princípio da legalidade administrativa estrita, pelo qual à administração só é lícito fazer aquilo que está previamente autorizado por norma. Entretanto, se por um lado critica-se a transferência do poder jurisdicional, por outro, certo é que não há dispositivo legal que vede a operacionalização dos estabelecimentos penais por entidades privadas. Neste sentido é o pensamento de D’Urso, o qual dispôs que “quanto à constitucionalidade da proposta, partimos da premissa de que a Lei maior foi clara e o que ela não proibir, permitiu” ( D’URSO, 2013). Sob outro ângulo, necessário ressaltar que em parecer proferido por Maurício Kuehne (2013), restou esclarecido que a terceirização de serviços em nada fere o princípio da legalidade e, portanto, não se revela inconstitucional: [...] a questão atinente à eventual terceirização de serviços pode ser viabilizada. Para tanto há lei e dispensável, neste aspecto, qualquer reforma legislativa. Assim, perceptível é que se realmente houver inconstitucionalidade na privatização total, outras soluções podem ser ofertadas, de modo que seja efetivada a privatização, ainda que em diferentes graus. 30 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE No tocante ao aspecto ético, diz-se, também, ser a privatização inviável, isto porque as empresas privadas teriam nos presídios uma grande fonte econômica, o que ensejaria na busca desenfreada por maiores vantagens. Neste caso, “o objetivo da execução penal seria completamente desvirtuado, uma vez que a finalidade ressocializadora seria relegada a segundo plano, em detrimento da lucratividade que o preso passa a representar" (CORDEIRO, 2006, p. 82). De outro vértice, ainda sob o viés ético, certo é que é inconcebível o exercício do poder por um particular sobre um ser humano. Apenas o Estado tem o monopólio do poder e da força e, sendo assim, a coação exercida pelo particular diante da atividade privatizadora não se coaduna com os princípios de liberdade e igualdade proclamados pelo Estado, tampouco com a conduta ética que deve ser adotada por este. De acordo com o argumento político, "privatizar prisões significa consagrar um modelo penitenciário que a ciência criminológica revelou fracassado e, além disso, considerado violador dos direitos fundamentais do Homem" ( ARAUJO JUNIOR, 1995, p. 19). Isto é, a privatização não solucionaria nada, pois o problema não é só estrutural, mas também da política criminal aplicada. Deste modo, com a adoção do modelo privatizador, os homens/réus seriam o meio do qual o lucro seria o fim, o que por si só é capaz de mitigar a dignidade humana e de desvirtuar a finalidade da pena que deveria, em tese, ser a mesma do sistema de privatização. Além disto, cumpre ressaltar que em razão da lucratividade da atividade, corre-se o risco de estar incentivando o crime, uma vez que encarceramento e lucro são grandezas diretamente proporcionais, ou seja, quanto maior o número de encarcerados, mais lucrativa será a atividade da iniciativa privada, podendo revelarse, a privatização, como uma fábrica de crimes. Insta salientar que, em que pese haja diversos argumentos contrários, certo é que são diversos os benefícios trazidos pela privatização dos presídios. Dentre eles, as condições de assistência, a reinserção social e a redução dos gastos estatais são os mais apontados. A negligência do Estado quanto à ociosidade, ao atendimento jurídico e médico dos detentos, à superpopulação, dentre outros fatores, é fato notório. Com a privatização, em razão do custo efetivo de um preso para o Estado, a pretensão é de 31 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE que tais precariedades sejam minimizadas ou até mesmo, extintas, oferecendo-se uma digna condição de cumprimento da pena e um novo paradigma à execução penal. Além disto, vale dizer que a rentabilidade importa em benefícios, uma vez que se por um lado a iniciativa privada aufere lucros com este sistema, por outro, tem o dever de investir, principalmente no que concerne à assistência ao preso, seja ela quanto às necessidades básicas (vestuário, saneamento, alimentação e saúde), como também às secundárias (lazer, trabalho, educação). Ainda, conforme César Barros Leal (2006, p. 112), “os cárceres privados, pela excelência de seus serviços, por sua orientação humanística (que estariam ausentes nas demais prisões), constituem locus de reabilitação e, portanto, são instrumentos de diminuição de reincidência”, tornando efetiva a finalidade da pena. Vislumbra-se, também, que o trabalho desenvolvido pelo preso atenderá melhor aos requisitos estipulados pela Lei de Execução Penal, uma vez que suas reais habilidades serão levadas em conta, ao invés de efetuar atividades que não poderão lhe proporcionar benefícios ao final do cumprimento da pena, como a qualificação profissional. Neste sentido, frisa-se que apesar de o trabalho prisional ser o ponto mais controvertido quando o assunto é execução penal, a privatização estaria conferindo efetividade à previsão legal, pois embora questionável a sua obrigatoriedade, certo é que a Lei nº 7.210/84, LEP, assim o prevê, conforme o caput do artigo 31: Art. 31. O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade. Deste modo, o trabalho continua a ser obrigatório, porém será realizado na medida das qualificações pessoais do condenado, o que se revela como ponto positivo e jamais o contrário. Ressalta-se, por fim, que a eficiência da empresa é o que garantirá a renovação do contrato e, por certo, isto acarretará em remuneração digna aos funcionários, além de constante capacitação dos mesmos, procurando dar azo aos preceitos da Lei de Execução Penal, sempre sob a vigilância estatal. 32 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 4.4 As Parcerias Público Privadas e a Viabilidade Da Privatização A execução penal possui diversas atividades inerentes à sua natureza. Dentre elas, é possível discernir as atividades de cunho jurisdicional e as de mera execução material. A primeira, por óbvio, refere-se à atividade administrativa judiciária e, face ao poder estatal, não pode ser desempenhada pela iniciativa privada, enquanto a segunda pode ser realizada por particulares, com o intuito de buscar melhorias para o sistema. Considerando estas diferenciações entre as atividades condizentes à execução da pena, certo é que a privatização dos presídios, desde que não seja aplicada em seu grau máximo, não transfere, necessariamente, o jus puniendi do Estado ao particular, posto que, na modalidade de cogestão, o poder de império já dito indelegável, permanecerá não mãos do poder público e, assim, não há óbice constitucional que se imponha. Nas palavras de D’Urso (2013): [...] transferindo a função jurisdicional do Estado para o empreendedor privado, que cuidará exclusivamente da função material da execução penal, vale dizer, o administrador particular será responsável pela comida, pela limpeza, pelas roupas, pela chamada hotelaria, enfim, por serviços que são indispensáveis num presídio. E, continua explicando que, neste sentido, caberá ao Estado juiz determinar “quando um homem poderá ser preso, quanto tempo assim ficará, quando e como ocorrerá punição e quando o homem poderá sair da cadeira, numa preservação do poder de império do Estado” (D’URSO, 2013), o único titular legitimado para o uso da força, dentro conforme a Lei. Contanto, a fim de solucionar os pontos emblemáticos da questão privatização, em razão do conflito poder da iniciativa privada versus poder público e também dos óbices legais à privatização total, surgem as parcerias público privadas. Há muito esta modalidade vem sendo adotada nos setores sociais, como habitação, saneamento e manuseamento de vias terrestres, uma vez que o setor público não dispõe de recursos suficientes e a iniciativa privada realiza seus serviços com eficiência. 33 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE No sistema penitenciário não é diferente. As parcerias público privadas apresentam-se como a solução mais viável para o caos carcerário com que a sociedade se depara atualmente. Com as parcerias, os serviços ditos de hotelaria seriam repassados à iniciativa privada e o Estado seria responsável por toda a parte jurisdicional que envolve a pena. A terceirização, por seu turno, nada mais é do que a “contratação de uma empresa (tomadora) por uma outra prestadora de serviço para a realização de determinadas atividades meios, que podem se tratar de bens, serviços ou produtos” (CORDEIRO, 2006, p. 134), desde que a empresa tomadora permaneça com a titularidade da atividade fim. No âmbito da administração pública, a terceirização se dá por via da concessão ou permissão, conforme se extrai do artigo 175, da Constituição Federal. A concessão, modalidade na qual se encaixa a privatização das penitenciárias em sua espécie terceirização, se caracteriza por ser um "contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens" (LEAL, 2006, p. 123), em outros termos, é a delegação da execução do serviço público sem que haja a transferência de sua titularidade a um particular. Por óbvio que, em havendo interesse público, a contratação deve se submeter aos princípios de direito administrativo, como o da legalidade e o da moralidade, o que impõe uma série de requisitos, tais como, licitação prévia à contratação da empresa privada, definição da prestação de serviço por concessão em lei e publicidade dos eventos. Em que pese haver a necessidade de um procedimento legal que regulamente pontos objetivos e dúbios acerca das parcerias público privadas, esta modalidade de privatização, conforme Cordeiro (2006, p.154), [...] tem sido considerada uma das formas de minimizar alguns dos inúmeros problemas do encarceramento, principalmente a superpopulação carcerária, além da estigmatização do preso, da reincidência e da violação aos direitos humanos mais elementares. 34 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Não há como negar que com a privatização diversos dispositivos que hoje passam despercebidos aos olhos do poder público seriam levados a efeitos. O espaço físico das celas, a disposição dos presos em razão do delito cometido e do caráter provisório ou não da medida prisional e o número de detentos por cela seriam alguns dos direitos a que fariam jus os encarcerados. Observe-se que são direitos e não meros benefícios, previstos em lei e considerados utopias por diversos doutrinadores que poderiam ser efetivados com a adoção da privatização. Sobre o tema, declarou Fernando Capez (2002): Nós temos depósitos humanos, escolas de crime, fábrica de rebeliões. O estado não tem recursos para gerir, para construir os presídios. A privatização deve ser enfrentada não do ponto de vista ideológico ou jurídico, se sou a favor ou contra. Tem que ser enfrentada como uma necessidade absolutamente insuperável. Ou privatizamos os presídios; aumentamos o número de presídios; melhoramos as condições de vida e da readaptação social do preso sem necessidade do investimento do Estado, ou vamos continuar assistindo essas cenas que envergonham nossa nação perante o mundo. Portanto, a privatização não é a questão de escolha, mas uma necessidade indiscutível é um fato. A superpopulação, quiçá um dos problemas penitenciários mais notórios, quanto traduzida em números reais, torna-se ainda mais perceptível. Nesta linha, certo é que o déficit de vagas no sistema prisional brasileiro é surpreendente, alcançando, de acordo com os dados disponibilizados pelo DEPEN (2013), uma cifra de 194.650 vagas faltantes, o que demonstra a realidade em que vivem os encarcerados, uns abarrotados pelos outros, sem quaisquer condições de dignidade, numa constante violação aos direitos do homem3. Por fim, cumpre salientar que, ainda que a privatização não seja capaz de resolver todos os problemas pertinentes à segurança pública, apresenta-se como uma resposta rápida e eficiente aos problemas penitenciários, cuja responsabilidade até então é do poder público, o qual não tem oferecidos soluções plausíveis e eficientes à questão penitenciária. 3 Dado interessante é que a Inglaterra, país que adotou o sistema privatizador, apresentava à época, um déficit de aproximadamente 2.331 vagas e já se pronunciou sobre o tema, reconhecendo a gravidade do problema, suas consequências e necessidade de transferência deste serviço à iniciativa privada. Observe-se que o numerário brasileiro é, aproximadamente, 80 vezes maior que o inglês e, nenhuma providência foi adotada neste sentido. (MINHOTO, 2010, p.) 35 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo buscou analisar a polêmica questão da privatização das penitenciárias, sob a ótica do princípio da dignidade humana, o qual é o cerne do Estado Democrático Brasileiro. É notória a crise que assola o sistema penitenciário brasileiro, sendo este ponto objeto de diversos livros, teses e noticiários diários. Ocorre que, por mais evidente que seja o caos carcerário, os problemas apresentados ficam a mercê do poder público, o qual não responde devidamente à questão. A privatização veio então como uma alternativa a problemática, sendo implantada em diversos países desde a década de 80, de acordo, por óbvio, com as peculiaridades de cada nação. Nesta perspectiva, procurou-se demonstrar que, ainda que se oponham obstáculos de cunho ético, político e até mesmo constitucional, não há nada que justifique o desrespeito flagrante à dignidade humana como ocorre hoje, uma vez que esta é o alicerce do Estado. É uma utopia acreditar que a situação carcerária atual irá melhorar automaticamente. O sistema penitenciário necessita de reformas urgentes, de modo que as condições animalescas e degradantes de cumprimento da pena deixem de ser a regra. Deste modo, sugere-se que a privatização seja aplicada, ainda que em menor grau, na modalidade de cogestão, de forma que não será uma afronta à constituição, tampouco à ética ou política criminal. Nesta espécie, a iniciativa privada e o poder público desempenham em paridade de funções as atividades referentes à execução da pena, ficando a cargo do poder público as atividades de cunho jurisdicional e dos particulares, aquelas estritamente materiais. Com isto, o jus puniendi continuaria nas mãos do Estado, o único legitimado a exercê-lo em nosso sistema constitucional, e se daria azo às previsões da Lei de Execução Penal e da Constituição no que diz respeito ao cumprimento e finalidade da pena e ao atendimento ao princípio da dignidade humana. Por óbvio que muitas questões referentes à terceirização e parcerias público privadas ainda precisam de discussão e tratamento, entretanto, sua necessidade é evidente em razão do perigo eminente e atual que o cárcere oferece aos 36 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE encarcerados, numa constante violação dos direitos humanos, em que não apenas a liberdade vem sendo suprimida, mas um conjunto imensurável de direitos inerentes ao homem. 37 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS ARAUJO JUNIOR, João Marcello de (Coord.). Privatização das prisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. ARAUJO NETO, Eduardo. Aspectos sobre a privatização dos presídios no Brasil. 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Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. 39 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 40 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE INCONSTITUCIONALIDADE DA FALTA DE UM LIMITE TEMPORAL NAS MEDIDAS DE SEGURANÇA UNCONSTITUTIONALITY OF THE LACK OF A TIME LIMIT ON SECURITY MEASURES Alessa Maria Cavali Royer1 Guilherme Oliveira de Andrade2 Acadêmica do 8º período do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba. É advogado e professor de Direito Penal do Centro Universitário Curitiba. É Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2006) e Especialista em Direito Criminal pelo Centro Universitário Curitiba (2008). É Mestre em Direito Penal pelo Centro Universitário Curitiba (2009) e Doutorando pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. 1 2 41 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SUMÁRIO Resumo 1 Introdução 2 Conceito e Requisitos das Medidas de Segurança 2.1 Tipo de Injusto 2.2 Ausência de Imputabilidade Plena 2.3 Periculosidade 3 Histórico das Medidas de Segurança 4 Penas e Medidas de Segurança 5 Crise das Medidas de Segurança 5.1 Limite Temporal 5.2 Periculosidade Como Fundamento da Indeterminação Temporal 5.3 Inoperabilidade das Medidas de Segurança e Consequente Limitação Temporal 6 Considerações Finais. Referências 42 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO O presente trabalho objetiva analisar a constitucionalidade da aplicação das medidas de segurança face a vedação de penas perpétuas prevista na Constituição da República Federativa do Brasil, demonstrando que apesar de penas e medidas de segurança diferenciarem-se conceitualmente, a aplicação prática das medidas de segurança evidencia um caráter eminentemente retributivista, incompatível com o fundamento de prevenção especial conceitualmente declarado, aproximando-a das penas. Diante do cenário de ineficácia deste instituto jurídico penal, evidencia-se a necessidade de aplicar os princípios limitadores da pena também à media de segurança, com enfoque no princípio da vedação de penas perpétuas, a fim de compatibilizar este instituto jurídico penal com a Constituição da República Federativa do Brasil, bem como com um Estado Democrático de Direito. Palavras-chave: medidas de segurança, penas perpétuas, Constituição da República Federativa do Brasil, penas, Estado Democrático de Direito. 43 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT The following work aims to analyze the constitutionality of measures of security application due to the injunction of life sentences foreseen in the Constitution of the Federative Republic of Brazil, demonstrating that, despite of the conceptual distinction between sentences and measures of security, the practical application of measures of security are evidence of a retributivist character, incompatible with the basis of special prevention conceptually declared, which brings it closer to the penaltys. In face of the inefficiency of this criminal legal institute, a need for also applying the restraining principles of the penaltys to the measures of security is evident; with the focus on the principle of the injunction of life sentences, in order to make this criminal legal institute compatible with the Constitution of the Federative Republic of Brazil, as well as with a Democratic State of Law. Keywords: measures of security, life sentences, Constitution of the Federative Republic of Brazil, Democratic State of Law. 44 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO A medida de segurança é um instituto jurídico penal aplicado a inimputáveis e, por vezes, a semi-imputáveis como consequência do tipo de injusto praticado por agentes dotados de periculosidade. A compreensão da aplicabilidade deste instituto demanda discussão acerca do conceito de medidas de segurança, de culpabilidade dentro da teoria do delito, bem como o conceito de periculosidade. Pretende-se expor o conceito de medidas de segurança, tecer breves explanações sobre a culpabilidade dentro da teoria do delito, o que permite a análise dos requisitos de aplicação desse instituto jurídico penal, quais sejam, a realização de um tipo de injusto, ausência de imputabilidade plena e periculosidade do agente. A diferença teórica entre penas e medidas de segurança também será analisada, demonstrando que, ao menos teoricamente, penas e medidas de segurança são institutos jurídico penais completamente distintos. Por fim, apresenta-se algumas críticas a atual aplicação das medidas de segurança, com principal enfoque na inexistência de limitação temporal máxima, o que viola o dispositivo constitucional que veda a existência de penas perpétuas, demandando discussão acerca da constitucionalidade da falta de um limite temporal máximo. O presente trabalho objetiva a reflexão a respeito da aplicabilidade prática deste instituto jurídico penal, pois, de fato, as medidas de segurança impõem limites e restrições de direitos fundamentais assim como as penas, sendo, desse modo, igualmente aflitivas, pois não há como realizar um tratamento sem privação ou restrição de direitos, independentemente da discussão acerca das funções e fundamentos da pena e medida de segurança. Desse modo, verifica-se a necessidade de interpretação do texto legal e constitucional de maneira mais ampla, a fim de evitar violação do artigo 5º, inciso XLVII, da Constituição da República Federativa do Brasil, que estabelece a vedação de penas com caráter perpétuo, demonstrando que a falta de um limite temporal para as medidas de segurança viola os princípios basilares de um Estado Democrático de Direito e a Constituição da República Federativa do Brasil. 45 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 2 CONCEITO E REQUISITOS DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA A medida de segurança é um instituto jurídico penal aplicado a inimputáveis e, por vezes, a semi-imputáveis como consequência jurídica ao tipo de injusto praticado por esses agentes dotados de periculosidade criminal. A legislação penal não conceitua medidas de segurança, sendo que a doutrina traça algumas considerações importantes. Luiz Regis Prado (2005. p. 742-743) estabelece um conceito para medidas de segurança, As medidas de segurança são consequências jurídicas do delito, de caráter penal, orientadas por razões de prevenção social. Consubstanciam-se na reação do ordenamento jurídico diante da periculosidade criminal revelada pelo delinquente após pratica de delito. Aníbal Bruno (1977, p. 119) define medidas de segurança como “a consequência jurídico-penal do estado perigoso”, estabelecendo que “medidas de segurança, portanto, são meios jurídicos-penais de que se serve o Estado para remover ou inocuizar o potencial de criminalidade do homem perigoso”. A compreensão do conceito de medida de segurança demanda discussão acerca dos requisitos de aplicação deste instituto jurídico penal, quais sejam, a prática de um tipo de injusto, ausência de imputabilidade plena e periculosidade. 2.1 TIPO DE INJUSTO O tipo de injusto consubstancia-se na realização de uma conduta típica e antijurídica. Tanto para a aplicação da pena quanto da medida de segurança faz-se necessária a presença do tipo de injusto. O primeiro ponto a ser analisado é a tipicidade, ou seja, a conduta praticada pelo autor deve amoldar-se perfeitamente à descrição abstrata contida no tipo penal da norma incriminadora. Tipo é definido por Cesar Roberto Bittencourt (2012, p. 336) como “o conjunto de elementos do fato punível descrito na lei penal. ” Luiz Regis Prado (2010, p. 354) define-o como “a descrição abstrata de um fato real que a lei proíbe”. 46 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Logo em seguida, tem-se a antijuridicidade, que consiste na verificação de que essa conduta típica viola a previsão de conduta desejada pelo ordenamento jurídico como um todo, pois não há nenhuma causa excludente que permita a realização da conduta praticada pelo agente. Luiz Regis Prado (2010, p. 354) leciona que a antijuridicidade “deve ser entendida como um juízo de desvalor objetivo que recai sobre a conduta típica e se realiza com base em um critério geral: o ordenamento jurídico. ” Importante ressaltar que a falta de tipicidade e antijuridicidade acarreta a consequência de ausência de crime, por ser atípica a conduta praticada pelo agente não há nada a ser apurado e, em sendo típica, o ordenamento jurídico pode permitir sua realização. Verifica-se que embora seja uma conduta descrita na legislação penal como crime o ordenamento jurídico permite sua realização, não podendo ser cominada ao agente uma pena ou medida de segurança. A realização do tipo de injusto é essencial para a aplicação das medidas de segurança, do contrário, somente com fundamento na periculosidade do penalmente incapaz não se pode conceber como constitucional a intervenção do direito penal. Nesse sentido são as lições de Haroldo da Costa Andrade (2004, p. 13), As medidas de segurança pressupõem a prática de fato previsto como crime e a periculosidade do agente. Não basta, pois, somente este último requisito para impô-la. Necessário é imprescindível que o inimputável, na condição de agente ativo, cometa um crime, ou seja, um fato típico punível definido em lei. Além disso, esse requisito “funciona como critério limitativo, com vistas a afastar a imposição de medidas de segurança pré-delitivas por motivos de segurança jurídica” (PRADO, 2005. p. 646). Desse modo, a necessidade da prática de um tipo de injusto relaciona-se com o princípio da lesividade, um dos pilares do direito penal atual, uma vez que esse princípio preconiza a intervenção do direito penal somente quando houver lesão a bens jurídicos. Portanto, um inimputável dotado de periculosidade não poderá ser submetido à uma medida de segurança se não praticou efetivamente um tipo de injusto. Nesse sentido, adverte Juarez Cirino dos Santos (2010, p. 611), 47 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE O inimputável pode realizar ações típicas justificadas por legítima defesa, estado de necessidade ou outra causa de exclusão da antijuridicidade, cuja presença descaracteriza o tipo de injusto e, assim, exclui o pressuposto das medidas de segurança. Mesmo diante da prática de um tipo de injusto como requisito na aplicação das medidas de segurança, em muitos casos esse instituto jurídico penal é aplicado a um infrator protegido pelas excludentes de ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito). Ou ainda, a lesão praticada por ser insignificante, se fosse o autor imputável, seria aplicado o princípio da insignificância, mas não raras vezes, é aplicada uma medida de segurança, mesmo diante da insignificância da lesão. 2.2 AUSÊNCIA DE IMPUTABILIDADE PLENA Primeiramente, se faz necessária a compreensão da culpabilidade dentro da teoria do delito, por estar inteiramente relacionada com os pressupostos da aplicação das medidas de segurança, pois a ausência de culpabilidade implica a ausência do delito e, consequentemente, a impossibilidade de uma sentença penal condenatória e aplicação de uma pena correspondente. Culpável é o sujeito para o qual pode ser imputado o injusto praticado pelo fato de o mesmo não ter se motivado na norma jurídica quanto era exigível que o fizesse, saber ou poder saber da ilicitude de sua conduta e ser plenamente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se conforme esse entendimento. Portanto, o agente que, por doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado não possui capacidade de compreender a ilicitude do fato e agir conforme esse entendimento é considerado inimputável, tendo como consequência a exclusão da reprovabilidade do injusto penal e, consequentemente, a isenção de uma pena, aplicando-se, em contrapartida, uma medida de segurança em sentença penal de absolvição imprópria, se esse agente for dotado de periculosidade. Cezar Roberto Bittencourt (2011, p. 417) adverte que para o reconhecimento da inimputabilidade penal é suficiente a ausência de entendimento ou determinação, sendo que, na maioria das vezes, uma capacidade decorre da outra, pois se o agente não possui discernimento apto a compreender o caráter ilícito de sua 48 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE conduta, não se autodeterminará na norma jurídica porque não consegue avaliar seus atos em conformidade com o ordenamento jurídico. É possível, ainda, a presença apenas da capacidade de entender a ilicitude da conduta, mas ausente a autodeterminação, neste caso será o agente considerado absolutamente incapaz da mesma maneira. Essa ausência de capacidade plena decorre de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, que impossibilita o autor entender o caráter ilícito do fato e determinar-se de acordo com esse entendimento. Essas doenças mentais que excluem a capacidade de discernimento, impossibilitando a compreensão da ilicitude da conduta são definidas por Zaffaroni e Pierangeli (2008, p. 538) como “perturbações da consciência”. Advertem que o termo inteiramente incapaz de entender a ilicitude do fato difere muito de um estado de inconsciência, pois neste, não há conduta e, consequentemente, não há tipicidade. Portanto, o artigo 26 do Código Penal trata de uma perturbação de consciência que interfere na capacidade psíquica de entender a ilicitude do fato praticado ou determinar-se na norma jurídica, que não deve ser interpretado como ausência de conduta. O intérprete deve dar maior abrangência ao termo doença mental e desenvolvimento mental incompleto ou retardado, constantes no artigo 26 do Código Penal, do que as definições médicas dos respectivos termos. Cezar Roberto Bittencourt (2011, p. 417) propõe utilização da expressão “alienação mental” por ser mais genérica e abrangente. Entretanto, importa ressaltar que para a aplicação de uma medida de segurança, faz-se necessária comprovação de que a inimputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado é a causa efetiva da absolvição, ou seja, se o agente for absolvido por quaisquer das causas previstas no artigo 386, do Código de Processo Penal, não poderá ser imposta a medida de segurança, mesmo sendo o agente portador de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Nos casos de culpabilidade diminuída, em que o agente em virtude de perturbação mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente capaz de compreender a ilicitude de sua conduta e de determinar-se conforme essa compreensão há a previsão de uma 49 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE fração de redução da pena aplicada, de um a dois terços, conforme disposto no parágrafo único do artigo 26 do Código Penal. São casos menos graves se comparados aos elencados no caput do referido artigo, pois o agente tem diminuída sua capacidade de discernimento a respeito da antijuridicidade de sua conduta e autodeterminação, podendo ser aplicada uma medida de segurança se verificada a necessidade de especial tratamento curativo. Para fins de aplicação das medidas de segurança considera-se a inimputabilidade proveniente de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, que impeça, ao tempo da ação ou omissão, a compreensão da ilicitude do fato praticado (elemento intelectual) e autodeterminação na norma jurídica (elemento volitivo). Portanto, não basta o autor ser portador de uma doença mental pura e simplesmente, é necessário que o mesmo, em razão da doença mental, não compreenda o caráter ilícito de sua conduta por falta de capacidade de discernir seus próprios atos e não consiga se autodeterminar na norma jurídica, tendo como consequência legal a aplicação de uma medida de segurança ao ser comprovada a periculosidade do agente. A consequência jurídico-penal da prática de um tipo de injusto aliada à inimputabilidade, somando-se com o elemento subjetivo da periculosidade, portanto, é a aplicação de uma medida de segurança. Portanto, verifica-se que é na culpabilidade que se diferenciam pena e medidas de segurança. Para a aplicação de uma pena é necessário que todos os pressupostos da culpabilidade estejam devidamente caracterizados, quais sejam, exigibilidade de conduta diversa, potencial consciência da ilicitude e imputabilidade. 2.3 PERICULOSIDADE Além desse caráter objetivo consistente na inimputabilidade do agente, a medida de segurança vincula-se também, necessariamente, ao critério subjetivo da periculosidade, consoante o artigo 97, parágrafo primeiro, do Código Penal. A compreensão do conceito de periculosidade também se faz necessária para entender o conceito de medida de segurança. 50 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Periculosidade pode ser sintetizada na probabilidade de o agente inimputável, portador de doença mental ou desenvolvimento metal incompleto ou retardado, que não possui capacidade de entender a ilicitude de sua conduta e determina-se conforme esse entendimento vir a cometer crimes. Haroldo da Costa Andrade (2004, p. 14) explana que “a periculosidade é o que a personalidade de certos indivíduos contém de militante inclinação para o crime”. O Código Penal atual erradicou a aplicabilidade das medidas de segurança com fundamento na periculosidade pré-delitiva, ou seja, somente o indivíduo que cometer um tipo de injusto penal, portador de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, que ao tempo da ação ou omissão não era capaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se conforme esse entendimento, ou ainda, possuía reduzida capacidade de entendimento e autodeterminação, poderá ser submetido a uma medida de segurança, evitando-se, assim, violação ao princípio da segurança jurídica. Cezar Roberto Bittencourt (2011, p. 783) define periculosidade, Periculosidade pode ser definida como um estado subjetivo mais ou menos duradouro de antissociabilidade. É um juízo de probabilidade – tendo por base a conduta antissocial e anomalia psíquica do agente – de que este voltará a delinquir. A periculosidade, portanto, pode ser entendida como um estado em que o sujeito se encontra ou algo inerte a este sujeito. Sob essa ótica, “o indivíduo carrega consigo uma potência delitiva que a qualquer momento pode se concretizar em um ato lesivo contra si ou contra terceiros”, como bem leciona Salo de Carvalho (2013. p. 502), o que fundamenta a impossibilidade de medidas de segurança pré-delitivas. Baseia-se em um juízo de prognóstico futuro, ou seja, a previsão de crimes futuros fundamentada na periculosidade do autor, sendo que esta estabelece o limite de aplicação das medidas de segurança. O problema reside no fato de um prognóstico falho produzir consequências irreparáveis, pois pode conduzir a uma internação perpétua em condições piores do que as vivenciadas nas penitenciárias atuais. Fato é que a periculosidade é o elemento mais discutido e passível de críticas pelo seu caráter de indeterminação, o que ao longo da história ensejou 51 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE arbitrariedade da restrição da liberdade de certos grupos de indivíduos com fundamento na defesa social, uma vez que, na maioria dos casos, não havia análise efetiva da periculosidade, mas sim uma presunção tida como absoluta que recaía sempre sobre as mesmas classes de indivíduos, quais sejam, ébrios, mendigos, por exemplo. Nota-se que a periculosidade ainda é um conceito extremamente abstrato, o que faz emergir discussões acerca de seu conceito e sua utilização, pois acaba por legitimar o poder de punir fundamento no controle social. 3 HISTÓRICO DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA Os fundamentos do direito penal entram em crise quando aplicados aos inimputáveis. A pena com fundamento na culpa e na responsabilidade não poderia ser aplicada a incapazes para o direito penal, uma vez que exigia a capacidade de entender o caráter ilícito de sua conduta. Entretanto, a impunidade de pessoas incapazes não parecia a medida mais correta do ponto de vista da proteção social. Especificamente com relação aos inimputáveis em razão de sofrimento psíquico, pode-se dizer que o direito penal concedia-lhes um tratamento diferenciado, mesmo no direito antigo. Impunha-se primeiramente sua guarda com parentes, o que tinha a função tanto de proteção individual como também social, sendo que somente aqueles mais perigosos eram destinados ao encarceramento, o que poderia significar até a utilização de correntes. Destaca-se que mesmo que houvesse a segregação, podendo culminar na prisão, o Estado não os punia como fazia com os criminosos e essa isenção estatal era fundamentada em duas vertentes, a primeira versa sobre a piedade em razão da doença, baseadas em um caráter filosófico e humanitário; e a segunda, baseia-se na noção de responsabilidade penal. Corroborando com essas afirmações, tem-se Miguel Reale Junior et al. (1987. p. 280), Porque desde sempre se estabeleceu que os loucos, os fracos de mente, que houvessem cometido infrações penais deveriam ser mantidos em custódia. Rescrito do imperador Marco Aurélio mandava que se achando alienado o autor de homicídio, não se executasse a pena. Deveria o demente ser posto em custódia, com toda a diligência, para sua guarda e para a segurança dos que lhe fossem próximos. 52 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Inicialmente as medidas de segurança ultrapassam o âmbito do direito penal ao censurar o modo de vida de determinadas pessoas, bem como de se estruturar também na possibilidade de aplicação anterior ao cometimento de um delito, o que acarretou a institucionalização da discriminação e perseguição à determinado grupo ou classe social. A fim de ilustrar esse cenário, apresenta-se algumas leis com o caráter de prevenção especial pré-delitiva, a Lei Belga de 1891 previa a possibilidade de o Estado manter detidas pessoas ociosas e a Lei espanhola Vagos y Maleantes, de 1933, também acolhia as medidas de segurança. Verifica-se que o direito penal ao longo da história preocupou-se com a função de prevenção de novos delitos, antes mesmo da sistematização deste instituto jurídico penal, as medidas de segurança eram já aplicadas aos casos de irresponsabilidade por inimputabilidade. Nesse sentido, Haroldo da Costa Andrade (2004. p. 41) leciona, Embora não sistematizadas, as medidas de internamento apareceram como solução para o tratamento do homem criminoso, devendo ele ser a elas submetido, até que se alcançasse a cura. É, portanto, sua característica originária, a indeterminação dos seus prazos de duração. E, com a sistematização em 1893, com Karl Stoss, houve uma profunda evolução. Tem-se a Inglaterra como pioneira na aplicação deste instituto jurídico penal, ao determinar o tratamento psiquiátrico a doentes mentais autores de tipos de injustos. Nesta localidade surgiu o primeiro manicômio judiciário, em 1800. Merece destaque também, o Criminal Lunatic Asylum Act, em 1860 e o Trial of Lunatic Act, em 1883, os quais determinavam “o recolhimento de pessoas que praticassem algum delito, desde que penalmente irresponsáveis, a um asilo de internados. ” (PRADO, 2010, p. 641). Em seguida o Código Penal francês de 1810, o Código Penal Italiano de 1889, denominado Código Zanardelli, o qual exerceu grande influência na América Latina, também continham disposições que se assemelhavam às medidas de segurança, bem como o Código Penal norueguês de 1902, o qual refletiu concepções da escola positivista. A escola positivista reflete a mudança do poder de punir ao voltar-se para as características individuais do criminoso, físicas ou psíquicas, além da análise do fato 53 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE em si. Emerge a noção de periculosidade tanto do delinquente imputável quanto do inimputável, nasce a concepção de que “todos os delinquentes são perigosos, em maior ou menor grau, pelo simples fato de terem praticado um crime” (PRADO, 2010, p. 642). Nesse período há uma crise de penalidade, pois a pena passa a não ser mais eficaz para o fim que se propõe, sendo que a prevenção dos delitos assume a forma de tratamento do delinquente. “Foi, portanto, a escola positivista responsável pelo desenvolvimento da medida de segurança, além de ter dispensado especial atenção ao estudo do delinquente” (ANDRADE, 2004, p. 03). O autor ainda adverte que mesmo com todas essas previsões penais de consequências jurídicas análogas as medidas de segurança, estas somente foram devidamente sistematizadas com o Código Penal suíço, em 1893, elaborado por Karl Stoss, com inspiração na doutrina de Franz Von Liszt. Este diploma legal continha disposições acerca da internação dos reincidentes com substituição da pena a eles imposta, bem como internação facultativa. Nesse sentido, o mesmo autor estabelece que a adoção de um sistema completo das medidas de segurança apenas ocorreu em 1930, na Itália com Arturo Rocco na elaboração de um novo Código Penal, no qual foi sedimentado o sistema duplo binário, ou seja, com estrita diferenciação entre penas e medidas de segurança, vinculando as penas a ideia de culpabilidade e as medidas de segurança à periculosidade, sendo que somente as primeiras pertenciam às sanções penais. Este Código inspirou o legislador brasileiro de 1940, bem como códigos em toda a Europa. Haroldo da Costa Andrade, em seu estudo, constatou que antes mesmo do Código Penal brasileiro de 1940, a legislação nacional tratava das medidas de segurança, pois, as Ordenações Filipinas previam a impossibilidade de se imputar crime àquele em que sua conduta não foi norteada por dolo ou culpa, pelo fato de não ter o devido discernimento em razão da loucura. No Brasil, em 1930, o Código Criminal do Império em seu artigo 12, previa que (REALE JUNIOR et al, 1987, p. 280), [...] os loucos que houvessem cometido crimes haviam de ser recolhidos às casas a eles destinadas, ou encaminhas ás respectivas famílias, consoante 54 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ao juiz criminal parecesse mais conveniente. Operava o magistrado, então, com certa discricionariedade, no tocante a uma ou outra destinação. Este Código ainda previa a impossibilidade de julgar um louco como criminoso, a menos que este tenha cometido o delito em um intervalo de discernimento e lucidez, disposição esta contida no artigo 10, parágrafo segundo. Somando a isso, tem-se o artigo 64 do mesmo diploma legal, o qual dispõe que “os delinquentes que, sendo condenados, se acharem no estado da loucura, não serão punidos enquanto neste estado se conservarem” (ANDRADE, 2004, p. 4). A consolidação das Leis Penais de 1932 também trazia disposições no sentido de não considerar como criminosa pessoa portadora de doença mental, consoante o disposto no artigo 27, o qual “dizia não serem criminosos os que por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil não forem absolutamente incapazes de imputação” (REALE JUNIOR et al, op. cit., p. 282) Pioneiramente, Alcântara Machado, em seu projeto de Código Penal em 1938, estabelece a figura da semi-imputabilidade, condicionando esse indivíduo à aplicação das medidas de segurança, define semi-imputabilidade como aquele indivíduo que (REALE JUNIOR et al, op. cit., p. 282), [...] devido a grave anomalia psíquica, de que não resulte alienação mental, tiver minorada sensivelmente, no momento do crime, a capacidade de compreender a criminalidade do fato ou de se determinar de acordo com essa apreciação (art. 16 e n.º IV)”. O Código Penal de 1940 acolheu o critério proposto por Alcântara Machado para verificar a imputabilidade ou semi-imputabilidade penal do agente, sendo que àqueles que possuíam reduzida responsabilidade penal eram aplicadas cumulativamente pena e medida de segurança, enquanto ao inimputável era aplicada somente medida de segurança. O Código Penal de 1890 seguiu os mesmos preceitos relacionados ao tratamento penal destinado aos inimputáveis, não fazendo referência aos semiimputáveis. O artigo 29 do referido diploma legal previa que (ANDRADE, 2004, p. 4) Os indivíduos isentos de culpabilidade em resultado de afecção mental serão entregues a suas famílias, ou recolhidos a hospitais de alienados se o 55 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE seu estado mental assim o exigir para a segurança do público. [...] (art. 27, §4º), ipsis litteris: não são criminosos (...) §4º - os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de comer o crime. Entretanto, as medidas de segurança somente foram devidamente sistematizadas na legislação nacional com o anteprojeto de Virgílio de Sá Pereira, em 1927, o qual também faz menção expressa à figura da semi-imputabilidade, além de obrigar o magistrado a determinar a internação do sentenciado absolvido em razão de inimputabilidade penal, ou semi-imputabilidade, quando presente a periculosidade, ou temibilidade, em seu artigo 117. Com o advento do Código Penal de 1984 extinguiu-se por completo o sistema duplo binário de aplicação das medidas de segurança, adotando, portanto, o sistema vicariante, eliminando qualquer possibilidade de aplicação conjunta de pena e medida de segurança, em razão da “consciente iniquidade e disfuncionalidade do sistema duplo-binário” (BITTENCOURT, 2009, p. 744). A mudança para aplicação do sistema vicariante tem como fundamento o princípio do ne bis in idem, pois a aplicação concomitante de pena e medida de segurança para o mesmo indivíduo acarreta em uma dupla penalização pela mesma conduta. Atualmente, a adoção do sistema vicariante determina que sejam aplicadas medidas de segurança somente a inimputáveis dotados de periculosidade, que sejam inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento, ou ainda a semi-imputáveis que não sejam inteiramente capazes de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento, no momento da prática do tipo de injusto. Sem dúvida, a mudança de pensar o poder de punir aliada ao fracasso da pena privativa de liberdade faz surgir a necessidade de uma medida que estivesse ao lado da pena, em que a função seria eminentemente de prevenção social, nesse cenário emergiram as medidas de segurança. Essa crise da justiça penal teve fundamental importância para o desenvolvimento das medidas de segurança, ao revelar a ineficácia das penas no combate à criminalidade, trazendo uma nova concepção de delito voltada ao homem criminoso, o que culminou na evolução do conceito de periculosidade do agente. 56 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Inegavelmente, “a expressão final dessa concepção naturalista do delito reside na formula da periculosidade criminal”. (BRUNO, 1977, p.123). Por conseguinte, ainda hoje, a principal função das medidas de segurança não é “sancionar a infração, mas a controlar o indivíduo, a neutralizar sua periculosidade, a modificar suas disposições criminosas, a cessar somente após a obtenção de tais modificações”, como já vira Foucault (2010, p. 22), ao analisar a reforma do poder de punir. Pode-se dizer, então, que mesmo com o desaparecimento dos castigos corporais, com a mudança de penalidade, do poder de punir, algo dos suplícios permaneceu e permanece até o presente momento na aplicação atual das medidas de segurança, que se consubstancia em seu caráter quase que perpétuo. Por essa razão emerge a necessidade de atrelar as medidas de segurança à princípios constitucionais a fim de tornar esta consequência jurídica em consonância com um Estado Democrático de Direito. 4 PENAS E MEDIDAS DE SEGURANÇA Penas não se confundem com medidas de segurança. Embora as consequências indubitavelmente práticas para parecidas, o há agente grande que sofre disparidade uma entre ou outra seus sejam requisitos, pressupostos e fundamentos, assim como seus destinatários. A diferenciação entre penas e medidas de segurança se faz necessária a fim de entender a função de cada consequência jurídico-penal dentro do ordenamento jurídico como um todo, bem como estabelecer de maneira delimitada a área de aplicação de cada instituto penal. Quanto ao fundamento e o limite, verifica-se que as penas fundamentam-se e limitam-se na culpabilidade, enquanto as medidas de segurança na periculosidade. Nesse ponto entra a discussão entre direito penal do ato e direito penal do autor. A culpabilidade como fundamento da atuação do direito penal exige a reprovabilidade da conduta praticada pelo autor, em outras palavras, “para admitir a possibilidade de censura a um sujeito, é necessário pressupor que o sujeito tem a liberdade de escolher, isto é, autodeterminar-se”. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2008, p. 104). 57 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Em contrapartida, se entender que o sujeito que praticou determinado ilícito não tinha essa possibilidade de escolha, a intervenção do direito penal terá fundamento em sua periculosidade. O direito de intervenção estatal fundamentado na periculosidade é um direito penal de autor, uma vez que o que se reprime é a forma de ser do autor de determinado tipo de injusto e não a conduta delituosa em si. Nesse sentido, Salo de Carvalho (2013. p. 127) destaca que “em razão da ausência de condições cognitivas (déficits cognitivos) para direcionar sua vontade, a aplicação de uma pena com caráter marcantemente retributivo passa a ser inadequada”, sendo necessária, portanto, a aplicação de uma medida de segurança. Quanto ao destinatário, tem-se que as penas são destinadas a imputáveis e, por vezes, semi-imputáveis, enquanto as medidas de segurança são destinadas aos inimputáveis e, excepcionalmente a semi-imputáveis, somente quando for verificado que estes necessitam de especial tratamento curativo. Quanto ao critério de determinação, verifica-se que as penas são determinadas e fixas, ou seja, findo o prazo determinado na sentença criminal como pena, acaba a punição e o Estado não pode mais intervir nos direitos do agente em razão do mesmo fato delituoso. Em contrapartida, as medidas de segurança possuem como característica a indeterminação, ou seja, findam somente com a comprovação da cessação da periculosidade do agente, o que acaba por legitimar uma punição perpétua. Quanto a forma de imposição, distinguem-se também penas e medidas de segurança, uma vez que as penas são impostas em sentença penal condenatória, enquanto as medidas de segurança em uma sentença absolutória. Trata-se de absolvição imprópria, pois “apesar de afirmada a inexistência do crime, o autor do fato é submetido coercitivamente à medida de segurança, situação que demarca sua sujeição às agências estatais responsáveis pela execução da decisão judicial”. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2008. p. 500-501). Quanto à finalidade, verifica-se que as penas possuem uma finalidade mista, ou seja, tanto retributiva quanto preventiva, sendo que esta última divide-se em prevenção geral e prevenção especial. Noutro vértice, as medidas de segurança possuem uma finalidade exclusivamente preventiva, uma vez que “são concebidas como instrumentos de proteção social e terapia individual.” (SANTOS, 2010, p. 605). 58 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Jorge de Figueiredo Dias (1999, p.143) aponta que a finalidade principal, prevalente das medidas de segurança é a prevenção especial. “As medidas de segurança visam obstar, no interesse da segurança da vida comunitária, a prática de fatos ilícitos-típicos futuros através de uma atuação especial-preventiva sobre o agente perigoso”. Nota-se que a preocupação com a segurança social assume posição de destaque. Fato é que, no ordenamento jurídico brasileiro a medida de segurança assume a finalidade essencialmente de prevenção especial negativa, apesar de ter fundamentos unicamente teóricos de prevenção especial positiva. Portanto, verifica-se que penas e medidas de segurança são institutos jurídico penais teoricamente muito distintos, mas na prática acabam por se assemelhar em muitos aspectos. 5 CRISE DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA As medidas de segurança, tanto o internamento em hospital de custódia quanto o tratamento ambulatorial, possui como fundamento de sua aplicação, nos dizeres de Juarez Cirino dos Santos (2010, p. 606), “a) previsão de crimes futuros, fundada na periculosidade do autor; b) eficácia das medidas de segurança para evitar crimes futuros”. Entretanto, essa função de proteção social e terapia individual, bem como os fundamentos de sua aplicação, acabam por ser apenas uma forma de legitimação do poder punitivo estatal, do controle social e seletividade do sistema penal. Sob este prisma, Juarez Cirino dos Santos (2010, p. 606), destaca que, A crise das medidas de segurança decorre da inconsistência desses fundamentos: primeiro, nenhum método científico permite prever o comportamento de ninguém; segundo, a capacidade da medida de segurança para transformar condutas antissociais de inimputáveis em condutas ajustadas de imputáveis não está demonstrada. De fato, as medidas de segurança, na forma em que estão consolidadas atualmente, não servem ao propósito de terapia individual. Em razão disso, da mesma forma que se critica as funções aparentes da pena, que propõe alternativas, 59 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE repensando o poder punitivo estatal, é preciso repensar também as medidas de segurança. A respeito da crítica sempre necessária no âmbito das ciências criminais, merece destaque as lições de Salo de Carvalho (2013, p. 126-127), Aceitar a convocação da crítica contemporânea no sentido de incorporar a complexidade dos problemas estudados pelas ciências criminais, reconhecendo que a diferença entre os atos delitivos requer a invenção de múltiplas respostas para que seja possível criar novas estratégias para o exercício democrático e não violento do controle social, implica propor formas não ortodoxas de interpretação. Na penologia, significa superar as metanarrativas e os seus procedimentos simplificadores de proposição de respostas unívocas e universais. Assumir as incongruências da função, fundamentos e pressupostos de aplicação das medidas de segurança, assumir a complexidade do tema e seu problema na dogmática penal é necessário a fim de repensar este instituto jurídico penal, tornando-o compatível com a Constituição da República Federativa do Brasil, bem como com o Estado Democrático de Direito. 5.1 LIMITE TEMPORAL Uma das incongruências das medidas de segurança frente à Constituição da República Federativa do Brasil, bem como ao Estado Democrático de Direito consubstancia-se em sua indeterminação temporal máxima. O artigo 97, parágrafo primeiro, do Código Penal estabelece a indeterminação das medidas de segurança, ao prever apenas um limite mínimo. Dispõe que “a internação ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação da periculosidade. O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos”. (CÓDIGO PENAL, 1940). Verifica-se que o critério para a desinternação ou liberação do tratamento ambulatorial consiste no exame de verificação da cessação de periculosidade, critério este eminentemente subjetivo e imprevisível, por voltar-se ao futuro, fato que leva à indeterminação do limite temporal máximo das medidas de segurança. 60 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE De fato, a duração indeterminada das medidas de segurança leva à privação de direitos e garantias fundamentais perpetuamente, o que afronta indubitavelmente a Constituição da República Federativa do Brasil, uma vez que esta consagra a vedação de pena perpétuas. Desse modo, consoante as lições de Cezar Roberto Bittencourt (2011, p. 786), Pode-se, assim, atribuir, indiscutivelmente, o caráter de perpetuidade a essa espécie de resposta penal, ao arrepio da proibição constitucional, considerando-se que a pena e a medida de segurança são duas espécies do gênero sanção penal (consequências jurídicas do crime). Em outros termos, a lei não fixa o prazo máximo de duração, que é indeterminado (enquanto não cessar a periculosidade), e o prazo mínimo estabelecido, de um a três anos, é apenas um marco para a realização do primeiro exame de verificação da cessação da periculosidade, o qual, via de regra, repete-se indefinidamente. Nesse sentido, Haroldo da Costa Andrade (2004, p. 100) expõe que essa indeterminação de um limite máximo nas medidas de segurança viola também princípios de um estado Democrático de Direito, uma vez que este preconiza que “toda a intervenção estatal na liberdade da pessoa humana tem que ser, rigorosamente, regrada e limitada, mormente na sua duração” Ainda, verifica-se que a indeterminação temporal máxima das medidas de segurança representam clara violação aos princípios da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade, ante às condições em que são cumpridas as medidas de segurança de internamento, além de pautar-se em um critério eminentemente subjetivo, que é o exame de cessação de periculosidade, violando a proporcionalidade entre o delito cometido e a suposta punição. 5.2 PERICULOSIDADE COMO FUNDAMENTO DA INDETERMINAÇÃO TEMPORAL O estado de periculosidade fundamenta a aplicação e duração indeterminada das medidas de segurança, pois somente será finda a medida no momento em que for realizado um exame de cessação de periculosidade que 61 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE efetivamente constatar a inexistência desse requisito eminentemente subjetivo no sujeito que praticou um tipo de injusto. Consoante o que foi apresentado no capítulo antecedente, a periculosidade é um conceito muito subjetivo, amplo e abstrato, sendo que sempre serviu como uma forma de legitimar a intervenção estatal em camadas sociais consideradas estranhas ao modo de vida dito como normal. Nesse sentido, Marcelo Lebre (2009. p.55), ao tratar sobre a periculosidade, leciona que “a incorporação da periculosidade social nas legislações penais acabou funcionando como uma espécie de válvula de escape à restrição da liberdade dos cidadãos inconvenientes (os ‘estranhos’) ao poder”, fato este que explica o motivo de a periculosidade ter sido inserida nas legislações penais durante os regimes ditatoriais. Sob esse enfoque, Jorge de Figueiredo Dias (1999, p. 139) constata que, Pois bem se sabe como a própria noção de inimputabilidade – e sobretudo a de “anomalia mental” que constitui um dos seus fundamentos – foi manipulada de modo a abranger os opositores, os dissidentes e os simples contestatários da “ordem” (nomeadamente política) estabelecida, a abranger, em último termo, o “ser-diferente” que nos regimes democráticos contemporâneos e mesmo nos mais recentes instrumentos de defesa dos Direitos Humanos, bem pelo contrário, se tende a ver como expressão de um verdadeiro direito fundamental: “direito á diferença”. Essa probabilidade de reiteração criminosa, em razão da amplitude de seu conceito e indeterminação, não fornece critérios objetivos para sua aferição, o que acaba por legitimar a intervenção do Direito Penal como mecanismo de controle social, dando aparência de legalidade. Determinar a periculosidade de uma pessoa, ante a quase ausência de significado desse termo, é uma tarefa extremamente árdua, o mesmo se diz da constatação da ausência de periculosidade. Em razão disso, o exame de cessação de periculosidade merece algumas considerações. Não há como exigir de um único médico perito, durante o incidente de insanidade mental, a precisão na constatação de que determinada pessoa era ao tempo da ação incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento. Muito menos, que o mesmo perito seja capaz de precisar a periculosidade do agente, indicando a cessação ou não da mesma. 62 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Nota-se que tanto a capacidade entendimento e autodeterminação, quanto a periculosidade não podem ser quantificadas de imediato, por apenas uma pessoa e em um único momento. Questões como estas demandam, ou deveriam demandar, a atuação de diversos profissionais, de diversas áreas e em uma consulta prolongada, a fim de possibilitar a análise sobre a presença dos critérios ensejadores da aplicação das medidas de segurança, de forma compatível com a segurança jurídica. Sob esse enfoque, Eduardo Reale Ferrari (apud CARDOSO; PINHEIRO, 2012, p. 54) faz diversas críticas à periculosidade e seu critério de aferição, bem como o distanciamento entre o magistrado e as condições psíquicas e físicas do interno, Nossa atual Lei de Execução Penal não discrimina a forma de acompanhamento psicológico, social ou médico na evolução do delinquente-doente mental, a exemplo da absoluta ausência de contato entre os juízes e os doentes mentais. Psiquiatras e juízes ficam isolados em seus ofícios, esquecendo-se de que há fins inerentes á execução da sanção penal, denominada medida de segurança. Além disso, consoante as pesquisas de Danilo Almeida Cardoso e Jorge de Medeiros Pinheiro (2012, p. 73), destaca-se que, [...] normalmente a primeira perícia de desinternação não se realiza após o triênio legal. O mais comum é deparar-se com pacientes que só receberam a primeira entrevista após 8 (oito) ou 10 (dez) anos internados. Assim, a dignidade dos doentes mentais é violada pela tardia prestação jurisdicional . Outro ponto que acaba por interferir também na ausência de desinternação é a falta de estrutura estatal para receber essas pessoas portadoras de transtornos, que necessitam de acompanhamento prolongado, que deveria ser oferecido pelo Estado. Merece destaque, ainda, conforme bem assinala Juarez Cirino dos Santos (2010, p. 607), [...] a tendência de supervalorização da periculosidade criminal no exame psiquiátrico, com inevitável prognóstico negativo do inimputável -, assim como, por outro lado, parece óbvia a confiança ingênua dos operadores 63 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE jurídicos na capacidade do psiquiatra de prever comportamentos futuros de pessoas consideradas inimputáveis, ou de determinar e quantificar a periculosidade de seres humanos. Verifica-se, portanto, que um prognóstico equivocado acerca da periculosidade pode gerar consequências nefastas, pois pode determinar uma internação perpétua em condições piores do que as estabelecidas para o cumprimento de uma pena. Em razão disso, torna-se necessário um olhar mais crítico na aplicação desse requisito subjetivo, de modo a compatibilizá-lo com a Constituição da República Federativa do Brasil, bem como com um Estado Democrático de Direito. Observa-se, entretanto, que somente com o advento da Lei nº10.216/2001 foi possível a crítica efetiva à periculosidade como fundamento das medidas de segurança, critica esta direcionada aos dispositivos do Código Penal, vez que antes já se fazia critica doutrinariamente. Verifica-se, ainda, que essa abstração do conceito de periculosidade, que fundamenta a aplicação das medidas de segurança, consubstancia-se em uma afronta ao princípio da legalidade e da segurança jurídica. Nesse sentido, Marcelo Lebre (2009, p. 125) destaca, Legalidade, devido processo legal, presunção de inocência, igualdade e humanidade são preceitos usualmente arrostados pelo instituto, posto que a abstração inerente à ideia de perigo dá margem a uma infinidade de arbitrariedades e de abusos por parte daqueles que exercem o poder punitivo. Desse modo, percebe-se “quão deficitário é o discurso da dogmática penal, que permanece literalmente preso aos conceitos higienistas da psiquiatria do século passado” (CARVALHO, 2013, p. 531). 5.3 INOPERABILIDADE DA MEDIDA DE SEGURANÇA E A CONSEQUENTE NECESSIDADE DE LIMITE TEMPORAL Os conceitos e fundamentos da medida de segurança, aliada a sua aplicação prática não servem efetivamente ao seu propósito de segurança social e terapia individual. 64 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A situação manicomial atual brasileira evidencia uma lógica muito mais retributivista do que de prevenção especial, pois as condições do internado nos atuais hospitais de custódia muito mais se assemelha ao cumprimento de uma pena. De início, até meados do século XIX, não existia estabelecimentos destinados ao tratamento de autores de delitos portadores de doença mental, sendo que os inimputáveis dividiam espaço com os apenados em Penitenciárias. Atualmente, apesar de existir previsão legal de hospitais de custódia, verifica-se que as condições desses estabelecimentos, na maioria das vezes, ainda permanecem precárias. Nesse sentido, merece destaque as pesquisas de Danilo Almeida Cardoso e Jorge de Medeiros Pinheiro (2012, p. 74), O Relatório da I Caravana Nacional de Direitos Humanos, realizada pela Câmara dos Deputados no ano de 2000, intitulada “Uma Amostra da Realidade Manicomial Brasileira”, verificou uma série de atrocidades nos HCTP pelo país: em Manaus, o manicômio judiciário, ao contrário do que indica seu nome, não oferece qualquer tipo de tratamento aos seus internos. Havia 24 internos na instituição, resumida a um pequeno pavilhão dentro da área onde está localizada a Cadeia Pública de Manaus. Nesse pavilhão há 5 (cinco) celas, sendo três delas absolutamente inabitáveis. Em Itamaracá, em Pernambuco, o HCTP estava sem qualquer medicamento havia um mês, encontrando-se as instalações me níveis espúrios, com falta de água e de colchões. Em Taubaté, no Estado de São Paulo, os pacientes da Casa de Custódia e Tratamento não tem acesso às demais dependências da instituição, o que poderia lhes proporcionar inúmeras atividades produtivas e ressocializadoras. Neste diapasão, destaca-se a crítica feita por Salo de Carvalho (2013, p. 520) a respeito dos atuais hospitais de custódia, [...] pois se a situação carcerária nacional é, por si só, uma afronta aos direitos humanos, o cenários soa hospitais de custódia e dos manicômios judiciários rememora, sem exageros, as piores experiências de degradação humana presenciadas na história, que foram os campos de concentração criados pela nacional-socialismo germânico. Somando-se a isto, tem-se exemplos de internos a mais de 18 anos, nas condições atuais dos hospitais de custódia, sem qualquer perspectiva de desinternação. Sobre o assunto, destaca-se as afirmações de Danilo Almeida Cardoso e Jorge de Medeiros Pinheiro (2012, p. 94), 65 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Além do mais, se em um período extenso de 18 anos, como é o exemplo verificado de internos de instituições psiquiátricas no país, o sistema penitenciário não foi capaz de diminuir a periculosidade do sujeito, dificilmente conseguirá tal objetivo prolongando ainda mais a medida detentiva, que é naturalmente aflitiva e invasiva, sendo mais recomendável uma nova tentativa de tratamento por outra instituição, desvinculada do sistema penal. Desse modo, tendo em vista a precariedade dos estabelecimentos destinados aos internos da medida de segurança, percebe-se que a real finalidade desse instituto jurídico penal vem sendo a punição pelo crime praticado, o que evidencia o fato de que medida de segurança não possui funcionalidade alguma na prática. De fato, as condições vividas pelos internos acabam por agravar ainda mais seu estado psíquico, contribuindo de forma significativa para a internação perpétua. Somando-se a isto, tem-se a falta de especialização dos profissionais para lidarem com internos portadores de doenças mentais, além do fato de inexistir médico psiquiatra vinculado a muitos estabelecimentos, dificultando o necessário acompanhamento dos internos. Em razão disso, verifica-se que se a medida de segurança não consegue tratar o agente inimputável dotado de periculosidade, fazendo esta cessar. Sua aplicação, na realidade, não se diferencia da aplicação de uma pena, uma vez que passa a ser eminentemente retributivista, por não cumprir sua função de prevenção especial positiva. Nesse sentido é o viés defendido por Salo de Carvalho (2013, p. 508-509), O caráter punitivo das medidas de segurança é uma das principais denúncias realizadas pela criminologia crítica e pela crítica do direito penal a partir da década de 70 do século passado. A exposição da incapacidade de as instituições totais (prisões e manicômios) realizarem minimamente as finalidades expostas em sua programação oficial (ressocializar o imputável e reduzir a periculosidade do inimputável) deflagrou um amplo processo de desconstrução dos mitos fundantes do sistema punitivo. Dentre estes mitos, a ausência da perspectiva punitiva (retributiva) das medidas de segurança. Diante deste cenário, nota-se que se faz necessária a aplicação dos limites atinentes à pena também á medida de segurança, principalmente no que concerne a vedação de penas perpétuas. 66 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE O artigo 97, em seu parágrafo primeiro do Código Penal estabelece que a medida de segurança tem duração indeterminada, perdurando enquanto não for verificada a cessação da periculosidade do agente. Ao partir do pressuposto que a mediada de segurança não consegue se aplicar ao seu propósito, pois, em realidade, é eminentemente retributivista e tão aflitiva quanto à pena, deve ser igualmente limitada. Portanto, as disposições do artigo 97, parágrafo primeiro, afrontam, de maneira clara e precisa, o dispositivo constitucional descrito no artigo 5, XLVII, b, da Constituição da República Federativa do Brasil, o qual veda a pena perpétua. Sob essa ótica, destaca-se Cezar Roberto Bittencourt (2011, p. 786), No entanto, não se pode ignorar que a Constituição de 1988 consagra, como uma de suas cláusulas pétreas, a proibição de prisão perpétua; e, como a pena e a medida de segurança não se distinguem ontologicamente, é lícito sustentar que essa previsão legal – vigência por prazo indeterminado da medida de segurança – não foi recepcionada pelo atual texto constitucional. Nesse sentido, Eugênio Raul Zaffaroni (2008, p. 733), defende que: [...] não é constitucionalmente aceitável que, a título de tratamento, se estabeleça a possibilidade de uma privação de liberdade perpétua, como coerção penal. Se a lei não estabelece o limite máximo, é o interprete que tem a obrigação de fazê-lo. Salo de Carvalho (2013, p. 520) também critica a duração ilimitada das medidas de segurança, No caso dos portadores de sofrimento psíquico, a reversibilidade se concretiza na falácia pela qual em nome da garantia dos seus direitos é excluída a possibilidade de responsabilização penal. No entanto, o mesmo processo de desresponsabilização que veda a imposição de penas afasta todos os limites inerentes á intervenção punitiva. Dentre os exemplos mais significativos dessa falácia tutelar encontra-se a possibilidade legal de execução ilimitada (perpetuidade) da medida de segurança. Nesse diapasão, Juarez Cirino dos Santos (2010, p. 618), estabelece que, 67 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A duração indeterminada das medidas de segurança estacionárias significa, frequentemente, privação de liberdade perpétua de seres humanos, o que representa violação da dignidade humana e lesão do princípio da proporcionalidade da internação e a inconfiabilidade do prognóstico de periculosidade criminal do exame psiquiátrico. Outro ponto que merece destaque é o fato de existir uma limitação temporal mínima da medida de segurança fixada, pois o artigo 97, parágrafo primeiro do Código Penal estabelece a necessidade de internação em um período mínimo de um a três anos. Diante disso, depreende-se que efetivamente a finalidade da medida de segurança é a punição, pois se fosse realmente a periculosidade do agente não importaria um tempo mínimo, apenas e tão somente a verificação da cessação de sua periculosidade. Nesse aspecto, Salo de Carvalho (2013, p. 516) destaca que “o prazo mínimo parece indicar a marca retributiva que acompanha as medidas de segurança”. Sobre o tema, merece destaque as considerações de Danilo Almeida Cardoso e Jorge de Medeiros Pinheiro (2012, p. 91), Na celeuma atinente à duração da medida de segurança, portanto, defendemos que é essencial buscar uma interpretação integrativa tanto do sistema jurídico-penal quanto da opção político-criminal humanitária estampada pelo constituinte e pelo legislador ordinário, para se alcançar a solução mais justa. Assim, depreende-se que o texto constitucional deve ser interpretado de maneira mais ampla, a fim de garantir também aos internos portadores de sofrimento psíquico a vedação de pena perpétua. O Supremo Tribunal Federal vem consolidando a necessidade da limitação temporal máxima da medida de segurança, pois em alguns julgados já estabeleceu a impossibilidade da referida medida ultrapassar 30 anos, em interpretação sistemática do Código Penal, Lei de Execuções Penais e Constituição da República Federativa do Brasil. Com efeito, Cezar Roberto Bittencourt explana que atualmente há o entendimento de que essa limitação máxima não poderia ultrapassar o limite da pena abstratamente cominada. Tal entendimento ocorre em razão do princípio da 68 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE proporcionalidade, o que representa importante avanço no que pertine a aplicação das medidas de segurança dentro de um Estado Democrático de Direito. Ocorre que, ainda percebe-se falta de isonomia entre a pena e a medida de segurança. Em razão disso, Juarez Cirino dos Santos (2010, p. 618) defende que “o limite máximo da medida de segurança aplicada deve coincidir com a pena criminal aplicável no caso concreto, se o autor fosse imputável”, ao citar decisão da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Cumprida a medida de segurança o portador de sofrimento psíquico seria encaminhado para tratamento e acompanhamento na rede pública de saúde. Portanto, verifica-se que a aplicação atual das medidas de segurança lesa os princípios da dignidade da pessoa humana, lesividade, proporcionalidade e, principalmente, vedação de penas perpétuas. A falta de um limite temporal máximo nas medidas de segurança demonstra flagrante inconstitucionalidade na aplicação atual deste instituto jurídico penal. Admitir as medidas de segurança como instituto jurídico penal compatível com a Constituição da República Federativa do Brasil e o Estado Democrático de Direito implica, necessariamente, ruptura dos modelos vigentes, denunciando as ilegalidades e desumanidades propagadas e legitimadas com a aplicação deste instituto jurídico penal. Portanto, a constitucionalização das medidas de segurança depende da submissão destas aos princípios basilares do direito penal, em especial a vedação de penas perpétuas, bem como os demais princípios limitadores do poder punitivo, a fim de salvaguardar os direitos e garantias individuais dos inimputáveis. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS As medidas de segurança revestem-se de forte caráter de proteção social e terapia individual, ao menos teoricamente, o que pode se depreender do próprio conceito deste instituto jurídico penal. Entretanto, o presente trabalho procurou demonstrar que a aplicabilidade prática das medidas de segurança difere muito dos conceitos e fundamentos apresentados pela dogmática penal, o que implica necessariamente a revisão dos conceitos, bem como da interpretação feita, sob pena de legitimar a intervenção estatal na forma de abusos e ilegalidades. 69 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Os conceitos e fundamentos das medidas de segurança, em realidade, não se verificam na aplicação prática desse instituto jurídico penal, tornando-o indiscutivelmente tão aflitivo quanto a pena. Nesse sentido, conclui-se que a crise das medidas de segurança reside exatamente na inconsistência de seus fundamentos, pois não há como prever comportamentos futuros, além do fato de que a medida de segurança não é capaz de habilitar socialmente o interno, não servindo para o propósito de terapia individual. Sob essa ótica, verifica-se que as medidas de segurança, em realidade, não se fundam na prevenção especial, mas possuem um caráter eminentemente retributivista, de punição e, por serem tão aflitivas quanto as penas, necessitam da aplicação dos limites e princípios atinentes a esta. Partindo desse pressuposto, considerando que as medidas de segurança, na verdade, em nada se diferenciam das penas, depreende-se que a aplicação atual desse instituto jurídico penal lesa a Constituição da República Federativa do Brasil, uma vez que esta veda a imposição de penas perpétuas, em seu artigo 5, XLVII, b. Dessa forma, o texto constitucional deve ser interpretado de modo a abranger também as medidas de segurança, pois interpretação contrária legitima inúmeras ilegalidades. Diante disso, faz-se necessário repensar a dogmática penal no que pertine à aplicação das medidas de segurança, tornando-a compatível com um Estado Democrático de Direito e com a Constituição da República Federativa do Brasil. 70 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS ALVIM, Rui Carlos Machado. Uma Pequena História das Medidas de Segurança. São Paulo: IBCCrim, 1997. ANDRADE, Aroldo da Costa. Das Medidas de Segurança. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004. BITTENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. v.1. 16ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. BRASIL, Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940, que institui o Código Penal brasileiro. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília DF, 07 dez 1940 BRUNO, Aníbal. Perigosidade Criminal e Medidas de Segurança. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977. CARDOSO, Danilo Almeida; PINHEIRO, Jorge de Medeiros. Medidas de Segurança: Ressocialização e a Dignidade da Pessoa Humana. Curitiba: Juruá, 2012. CARVALHO, Salo de. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2013. CRUZ, Marcelo Lebre. A Inconstitucionalidade da Medida de Segurança Face a Periculosidade Criminal. 223f. Dissertação (Mestrado) Faculdades Integradas do Brasil, Unibrasil, Curitiba, 2009. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral, Tomo I. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2007. ______, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais de Direito Penal Revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 38 ed. Petrópolis: Vozes, 2010. GOMES, Luiz Flávio. Medida de Segurança e seus limites. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 2, p. 67-69. abr./jun. 1993 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. v.1. 5ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 71 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REALE JUNIOR, Miguel et al. Penas e Medidas de Segurança no Novo Código. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. 4ª ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. v.1. 7ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. ZAFFARONI, Eugênio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2003. 72 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A HIPNOSE COMO AUXILIAR DA PROVA NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NO BRASIL THE HYPNOSIS AS AUXILIARY PROOF IN THE CRIMINAL INVESTIGATION IN BRAZIL Amanda Caroline Pauluk1 Maria da Glória Colucci2 Acadêmica de Direito do Unicuritiba e integrante do Grupo de Pesquisa em Biodireito e Bioética – Jus Vitae. 2 Mestre em Direito Público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Professora titular de Teoria Geral do Direito do UNICURITIBA. Professora Emérita do Centro Universitário Curitiba, conforme título conferido pela Instituição em 21/04/2010. Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética Jus Vitae, do UNICURITIBA, desde 2001. Professora adjunta IV, aposentada, da UFPR. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética Brasília. Membro do CONPEDI Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Membro do IAP Instituto dos Advogados do Paraná. 1 73 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SUMÁRIO Resumo 1 Introdução 2 Hipnose. Aspectos Gerais 2.1 Hipnose. Conceito 2.1.1 Hipnose na Psicologia, Medicina e Odontologia 2.1.2 Hipnose e Memória 2.2 Relações entre Psicologia e Direito 3 A Hipnose no Direito 3.1 A Prova no Direito Brasileiro 3.1.1 Meios de Prova no Direito Processual Penal 3.1.2 provas atípicas ou inominadas 3.2 Investigação Criminal. Aspectos Gerais 3.3 A Hipnose na Investigação Criminal 3.4 O Livre Convencimento do Juiz 4 Considerações Finais. Referências 74 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO O presente texto objetiva demonstrar a relevância da hipnose como auxiliar de prova em investigações criminais, abordando de que forma esse instrumento pode colaborar com a polícia, servindo como fonte na perícia psicológica forense. Pretende-se, portanto, discorrer brevemente sobre a hipnose, indicando algumas circunstâncias em que a técnica hipnótica pode trazer resultados positivos ao ser aplicada. Procura-se também estabelecer e mostrar a importância da junção de duas áreas do saber – Psicologia e Direito. Faz-se mister trazer a denominação e a função da prova, comentando-se, inclusive, sobre os meios de prova admitidos no Direito Penal Brasileiro, examinando em que consiste a perícia psicológica forense, cabendo ainda mencionar os aspectos gerais da investigação criminal. E, por fim, analisar a utilidade das informações levantadas pela hipnose durante a investigação, e como essas informações poderão influenciar o juiz no momento da sentença. Palavras-chave: hipnose, meio de prova, perícia psicológica forense, livre convencimento do juiz. 75 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT This paper aims to demonstrate the relevance of hypnosis as an adjunct to evidence in criminal investigations, addressing how this tool can work with the police, serving as a source of forensic psychological expertise. It is intended, therefore, briefly discuss hypnosis, indicating some circumstances in which the hypnotic technique can bring positive results to be applied. It seeks to establish and also show the importance of combining two fields of knowledge - Psychology and Law. Implies the need to bring the name and function of proof, commenting is even on the evidence admitted in the Brazilian Penal Law, which consists in examining forensic psychological expertise, fitting even mention the general aspects of the criminal investigation. And, finally analyses the usefulness of the information gathered during the investigation by hypnosis, and how the information may influence the judge at the time of sentencing. Keywords: hypnosis, evidence, forensic psychological expertise, free conviction of the judge. 76 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO A presente pesquisa foi desenvolvida analisando a pertinência da utilização da hipnose em investigações criminais. Pretende-se, portanto, demonstrar de que forma e até que ponto esse instrumento pode vir a colaborar com a polícia, servindo como possível fonte na perícia psicológica forense. Constata-se a necessidade de abordar algumas das principais características da hipnose, e como tal técnica pode trazer resultados satisfatórios nas mais diferentes áreas, apontando instituições que se utilizam do transe hipnótico para atingir finalidades e soluções diversas; vislumbrando, inclusive, a desmistificação do transe hipnótico. Em um momento posterior, serão mencionados caracteres gerais sobre o inconsciente, memória, esquecimento e a relação desses com a hipnose, para que, posteriormente, se proceda ao entendimento de como o método hipnótico pode ajudar nas investigações criminais. Além disso, se faz necessária uma análise sobre a definição e função das provas no Direito Brasileiro, abordando inclusive, mesmo que de forma breve, os meios de prova admissíveis no Direito Penal Brasileiro. Além disso, é interessante que seja abordada a possível relação entre a Psicologia e o Direito, para que se faça entender como uma área de conhecimento pode colaborar com a outra. Por fim, pretende-se analisar a possibilidade da utilização da hipnose como meio auxiliar na coleta de provas. A pesquisa, portanto, tem como objetivo, demonstrar a possibilidade de se utilizar uma técnica abandonada por anos, mas, que atualmente, tem sido aplicada para tantos fins diferentes, como auxílio nas investigações criminais. Diante do breve exposto, infere-se que o tema é instigante e merece atenção na esfera do Direito. 77 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 2 HIPNOSE. ASPECTOS GERAIS Com a finalidade de tornar compreensível a aplicabilidade, ou não, da hipnose no esclarecimento da verdade nas investigações criminais, se faz necessária uma análise de aspectos gerais referentes à temática epigrafada. 2.1 HIPNOSE. CONCEITO Segundo Linda L. Davidoff: “A palavra “hipnose provém da palavra grega hipnos, que significa “sono”, mas o estado hipnótico não se assemelha ao sono.”3 Podem ser encontradas definições diversas e até contraditórias para a técnica da hipnose, dentre elas nenhuma é considerada absoluta ou completa em si mesma. Acerca do assunto, Raphael H. Rhodes4 elucida que: [...] embora os poderes do hipnotismo sejam há muito conhecidos e aplicados, toda sua história tem sido toldada por obscuridade e ocultismo. Tanto os crédulos quanto os incrédulos fizeram recair sobre ele uma injustificável veneração ou um opróbio imerecido, e ambos os grupos contribuíram para o seu desprezo pelo mundo científico. Ainda nos dias de hoje, uma pessoa comum encara a hipnose para psicoterapia como um Fausto sondando as profundezas à custa de uma alma.5 Nesse contexto, pode-se dizer que apesar de haver muitas críticas sobre a prática da hipnose, a maioria delas são oriundas do desconhecimento das pessoas a respeito do seu papel. Uma hipnose regressiva pode ser utilizada para aguçar a memória, trazendo à tona certos detalhes supostamente esquecidos ou para voltar a momentos traumáticos ocorridos, inclusive na infância do indivíduo. Nesse diapasão Wayne Weiten expressa uma ideia de Freud: 3 DAVIDOFF, Linda L. Introdução à psicologia. Tradução de Lenke Perez. 3. ed. São Paulo: MAKRON Books, 2001, p.192. 4 Psicólogo-consultor em Nova Iorque, seu trabalho no campo da hipnose e sua aplicação na psicologia inclui extenso estudo com alguns dos melhores hipnotizadores dos Estados Unidos. 5 RHODES, Raphael H.. Hipnotismo sem mistério: teoria, prática e aplicação. 9. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 24. 78 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE De acordo com Freud, o inconsciente contém pensamentos, memórias e desejos que estão muito abaixo da superfície da consciência consciente, mas que, apesar de tudo, exercem grande influência sobre comportamento. 6 Weiten ainda aponta alguns dos efeitos que podem ser produzidos por meio da hipnose: anestesia, distorções sensoriais, desinibição e sugestões pós hipnóticas.7 O autor prossegue constatando que Ernest Hilgard tem sugerido a explicação mais relevante sobre a hipnose, como sendo um estado de consciência alterada. Para Hilgard a hipnose divide a consciência em duas linhas, ocorrendo uma dissociação da consciência. Com isso, uma parte da consciência comunica-se com o hipnotizador e o mundo externo, e a outra funciona como um observador escondido. O que atrai Weiten na teoria de Hilgard é que a consciência dividida pode ser experimentada com uma variação por qualquer um durante o dia a dia. Por exemplo, quando se está dirigindo um automóvel, reage-se automaticamente ao tráfego, aos sinais e com os outros veículos, mas depois não há lembrança conscientemente de tudo que o que foi feito durante o trajeto percorrido. Nessas situações pode-se perceber que a consciência está dividida entre dirigir e os pensamentos que a pessoa está tendo naquele mesmo momento.8 Após a exposição de uma breve noção a respeito da hipnose, é importante ainda que sejam apresentadas algumas áreas de aplicação desta técnica - é o que será tratado nos tópicos seguintes. 6 WEITEN, Wayne. Introdução à psicologia: temas e variações. Tradução de José Carlos B. dos Santos, Maria Lúcia Brasil e Zaira G. Botelho. 7. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2010, p. 151. 7 Ibid, p.152. Sobre os efeitos pós-hipnóticos: “Por sugestão pós-hipnótica entende-se uma sugestão terapêutica ou sugestões feitas diretamente à mente subjetiva de um paciente que se encontra em estado de transe hipnótico, com a sugestão adicional de que terá efeito continuado (pós-hipnótico) mesmo depois que o paciente for acordado. [...] Tendo-se assim tornado parte da forma de pensamento do paciente, e assim permanecendo mesmo com ele acordado, as sugestões terapêuticas controlam sua forma de pensamento quando acordado e desta maneira influenciam seu subsequente comportamento de acordado.” RHODES,1999,p.43. 8 Sobre a consciência dividida: “Muito do que você faz, o tempo inteiro, é inconsciente. Falar, por exemplo. Você simplesmente pensa no que quer dizer (as idéias), e não precisa selecionar conscientemente as palavras – elas simplesmente aparecem. Isso acontece porque o seu inconsciente trabalha no bastidores durante o papo, vasculhando o seu vocabulário e abastecendo o consciente para ajudar você a se expressar.” Ainda interessante transcrever outro trecho da reportagem da revista: “ O inconsciente se encarrega de tudo o que fazemos, como andar na rua ou escovar os dentes. Por causa disso, ele opera em potência máxima o tempo todo.” SANTI, Alexandre de; LISBOA, Silvia.O mundo secreto do inconsciente.Super interessante, São Paulo, n.315,p.39, fev. 2013. 79 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 2.1.1 Hipnose na Psicologia, Medicina e Odontologia A utilização da hipnose dentro do campo da Psicologia, já se encontra devidamente aprovada e regulamentada pelo Conselho Federal de Psicologia, que dispõe sobre o referido procedimento em sua Resolução CFP n° 013/00, de 20 de dezembro de 2000.9 Livio Tulio Pincherle menciona a existência da hipnose regressiva, que pode ser utilizada para que haja uma melhora na memória, afim de que sejam lembrados pequenos detalhes esquecidos, que muitas vezes fazem toda diferença no tratamento de certos traumas.10 Rhodes defende o uso da hipnose na Medicina, dizendo que em meados do século XIX: [...] antes da descoberta das propriedades anestésicas do éter e do clorofórmio, o Dr. Esdaile realizou na Índia mais de duzentas operações e milhares de pequenas intervenções; no entanto, nenhum de seus pacientes teve de suportar a dor sofrida por outras vítimas dos métodos cirúrgicos daquele tempo. Ele empregava a hipnose. Seus pacientes, sob comando, esqueciam a dor.11 A respeito de pesquisas sobre o uso da hipnose na Medicina na atualidade, Diogo Sponchiato escreve sobre terapias complementares, e atesta que estas têm Transcreve-se aqui parcialmente, a mencionada Resolução: “O CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,[...].RESOLVE: Art. 1º — O uso da Hipnose inclui-se como recurso auxiliar de trabalho do psicólogo, quando se fizer necessário, dentro dos padrões éticos, garantidos a segurança e o bem estar da pessoa atendida; Art. 2º — O psicólogo poderá recorrer a Hipnose, dentro do seu campo de atuação, desde que possa comprovar capacitação adequada, de acordo com o disposto na alínea "a" do artigo 1º do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Art. 3º — É vedado ao psicólogo a utilização da Hipnose como instrumento de mera demonstração fútil ou de caráter sensacionalista ou que crie situações constrangedoras às pessoas que estão se submetendo ao processo hipnótico. ” 10 Pincherle cita o caso de uma cliente sua que, com a hipnose, regrediu a uma fase traumática de sua infância: “Uma cliente de 35 anos, depressiva, descrevendo tentativa de suicídio, três meses antes, sem causa aparente para esse quadro, dizia nada lembrar de sua infância. Não sabia a quem recorrer para obter algum dado de seu passado infantil, pois não tinha família no Brasil e sua progenitora havia falecido há 4 anos. Não conhecera o pai porque era filha de mãe solteira. Na regressão hipnótica referiu-se a muita solidão quando menina; a mãe ganhava pouco e a largava sozinha em casa, enquanto trabalhava fora. Dizia, em hipnose, estar passando muito medo. [...] A cliente havia apagado de sua memória consciente, seu passado, que era extremamente triste e monótono, e era a provável causa de suas depressões. ” PINCHERLE, Livio Tulio et al. Psicoterapias e estados de transe. São Paulo: Summus, 1985, p.90. 11 RHODES, 1999, p.19. 9 80 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE sido estudadas nos centros médicos do Brasil e do Mundo.12 Sponchiato ainda levanta dados que trazem a informação de que hospitais em São Paulo, como Einstein e o Sírio-Libanês, já incluíram serviços de Medicina alternativa como Fitoterapia, Homeopatia e Acupuntura; observando que até o SUS tem oferecido esses tratamentos diferenciados. Diante disso pode-se observar a aceitação dos hospitais com relação a estas práticas medicinais alternativas. Na abordagem feita por Sponchiato, dentre as práticas alternativas no tratamento de doenças, a hipnose encontra-se inserida neste rol, e é definida a grosso modo, como um estado de transe que pode ser explorado para tratar da depressão, fobias, distúrbios sexuais, psicólogos alimentares, no controle da dor, insônia, também pode ser usada como sedativo em pessoas que não se sentem bem ao passarem por ressonância magnética. Ainda é importante ressaltar que segundo a Sociedade de Hipnose Médica do Rio de Janeiro13, em 1999, o Conselho Federal de Medicina reconheceu o uso da hipnose como ato médico, decorrente do Processo Consulta nº 2.172/97 , sob a denominação de Hipniatria. A resposta dada a este processo, que inclusive traz um conceito da hipnose, versa da seguinte maneira: O Parecer adota como definição de hipnose a proposta pela Sociedade de Hipnose Médica de São Paulo, a saber: ‘estado de estreitamento de consciência provocado artificialmente, parecido com o sono, mas que dele se distingue fisiologicamente pelo aparecimento de uma série de fenômenos espontâneos ou decorrentes de estímulos verbais ou de outra natureza’.14 Ainda, no ano 2000, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro distribuiu o Manual do Médico, no qual consta a seguinte recomendação: 12 SPONCHIATO, Diogo. A nova alternativa. Revista Galileu, São Paulo, n. 259, p.35-45, fev. 2013. “Ao realizar o 1º Curso Completo de Hipnologia autorizado pelo Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro em 1956, o Dr. Torres Norry originou um movimento que viria resultar, no ano seguinte, na fundação da Sociedade Brasileira de Hipnose Médica - SBH. Essa trajetória expande-se com a fundação da Sociedade de Hipnose Médica do Estado do Rio de Janeiro - SOHIMERJ, em 27 de agosto de 1983. A nova entidade é ligada, diretamente, a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro - SMCRJ, que é filiada a Associação Médica Brasileira - AMB. Dando continuidade ao trabalho de ensino e divulgação da Hipnose no Rio, a SOHIMERJ reestruturou o Curso Básico de habilitação em Hipnose para a formação de especialistas da Área de Saúde, anteriormente responsabilidade da SBH. [...] a diretoria da SOHIMERJ, no biênio 1997/1999, concretiza o sonhado intento da entidade com a inauguração de sede própria, em 04 agosto de 1998.” Sociedade de Hipnose Médica do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.sohimerj.com.br/sobrehipnose/capa.htm>. Acesso em: 30 março 2013. 14 Ibid. 13 81 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A hipnose é reconhecida como valiosa prática médica, subsidiária de diagnóstico e de tratamento, devendo ser exercida por profissionais devidamente qualificados e sob rigorosos critérios éticos. O termo genérico adotado por este conselho é o de Hipniatria.15 Um ato como este só vem a colaborar para que a hipnose seja cada vez mais disseminada, por todas as partes do mundo. Assim como a hipnose pode ser aplicada em diversos casos médicos, também pode ser observado o seu auxílio com grande êxito na Odontologia. É necessário ressaltar, que o emprego da hipnose é legal e está regulamentado pelo Conselho Federal de Odontologia, em sua resolução CFO185/93, que prevê no inciso VI, do artigo 4°, a competência do cirurgião dentista para decidir: “[...] empregar a analgesia e a hipnose, desde que comprovadamente habilitado, quando constituírem meios eficazes para o tratamento.”16 Desta forma, o emprego da hipnose torna-se legal no âmbito da Odontologia. 2.1.2 Hipnose e Memória Do ponto de vista psicológico, entre outras formas de esquecimento de informações, há o esquecimento motivado que, a partir dos estudos de Davidoff, consiste na supressão consciente ou inconscientemente da recuperação de informações desagradáveis. Nas palavras da autora: [...] as expectativas e os motivos influenciam aquilo que observamos e o que ignoramos. Como resultado codificamos somente informações selecionadas na memória de curto prazo [...]. A recuperação é moldada por nossos esquemas e emoções; censuramos aquilo que relatamos.17 Logo, acaba-se armazenando informações que são agradáveis e bem vindas, e o que não se quer lembrar em um momento posterior, acaba sendo descartado. 15 Disponível em: <http://www.sohimerj.com.br/sobrehipnose/capa.htm>. Acesso em: 30 março 2013. 16 Disponível <http://www.institutohipnologia.com.br/index.php?option=com_content&id=116&ltemid=23>. em: 06 março 13 17 DAVIDOFF, 2001, p. 233. em: Acesso 82 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Para Freud, as más lembranças ficam no subconsciente, por isso elas não vêm à tona tão facilmente, é um meio de proteger o indivíduo contra suas próprias recordações dolorosas. Bock, Teixeira e Furtado discorrem a respeito afirmando que Freud se perguntava qual seria o motivo de o indivíduo esquecer determinados eventos da própria vida. Então chegou à conclusão de que há uma força interna que tem o poder de bloquear certos pensamentos, a respeito de Freud: [...] chamou de repressão o processo psíquico que visa encobrir, fazer desaparecer da consciência, uma ideia ou representação insuportável e dolorosa que está na origem do sintoma. Estes conteúdos psíquicos “localizam-se” no inconsciente.18 Esta citação reforça a ideia de que pensamentos perturbadores acarretam um recalque das lembranças ruins do indivíduo. Portanto, pode-se dizer que a mente seleciona o que será armazenado, evitando lembranças traumáticas demais; para que, dessa forma, não sejam acessadas a qualquer tempo – como intuito de proteger o indivíduo de suas próprias emoções desagradáveis. 2.2 RELAÇÕES ENTRE PSICOLOGIA E DIREITO Se por um lado a hipnose pertence ao “mundo” da Psicologia, a questão da prova na investigação criminal diz respeito ao Direito. Em razão desta interlocução, far-se-á breve análise e comparação entre Direito e Psicologia. Sonia Liane Reichert Rovinski, na introdução de sua obra sobre perícia psicológica forense, aborda a possibilidade de relação entre o Direito e a Psicologia. A autora constata que, apesar da divergência de ideias entre autores e pesquisadores a respeito dessa interdisciplinaridade, há um consenso com relação ao seu objeto – a conduta humana.19 Continua, afirmado ainda que, tanto o mundo do ser, quanto o mundo do dever ser, se entrelaçam. Ou seja, assim como a Psicologia influencia a Lei, esta 18 BOCK, Ana Mercês Bahia; TEIXEIRA, Maria de Lourdes T.; FURTADO, Odair. Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 69. 19 ROVINSKI, Sonia Liane Reichert. Fundamentos da perícia psicológica forense. 2.ed. São Paulo: Vetor, 2007, p.13-14. 83 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE também exerce influência sobre os estudos da Psicologia; dessa maneira, uma área do conhecimento não pode ser compreendida em sua totalidade sem o auxílio da outra. A Psicologia Forense tem o escopo de auxiliar o juiz, para que este possa proferir sentença, quando nos autos há fatos sobre os quais ele não obteria satisfatório conhecimento, sem a assessoria de um psicólogo. Rovinski disserta que: [...] podemos definir a Psicologia Forense como aquela que utiliza todas as áreas do saber da psicologia para fazer frente aos questionamentos formulados pela Justiça, cooperando, a todo o momento, com a administração da mesma, atuando no Foro (Tribunal), qualificando o exercício do Direito. Seus limites são estabelecidos pelos requerimentos da lei e pelo vasto campo de conhecimento da Psicologia. 20 A partir do exposto, pode-se observar o quão importante é considerar a interdisciplinaridade entre Psicologia e Direito. Uma vez que uma área de conhecimento só tem a acrescentar à outra. Diante da explanação dos aspectos gerais da hipnose, e ainda, no que se refere à relação entre as duas áreas do saber supramencionadas, neste momento tratar-se-á de dar devida atenção às provas no Processo Penal, à investigação criminal, e, por fim, à hipnose na produção de provas. 3 A HIPNOSE NO DIREITO A hipnose se apresenta como uma possibilidade de auxílio na produção de provas jurídicas. No entanto, por não se tratar de uma prova tradicional, não é frequentemente citada pelos compêndios ou manuais que abordam a produção e os meios de prova. Com a finalidade de se elaborar uma pesquisa geral dos meios de prova utilizados no Brasil, far-se-á, inicialmente, uma análise das características gerais da prova, num segundo momento, uma breve abordagem dos meios de prova admitidos no Processo Penal Brasileiro e, ainda, dos aspectos gerais da investigação criminal. Posteriormente, pretende-se demonstrar como a hipnose poderá servir como uma ferramenta importante na produção de provas. 20 ROVINSKI, 2007, p.15. 84 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 3.1 A PROVA NO DIREITO BRASILEIRO Para que seja concretizado o direito a um julgamento conforme a verdade, se faz necessária uma apreciação efetiva dos fatos, de forma que a verdade possa trazer a tutela jurisdicional dos direitos de cada indivíduo. Nesse contexto, se faz interessante citar as palavras de Leonardo Greco: Se a verdade no processo tem essa relevância humanitária e política, ela não pode ser uma outra verdade senão aquela que resulta do mais qualificado método de investigação acessível ao conhecimento humano, em qualquer área do saber.21 Portanto, para que seja alcançada a tão almejada justiça, o processo deve ser aproximado ao máximo da reconstrução mais fiel dos fatos. Para tal feito, a investigação deve assentar-se, muitas vezes, em outras ciências que não a do Direito. A respeito do tema, Greco bem acentua que: “O fundamental, é que as normas jurídicas relativas à produção de provas não podem constituir obstáculos que dificultem a reconstrução objetiva dos fatos”. 22 Concluindo o raciocínio do já mencionado autor, pode-se dizer ser necessário que o sistema normativo das provas seja um sistema aberto a todas as áreas do conhecimento humano, no qual as limitações sejam apenas éticas ou humanitárias. Segundo Luiz Guilherme Marinoni, a noção de prova, no âmbito do Direito Processual Civil, apresenta-se como todos os elementos direcionados à possibilidade de que seja reconstruída a verdade dos fatos alegados pela parte. Ou seja, provas são meios pelos quais se chegará ao conhecimento de um fato, da verdade que as partes relatarem sobre ele. O autor continua a discorrer sobre o tema destacando que a prova não tem como objetivo provar fatos, e que o que realmente importa ser provado no processo é a alegação do fato. Explica ainda a existência dos fatos principais, também denominados de fatos diretos - por estarem diretamente destinados a demonstrar a verdade; e dos fatos 21 GRECO, Leonardo. O conceito de prova. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). Estudos de direito processual civil. São Paulo: RT, 2005, p.37. 22 GRECO, 2005, p.379. 85 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE secundários, também chamados de fatos indiciários - os quais podem demonstrar de forma indireta as afirmações de fato. 23 Por outro lado, há a concepção metajurídica, que se contrapõe às provas legais. Segundo Greco, essa corrente identifica a prova: “[...] como um fenômeno utilizado pelo conhecimento humano em todas as áreas do saber, procurando desprendê-la de uma caracterização especializada, exclusivamente técnicojurídica”.24 A concepção metajurídica se afasta das provas legais, é um sistema aberto, no qual o juiz pode e deve se utilizar de métodos emprestados de outras ciências e de outros campos de conhecimento para alcançar os fatos de forma mais segura. Para completar este raciocínio, impõe-se o uso as palavras de Greco: Se o método das ciências biológicas é o mais adequado para apurar ou avaliar os dados que podem acertar os fatos, a ele deve recorrer o juiz. E assim do mesmo modo, deve ele fazer o uso dos métodos de todas as demais áreas do conhecimento humano, como a psicologia, a física, a matemática, a sociologia etc.25 No entendimento de José Frederico Marques: “A prova é, assim elemento instrumental para que as partes influam na convicção do juiz, e o meio de que este se serve para averiguar sobre os fatos, é da prova que se serve o juiz, formando, ao depois, sua convicção.”26 Ou seja, prova é o meio pelo qual as partes se utilizam para demonstrar ao juiz as afirmações ou os fatos que dizem ser verdadeiros. Com relação a possíveis restrições à prova, que servem como garantia das partes dentro do processo, Pacelli de Oliveira afirma que toda restrição deve vir justificada em um valor disposto pela ordem jurídica; e que as restrições podem incidir tanto no meio de obtenção da prova, quanto no grau de convencimento a ser produzido pela prova. Nas palavras do autor: 23 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil: vol. II - processo de conhecimento. 7. ed. São Paulo: RT, 2008, p.265. 24 GRECO, op. cit., p.371. 25 Ibid., p.372. 26 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal: vol.II. 2. ed. Atualizada. São Paulo: Millenium, 2000, p.332. 86 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A norma assecuratória da inadmissibilidade das provas obtidas com violação de direito, com efeito, presta-se, a um só tempo, a tutelar direitos e garantias individuais, bem como a própria qualidade do material probatório a ser introduzido e valorado no processo.27 A proteção das garantias individuais, citada acima, consiste na tutela do direito à intimidade, à privacidade, à imagem, à inviolabilidade de domicílio, entre outros.28 Frederico Marques explica que no âmbito do Processo Penal atual não pode ser adotado o princípio pelo qual os fins justificam os meios, por este motivo é que as torturas e outros meios violentos passaram a ser inadmissíveis nas investigações. Convém que sejam citadas as palavras do autor sobre o assunto: São também inadmissíveis as provas denominadas científicas, que possam atingir a pessoa humana, quer em sua integridade física, quer em sua liberdade moral. Proscrito está por isso, o emprego da hipnose para obterse a confissão do acusado.29 Por esse motivo aqui exposto, é que a hipnose apenas tem sido admitida, em investigações criminais, para ser utilizada na vítima e/ou testemunhas. Para Mendroni, a finalidade principal da prova é produzir o convencimento do juiz, uma vez que o objetivo é trazer ao mesmo, aquilo que a parte acredita ser a verdade. Impende neste momento que se tornem conhecidos os meios de prova admitidos no Direito Brasileiro. 3.1.1 Meios de Prova no Direito Processual Penal Para que seja realizada a tão árdua tarefa da busca pela verdade, ou, melhor dizendo, da melhor reconstrução dos fatos possível dentro dos autos, os sujeitos do processo podem se utilizar de diversos meios de prova, os quais serão aqui mencionados para melhor compreensão das conclusões a serem tratadas posteriormente. 27 Ibid., p.299. Artigo 5°, incisos X, XI e XII, da CF. 29 MARQUES, op. cit., p. 354-355. 28 87 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Cabe, neste momento, que sejam apontados os meios de prova admitidos no Direito Processual Penal: interrogatório; confissão; prova testemunhal; perguntas ao ofendido; reconhecimento de pessoas e coisas; acareação; prova documental; busca e apreensão; e por fim, prova pericial. É necessário que seja dada maior atenção a esta modalidade de meio de prova, que, para ser melhor compreendida, é interessante transcrever uma definição de prova pericial trazida por Eugênio Pacelli de Oliveira: A prova pericial, antes de qualquer outra consideração, é uma prova técnica, na medida em que pretende certificar a existência de fatos cuja certeza, segundo a lei, somente seria possível a partir de conhecimentos específicos. Por isso, deverá ser produzida por pessoas devidamente habilitadas, sendo o reconhecimento desta habilitação feito normalmente na própria lei, que cuida das profissões e atividades regulamentadas, fiscalizadas por órgãos regionais e nacionais. 30 De acordo com o artigo 159 do CPP, a perícia será sempre realizada por dois peritos oficiais – que o Poder Público geralmente possui seus peritos judiciais. No caso de não haver peritos oficiais, o juiz deverá nomear duas pessoas, devidamente habilitadas para tal feito, para que fiquem responsáveis pela perícia. Abordar-se-á neste momento uma das modalidades de perícia – Perícia Psicológica Forense - a qual, na realidade, interessa ser exposta no presente trabalho. Nesse contexto, Rovinski ressalta que a perícia, como meio de prova, não pode ser considerada verdade absoluta, deverá ser analisada e avaliada com minúcias; além disso, a conclusão que for apresentada no laudo técnico do psicólogo encarregado deve possuir a devida fundamentação. Especificamente na área criminal existem disposições sobre a prática da perícia psicológica nos casos de insanidade mental do acusado – artigos 149 a 154, CPP - e de execução das Medidas de Segurança - art. 775, também do CPP. No Código Penal, e na Lei de Execução Penal há determinações a respeito da avaliação do preso para progressão de regime. Quanto ao profissional encarregado da perícia psicológica forense, a autora esclarece que este pode ser qualquer psicólogo regulamentado no Conselho 30 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7. Ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey. 2007, p.361. 88 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Regional de Psicologia, desde que possua capacidade técnica para dar respostas às questões do caso que precise do auxílio da matéria de Psicologia.31 Para que haja certeza do juiz com relação à imputabilidade, se faz necessária a perícia psiquiátrica, para que sejam examinados os elementos contidos no artigo 26 do Código Penal – que trata da imputabilidade penal. Consoante, discorre Frederico Marques: O laudo médico-legal dos peritos deve indicar o diagnóstico do estado ou processo patológico do acusado, mostrando se este é, ou não, um doente mental, ou se traz perturbação em sua saúde mental, bem como se apresenta ‘desenvolvimento mental incompleto ou retardado’. Ainda se estenderá o laudo sobre a capacidade de autodeterminação do réu no momento da prática do crime.32 Diante de situações como esta, nas quais devem ser determinados certos fenômenos psíquicos, fica evidente a necessidade de um perito médico para que venha a realizar a perícia psiquiátrica – para que seja feita avaliação que traga certezas referentes ao estado mental do acusado. 3.1.2 Provas atípicas ou inominadas São chamadas de provas típicas ou nominadas, aquelas dispostas em texto de lei. Já as provas atípicas ou inominadas, são as provas que podem vir a se constituir em elementos úteis ao conhecimento dos fatos do processo, mas que não estão regulamentadas em lei. O artigo 332 do CPC traz amparo às provas atípicas, uma vez que prevê a possibilidade da utilização de todos os meios legais para constituir prova, mesmo que esses meios não estejam detalhadamente especificados em lei. No plano constitucional, o art. 5°, LV, prevê o direito à prova e seus meios, garantindo dessa forma, a ampla defesa; em seu inciso LVI pode-se encontrar um limite para a produção de provas – não se admitindo, todavia, o uso de provas ilícitas. Ou seja, as provas atípicas têm respaldo constitucional. Como se pode observar, o artigo 332 do CPC não elenca um rol taxativo para Interessante mencionar os artigos: 135 e 145 do CPC, e os artigos 145 a 150 do CPP – que dizem respeito ao perito. 32 MARQUES, 2000, p.442. 31 89 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE os meios de prova; deixando em aberto as formas de obtenção de prova, desde que lícitas, obviamente. Nesse sentido, Eduardo Cambi elucida que: “Com isso, o legislador de 1973 dá sinais que permitem ao intérprete superar o sistema das provas legais que se infiltrava na legislação processual mediante a ideia de numerus clausus das provas.”33 Permitindo-se a utilização das provas atípicas, aumenta-se a liberdade para buscar meios variados e também mais adequados a cada caso, para influenciar na formação do convencimento do juiz. Ainda ressalta Cambi: Com efeito, o grau de admissibilidade que se dá às provas atípicas ou inominadas serve de critério para a maior ou menor consagração do princípio do livre convencimento do juiz no sistema processual. Desse modo, pressupor o caráter vinculante de um catálogo de provas historicamente seria um excesso de formalismo interpretativo, que serviria de obstáculo para a evolução do direito processual civil.34 De fato seria uma tarefa impossível enumerar todas as possíveis minúcias de cada meio de obtenção de provas na tentativa de solucionar esse impasse. Para que o Direito possa acompanhar a realidade, deve ser revelado como uma força viva, uma roda d’água que circula e movimenta a água a todo tempo, para que no fim, esta possa escoar em algum lugar maior, como uma cachoeira. O que se quer dizer é que o sistema processual não pode ficar estagnado, deve haver dinamismo e atualização de categorias jurídicas. Nesse diapasão, convém que sejam transcritas as palavras de Mariulza Franco - Advogada, Mestre e Doutora em Direito Processual Civil: [...] é ponto de acordo na doutrina – e prática na jurisprudência – que o direito não se esgota na lei, que direito positivo não é sinônimo de lei, mas de direito vigente na sociedade e subsumido das decisões judiciais, revelado na prática da interpretação das leis. 35 33 CAMBI, Eduardo. Provas Atípicas. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). Estudos de direito processual civil. São Paulo: RT, 2005, p.329. 34 CAMBI, loc.cit. 35 FRANCO, Mariulza. Máximas de experiência e legitimação pela fundamentação. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). Estudos de direito processual civil. São Paulo: RT, 2005, p.393. 90 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Ou seja, a interpretação das leis deve estar, como já foi dito, de acordo com a realidade social, o Direito deve se adaptar à evolução da sociedade, devem caminhar juntos. 3.2 INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. ASPECTOS GERAIS A persecução penal é um dever do Estado, logo, também é responsável pela apuração dos fatos. Para tal feito, a lei dá competência a certos órgãos de segurança pública, que ficam responsáveis pela investigação dos crimes em geral. Conforme o artigo 144 da Constituição Federal, quem fica responsável é a denominada polícia judiciária. Porém, apesar da polícia judiciária, é importante mencionar que também é permitida a tarefa investigatória realizada por outras autoridades, conforme redação do artigo 4° do Código de Processo Penal. O referido artigo também dispõe que o inquérito policial tem como objetivo a apuração das infrações penais e sua autoria. Sobre a investigação criminal, Marcelo Batlouni Mendroni relata: Em resumo, na fase pré-processual deve o incumbido tratar de coletar tudo o que, em sua primeira análise esteja de acordo com a correlação do fato, priorizando as circunstâncias mais evidentes e demonstrativas, para posteriormente, durante o processo estar em condições de confirmá-las caso seja necessário.36 Sempre bom lembrar, como já foi dito anteriormente, que para a realização da investigação criminal se faz necessário que sejam respeitados os limites legais, observando os limites constitucionais, principalmente no que tange aos direitos e garantias individuais. É importante que seja entendido em que consistem a investigação criminal e a produção de provas, para que isso seja compreendido convém citar a concepção de Mendroni sobre a investigação criminal como sendo: “[...] toda ação praticada pela Polícia ou pelo Promotor de Justiça, separadamente ou em conjunto com vistas à obtenção de evidência, sempre durante a fase pré-processual.”37 36 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Curso de Investigação Criminal. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p.65. 37 Ibid, p.198. 91 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A partir da leitura da redação do artigo 239, do CPP, pode-se constatar que quando há indícios, parte-se de um fato que faz surgir uma dedução, que por sua vez pode levar a outra circunstância a ser considerada como prova. As palavras de Mendroni bem traduzem esse raciocínio: Isto significa, em termos práticos que consideramos que os indícios, ainda que produzidos na fase pré-processual, deixam essa qualidade e adquirem o status de verdadeiras provas, desde que construídos através de deduções, vindo a integrar o contexto probatório agora com status de prova. [...] As evidências são coletadas das mais diversas formas, perícias, oitivas, juntadas de documentos, etc. e vão integrar os autos do procedimento investigatório.38 A partir dessa concepção é possível compreender como o papel de um “pequeno indício” pode vir a crescer, podendo, dessa forma se transformar em um grande auxílio para a investigação. Desperta particular interesse neste passo o uso ou a probabilidade do uso da hipnose no esclarecimento de circunstâncias do fato investigado. Na sequência, proceder-se-á, por fim, à abordagem da hipnose na investigação criminal. 3.3 A HIPNOSE NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL A possível contribuição da hipnose consiste em considerar os dados levantados como pistas do crime. Essas informações podem servir como base para que flua a investigação criminal em busca de provas materiais. Davidoff escreve que alguns tribunais têm recorrido à hipnose, o que facilita a recordação de certos eventos, nas palavras da autora: Históricos de investigações criminais específicas conduzidas com o auxílio da hipnose sugerem que a memória sob hipnose pode melhorar em algumas ocasiões [...]. Marilyn Smith (1984) vê três razões para essas melhorias. Em primeiro lugar, pessoas hipnotizadas ficam mais predispostas a lançar um palpite, embora possam lembrar muito pouco. Segundo, a memória é melhorada por indícios do contexto, o que o hipnotizador oferece. Terceiro, sessões repetidas de recordação possibilitam recuperar mais informações.39 38 39 Ibid, p.237-238. DAVIDOFF, 2001, p.235. 92 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Além disso, a pesquisadora acresce que diante de circunstâncias de violência, a mente tende a armazenar imprecisamente o que de fato ocorreu. Como é bem comum o uso de testemunhas para que prestem depoimento sobre detalhes de crimes, o uso da hipnose na busca de pistas esquecidas pelas vítimas ou testemunhas oculares, mostra possuir potencial para auxiliar nas investigações criminais. Rui Sampaio, o próprio mentor e criador do Laboratório de Hipnose Forense no Paraná, salienta que “[...] a tendência da nossa mente é esquecer o que é desagradável.”40 Sendo assim é comum que a vítima esqueça de dados importantes em decorrência do trauma que sofreu durante o crime. A hipnose traz à tona, ou melhor, traz para o consciente as lembranças que se encontram no subconsciente. Em 1900, a Psicanálise já considerava o inconsciente como um saber que não se sabe que se sabe.41 Para que se faça entender qual é a vantagem em se utilizar a hipnose ao invés de outros meios de recuperação de memória, é importante que seja observado o posicionamento de Rhodes sobre isso: Enquanto o psicanalista, sem a hipnose, tem de aguardar meses ou anos até que o paciente, em livre associação, desvende e revele o incidente crítico, o hipnoanalista pode iniciar uma bem mais rápida recuperação de pertinentes lembranças esquecidas, através de uma variedade de técnicas [...].42 Ou seja, o melhor proveito do emprego do hipnotismo é ocasionado pela recuperação mais rápida das lembranças esquecidas, uma vez que na Psicanálise, a revelação desses momentos exige mais tempo. Prossegue, ao discorrer a respeito do assunto, elucidando que a hipnose pode ser vista como “[...] a chave científica para o controle mental, o abre-te-sésamo por intermédio do qual atingimos os mais íntimos recessos do pensamento.”43 Nájila Furlan, em uma publicação baseada em entrevista com o já mencionado Rui Sampaio escreve a respeito da hipnose: 40 MORO, Antonio. Abr.2011. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida e cidadania>. Acesso em: 03 de março de 2012. 41 PASTORE, Jassanan Amoroso Dias. Psicanálise e linguagem mítica. Revista ciência e cultura: temas e tendências. São Paulo, n.1, p.22, jan. 2012. 42 RHODES, 1999, p.23. 43 Ibid, p.19. 93 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Sampaio esclarece que, na criminalística, a hipnose é aplicada em vítimas e testemunhas de crimes como estupro, sequestro, assaltos e alguns casos de acidentes e homicídio. Usamos muito para fazer o retrato falado. Geralmente nas pessoas que viram, mas esqueceram devido ao trauma sofrido. É preciso esclarecer que só se usa quando a pessoa (vítima ou testemunha) tem amnésia, revela. O psiquiatra ainda comenta que são várias as técnicas de hipnose que se aplicam: Depende do caso apresentado. No caso do crime, a pessoa chega, passa por uma anamnese (entrevista) para ver se pode passar por hipnose. Em seguida, vou me inteirando do que a pessoa viu. A partir daí faço as orientações e parto para a hipnose. Faço a pessoa fazer o retrato do acusado, mentalmente. Ela acorda da hipnose lembrando do fato e das características para o retrato falado. Basta os olhos, nariz e boca. Em 90% dos casos a gente consegue fazer. Não se consegue quando o trauma é muito grande, diz.44 Aqui se pode ter uma ideia de como a hipnose é capaz de ajudar nas investigações criminais e essa aplicação é inovadora nessa seara. Conforme dados apresentados pelo próprio Instituto de Criminalística do Paraná: No Brasil, o Instituto de Criminalística do Paraná é o primeiro, desde 1983, na associação da hipnose como técnica auxiliar as investigações criminais e, também, na confecção do Retrato-Falado. Tais experimentos obtiveram ótimos resultados, tendo sido criado oficialmente em dezembro de 1999, o primeiro Laboratório de Hipnose forense, considerando o único do país.45 As diversas finalidades da hipnose têm sido alvo de interesse, tanto de profissionais das mais diversas áreas, e também dos leigos e curiosos. Aos poucos, felizmente, a imagem deturpada que as pessoas tinham com relação à hipnose tem sido abandonada, e, cada vez mais tem adquirido respeito. A partir da leitura de periódicos, revistas, artigos de jornais, entre outros meios de informação, é possível observar que as mais diversas áreas do conhecimento têm se aprofundado em estudos referentes à hipnose. 44 FURLAN, Nájila. Cresce o uso da hipnose terapêutica. Paraná online, 08 julho 2007. Mundo/Notícias. Disponível em: <www.parana-online.com.br/editoria/mundo/news/249920/>. Acesso em: 14 abril 2013. 45 Instituto de Criminalística do Paraná. Disponível em: <http://www.ic.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=3>. Acesso em: 12 abril 2013. 94 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 3.4 O LIVRE CONVENCIMENTO DO JUIZ Considerando que a lei processual brasileira confere ao juiz a liberdade de convicção na elaboração de sua decisão motivada, consoante os princípios da legalidade e razoabilidade, nada impede que leve em conta os subsídios da prova obtida mediante o uso da hipnose. Desta sorte, cabe examinar alguns aspectos do princípio do livre convencimento do juiz no Direito Brasileiro. O moderno processo penal, para se desligar dos antigos sistemas de provas inquisitório ou da prova tarifada – aderiu o sistema do livre convencimento motivado46, também conhecido como persuasão racional. Oliveira traz uma definição do livre convencimento motivado: Por tal sistema, o juiz é livre na formação do seu convencimento, não estando comprometido por qualquer critério de valoração prévia da prova, podendo optar livremente por aquela que lhe parecer mais convincente. Um único testemunho, por exemplo, poderá ser levado em consideração pelo juiz, ainda que em sentido contrário a dois ou mais testemunhos, desde que em consonância com outras provas.47 É evidente que esta liberdade concedida ao juiz no momento da sentença, não dispensa fundamentação e argumentação racional. Pode-se perceber ainda, que esta é uma regra para ser usada quando será realizada a valoração de todas as provas obtidas nos autos, ou seja, no momento da decisão final.48 Ao tratar da prova indiciária e do poder de livre convencimento do juiz, Mendroni constata que tal convencimento é um ato subjetivo, algo que vem do seu íntimo. Logo, pode-se concluir que, mesmo as evidências49 da fase preliminar que não tenham sido inseridas na fase processual, podem se consideradas pelo juiz em 46 Esse princípio encontra-se expresso no artigo 157, do CPP, o qual dispõe que o juiz poderá formar sua convicção pela livre apreciação da prova. 47 OLIVEIRA, 2007, p.296. 48 Nesse sentido autor faz um alerta: “Essa regra de julgamento é aplicável somente às decisões do juiz singular, não se estendendo aos julgamentos pelo Tribunal do Júri, em que não se impões aos jurados o dever de fundamentarem as suas respostas aos quesitos. Para o Tribunal do Júri vige o princípio da íntima convicção.” Ibid., p.296. 49 Palavras do autor: “Reiteramos que mesmo as evidências (indícios) – não repetidas durante a instrução, são e devem ser levados em consideração pelos Magistrados no momento da valoração geral do contexto probatório, razão pela qual elas também efetivamente contém potencial comprobatório, com correspondência valorativa diretamente proporcional à forma como são produzidos e principalmente ao seu conteúdo.” MENDRONI, 2002, p.245. 95 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE seu raciocínio íntimo, no momento de proferir a sentença. Deve-se estar atento para os avanços da ciência, e da tecnologia, os quais tendem a contribuir cada vez mais com o Direito, e consequentemente, de forma mais específica, com o Direito Processual. A respeito desse assunto, Mendroni afirma que a evolução das ciências direcionadas ao Direito permitirá que, no momento de decisão do juiz, haja maior segurança e certeza.50 Sobre o livre convencimento, vale a pena ressaltar a concepção de Frederico Marques: “O livre convencimento está hoje consagrado pela doutrina processual como a mais recomendável das formas e sistemas de valoração das provas. E isso tanto no Direito Processual Penal como no Direito Processual Civil. ”51 O autor, entanto, não deixa de frisar que não se deve confundir a liberdade de convencimento com arbitrariedade, uma vez que o livre convencimento não é sinônimo de liberdade total de apreciação das provas, sem limite algum. Pelo contrário, o livre convencimento adotado pelo Direito Processual não consiste em pura convicção íntima ou opinativa do juiz. Portanto, pode-se constatar que não basta o juiz afirmar determinado fato na sua decisão, bem mais que isso, ele deve sempre motivá-la, expondo as razões pelas quais resolveu seguir um caminho ou outro. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesta pesquisa, procurou-se demonstrar a necessidade de desmistificação da ultrapassada concepção sobre transes hipnóticos, devendo ser abandonadas antigas visões sobre a temática aqui tratada Ora, se vem sendo utilizada ao longo do tempo, e tem sido indicada nos dias atuais, é porque realmente traz resultados positivos dentro de várias áreas do conhecimento. Pode-se observar que a hipnose é uma técnica poderosa, capaz de eliminar sintomas e tratar quadros fóbicos, sendo indicada também nas mais diversas especialidades da Medicina. Na cirurgia geral, por exemplo, como anestesia de urgência; na Odontologia como auxiliar no preparo do paciente; além de poder ser utilizada dentro das atividades jurídicas – reavivando a memória de vítimas ou 50 51 Ibid., p.250. MARQUES, 2000, p.361. 96 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE testemunhas ao relatarem o fato delituoso, entre outros fins, contribuindo, deste modo, para a elucidação da verdade. Houve, ainda, menção referente à relação entre a Psicologia e o Direito, para que fosse possível a compreensão da valiosa colaboração que uma área do conhecimento pode trazer à outra. Neste texto, também, foram examinadas as provas no Direito Processual Penal, as principais características da perícia criminal, abordando-se inclusive a perícia psicológica forense. Fazendo-se, também, conhecidos os aspectos gerais a respeito das investigações criminais no Brasil, para que, em momento posterior, fosse indicada a hipnose como uma técnica hábil à descoberta de qualquer indício referente a determinado delito, evitando que crimes fiquem sem solução por falta de pistas do acusado. Faz-se mister saber que o objetivo do estudo não se traduz em elevar uma informação obtida por meio hipnótico à categoria de prova cabal, mas sim apontar em que situações esse método pode ser utilizado, ainda que subsidiariamente. Desse modo a hipnose ganha destaque e grande importância nos casos em que não há um ponto de partida para que se desenrole a investigação. Nesse contexto, a informação obtida por essa técnica pode trazer indícios para que se inicie uma investigação que busque a materialidade do crime. Diante do cenário judicial – no qual podem ser observados tantos crimes insolúveis e tanta Justiça a ser alcançada – a investigação da temática da pesquisa é atual e mostra-se vantajosa, pois se trata de um trunfo que pode ampliar o alcance da segurança pública; uma vez que, para que a criminalidade seja combatida, é necessário que profissionais de várias áreas se reúnam em busca desse fim maior. No estágio atual desta pesquisa, portanto, pode-se concluir que a hipnose forense apresenta-se como uma nova ferramenta contra o crime, frisando sempre que a hipnose forense deve estar sempre direcionada às vítimas e/ou testemunhas do fato delituoso que, voluntariamente, se submetam a esta prática médica. Destacou-se, no texto, que nunca deve ser usada para arrancar a verdade de um suspeito – até porque esse tipo de procedimento viria a ferir os direitos individuais garantidos pela Constituição Federal. Nessa perspectiva propõe-se que se repense nos meios jurídicos a aplicação da hipnose, diante da relevância das informações que pode levantar nas 97 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE averiguações criminais. Tal iniciativa só poderá trazer melhores condições de avaliação e investigação, auxiliando, quiçá, na decisão do juiz, tendo em vista o princípio do livre convencimento motivado. 98 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS BOCK, Ana Mercês Bahia; TEIXEIRA, Maria de Lourdes T.; FURTADO, Odair. Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Lex: legislação federal e marginalia. 4ª.ed. São Paulo: Saraiva, 2008. CAMBI, Eduardo. Provas Atípicas. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). Estudos de direito processual civil. São Paulo: RT, 2005. DAVIDOFF, Linda L. Introdução à psicologia. Tradução de Lenke Perez. 3. ed. São Paulo: MAKRON Books, 2001 FRANCO, Mariulza. Máximas de experiência e legitimação pela fundamentação. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). Estudos de direito processual civil. São Paulo: RT, 2005. FURLAN, Nájila. Cresce o uso da hipnose terapêutica. Paraná online, 08 julho 2007. Mundo/Notícias. Disponível em: <www.parana-online.com.br/editoria/mundo/news/249920/>. Acesso em: 14 abril 2013. GRECO, Leonardo. O conceito de prova. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). Estudos de direito processual civil. São Paulo: RT, 2005. ICP. Instituto de Criminalística do Paraná. Disponível em: <http://www.ic.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=3>. Acesso em: 12 abril 2013. Instituto Hipnologia. Disponível em: <http://www.institutohipnologia.com.br/index.php?option=com_content&id=116&ltemi d=23>. Acesso em: 06 março 2013. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil: vol. II - processo de conhecimento. 7. ed. São Paulo: RT, 2008. MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal: vol.II. 2. ed. Atualizada. São Paulo: Millenium, 2000. MENDRONI, Marcelo Batlouni. Curso de Investigação Criminal. 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Atualmente é professor e pesquisador do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA e membro-pesquisador do Departamento de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Tem experiência na área de Filosofia do Direito, com enfoque nas teorias modernas e contemporâneas da Justiça, e, em fundamentos do direito público (constitucional, eleitoral, penal e administrativo). 1 101 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SUMÁRIO Resumo 1 Introdução 2 Histórico 3 A Dogmática do Aborto 3.1 O Início da Vida – Critério Biológico 3.2 Teorias Sobre o Início da Relevância Ética Do (Pré)Embrião 3.3 Teorias Sobre o Início da Relevância Jurídico-Filosófico Do (Pré) Embrião 3.3.1 Doutrina Natalista 3.3.2 Doutrina da Personalidade Condicional 3.3.3 Doutrina Concepcionista 3.4 O art. 128, II do CP 4 O aborto 4.1 Gravidez Decorrente do Crime de Estupro: Estatística e Aspecto Psicológico 4.2 Correntes Morais Favoráveis ao Aborto 4.3 Correntes Morais Contrárias ao Aborto 5 Considerações Finais. Referências 102 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO O direito penal criminaliza a prática de aborto, tendo como exceção o aborto necessário, casos em que está em risco a vida da gestante, e o aborto sentimental, quando a gravidez é resultante do crime de estupro. O legislador justifica a necessidade desta excludente de ilicitude, por entender, que não deve a mulher relembrar a violência vivida, tendo que seguir com a gestação. Este trabalho, visa analisar a constitucionalidade desta excludente de punibilidade estabelecida pela legislação pátria, por entender que o direito à vida é um direito fundamental e inviolável, devendo o ordenamento jurídico protege-la desde o momento em que o ser humano é gerado. Para tanto, será empreendida uma análise: dos motivos históricos e culturais que levaram o legislador a possibilitar esta excludente de ilicitude; de quando a doutrina e a jurisprudência entende que inicia a vida, bem como, sua proteção. Para ao fim contrapor este princípio fundamental com a possibilidade da realização do aborto nesta excludente, visando assim, questionar a constitucionalidade do referido dispositivo. Palavras-chave: aborto, gravidez, estupro, e aborto sentimental. 103 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT The criminal law criminalizes the practice of abortion, with the exception abortion necessary, where this risk the mother's life, and sentimental abortion when pregnancy results from rape crime. The legislator justifies the need for these exclusive illegality, understanding that women should not recall the violence experienced, having to follow through with the pregnancy. This work aims to analyze the constitutionality of exclusionary punishment established by law country, understanding that the right to life is a fundamental and inviolable, the law should protect it from the moment that the human being is generated. Therefore, an analysis will be undertaken: the historical and cultural reasons which prompted the legislature to allow this unlawful exclusionary; when the doctrine and jurisprudence understands that starts life as well as their protection. To the end counter this fundamental principle with the possibility of the abortion in this exclusive, thus aiming, questioning the constitutionality of the said device. Keywords: abortion, pregnancy, rape, and abortion sentimental. 104 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO Haja vista que o texto constitucional tem como princípio máximo o direito à vida, e esta proteção deve se dar antes mesmo do nascimento, ou seja, enquanto o feto ainda se encontre no ventre materno, é possível considerar que aniquilar este ser humano gerado pela violência, para apagar o efeito causado pelo crime de estupro, vai de encontro com este princípio constitucional? O ordenamento jurídico brasileiro tem como princípio fundamentador o direito à vida, protegendo-a desde o momento em que o ser humano é gerado. Apesar disso, este princípio não é um valor absoluto, já que existem momentos em que este bem jurídico entra em conflito com ele mesmo, como por exemplo, nos casos de legítima defesa, ou estado de necessidade. O direito penal criminaliza a prática de aborto, tendo como exceção o aborto necessário, casos em que está em risco a vida da gestante, e o aborto sentimental, quando a gravidez é resultante do crime de estupro. O legislador justifica a necessidade destas excludentes de ilicitude, por entender, que em ambos os casos a gestante encontra-se em estado de necessidade ou que seria o caso de inexigibilidade de conduta, existindo no primeiro caso um conflito entre a vida da mãe e a vida do nascituro (sendo pacífico na doutrina o entendimento de que a vida da mãe sempre prevalece à vida do feto), e no segundo caso, o bem jurídico em conflito é a dignidade da mulher violentada, que teria no filho a imagem do crime sofrido, contra a vida desse novo ser. Este trabalho visa ponderar a constitucionalidade desta segunda excludente, por entender que o direito à vida é um direito fundamental e inviolável, e, que diferentemente dos casos de aborto terapêutico, onde a vida da mãe está em risco, o aborto nos casos de gravidez decorrentes do crime de estupro a gestante não se encontra em risco vital, mas sim, está moral e sentimentalmente ferida, não sendo desta forma possível falar em estado de necessidade. Ademais, por estar o nascituro protegido antes mesmo do nascimento, cabe questionar se é possível sacrificá-lo por ter sido gerado pela violência. Desta forma, cabe questionar se o fato de a gestante ter sido estuprada, torna aceitável pôr fim à vida deste feto. 105 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Para tanto, será empreendida uma análise: dos motivos históricos e culturais que levaram o legislador a possibilitar esta excludente de ilicitude; de quando a doutrina e a jurisprudência entendem que inicia a vida, bem como, sua proteção; os aspectos psicológicos das gestantes que tiveram que passar por tal situação. Ao fim será contraposto este princípio fundamental com a possibilidade da realização do aborto nesta excludente, visando assim, questionar a constitucionalidade do referido dispositivo. 2 HISTÓRICO De início, o aborto foi utilizado como forma de controle populacional. Sendo nas famílias rurais de natureza patriarcal, o filho tido como um bem, tendo mais deveres do que direitos. Como os filhos recém-nascidos eram “coisas” pertencentes aos pais, o aborto não era passível de punição. O Código de Hamurabi (2235 a.C. – 2242 a.C.), previa que o provocador do aborto era punido com pena pecuniária, levando-se em consideração a qualidade da gestante e a acidentalidade ou voluntariedade do ato, admitia a reparação civil ao pai da gestante, na proporção do dano a ela causado; bem como, pena capital ao filho do agressor, que causasse a morte da mulher grávida. A primeira cominação penal acrescentada à reparação civil foi a Lei Assíria, determinando além do pagamento de multa e cumprimento de um mês de senso real, levaria ainda cinquenta golpes de açoite quem agredisse mulher grávida e a fizesse abortar; e, nos casos em que o marido da abortada não tivesse outro filho, o culpado teria como pena a decapitação. Segundo MENDES ( 2012, p. 20.) esta legislação punia “as gestantes que praticavam o aborto com empalação e privação de sepultura”. No Ordenamento Jurídico Brasileiro, as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, bem como, as leis extravagantes vigentes à época, não previam o crime de aborto. O primeiro código brasileiro a criminalizar o aborto, foi o Código Criminal do Império (1830), este punia somente o aborto realizado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante, por qualquer meio empregado interior ou exteriormente, condenando o autor à pena de prisão com trabalho por um a cinco anos, sendo a 106 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE pena duplicada, nos casos de aborto sem o consentimento da gestante, entretanto não criminalizava o aborto praticado pela própria gestante (auto aborto). Já o Código Penal de 1890, criminalizava o aborto praticado pela própria gestante, além de uma tentativa do legislador de diferenciar o aborto tentado e o consumado, ao especificar os casos de aborto com ou sem expulsão do feto. Nota-se, ainda, que segundo esta cominação legal se o crime tivesse a finalidade de ocultar a própria desonra a pena era consideravelmente atenuada, só autorizando o aborto em casos onde a vida da gestante se encontrava em risco. Verifica-se também que a punição ao terceiro que, nos casos em que o aborto era permitido (aborto necessário), a título de culpa, provocasse o falecimento da gestante por imprudência ou negligência; a cominação legal seria de dois meses a dois anos de reclusão. O atual Código Penal Brasileiro, constituído em 1940, tipifica quatro figuras de aborto: a) o aborto provocado; b) o aborto sofrido; c) o aborto por interrupção do ciclo natural da gravidez; d) e o aborto consentido. O art. 128 deste código traz em seus incisos duas excludentes de ilicitudes: o aborto necessário, casos em que está em risco a vida da gestante, e o aborto sentimental, quando a gravidez é resultante do crime de estupro. Estes artigos se encontram no Capítulo dos Crimes contra a Vida. Vislumbrase que houve a manutenção da punição nos casos de auto aborto, sendo a pena agravada nos casos de grave lesão ou morte da mulher grávida, em decorrência das manobras abortivas. Entretanto, não há mais a discussão entre a necessidade, ou não, da expulsão do feto, para a consumação do abortamento. Observa-se também, que esta foi a primeira vez, no ordenamento brasileiro, que existem casos de excludentes de ilicitudes para o aborto, presentes no art. 128 do CP. Verificando-se assim que só é permitido, no ordenamento brasileiro, o aborto em casos de gravidez resultante do crime de estupro, denominado aborto sentimental, ou em casos em que a vida da gestante se encontra em risco, o chamado aborto necessário. O presente trabalho se preocupará apenas com esta segunda exceção: o aborto sentimental. 107 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 3 A DOGMÁTICA DO ABORTO Tendo em vista que o bem jurídico tutelado no art. 128 do CP, é a vida do feto/nascituro, importante saber quando se inicia a vida deste ser, tanto no aspecto biológico, como no aspecto jurídico-filosófico. 3.1 INÍCIO DA VIDA – CRITÉRIO BIOLÓGICO A medicina estabelece, em média, como prazo de duração, de uma gestação humana normal, 280 dias ou 40 semanas. Considera-se como prazo máximo usual 294 dias, e acima de 300 dias em situação excepcional. Como prazo mínimo para que haja sobrevivência do feto, sem cuidados especiais, 28 semanas ou 196 dias. No entanto, para a obstetrícia: com menos de 7 meses de vida intrauterina, o feto não terá alcançado desenvolvimento suficiente para sobrevida autônoma. [...] este prazo é considerado em relação às condições usuais, sem assistência especial e equipada ao recém-nascido. Sob cuidados médicos, em serviço hospitalar adequado, é possível conseguir-se que os fetos com cerca de 22 semanas de vida intrauterina sobrevivam no mundo exterior.(MARANHÃO, 2002, p. 166) Ocorre que por diversas causas, a evolução normal do concepto pode ser interrompida antes do final da gestação, podendo ser caracterizado como aborto, independendo da fase em que se encontra a gravidez. Para a medicina “o aborto é a interrupção de uma gravidez até o final de 22ª semana de gestação, resultando deste ato a expulsão de um concepto sem vida ou mesmo inviável para vida extrauterina”. (CARDOSO, 2006, p. 119) Entretanto, este conceito não é compartilhado pela Obstetrícia, ramo da medicina, que entende que a interrupção após o sétimo mês de gestação, deve ser denominada parto prematuro. E, as interrupções anteriores a este período devem ser classificadas em aborto ovular, embrionário e fetal. Ainda, vale frisar, que o conceito de aborto previsto no Código Penal não é similar ao conceito obstétrico. 108 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Importante ressaltar também que, no aborto não é necessariamente obrigatória a expulsão do produto da concepção, podendo existir casos de “aborto retido (missedabortion), em que ela não ocorre a despeito da morte espontânea do ovo, embrião ou feto no interior do álveo materno” (CROCE; CROCE JUNIOR, 2004, p.523).Este evento não é criminoso, interessando diretamente à Obstetrícia. Neste trabalho, utilizaremos o termo aborto para o ato de destruição da vida intrauterina, até momentos antes do parto. Isto posto, visa-se necessário ponderar em que momento se inicia a gestação, quando este embrião é considerado pessoa, como demais aspectos relacionados a formação biológica desse ser humano em construção. A gestação ou gravidez, para a medicina legal, é considerada “o período fisiológico da mulher compreendido desde a fecundação do óvulo, ou dos óvulos, até a morte ou expulsão, espontânea ou propositada, do produto da concepção.” (CROCE, CROCE JUNIOR, 2004, p. 490). Neste período, a mulher que concebeu este óvulo, o traz dentro de si e o alimenta. Grande parte da doutrina defende que o início deste estágio fisiológico, ocorre no momento da fecundação, na qual o óvulo passará a ser denominado ovo. Desta forma, considera-se ovo todo o produto da concepção, até momentos antes do parto, não importando o tempo gestacional em que ocorreu a interrupção da gravidez, “seja desde a fecundação até momentos antes do início do trabalho de parto ou o termo, no 9º mês.” (CROCE, CROCE JUNIOR, 2004, p. 524) Este conceito de gravidez, utilizado pela Medicina Legal, entende que a vida tem início na fecundação. Todavia, este conceito não é pacífico, vez que existem doutrinadores que defendem que a gestação se inicia somente de 4 a 6 dias após a fecundação. Isto porque, antes da efetiva fecundação existe a ocorrência da “nidação do ovo na face posterior da parte central do útero, no endométrio, quando então, e só então, passa a alimentar-se a expensas do organismo materno.” (CROCE, CROCE JUNIOR, 2004, p. 490). Assim sendo, embora exista fecundação, não poderia ainda, durante este período, se considerar a existência de uma gestação propriamente dita, tendo em vista que “somente a partir deste evento é que haveria viabilidade do 109 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE desenvolvimento da vida”. (FRANCO; OLIVEIRA, jan/jun 2007, p. 244). Este termo deve ser contado a partir da data da geração. Para os autores que defendem esta teoria, no decorrer deste prazo (quatro a seis dias) “o ovo, em divisão celular, adquire a maturação e a capacidade de implantação, percorrendo a luz tubária até chega à cavidade uterina onde, auxiliado por correntes remoinhantes consequentes aos movimentos miometriais, nida no endométrio”. (CROCE, CROCE JUNIOR, 2004, p. 491). 3.2 TEORIAS SOBRE O INÍCIO DA RELEVÂNCIA ÉTICA DO (PRÉ)EMBRIÃO Segundo a autora Renata da Rocha, são três as teorias que tem como finalidade determinar o início da vida humana, sendo elas: a teoria concepcionista, a teoria genético-desenvolvimentista, e a teoria da pessoa humana em potencial. Todas estas teorias partem de um diferente estágio do processo de desenvolvimento embrionário. Os defensores da teoria concepcionista, entendem a vida humana inicia-se, “com a fertilização do ovócito secundário pelo espermatozoide. A partir desse evento, o embrião já possui a condição plena de ser pessoa, compreendendo, essa condição, a complexidade de valores inerentes ao ente em desenvolvimento” (ROCHA, 2008, p. 74/75). Esta tese é amparada pela Embriologia, a qual entende que “a partir da fusão das duas células germinativas, provenientes de organismos diferentes, deve ser aceita a existência de um novo ser, sobretudo, por ser ele dotado de um sistema único e completamente distinto daqueles que lhe deram origem”(ROCHA, 2008, p. 74/75). Já os defensores da teoria genético-desenvolvimentista, defendem que “o embrião humano adquire status jurídico e moral gradualmente, à medida que seu desenvolvimento avança no tempo” (ROCHA, 2008, p. 76), tal teoria relaciona o início da vida humana às diferentes fases que ocorrem no desenvolvimento embrionário. A teoria da pessoa humana em potencial entende que todo embrião deve ser considerado uma pessoa em potencial. Isto porque: 110 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE [...] não é possível identificar totalmente o embrião humano com a pessoa humana, uma vez que ainda não é dotado de personalidade e, para tanto, o embrião teria que ser capaz de exercer direitos e de contrair obrigações. Por outro lado, também não se permite reduzir seus status a um mero aglomerado de células, uma vez que seu desenvolvimento destina-se, inelutavelmente, à formação de um ente humano. (ROCHA, 2008, p. 88) Importante ressaltar que um número cada vez maior de juristas e médicos embriologistas, tal como o autor Odilon Maranhão, “entendem que o início da vida realmente se dá no exato momento da fecundação, antes, portanto, da nidação” (FRANCO, OLIVEIRA, jan./jun. 2007, p. 244) 3.3. TEORIAS SOBRE O INÍCIO DA RELEVÂNCIA JURÍDICO-FILOSÓFICO DO (PRÉ) EMBRIÃO: Dentro do direito3, bem como no biodireito4 e na bioética5, há uma diferença entre o conceito de pessoa e de humano. Ser humano pode ser considerado todo ser pertencente à espécie “homo sapiens” e pessoa “como todo indivíduo que tem consciência de si, auto controle, senso de futuro e passado, capacidade de relacionar-se com os outros, preocupação outros, comunicação e curiosidade.” (SANCHES; SANCHES in MEIRELLES; RIBEIRO, 2011, p. 134), Os defensores deste entendimento, defendem que o embrião, o feto, a criança com profundas deficiência, bem como o bebe recém-nascido, são todos considerados humanos, pertencentes a espécie “homo sapiens”, entretanto, nenhuma deles “é autoconsciente, tem senso de futuro ou capacidade de se relacionar com os outros” (SANCHES; SANCHES in MEIRELLES; RIBEIRO, 2011, p. 134).Portanto, para eles, é difícil uma defesa da dignidade da vida do feto. Atualmente, vislumbra-se que no Brasil, a vida humana é amparada no âmbito jurídico desde a singamia. 3Direito: conjunto de regras de comportamento social. é a positivação jurídica de permissões de comportamentos médico-científicos, e de sanções pelo descumprimento dessas normas, 5Bioética: “é a parte da Ética, ramo da Filosofia, que enfoca as questões referentes à vida humana (e, portanto, à saúde). A Bioética, tendo a vida como objeto de estudo, trata também da morte (inerente à vida). [...]. Surge como uma resposta democrática da sociedade frente às questões éticas levantas pelas ciências da vida, inerentes ao desenvolvimento técnico e científico ocorrido na segunda metade do século passado. A bioética deve ser entendida como a ética aplicada à vida”. COHEN, Cláudio (2002, p. 27 – 1ª parte e 55 – 2ª parte). 4Biodireito: 111 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Ou seja, da fecundação natural ou artificial do óvulo pelo espermatozoide (CC, art. 2º, Lei nº 11.105/2005, art. 6º, III, in fine, 24, 25, 27, IV, e CP, arts. 124 a 128). O direito a vida integra-se à pessoa até o seu óbito, abrangendo o direito de nascer, o de continuar vivo e o da subsistência, mediante trabalho honesto (CF, art. 7º) ou prestação de alimentos (CF, art. 5º, LXVII e 229), pouco importando que seja idosa (CF, art. 230), embrião, nascituro, criança, adolescente (CF, art. 227), portadora de anomalias físicas ou psíquicas (CF, arts. 230, IV, 227,§1º, II), que esteja em coma ou que haja manutenção do estado vital por meio de processo mecânico. (DINIZ, 2011. p. 46) Isto posto, verifica-se que o texto jurídico brasileiro estabeleceu que a personalidade civil do ser humano começa com o nascimento com vida, sendo salvaguardados os direitos do nascituro desde a concepção. Para tanto, contém uma distinção entre pessoa nascida, pessoa concebida e pessoa não concebida [...] o art. 1.798 legitima a suceder as pessoas existentes ou já concebidas no momento da abertura da sucessão; e o art. 1.799, inciso I, dispõe a respeito da possibilidade de serem chamados a suceder os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, sob a condição de estarem vivas essas ao abrir-se a sucessão. Demonstrando, assim, que são inconfundíveis noções referentes ao nascituro (pessoa concebida) e à prole eventual (pessoa não concebida), a leitura do art. 2º pode demonstrar que a proteção legal da pessoa humana atinge somente o nascituro [...]. (BARBOZA; MEIRELLES; BARRETO, 2003. p. 84/85) Desta forma, o nascituro possui seus direitos patrimoniais resguardados, tais como as disposições testamentárias e doações. Ocorre que, não é unanime na doutrina o reconhecimento deste feto como pessoa. O autor Francisco AMARAL (apud BARBOZA; MEIRELLES; BARRETO, 2003, p. 223/224), ao tratar da condição do feto, entende-a como uma expectativa de direito. Para ele: [...] esta se reconhecendo ipso factum o nascituro como titular de direito em formação e, desde o momento em que se reconhece a titularidade, estamos pressupondo a titularidade, qualidade específica da pessoa humana. [...] além do que se encontra explícito em lei, pode-se também concluir que o nascituro tem personalidade jurídica, pois o feto é considerado, em diversos artigos da lei brasileira, como possível sujeito de direitos. [...] só pode ser titular de direitos quem tiver personalidade, donde considerar-se que, formalmente, o nascituro tem personalidade jurídica. [...] concorda com a concepção de pessoa potencial, ao afirmar que o nascimento não é a 112 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE condição para que a personalidade exista, mas para que se possa consolidar. Já para Damásio de Jesus, perante o direito civil, o nascituro não pode ser considerado pessoa, mas “spes personae”, já que o referido código, utiliza-se da doutrina natalista. Ou seja, o feto será considerado apenas como uma expectativa de ente humano, tendo apenas uma expectativa de direito. Visão esta, não compartilhada pelo direito penal, o qual o considera pessoa, para os efeitos penais, tutelando, desta forma, a vida da pessoa humana. Sobre o tema, o penalista Cezar Roberto BITTENCOURT (2007, p. 128), afirma: O bem jurídico protegido é a vida do ser humano em formação, embora, rigorosamente falando, não se trate de crime contra a pessoa. O produto da concepção – feto ou embrião – não é pessoa, embora tampouco seja mera esperança de vida ou simples parte do organismo materno, como alguns doutrinadores sustentam, pois tem vida própria e recebe tratamento autônomo da ordem jurídica. Quando o aborto é provocado por terceiro, o tipo penal protege também a incolumidade da gestante. E, ainda o médico jurista Genival Veloso de FRANÇA (2007, p. 349): Hoje, em quase todas as legislações do mundo, é o aborto severamente punido, como um crime praticado contra uma vida humana em formação e que tem o direito de prosseguir e nascer. O objeto do crime de aborto não é a mulher, mas a vida que se encontra no álveo materno, embora resguardem-se também a vida e a saúde da gestante, punindo-se os atentados à sua integridade. Por isso é alvo de sanção mesmo a mulher que pratica em si própria aborto, pois o que se visa com isso é unicamente à garantia da existência dessa nova vida. [...] Para muitos, o aborto não deixa de ser um homicídio, embora justificado em circunstâncias especiais. Daí constituir-se uma forma própria de delito com aquela denominação consagrada pela técnica jurídica, embora, antologicamente, sendo a morte de um ser humano, não há que negar a configuração de homicídio. Só não o é em sentido mais profundo unicamente devido ao início da personalidade imposto pelo nascimento com vida, conceito esse fundamentado na doutrina natalista. Para parte da doutrina, parece um contrassenso afirmar que os nascituros teriam seus direitos protegidos antes de nascer, tendo em vista que o código civil brasileiro atribui a personalidade ao nascituro somente ao nascimento com vida, e esta personalidade é a capacidade de ser sujeito de direitos. 113 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Isto porque, para os autores mais tradicionais, “existe uma estreita vinculação entre a titularidade de direitos e a noção de personalidade” (MEIRELLES, 2000, p.37). Como define BEVILAQUA (1955 apud MEIRELLES, 2000, p. 37), a personalidade é “a aptidão reconhecida pela ordem jurídica a alguém para exercer direitos e contrair obrigações”. Ainda: [...] para a maior parte dos juristas contemporâneos [...], personalidade e capacidade de direito eram expressões sinônimas, ambas definidas como “aptidão genérica para adquirir direitos e obrigações”, quando, de fato, tradicionalmente o termo capacidade exprime ideia de medida de quantidade, sendo, portanto, atributo da personalidade jurídica, que é intrínseca ao ser humano e, em razão da qual ele é sujeito e titular de direitos. [...](AMARAL, 1990 apud MEIRELLES, 2000, p. 37) Já Orlando GOMES (1996 apud MEIRELLES, 2000, p. 38), entende que a personalidade é um atributo jurídico, tendo em vista que todo homem, tem a aptidão de “desempenhar na sociedade um papel jurídico, como sujeito de direito e obrigações”. Sendo, “sua personalidade, institucionalizada num complexo de regras declaratórias das condições de sua atividade jurídica e dos limites a que se deve circunscrever”. Caio Mário da Silva PEREIRA (1996 apud MEIRELLES, 2000, p. 38), defende que “a ideia de personalidade está intimamente ligada à de pessoa, pois exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações”. Referida afirmação também é defendida por Rubens Limongi de FRANÇA (1980 apud MEIRELLES, 2000, p. 38), o qual entende, que “em ciência jurídica, pessoa é o sujeito de direitos, isto é, o ente capaz de adquirir direito e contrair obrigações.” Recentemente no julgamento da ADI nº 3510/DF jugou constitucional a lei de biossegurança, e em seu relatório o Ministro Relator Carlos Britto Asseverou que as pessoas físicas ou naturais seriam apenas as que sobrevivem ao parto, dotadas do atributo a que o art. 2º do Código Civil denomina personalidade civil, assentando que a Constituição Federal, quando se refere à "dignidade da pessoa humana" (art. 1º, III), aos "direitos da pessoa humana" (art. 34, VII, b), ao "livre exercício dos direitos... individuais" (art. 85, III) e aos "direitos e garantias individuais" (art. 60, § 4º, IV), estaria falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa. Assim, numa primeira síntese, a Carta Magna não faria de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva, e que a inviolabilidade de 114 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE que trata seu art. 5º diria respeito exclusivamente a um indivíduo já personalizado.(ADI 3520/DF, Rel. Min. Carlos Britto, j. 29/05/2008) Assim, percebesse que o elemento vida, é condição sinequa non, para que seja atribuída a personalidade civil. Para tanto, é necessária a identificação e a comprovação dos sinais vitais deste recém-nascido, através da medicina, vislumbrando-se se houve: “vagidos, movimentos, inalação de ar e sua penetração nos pulmões do recém-nascido, ainda que por período ínfimo” (MEIRELLES, 2000, p. 50). Referidas constatações são necessárias para a caracterização deste feto como pessoa natural. Diante disto, surgiram algumas teorias, que buscam determinar a natureza jurídica do nascituro, estando dentre as principais doutrinas: a natalista, a da personalidade condicional e a concepcionista. 3.3.1 Doutrina Natalista Para os defensores desta teoria, o nascituro não é pessoa, embora tenha seus direitos protegidos. Neste caso, “a personalidade estaria sujeita à condição suspensiva do nascimento com vida. Assim, nascendo a criança, mesmo que por um mínimo instante, viria a adquirir e transmitir todos os direitos reservados à pessoa natural”(LORENTZ, in: SÁ, 2002, p. 345). Entretanto, como consequência desta teoria, se tem que nos casos de aborto ou quando o feto nasce natimorto, considera-se como se nunca houvesse existido vida ou pessoa capaz de obter personalidade. 3.3.2 Doutrina da Personalidade Condicional A presente doutrina sustenta que “a aquisição de direitos e obrigações do nascituro a partir de sua concepção, entretanto com a condição resolutiva de nascer com vida” (LORENTZ, in: SÁ, 2002, p. 345). Para LORENTZ (in: SÁ, 2002, p. 346), esta tese: 115 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE [...] considera existir humanidade na vida embrionária, sendo necessária sua proteção, devido o caráter de existência de uma pessoa em potencial. Entretanto, haveria profundas mudanças nos ramos de direito supraapontados no caso de parto de natimorto, em especial o tocante à linha sucessória. Ela visa proteger a vida em formação, sem entrar em conflito com outras questões jurídicas, tais como, direito sucessório ou de transmissão de propriedade, entre outros. 3.3.3 Doutrina Concepcionista Para esta doutrina, desde o momento da concepção, já existe a vida e a personalidade do nascituro. Desta forma, protege o nascituro em qualquer fase do seu desenvolvimento. Como explica FRANÇA(2004, p.251): Tal teoria concepcionista fundamenta-se na afirmação de que, se o nascituro é considerado sujeito de direito, se a lei civil lhe confere um curador, se a norma penal o protege de forma abrangente, nada mais justo que se lhe reconhecesse também o caráter de pessoa e o considerasse com personalidade civil autônoma. Isso porque o feto herda, transmite, demanda e sua morte intencional é crime. Também, até porque é difícil entender como alguém pode ser considerado ser humano e não ter assegurado o atributo da personalidade jurídica. Para seus defensores, deve haver um reconhecimento da personalidade jurídica do nascituro, seja por meio da reformulação do disposto no código civil, ou pela interpretação extensiva deste dispositivo. Isto posto, importante ressaltar que a teoria adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro é a teoria natalista. FRANÇA (2004, p. 251)entende que esta “política protecionista em favor do feto humano não tem outro sentido senão a imperiosa necessidade de se preservar a mais indeclinável e irrecusável das normas da convivência humana: o respeito pela vida”. Afirma, ainda que “o feto tem capacidade de adquirir personalidade, é pessoa virtual, um ser vivente” (FRANÇA, 2004, p. 261)e mesmo que se quisesse tratar a vida do feto, de uma forma mais técnica, não poderia deixar de lado, o fato dele 116 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE possuir vida biológica (ou também chamada vida intrauterina), o que não deixa de ser considerado vida. Maria Helena DINIZ (2011, p. 45/46) ensina: A vida humana deve ser protegida contra tudo e contra todos, pois este é objeto de direito personalíssimo. O respeito a ela e aos demais bens jurídicos correlatos decorre de um dever absoluto erga omnes, por sua própria natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer. Ainda que não houvesse tutela condicional ao direito à vida, que, por ser decorrente da norma de direito natural é deduzida da natureza do ser humano, legitimaria aquela imposição erga omnes, porque o direito natural é o fundamento do dever-ser, ou melhor, do Direito Positivo, uma vez que se baseia num consenso, cuja expressão máxima é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, fruto concebido pela consciência coletiva da humanidade civilizada. [...] Assim sendo, se não pode recusar humanidade ao bárbaro, ao ser humano em coma profundo, com maior razão o embrião e ao nascituro. A vida humana é um bem anterior ao direito, que a ordem jurídica deve respeitar. O direito ao respeito da vida não é um direito à vida. Esta não é uma concessão jurídico-estatal, nem tampouco, o direito de uma pessoa sobre si mesma. Logo, não há como admitir a licitude de um ato que ceife a vida humana, mesmo sob o consenso de seu titular, porque este não vive somente para si, uma vez que deve cumprir sua missão na sociedade, a existência de uma aperfeiçoamento pessoal. Desta forma, ESTEFAN (2012. p. 151/152), defende que “não há dúvida que referido princípio envolve a proteção integral da vida humana. Muito embora essa não seja um valor absoluto, porque há de ceder diante de conflitos irremediáveis, como se dá nos casos de legítima defesa (da vida) ou estado de necessidade (que ponha em risco a vida)”. Mas, através desta proteção, pode-se dizer que “a pessoa existe como indivíduo único e não somente desde o nascimento, mas também antes disso”. Assim, através de uma análise dos princípios constitucionais brasileiros observa-se que a Constituição Federal consagra uma proteção ao ser humano, desde antes do nascimento com vida, ou seja, quando o feto ainda se encontra no ventre materno. Isto porque, tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, princípio este consagrado no primeiro artigo da Carta Magna (art. 1O, III, CF). 117 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 3.4 O ART. 128, II, CP Atualmente verifica-se que o aborto é praticado em grandes proporções, como forma de solução para a interrupção de uma gravidez indesejada. “Pesquisas recentes revelam o número assustador de abortos praticados no Brasil, sendo, entretanto, escassos os números dos casos que chegaram ao conhecimento da Justiça” (PIMENTEL, in ESTEFAN, 2012. p. 150). Tendo em vista que maior parte destes abortos são realizados de maneira ilícita, hoje não se têm números oficiais de quantos são praticados por ano, sendo estes dados oficialmente desconhecidos. Para o ordenamento jurídico brasileiro existe a) o aborto legal: casos previstos em lei, onde o legislador excluiu a punibilidade do crime, tais como aborto necessário e sentimental; b) e aborto criminoso: interrupção ilícita da gestação, em qualquer de suas fases. Como explica Damásio de JESUS (2012, p. 160), nos casos de aborto legal: A disposição não contém cláusulas de exclusão de culpabilidade, nem escusas absolutórias ou causas extintivas de punibilidade. Os dois incisos do art. 128 contêm causas de exclusão da antijuridicidade. Note-se que o CP diz que "não se pune aborto". Fato impunível em matéria penal é fato lícito. Assim, na hipótese de incidência de uma dos casos do art. 128, não há crime por exclusão da ilicitude. Haveria causa pessoal da exclusão de pena somente se o CP dissesse "não se pune o médico". O presente trabalho versa sobre o aborto sentimental. Esta modalidade de aborto é autorizada quando a gravidez é consequência do crime de estupro. Para tanto é necessário que a gestante consinta para a sua realização. O legislador brasileiro ao criar esta excludente de punibilidade, entendeu que não se pode obrigar a mulher a levar até o final uma gravidez, condenando-a a recordar, diária e perenemente, de uma odiosa violência a que fora submetida. Importante ressaltar, que no presente caso, não há limitação temporal para ser interrompida a gravidez, podendo o aborto ser realizado a qualquer tempo. 118 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Para sua autorização são necessários os seguintes requisitos: a gestante estar grávida, e a gravidez ter sido decorrente do crime de estupro6, e prévio consentimento da gestante, ou, sendo incapaz, de seu representante legal. A portaria nº 1.145/2005, editada pelo Ministério da Saúde, entende não ser necessária a lavratura de Boletim de Ocorrência, entretanto, tornou obrigatória a realização do procedimento de justificação e autorização de interrupção de gravidez. Este processo é realizado em quatro fases (art. 2o): 1) Relato circunstanciado do evento criminoso, realizado pela própria mulher, perante dois profissionais da saúde (art. 3o, caput). 2) O médico deverá emitir um parecer técnico e a mulher receberá atenção de equipe multidisciplinar, cujas opiniões serão anotadas em documento escrito (art. 4o). 3) Caso todos estejam de acordo, lavrar-se-á termo de aprovação do procedimento (art. 5o). E a mulher ou seu representante legal firmará termo de responsabilidade. 4) Realiza-se o termo de consentimento livre e esclarecimento (art. 6o). Como visto, a lei não exige autorização judicial, sentença condenatória ou mesmo processo criminal contra o autor do crime sexual. Essa restrição não consta no dispositivo, e, consequentemente, sua ausência não configura o crime de aborto. Sendo desta forma, necessário apenas a análise do médico para a verificação de indícios da ocorrência do crime de estupro. Em ambos os casos, a prova do crime pode ser produzida por todos os meios em direito admissíveis. O médico deve certificar-se da autenticidade da afirmação trazida pela paciente, quer mediante a existência de inquérito policial, ocorrência policial ou processo judicial, os quais, por meio de diligencias pessoais ou outros meios cabíveis, certificaram a veracidade da ocorrência do estupro. Ademais, caso comprovada a falsidade da informação, somente a gestante responderá criminalmente pelo crime de aborto. (art. 124, §2o) 6As mudanças no Código Penal trazidas pela Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009, alteraram a denominação do Título VI, que passou a ser denominado como Crimes contra a dignidade sexual, em substituição à denominação Crime contra os costumes, utilizada pelo código de 1940. Esta alteração uniu ainda os artigos de atentado violento ao pudor, juntamente com o crime de estupro, assim o artigo 213 do CP passou a ter a seguinte redação: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.” Atualmente, qualquer pessoa (homem ou mulher) pode ser sujeito ativo ou passivo do crime de Estupro, não precisando necessariamente de conjunção carnal. 119 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Referida exclusão foi criada durante a Primeira Guerra Mundial, quando alguns dos países invadidos, tiveram “suas mulheres violentadas pelos exércitos invasores” (FRANÇA, 2007, p. 352).A partir deste fato histórico surgiram no mundo todo, movimentos contrários a “essa maternidade imposta pela violência, pois não era justo que aquelas mulheres trouxessem no ventre o fruto de um ato indesejado, lembrando para sempre a abominação recebida.” (FRANÇA, 2007, p. 352) Desde então, quase todos os ordenamentos jurídicos, permitem o aborto quando a mulher grávida, foi vítima do crime de estupro, entendendo que “não seria concebível admitir que uma pessoa humana tivesse um filho que não fosse gerado pelo seu consentimento ou pelo seu amor” (FRANÇA, 2007, p. 352). Muitos doutrinadores entendem que, no caso de aborto sentimental, a culpabilidade da gestante estaria escusada, tendo em vista, que ela se encontraria em estado de necessidade ou em causa de não exigibilidade de conduta diversa. Já Genival de FRANÇA (2007, p. 352) entende que o legislador ao se justificar a possibilidade do aborto sentimental através do princípio do estado de necessidade (tendo em vista, a ocorrência de grave dano à gestante), “atendeu unicamente a razões de ordem ética e emocional, evitando-se, dessa maneira, a vergonha e revolta da mulher violentada, que teria no filho a imagem de uma ofensa e de uma humilhação, testemunha de sua desgraça e da sua desonra.” Opina ainda, afirmando que [...] mesmo com tais argumentos, essa forma de aborto é difícil de ser justificada sob o ponto de vista jurídico-penal. Seria garantir o direito de atentar contra uma vida, sem que haja nenhuma forma justificável de exclusão da criminalidade como legitima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito. Se não aceitarmos, por tradição e por índole, a pena de morte de um criminoso, por mais cruel e hediondo que seja o crime, como iríamos permitir a morte de um ser inocente? Toda sociedade e toda forma de direito assentam-se no respeito inviolável à vida humana, e esse respeito deve estender-se desde a fecundação até o último alento da criatura. Essa inviolabilidade não é apenas uma convenção ou um princípio, mas o fundamento de todo o direito.[...] É difícil justificar, nesse tipo de aborto, o estado de necessidade. Fazer um mal para evitar outro maior jamais seria legítimo, pois tirar uma vida, mesmo gerada pela violência, não apagaria o efeito. Seria uma ação contra quem não teve participação, nem nenhuma culpa. E tenha-se em vista que a vida é o maior bem da natureza. Deve ainda ter relevância o fato de ser o estupro uma efetivação de difícil prova, e de constituir, essa prática abortiva pelo médico, um ato extremamente simplificado pela sua forma sumária de execução. Infelizmente, nessas situações, a lei deixa de amparar e preservar uma vida humana, com base em sentimentos eminentemente individualistas, o que vem contrastar com todo fundamento 120 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE do Direito. Assim, o aborto sentimental nos enche de terríveis dúvidas, pois não nos parece boa lógica que o sacrifício de uma vida possa repara uma crueldade já praticada. É simplesmente aplicar a pena de morte a um “réu” indefeso e sem culpa, que pagará unicamente pelo crime cometido por outrem: triste forma de se fazer justiça; estranha maneira de se reparar um crime. (FRANÇA, 2007, p. 352/353) Na mesma linha de entendimento, Croce e Croce Jr., são contrários a excludente do aborto em gravidez decorrente de estupro, por se tratar de matéria de extrema divergência doutrinária, será abortado especificamente nos capítulos seguintes. 4 O ABORTO No Brasil, o aborto é considerado um crime, previsto nos artigos 124 a 128 do Código Penal, no qual visa a interrupção do processo natural da gestação, resultando na morte antecipada da vida intrauterina (do concepto), ou seja, morte do produto da concepção sem que tenha condições de sobreviver fora do útero materno. Entretanto, no ordenamento jurídico pátrio, o legislador ao estabelecer o crime de aborto, imputou como excludente de ilicitude o aborto realizado em gestação proveniente do crime de estupro, nos termos do art. 128, II do Código Penal. Neste caso, o legislador brasileiro ao criar esta excludente de punibilidade, entendeu que não se pode obrigar a mulher a levar até o final um gravidez, que a fará recordar, diária e perenemente, de uma odiosa violência a que fora submetida. Quanto a esta excludente existem divergências doutrinárias, tanto autores que defendem a manutenção deste dispositivo legal e entendem necessária a liberação do aborto, como doutrinadores que entendem que referido inciso precisa ser repensado por ofender ao ordenamento jurídico vigente. No entanto, antes de serem analisadas as correntes doutrinarias contrárias e favoráveis ao aborto, visa-se necessário expor dados estatísticos sobre o aborto no Brasil. 121 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 4.1 GRAVIDEZ DECORRENTE DO CRIME DE ESTUPRO: ESTATÍSTICA E ASPECTO PSICOLÓGICO Em uma pesquisa realizada em jurisprudência brasileira sobre estupro, mais especificamente em 101 acórdãos veiculados por revistas especializadas e de grande circulação entre janeiro de 1985 e dezembro de 1994, revelou-se que do total de vítimas analisadas (101 mulheres), 12% engravidaram em decorrência do estupro. Para as pesquisadoras, as autoras Silvia Pimentel, Ana Lúcia Schritzmeyer e Valéria Pandjiarjian, esse percentual pode ser bem mais alto, tendo em vista que grande parte dos crimes de estupro não são relatados a polícia, assim, é muito difícil dimensionar o problema da gravidez resultante do crime estupro. Entendem que, quanto mais íntimo o relacionamento entre a vítima e o estuprador, maior é a clandestinidade do estupro, e consequentemente da gravidez e do aborto. Sendo em sua maioria, os abortos realizados em condições nefastas, podendo gerar além de graves danos à saúde da gestante, também a sua morte. Outra pesquisa realizada em uma universidade paulista, publicada na edição de janeiro/março de 1995 do Caderno de Saúde Pública, no artigo “A Decisão de Abortar: Processo e Sentimentos Envolvidos”, traz que das 5 mulheres que tiveram gravidez decorrentes do crime de estupro, 100% delas realizou o aborto. Referida pesquisa, entretanto, não traz dados psicológicos especificamente destas gestantes, para saber como elas se sentiram em relação ao aborto. Por fim, válido citar ainda, uma pesquisa realizada no hospital paulista Hospital Municipal Dr. Arthor Ribeiro de Saboya (Jabaquara), o qual possui o primeiro programa, no serviço público, voltado ao atendimento da mulher gestante vítima de estupro e que deseja interromper esta gestação. Esta pesquisa foi realizada com gestantes que se submeteram ao programa entre 1989 até setembro de 1993, representando um total de 131 pacientes encaminhadas ao programa. Destas, 33 não estavam grávidas. Das 98 mulheres que estavam grávidas, 52 não puderam ingressar no programa, 46 delas por estarem acima das 12 semanas de gestação, e as outras 06 gestantes por não apresentarem os documentos exigidos para condições de acesso. Portanto, das 131 pacientes que procuraram o programa, somente tiveram acesso 46 delas. 122 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Deste percentual de abortos efetivamente realizados, nenhuma paciente disse ter se arrependido do ato, até o momento da pesquisa. Referida pesquisa, se encontra no artigo “Aborto Legal por Estupro: primeiro programa público do país”, publicado na Revista Bioética, veiculada em novembro de 2009. 4.2 CORRENTES MORAIS FAVORÁVEIS AO ABORTO Os penalistas Julio Fabbrini Mirabete e Renato Fabbrini são representantes da corrente que entende que existem várias razões para a liberação do aborto em todos os casos. Para eles, o Brasil é um país onde grande parte da população não pode e nem consegue manter seus filhos, não podendo assim, o legislador exigir o nascimento destes novos seres humanos. Entendem ainda, que o aborto é um crime raramente punido, sendo desta forma ineficaz a ameaça penal, fazendo apenas com que as mulheres que desejem abortar entreguem-se a profissionais inescrupulosos e com o menor cuidado. Defendem, também, que o aborto nos casos de gravidez decorrente do crime de estupro é uma situação de estado de necessidade ou causa de não exigibilidade de conduta diversa. Por fim, Fabbrini e Mirabete, se filiam a ideia de que a mulher tem o direito de dispor do próprio corpo, sendo este o entendimento de grande parte dos países desenvolvidos que não incriminam o aborto provocado até o terceiro ou quarto mês de gravidez (Suécia, Dinamarca, Finlândia, Inglaterra, França, Alemanha, Áustria, Hungria, Japão, Estados Unidos, etc.). Segundo a antropóloga Débora Diniz as mulheres devem ter o poder de decidir sobre o seu corpo, sendo livres para decidir sobre se desejam ou não reproduzir. Entende ainda, que o embrião é uma entidade biológica sem prerrogativas de direito, por ser para a autora, um ser amoral. Seguindo este entendimento a autora Tereza Rodrigues Vieira, também entende que a questão principal gira em torno do direito da mulher decidir sobre o destino do concepto e sobre seu próprio corpo, não devendo juízes ou promotores fundamentarem suas decisões e pareceres em aspectos religiosos ou preconceituosos. Defende ainda, que o aborto deve ser tratado como questão 123 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE sanitária e pública do País, uma vez que é uma das principais causas de óbito materno no Brasil. Para a autora, a imposição social e jurídica pela manutenção da gravidez ofende diretamente o disposto no art. 226, § 7 o, da Constituição Federal, o qual em sua primeira parte prevê que segundo os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é de livre decisão do casal. Justifica ainda, em seu artigo Autonomia e Atualização da Lei sobre o Aborto, que há pessoas que jamais aceitaram o aborto, em nenhum dos casos, desta forma, não se pode impor uma forma de pensamento, mais sim reconhecer o direito as mulheres que desejam abortar. Em sua opinião, portanto, além dos casos já previstos em lei, deve-se haver uma liberação a todas as mulheres, contemplando a pluralidade da sociedade, aceitando, assim, que o direito da mulher deve prevalecer à vida do feto, que ainda não merece tutela como pessoa humana. Para tanto, acredita que o legislador brasileiro deve se desapegar de normas e costumes ultrapassados, e conjuntamente facilitar o acesso aos meios contraceptivos, sendo eles propagados e colocados à disposição para a população. Ao encerrar o artigo opina dizendo que de nada adianta obrigar as mulheres a ter filhos indesejados, para depois abandoná-lo nas ruas à possibilidade de influência por drogas, pedindo esmolas ou mesmo praticando crimes. Assim, devese cuidar dos que já nasceram e já possuem um destino ameaçado e condenado, porque às vezes não nascer é melhor, do que nascer nestas condições. A autora Aline Mignon de Almeida entende que a exclusão de ilicitude do aborto sentimental tem como razão ser o embrião fruto de um crime, e de consequência de uma violência sofrida pela vítima. Desta forma, seria inconcebível que esta gestante seja obrigada a conceber um filho de um homem que a violentou e que na maioria das vezes não conhece, causando assim, graves e irreparáveis danos na vida desta vítima. Segundo o penalista Guilherme da Souza Nucci, nenhum direito pode ser considerado absoluto, nem mesmo o direito à vida, assim, justifica-se o aborto em circunstâncias excepcionais, como no caso de preservar a vida digna da mãe. Ainda, conjuntamente com referidos autores, a filósofa Marilena CHAUÍ(apud VIEIRA, 2006. p. 38)entende o aborto como 124 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE a ausência de liberdade (imposição social e moral) e como violência. Imposição: há punições e sanções variadas para as mulheres, tanto quando não abortam como quando abortam. Violência física: não só em decorrência das péssimas condições em que é realizado para a maioria das mulheres, mas também porque as mulheres sentem que nele algo é extirpado do corpo, ainda que de forma indolor (...) Violência psíquica: numa cultura cristianizada, na qual há acordo quanto à vida ou não-vida do feto e na qual a maternidade define a essência do feminismo, o aborto surge nas vestes da culpa da falha. Nesta mesma linha o filósofo Maurizio MORI (apud VIEIRA, 2006, p. 38), entende que devem ser levados em consideração as necessidades da mulher, e segundo estas necessidades analisar as condições tanto psicológicas, como econômicas, para tornar então relevante a liberação e aceitação do aborto. Entende que o direito à vida não implica a pretensão de poder ficar ligado ao corpo de uma outro, quando esta ligação for necessária para continuar a viver de forma autônoma, e, por outro lado, a mulher, não perde a faculdade de retirar seu consentimento a uma eventual ligação, mesmo que o tivesse dado (implícita ou explicitamente) antes, ao aceitar a relação sexual. A corrente favorável a liberação do aborto justifica que há um valor crescente quanto ao estágio de desenvolvimento da vida humana pré-natal. Desta forma a vida intrauterina jamais se igualaria em valor à vida do ser humano já nascido; assim, ao depender do estágio da gravidez (desenvolvimento do feto), diferentes valores morais lhe são reconhecidos. Fundamentam ainda, seu discurso, no perigo que o aborto clandestino representa à integridade física de gestantes que à ele se submetem, sem a devida assistência médica adequada. O ponto em comum, entre todos os autores defensores desta corrente, é o fato de que um filho indesejado é um peso insuportável na vida de uma mulher, não devendo jamais este peso ser imposto à ela. Este argumento se fortalece no direito da mulher de livre disposição do corpo; tornando assim o aborto uma matéria de saúde pública. Nesse sentido, o fato não seria típico ou seria uma hipótese de excludente de culpabilidade, por inexigibilidade de outra conduta. 125 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 4.3 CORRENTES MORAIS CONTRÁRIAS AO ABORTO Os autores Croce e Croce Junior são da corrente contrária à liberação do aborto em qualquer circunstância, especialmente no caso de aborto em decorrência do crime de estupro, por entender que tendo em vista a difícil diferenciação do estupro (conforme previsto no dispositivo penal), da gravidez consentida resultante de violência psicológica ou grave ameaça; e a dificuldade de sua comprovação, podendo, desta forma servir de alegação de má-fé para que mulheres que desejam interromper a gravidez, por outros motivos, assim o façam; e ainda, por não ser possível a aplicação da excludente de estado de necessidade, uma vez que, diferentemente dos casos de aborto terapêutico, a vida da mãe, neste caso, não corre risco, não valendo, desta forma, mais que a vida do filho. Afirmam, que em sua opinião, “a morte do nasciturus não reparará, nem castigará a violência sofrida, além de que agrava a instabilidade psíquica de um sem-número de mulheres ao atingirem o período climatérico”(CROCE; CROCE JUNIOR, 2004, p. 531/532). Entendem ainda, que neste caso é impossível se falar em estado de necessidade, situação imprevista de perigo atual, não provocada pela vontade do agente, não se dá inevitavelmente o caso do art. 128, II, do Código Penal, e não pode sequer ser invocado, através do princípio jurídico do “paralelismo” na aplicação da lei in dubiisbenignusinterpretandum, pois, se no aborto terapêutico a vida da mãe vale mais que a do filho, aqui não se evita um mal praticado um mal maior. Aprová-lo é garantir ao médico, como se fora ele senhor de baraço e cutelo, o direito de atentar contra a inviolabilidade da vida humana, fundamento de todo o Direito. É praticar hediondo ato não contra o estuprador, mas sobre um inocente que tem fundamentalmente direito à vida, consoante a Constituição Federal. Acresce que a morte do nasciturus não reparará, nem castigará a violência sofrida, além de que agrava a instabilidade psíquica de um sem-número de mulheres ao atingirem o período climatérico(CROCE; CROCE JUNIOR, 2004, p. 531/532). O autor Walter Vieira do Nascimento considera inadmissível o aborto, quando a gravidez decorre do crime de estupro, devendo haver proteção à vida do embrião ou feto. Na mesma linha, o autor Michel Schooyans entende que toda legislação que libera o aborto, ratifica a ideia de que é a força que institui o direito. Se colocando 126 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE contraditória aos textos constitucionais vigentes, uma vez que deveria ser no mínimo consensual entre todas as sociedades democráticas, o respeito incondicional pelo outro. A autora Maria Helena Diniz defende que o aborto sentimental não caracteriza estado de necessidade, sendo assim, esta excludente de ilicitude não deveria ter sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988, por se tratar de injustificado atentado à vida humana. A corrente doutrinaria que é contrária ao aborto, entende que a vida humana intrauterina tem o mesmo valor do ser humano já nascido, uma vez que, após a concepção humana, não pode-se falar de ser humano em potência, mas sim, de um ser humano de fato. Conforme explica o Relatório de Warnock (apud SILVA, 2003. p. 131) desde que o processo começa não existe uma fase do desenvolvimento que é mais importante que a outra; todas fazem parte de um processo continuo e, se cada fase não se desenvolve normalmente, isto é, no momento certo de sua sequência, todo o desenvolvimento posterior cessa. O autor Genival Veloso de França entende que em especial a liberação do aborto sentimental, é difícil de ser justificada sob o ponto de vista jurídico-penal, tendo em vista que seria uma forma de garantir o direito a atentar contra uma vida, sem que haja alguma das formas de exclusão de ilicitude (legitima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito), uma vez que para o criminoso que comete o estupro, não aceitamos a pena de morte, por mais cruel que o crime praticado seja considerado, não teria sentido permitir a morte de um inocente (o concepto). Entende que a vida humana deve ser inviolável desde a fecundação, não podendo ser esta inviolabilidade somente um princípio, mas sim, um fundamento essencial para todo o ordenamento jurídico. Importante ressaltar, que esta polêmica ainda não foi suficientemente debatida na doutrina e na jurisprudência, não havendo portanto pontos em comum entre as posições contrárias. 127 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS É fato que o ordenamento jurídico brasileiro em sua legislação vigente, preceitua como excludente de punibilidade os autores do crime de aborto nos casos de gravidez decorrente do estupro. Assim o faz tomando como motivação a proteção do direito da vítima em aceitar ou não levar adiante uma gravidez e, consequentemente, uma nova vida, que lhe julgue trazer prejuízos psicológicos e morais. O legislador, ao estabelecer esta proteção, o fez por entender que a vítima não deve ter que conviver com a lembrança de um crime, o que seria equivalente, em alguns casos, a prolongar este ato violento na vida da vítima. Por isso, esta excludente de punibilidade é doutrinariamente denominada aborto sentimental ou honroso. A legislação brasileira adota como marco jurídico para determinação do início da vida o nascimento do feto com vida (teoria natalista). No entanto, protege seus direitos desde a concepção, tanto que, penaliza criminalmente quem realiza, auxilia, ou submete-se a pratica de aborto. Dentro deste contexto, surgiram diversas teorias para definir o conceito de vida, bem como, a partir de qual momento esta vida merece a proteção do Estado. Ë patente, e importante asseverar que o Estado se preocupe com a proteção do nascituro desde sua concepção. Esta dificuldade legislativa em conceituar juridicamente o início da vida, levou os legisladores, inclusive, a apresentar um projeto de lei 478/2007, em discussão no Congresso Nacional, que denomina como nascituro o ser humano concebido, mas ainda não nascido, o qual adquirirá personalidade jurídica ao nascer com vida, mas sua natureza humana é reconhecida desde a concepção, conferindo-lhe proteção jurídica através deste estatuto e da lei civil e penal. Espera-se, com isso por fim a essa inconsistência jurídica, que não consegue determinar o direito a proteção da vida dos nascituros incondicionalmente. Isto porque a Constituição Federal de 1988 ao recepcionar o Código Penal de 1940, especialmente o seu artigo 128, II, estabeleceu uma aparente incongruência jurídica, na qual de um lado manteve este inciso que permite interrupção da gestação em qualquer etapa, nos casos de gravidez decorrente do crime de estupro, 128 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE por razões meramente morais e psicológicas, e de outro estabeleceu constitucionalmente a proteção da vida humana como direito precípuo e inalienável, não permitindo a pena de morte em nenhum caso, independente da motivação. Cabe então ao legislador, analisar de forma ampla e sistêmica todos os aspectos que envolvem esta excludente de punibilidade, para que não venha praticar um ato jurídico parcial, não levando em conta a amplitude do tema e as várias formas de interpretação do direito à vida. Este trabalho não teve como objetivo fazer juízo de valor sobre os aspectos morais do aborto, mas de levantar a controvérsia sobre a extensão do princípio do direito à vida no trato de casos de aborto de gravidez decorrentes do crime de estupro, levando em consideração os direitos constitucionais do concepto, uma vez este reconhecido como ser vivente intrauterino, e carente da proteção do Estado. 129 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS ALMEIDA, Aline Mignon de. Bioética e Biodireito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. BARBOZA, Heloísa Helena (Org.); MEIRELLES, Jussara Maria Leal de (Org.);BARRETO, Vicente de Paulo (Org.). Novos Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal: Parte Especial, volume 2. 2. ed. ref.. São Paulo: Sariava, 2009. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Volume 2: Parte Especial Dos Crimes Contra a Pessoas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. BRASIL. 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Bioética – Temas atuais e seus aspectos jurídicos. Brasília: Consulex, 2006. 132 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE COMENTÁRIOS A RESPEITO DA INADMISSIBILIDADE DAS PROVAS ILÍCITAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO COMMENTS ABOUT THE INADMISSIB OF ILLEGAL EVIDENCE IN CRIMINAL PROCEDURE BRAZILIAN LAW Anna Beatriz Strecker Okamoto1 Alexandre Knopfholz2 1 Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba. Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), Pós-Graduação em Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é professor horista da disciplina de Processo Penal, nos cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: direito processual penal e direito penal. 2 133 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SUMÁRIO Resumo 1 Introdução 2 Do Direito à Prova e Sua Definição 3 Definição de Provas Ilícitas 4 A Inadmissibilidade da Prova Ilícita Segundo a Constituição e o Código de Processo Penal 4.1 Inadmissibilidade Absoluta 4.2 Admissibilidade Processual da Prova Ilícita 4.3 Admissibilidade da Prova Obtida por Meio Ilícito em Face do Princípio da Proporcionalidade 4.3.1 A Proporcionalidade “Pro Reo” e a Admissibilidade das Provas Ilícitas 4.3.2 A Proporcionalidade “Pro Societate” e a Admissibilidade das Provas Ilícitas 5 As Provas Ilícitas por Derivação 6 O Entendimento do STJ e do STF Sobre o Tema 7 Considerações Finais. Referências 134 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO A inadmissibilidade das provas ilícitas diante o direito pátrio é assegurada pelo artigo 5°, LV da Constituição Federal e, portanto, versa sobre direitos e garantias fundamentais. Especificamente em matéria processual penal, tal princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos está previsto no artigo 157 e parágrafos do Código de Processo Penal, o qual sofreu mudanças após o advento da Lei 11.690/2008. O tema é amplamente discutido pela doutrina tendo em vista que se trata de importante limitação à atividade persecutória do Estado no que se refere ao direito à prova. O presente trabalho relata primeiramente o entendimento doutrinário quanto ao direito à prova e sua definição. Após, expõe o conceito de provas ilícitas e suas distinções quanto às provas ilegítimas. Trata-se, em seguida, a inadmissibilidade desta modalidade de provas como um direito garantido pela Carta Magna e pelo Código de Processo Penal, discorrendo ao final quais são as teorias sobre o tema apontadas por renomados autores do direito processual penal e constitucional e à luz da jurisprudência atual. Por fim, analisa-se a questão das provas ilícitas por derivação, de acordo com os parágrafos do artigo 157 do CPP e da Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada. Palavras-chave: Provas ilícitas. Liberdade da prova. Processo penal. 135 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT The inadmissibility of illegal evidence before patriot rights is the right guaranteed by Article 5, LV Federal Constitution and therefore deals with fundamental rights and guarantees. Specifically in criminal procedure, this principle of inadmissibility of evidence obtained by unlawful means, is provided for in Article 157 and paragraphs of the Code of Criminal Procedure, which underwent changes after the enactment of Law 11.690/2008.The topic is widely discussed by the doctrine since it deals with the importance of limiting the activity of the persecutory state with regards to its right to proof. This paper first reported the doctrinal understanding as far as the right to trial and its definition. After, it exposed the concept of illegal evidence and its distinctions to illegitimate evidence. It was then discussed the inadmissibility of this type of evidence as a right guaranteed by the Constitution and the Code of Criminal Procedure, and in closing it expatiated to what are the theories on the theme, mentioned by renowned authors of criminal, procedural and constitutional law in light of current jurisprudence. Finally, we analyzed the issue of illegal evidence by derivation, according to the paragraphs of Article 157 of the CPP and the Theory of the Tree of Poisoned Fruits. Keywords: Illegal evidence. Freedom of proof. Criminal proceedings. 136 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO A inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito é assunto amplamente discutido no âmbito jurídico brasileiro. Com origem no direito processual penal dos Estados Unidos da América, o princípio da inadmissibilidade de provas ilícitas é tutela prevista no artigo 5, LVI da Constituição Federal considerada direito e garantia fundamental de todo e qualquer cidadão brasileiro. Esta norma tem por objetivo assegurar a qualidade do material probatório a ser produzido, introduzido e valorizado no processo. A busca pela verdade real, outro princípio consagrado pelo direito processual pátrio, não pode autorizar a aceitação e utilização de provas contaminadas por atos ilícitos. Por outro lado, outro princípio constitucional tem aberto portas para uma nova interpretação do tema, trata-se do princípio da proporcionalidade. Através deste, novas regras de admissibilidade e de exclusão estão sendo agregadas a determinados meios de provas que por vezes, foram considerados ilícitos. O escopo do presente artigo, portanto, é a análise da admissibilidade ou não das provas obtidas por meio ilícito diante o direito processual penal brasileiro, mediante estudo bibliográfico e jurisprudencial e, ainda, segundo o previsto no artigo 157 do Código de Processo Penal, após o advento da Lei n.11.690, de 9/6/2008. Após breve panorama sobre a teoria do direito a prova e sua definição, trabalhou-se, então, os principais pontos do estudo das provas ilícitas no processo penal brasileiro, quais sejam: o conceito de provas ilícitas, a inadmissibilidade de provas desta natureza segundo o Código de Processo Penal e a Constituição, as principais teses sobre sua admissibilidade ou não no processo e, por fim, a provas ilícitas por derivação. 2 DO DIREITO À PROVA E SUA DEFINIÇÃO O direito a prova é instituto constitucionalmente assegurado visto que se insere nas garantias do contraditório e da ampla defesa dispostas no artigo 5°, LV da Constituição Federal, que prevê “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. 137 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Segundo a doutrina de Alexandre de Moraes, estes princípios fundamentais do Estado de Direito Brasileiro definem-se da seguinte forma: Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo, pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor apresente, ou ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor (MORAES, 2011, p. 113). Com base no exposto, pode-se afirmar que, provar é direito conferido pelas garantias constitucionais acima definidas e conceitua-se como meio pelo qual, busca-se levar ao conhecimento do magistrado a verdade sobre os fatos alegados pelas partes, para que este, somente então, possa chegar a uma verdade jurídica. Mais especificamente em matéria de processo penal, a prova constitui-se como instrumento indispensável para, antes de tudo, estabelecer a existência dos verdadeiros fatos ocorridos à época do delito em julgamento. Fernando da Costa Tourinho Filho (TOURINHO FILHO, 2008, p. 214), no entanto, ensina que a palavra “prova” detêm um vocábulo polissêmico, isto é, pode demonstrar diversos sentidos no âmbito jurídico. Primeiramente, quando se fala em prova, fala-se em atividade probatória, isto é, ato ou conjunto de atos que visam desenvolver a convicção do Juiz a respeito da existência ou não de determinado fato, ou ainda, prova poderá significar resultado, quando ao final do curso do processo o Juiz demonstra sua convicção sobre a existência ou não de uma dada situação de fato e, por fim, prova interpretada como meio, ou seja, como o instrumento probatório que formou a convicção do magistrado. O direito das partes à apresentação de provas que entendam úteis e necessárias para a demonstração da realidade fática de suas pretensões, apesar do seu caráter constitucional, não é, porém, absoluto, mas encontra limites. Nas palavras de Ada Pelegrini Grinover et al.: [...] o processo só pode fazer-se dentro de uma escrupulosa regra moral, que rege a atividade do Juiz e das partes. E é exatamente no processo 138 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE penal, onde avulta a liberdade do individuo, que se torna mais nítida a necessidade de se colocarem limites à atividade instrutória (GRINOVER, GOMES FILHO, FERNANDES, 2011, p. 123). Determinadas regras de admissibilidade e de exclusão de meios de prova são limites aos quais o direito de provas está sujeito. E, novamente, segundo o ensinamento de Ada Pelegrini et al. (GRINOVER, GOMES FILHO, FERNANDES, 2011, p. 124), estas devem ser acolhidas e estabelecidas, por mais que no contexto da investigação dos fatos, algum sacrifício necessite ser feito. 3 DEFINIÇÃO DE PROVAS ILÍCITAS Segundo a doutrina de Aury Lopes Jr., considera-se prova ilícita “aquela que viola regra de direito material ou a Constituição no momento da sua coleta, anterior ou concomitante ao processo, mas sempre exterior a esse (fora do processo)” (LOPES JÚNIOR, 2009, p. 577). Conceito semelhante é dado por Alexandre de Moraes: [...] as provas obtidas por meios ilícitos são entendidas como aquelas colhidas em infringência às normas do direito material (por exemplo, por meio de tortura psíquica), configurando-se importante garantia em relação ao estado (MORAES, 2011, p. 117). Vicente Greco Filho (GRECO, 2010, p. 187) todavia, acredita que a ilicitude da prova se perfaz em três hipóteses. O primeiro caso de ilicitude está no meio de prova que não está previsto em lei e, ainda, não é consentâneo com os princípios gerais do direito processual moderno. A segunda hipótese de ilicitude é a que deriva de imoralidade ou impossibilidade de elaboração de certo material probatório. Enfim, a terceira hipótese decorre da produção de prova por meio de ato ilícito. Em todas as suas modalidades, as provas ilícitas não podem ou devem ser confundidas com as chamadas ilegítimas. As provas ilegítimas, diferentemente das provas ilícitas, violam uma norma do direito processual penal. Ressalta-se que a proibição infringida deve necessariamente, ter natureza exclusivamente processual. Como exemplo, pode-se citar a prova unilateralmente produzida ou juntada fora do prazo legal. 139 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A distinção conceitual entre provas ilícitas e ilegítimas faz-se pertinente principalmente para viabilizar compreensão a respeito dos momentos de obtenção, introdução, produção e por fim, valoração da prova em matéria criminal. Além disto, as distinções entre tais modalidades de prova destacam-se na hipótese da chamada prova emprestada. A prova emprestada trata-se do material probatório obtido a partir de outras provas produzidas em processo alheio que mantém relação com o caso em questão. Eugênio Pacelli exemplifica: Em ação penal instaurada contra determinados réus, é possível, por exemplo, que, no caso de morte por uma testemunha, a acusação obtenha uma certidão de inteiro teor do depoimento por ela prestado em outra ação penal, envolvendo os mesmo fatos e outros acusados. Essa prova, assim obtida, seria denominada emprestada, porque produzida efetivamente em outro processo. Como se percebe, a sua obtenção seria inteiramente lícita, não se podendo falar, ainda, em inadmissibilidade da prova. Todavia, a sua introdução no novo processo e, sobretudo, a sua valoração seriam inadmissíveis, por manifesta violação do princípio do contraditório (PACELLI, 2012, p. 359). Com fulcro nos princípios do contraditório e ampla defesa, o valor probatório da prova emprestada torna-se imediatamente ilícita uma vez que é alcançada com violação a este direito constitucionalmente protegido, por mais que não apresente vícios de natureza processual. 4 A INADMISSIBILIDADE DA PROVA ILÍCITA SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO E O CÓDIGO DE PROCESSO PENAL A inadmissibilidade de provas obtidas com violação de direitos constitucionais tem origem no direito processual penal estadunidense. Os contextos da 4ª e 6ª emenda da Constituição Federal dos Estados Unidos da América trouxeram a tese do chamado “Princípio da Exclusão” ou “Regras de Exclusão” (“exclusionary rule”) através da qual ficava proibida a recepção de provas alcançadas por meios ilícitos em todos os casos de processos federais. Esta norma passou a vigorar a partir do ano de 1914. 140 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A Suprema Corte Americana estendeu as regras de exclusão a todos os tribunais estaduais do país apenas em 1961 com o famoso caso de Mapp v. Ohio. Segundo a obra de Denilson Feitoza cinco fundamentos nascem para a exclusão de provas ilícitas: [...] 1) as implicações da 5ª emenda; 2) a necessidade de impedir uma violação continuada à privacidade individual por meio da introdução da prova ilícita; 3) as implicações naturais do direito de recurso; 4) o imperativo da integridade judicial; 5) a necessidade de dissuadir (prevenir) futuras violações (FEITOZA, 2008, p. 608). Com o advento de novos casos, um sexto argumento surge, o princípio da exclusão vem para evitar a confirmação judicial de ações inconstitucionais da polícia. No sistema brasileiro, a inadmissibilidade de provas ilícitas em matéria criminal é estabelecida através do artigo 5º, LVI da Constituição Federal e do artigo 157 do Código de Processual Penal Brasileiro. Garante o artigo 5º, LVI, da Carta Magna Brasileira: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Em outras palavras, não são admitidas pelo direito brasileiro provas que desrespeitem o princípio da dignidade da pessoa humana ou da racionalidade, bem como, se violarem qualquer norma de cunho constitucional ou legal. Em julgamento da Ação Penal nº 307-3-DF foi decidido em plenário do Supremo Tribunal Federal que: [...] é indubitável que a prova ilícita, entre nós, não se reveste da necessária idoneidade jurídica como meio de formação do convencimento do julgador, razão pela qual deve ser desprezada, ainda que em prejuízo da apuração da verdade, no prol do ideal maior de um processo justo, condizente com o respeito devido a direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, valor que se sobreleva, em muito, ao que é representado pelo interesse que tem a sociedade numa eficaz repressão aos delitos. É um pequeno preço que se paga por viver-se em Estado de Direito democrático. A justiça penal não se realiza a qualquer preço. Existem, na busca da verdade, limitações impostas por valores mais altos que não podem ser violados (...). A Constituição brasileira, no artigo 5º, inciso LVI, com efeito, dispõe, a todas as letras, que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. (STF, Ação Penal 307-3 DF, Plenário, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU, 13 out 1995; RTJ 162/03-340). 141 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE O artigo 157 do Código de Processo Penal, por sua vez, após o advento da Lei nº 11.690/2008, descreve: “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”. Para alguns dos doutrinadores do direito pátrio, como por exemplo Aury Lopes Jr. (LOPES JÚNIOR, 2009), tal redação demonstra-se confusa a medida que não se pode concluir se o termo “legais” refere-se às normas materiais ou processuais. Interpretando-se que o texto legal se refere tão somente às regras de direito material, para as provas ilegítimas, nas quais o vício se dá na dimensão processual, haveria a possibilidade de repetição do ato, visto que não recairia a obrigação de desentranhamento e destruição. O mesmo não ocorre, no entanto, em casos de prova ilícita. Neste mesmo sentido, Vicente Greco Filho (GRECO FILHO, 2010, p. 190) afirma que o legislador trouxe para o preceito legal apenas a preocupação com a ilicitude da prova em sua origem, isto é, a ilicitude no meio de obtenção. Para o autor (GRECO FILHO, 2010, p. 190), prova ilícita não significa exclusivamente descumprimento de uma norma constitucional ou legal, mas uma prova torna-se ilícita quando viola o sistema global da ordem jurídica. O tema da admissibilidade ou não da prova ilícita é amplamente discutido pela doutrina tendo em vista que se trata de importante limitação à atividade persecutória do Estado no que se refere ao direito à prova. Por isso, diversas teorias foram criadas a partir de tal questão, sendo elas: teoria da inadmissibilidade absoluta, teoria da admissibilidade processual da prova ilícita e a teoria da admissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos em face do princípio da proporcionalidade. 4.1 INADMISSIBILIDADE ABSOLUTA A tese dos seguidores desta rigorosa teoria é exata e literal leitura do inciso LVI do artigo 5º da Constituição Federal, não sendo admitida qualquer espécie de exceção quando se trata de violação de direitos constitucionalmente protegidos. Nem mesmo, certa relativização poderia se encaixar em caso de prova obtida de forma ilícita. 142 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A crítica com relação a esta corrente consiste no argumento de que nem mesmo o direito constitucional brasileiro defende um caráter absoluto de direitos e deveres. Nestes termos, aduz Greco Filho: O texto constitucional parece, contudo, jamais admitir qualquer prova cuja obtenção tenha sido ilícita. Entendo, porém, que a regra não seja absoluta, porque nenhuma regra constitucional é absoluta, uma vez que tem de conviver com outras regras ou princípios também constitucionais. Assim, continuará a ser necessário o confronto ou entre bens jurídicos, desde que constitucionalmente garantidos a fim de se admitir, ou não, a prova obtida por meio ilícito (GRECO FILHO, 2010, p. 189). 4.2 ADMISSIBILIDADE PROCESSUAL DA PROVA ILÍCITA Para os adeptos desta corrente, desde que não apresente um vício processual, a prova, por mais que tenha origem ilícita, deverá ser admitida no processo. Contudo, o responsável pela produção da prova ilícita responderia em ação judicial apartada por eventual descumprimento de normal de natureza material, o que poderia se constituir em um delito penal ou ilícito civil. Em suma, o posicionamento desta corrente é de que a vedação processual é a única que realmente deve ter peso em matéria probatória, a violação a normas de direito material deve ser discutida à parte. Esta tese é defendida por um número bem reduzido de seguidores, principalmente no Brasil, visto que, segundo Aury Lopes Jr: [...] a crítica a essa corrente, nasce absolutamente da paradoxal criada: um mesmo objeto, diante da ilicitude com que foi obtido, seria considerado como corpo delito para ensejar a condenação de alguém e, ao mesmo tempo, seria perfeitamente válido para produzir efeitos no processo penal (LOPES JÚNIOR, 2009, p. 579). Além disto, é preciso analisar se tal posicionamento não estaria incentivando a prática de ilegalidades, visto que a expectativa de uma efetiva punição para os produtores da prova é mínima. 143 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 4.3 ADMISSIBILIDADE DA PROVA OBTIDA POR MEIO ILÍCITO EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE A doutrina brasileira, em boa parte, vem adotando a aplicação do principio da proporcionalidade para a admissão de provas ilícitas no processo penal brasileiro. O princípio da proporcionalidade pode ser definido, segundo Pacelli, como “o critério hermenêutico mais utilizado para resolver eventuais conflitos ou tensões entre princípios constitucionais igualmente relevantes baseando-se na chamada ponderação de bens e/ou de interesses (...)” (PACELLI, 2012, p. 364). A origem de tal princípio como forma para aproveitamento de provas obtidas ilicitamente vem da jurisprudência alemã e outros países da Europa. Desta forma, para os seguidores desta corrente, todo caso que envolva um interesse público a ser protegido e preservado, pode, visto sua relevância, acolher qualquer espécie de provas, mesmo que esta tenha descumprido norma legal ou constitucional. Contudo, duas vertentes partem deste posicionamento: aqueles que afirmam que o princípio da proporcionalidade só poderá ser aplicado quando pro reo, e outros que garantem a possibilidade de adequação de tal princípio para ambas as partes. 4.3.1 A proporcionalidade “pro reo” e a Admissibilidade de Provas Ilícitas A aplicação de material probatório ilícito face o princípio da proporcionalidade, neste caso, é possível se, e somente se, for ato favorável à defesa do acusado. Emprega-se a chamada proporcionalidade pro reo, toda vez que se tem conflito entre o direito de liberdade de um inocente e a vedação do uso de provas ilícitas. A primeira, segundo os defensores desta corrente, sempre prevalecerá sobre a segunda. Cita-se como clássico exemplo, a situação em que certo acusado viola direitos particulares à imagem, intimidade, inviolabilidade de comunicação ou domicílio, etc..., por ser o único meio de provar sua inocência. Assim, a proteção do inocente perante o direito processual penal brasileiro é visto como princípio máximo, devendo, por tal razão, prevalecer sobre o sacrifício de outro preceito legal. 144 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Eugênio Pacelli (PACELLI, 2012, p. 367) elucida que são dois os argumentos sobre a aceitação de provas ilícitas em favor do réu: a violação de direitos na busca da prova da inocência poderá ser levada à conta do estado de necessidade, excludente da ilicitude e o princípio da inadmissibilidade da prova ilícita constituindose em garantia individual expressa, não podendo ser utilizado contra quem seu primitivo e originário titular. Destarte, a conduta do réu ao obter prova ilicitamente, estaria amparada no direito brasileiro como causa de exclusão de ilicitude, seja por ser avaliada como legítima defesa ou estado de necessidade e por esta razão, a condução seria da admissão da prova. Diante de tais argumentos, Aury Lopes Jr. (LOPES JÚNIOR, 2009, p. 583) aborda a seguinte questão: uma prova ilícita admitida em processo criminal por força do princípio da proporcionalidade jurídica pro reo, poderia ser igualmente utilizada em outro processo a fim de punir um terceiro? O próprio doutrinador aponta seu entendimento para tal hipótese: A mesma prova que serviu para a absolvição do inocente, não pode ser utilizada contra terceiro, na medida em que, em relação a ele, essa prova é ilícita e assim deve ser tratada (inamissível, portanto). (...) Não existe uma convalidação, ou seja, ela não se torna lícita para todos os efeitos, senão que apenas é admitida em um determinado processo (onde o réu que obteve atua como abrigo do estado de necessidade). Ela segue sendo ilícita e, portanto, não pode ser utilizada em outro processo para condenar alguém, sob pena de, por via indireta, admitirmos a prova ilícita contra o réu (terceiro) (LOPES JÚNIOR, 2009, p. 583). Em suma, a admissão de provas por meios ilícitos está unicamente vinculada ao processo que, supostamente, representa a condenação de um inocente. Não poderia, igualmente, para os adeptos desta vertente, ser utilizado por parte da acusação em processo distinto contra terceiro. 4.3.2 A proporcionalidade “pro societate” e a Admissibilidade de provas ilícitas A hipótese de consentimento de provas ilícitas em favor da acusação por aplicação do princípio da proporcionalidade, em regra, nunca poderia ser aceita. 145 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Contudo, parte da doutrina brasileira tem concordado que em caso de situações excepcionais ou extremas há possibilidade de admissão. Como exemplo de situação excepcional ou extrema pode-se citar o caso exposto na obra de Alexandre de Moraes: Poderíamos apontar a possibilidade de utilização de uma gravação realizada pela vítima, sem conhecimento de um dos interlocutores, que comprovasse a prática de um crime de extorsão, pois o próprio agente do ato criminoso, primeiramente, invadiu a esfera de liberdade pública da vítima, ao ameaçá-la e coagi-la. Essa, por sua vez, em legítima defesa de sua liberdade pública, obteve uma prova necessária para responsabilizar o agente (MORAES, 2011, p. 123). Para o autor (MORAES, 2011, p. 123), todo aquele que pratica um ato ilícito contra a liberdade individual de outrem ou contra a liberdade pública da própria sociedade, não pode rogar a ilicitude de prova apresentada pela acusação a fim de afastar sua responsabilidade penal perante o Estado de Direito. No entanto, Moraes ainda ressalta que esta medida não se trata de efetivo acolhimento de provas alcançadas de forma ilícita, mas sim, de “ato de legítima defesa ante lesão ou ameaça de lesão causada por condutas ilícitas anteriores” (MORAES, 2011, p. 123). Para Eugênio Pacelli (PACELLI, 2012, p. 367) a prova obtida por meio ilícito poderá ser empregada pro societate apenas na hipótese de não haver risco a aplicabilidade potencial ou finalística, em outras palavras, quando não houver probabilidade de incremento ou estímulo de comportamento ilegal pelos produtores do material probatório, apenas mediante esta condição, há de se falar, em tese, em aplicação do princípio da proporcionalidade. Logo, pode-se concluir que um prova obtida por meio ilícito somente poderá ser acatada pro societate desde que não incentive, de maneira alguma, o Estado a violar direitos fundamentais, uma vez que a principal finalidade da noção de provas ilícitas é despersuadir o Estado de violar direitos e garantias fundamentais de todo e qualquer cidadão. 146 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 5 AS PROVAS ILÍCITAS POR DERIVAÇÃO Partindo-se para análise das provas ilícitas por derivação, cabe expor o disposto no nos parágrafos do artigo 157 do Código de Processo Penal Brasileiro: § 1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. § 2º Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. § 3º Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente. Define-se como provas ilícitas por derivação todo material probatório que ainda que produzido de maneira válida, em momento subsequente, se apoia, deriva ou tem fundamento causal em prova já considerada ilícita. Eugênio Pacelli contextualiza a razão pela qual é indispensável haver norma legal vedando a utilização de provas desta natureza: Se os agentes produtores da prova ilícita pudessem dela se valer para a obtenção de novas provas, cuja existência somente se teria chegado a partir daquela (ilícita), a ilicitude da conduta seria facilmente contornável. Bastaria a observância da forma prevista em lei, na segunda operação, isto é, na busca das provas obtidas por meio de informações extraídas pela via da ilicitude, para que legalizasse a ilicitude da primeira (PACELLI, 2012, p. 354). Deste modo, o parágrafo 1° do artigo 157 do Código de Processo Penal adotou a doutrina norte-americana no sentido de que “a árvore má não pode produzir bons frutos”, trata-se da teoria dos fruits of the poisonous tree, cuja tradução é “teoria dos frutos da árvore envenenada”, segundo a qual a ilegalidade das provas ilícitas contamina suas derivações e, portanto, de igual forma devem ser desentranhadas do processo. Algumas restrições, porém, podem ser feitas em relação a tal regra. O próprio texto legal aponta as duas exceções à teoria dos frutos da árvore envenenada: a 147 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE falta de nexo de causalidade entre a prova considerada ilícita e sua derivação ou quando a prova derivada puder ser obtida através de fonte independente. A demonstração de nexo de causalidades neste caso, conforme entende a jurisprudência brasileira, compõem-se pela demonstração inequívoca de contaminação, sendo admitido, contudo, qualquer espécie de comprovação contrária. Vicente Greco Filho (GRECO FILHO, 2010, p. 190), entretanto, ensina que, em verdade, ficará tão somente, a cargo do magistrado, pelos meios comuns de convicção, independente de claras evidências, declarar se o novo material probatório mantém relação de causalidade com prova ilícita anterior. Também, em sentido contrário ao entendimento jurisprudencial, Aury Lopes Jr. afirma que “salvo se ficar inequivocamente demonstrada a independência, as provas subsequentes deverão ser anuladas por derivação.” (LOPES JÚNIOR, 2009, p. 591). Para o autor (LOPES JÚNIOR, 2009, p. 591), é erro grave admitir que o direito processual penal transforme-se em instrumento para legitimar práticas ilegais no que diz respeito, principalmente, a agentes do Estado. Discussão semelhante é feita com relação à segunda exceção demonstrada no parágrafo 1º do artigo 157 do CPP, ou seja, a possibilidade de obtenção por fonte independente. A nova redação do parágrafo 2 do mesmo artigo, trazida pela Lei nº. 11.690/08, é evidentemente vaga, apesar de tentar explanar o que seria “fonte independente”. No entendimento de Eugênio Pacelli: Note-se que a Lei nº 11.690/08 comete um equívoco técnico. No artigo 157, § 2°, ao pretender definir o significado de “fonte independente, afirmou tratar-se daquela que “por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova”. A nosso aviso, essa é a definição de outra hipótese de aproveitamento da prova, qual seja, a teoria da descoberta inevitável, muito utilizada no direito estadunidense. Na descoberta inevitável admite-se a prova, ainda que presente eventual relação de causalidade ou de dependência entre provas (a ilícita e a descoberta), exatamente em razão de se tratar de meios de prova rotineiramente adotados em determinadas investigações (PACELLI, 2012, p. 354). 148 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Segundo o autor, a real definição de fonte independente seria, tão somente, uma prova que não têm laços com os fatos que geraram a produção da prova contaminada. (PACELLI, 2012, p. 355) Aury Lopes Jr. elucida um exemplo de aplicação da teoria da fonte independente: O caso Murray v. United States, em 1988, em que os policiais entraram ilegalmente em uma casa onde havia suspeita de tráfico ilícito de drogas e confirmaram a suspeita. Posteriormente requereram um mandado judicial para busca e apreensão, indicando apenas as suspeitas e sem mencionar o que já haviam encontrado na residência. De posse do mandado, realizaram a busca e apreenderam as drogas. (...) nesse caso, o mandado de busca para justificar a segunda entrada seria obtido de qualquer forma, apenas com os indícios iniciais. Essa fonte era independente e pré-constituída em relação à primeira entrada ilegal (LOPES JÚNIOR, 2009, p. 586). O autor encerra o relato sobre o tema com a seguinte crítica: O princípio da contaminação (fruit of the poisonous tree) constitui um grande avanço no tratamento da prova ilícita, mas que foi, infelizmente, atenuado, a ponto de a matéria tornar-se perigosamente casuística. O tal raciocínio hipotético, a ser desenvolvido para aferir-se se uma fonte é independente ou não, conduz ao esvaziamento do princípio da contaminação (LOPES JÚNIOR, 2009, p. 589). Logo, a inadmissibilidade de todo o material probatório subsequente à prova ilícita nunca deverá ser automática, mas, é preciso, exame individual a respeito de cada situação concreta a fim de analisar se, de fato, houve derivação da ilicitude. Para tanto, indica-se novamente o princípio da proporcionalidade. Nas palavras de Pacelli: Impõe-se, portanto, para uma adequada tutela também dos direitos individuais que são atingidos pelas ações criminosas, a adoção de critérios orientados por uma ponderação de cada interesse envolvido no caso concreto, para se saber se toda atuação estatal investigatória estaria contaminada, sempre, por determinada prova ilícita. Pode-se e deve-se recorrer, ainda mais uma vez, ao critério da proporcionalidade, que, ao fim e ao cabo, admite um juízo de adequabilidade da norma de direito ao caso concreto (PACELLI, 2012, p. 356). 149 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A essência da teoria dos frutos da árvore envenenada trouxe grande avanço para o tratamento das provas obtidas por meio ilícito, porém, infelizmente, este princípio tornou-se dependente de análises casuísticas. 6 O ENTENDIMENTO DO STJ E STF SOBRE O TEMA O entendimento majoritário na jurisprudência quanto às provas de natureza ilícita a longo período tem sido de inadmissibilidade das mesmas, em conformidade com a regra constitucional e legal. No julgado exposto a seguir, a Suprema Corte Constitucional declarou como ilícita, busca e apreensão realizada em quarto hotel quando ainda ocupado sem o devido mandado judicial, por este ser considerado espaço privado. Para tanto, utilizou-se de precedentes do próprio STF que explanavam o entendimento do órgão quanto às provas obtidas por meios ilícitos, inclusive quanto ás suas derivações. E M E N T A: PROVA PENAL - BANIMENTO CONSTITUCIONAL DAS PROVAS ILÍCITAS (CF, ART. 5º, LVI) - ILICITUDE (ORIGINÁRIA E POR DERIVAÇÃO) - INADMISSIBILDADE - BUSCA E APREENSÃO DE MATERIAIS E EQUIPAMENTOS REALIZADA, SEM MANDADO JUDICIAL, EM QUARTO DE HOTEL AINDA OCUPADO - IMPOSSIBLIDADE QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DESSE ESPAÇO PRIVADO (QUARTO DE HOTEL, DESDE QUE OCUPADO) COMO "CASA", PARA EFEITO DA TUTELA CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR GARANTIA QUE TRADUZ LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO EM TEMA DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO EM SUA FASE PRÉ-PROCESSUAL - CONCEITO DE "CASA" PARA EFEITO DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 5º, XI E CP, ART. 150, § 4º, II) AMPLITUDE DESSA NOÇÃO CONCEITUAL, QUE TAMBÉM COMPREENDE OS APOSENTOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO, POR EXEMPLO, OS QUARTOS DE HOTEL, PENSÃO, MOTEL E HOSPEDARIA, DESDE QUE OCUPADOS): NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL (CF, ART. 5º, XI). IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DE PROVA OBTIDA COM TRANSGRESSÃO À GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR - PROVA ILÍCITA - INIDONEIDADE JURÍDICA - RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. BUSCA E APREENSÃO EM APOSENTOS OCUPADOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO QUARTOS DE HOTEL) - SUBSUNÇÃO DESSE ESPAÇO PRIVADO, DESDE QUE OCUPADO, AO CONCEITO DE "CASA" - CONSEQÜENTE NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL, RESSALVADAS AS EXCEÇÕES PREVISTAS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL. – (...). Doutrina. Precedentes. - Sem que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público poderá, contra a vontade de quem de direito ("invito domino"), ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em aposento ocupado de habitação coletiva, sob pena de a prova resultante dessa diligência de busca e apreensão reputar-se inadmissível, 150 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE porque impregnada de ilicitude originária. Doutrina. Precedentes (STF). ILICITUDE DA PROVA - INADMISSIBILIDADE DE SUA PRODUÇÃO EM JUÍZO (OU PERANTE QUALQUER INSTÂNCIA DE PODER) INIDONEIDADE JURÍDICA DA PROVA RESULTANTE DA TRANSGRESSÃO ESTATAL AO REGIME CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS. - A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do "due process of law", que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo. - A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em consequência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do "male captum, bene retentum". Doutrina. Precedentes. A QUESTÃO DA DOUTRINA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA ("FRUITS OF THE POISONOUS TREE"): A QUESTÃO DA ILICITUDE POR DERIVAÇÃO. - Ninguém pode ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente, em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação. Qualquer novo dado probatório, ainda que produzido, de modo válido, em momento subsequente, não pode apoiar-se, não pode ter fundamento causal nem derivar de prova comprometida pela mácula da ilicitude originária. - A exclusão da prova originariamente ilícita - ou daquela afetada pelo vício da ilicitude por derivação - representa um dos meios mais expressivos destinados a conferir efetividade à garantia do "due process of law" e a tornar mais intensa, pelo banimento da prova ilicitamente obtida, a tutela constitucional que preserva os direitos e prerrogativas que assistem a qualquer acusado em sede processual penal. Doutrina. Precedentes. - A doutrina da ilicitude por derivação (teoria dos "frutos da árvore envenenada") repudia, por constitucionalmente inadmissíveis, os meios probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento ulterior, acham-se afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por efeito de repercussão causal. Hipótese em que os novos dados probatórios somente foram conhecidos, pelo Poder Público, em razão de anterior transgressão praticada, originariamente, pelos agentes da persecução penal, que desrespeitaram a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar. Revelam-se inadmissíveis, desse modo, em decorrência da ilicitude por derivação, os elementos probatórios a que os órgãos da persecução penal somente tiveram acesso em razão da prova originariamente ilícita, obtida como resultado da transgressão, por agentes estatais, de direitos e garantias constitucionais e legais, cuja eficácia condicionante, no plano do ordenamento positivo brasileiro, traduz significativa limitação de ordem jurídica ao poder do Estado em face dos cidadãos. - Se, no entanto, o órgão da persecução penal demonstrar que obteve, legitimamente, novos elementos de informação a partir de uma fonte autônoma de prova - que não guarde qualquer relação de dependência nem decorra da prova originariamente ilícita, com esta não mantendo vinculação causal -, tais dados probatórios revelar-se-ão plenamente admissíveis, porque não contaminados pela mácula da ilicitude originária. - A QUESTÃO DA FONTE AUTÔNOMA DE PROVA ("AN INDEPENDENT SOURCE") E A SUA DESVINCULAÇÃO CAUSAL DA PROVA ILICITAMENTE OBTIDA DOUTRINA - PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - 151 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE JURISPRUDÊNCIA COMPARADA (A EXPERIÊNCIA DA SUPREMA CORTE AMERICANA): CASOS "SILVERTHORNE LUMBER CO. V. UNITED STATES (1920); SEGURA V. UNITED STATES (1984); NIX V. WILLIAMS (1984); MURRAY V. UNITED STATES (1988)", v.g..(RHC 90376, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 03/04/2007, DJe-018 DIVULG 17-05-2007 PUBLIC 18-05-2007 DJ 18-05-2007 PP-00113 EMENT VOL-02276-02 PP-00321 RTJ VOL-00202-02 PP-00764 RT v. 96, n. 864, 2007, p. 510-525 RCJ v. 21, n. 136, 2007, p. 145-147) O Superior Tribunal de Justiça demonstra entendimento semelhante sobre o tema. Assim, tem julgado na esteira da interpretação ditada pelo STF, ou seja, não admite, na grande maioria das vezes, provas obtidas por meios ilícitos nos processos em que atua. Nesse sentido, apresentam-se as seguintes decisões: PROCESSUAL PENAL – HABEAS CORPUS – ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA – INIMPUTABILIDADE – RECURSO – NOVO LAUDO – PROVA EMPRESTADA – PRONÚNCIA – NULIDADE – [...] Laudo pericial realizado em outro processo e anexado por cópia na fase recursal constitui prova emprestada, qualificada como prova ilícita, porque produzida com inobservância dos princípios do contraditório e do devido processo legal, não se prestando para embasar sentença de pronúncia. Habeas corpus concedido. (STJ – HC – 14216 – RS – 6ª T. – Rel. Min. Vicente Leal – DJU 12.11.2001 – p. 174). CONSTITUCIONAL – PROCESSUAL PENAL – HABEAS-CORPUS – PRISÃO EM FLAGRANTE – AÇÃO PENAL – PROVA ILÍCITA, VIOLAÇÃO A DOMICÍLIO – TRANCAMENTO – [...] São desprovidas de validade jurídica o auto de prisão em flagrante e a subsequente ação penal fundados em provas ilícitas, obtidas por meio de operação policial realizada com vulneração ao princípio constitucional da inviolabilidade do domicílio. Recurso ordinário provido. Habeas-corpus concedido. (STJ – RHC 8753 – SP – 6ª T. – Rel. Min. Vicente Leal – DJU 11.12.2000 – p. 244). Entretanto, não é possível afirmar que a jurisprudência acerca da questão da inadmissibilidade de provas ilícitas no processo penal está pacificada. Pode-se notar que, em contramão à maioria, existem julgados que escolheram aplicar o princípio da proporcionalidade sobre tal matéria, entretanto, apenas se tratar de proporcionalidade pro reo, conforme se aduz a seguir: HABEAS CORPUS: CABIMENTO: PROVA ILÍCITA – 1. Admissibilidade, em tese, do habeas corpus para impugnar a inserção de provas ilícitas em procedimento penal e postular o seu desentranhamento: sempre que, da 152 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE imputação, possa advir condenação a pena privativa de liberdade: precedentes do Supremo Tribunal. II. Provas ilícitas: sua inadmissibilidade no processo (CF, art. 5º, LVI): considerações gerais. 2. Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do processo (CF, art. 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real no processo: consequente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade – à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira – para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação. [...] ( STF – HC 80949 – RJ – 1ª T. – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 14.12.2001 – p. 26) Deste modo, depreende-se dos julgados acima expostos que, em matéria de inadmissibilidade de provas, já é possível verificar que a jurisprudência brasileira tem adotado uma postura mais garantida, concedendo certa prevalência a direitos fundamentais sobre a atividade persecutória do Estado. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Dos princípios do contraditório e ampla defesa nasce o direito à prova, ou seja, ambas as partes de um processo terão oportunidade de apresentar certo conjunto probatório que comprove a realidade fática alegada. Entretanto, certas ressalvas a este direito devem ser consideradas, dentre elas está o princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos. Tal princípio encontra-se assegurado no artigo 5º, LVI, da Constituição Federal e também, mais especificamente em matéria processual penal, no artigo 157 do Código de Processo Penal. Estas normas, conforme assinala Eugênio Pacelli, não visam somente propósitos éticos, mas em verdade, “atuam no controle da regularidade da atividade estatal persecutória, inibindo e desestimulando a adoção de práticas probatórias ilegais por parte de quem é o grande responsável pela sua produção” (PACELLI, 2012, p. 335). Da análise da doutrina e jurisprudência colecionadas neste estudo, constatouse que, no ordenamento jurídico brasileiro, a regra sempre será a inadmissibilidade de provas que violam normas constitucionais ou legais, devendo ser imediatamente desentranhadas do processo. 153 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Ainda assim, pode-se concluir que já existem registros de excepcional admissão desta espécie de prova, porém apenas se constatada ameaça à dignidade humana ou à liberdade pública de um indivíduo. Trata-se da aplicação da teoria da proporcionalidade como forma de correção às distorções sucedidas da aplicação rígida do preceito constitucional acolhendo, assim, o uso da prova viciada, mas somente em favor do acusado. Existe, ainda, certa corrente minoritária que defende o uso da teoria da proporcionalidade inclusive em favor da acusação. Contudo, esta interpretação não pode ser verificada na jurisprudência brasileira. A mesma regra das provas ilícitas persiste quanto às chamadas provas ilícitas por derivação, ou seja, todo material probatório que ainda que produzido de maneira válida, em momento subsequente se apoia, deriva ou tem fundamento causal em prova já considerada ilícita. Não obstante, tais provas apenas deverão ser vetadas se realmente mantém nexo causal com a prova considerada ilícita ou se não havia possibilidade de serem obtidas por outra fonte independente. É importante destacar, contudo, que tanto a definição de nexo causal, quanto a de fonte independente ainda é muito controvertida e discutida pelos doutrinadores do direito processual penal brasileiro. Por fim, diante o uso inadequado de qualquer espécie de prova obtida por meio ilícito, deve-se em primeiro lugar requerer o desentranhamento das mesmas, ou se a ação penal encontra-se fundada tão somente em provas ilícitas a consequência deverá ser o trancamento do processo, ou ainda, será devida a decretação de nulidade de sentença condenatória se esta teve como base provas desta natureza ou provas ilícitas por derivação. 154 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Processual Penal. Habeas-corpus. Prova emprestada ilícita. Habeas-corpus nº 14.216, da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 12 de novembro de 2001. DJU, p. 174. Juris Síntese Millennium: Legislação, Jurisprudência, Doutrina e Prática Processual, JUL/AGO2004, CD-ROM. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Processual Penal. Recurso em Habeascorpus. Prova ilícita, violação a domicílio. Recurso em Habeas-corpus nº 8.753, da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 11 de dezembro de 2000. DJU, p. 244. Juris Síntese Millennium: Legislação, Jurisprudência, Doutrina e Prática Processual, JUL/AGO2004, CD-ROM. FEITOSA, Denilson. Direito Processual Penal: teoria, crítica e práxis. 5. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008. GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. GRINOVER, Ada Pelegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. As Nulidades no Processo Penal. 12. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2011. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012. TOURINHO, Fernando da Costa Filho. Processo Penal. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 155 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 156 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE INFÂNCIA E CRIMINALIDADE: A REPRESENTAÇÃO DO UNIVERSO INFANTO-JUVENIL MARGINAL PELO DISCURSO CRIMINOLÓGICO NO BRASIL (1890-1927) CHILDHOOD AND CRIME: THE REPRESENTATION OF THE JUVENILE UNIVERSE BY THE CRIMINOLOGICAL SPEECH IN BRAZIL (1890-1927) Bernardo Pinhón Bechtlufft 1 Mario Luiz Ramidoff2 Acadêmico do curso de Direito do 10º período do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Graduado pelo Curso de Graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1991); Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002); Doutor pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná (2007). Pósdoutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2012); Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná; Professor Titular do Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba; Professor do Centro Universitário Internacional - Uninter; Experiência na área de Direito, com ênfase em: Direito da Criança e do Adolescente; Direito Penal; Ministério Público; Direito Procesual Penal; Criminologia; e Política Criminal. 1 2 157 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 158 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO A partir da concepção traçada por Phillipe Ariès para a infância, isto é, compreendendo-a não a partir de um pressuposto naturalístico, uma etapa necessária da vida humana, mas sim como um constructo histórico-social, podemos afirmar que o século XX é o século do efetivo reconhecimento da infância como fase autônoma da vida, distinta ao universo adulto, e, neste sentido, carecedor de uma específica tutela do Estado na formulação de garantias e na elaboração de específicas políticas públicas de proteção. O presente trabalho, por sua vez, tem por objeto a reconstituição da trajetória de argumentos e representações da infância e da adolescência pelo discurso jurídico e criminológico no Brasil no período de 18901927. Assim sendo, especificamente no que tange à articulação entre o universo infanto-juvenil e a violência estrutural de uma condição marginal, analisamos, no conjunto de argumentos sobre o menor infrator, rupturas e continuidades no que tange ao paulatino deslocamento de uma perspectiva autoritária e repressiva para os primeiros lineamentos de uma vocação democrática para a proteção da criança e do adolescente. Palavras-chave: História do Direito; Criminologia; Direito Penal; Infância e Adolescência. 159 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT According to the design drawn by Phillipe Ariès for childhood, comprehending it not from a naturalistic assumption, a necessary stage of human life, but as a historicalsocial construct, we can say that the twentieth century is the century of the effective recognition of childhood as an autonomous stage of life, distinct from the adult universe, and in this sense, it requires a specific state protection in the formulation of guarantees and a development of specific public policies. This work, in turn, is engaged in the reconstruction of the trajectory of arguments and representations of childhood and adolescence by legal and criminological discourse in Brazil from 1890 to 1927. Thus, specifically with respect to the relationship between childhood and the structural violence of a marginal condition, we analyze, at the set of arguments about the juvenile offender, ruptures and continuities in relation to the gradual displacement of an authoritarian and repressive perspective for the first lineaments of a democratic vocation for the protection of children and adolescents. Keywords: History of Law; Criminology; Criminal Law; Childhood and Adolescence. 160 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem por objetivo analisar a representação do menor infrator pelo discurso jurídico e criminológico no Brasil. Para tanto, fixar-nos-emos nos trabalhos de juristas, criminólogos, médicos e penitenciaristas nos primeiros anos do Período Republicano, mais especificamente ao longo dos anos 1890 e 1927, ou seja, desde a edição do Código Penal Republicano até a formulação do primeiro documento normativo que veio a dotar, especificamente, a criança e do adolescente de um estatuto jurídico próprio: o Código de Menores. Neste sentido, em um esforço de síntese, permitimo-nos uma articulação de três temáticas caras à historiografia ao longo do século XX - o direito, a infância e a adolescência e a violência - a fim de nos indagarmos acerca do alcance do caráter protetivo do arcabouço legal que se delineia no período trabalhado. O mal-estar em torno à infância, seja relativamente às práticas criminosas do universo marginal ou à tecnologia da violência constituída no seu enfrentamento, a permear o trabalho de todos os autores aqui analisados, se articula a partir de quais pressupostos? Afinal, por tais discursos, há que se falar em uma outra relação da sociedade brasileira da Primeira República com a infância, a se projetar numa paulatina modificação das práticas sociais em torno ao combate ao crime e à marginalidade dos jovens infratores? Como se articula a tensão, tão presente no discurso jurídico, entre a repressão da criminalidade e a proteção da sociedade no que tange à criminalidade infanto-juvenil nas cidades brasileiras do início do século XX? 2 O SURGIMENTO DA PROPOSTA CRIMINOLÓGICA E A DELINQUENCIA INFANTO-JUVENIL. A transição do século XIX para o século XX representa, para a análise do crime e da criminalidade, um momento de profundas transformações no tocante à quebra dos paradigmas sob os quais o campo jurídico esteve assentado. Aqui, o desenvolvimento de estudos antropológicos e sociológicos, aliado aos avanços científicos nos ramos da psiquiatria, psicologia e medicina, acabaram por se traduzir em uma nova percepção do homem e da sociedade, necessariamente transposta para o discurso sobre o fenômeno delitivo. No cerne destas modificações, ganha 161 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE corpo no debate intelectual a criminologia, uma proposta de compreensão científica do crime, do criminoso e do sistema punitivo que paulatinamente se afastaria dos postulados metafísicos do pensamento iluminista da Escola Clássica. Deste modo, tendo em vista a necessidade de compreender o pensamento jurídico e criminológico em torno à infância e adolescência no período destacado, o presente capítulo acaba por fazer uma pequena incursão sobre a história da constituição do campo criminológico, como resposta aos postulados da Escola Clássica. Após, daremos atenção ao modo como este campo em constituição trabalhou o problema da delinquência infanto-juvenil no mundo, especialmente no que tange ao trabalho de três de seus principais autores: Cesare Lombroso (18351909), Enrico Ferri (1856-1929) e Raffaele Garófalo (1851-1934). Pautada por uma perspectiva em que se mesclavam o contratualismo (Hobbes, Locke e Rousseau) e o jusnaturalismo (Grotius), a Escola Clássica do Direito Penal (Beccaria, Carrara) representa a transição de um pensamento essencialmente filosófico para uma concepção ainda profundamente metafísica, porém juridicamente fundada, na elaboração dos conceitos de crime, responsabilidade penal e pena (BARATTA, 2002, p. 32-33). Note-se, neste sentido que a Escola acaba por tomar como pressuposto básico de análise a ideia cristã de livre-arbítrio. Sendo livre e consciente o indivíduo, sendo a liberdade um direito natural, que antecederia a sua existência, caberia a ele orientar-se na vida em sociedade, de modo racional, seja pela prática do ato lícito ou pelo ilícito. Deste último, em se violando um dever de conduta imposto por seus iguais, surgiria o direito do Estado à persecução criminal, a fim de retribuir (Kant, Hegel), através da imposição de uma pena proporcional à violação do pacto social expresso na lei (Feuerbach), a culpa do agente pelo cometimento do delito. Deste modo, a proposta da Escola Clássica representa a primeira tentativa de elaboração do direito penal em torno ao postulado teleologicamente redutor (ZAFFARONI, 2010, p. 62) , isto é, de contenção ao poder punitivo. Ante as práticas punitivas do Estado Absolutista, de cariz tirânico, autoritário, inquisitivo e persecutório, seus autores traduziriam a necessidade de elaboração de um discurso calcado na racionalização de meios e métodos penais, bem como na humanização da reprimenda. Vedações à tortura, aos castigos cruéis, às penas de morte: gradativamente o espectro punitivo adquire uma outra feição, distanciada dos 162 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE barbarismos praticados no medievo, afirmando-se a liberdade do cidadão ante o exercício leviatânico do poder pelo Estado. Ocorre, porém, que longe de se converter em um imperativo civilizatório e/ou progressista, o caminho traçado por este Direito Penal em gestação revelar-se-ia bem menos nobre. Assistimos aqui, em realidade, a um deslocamento paulatino das práticas punitivas, isto é, desde um ethos aristocrático, de proteção do status quo de uma sociedade estamental e nobiliárquica, para a afirmação de uma vocação protetiva dos interesses de uma classe burguesa, em ascensão. Assim sendo, com o avanço do capitalismo, o Direito Penal acaba por se converter no braço armado do capital na materialização dos desígnios desta nova classe dominante. Por um lado, ele garante para si o espaço de liberdade frente à atuação de um Estado centralizador e autoritário, contra o qual a expansão do capital encontrava uma barreira real. Por outro, encontrará nele um poderoso aliado na subjugação de grupos oprimidos, relativamente desorganizados, que, progressivamente, conseguem catapultar as suas demandas ao espaço público, contra o capital, pela afirmação do trabalho. É neste contexto que surge a criminologia. Do ponto de vista econômicosocial, elucida uma modificação nas estruturas de pensamento em virtude do conjunto de transformações políticas e sociais que acabam por convulsionar a ordem social europeia, dado o avanço do capitalismo internacionalista (imperialismo) e a afirmação, no locus urbano, de uma grande massa de trabalhadores e miseráveis. Trata-se, portanto, de uma resposta que atende aos anseios da nova classe dominante, a burguesia nacional, em um momento de crise do capitalismo, que não logrou êxito na transferência a territórios coloniais da Ásia e África do excedente populacional das cidades europeias convulsionadas, ainda em expansão. No que tange ao espectro ideológico, vislumbramos o diálogo do pensamento positivista e criminológico com a ideologia da defesa social e do fardo do homem branco, um conjunto eclético de idéias legatárias do pensamento positivista, cientificista, higienista, racialista e do darwinismo social que se prestaram à elaboração de uma “nobre” justificação à empresa imperialista. Sem duvida, o ambiente cultural da Belle Époque era propício para a propagação de tal ideário. A inexistência de conflitos na Europa durante a Pax Armada (1885-1914) possibilitava a crença romântica na potencialidade do indivíduo, no progresso da humanidade e 163 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE no Estado Nacional. Nas ciências humanas, o ambiente é de otimismo: a sociedade se apresentava como passível de controle e interferência pela sociologia, denominada física social, e o darwinismo social acabaria por introduzir a questão racial nos círculos de debates intelectuais do século XIX. O homem branco seria, portanto, o responsável pela tradução de todos os imperativos civilizatórios que se impunham nestes círculos às parcelas bárbaras e incultas da humanidade. Assim, compreendendo-se a ideologia do contexto histórico em torno ao binômio civilização x barbárie, entendemos que, se a empreitada imperialista acabava por se justificar como uma contraprestação da barbárie pelos grandes serviços prestados pelo homem branco ao apresentar-lhe a civilização, esta nova concepção do Direito Penal acaba por se traduzir no instrumento, por excelência, de afirmação de uma identidade nacional e luta contra uma alteridade interna, presente no seio dos Estados Nacionais. A diferença frente ao alter, aqui, já não é mais uma questão relativamente à ordem sociocultural ou um objeto de análise científica, mas sim um verdadeiro instrumento para a distensão política entre homens que não conseguem, ou melhor, não pretendem se ver iguais. Neste sentido, relativamente à dimensão ideológica do discurso, permitimonos afirmar que a transição do pensamento clássico para o pensamento criminológico e positivista representa não propriamente uma ruptura (ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2006, p. 156), mas sim a continuidade de uma visão de mundo centrada na luta contra alteridades socioculturais, conferindo-se legitimidade ao exercício do poder punitivo, em defesa da sociedade, da identidade nacional, contra uma alteridade ressignificada e redimensionada: o delinquente. Por fim, do ponto de vista científico e metodológico, a criminologia e o positivismo constituem uma ruptura com o pensamento filosófico iluminista que se projetava sob o campo da dogmática jurídico-penal, através de uma aproximação com os estudos das ciências humanas e naturais (sociologia, antropologia, psicologia, psiquiatria). A dominar boa parte do debate intelectual em torno aos postulados do Direito Penal no fim do século XIX, o positivismo formularia uma série de críticas à existência do direito natural, conferindo-se ao direito positivo a exclusividade sobre o pensamento jurídico como um todo. A ideia de livre-arbítrio, no que diz respeito ao direito penal, se vê igualmente rechaçada pelo surgimento desta corrente interpretativa, admitindo-se a existência do crime e do criminoso como 164 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE “patologias sociais” (BITENCOURT, 2010, p. 82). Neste sentido, há clara predileção pelo estudo dos determinantes e condicionantes a influir no comportamento do criminoso, encarados seja em uma perspectiva biológica/psicológica (vertente antropológica) ou em sua relação com o meio físico e social (vertente sociológica). Em outras palavras, a liberdade do indivíduo na prática do ato criminoso é afastada, seja porque naturalmente ele revela sob uma feição hereditária, um “atavismo”, uma “demência moral” (Lombroso), ou porque fatores endógenos - como o processo de socialização e o meio físico - viriam a influir, como tendências decisivas, na formação de um comportamento antissocial, uma personalidade criminosa (Ferri). Disto resulta uma verdadeira revolução na forma de se compreender o direito penal, deslocando-se o foco da análise da reprovabilidade do ato à periculosidade, temebilidade do agente. A persecução criminal, do mesmo modo, se permite articular sob um novo aspecto, para além da feição retributiva, atribuir uma sanção pelo mal causado, agora o que se pretende é antes a defesa social, extirpando da vida em sociedade seus elementos perigosos, patológicos, indesejáveis. No centro deste debate no campo jurídico e criminológico inaugurado pela Escola Positivista, constitui-se uma verdadeira panaceia de discursos sobre variados tipos criminosos, dentre os quais três mereceram especial destaque: o louco, a mulher e, foco deste trabalho, o menor infrator. Cesare Lombroso (1835-1909), médico sanitarista italiano, é considerado o fundador da criminologia, sendo responsável pela primeira elaboração de um discurso calcado na explicação do fenômeno delitivo, em contraponto à lógica eminentemente imputativa da Escola Clássica. Para este autor, o crime pode ser compreendido a partir de um espectro causal, isto é, como o resultado de um “atavismo”, uma deformação consistente do subdesenvolvimento mental e corpóreo do indivíduo. Neste sentido, poder-se-ia identificar no sujeito, através de seus “estigmas” físicos, os indicativos de uma mentalidade criminosa, inata, a interferir deterministicamente sobre o seu comportamento em sociedade. Note-se, neste particular, o contraponto feito à ideia de livre-arbítrio, uma vez que, destinando foco aos caracteres biopsicológicos, Lombroso acaba por afastar a possibilidade de o sujeito conduzir a sua ação livremente, conforme a sua vontade. Assim sendo, paulatinamente seria concebida outra lógica punitiva, distanciada da 165 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ideia de responsabilização moral do sujeito, na aplicação de uma pena, para afirmarse um discurso afeito à periculosidade do agente, destinando-lhe uma medida de segurança em razão do desígnio de proteção social. O delito, vislumbrado como “elemento sintomático da personalidade do autor” (BARATTA, 2002, p. 38), deixa de ser uma medida meramente retributiva, calcada no agente, para se constituir em uma reação social a um fato perigoso, pois patológico, indesejável. Assim sendo, Cesare Lombroso, em O Homem Delinquente, voltaria o seu olhar para a infância porque nesta é que se expressariam os primeiros aspectos de uma personalidade criminosa, a se caracterizar pelos sentimentos de “cólera”, “vingança”, “ciúme”, “mentira”, “crueldade”, “preguiça” e “vaidade”, projetando-se sobre práticas perniciosas que denotariam a falta de um “senso moral” nas crianças: [...] os germens da demência moral e da delinquência encontram-se, não excepcionalmente, mas normalmente nas primeiras idades do ser humano. No feto, encontram-se frequentemente certas formas que no adulto são monstruosidades. O menino representaria como um ser humano privado de senso moral, este que se diz dos frenólogos um demente moral, para nós, um delinquente nato (LOMBROSO, 2010, p. 59) Deste modo, a externalização de comportamentos tais como a revolta de “quando não querem tomar banho” ou a agressão levada contra a ama de leite, quando esta “procurava retirar a teta”, eram vislumbrados por Lombroso como primeiras manifestações de um atavismo que se projetaria sob o desenvolvimento biopsíquico do homem adulto. Considerando-se a delinquência seria uma característica inata, presente na constituição orgânica do indivíduo, adquirida hereditariamente, conclui Lombroso pelo crime como resultado da impossibilidade de orientação da ação, desde a infância, conforme a vontade, livre e consciente. Frise-se, contudo, que o peso conferido aos caracteres antropológicos no pensamento lombrosiano merece algumas advertências, notadamente no que tange à alegação de que o autor em questão teria negligenciado fatores psicológicos e sociais (BARATTA, 2002, p. 39). Fato é que Lombroso vislumbraria, relativamente à infância e juventude, o processo de socialização do jovem como meio de se aplacar este impulso primitivo de um ser degenerado. Ora, ainda que considere a personalidade inata de uma mente perigosa, o criminólogo italiano encara a possibilidade de a sociedade se voltar contra a demência moral do indivíduo, no 166 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE curso deste processo de socialização, interrompendo-se, pelo contato com a família e, principalmente, pela educação, a explicitação de algo que já lhe fora determinado biologicamente: a vida voltada ao crime. [...] tem-se a natural explicação de como a demência moral se originou só por falta de todo o freio nos excessos desde a infância, cujos maus hábitos não interrompidos pela educação, seria como uma continuação. Esses meninos, disse Campagne falando dos candidatos à demência moral, são insensíveis aos louvores e às censuras. Não sentem quando o seu comportamento se torna penoso à sua família. (LOMBROSO, 2010, p. 71) De outra sorte, o processo de socialização é encarado, pelos autores da vertente sociológica, não como meio de enfrentamento da criminalidade, mas sim como causa direta desta. Neste sentido, ainda que o trabalho dos autores compartilhe de boa parte do referencial teórico lançado por Lombroso (BITENCOURT, 2010, p. 89), a análise do delito e do delinquente se prende a um duplo aspecto, isto é, considerando-se em sua face individual, enquanto tendências psíquicas e naturais, e social, sob a forma de influências trazidas pelo meio, físico e social, na afirmação desta mesma vontade. A questão colocada, portanto, pela idade do delinquente, ainda que esta se revelasse sob a forma de uma condição antropológica do sujeito, tal como a “raça” e o “gênero”, não mereceria, de acordo com Enrico Ferri (1856-1929), criminólogo italiano, exclusividade como fator explicativo do comportamento do criminoso (FERRI, 1916, p. 147). Pelo contrário, tais fatores de ordem psíquica e orgânica deveriam ser conjugados à plêiade de elementos telúricos (“clima”, “estações”, “temperatura”) ou sociais (“densidade populacional”, “família”, “moral”, “crenças religiosas”, “educação” e “alcoolismo”), a se revelar não como determinantes, mas sim a partir de sua influência na prática do ato delitivo. Assim sendo, um processo de socialização deficitário tornar-se-ia o meio por intermédio do qual as tendências criminosas se explicitariam, condicionando a ação do sujeito. Na análise dos criminosos natos e habituais, Ferri destaca o problema da reincidência, explicada não por fatores psíquicos como formadores de uma tendência delinquente, mas sim pelo hábito, adquirido socialmente, precocemente, desde a juventude. 167 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Disto surge uma proposta de reversão do quadro que comumente se impunha sob a análise do comportamento do criminoso: da análise da responsabilidade moral do agente, o autor propõe uma verificação da responsabilidade social do ato, a se indicar se o comportamento deste revela impulsos anômicos e antissociais. E, neste ponto, a infância ganha relevo como lócus preferencial para a explicitação de tais comportamentos, constituindo-se fator de grande preocupação social, na formulação de políticas de assistência pública e, também, visando uma reformulação do quadro jurídico-penal que se impunha ao menor-infrator, a fim de que o intuito ressocializador se fizesse especialmente presente na execução penal. Deste modo, pela constituição de outros hábitos sociais, a sociedade não permitiria o surgimento do futuro “homem incorrigível”. Note-se, porém, que longe que encampar uma visão pela proteção do menor em face do poder punitivo estatal, dado o estágio de precocidade de desenvolvimento de sua personalidade, Ferri acaba por verificar a prevalência do desígnio de defesa social em face da penalística corrente, a qual buscava um critério seguro para a fixação da inimputabilidade. Relativamente ao projeto do Código Penal italiano de 1921, que, no art. 53, estabelecia a idade de 09 (nove) anos para demarcar o espaço da inimputabilidade, dispunha ele que este patamar “não corresponde à realidade humana, pelas constatações da antropologia criminal, deve agora subordinar-se ao critério fundamental da personalidade do delinquente menor” (FERRI, 2003, p. 441). Deste modo, pugnava o criminológo pela ausência de critérios, tendo em vista que a particularidade do caso e a gravidade do crime deveriam orientar o penalista na eventual responsabilização do jovem infrator. Perante o dado da antropologia criminal que na precocidade nota um caráter específico do delinquente nato ou por tendência congênita; perante a observação quotidiana dos crimes de sangue, de incêndio, de furto, etc., cometidos muitas vezes com inconsciência, mas frequentemente também com evidente consciência de malfazer por crianças de idade inferior até aos nove anos, como é possível conservar aquela presunção absoluta?. (FERRI, 2003, p. 441-442) Destaca-se, portanto, uma convergência no pensamento sobre a infância entre os autores das duas vertentes do positivismo que veio a se afirmar academicamente no final do século: juridicamente, a infância e a juventude 168 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE mereceria um tratamento diferenciado. Este, porém não se justifica por uma razão protetiva, mas sim em termos de uma defesa profilática, eugênica e higienista, da sociedade contra seus futuros malfeitores, que, pela mente ou pelo hábito, far-seiam presentes no futuro. No entanto, acreditamos que Ferri que revela uma maior consistência que Cesare Lombroso na elaboração de seu discurso quanto à delinquência infantojuvenil, expandindo seu universo de análise para além do crime e do criminoso para refletir, efetivamente, sobre uma política criminal voltada para especificamente para esta parcela da sociedade. Trata-se, neste sentido, de explicar não apenas o porquê da prática do ato delitivo, mas também de orientar este específico processo de criminalização, com a consequente penalização do jovem infrator, conforme os ditames da prevenção especial (intimidação e ressocialização). Pelo que se iniciou na legislação (com o notável exemplo da Children Act, 1908) uma orientação, que é o triunfo completo das conclusões da Escola Positiva e que adota para os delinquentes menores não a tradicional penacastigo, também chamada intimidadora, mas uma série de providências defensivas, educativas, curativas adaptadas não já aos pretendidos graus de discernimento e de culpabilidade moral, mas bem assim à diversa periculosidade e readaptabilidade social de tais delinquentes, conscientes mas com fraca vontade. Pelo que Prins, com razão, observou que este sistema repressivo para os delinquentes menores não é senão a antecipação do mesmo sistema que acabará por aplicar-se a todos os delinquentes, mesmo adultos. (FERRI, 2003, p. 442) Em diálogo com a concepção fisiológica de Cesare Lombroso e a visão sociológica de Enrico Ferri, o trabalho do jurista e criminólogo italiano Raffaele Garófalo (1851-1934) acabou por privilegiar fatores psicológicos e antropológicos para a explicação do fenômeno delitivo. Para tanto, buscaria amparo no pensamento evolucionista de Malthus, Darwin e Spencer, creditando ao delinquente o peso de uma “anomalia moral”, informada por caracteres biológicos, tal como o relatara Lombroso, mas também hereditários, isto é, portador de instintos genéticos que permitiriam enquadrá-lo como uma raça inferior, degenerada, involuída. Assim sendo, negando-se uma vez mais a ideia de livre arbítrio da Escola Clássica, a delinquência poderia ser vislumbrada como consequência fatalmente determinada, por intermédio da qual revelar-se-ia a desnaturação de uma condição moral e evolutiva da espécie humana, ou melhor, nas palavras do próprio autor, uma 169 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE “lei de transmissão hereditária do delito” (GARÓFALO, 2005, p. 81). Neste ponto, aprofundando-se a discussão antropológica de Lombroso a partir dos estudos do darwinismo social, o autor lançaria as bases de um conceito universal de crime, chave de seu trabalho: o “delito natural”, que seria “o elemento de imoralidade necessário para que um ato prejudicial seja considerado pela opinião pública é a lesão daquela parte do sentido moral, que consiste nos sentimentos altruístas fundamentais, ou seja, a PIEDADE e a PROBIDADE” (2005, p. 31). Deste modo, o delito consistiria em uma violação a sentimentos naturais, próprios à espécie humana, que historicamente se revelariam sempre presentes em nossa civilização. O trabalho de Garófalo, neste ponto, acabaria por identificar em uma permanência, no espectro psíquico e biológico, de um aspecto degenerado de uma raça inferior, consistente na tendência à violação destes dois sentimentos: a piedade, atinente aos bens da personalidade, e a probidade, relativo aos demais bens jurídicos assim reconhecidos pela coletividade. Aprofundando-se, por conseguinte, às razões apresentadas pelos autores anteriormente analisados, Garófalo acaba por afastar a possibilidade de o processo de socialização agir de modo positivo, na constituição de um senso moral na psique do indivíduo, a partir do qual ele aplacaria impulsos primitivos e introjetaria valores socialmente partilhados. Pelo contrário, não haveria, neste espectro, crença na possibilidade de adaptação, tamanha a degenerescência do ser em sua constituição biopsíquica. E, precisamente aqui, a análise da delinquência infanto-juvenil mereceu destaque na análise de referido autor. Para ele, voltar-se a esta faceta do fenômeno criminal significaria, antes de mais nada, atentar-se a um longo e tormentoso processo de constituição hereditária de uma casta de seres degenerados, isto é, geneticamente predispostos à prática de atos lesivos aos sentimentos aqui mencionados. Neste sentido, Garófalo revela a sua desconfiança nos meios que à época já se colocavam como instrumento possível à superação da delinquência infantojuvenil, especialmente no que tange à ênfase no processo de socialização, relativamente à educação, como meio por excelência para superação da condição atávica do criminoso. Ante a possibilidade de lidar com impulsos anômicos, primitivos e involuídos identificáveis na personalidade do menor infrator, responderia o criminólogo italiano pela sua quase absoluta impropriedade, haja vista a existência 170 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE de uma lei geral que governaria a espécie humana, impulsionando-o deterministicamente à prática de atos atentatórios aos sentimentos mais nobres da coletividade. A imperfeição moral do ser, portanto, seria inafastável, haja vista a herança biogenética de sua constituição. A este respeito, Garófalo relata (2005, p. 111-112): É possível que ocorra que um meio deletério abrigue o sentimento de probidade, ou melhor, venha a impedir seu desenvolvimento durante a mais tenra idade. Mas o que é positivo é que, uma vez formado o instinto, este persiste por toda a vida, e que não se deve confiar na correção, por meio da educação, deste vício moral, quando o caráter se encontra já organizado, isto é, quando o sujeito já passou da idade adolescente. O que pode sim ser ensaiado, com esperança de êxito muitas vezes, é a supressão das causas diretamente determinantes, seja modificando o meio, seja separando o indivíduo deste mesmo meio, para transportá-lo a outro, no qual poderá encontrar tais condições de existência que façam que a atividade honrada lhe seja mais fácil e benéfica que a atividade malfeitora. Assim sendo, conjugando-se os elementos trazidos sobre a infância por Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garófalo, entendemos que o discurso jurídico sobre o menor infrator se permite afirmar paulatinamente, no período trabalhado, não porque a criança e o adolescente estão em foco, mas sim porque o crime assume uma outra feição neste campo do saber. Reconhecer juridicamente a infância na transição do século XIX para o século XX significa aqui buscar estratégias alternativas de enfrentamento do problema mais amplo da criminalidade, sendo a abolição das práticas tradicionais, quanto ao enclausuramento dos menores em conflito com a lei, um dos meios, e não um fim da nova política criminal. 3 INFÂNCIA E CRIMINALIDADE NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1889-1930) Aliadas a estas mudanças na compreensão do campo jurídico, especialmente no que diz respeito ao direito penal, a análise do fim do século XIX acaba por manifestar uma profunda transformação relativamente à vida social no Brasil, a se distinguir do passado por uma gradativa modificação de seus tradicionais “padrões de sociabilidade” (ARIÈS, 2011, p. 10). Neste sentido, permitimo-nos vislumbrar, a partir de uma nova disposição da sociedade brasileira para as “trocas afetivas”, para as “comunicações sociais”, o aprofundamento de um novo sentimento 171 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE para com a infância e, em decorrência deste, um novo comportamento, a se afirmar o distanciamento do universo infanto-juvenil das práticas sociais correntes em torno à vida adulta. Duas ordens de fatores concorrem, a nosso ver, decisivamente, no Brasil, para esta modificação: a mudança nas relações de trabalho, com o processo gradativo de abolição da escravidão, e a transformação dos padrões de sociabilidade advindos com o processo de urbanização, analisados a seguir. A família tradicional na sociedade brasileira do século XIX é ampla: corresponde a todos que se colocam sob o manto e a proteção do patriarca. Nisto, na sua formação, englobam-se não só mulheres e filhos, mas também compadres, afilhados, parentes, serviçais e escravos. Com o aprofundamento das críticas abolicionistas na segunda metade do século XIX, e nisto estamos de acordo com a historiografia revisionista da escravidão no Brasil, modificações profundas se operaram no que tange às relações de trabalho, que, de certo modo, se viam imiscuídas no seio das relações familiares. Portanto, desde a proibição do tráfico de escravos, com a Lei Eusébio de Queirós (1850), passando pela Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885), culminando com a abolição da escravatura com a Lei Áurea (1888), cremos que deste processo se revela uma modificação profunda não apenas no que diz respeito à organização do trabalho, mas sim, e fundamentalmente, da própria vida social no Brasil Império. A abolição da escravidão, neste sentido, longe de representar um avanço civilizatório no reconhecimento da liberdade jurídica dos ex-escravos, representa a liberação de um contingente populacional significativo do espaço da casa-grande dos senhores, da fazenda, em outros termos, da responsabilidade de seus proprietários, sendo deixados à própria sorte. A se constituir outras formas de exploração do trabalho que, muito antes de se revelar mais humanas, acabaram por trazer ainda tantas penúrias para a vida dos cativos emancipados, obliterando a exploração sob a forma de um contrato assalariado, o fim da escravidão também dissolve os laços de compadrio que uniam os emancipados à família do senhor. Portanto, em um espaço onde se torna cada vez mais restrito o seio familiar, isto é, preso à figura de pais e filhos, os espaços de encontro e de sociabilidade entre seus membros se vê profundamente modificado, refletindo-se diretamente sob a 172 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE constituição paulatina de um novo sentimento sobre a todos os seus membros, especialmente sobre este alter, ressignificado: o ex-escravo, emancipado. Deste modo, cremos que a experiência republicana, não tendo sido acompanhada de políticas públicas de inclusão social dos ex-cativos, constitui o verdadeiro fosso para a afirmação da marginalidade social do negro e do pobre na sociedade brasileira. Deste modo, a gradativa modificação no nível das infraestruturas econômico-sociais viria a se refletir no âmbito das relações sociais mais sensíveis, dentre as quais destacamos as transformações nos padrões de sociabilidade da família da Primeira República. Ante o conceito amplo supracitado, ganharia corpo um conceito do núcleo familiar cada vez mais restrito, preso a figura de seus membros tradicionais. Assim, temos uma explicitação da condição desfrutada pela criança, pelo jovem. E esta, por sua vez, se dá em dois patamares: por um lado, dota de sentido uma fase da vida com a qual a sociedade passaria a dialogar com maior proximidade, especialmente no que tange à elite das grandes cidades; por outro, explicita as cisões e contradições sociais em torno às quais a vida cotidiana estava fundada, revelando a precariedade de constituição destes mesmos padrões de sociabilidade, com a inclusão da família no seio familiar, no espectro periférico, marginal, desta mesma sociedade. De outra sorte, porém, acreditamos que o processo de urbanização da sociedade brasileira constitui no segundo fator de significativa modificação no que tange aos padrões de sociabilidade da vida cotidiana brasileira, a explicitar uma mudança substantiva nos espaços de encontro e nas relações entre os membros da sociedade. A cidade brasileira do início do século XX revela sua beleza. Como paradigma do ingresso do país na civilização, na modernidade, a infraestrutura urbana revoluciona-se através da dinamização do espaço citadino, com políticas de embelezamento dos locais públicos, constituição de largas e espaçosas avenidas, edifícios com fachadas art nouveau feitas em mármore e cristal, com o bonde, a eletricidade e a fábrica a se materializar simbolicamente no progresso da república nascente (SCHWARCZ, 2012, p. 44). Surgem novas cidades, como Belo Horizonte, primeira capital planejada do país, sede de política e administrativa de um estado que busca se reapresentar no cenário político e social afastando-se da imagem da 173 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE economia mineradora decadente. São Paulo, por sua vez, catapultado pela economia cafeeira a se desenvolver nas cidades do interior, assumiria de vez o papel de centro comercial e financeiro da nação (2012, p. 45). O Rio de Janeiro, a partir das reformas urbanísticas levadas a cabo pelo governo de Rodrigues Alves (1900-1902), assumiria de vez a imagem de cartão postal republicano. A cidade de Curitiba, por sua vez, ainda que de modo menos intenso que outras capitais, já emergia no cenário paranaense como um centro político e econômico capaz de aglutinar em torno de si um grande contingente populacional, formado sobretudo por núcleos de imigrantes, que fizeram a sua população triplicar nos primeiros vinte anos republicanos, reestruturando-se para dar conta desta nova realidade socioeconômica experimentada. Contudo, para além do estético, a cidade brasileira revelaria no período os seus contrastes. Nisso, a transição do século XIX para o século XX, especialmente no que tange à cidade do Rio de Janeiro, capital federal, foi sentida como um momento de profunda transformação do espaço urbano. No que tange à sua demografia, a população se viu alterada significativamente, crescendo enormemente em termos numéricos, alterando-se sua composição étnica, pelo fim da escravidão e pela chegada de um enorme contingente de imigrantes europeus, revelando-se um profundo desequilíbrio entre os sexos. Ainda, a despertar a preocupação das autoridades, grande parte do contingente populacional que chegava à cidade mostrava-se sem ocupação ou subempregada. Condições habitacionais precárias, cortiços, falta de saneamento básico, propagação de epidemias de varíola e febre amarela: tudo a se congelar em um cenário extremamente promíscuo, onde o progresso da cidade é vivenciado, par e passo, com um processo de experimentação e construção social da diferença, da marginalidade. Em um ambiente convulsionado por tantas transformações sociais, espaço de encontros e conflitos, a densificação paulatina das relações sociais em torno ao espaço urbano, em torno à rua, veio a aprofundar, no Brasil em transição para o século XX, um novo sentimento em torno à sociedade marginal. Desacompanhada que foi a ocupação deste novo espaço de políticas voltadas à inclusão social destes novos atores do lócus urbano, a diferença torna-se, definitivamente, fator de preocupação das autoridades. E, como estratégia de enfrentamento desta alteridade que se apresenta, o Estado encontra nas práticas 174 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE higienistas e na repressão criminal poderosos aliados, expurgando-se tais elementos de sua centralidade, de sua visibilidade, inoculando seu mal-estar. No cerne deste desconforto, a dominar o discurso de políticos e juristas à época, surge o problema do menor, compreendido em torno a três eixos fundamentais: o órfão, o exposto ou abandonado e o infrator. A infância e a adolescência, a dominar as ruas, acabam por sedimentar no imaginário social do início do século XX a imagem do “pivete”, do “moleque”, da criatura maltrapilha e malcriada, envolto em um universo violento e marginal, sem ter quem o cuide, quem o torne distinto o certo do errado, preferindo as ruas à família e aos bancos de uma escola. De acordo com Betina Hillesheim e Neuza Maria de Fátima Guareschi (2013): [...] são crianças pobres, moradoras das periferias das grandes cidades, preferencialmente do sexo masculino, que vagueiam pelas ruas sem trabalho ou ocupação, provenientes de famílias tidas como ‘problemáticas’ ou ‘desestruturadas’. Ante a constatação da existência destas crianças, ou melhor, contra a existência destas, não se apresentaria uma proposta necessariamente repressiva, punitiva, mas sim correcionista, reformatória, na constituição ortopédica de um sujeito dócil, moral, a fim de se superar sua condição marginal. Trata-se, portanto, da gradativa elaboração de uma específica tecnologia punitiva, ou melhor, no dizer de Rizzini & Pilotti, de uma “arte de governar crianças” (RIZZINI; PILOTTI, 2011, p. 32). Aqui, temos fórmulas repressivas geralmente se imiscuem em torno às propostas de assistência, quais sejam o reestabelecimento de laços de afeto e carinho com a pessoa do menor; aquisição de bens culturais, tais como o incentivo à leitura, à prática de atividades esportivas e ao processo sócio educacional, à pedagogia do trabalho, com a aprendizagem de um ofício e constituição de uma ética burguesa do trabalho; à reestruturação familiar. Isto, a se dirigir sobre a alma doentia do menor, em uma ação para a sua correção: O modelo de atendimento almejado, cuja formulação datava do século XIX, estava calcado na razão científica, a qual pressupunha objetivos, um método de trabalho e resultados palpáveis, que juntos constituíam o “maquinismo da assistência” (Britto, 1959, obra de 1929). O método 175 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE preconizava uma organização do atendimento institucional nos seus diversos aspectos, como a distribuição da clientela, segundo uma classificação baseada em inúmeros e cada vez mais complexos critérios, entre eles, o motivo da internação, a inteligência, as aptidões e o caráter do menor, a ocupação criteriosa do espaço e do tempo dos internos (RIZZINI, 2011, p. 232) Mas seria esta modificação no que tange ao meio de enfrentamento do problema social gerado pela criminalidade infanto-juvenil o resultado do reconhecimento da infância como fase autônoma da vida, digna, neste sentido, de maior proteção por parte do Estado? Ora, não há como negar que o fenômeno de reconhecimento da infância no Brasil, no campo sociológico, como fase da vida autônoma ao universo adulto só viria a ganhar contornos mais definitivos no período trabalhado, isto é, justamente na transição do século XIX ao século XX. Neste sentido, cremos que a mudança nos padrões de sociabilidade foi vivenciada de tal modo, após as modificações nas relações de trabalho e as transformações relativas à dinâmica urbana, que a infância e a juventude tornar-se-iam explícitas, visíveis aos olhos da sociedade. Note-se, porém, que isto não significaria dotar tal fase da vida de um estatuto jurídico protetivo, fato este que implicaria a tendência à universalização dos discursos e práticas relativas ao menor. Pelo contrário, o período trabalhado é pródigo em demonstrações de como a infância e a adolescência eram vivenciadas e experimentadas de forma desigual pelas distintas classes sociais da República nascente. Assim sendo, se a infância e a adolescência ganhariam destaque nos círculos intelectuais de juristas e criminólogos no período, este não se deve ao reconhecimento da infância, mas sim à projeção social de menores em situação irregular em um período onde o debate intelectual se via profundamente influenciado pela ideologia da defesa social. E, nisso, acreditamos que a violência vivenciada em torno à infância e à adolescência, seja das práticas delitivas ou nos domínios da repressão criminal, ela acaba por se deslocar de um caráter pessoal para assumir uma feição cada vez mais estrutural, oculta, impessoal e imprevisível, para além do arcabouço normativo, a se constituir em uma feição higienista, correcionista. Longe de ser extirpada dos domínios da repressão à criminalidade infanto-juvenil, ela acaba sendo deslocada, relegada a um modus operandi, marginal, onde 176 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE paulatinamente perderia a sua legalidade, mas não a sua legitimidade, como meio de repressão aos males sociais do crime e da criminalidade. E é nesta tensão que se situa o discurso jurídico e criminológico sobre o menor infrator no início do século XX: na constituição de um espaço repressivo periférico que se revela cada vez mais imoral e ilegal, porém recobrando sua legitimidade ante a necessidade de defesa social contra os malefícios do crime e do criminoso em formação. 4 A CRIMINALIDADE INFANTO-JUVENIL ATRAVÉS DO PENSAMENTO JURÍDICO E CRIMINOLÓGICO NO BRASIL (1890-1927) Passadas estas considerações sobre o pensamento jurídico e criminológico no mundo, bem como a análise sobre o processo de modernização da sociedade brasileira, a se projetar sobre um outro sentimento em torno à infância e a adolescência, especialmente a marginal, cumpre indagarmos sobre como juristas e criminólogos brasileiros analisaram o problema da criminalidade infanto-juvenil na transição do século XIX para o século XX. Para tanto, traçaremos um pequeno panorama sobre como a questão da inimputabilidade se viu enfrentada pela legislação penal do período trabalhado, isto é, desde a promulgação do Decreto Executivo nº 847/1890, o Código Penal Republicano, até a entrada em vigor do Decreto nº 17.943/1927, o Código de Menores. Muito embora as legislações tenham historicamente trabalhado com a menoridade como causa atenuante das penas a serem aplicadas quando do cometimento de um delito, a demarcação de um espaço de inimputabilidade do menor infrator constitui hipótese que se revelaria bastante recente na História do Direito Penal. No Brasil, seguindo a tendência encontrada para as legislações penais europeias, contrastando-se com o barbarismo das previsões legais encontradas nas Ordenações Filipinas, o Código Penal Imperial, outorgado em 16 de dezembro de 1830, acabaria por se traduzir na primeira elaboração legislativa que demarcou, no âmbito do direito penal pátrio, tal espaço de inimputabilidade. Por intermédio da previsão contida no art. 10, § 1º, previa-se que os menores de quatorze anos não seriam julgados criminosos. 177 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Note-se, porém, que a inimputabilidade do menor de 14 anos poderia ser mitigada por força do disposto no art. 13 do Código Penal Imperial, o qual dispunha que, caso tenham ele cometido algum delito, comprovado o discernimento, “deverão ser recolhidos ás casas de correção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda á idade de dezasete annos” (BRASIL, 1830). Trata-se, neste sentido, de uma modificação substantiva no que tange ao tratamento da questão jurídico-penal do menor infrator, haja vista que pela primeira vez conceber-se-á um instituto de execução criminal, as “casas de correção”, especificamente para esta parcela da população carcerária. Referida constatação, porém, merece duas observações: a) o fundamento teórico para tal concepção da pena a ser aplicada não está no intuito ressocializador, ou seja, delineado em termos de uma prevenção especial positiva, algo que somente ganharia espaço nos círculos jurídicos a partir do final do século XIX; e b) a previsão legal da criação das “casas de correção” não se vê acompanhada, na prática, pela instalação imediata deste modelo de aplicação da reprimenda penal, algo que apenas começaria a ser delineado vinte anos após a promulgação do Código Penal Imperial. Por sua vez, a promulgação do Decreto Executivo nº 847/1890, conhecido como Código Penal Republicano, promoveria uma alteração no que tange ao modo de se vislumbrar a culpabilidade e possibilidade de aplicação de uma reprimenda ao menor infrator. Aqui, demarcar-se-á o espaço de inimputabilidade do menor infrator, a se distinguir do Código Penal Imperial, pela fixação de três padrões etários, conforme o disposto no art. 27 de mencionado Código. Assim sendo, existiriam três idades a se verificar quando da possibilidade de uma sanção penal, reputando-se: a) absolutamente inimputável o menor de 9 (nove) anos completos, pela inexistência de capacidade de compreensão do comando proibitivo; b) relativamente inimputável o maior de 9 (nove) anos e menor de (14) quatorze anos, desde que “obrarem sem discernimento”; c) imputável, o maior de (14) anos (BRASIL, 1890). Neste sentido, Tobias Barreto, professor da Faculdade de Direito do Recife, considerado por muitos o precursor da Criminologia no Brasil, já manifestava, em seu trabalho Menores e Loucos em Direito Criminal, publicado em 1886, a necessidade de que o direito penal trabalhasse com uma faixa etária em que a infância fosse reconhecida, como fase a se demarcar um período de 178 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE irresponsabilidade e inimputabilidade. A se afastar, portanto, da questão do discernimento, típica da escola clássica, aduz o autor: Porquanto os males, que sem duvida resultam de taxar-se, por meio da lei, uma espécie de maioridade em matéria criminal, são altamente sobrepujados pelos que resultariam do facto de entregar-se ao critério de espíritos ignorantes e caprichosos a delicada apreciação da má-fé pueril (BARRETO, 1886, p. 14). E, ainda: Em todo caso, antes correr o risco de ver passar impune, por força da lei, quando commeta algum crime, o gymnasiasta de treze anos, que já fez os seus versinhos e sustenta o seu namorico, do que se expôr ao perigo de ver juízes estúpidos e malvados condemnarem uma creança de dez anos, que tenha porventura feito uma arte, segundo a phrase da família, e isso tão somente para dar pasto a uma vingança. (BARRETO, 1886, p. 15) Tal preocupação, a se projetar sobre a concepção de um discurso jurídico que cada vez mais restringe o espaço de plena e absoluta irresponsabilidade penal à primeira infância, posto que somente aqui se poderia verificar a ausência de discernimento, pode ser revelada pelo confronto entre o art. 13 do Código Penal Imperial, já mencionado, e a restrição imposta pelo art. 30 do Código Penal Republicano, o qual assim dispunha que os maiores de 09 (nove) anos e menores de 14 (quatorze) que agissem com discernimento seriam recolhidos “a estabelecimentos disciplinares industriaes, pelo tempo que ao juiz parecer, comtanto que o recolhimento não exceda á idade de 17 annos”. (BRASIL, 1890) Há, portanto, a conformação de uma mudança paulatina, no período trabalhado, em torno ao fundamento teórico da inimputabilidade. Nisto, porém, acreditamos que, para além do aspecto teórico, o Código Penal da República acabaria por manter, em sua essência, as práticas relativamente à inimputabilidade do Código Penal do Império, haja vista que a criminalização de menores de 9 (nove) anos, possível, em tese, sob a ótica da normativa anterior, constituiria já naquele tempo uma hipótese esdrúxula, e estatisticamente pouco relevante. Ademais, para além da questão legal enfrentada pelos juristas e criminólogos, verifica-se que a criminalidade infanto-juvenil somente vem a se constituir num efetivo problema 179 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE social, isto é, de amplas repercussões no cenário político e social brasileiro, a partir do século XX. E, neste ponto, as questões advindas do fim da escravidão e da dinamização do espaço urbano, delineadas anteriormente, viriam a se refletir decisivamente no discurso de tais autores. Assim, diferenciando-se tão somente a partir dos dispositivos legais supramencionados, o Direito Penal Republicano aplicar-se-ia de modo indistinto a adultos e menores, fato este que perdurará até a entrada em vigor do Decreto nº 17.943/1927, o Código de Menores. Este, por sua vez, representa o primeiro esforço teórico de superação da discussão acerca da imputabilidade para fixar-se na elaboração de um sistema jurídico com meios e mecanismos próprios, especialmente concebidos para o menor infrator. Com efeito, o Capítulo VII do Código de Menores de 1927 viria a estabelecer as bases para a conformação de um especial regramento penal voltado ao menor delinquente. Por intermédio da previsão contida no art. 68 de mencionado Código, o menor de 14 (quatorze) anos não poderia se submeter ao processo criminal, demarcando-se, sobre esta faixa etária, o espaço da absoluta inimputabilidade. Art. 68. O menor de 14 annos, indigitado autor ou cumplice de facto qualificado crime ou contravenção, não será submettido a processo penal de, espécie alguma; a autoridade competente tomará sómente as informações precisas, registrando-as, sobre o facto punível e seus agentes, o estado physico, mental e moral do menor, e a situação social, moral e econômica dos paes ou tutor ou pessoa em cujo guarda viva. (BRASIL, 1927). Relativamente aos menores que contassem que 14 (quatorze) a 18 (dezoito) anos na data do fato delitivo, o Código de Menores de 1927 trazia a previsão, no art. 69, de um procedimento judicial específico, haja vista a sua condição de relativa inimputabilidade. Com efeito, dispunha mencionado dispositivo: Art. 69. O menor indigitado autor ou cumplice de facto qualificado crime ou Contravenção, que contar mais de 14 annos e menos de 18, será submettido a processo especial, tomando, ao mesmo tempo, a autoridade competente as precisas informações, a respeito do estado physico, mental e moral delle, e da situação social, moral e econômica dos paes, tutor ou pessoa incumbida de sua guarda. (BRASIL, 1927) 180 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Note-se, com relação a ambos os dispositivos, isto é, com relação à concepção jurídica a reinar sob o absolutamente e o relativamente inimputável, a influência da Escola Positivista e do pensamento criminológico, notadamente no que tange à compreensão do delito como fenômeno não decorrente de uma livre vontade do agente, mas sim em razão de um comportamento patológico. Este, por sua vez, explicar-se-á em termos de determinismos e condicionantes sociais, morais e econômicos, a se projetar sobre o estado “mental e moral” do menor. Assim, distinguindo-se às razões trazidas pela Escola Clássica, mais presentes quando da elaboração do Código Imperial de 1830 e do Código Republicano de 1890, o Código de Menores de 1927 acabaria por consagrar uma perspectiva não propriamente retributiva, mas sim clínica, explicada em termos cientificistas de um “tratamento apropriado”, uma correção ortopédica de uma alma perigosa, pervertida. Contudo, embora se vislumbre a existência de uma preocupação para com a pessoa do menor a se afirmar em um sentimento outro relativamente o seu estágio de desenvolvimento psíquico, a análise detida de referida legislação faz ressaltar que o desígnio de defesa social certamente teria de se sobrepor à consideração de sua particular condição. A este respeito, convém ressaltar os termos do art. 71 do Código, a partir do qual extrai-se que o cometimento de um crime considerado grave, conjugado à análise de uma personalidade doentia do menor infrator, teria o condão de permitir ao Estado a sanção penal junto a estabelecimento especialmente criado para tal finalidade: o reformatório. Note-se, ademais, que a ausência de tal estabelecimento permitiria o cumprimento de referida internação inclusive em prisões comuns, desde que houvesse a separação dos menores delinquentes dos demais condenados, adultos. Nesta ordem de ideias, há de se reconhecer, porém, que o recolhimento aos estabelecimentos penais destinados a adultos revelar-se-ia hipótese que, ao menos no que tange à previsão legal, deveria ser utilizada excepcionalmente pelo Poder Público. Trata-se, portanto, de compromisso louvável com a superação de um problema, acreditamos, bastante recorrente à época na aplicação da medida de internamento, constituindo um compromisso legal com a superação de inúmeros problemas sociais advindos da promiscuidade entre os institutos penais destinados a menores e adultos. Muito embora a prática judicial tenha se mantido mormente presa a esfera da punitividade indistinta entre tais grupos, conforme restará 181 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE analisado no próximo tópico, não há como negar, a partir da mudança normativa, uma mudança em curso na concepção de outro direito, não necessariamente sancionatório. Assim sendo, acreditamos que, em razão das discussões teóricas empreendidas no campo do direito penal e da criminologia na transição do século XIX para o século XX, é possível notar a tendência de paulatina modificação no tratamento da questão penal em torno ao menor delinquente, a qual se vê distanciada, em alguma medida, do caráter sancionador do direito penal, afirmandose a necessidade de um tratamento menos punitivo e mais clínico, disciplinar e educativo. 5 A REPRESENTAÇÃO DA DELINQUENCIA INFANTO-JUVENIL PELO DISCURSO CRIMINOLÓGICO NO BRASIL (1890-1927) O discurso jurídico da defesa social e os estudos da criminologia encontraram terreno fértil na América Latina, destinando-se a uma elite cultural, letrada, de formação bacharelesca e, em menor medida, médica, cujos padrões culturais e estéticos se viam profundamente influenciados pelo ambiente da Belle Époque. Trata-se, portanto, de um discurso fora do lugar, isto é, de uma apropriação de um conjunto de formulações teóricas e científicas que tinham por referencial a realidade experimentada na Europa pós-Revolução Industrial. Bastante distinta era, portanto, a realidade social e cultural vivenciada nos países de economias periféricas, como o caso da América Latina. Esta é a realidade experimentada pelos círculos de intelectuais de países periféricos, que passaram a se influenciar, no campo do Direito Penal, pelos discursos supracitados. Deste modo, no Brasil, tal como nos demais países da América meridional, [...] as palavras de Lombroso, Ferri ou Garofalo eram sagradas para os latino-americanos e tinham de ser assimiladas sem que se levasse em conta que a história da Itália, e portanto de sua delinquência, era muito distinta da nossa. Mas precisamente, era porque persistia a recusa em aceitar nossa história que se voltava o olhar para o europeu. Por sua vez, o caráter dependente dessas sociedades contribuía para a recusa de nossa própria história. (OLMO, 2004, p. 161) 182 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Feitas estas considerações sobre o ideário burguês que permeia a elaboração do discurso jurídico e criminológico na América Latina, cumpre observar, porém, que, especificamente no que tange aos intelectuais brasileiros, um aspecto que fora tomado como marginal no discurso destes “cientistas sociais” europeus acabaria por ganhar relevo na discussão aqui travada. Trata-se da questão racial, que, influenciada por nossa formação social escravista, mereceria um destaque no pensamento de tais autores. Conforme exposto anteriormente, o processo de abolição da escravatura revelaria, mais que a libertação dos ex-cativos, o reconhecimento social de uma alteridade, expressa na cultura negra e ameríndia. Encarada sob o prisma racialista, isto é, compreendendo-se a mistura das raças como fator de degeneração social do brasileiro, o discurso criminológico dialoga profundamente com o pensamento cientificista, acreditando-se que, hereditariamente, pela raça, conformar-se-ia uma vocação, uma tendência criminosa. Há que se destacar, contudo, que a questão a articulação entre a raça e a criminalidade seria enfrentada pelos autores não apenas pelo aspecto naturalístico, psicológico e biologizante, a denotar uma influência irrefletida do pensamento de Cesare Lombroso. Pelo contrário, questões atinentes ao processo de socialização do criminoso são levantadas, as quais, transpostas para o universo brasileiro, denotariam um déficit de aquisição dos chamados “comportamentos morais”. Clovis Bevilaqua (1859-1944), jurista, filósofo, historiador, fortemente influenciado por Gabriel Tarde, vem a ponderar o peso de tais condicionantes para afirmar uma igual preponderância de fatores sociais, ausentes e/ou presentes quando da formação de uma vontade criminosa: As conclusões que se podem tirar destas ponderações resumem-se no seguinte: as duas raças inferiores (negra e cabocla) contribuem muito mais poderosamente para a criminalidade que os aryanos, creio eu, principalmente, por defeito de educação e pelo impulso do alcoolismo, porquanto grande numero dos crimes violentes tem sua origem nos sambas, si não são durante elles praticados. E por educação entendo eu aqui aquella que se recebe no lar e no convívio social, ligada à inclinação recebida hereditariamente (BEVILAQUA, 1896, p. 94). O discurso criminológico, neste sentido, para além da expectativa de compreensão do delito e do delinquente, cumpre com um papel legitimador da 183 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE repressão punitiva estatal, através da constituição de estratégias de marginalização de pessoas e práticas contra o grupo que, por excelência, na realidade social brasileira, é alocado na posição de alteridade: o negro. Neste sentido, poderíamos dizer que a diferença e o preconceito raciais contra tal grupo não se vêem revelados, mas sim constituídos pelo próprio discurso, que, simultaneamente, reconhece e cria o delinquente, associando-o mormente à figura dos afrodescendentes. Assim, no processo de seleção e criminalização de grupos marginais, a política repressiva levada a cabo pelo Estado brasileiro denota a estigmatização de figuras típicas do imaginário popular de uma sociedade cada vez mais segmentada, a lidar com seus preconceitos. Dentre estas, encontrar-se-ia o menor infrator, o qual carregaria uma série de caracteres que se lhe atribuiriam pelo preconceito, em termos de uma herança biológica, psíquica e social, afirmando-se seu caráter degenerado, débil, sendo, pois, propenso a uma vida de delinquência. O advogado e criminólogo Evaristo de Moraes (1871-1939), em sua obra Criminalidade da Infância e da Adolescência, bem o relata (1916, p. 6-7): O filho de um alcoólico e de uma prostituta syphilitica pode não apresentar manifestações syphiliticas, nem mostrar tendência ou predisposição para o alcoolismo; mas, quase necessariamente, será uma criatura enferma, fraca de corpo, débil de espírito, menos preparada para a lucta pela vida, requerendo cuidados especiaes de tratamento e de educação. A criança nascida de paes debilitados por excesso de trabalho e por falta de alimentação sufficiente – quaes são os operários, explorados pelo ganancioso industrialismo do nosso tempo – póde ter o aspecto commum de todas as crianças, parecendo, aos olhos dos inexpertos, sadia e capaz de affrontar as agruras da existência; mas, provavelmente, desde os primeiros tempos do seu contacto com o torvelinho social, se mostrará pouco apta, inferior aos da sua idade, difficil de educar, propensa à ociosidade, espírito propicio às suggestões dos viciosos e criminosos. E a cidade moderna sob a qual se constitui este espaço de produção social da diferença, do preconceito, revela-se extramente adequada, por suas contradições, à afirmação de um mal-estar em torno à criminalidade infanto-juvenil. Cândido Motta (1870-1942), advogado e professor da Faculdade de Direito de São Paulo, de modo um tanto quanto saudosista dos espaços que se constituíam em torno à vida agrária, faz o seguinte relato da criminalidade infanto-juvenil (1909, p. 31): 184 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE No interior, onde a vida é mais modesta, os costumes mais simples e o trabalho mais pesado, a criminalidade infantil é relativamente pequena, sendo de notar que raras são as prisões de menores por motivo de vadiagem, embriaguez ou mendicidade, ao passo que elas se avultam quando se trata de homicídios, ferimentos e pequenos furtos. Na capital dáse o contrário; a vida é mais cara, os prazeres inúmeros, as seduções mais empolgantes, o trabalho mais leve, os maus exemplos e as más companhias mais constantes, de forma que ali predominam a gatunagem, a embriaguez, a mendicidade, as rixas, etc. Do mesmo modo, em 1918, Aurelino Leal (1877-1924), então ocupando o cargo de Chefe de Polícia do Distrito Federal, sugere a articulação entre a ocupação desordenada do espaço urbano e a criminalidade praticada pelos menores infratores. Senão vejamos: Quem quer que ande pelas ruas da cidade pôde ser testemunha de que possuímos muitas centenas de menores desoccupados. praticando a vadiagem que começa innocente, mas que, para elles, sem paes ou com pães que os não educam, não é sinão o aperitivo, o convite suggestivo, a provocação fascinante á vadiagem profissional, a grande pepineira dos criminosos' e das prisões (LEAL, 1918, p. 15-16). Estes relatos são bastante sugestivos da situação vivenciada relativamente à criminalidade não apenas pelas cidades do Rio de Janeiro ou São Paulo no início do século XX, mas por praticamente todas as grandes cidades brasileiras no mesmo período. O grande número de menores a dominar as ruas, filhos de proletários ou submetidos a uma realidade familiar desestruturada, a se destacarem na época os problemas com o alcoolismo, inexistindo escolas públicas, sem um ofício, envoltos em um ambiente extremamente promíscuo, onde os limites entre o universo adulto e o infantil praticamente inexistem, bem como entre o lícito e o ilícito. Sendo assim, neste ambiente oculto pelo discurso oficial, do progresso e da modernidade, dá-se a tônica das práticas ilícitas que, na incômoda ociosidade, viriam eles a cometer. Desta feita, a infância marginal se constitui em fator de preocupação das autoridades, tendo sido os “delitos do ócio”, contrários à ética capitalista do trabalho que se impunha, os mais combatidos. De acordo com Marco Antônio Cabral dos Santos (2010, p. 214), as prisões de menores na cidade de São Paulo, entre os anos de 1904 e 1906, tiveram motivo, em 40% dos casos, pela prática de “desordens”, em 20% por “vadiagem”, e 17%, por “embriaguez”. Do mesmo modo, 185 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE no que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro, enquanto a repressão à criminalidade adulta se voltava principalmente contra a figura dos “capoeiras”, representando este 60% da população carcerária, a repressão ao menor infrator recaía, de modo significativo, sob aquele que praticava a vadiagem, a mendicância e pequenos delitos de gatunagem. A se projetar para além das ruas, a mesma promiscuidade experimentada no que tange à vida adulta e vida infantil na sociedade marginal das grandes cidades, ao longo da Primeira República, poderia ser verificada dentro do sistema prisional, conforme o relato dos penitenciaristas e juristas da época. Trata-se de um universo de indistinções. E vivenciada em torno a múltiplos aspectos. Ante o universo adulto, a criança e o adolescente se colocavam em um mesmo patamar, submetendo-se às mesmas condições carcerárias. A mulher, frente ao homem, partilhava do mesmo espaço na prisão. Neste sentido, exemplo elucidativo desta inseparabilidade entre tais universos é a Colônia Correcional de Dois Rios, situada no Rio de Janeiro. Extremamente criticada por juristas, médicos e políticos da República Velha, este estabelecimento revelaria, conforme o relato de RIZZINI, “uma curiosa capacidade de sobreviver às tentativas de extinção” (RIZZINI, 2011, p. 229). Embora formalmente extinta pela Câmara de Deputados, em 1914, uma década depois ele ainda continuaria em pleno funcionamento, fomentando críticas ferrenhas, como as elaboradas por Evaristo de Moraes (1916, p. 33): [A Colônia Correcional de Dois Rios] é um estabelecimento inqualificável, mantido sob absurda direção da polícia, e no qual se misturam, em inevitável promiscuidade: condenados adultos, de ambos os sexos, menores também condenados; outros por ilegal medida de correção familiar Do mesmo modo, observa-se o surgimento de primeiras propostas de individualização do tratamento penal, especificamente no que concerne ao menor infrator, modificando-se as suas práticas punitivas, tal como aquela revelada por Aurelino Leal (1918, p. 16): Forçado por esta contingência, estabeleci na Colônia de Dous Rios, inteiramente separada dos condemnados, sem a disciplina délies, mas com o caracter educativo que alli é possível manter, uma secção de menores, 186 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ocupada, em geral, por aquelles cuja internação me é solicitada pelos próprios progenitores ou outros representantes legaes. Note-se, quanto ao último relato, a indistinção entre a prática do enclausuramento, meio da política criminal, e a prática do internamento, instrumento das políticas assistenciais. Na falta de escolas e creches, a se confrontar com a comoção social diante do grande número de menores em situação irregular, o estabelecimento penal se destina a todos, isto é, aos órfãos, menores abandonados e jovens infratores, sendo utilizado inclusive pelos próprios pais no internamento da infância “moralmente desassistida”. Nas franjas do sistema penal, portanto, é que se constituem as instituições de assistência e internamento aos jovens carentes, marginais. Disto, a se demonstrar pelo discurso dos autores analisados, as primeiras décadas do século XX acabam por revelar o mal-estar com a situação do menor, revelando-se, ainda que de maneira tímida, propostas de modificação do quadro vigente. Tratar-se-ia, portanto, da elaboração de um meio alternativo de individualização da sanção penal, de distinguir a situação vivenciada por cada um dos tipos a se constituírem posteriormente na figura do menor em situação irregular. 6 CONCLUSÃO Na análise do discurso jurídico e criminológico, pelos argumentos trazidos em especial sobre o menor infrator no Brasil, verificamos que a transição do século XIX para o século XX denota, para usar a célebre terminologia cunhada por Ariès, a paulatina elaboração de um “sentimento em torno à infância”, na gradativa formulação de um discurso com caracteres próprios, distintos ao universo delinquente adulto, bem como na reversão de práticas que antes desconheciam e desconsideravam sua particular condição. Há de se notar, neste sentido, que a elaboração deste mesmo discurso se pauta não pela afirmação de um espectro não violento, isto é, calcado na proteção do menor em situação irregular, mas sim, e fundamentalmente, pela constituição sob a mesma lógica de uma pauta repressiva de uma outra tecnologia punitiva, onde o desígnio de defesa social se sobrepõe ao mal-estar em torno à situação do menor. Nisto, em se afirmando o desejo de correção, educação e formação, o discurso 187 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE protetivo vem a revelar seus objetivos não manifestos, quais sejam a constituição e o enfrentamento da marginalidade social de certos grupos, como o menor infrator, por outros meios. Neste particular, a elaboração de um espaço próprio à expressão desta outra tecnologia punitiva, qual seja a casa de correção, o reformatório, é bem indicativo do conflito que se estabelece entre a prática e a norma, vez que embora o recurso à violência contra o menor se vislumbre legítimo, no desejo da sociedade expurgar seus elementos viciosos, há um deslocamento desta prática para além da sociedade, muito além de sua sensibilidade, haja vista o paulatino reconhecimento de sua imoralidade, sua ilegalidade. REFERÊNCIAS 188 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2011. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. BARRETO, Tobias. Menores e Loucos em Direito Criminal: Estudos sobre o art. 10 do Código Criminal Brazileiro. Recife: Typographia Central, 1886. BEVILAQUA, Clovis. Criminologia e Direito. Salvador: Livraria Magalhães, 1896. 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Rio de Janeiro: Revan, 2010. 190 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE INQUÉRITO POLICIAL COMO UM INSTRUMENTO INQUISITIVO NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ACUSATÓRIO Eduardo Henrique Knesebeck Alexandre Knopfholz1 1 Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), Pós-Graduação em Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é professor horista da disciplina de Processo Penal, nos cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: direito processual penal e direito penal. 191 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 192 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO O presente trabalho objetiva demonstrar a incompatibilidade que existe entre o instituto do inquérito policial e a ordem constitucional vigente, na medida em que esta determina um sistema acusatório de persecução criminal e aquele desenvolvese à égide do sistema inquisitivo. São sistemáticas completamente antagônicas entre si, o que acaba por gerar insegurança jurídica e até mesmo inconsistências entre diferentes decisões judiciais que tratem de assuntos semelhantes. Assim, é necessário estabelecer premissas principiológicas claras para a consecução do objetivo último da justiça criminal, que é a adequação da pena à culpabilidade do agente. Palavras-chave: Sistema Processual Penal, Constituição Federal, Código de Processo Penal, Investigação Criminal Preliminar, Inquérito Policial. 193 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT The objective of this paperwork is to demonstrate the incompatibilities between the institute of Inquérito Policial and the present constitutional order, while this determinates an accusational system of criminal prosecution and that one develops under an inquisitional system. Those are completely antagonist methods, which generates juridical unsafe and even inconsistencies between different court decisions about similar cases. Therefore, is imperative to establish clear premises about systemic principles in order to achieve the very objective of the criminal justice, that is to adequate the penalty to the agent’s concrete culpability Keywords: Criminal Procedure System, Federal Constitution, Criminal Procedure Statute, Preliminary Criminal Investigation, Inquérito Policial 194 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO Este trabalho elegeu como campo de estudo o Direito Processual Penal, sob uma ótica Constitucional. O problema identificado é a existência de um instituto jurídico, denominado inquérito policial, que guarda característica de cunho inquisitivo, inserido numa lógica acusatória. Assim, pretende-se estudar os sistemas processuais penais existentes, desenhando suas respectivas evoluções históricas, suas características mais elementares e a forma como cada um se apresenta no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Após, a intenção é de estudar a investigação criminal preliminar. Estudar-se-á as suas finalidades e de que forma se relacionam com os sistemas processuais penais. Então, procurar-se-á estudar o inquérito policial propriamente dito, identificando suas características elementares. Da mesma forma, identificar-se-á a presença de ideais inquisitivos no seu processamento. Por fim, perquirir-se-á a constitucionalidade do inquérito policial, ou de alguns de seus elementos, para então analisar a proposta do referido instituto no Projeto de Lei do Senado nº 156/2009, cujo objeto é a substituição do Código de Processo Penal vigente. A finalidade deste estudo é entender se há compatibilidade entre o inquérito policial e a Ordem Constitucional vigente, no que consistem eventuais incompatibilidades e, por fim, verificar se a proposta de substituição de Código de Processo Penal tem o condão de superar as eventuais incompatibilidades encontradas. Para tanto, utilizar-se-á do método dedutivo de pesquisa, tendo por base doutrina nacional e internacional. 2 INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PRELIMINAR Antes de passar à análise do procedimento administrativo denominado Inquérito Policial, cabem breves considerações a fazer do gênero investigação criminal preliminar, de que o Inquérito Policial é espécie. 195 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Estudar-se-á nesse capítulo as finalidades da investigação criminal, bem como as modalidades clássicas de seu desenvolvimento, aliadas cada uma a um sistema processual penal. 2.1 FINALIDADES DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PRELIMINAR É necessário salientar que a investigação criminal preliminar possui dupla finalidade. A finalidade material, destinada a apurar as circunstâncias de um fato que origina a ruptura da Ordem Jurídica, e a finalidade material, que se preocupa em apurar a existência de justa causa, possibilitando a instalação de uma relação jurídica processual. 2.1.1 Material – Apuração das Circunstâncias do Crime Sustenta-se essa classificação no entendimento de que a existência de um fato supostamente criminoso origina uma relação entre o Estado, polo passivo mediato do crime, e o autor. Assim, uma atividade estatal faz-se necessária para reestabelecer o equilíbrio jurídico rompido pelo crime. Em atendimento ao mandamento da legalidade, por óbvio que as maneiras de que se arma o Estado para efetivar o seu direito de punir são descritas em Normas, as quais vinculam a atividade estatal. No Brasil, essa atividade consubstancia-se em dois momentos distintos, a investigação criminal preliminar e a ação penal, que, somadas, configuram o processo penal. Esta fica a cargo do Poder Judiciário e aquela, via de regra, da Polícia Judiciária, por meio do Inquérito Policial: Atualmente, no Brasil, tal atividade persecutório penal inicial para desvendar a autoria e comprovar a materialidade dos ilícitos penais é prevista constitucionalmente como de atribuição, via de regra, das Polícias Judiciárias, Polícia Civil e Polícia Federal, através de um procedimento escrito e formal denominado inquérito policial o qual é presidido por uma autoridade civil, bacharel em Direito, chamado delegado de Polícia. (DAURA, 2007, p. 67.) Tratando unicamente da investigação criminal que corre no âmbito da Polícia Judiciária, Coriolano Nogueira Cobra, em cuja homenagem a Academia de Polícia 196 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE de São Paulo foi nomeada, afirma que a investigação é fruto da busca por elementos que desenhem como se deu o fato delituoso. Podemos, já agora, portanto, definir a investigação policial como sendo o trabalho executado, normalmente, pelo investigador de polícia, procurando esclarecer circunstâncias e detalhes de fatos criminosos, com a preocupação de identificar pessoas com eles relacionadas. A propósito da expressão “investigação policial”, devemos deixar assinalado que ela é empregada, também e com certa frequência, num outro sentido. Na prática e em linguagem policial e forense, a expressão, numa acepção mais ampla, pode significar Inquérito Policial, porque este, na realidade, nada mais é do que uma investigação policial. (COBRA, 1987, p. 7.) Saliente-se que o autor faz referência ao “investigador de polícia” e não ao Delegado de Polícia ou à autoridade policial. Assim, não é demais presumir que esta investigação a que se refere não se trata de uma investigação formal, deitada a autos, com previsão e disciplina legal. É razoável entender que o autor quis fazer menção àquela averiguação de fatos destinada à obtenção de explicações insipientes e preliminares acerca do fato supostamente delituoso. Ou seja, uma investigação com a finalidade material de meramente levantar dados e identificar pessoas, levando a uma explicação mínima à sociedade de como os eventos se deram. Entretanto, a maior parcela da doutrina entende que a investigação criminal preliminar tem outra finalidade, mais sedimentada, mais estudada e, por isso mesmo, em posição de prevalência: a finalidade formal da investigação criminal preliminar. 2.1.2 Formal – Formação da Justa Causa Em poucas linhas, é necessário entender que o processo penal compartilha com o processo civil as condições genéricas da ação naquela disciplina: possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimidade ad causam. Entretanto, em se tratando o processo penal de uma atividade estatal que, ao cabo, pode potencialmente aplicar uma punição e restringir a liberdade de um cidadão, fez-se necessário construir mais uma condição para o início da ação penal: Embora parte da doutrina, sustentada pelos que propagam a concepção tradicional das condições da ação penal, inclua a justa causa como componente do interesse de agir, mais acertado é estabelecê-la como uma 197 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE condição autônoma, a quarta da ação penal, postura que pode ser visualizada, inclusive, nos ensinos de Afrânio Silva Jardim que, admitindo as mesmas condições que disciplinam o direito processual civil (ainda que com abordagem conceitual diversa), na busca por uma maior aproximação com o direito processual penal […] a apresenta como uma condição autônoma. Postando-se segundo o entendimento de Breda, que contempla a justa causa penal na demonstração dos indícios de autoria e na materialidade de um fato supostamente criminoso, encontra-se Plínio de Oliveira Correa, que visualiza na justa causa a condição fundamental para o exercício da ação penal, a qual somente pode se revelar na prova indubitável de um fato hipoteticamente delituoso, e nos indícios idôneos de sua autoria. (STASIAK, 2004, p. 192.) Ou seja, para que seja iniciada uma relação jurídica processual criminal é necessário que o titular da ação penal, qualquer que seja, deva estar municiado com elementos probatórios da existência do fato e indiciários da respectiva autoria. Esse binômio materialidade/autoria que é o objeto da investigação criminal preliminar, enquanto observada sua finalidade formal, que é a formação da justa causa. Assim, é perfeitamente possível afirmar que a investigação criminal preliminar tem autonomia em relação ao processo penal: “O processo penal, em teoria, pode prescindir da investigação preliminar. Mas a investigação preliminar existe para o processo. Não obstante, pode não existir o processo e sim a investigação preliminar”. (LOPES JUNIOR, 2003, p. 40.) Isto porque, os três planos da autonomia, sujeitos, objeto e atos (Ibid., p. 41.)), são distintos nas duas fases da persecução criminal. Portanto, é necessário que distintos sejam, também, os institutos de que se valem. É por isso que pode-se considerar a investigação criminal preliminar um elemento intermediário entre o fato delituoso (traduzido em linguagem competente por meio da notitia criminis) e a instalação do processo: A investigação preliminar pode ser considerada como um inter, uma situação intermediária que serve de elo de ligação entre a notitia criminis e o processo penal. Valorativamente, possibilita, com a investigação, a transição entre a mera possibilidade (notícia-crime) para uma situação de verossimilitude (imputação/indiciamente) e posterior probabilidade (indícios racionais), necessária para adoção de medidas cautelares e para receber a ação penal. Finalmente, na sentença é alcançado um juízo de certeza (para condenação) ou mantido o grau anterior de probabilidade, que não autoriza um juízo condenatório. Essa situação escalonada é uma característica do processo penal, mais ainda porque não é necessariamente de trajetória fixa (progressiva), senão que pode ser regressiva. […] (LOPES JUNIOR, 2003, p. 40.) 198 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Assim, pode-se entender que a relação entre Estado e possível delinquente só é possível se houverem os requisitos mínimos para que se possa acionar a máquina judiciária. Em outras palavras, se a relação que antes existia entre o Estado-juiz e o sujeito ativo da infração penal era uma mera possibilidade (considerando a inafastabilidade da Jurisdição), a instrução preliminar vem aproximar esses dois polos e conferir concretude a essa expectativa. O conteúdo dos atos de averiguação e comprovação do Procedimento Preliminar é bem um direito constitutivo da relação entre o Estado, detentor dos direitos de acusar e punir, com o imputado. São exatamente os atos de averiguação que, direcionados para tomar em consideração que um determinado fato se revista das características de um delito, servem de base para a formação da relação entre o Estado e o imputado. (MENDRONI, 2002, p. 67.) Assim, pode-se definir a investigação criminal como a atividade, estatal ou não, que destina-se a uma dupla finalidade: apurar as circunstâncias em que se deram o fato supostamente criminoso e reunir os elementos formados da justa causa para o exercício da ação penal. 2.2 INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PRELIMINAR ACUSATÓRIA Há, ao redor do mundo, exemplos de Estados que utilizam-se de valores acusatórios para desenvolver a sua atividade investigativa. Não que sejam mais ou menos eficientes do que a investigação inquisitorial, mas admitem maior simetria cm a fase judicial do processo penal. Vale relembrar que admitir que exista um sistema processual penal misto, como citado anteriormente, de per si, nega a existência de um sistema acusatório. Assim, é mandamental que os princípios e características acusatórias façamse presentes em todo o curso da persecução criminal, tanto na investigação preliminar quanto na ação penal. É o que acontece na atividade investigativa alemã, “na qual, a teor do art. 201 da legislação alemã, o acusado terá direito a produzir provas para evitar a instauração da ação penal propriamente dita” (CHOUKR, 2001, p. 60.). Parece que os países de tradição germânica adotaram, em volume, a estrutura acusatória de investigação criminal. É o caso da Áustria: 199 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE No sistema austríaco, como expressão máxima do modelo acusatório, o Código de Processo Penal prevê que o procurador tem poderes expressos de condução requisição e valoração do acervo, sendo possibilitada à autoridade de segurança a realização de investigações sobre os crimes e delitos de que tenha conhecimento. Deve esta última reportar-se imediatamente ao titular da ação, informando-lhe as investigações produzidas. Não há um juiz instrutor para a maior parte dos casos, restando a estrutura basicamente entre nós vigente. Existe, tal como no modelo francês, um órgão de filtragem entre as etapas pré-processual e jurisdicional. (Ibid., p. 71.) E da Bélgica: Já a sala de acusação é uma das salas da Corte de Apelo, composta por três membros, para a qual é enviado, pelo Ministério Público, e não pelo juiz instrutor, o conteúdo da investigação prévia, que será submetido a contraditório envolvendo o investigado e o interessado civil, se houver. O julgamento se dá a portas fechadas e o debate não tratará de outra coisa senão a sorte da ação penal pública, que poderá ser, basicamente, o arquivamento, enviando-se portanto o caso para a Cour d’Asises – artigo 223 do Código de Processo Penal belga. (CHOUKR, loc. cit.) E os sistemas processuais penais edificados à lógica da Common Law não poderiam ter orientação distinta, haja vista que foi nesse macrossistema que observou-se a gênese do processo penal acusatório como é conhecido hoje. É o que ocorre na Inglaterra: Assim, a persecução penal acaba por ser utilizada na prática pelos funcionários da polícia, sendo que mesmo esta muitas vezes não apresenta configuração estatal, acabando por ser exercida pela sociedade civilmente organizada, ou individualmente pelo ofendido em seu bem jurídico penalmente tutelado. (CHOUKR, loc. cit.) E, por fim, a epopeia da investigação criminal preliminar acusatória, nos Estados Unidos: Já no modelo estadunidense, onde superadas as divergências legislativas dos Estados membros no tocante à matéria como fruto máximo de um modelo federativo levado às últimas consequências, bem como os eventuais conflitos entre os sistemas estaduais e o modelo federal contido no Federal Rules os Criminal Prosecution, pode-se afirmar, como já fizera Fanchiotti, que todo o trabalho realizado pela “polícia judiciária” tem como destinatário o órgão equivalente ao Ministério Público adotado. Não há controle judicial valorativo no correr da fase investigativa, e tampouco existirá quando do “arquivamento” do caso. Ele ocorrerá sim, mas após o encerramento da coleta de informações e antes do início da ação penal; na hipótese em que se acreditam presentes os elementos necessários para sustentá-la, pela chamada “audiência preliminar” ou no grand jury, quando se aferirá a existência ou não da probable cause, sem a qual não se exercitará a ação penal. (CHOUKR, 2001, p. 72.) 200 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Assim, é possível identificar duas características comuns na investigação criminal preliminar acusatório nos vários países que a adotam. A participação do ofendido e a abstenção jurisdicional nesta fase, limitando-se a atuação eventual e pontual: Pode-se afirmar que o sistema acima exposto identifica as maiores aspirações reformistas, calcadas no ideal acusatório, e retiram desta cena o julgador, para conferir-lhe um papel garantidor, atuando em incidentes jurisdicionalizados dentro da investigação. (Ibid., p. 73.) Ou seja, “a entrada em cena de um ‘julgador’ nessa etapa quebraria a repartição de papeis preconizada na trilogia acusatória.” (Ibid., p. 75.) Analisar-se-á, adiante, a logística inquisitiva de investigação criminal preliminar no Ordenamento Jurídico brasileiro, consubstanciada no Inquérito Policial. 3 INQUÉRITO POLICIAL Estabelecidas as proposições maiores (sistemas processuais penais) e a proposição menor (investigação criminal preliminar), é chegado o momento de analisar tão somente a investigação criminal preliminar que corre inserida em uma lógica inquisitória, isso na Legislação Processual Penal brasileira: o Inquérito Policial. 3.1 HISTÓRICO DO INQUÉRITO POLICIAL NO BRASIL A atividade policial foi legalmente constituída no Brasil em 1842, por intermédio do Regulamento número 120 de 31 de janeiro daquele ano.(ALMEIDA, 1973, p. 64.) Entretanto, o procedimento que até hoje perdura com o nomen juri de Inquérito Policial só veio a ser regulamentado no Segundo Império: A conceituação do inquérito policial veio com a Lei 2.033, de 20.09.1871, que em seu art. 42 dizia: “O inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito”. (DAURA, 2007, p. 100.) 201 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Ou seja, de maneira geral, o Inquérito Policial já nasce com as feições que ainda hoje mantém. De certa forma, o procedimento inquisitorial policial ainda o é hoje tal e qual o era em sua gênese. Assim, porque interessante aos objetivos do Estado Novo getulista, foi mantido em sua essência no Código de Processo Penal de 1941: Unificada a legislação processual penal com a Constituição de 1934 e com o advento da Carta Constitucional de 1937, providenciou-se a promulgação do atual Código de Processo Penal (Decreto-lei nº 3.689, de 30-10-1941), que entrou em vigor em 1º-1-1942. Foi promulgado também o Decreto-lei nº 3.931 de 11-12-1941, com o nome de Lei de Introdução ao Código de Processo Penal, a fim de adaptar ao novo estatuto processual os processos pendentes. O novo Código manteve o inquérito policial e o arcaico procedimento escrito e burocrático […] (MIRABETE, 2005, p. 40.) E desde então, a única mudança significativa que ocorreu no âmbito do inquérito policial na legislação foi a alteração do verbete “jurisdições” pela expressão “circunscrições” no artigo 4º do Código de Processo Penal. Essa mudança evidencia a tendência pós Constituição de 1988 de execrar o Poder Judiciário da investigação criminal preliminar. A seguir, discorrer-se-á acerca das características do inquérito policial para, então relacioná-las aos ideais inquisitoriais. 3.2 CARACTERÍSTICAS DO INQUÉRITO POLICIAL Para perquirir acerca das características do procedimento denominado inquérito policial, o presente estudo utiliza-se da seguinte relação: “A doutrina cita as seguintes características do inquérito policial: é obrigatório (art. 5º, I); deve ter a forma escrita (art. 9º); é dispensável (art. 12); é inquisitivo (art. 14) indisponível (art. 17); e sigiloso (art. 20, caput)”. (SILVA; FREITAS, 2012, p. 30.) Primeiramente, a necessária ressalva a respeito do termo “obrigatório”, relacionado ao inquérito policial. É aqui que se faz útil a distinção entre finalidade material e formal da investigação criminal preliminar. Em se tratando da finalidade formal da instrução antejudicial, o inquérito é dispensável. Se, de qualquer outro modo, puder o titular da ação penal intentá-la, aí do inquérito policial pode-se prescindir, quanto a isto, não há dúvidas. 202 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Entretanto, ao tomar-se a finalidade material da investigação criminal, aí temos que o inquérito policial pode ser obrigatório para a Autoridade Policial, dependendo do ponto de vista. Explica-se. A finalidade material da investigação criminal preliminar, como visto, é a apuração das circunstâncias de um crime, porque a sociedade espera vê-lo elucidado. Daí a ver o seu autor processado criminalmente há a apuração da justa causa. Entretanto, o Estado tem o poder-dever de dar explicações a respeito de um fato que rompeu o equilíbrio jurídico tutelado. Daí porque se diz que a investigação criminal, por intermédio de seu procedimento típico, torna-se obrigatória. Porque a Autoridade Policial é mandada pelo Direito a apurar os crimes e o Inquérito Policial é o meio de que se pode valer para tanto: Nos termos do inciso I, o inquérito policial deverá ser instaurado de ofício pela autoridade policial, bastando-lhe tomar conhecimento da perpetração de um crime (essa é a primeira característica do inquérito policial). Geralmente, a notícia do crime lhe chega verbalmente, quando então o inquérito policial será iniciado por portaria. E, quando ele é inaugurado por portaria, fala-se que a autoridade policial agiu de ofício, independente de provocação de outrem. (SILVA; FREITAS, 2012, p. 32.) Note-se que, aqui, a Autoridade Policial age de ofício. Ou seja, agiu de uma maneira que lhe foi facultada por uma prerrogativa, ou imposta legalmente. É importante observar que, nessas duas hipóteses é a própria Lei a fonte do agir do investigador. Este é o entendimento minoritário. A maior parte doutrina entende de modo diverso. Defendem estes que, em hipótese alguma o inquérito é indispensável, ainda sob a inteligência estritamente literal do artigo 5º, I, do Código de Processo Penal: Finalmente, resta esclarecer que o inquérito policial, embora cumpra um destacado papel, inegavelmente, não é indispensável à propositura da ação penal, e tampouco é o único meio de investigação preliminar de que dispomos. Conforme as regras dos arts. 39, §5º, e 40 do CPP, a acusação pode dispensar o inquérito se tiver às mãos outras peças de informação que forneçam ao juiz uma base probatória mínima para a instauração do processo. Note-se, ademais, o teor do art. 4º, parágrafo único, do CPP, que prevê expressamente a possibilidade de procedimentos investigatórios serem realizados por outras autoridades públicas que não as da polícia judiciária. (DUCLERC, 2008, p. 81.) 203 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Eis porque o inquérito policial é dispensável do ponto de vista formal. A própria legislação admite alternativas à busca da justa causa para a propositura da ação penal. Também, cai por terra a obrigatoriedade do inquérito policial quando as notícias levadas ao Estado da ocorrência do delito, de per si, trazem os elementos necessários e suficientes para apresentação da peça acusatória: O caráter facultativo pressupõe um modelo sumário e parte da constatação de que é possível que a notitia criminis esteja suficientemente instruída para demonstrar a probabilidade do fumus comissi delicti, oferecendo razoáveis elementos que justifiquem a acusação. Dessa forma, o acusador poderá exercer a ação penal sem prévia instrução preliminar. Isso sói ocorrer nos delitos de menor potencial lesivo e complexidade probatória, que permitem a imediata acusação. A maior parte das legislações modernas permite os juízes diretos, sem prévia investigação, ou simplesmente faculta ao Ministério Público a decisão sobre a existência ou não de suficientes elementos para a formação da opinio delicti e o correspondente exercício da ação penal. Exemplo claro desse sistema facultativo é o nosso inquérito policial, pois, a teor dos arts. 39, §5º, e 40 do CPP, o MP pode dispensar o IP se com a representação forem fornecidos suficientes elementos de convicção. Por analogia, também se aplica à notícia-crime não qualificada. Inclusive, na Lei nº 9.099/95, o legislador brasileiro substituiu o inquérito policial pelo mero termo circunstanciado. (LOPES JUNIOR, 2003, p. 112.) Com a devida deferência aos doutrinadores que entendem obrigatória a instauração de inquérito policial pela Autoridade Policial, parece ser mais correta a linha de pensamento que o inquérito policial é dispensável. Do ponto de vista formal, o é por dois motivos: é facultado ao titular da ação penal fundamentar a justa causa em outras peças de informação, e; por vezes, a notícia-crime traz consigo a certeza da existência do fato e os satisfatórios indícios de sua respectiva autoria. Encerrada esta breve discussão acerca da polêmica obrigatoriedade ou dispensabilidade do inquérito policial, tendendo este trabalho à aceitação da última, passa-se agora a necessidade de que seu procedimento seja, obrigatoriamente, deitado ao papel. É mandamental que o inquérito policial seja escrito, não havendo possibilidade de a ele aplicar a forma oral: Estudar a forma dos atos do inquérito policial significa, necessariamente, analisá-los à luz de duas dicotomias: oralidade versus escritura; publicidade versus sigilo. No que se refere à primeira das dicotomias citadas, não há grandes dificuldades, visto que, conforme reza o art. 9º do CPP: 204 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, nesse caso, rubricadas pela autoridade. Trata-se, como se vê, de regra expressa, clara, sem nenhuma incompatibilidade com o texto constitucional, e que não deixa qualquer dúvida em relação à forma que devem assumir os atos do inquérito, mesmo aqueles que precisem ser realizados oralmente. (DUCLERC, 2008, p. 89.) Note-se que são os atos praticados no âmbito do inquérito policial que devem ser reduzidos a escrito. Em outras palavras, a investigação criminal preliminar, enquanto atendendo à sua função de descrever fatos, precisa tomar corpo para ser apresentada ao Estado-juiz. Ou, quando muito, para ficar registrada. O predomínio da linguagem escrita decorre, no inquérito policial, da impossibilidade de concentração das diligências investigativas em um só ato. Por muitas vezes, um elemento colhido na investigação policial leva a outro, possivelmente distante. Além disso, não é a própria autoridade policial que deve proceder às investigações, limitando-se a presidi-la e rubricá-la. As atitudes físicas que compõem o inquérito policial são executados pelos agentes da autoridade policial (escrivães, agentes, investigadores, peritos, detetives etc.), e, e só então levadas ao conhecimento do Delegado de Polícia, que os confere validade jurídica, apondo-lhes sua rubrica. Portanto, pela distância entre o inquérito policial e o fato seu objeto é que decidiu o legislador pela adoção de sua forma escrita: A dificuldade de reter o falado na memória conduz, ademais, ao princípio da concentração ou unidade de ato, que requer condensar o processo em uma ou várias sessões consecutivas. Quando forem várias as sessões, o princípio da oralidade só se manterá se existir identidade física do juiz durante todas as sessões do processo, porque, em outro caso, o atuado ante o primeiro juiz somente chegaria ao conhecimento do segundo através da escrita. (LOPES JUNIOR, 2003, p. 114.) No trecho acima, Lopes Júnior refere-se ao princípio da oralidade. Quando trata da forma escrita identifica uma problemática: “O inconveniente da forma escrita […] é que o órgão que tem de decidir se encontra só com letras mortas e incolores, perdendo-se o frescor da impressão […]”.(Ibid., p. 115.) Por óbvio que as diligências policiais não são compradas em uma loja, prontas e acabadas, escritas e com campo destacado para a rubrica da Autoridade Policial. Por isso que: Nada impede que a autoridade empreenda as investigações e realize os atos oralmente, mas, quando da elaboração do inquérito, os atos devem ser reduzidos a escrito e rubricados. A forma escrita é uma das características 205 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE do inquérito policial. Atualmente, as peças do inquérito são digitadas ou datilografadas. (SILVA; FREITAS, 2012, p. 44.) É por isso que se criou um cargo específico e importantíssimo no âmbito da polícia judiciária, presente virtualmente em todas as unidades policiais a quem é confiada a guarda e a instrução do inquérito policial: o Escrivão de Polícia, a quem “compete o trabalho material de ir pondo em ordem o Inquérito Policial, transportando para ele os elementos que forem sendo levantados, de acordo com a orientação e determinações da autoridade policial.”(COBRA, 1987, p. 6.) Por fim, uma razão apontada por Tourinho Filho para a adoção da forma escrita para o inquérito policial é que este não é um fim em si próprio. Autônomo, sem dúvidas, mas destinado a outro ator processual que dele deve tomar conhecimento e analisá-lo: “Colhidas todas essas informações, que são reduzidas a escrito ou datilografadas, a Autoridade Policial faz um relatório de tudo quanto fez à frente das investigações e encaminha esses autos de inquérito […]” (TOURINHO FILHO, 2009, p. 199.). Eis que agora passa-se a analisar a indisponibilidade do inquérito policial. Dizse que o inquérito policial é indisponível porque ao Delegado de Polícia, que o preside, é vedada a iniciativa de por termo ao procedimento. Assim, o destinatário último das diligências investigatórias, o titular da ação penal, que detém a prerrogativa de promover-lhes o arquivamento. Entendendo ser caso de arquivamento, o dominus litis promove a sua determinação à Autoridade Judiciária que, esta sim, está legitimada a determinar o arquivamento dos autos de inquérito policial. Ou seja, a autoridade policial jamais pode interferir no arquivamento dos autos, seja de forma ativa, mediante requerimento, seja passivamente, assim determinando: A autoridade policial não pode arquivar o inquérito policial, pois dele não pode dispor. O inquérito é indisponível, tanto para ela quanto para o Ministério Público. O arquivamento somente pode ser determinado pelo juiz do feito. Essa é a quarta característica. Como exaustivamente esposado, o destinatário da investigação é o representante do Ministério Público. Por consequência, ele é o único legitimado a requerer o arquivamento do inquérito policial, não o Delegado. Ainda que a autoridade policial entenda que o fato é atípico, que nenhuma prova existe contra o investigado ou indiciado, que agiu acobertado por excludente da ilicitude e que está extinta a punibilidade, os autos devem ser enviados ao órgão ministerial para que este decida o rumo a ser dado ao inquérito policial. Essa é a mens legis. (SILVA; FREITAS, 2012, p. 54.) 206 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Aliado esse entendimento à já analisada dispensabilidade do inquérito policial, é correto afirmar que a autoridade policial pode decidir por não instaurá-lo. Entretanto, uma vez iniciado, a ele não pode dar cabo. Ainda mais, nem o juiz, de ofício, tampouco o acusador podem fazê-lo. Assim, é necessária a atuação do acusador e do julgador para a determinação de arquivamentos dos autos de inquérito policial. O titular da ação penal pública é o Ministério Público e da ação penal privada o ofendido ou seu representante legal. Assim, é inadmissível que, após instaurada o inquérito policial possa ser ele arquivado pela autoridade policial. A Polícia é um órgão auxiliar com a missão de fornecer elementos à Justiça Pública para a propositura da ação penal. Ainda que fique provada a inexistência do fato, que não tenha sido apurada a autoria do ilícito penal ou que o fato não constitua crime, deverá ele providenciar seu encerramento e encaminhar os autos ao juízo competente; a providência do arquivamento cabe o juiz, após o requerimento do órgão do Ministério Público (art. 28). Nem mesmo o juiz pode determinar o arquivamento sem o referido pedido. A autoridade policial pode deixar de instaurar o inquérito quando verificar que não ocorreu o ilícito que lhe é noticiado. Instaurado o inquérito, porém, não pode arquivá-lo. (MIRABETE, 2008, p. 122.) No que importa à possibilidade de indeferimento do pedido de arquivamento, o juiz deve, então, enviar os autos ao Procurador-Geral a quem caberá a última palavra a respeito da procedência ou não do pedido. É uma forma de adequação ao procedimento acusatório, privilegiando a atuação do órgão acusador, em detrimento da iniciativa jurisdicional: Muito embora tenha o CPP fortes ares autoritários, nesse ponto privilegiou o modelo acusatório quase que na sua pureza, vez que coloca nas mãos do titular da ação penal pública a derradeira manifestação sobre a oportunidade ou não de exercitá-la. Esse é o entendimento sobre o conteúdo do art. 28 do Código de Processo Penal, que acabou por montar um mecanismo de regulação da atividade do Ministério Público empregado até mesmo em outros ramos processuais por analogia. Pelo disposto no mencionado artigo, o Juiz pode discordar do arquivamento promovido pelo Promotor. No entanto, o controle será exercitado pelo Procurador Geral de Justiça que, acolhendo o entendimento do magistrado, designará outro Promotor para oferecer a inicial acusatória ou, entendendo não ser o caso da propositura de ação, determinará o arquivamento da investigação. A conclusão que se extrai é que o modelo brasileiro se aproxima daqueles onde o controle sobre o arquivamento remanesce nas mãos do titular da ação penal, não cabendo ao órgão julgador a imposição do exercício da ação penal. O mecanismo de solução do conflito interpretativo é o hierárquico. (CHOUKR, 2009, p. 118.) 207 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Ou seja, não há, em qualquer momento do arquivamento do inquérito policial, posição ativa da autoridade policial, limitando-se esta a relatar o inquérito e submetê-lo ao dominus litis. Este sim legitimado a promover-lhe o arquivamento. Estas são as características elementares do inquérito policial, sobre as quais não há muita controvérsia. São, resumidamente: pretensa obrigatoriedade, na medida em que estaria a autoridade policial imposta por lei a dar-lhe início; dispensabilidade, eis que é possível que a exordial acusatória seja apresentada com elementos colhidos em outras espécies de investigação criminal preliminar e até mesmo na própria notícia-crime; adoção da forma escrita, dada a complexidade das diligências a serem realizadas e a destinação dos autos à autoridade distinta daquela que os preside e; indisponibilidade, visto que é defesa à autoridade policial o arquivamento dos autos de inquérito, bem como sua promoção. Na subseção seguinte, perquirir-se-á os elementos inquisitivos presentes no inquérito policial brasileiro. 3.3 ELEMENTOS INQUISITIVOS EM INQUÉRITO POLICIAL É possível identificar no procedimento policial de investigação criminal preliminar, diversos elementos inquisitivos, os quais decorrem da falsa ideia de que existe o sistema processual penal misto, como visto. O referido sistema, do ponto de vista processual, seria composto de uma fase acusatória, a ação penal, desenvolvida à guarda do juiz, e uma fase inquisitória, a investigação criminal preliminar. A ideia de que a instrução pré-processual é inquisitiva, no Brasil, deriva da análise de sua modalidade típica, o inquérito policial, no curso do qual observam-se diversos procedimentos que negam a acusatoriedade. Esclareça-se ao final: ao abordarmos a inquisitorialidade do inquérito como sua característica, longe estamos de sucumbir ao sentido gramatical ou histórico do termo, a ensejar, mutatis mutandis, a concessão de um poder discricionário e ilimitado à autoridade policial. Em realidade, com tal designação quer-se essencialmente fazer notar algo em distinção àquilo que se verifica no âmbito da ação penal, na qual, prevalecendo o princípio acusatório, as funções de instauração (denúncia) e decisão (sentença) da demanda criminal estão acometidas a instituições distintas (Ministério Público e Poder Judiciário). No âmbito do inquérito policial sua inauguração e conclusão está acometida a uma mesma autoridade (ou instituição) policial. (FELDENS; SCHMIDT, 2005, p. 23.) 208 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Admitida essa proposição de que a dicotomia ação/investigação enseja a aceitação do caráter inquisitório do inquérito policial, passa-se a justificá-la pela análise dos institutos do referido procedimento. 3.3.1 Discricionariedade da Autoridade Policial Goza, no exercício de suas funções, a autoridade policial de discricionariedade: “O inquérito policial tem natureza inquisitiva, de modo que a autoridade tem discricionariedade para decidir desta ou daquela maneira. Essa é a terceira característica do inquérito policial”. (SILVA, 2012, p. 51.) A discricionariedade do Delegado de Polícia na presidência do inquérito está adstrita ao seu entendimento acerca da necessidade de fazer tal ou qual diligência, na finalidade de apurar as circunstâncias do crime. Note-se que, não sendo seu o direito de apresentar provocação ao juízo, não deve o investigador preocupar-se em buscar elementos para formação da justa causa. Essa atribuição é do titular da ação penal, que terá seu momento de indicar à Autoridade Policial os atos de investigação que entende necessários de modo a preencher a finalidade formal da investigação criminal. Neste diapasão é que se diz que a autoridade policial tem o poder de escolher as diligências que empreenderá para esclarecer as circunstâncias do fato-objeto. É assegurado, entretanto, o direito dos envolvidos no crime de requerer à instituição policial a realização de diligências. Não está, contudo, obrigada a autoridade a deferi-las: Apesar de ser o inquérito policial um procedimento inquisitivo, em que não vigora o princípio do contraditório, possibilita a lei que o indiciado requeira diligência para esclarecimento do fato, em seu benefício. A mesma faculdade é concedida ao ofendido. Diante do dispositivo também é possível a ambos requerer a juntada aos autos do inquérito de documentos relativos ao fato ou à prova dele e de suas circunstâncias. Cabe, entretanto, à autoridade policial, segundo seu critério, deferir ou não tais requerimentos. Caso a diligência ou a juntada de documentos possa servir, presumivelmente à apuração do fato ou de suas circunstâncias, ainda que favorecendo o indiciado, deve deferir o pedido. (MIRABETE, 2008, p. 118.) É de salientar que, no trecho acima, o autor defende a tese de que o órgão investigador não deve fundamentar a justa causa. Esta existe ou não, e é consequência direta da apuração dos fatos. Quando a autoridade investigadora 209 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE encontra um indício que possa favorecer o investigado, deve, da mesma forma, fazê-lo juntar aos autos. E deve fazê-lo porque o inquérito policial apura fatos e circunstâncias, não culpabilidade. Esta deve ser demonstrada no decorrer da ação penal, sob a guarida do contraditório e da ampla defesa. Nota-se, aqui, clara desproporção entre a acusação e a defesa. A acusação, que, a priori, nem teve contato com o fato delituoso pode requisitar diligências e a Autoridade Policial está obrigada a realizá-las. Se o investigado, por outro lado, requerê-las, suplicá-las, é garantido ao Delegado o direito de ponderar sobre o pedido e indeferi-lo: Então, outra conclusão a que se chega não é a de que, em verdade, o indiciado não possui nenhum direito de exigir da autoridade policial a realização de diligências que seriam de seu interesse. Com todas as letras a lei diz que essas diligências poderão ou não, ser realizadas, a critério da autoridade policial. Vejo, então, que o Código de Processo Penal se mantém atrelado ao princípio da inquisitorialidade no inquérito policial, pois tudo quanto possa vir a requerer o indiciado deve passar pelo talante da autoridade policial. O delegado é então o árbitro único dessa providência, desde que requerida pelo indiciado. É natural, se diligência qualquer venha a ser requisitada pelo juiz ou promotor, deve ele cumprir, sem nenhuma consideração de oportunidade ou conveniência. Mas se o miserável do indiciado é o requerente, tudo fica ao alvedrio da autoridade policial. (ROCHA, 2007, p. 110.) O “livre-arbítrio”, entre aspas porque limitado pela lei, da autoridade policial determina, sobremaneira um indício de que o inquérito policial é, inegavelmente, revestido de institutos que podem ser considerados inquisitivos. É preciso o ensinamento de Tourinho Filho: O inquérito também é inquisitivo. Fácil constatar-lhe esse caráter. Se a Autoridade Policial tem o dever jurídico de instaurar o inquérito, de ofício, isto é, sem provocação de quem quer que seja (salvante algumas exceções); se a Autoridade Policial tem poderes para empreender, com certa discricionariedade, todas as investigações necessárias à elucidação do fato infringente da norma e à descoberta do respectivo autor; se o indiciado não pode exigir sejam ouvidas tais ou quais testemunhas nem tem o direito, diante da Autoridade Policial, às diligências que, por acaso, julgue necessárias, mas, simplesmente, pode requerer sua realização e ouvida de testemunhas, ficando, contudo, o deferimento ao prudente arbítrio da Autoridade Policial, nos termos do art. 14 do CPP (salvo em se tratando de exame de corpo de delito ou de diligência imprescindível ao esclarecimento da verdade, ficando esta última a juízo da autoridade, nos termos do art. 184 do CPP), conclui-se, seu caráter é inquisitivo. (TOURINHO FILHO, 2009, p. 216.) 210 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A discricionariedade, ausência da exigibilidade de fundamentação fica bastante evidente nos comentários de Guilherme Nucci ao Código de Processo Penal: a vítima, pessoalmente ou através de seu representante legal, bem como o indiciado – a pessoa oficialmente apontada como suspeita pela prática do crime – podem requerer ao presidente do inquérito, que é a autoridade policial, a realização de alguma diligência que considerem útil à busca da verdade real (ouvida de alguma testemunha, realização de exame pericial etc.), podendo ser este pleito deferido ou indeferido, nem necessidade de qualquer fundamentação. (NUCCI, 2008, p. 113.) Note-se que o fundamento ideológico da discricionariedade policial é a busca pela verdade real, que também fundamentou todos os procedimentos inquisitivos estudados no presente trabalho. Em suma, a discricionariedade policial em realizar apenas e tão somente as investigações que a própria autoridade policial entender necessárias traduz-se em elemento inquisitório do inquérito policial. Isto porque denota um desequilíbrio entre o Ministério Público, que pode requisitar diligências que não são passíveis de indeferimento, e a defesa, que depende do “cumpra-se” do Delegado de Polícia. 3.3.2 Sigilo das Diligências Dando prosseguimento à análise dos elementos inquisitivos observados no instituto em análise, identifica-se clara oposição aos ideais acusatórios no sigilo exigido da autoridade policial. A doutrina favorável à adoção do segredo do inquérito policial o fundamenta na efetividade da investigação policial: A autoridade policial cuidará para que fique assegurado o sigilo das investigações necessárias à elucidação do fato. Essa característica, a quinta, tem por fim resguardar o interesse público, pois o Estado tem todo o interesse na apuração do crime e de sua autoria e, obviamente, o sigilo é imprescindível para o sucesso das investigações. Em outros termos, se o sigilo não for resguardado, o inquérito policial estará fadado ao insucesso. Impensável uma investigação que não seja sigilosa. Se a regra é o sigilo, casos haverá em que a divulgação do fato e da autoria venha de encontro ao interesse público, por exemplo, em crimes que causam clamor público e que o autor conhecido encontra-se foragido. Nada impede que a autoridade policial publique a foto em jornais, informe que existe ordem de prisão contra o investigado e peça auxílio da população. (SILVA; FREITAS, 2012, p. 59.) 211 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE É de observar-se que a favor da publicidade dos atos do inquérito pesam somente argumentos contrário à liberdade do réu, na doutrina que defende o segredo. Defendem estes que a investigação deve ser secreta, para que seja efetivada. Entretanto, para que se possa trazer o investigado às grades ou submetêlo aos dedos em riste da população, aí sim deve o inquérito ser aberto à opinião pública. Tudo isso sob a sensação de que o indiciado alguma coisa fez para merecer ser alvo de investigação, ideal completamente alinhado ao sistema inquisitivo. Aury Lopes Jr., por sua vez, entende que o sigilo da investigação tem duas faces. O segredo externo: Cumpre destacar, seguindo a Manzini, que o segredo refere-se aos atos instrutórios (e da polícia judiciária), não ao delito em si mesmo, cuja perpetração na maioria dos casos vem a ser publicamente conhecida pela natureza mesma das coisas e a consequência das atuais relações sociais. Assim, a esfera de proteção alcança pelo segredo engloba os atos levados a cabo na instrução preliminar, como os de investigação e comprovação dos fatos, e também as conclusões a que, com base nestes elementos, chega ao órgão do poder público encarregado da atividade investigatória. Não serve para limitar a divulgação do fato delitivo pelos meios de comunicação. O fato é público. Secretas são as atuações do órgão instrutor/investigador […]. (LOPES JUNIOR, 2003, p. 119.) E o segredo interno: O segredo interno se concretiza na proibição para alguns sujeitos processuais de tomarem conhecimento de determinados atos da investigação preliminar. Por suposto, existe uma incompatibilidade lógica entre o segredo interno e a publicidade externa (ausência de segredo externo), de modo que o primeiro pressupõe a impossibilidade do segundo. Em outras palavras, o segredo interno pressupõe também o externo. Também devemos partir da premissa de que o segredo interno não alcança aos órgãos do Estado, de modo que jamais a investigação preliminar poderá ser secreta para o juiz ou promotor, independente de quem seja o titular. Logo, o segredo interno atinge fundamentalmente o sujeito passivo. (LOPES JUNIOR, 2003, p. 124.) Com outra dicção: o segredo externo, para Lopes Júnior, é aquele que impede que pessoas estranhas à investigação tenham acesso às minúcias que ali se desenvolveram. O segredo interno, por sua vez, garante acesso dos órgãos estatais a todos os atos investigativos e proíbe o acesso do investigado a qualquer um deles. Fauzi Hassan Choukr defende que o sigilo das investigações não é apenas inquisitivo. É também inútil para todos os fins a que se propõe: 212 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Diante do cenário presenciado, pode-se concluir que o sigilo, enquanto previsão derivada da CR e da CADH, tal como regulado pelo Código de Processo Penal, não satisfaz qualquer dos objetivos a que se propõe. Não é suficiente para disciplinar a administração do sistema penal, pois a divulgação do produto do meio de investigação que deveria ter permanecido em sigilo pode ser feita sem qualquer constrangimento ao longo da investigação ou do futuro processo penal; não é suficiente para salvaguardar as pessoas envolvidas que, sem qualquer poder reação contra a quebra do sigilo, podem se rebelar apenas por meio de medidas compensatórias patrimoniais, se e quando assim reconhecidas ao final de um processo judicial com tal objeto; não traduz o equilíbrio entre a necessidade da preservação da investigação e a liberdade de imprensa, sendo que esta última, num desvio patológico, apresenta-se como distorção da informação e acaba por não cumprir seu papel vital no espaço democrático: não é livre nem informa. (CHOUKR, 2009, p. 89.) Há, no entanto, que considerar-se a possibilidade de acesso do defensor do investigado aos autos. Consubstanciando-se a defesa técnica como garantia fundamental, é de ressalvar-se a necessidade de garantir ao defensor do indiciado o acesso aos autos: Portanto, em síntese, o sigilo não é, atualmente, de grande valia, pois se alguma investigação em segredo precise ser feita ou esteja em andamento, pode o suspeito, por intermédio de seu advogado, acessar os autos e descobrir o rumo que o inquérito está tomando. (NUCCI, 2008, p. 119.) É tão flagrantemente contrário ao sistema acusatório o sigilo da investigação transcorrida em inquérito policial que o Supremo Tribunal Federal editou Súmula Vinculante garantindo ao advogado do investigado o acesso ao feito. Trata-se da Súmula Vinculante nº 14, de 2009, a qual confere ao advogado o acesso ao que já foi registrado nos autos do inquérito. O sigilo do inquérito é extremamente autoritário, sem sombra de questionamentos. Entretanto, é sintoma de um elemento ainda mais alinhado com o sistema inquisitório de persecução criminal, que lhe sustenta. É a impossibilidade de exercício do contraditório, sobre a qual trata a próxima subseção. 3.3.3 Ausência de Contraditório. É aqui que se traduz, de maneira mais inequívoca possível, a afinidade do inquérito policial com a lógica inquisitiva de persecução criminal. Como visto na 213 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE análise dos sistemas processuais penais, o do tipo inquisitivo veda a possibilidade do réu manifestar-se no processo, salvo para confessar a autoria do crime Esta é a característica nuclear do sistema acusatório, que visa garantir que o acusado disponha de todas as formas de defender-se das investidas do Estado. Nessa ordem de ideias, pode-se afirmar que quando é conferido ao processado a possibilidade de contraditar o que lhe é imputado, há, ao menos, indícios de acusatoriedade. No inquérito policial isso não acontece. Primeiramente, é necessário salientar que a doutrina entende que a natureza jurídica do inquérito policial não é processual, mas procedimental: O inquérito policial não é um processo, mas simples procedimento. O Estado, através da polícia, exerce um dos poucos poderes de autodefesa que lhe é reservado na esfera de repressão ao crime, preparando a apresentação em juízo da pretensão punitiva que na ação penal será deduzida através da acusação. O seu caráter inquisitivo é, por isso mesmo, evidente. A polícia investiga o crime para que o Estado possa ingressar em juízo, e não para resolver uma lide, dando a cada um o que é seu. (MARQUES, 2000, p. 164.) Retirando o caráter processual da atividade investigativa a cargo da polícia, é conferida a tendência ao inquérito policial de mitigar valores e garantias que, no processo, são de titularidade do acusado. O entendimento de que o inquérito policial é procedimento administrativo, pois, teria o condão de subtrair do investigado o direito ao contraditório. Em se considerando a finalidade formal da investigação criminal preliminar, o inquérito policial destina-se à colheita de elementos que ensejem a propositura da respectiva ação penal: “Tradicionalmente a investigação preliminar é encarada como uma etapa administrativa, cuja finalidade é a de fornecer elementos para o legitimado ativo propor ou não a ação penal.” (CHOUKR, 2001, p. 124.) Assim, não há a necessidade, ou mesmo o interesse, de garantir ao investigado a possibilidade de defender-se, o que poderá ser feito na eventual e futura ação penal. Isso em uma ótica inquisitiva. É o que ensina Francisco Monteiro Rocha: Isto posto, vemos que o indiciado fica totalmente tolhido no seu propósito de apresentar provas, já na fase de investigações policiais. Essa não possibilidade do contraditório nessa fase é o que caracteriza o inquérito policial como peça inquisitorial. (ROCHA, 2008, p. 110.) 214 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Conforme defendido anteriormente, a admissão da existência de um sistema processual misto enseja a negação de que ele seja acusatório. Essa dicotomia entre a ação penal e a investigação criminal preliminar é outro elemento que evidencia a natureza inquisitiva do inquérito policial. Entretanto, conforme insistentemente frisado neste trabalho, a característica que mais espelha a natureza inquisitorial do procedimento é a figura do acusado no processo. 4.3.4 Indiciado Como Objeto de Investigação E, por fim, analisa-se o estatuto do investigado na investigação por inquérito policial. Perfilando-se a discricionariedade da autoridade policial, o sigilo das investigações, a ausência do contraditório e a negação do caráter processual do inquérito policial, a conclusão a que se chega é a de que o investigado é dele mero objeto. É o que leciona Tourinho Filho: Se o inquérito é eminentemente, não contraditório, se o inquérito policial, por sua própria natureza é sigilos, podemos, então afirmar ser ele uma investigação inquisitiva por excelência. Durante o inquérito, o indiciado, na verdade, não passa de simples objeto de investigação. Certo que a Constituição lhe assegura uma série de direitos, inclusive o de silenciar. Mas, quanto a ter o direito de exigir esta ou aquela prova, não. Sob esse aspecto, ele não passa de objeto de investigação. Só sob esse aspecto. No inquérito não se admite o contraditório. A autoridade o dirige secretamente. Uma vez instaurado o inquérito, a Autoridade Policial o conduz à sua causa finalis (que é o esclarecimento do fato e sua respectiva autoria), sem que deva obedecer a uma sequencia previamente traçada em lei. Ora, o que empresta a uma investigação o matiz da inquisitorialidade é, exatamente, o não permitir o contraditório, a imposição da sigilação, a ausência de concatenação dos atos e a não intromissão de pessoas estranhas durante a feitura dos atos persecutórios. Nela não há Acusação nem Defesa. A Autoridade Policial, sozinha, é que procede à pesquisa dos dados necessários à propositura da ação penal. Por isso tudo, o inquérito é peça inquisitiva. (TOURINHO FILHO, 2009, p. 216.) A soma de todos esses elementos, por si só, denota uma gritante afinidade do inquérito policial com o procedimento inquisitivo. É quase redundante o próprio Tourinho Filho arrematar: “Tal dispositivo é uma decorrência do caráter inquisitivo do inquérito policial, pois que o indiciado não é um sujeito em face da Autoridade Policial, mas, sim, um objeto de investigação”.(Ibid., p. 217.) 215 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A figura objetiva do indiciado é tão evidente, que José Frederico Marques chega a condenar a sua “intromissão” no processamento do inquérito policial: Logo, é também desaconselhável uma investigação contraditória processada no inquérito. Ao contrário do que pensam alguns, não se deve tolerar um inquérito contraditório, sob pena de fracassarem as investigações policiais, sempre que surja um caso de difícil elucidação. À polícia judiciária deve ser dado um amplo campo de liberdade de ação, limitado tão-só pelas sanções aos atos ilegais que seus agentes praticarem. É, aliás, o que mais condiz com seu caráter de atividade administrativa, que se exercita no interesse da ordem pública e do bem comum, como preparação indispensável a uma atuação eficaz da persecutio criminis ulterior, através do Ministério Público. Nesse ponto foi sábio o Código, deixando à discrição da autoridade que preside ao inquérito admitir os depoimentos de testemunhas do réu ou do ofendido. A investigação policial não pode ser tumultuada com a intromissão do indiciado. Somente quando o caso a averiguar é duvidoso, deve a polícia atender aos pedidos de prova formulados pelo réu ou pelo ofendido. A necessidade, porém de praticar tais atos instrutórios fica entregue à apreciação discricionária da autoridade policial. (MARQUES, 2000, p. 168.) E vai além, defende ainda, que no curso da investigação criminal pela polícia judiciária o único direito que não pode ser vulnerado é sua liberdade: Em todas essas hipóteses, quer agindo discricionariamente, quer atuando estritamente vinculada à lei, mantém a autoridade policial ao réu, como objeto de investigações, e não como sujeito ou titular de direitos. O que o indiciado pode exigir é tão-só, que lhe seja respeitado o status libertatis, de forma que é vedado à polícia, fora dos casos estritamente legais, prender o réu ou recusar-lhe a fiança […]. (Ibid., p. 165.) Tão ignominiosa, e até pejorativa, é a situação do indiciado, potencial réu e eventualmente condenado, que a doutrina encontra dificuldades para descrevê-la com palavras além de “objeto”. Seguindo essa tendência, faz-se a já costumeira recapitulação do apurado na presente subseção. Existem institutos admitidos no inquérito policial brasileiro que permitem ao estudioso do Direito classificá-lo como instrumento inquisitivo. São eles: a discricionariedade da autoridade policial, que pode recusar diligências requeridas pelo indiciado; o sigilo das investigações, negando ao investigado o direito de ter acesso aos autos; a natureza procedimental do inquérito policial, que permite a subtração do direito ao contraditório e; a qualidade que se confere ao indiciado de objeto de investigações, enquanto num processo acusatório ele seria sujeito de direitos. 216 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Encerra-se aqui a análise do inquérito policial como atualmente está disciplinado na legislação brasileira. 217 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios Fundamentais do Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 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Professor de Direito Penal na graduação do UNICURITIBA. Associado fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Membro da Comissão da Advocacia Criminal da OAB/PR. Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). Membro do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP). Advogado. 1 2 223 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SUMÁRIO Resumo. Abstract. 1 Introdução. 2 Teorias sobre autoria e participação. 2.1 O conceito unitário de autor. 2.2 O conceito extensivo de autor. 2.3 O conceito restritivo de autor 2.3.1 Teoria objetivo-formal. 2.3.2 Teoria objetivo-material. 2.4 Teorias subjetivas. 2.5 Teoria do domínio do fato. 2.6 Sobre os delitos de infração de dever. 2.6.1 A autoria nos delitos de infração de dever na visão de Claus Roxin 3 A autoria e participação no Brasil. 3.1 O código penal do Império. 3.2 O código penal da República 3.3 O código penal de 1940. 3.4 A Lei n° 7.209/84 e a reforma de 1984 ao código penal e as questões sobre autoria e participação. 4 Conclusão. Referências. RESUMO 224 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE O presente artigo objetiva demonstrar quais são as diferentes formas pelas quais o legislador brasileiro abordou as questões referentes à autoria e participação no Código Penal Brasileiro vigente. No entanto, para que fique mais clara essa apresentação, é preciso apontar-se para as diferentes teorias que se preocuparam em desenvolver essa problemática, portanto, após ser feita a análise das diversas teorias, poder-se-á observar com maior acuidade os diferentes modelos de responsabilização que foram adotados nos Código Penais que já vigeram no Brasil. Contudo, dar-se-á maior visibilidade para o Código Penal atual, que teve sua parte geral alterada pela Lei 7.209/84. Palavras-chave: autoria e participação, Código Penal Brasileiro, Direito Penal ABSTRACT 225 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE This study aims to demonstrate which forms were used by the brazilians legislators to approach the questions relatives to the co-perpetration in the actual Brazilian Criminal Code. However, to make this presentation clearer, it’s necessary to point to the different theory’s that occupy with this sort of problem but, after this short analysis about this theory’s, it will be possible to understand the models that were adopted in the Criminal Codes that applied in Brazil. Although, this study will focus in the actual Brazilian Criminal Code, that were altered by the law 7.209/84. Keywords: co-perpetration, Brazilian Criminal Code, Criminal Law. 1 INTRODUÇÃO 226 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Este artigo tem como objetivo a análise das questões relativas ao Concurso de Pessoas3 no Direito Penal Brasileiro. Dessa forma, discorrer-se-á, principalmente, a respeito da problemática que gira em torno das teorias de autoria e participação e quais delas teriam sido adotadas pelo legislador pátrio. Tendo em vista a complexidade das questões inerentes à autoria e participação, o presente trabalho se iniciará com uma breve explanação sobre as diferentes teorias que tentaram elucidar os problemas que surgem quando se tenta fundamentar a responsabilização de diferentes intervenientes na realização de fato passível de se subsumir à abstração legal. Para, posteriormente, perpassar-se pelos diferentes Códigos Penais que já vigeram no país e a diferente abordagem que disponibilizaram sobre o tema desse artigo, a fim de que na conclusão seja feita a análise da opção vigente no que diz respeito à responsabilização penal dos diferentes intervenientes que praticam um fato delituoso. Nessa toada, preciso que se observe um ponto de partida relevante antes que se passe ao trabalho: são somente nos casos em que há Concurso de Pessoas, ou seja, quando duas ou mais pessoas agem conjuntamente para o cometimento de um fato criminoso, que se encontram dificuldades para delimitar a autoria e, consequentemente, a participação. Por isso, há que se considerar o ponto de vista do jurista alemão Günter Stratenwerth sobre a autoria: “Con respecto a la autoría no es necesario gastar ni una palabra cuando, en el caso concreto, solo uma persona aparece como causante del suceso adecuado al supuesto de hecho típico: si ella ha realizado los aspectos objetivos y subjetivos del supuesto de hecho típico penal, y lo ha hecho antijurídicamente (y si es posible también culpablemente), precisamente por estos motivos, será el autor, y resultaría tautológico nombrarlo expresamente.”4 Sendo assim, tem-se que considerar que as teorias que tratam a respeito da autoria e participação surgem para tentar elucidar as questões que decorrem do concurso de pessoas na prática delitiva. 2 AS TEORIAS SOBRE AUTORIA E PARTICIPAÇÃO 3 O termo Concurso de Pessoas foi o tema adotado pelo Legislador pátrio quando da alteração realizada na Parte Geral do Código Penal em 1984. 4 STRATENWERTH, Günter. Derecho Penal: parte geral, I. Tradução Gladys Romero. Madrid: Edersa, 1982. p. 228. 227 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 2.1 CONCEITO UNITÁRIO DE AUTOR O conceito unitário de autor é famoso por não diferenciar autor e partícipe, desta forma, considerando autores todos aqueles que contribuam causalmente para prática delitiva, teoria da conditio sine qua non. No entanto, este conceito não se funda simplesmente na causalidade, mas, também, na teoria da equivalência das condições, a qual equipara todas as ações que preencham o critério da causalidade, não distinguindo qualitativamente as condutas praticadas pelos agentes: “El nexo causal jurídico-penalmente relevante adquiere su máxima extensión si se lo determina con ayuda de la llamada teoria de la condición o de la equivalencia. De acuerdo con ella, todas las condiciones que coadyuvan a la producción del resultado tienen idêntico valor: causa en sentido jurídico penal es toda condiciòn que no pueda suprimirse mentalmente sin que desaparezca el resultado (fórmula de la condicio sine qua non). Toda acción que pone una condición, realiza – en los delitos de resultado – el supuesto de hecho típico objetivo y, por lo tanto, puede conducir a la responsabilidad jurídico-penal. Esto rige sin tomar en consideración el hecho de que otras condiciones hayan sido también necesarias para la producción del resultado y aún cuando se tratara de improbables casualidades. Concretamente no se pone a ello ni la participación culpable del afectado, ni la intervención de un tercero. La imputación solamente se limita en los niveles posteriores de la estructura del delito.” 5 O conceito unitário de autor tem em sua defesa o fato de acabar com as lacunas de punibilidade, mas, mesmo assim, este conceito não escapa às críticas, vez que produz, dentro da análise de alguns casos limites, soluções que não podem ser toleradas. A aplicação do conceito unitário afasta o principio da legalidade, já que podem ser punidos como autores aqueles que praticam condutas não descritas pelo tipo penal que lhes é imputado. Além disso, nos delitos de mão própria e especiais aqueles que não praticam o fato ou não possuem a qualificação prevista no tipo podem ser sancionados como autores, o que também fere a princípio da reserva legal. Dentro da perspectiva da aplicação do referido conceito, pode-se ainda identificar a extensão da punibilidade nos casos de tentativa: 5 STRATENWERTH, 1982, p. 81. 228 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE “En contra del concepto unitario de autor, pese a que a primera vista pueda aparecer como sencillo y prático, concurren graves objeciones. Por una parte, al convertise todas las contribuciones al hecho en la causación de lesiones del bien juridico, se pierde lo injusto específico de la acción de cada tipo. Por outra parte, en los delitos de propia mano y especiales habría que considerar también autores a intervenientes extraños por la pura causalidad de su cooperación, a pesar de que precisamente no actúan de propia mano o no están cualificados para ser autores. Además, el abandono del principio de accesoriedad determinaria la supresión de las fronteras del tipo. El concepto unitário de autor conduce también a una ampliación indeseable de la punibilidad, puesto que la tentativa de cooperación resultaria punible en todos aquellos casos en los que el tipo permite la punibilidad de la tentativa, mientras que de lo contrario la tentativa de participación únicamente tiene señalada pena dentro de estrechos limites.” 6 As críticas recebidas por este conceito são insuperáveis, dessa forma, em busca de elaborar uma forma diversa de abordar a questão que gira em torno da autoria e participação, surgiram outras teorias que se ocuparem desta de temática, e que agora serão analisadas. 2.2 CONCEITO EXTENSIVO DE AUTOR O conceito extensivo de autor possui grandes semelhanças com o conceito unitário de autor, isto porque, ambos fundam-se na causalidade e na teoria da equivalência das condições. Porém, existe uma circunstância que os distingue. A distinção entre estes conceitos deriva do fato de que no sistema jurídico em que é aplicado o conceito extensivo existem normas que qualificam a participação como atenuação da pena7. Mariana Tranchesi Ortiz, também considerando esta diferença, afirma que é da conjunção entre o conceito unitário com a legislação penal, que prevê a participação como atenuação, que surge o conceito extensivo de autor: “A combinação da concepção unitária da colaboração ao delito com uma legislação penal disciplinadora da participação conduziu à formulação do conceito extensivo de autor, segundo o qual o partícipe é partícipe não 6 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: Parte General, vol. II. Trad. Santiago Mir Puig; Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981. p. 890. 7 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro, volume I: parte geral. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2008, p. 571. 229 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE porque sua contribuição ao crime possua, em si, menor relevância, mas porque a lei previu expressamente uma hipótese que lhe limita a punibilidade.”8 Ademais, para este conceito o partícipe é autor, porém, beneficiado por uma causa de restrição da pena, ou seja, não há uma verdadeira distinção entre autoria e participação, já que, essencialmente, para este conceito todos os que contribuem para prática de um delito são autores: “Según ella, también el inductor y el cómplice son en sí autores, pero el establecimento de especiales preceptos penales para la participación pone de manifiesto que estas formas de intervención en el marco del concepto global de autor deben tratarse de forma distinta de la autoría misma. La inducción y la complicidad, aparecen, así, como causas de restricción de la pena.”9 Desta forma, as críticas que se fizeram ao conceito unitário de autor são válidas para o conceito extensivo de autor, que pouco inova sobre a questão da autoria e participação no Direito Penal. 2.3 CONCEITO RESTRITIVO DE AUTOR O conceito restritivo de autor se distingue dos conceitos analisados acima pelo fato de diferenciar as condutas daqueles que contribuem para pratica de fato penalmente relevante: “O conceito restritivo é aquele que melhor se coaduna com a perspectiva das teorias positivas, uma vez que não apenas admite a existência de duas classes distintas de intervenção delitiva, mas também pressupõe a existência de diferenças intrínsecas entre ambas, que não se situariam apenas no âmbito da culpabilidade, mas conformariam o próprio injusto.” 10 A distinção entre autor e partícipe no conceito restritivo de autor se dá pelo estabelecimento de critérios objetivos. Desta forma, a definição da autoria afasta-se do critério causal: 8 ORTIZ, Mariana Tranchesi. Concurso de agentes nos delitos especiais. São Paulo: IBCCRIM, 2011. p. 48. 9 JESCHECK, 1981, p. 895. 10 TRANCHESI, op. cit., p. 55-56. 230 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE “A admissão de diferenças objetivas entre as condutas de autoria e as de participação em sentido estrito, pelo conceito restritivo de autor, conduz à ruptura com o dogma causal, que tão fortemente embasou as concepções unitária e extensiva. Para a concepção restritiva, a realização do tipo delitivo não equivale à interposição de um condição causal ao resultado (naturalístico ou normativo).”11 Além disso, é importante pontuar que, diferentemente do que ocorre com o conceito extensivo, onde a participação é simples atenuação da pena, na aplicação do conceito restritivo há uma ampliação da punibilidade para que se alcance a conduta do agente: “A razão de ser dessa diferença estrutural é simples: na medida em que, para o conceito extensivo, todos aqueles que interpõem uma causa para o delito devem ser considerados autores, a previsão normativa das formas de participação apenas pode ser explicada sob a ideia de que constituem causas de restrição da punibilidade. Já no que diz respeito à postura restritiva, segundo a qual a conduta típica é perpetrada pelo autor, apenas se admitindo a participação como uma hipótese de ampliação do âmbito do punível é que se torna justificável a repressão da conduta do partícipe.”12 As principais teorias que buscaram descrever os critérios objetivos em que se distinguiriam, no conceito restritivo, as condutas de autores e partícipes são as teorias objetivo-formal e objetivo-material, que serão descritas abaixo. 2.3.1 Teoria Objetivo-Formal A teoria objetivo-formal parte da ideia de que só pode ser autor “aquele que executa, total ou parcialmente, a conduta que realiza o tipo (de ilícito)” 13. Sendo assim, as outras condutas que possuam relação causal com o resultado seriam determinadas como contribuições dos partícipes: “Según esto, autor es, sólo, quien comete por si mismo la acción típica, mientras que la sola contribuición a la causación del resultado mediante 11 TRANCHESI, 2011, p. 56. Ibidem, p. 57. 13 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral: Tomo I: Questões Fundamentais: a doutrina geral do crime. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Portugal: Coimbra Editora, 2007, p. 759. 12 231 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE acciones no típicas no puede fundamentar autoria alguna (concepto restrictivo de autor).”14 Entretanto, as dificuldades surgem da incapacidade deste critério demasiado formalista em determinar os autores nos delitos de resultado, já que nestes o tipo penal não define qual conduta é proibida, mas pune qualquer tipo de conduta que produza o resultado danoso. Assim como, nos casos de autoria mediata em que o autor utiliza-se de um instrumento para realizar o fato delituoso. Sobre estas dificuldades esclarece Stratenwerth: “Sin embargo, tanto aquí como allí, se impone la necesidad de delimitar el concepto de “acción ejecutiva” de modo más preciso (conf. supra No. 653): ? ejecuta el delito de homicidio doloso el que hace caer a la víctima en la trampa o sólo aquél que dispara el tiro mortal? Enfrentados a esta cuestión, los representantes de la teoria formal objetiva han respondido, en primer término, que el autor sólo sería aquél que realiza el supuesto de hecho “personalmente” (Graf zu Dohna, Der Aufbau de Verbrechenslehre 3ra. ed., 1947, 59). No obstante, de este modo no se eliminan las dificultades: ? con qué derecho se podria decir por ejemplo, que solamente el disparo ha realizado la acción adecuada al supuesto de hecho personalmente, o a la inversa: con qué derecho se incluye al otro como coautor? Pero, por otra parte, se presentan nuevas dificultades, especialmente cuando el “autor” se sirve de um instrumento inocente en la comisión del delito, es decir, cuando precisamente no ejecuta el hecho con propria mano. Esta complicaciones sólo permiten a la teoría formal – objetiva explicitar el critério del que, en realidad, había partido: el critério del “uso común del lenguaje”, es decir, aquél que puede permitir extender los verbos (“matar”, “sustraer”, etc.) utilizados en los supuestos hecho legales, hasta alcanzar los casos de utilización instrumental de otra persona, o sea, la comisión por mano ajena (Beling, Grundzüge des Strafrechts, 11ª. edición, 1930, 37, 39 y ss.). Este recurso al uso del lenguaje, significa la renuncia a la formulación de critérios distintivos precisos. La teoría formal–objetiva tan sólo puede proporcionar, como en la tentativa, un primer punto de apoyo.” 15 Em busca de solucionar algumas das dificuldades da teoria objetivo-formal foi formulada a teoria objetivo-material: “O que em desfavor dela se aponta é que – paralelamente ao que vimos acontecer com a correspondente teorização dos actos de execução na tentativa – ela não é, por si própria e sem outros desenvolvimentos, suficientemente explícita quanto à definição dos critérios prático-normativos da autoria, importando procurar, atrás das palavras da lei com que se exprime o tipo de ilícito, o que significa “executar o facto”; para o que se torna por sua vez indispensável determinar que elementos do 14 15 JESCHECK, 1981, p. 892. STRATENWERTH, 1982, p. 228-229. 232 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE comportamento assumem relevo para a distinção, e porquê. A isso vieram as chamadas teorias material-objectivas.”16 Sem mais, passamos a descrição da teoria objetivo-material. 2.3.2 Teoria Objetivo-Material Conforme exposto acima, é da falta de aptidão da teoria objetivo-formal em determinar autores e partícipes nos crimes de resultado que fez surgir a teoria objetivo-material. A teoria objetivo-material busca valorar, objetivamente, as diferentes condutas praticadas pelos agentes na intervenção delitiva. Nos dizeres de Mariana Tranchesi Ortiz, os autores seriam aqueles que praticassem a conduta mais relevante para a realização do delito: “O critério material a que recorre a teoria objetivo-material é o do valor objetivo da contribuição de cada qual dos intervenientes, identificando-se o autor como aquele que realiza a contribuição objetivamente mais importante para o sucesso delitivo.”17 Esta graduação das contribuições dos diferentes intervenientes também não satisfaz a problemática da autoria, uma vez que não é só o “suceso externo” 18 que determina a diferença entre as diversas contribuições para a pratica de fato penalmente relevante. Nesta toada, é necessário utilizar-se, novamente, das palavras de Günter Stratenwerth: “Buscar la característica de la acción ejecutiva, en una relación causaI especialmente intensa com respecto al resultado adecuado al supuesto de hecho, es un intento que se há manifestado como irrealizable: en principio, no es posible distinguir las causa necesarias o imprescindibles de las que tienen solamente un papel secundário (Feuerbach, Lehrbuch des peinlichen Rechts, 9ª. ed., 1826, 44 y s.). Pero, además, tampoco se pueden distinguir las causas de las condiciones, o la causalidad física de la psíquica (Frank, II prévio al § 47, pág. 104); y aún cuando esto no fuese así, tales distinciones nada tienen que ver com el nucleo de la cuestión, como se advierte em cuanto se admite que la autoría tiene que depender (por lo menos también) de momentos subjetivos, tales como el conocimiento de los hechos. 16 DIAS, 2007, p. 759-760. TRANCHESI, 2011, p. 68. 18 JESCHECK, 1981, p. 894. 17 233 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Precisamente esta objeción, también, es válida frente todas las teorias que tan sólo se quieren apoyar en critérios objetivos-exteriores.”19 O autor português Jorge de Figueiredo Dias vai um pouco mais além do conceito citado acima ao sustentar que a teoria objetivo-material, por fundar-se na causalidade, não ultrapassa o conceito extensivo de autor: “Perante a falência das teorias objectivas da autoria fundadas na categoria da causalidade e defensoras, por isso, de um conceito extensivo de autor, procurou-se no lado subjectivo do crime o fundamento da autoria”20. Por fim, o que se destaca é que da incapacidade das teorias objetivas em solucionar os diferentes problemas de autoria e participação que surge a teoria subjetiva. 2.4 TEORIAS SUBJETIVAS É, na verdade, a falta de outro critério, que não o objetivo, para distinguir autoria e participação, que faz surgir as teorias subjetivas, sendo que estas elegeram parâmetros subjetivos dos intervenientes e do crime para que fossem determinadas a autoria e a participação nos fatos relevantes para o Direito Penal. Neste sentido, esclarece Jorge de Figueiredo Dias sobre o fundamento da autoria pautado pelo lado subjetivo do ilícito-penal: “Este seria encontrado em realidades puramente internas e psíquicas, sejam elas a vontade, a intenção, os motivos, os sentimentos ou as atitudes interiores do agente, por aí conduzindo à aceitação de um conceito de autoria que a distinguiria substancialmente da participação. Segundo uma formulação já antiga, mas ainda hoje porventura não superada, é autor quem realiza o facto de outrem com vontade de autor (com animus acutoris), participante quem colabora no facto de outrem com vontade de partícipe (com animus socii). Por outras palavras, o autor quer o facto como próprio, o partícipe quer o facto como alheio.”21 Portanto, para aqueles que adotaram estas teorias, autor seria aquele possuiria animus auctoris e partícipe aquele que possuísse animus socii, ou seja, seriam considerados autores aqueles que tivessem ânimo de ter o delito como 19 STRATENWERTH, 1982, p. 229. DIAS, 2007, p. 764. 21 DIAS, loc. cit. 20 234 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE próprio e partícipes seriam aqueles que tivessem ânimo de, apenas, participar em ato de outra pessoa.22 Porém, da aplicação prática destes critérios surgiram inúmeros absurdos, como, por exemplo, não se considerar como autor o individuo que agiu e executou, livremente, um fato delituoso. Portanto, por mais que as teorias subjetivas tenham auxiliado na evolução dos critérios para apuração da autoria e participação e o critério subjetivo tenha seu valor, não prosperou. 2.5 TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO Os critérios objetivos e subjetivos para a determinação da autoria e participação foram agrupados por Hans Welzel na teoria do domínio final do fato, este autor é considerado o precursor da referida teoria, todavia, citando Claus Roxin, Figueiredo Dias resume o caminho percorrido pela doutrina até a mais atual vertente da teoria do domínio: “Na tentativa, em todo o caso, de se ir mais longe na determinação do sentido normativo da figura em apreço, não deixa de constituir um bordão precioso – como sempre – o estudo de sua história dogmática. A idéia terá sido preconizada pela primeira vez por Lobe, o qual, partindo embora das teorias subjectivas, acentua que não basta à autoria uma vontade realização do tipo (elemento subjectivo), mas é preciso (elemento objectivo) “que a vontade também domine e dirija a execução que serve a sua realização... Na participação falta o domínio da acção de execução que tem por objectivo a produção do resultado”. O passo seguinte – sem dúvida de maior ressonância – foi dado por Welzel que, lançando o conceito mesmo no centro da doutrina da acção final, defende que “o domínio do facto cabe àquele que leva até à execução a sua decisão volitiva consciente da finalidade”; ao mesmo tempo que acentua vivamente que esta concepção constitui apenas decorrência “das determinações fundamentais do conceito final de acção e do conceito pessoal do ilícito na acção dolosa”. Um enriquecimento e ao mesmo tempo uma inflexão decisivos do conceito ocorrem depois por obra de Gallas – que sustenta que a concepção do domínio do facto não é, ao contrário do que pensava Welzel e como a evolução demonstrou, nada de consubstancial à doutrina da acção final –, ao colocar um elemento declaradamente objectivo como ponto de partida do conceito de domínio do facto que o vincula ao tipo de ilícito, e ao assinalarlhe a função (normativa ou valorativa) de “parâmetro para um interpretação mais aprofundada da conduta típica”. É todavia com Roxin e a sua monumental investigação dogmática, justamente intitulada Autoria e Domínio do Facto, que o conceito é largamente desenvolvido e precisado, 22 TRANCHESI, 2011, p. 50. 235 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE conduzindo a conclusões claras, se bem que não conceitualmente “fechadas”, e se arvora, assim, em uma verdadeira teoria.”23 Desta feita, apesar de historicamente resumido o caminho percorrido até o trabalho de Roxin, o mais atual e completo trabalho sobre este tema, serão analisadas as particularidades do conceito formulado por Hans Welzel. Sendo assim, parece importante a consideração feita por Mariana Tranchesi que, ao analisar o trabalho de Welzel, dimensionou-o relacionado à teoria final da ação, vez que dominaria o fato aquele que direciona ação tendo em vista o fim que pretende: “Conforme a teoria do domínio final do fato, nos delitos dolosos, o papel de autor reconhece-se naquele que dirige a ação típica com vistas a determinado fim, em razão de sua decisão volitiva. O conceito de domínio, assim, bem se compadece com a teoria finalista da ação, pois traduz justamente a ideia segunda a qual o desencadeamento causal de uma determinada conduta (dolosa) não é algo que se desprende do agente que o impulsiona, mas está vinculado a uma finalidade que controla o sucesso naturalístico.”24 Portanto, como se depreende desta citação, a primeira elaboração de Welzel da teoria do domínio do fato está intimamente relacionada com a vontade que dirige o acontecimento delituoso em busca de um fim determinado, teoria final da ação, sendo que a alcunha autor seria conferida àquele que pudesse, objetiva e subjetivamente, encontrar-se em uma posição de controle sobre a realização, utilizando o termo empregado pela autora citada, do sucesso naturalístico. Entretanto, a primeira elaboração de Welzel sofreu algumas mudanças devido às críticas recebidas pela inaptidão da teoria do domínio final do fato em resolver alguns casos limites, por exemplo, quando há concurso de pessoas nos delitos especiais e alguns dos intervenientes não possuam a qualificação exigida pelo tipo penal. O autor tentou mitigar estas dificuldades através da incorporação de critérios normativos: “Nesse contexto, o critério do domínio inicialmente idealizado por Welzel passou a ser reformulado de tal modo a incorporar elementos normativos aptos a fornecer soluções àquelas hipóteses às quais uma noção puramente naturalística de domínio não respondia de forma satisfatória.” 25 23 DIAS, 2007, p. 766-767. TRANCHESI, p. 86. 25 TRANCHESI, 2011, p. 89. 24 236 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Para tanto, a autoria nos casos limites citados acima ficaria vinculada às características pessoais e sociais e não apenas ao domínio final do fato: “Apenas com a concorrência das citadas características pessoais é que determinado sujeito teria o domínio do fato não apenas em seu aspecto final, mas também em seu caráter “social”, e assim se converteria em autor do delito”26 Antes de se analisar a grande contribuição feita por Claus Roxin à teoria do domínio do fato e a fim de demonstrar a separação que há entre a teoria do domínio do fato e a teoria final da ação, é importante que se observe um trecho da obra de Stratenwerth, que, ao falar sobre os pressupostos do domínio, afasta-o do dolo: “Los presupuestos del domínio del hecho, sin embargo, no dejan de ofrecer dificultades. Sin duda, de su conexión sistemática con la teoría de la acción se deduce que el dolo, como voluntad final de realización, resulta imprescindible en el aspecto subjetivo. El que obra sin dolo no puede ser autor de um delito doloso de acción. Pero el dolo, por si solo, no permite fundamentar todavia el domínio del hecho, lo que ya se pone de manifiesto cuando se comprueba que el partícipe (instigador o cómplice) carece precisamente del domínio del hecho a pesar de obrar con dolo. La circunstancia de que el cómplice abandone al autor la decisión sobre la consumación del hecho no tiene incidência alguna respecto de lo que acaba de afirmarse: también en esta hipótesis, el cómplice tiene la voluntad final de realización, dado que, por lo menos, acepta la producción del resultado del delito.”27 Diante do exposto acima, pode-se passar ao trabalho de Claus Roxin. Este autor parte da ideia de que não há como se criar uma teoria sobre autoria aplicável a todas as classes de delitos e, por isso, a teoria do domínio do fato seria aplicável apenas aos delitos dolosos: “Embora alguma pretensão de generalização se encontre na proposta de Roxin, é certo que, comparativamente aos conceitos de cunho normativos vistos até aqui, o domínio do fato exposto na famosa obra Autoria e domínio do fato em direito penal não pretende resolver todas as hipóteses de concurso de pessoas, mas apenas aquelas que envolvam delitos comuns, comissivos e dolosos, admitindo-se a impossibilidade de impor um único conceito de autor para todas as manifestações delitivas.” 28 26 Ibidem, p. 90. STRATENWERTH, 1982, p. 232. 28 TRANCHESI, 2011, p. 91-92. 27 237 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Sendo assim, ele parte para a análise da teoria do domínio nos crimes dolosos e, para isso, afirma que existem três formas diferentes para dominar o fato delituoso, quais sejam: domínio da ação; domínio da vontade e domínio funcional do fato. O domínio da ação se evidencia nos casos de autoria direta, quando não há concurso de pessoas e um único indivíduo age pessoalmente para realizar o crime. O domínio da vontade encontra-se nos casos de autoria mediata em que o homem de trás utiliza-se o homem da frente como instrumento de sua vontade, são três casos em que este tipo de domínio se realiza: quando o homem da frente atua sob coação ou erro; quando o homem da frente é inimputável e, por último, quando o homem da frente faz parte de uma organização de poder liderada pelo homem de trás. O domínio funcional é aquele em que os autores dividem as tarefas para pratica do fato de delituoso, portanto, permitindo a responsabilização da coautoria. Por fim, como dito acima, para o autor alemão a teoria do domínio do fato não se aplica aos delitos especiais, de mão própria e omissivos. Portanto, “Roxin introduz a idéia da infração de dever como critério de atribuição da responsabilidade a título de autor. ”29 2.6 SOBRE OS DELITOS DE INFRAÇÃO DE DEVER Neste momento, se analisará as diferentes teorias que surgem a fim de esclarecer como se dá o processo de responsabilização decorrente desta separação entre os delitos de resultado e os chamados delitos de infração de dever. Antes de tudo, convém esclarecer que tal distinção não é aceita em sua totalidade, bem como que surgem diversas críticas e abordagens distintas sobre a responsabilização nos delitos de infração de dever. Para tanto, cuidar-se-á da teoria de Claus Roxin no que abrange a esta parte de seu trabalho. 29 Ibidem, p. 94. 238 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 2.6.1 A autoria nos delitos de infração de dever na visão de Claus Roxin Aos delitos de infração de dever, conforme já foi dito acima, não se aplica a teoria do domínio do fato. Entretanto, agora, não serão perquiridos quais são os motivos que levaram à adoção de tal medida por Roxin. Por mais que pareça difícil se desvencilhar desta questão, o autor alemão afasta-se da discussão a respeito dos motivos que levam o legislador a criar tipos penais que impõem, aos agentes que executam o fato previsto, uma especial característica, reduzindo, assim, em tese, o grupo de pessoas que podem realizar a conduta proibida. Para tanto, justifica que a teoria dos delitos de infração de dever é um critério para que se possa aferir a autoria nestas situações específicas: “Não há como tratar da infração de dever como fundamento dos delitos especiais sem partir da análise da teoria idealizada por Roxin, ainda que se possa questionar sua caracterização, conforme a classificação empregada por Gómez Martín, como formulação ‘pura’, haja vista que o próprio Roxin, na última edição de seu Autoria e domínio do fato em direito penal, refira que a teoria dos delitos de infração de dever consistiria em mero critério de imputação da autoria nos delitos especiais, negando-lhe função no sentido de justificar a essência da limitação típica nesses delitos” 30 Não se ignora a discussão sobre os delitos especiais31 e sua ratio essendi. Porém, esta questão não será analisada nesse artigo. Dessa forma, os esforços se concentraram em apontar a relevância e o modo em que se configura a autoria nestes casos para Roxin. A responsabilidade penal a título de autoria nos delitos de infração de dever, segundo a visão do autor sob análise, seria sempre do intraneus independentemente de ter contribuído para a consumação do crime, sendo que sua ausência implicaria na não realização do delito especial – o que não impede que outro delito, que não seja o especial, considere-se praticado: “”Nos delitos de infração de dever, a figura central do acontecer típico, para Roxin, será sempre o intraneus, com total independência de sua efetiva contribuição para o resultado delitivo, pois – assim se entende – sem ele não há delito (ao menos, não há delito especial). Por sua vez, ainda que tenha dominado objetiva e subjetivamente o fato, o extraneus será sempre partícipe.”32 30 TRANCHESI, 2011, p. 139. Assim como Mariana Tranchesi, nos utilizaremos da expressão “delitos especiais” para expressar o que a doutrina brasileira comumente chama de “crimes próprios”.. 32 TRANCHESI, op. cit., p. 143. 31 239 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Portanto, o autor nestes casos é o agente qualificado e partícipe todo aquele que, não possuindo a qualidade necessária, contribui para o acontecimento delitivo. É o que se depreende da citação abaixo: “Desse modo, enquanto nos delitos de domínio autor é quem controla o acontecer típico - sendo partícipe o cooperador sem domínio do fato – nos Pflichtdelikte é autor aquele que infringe o especial dever. A participação, neste caso, seria definida como colaboração sem infração de dever.” 33 A coautoria nos delitos de infração de dever se reservaria aos casos em que todos intervenientes detivessem a qualificação especial, todavia, segundo a crítica de alguns autores, até mesmo nestes casos não estaria certa a coautoria, vez que cada um dos intervenientes estaria individualmente vinculado ao dever protegido pela norma e, sendo assim, caracterizando-se a autoria colateral e não coautoria: “Bem identificou Roxin que sua teoria dos delitos de infração de dever redundaria na significativa limitação do âmbito da coautoria, como realização conjunta da ação principal. Afinal, conforme o critério do domínio do fato, a coautoria existiria sempre que se pudesse verificar um codomínio ou, noutras palavras, um domínio funcional do acontecer típico pelos diversos intervenientes. Segundo o critério da infração do dever, só haveria coautoria nas (raras) hipóteses em que se verificasse pluralidade de intraneus, e estes, submetidos a um mesmo especial dever, infringissem-no simultaneamente. A excepcionalidade da coautoria nos delitos de infração de dever tem a ver com o caráter pessoal – personalíssimo, segundo alguns – desse mesmo dever, que vincula individualmente o intraneus. Assim, quando cada qual infringe sua obrigação oriunda de outros ramos do Direito, a tendência é identificar-se hipótese de autoria colateral e não de coautoria. Assim, pois, na linha de crítica de importantes autores, a ideia da coautoria não se presta à teoria dos delitos de infração de dever.” 34 Neste momento, resta apenas um ponto relevante a ser considerado, o fato de que, da forma que se esboça os delitos de infração de dever na visão de Roxin, é possível a responsabilização a título de participação do extraneus mesmo que o intraneus pratique a conduta proibida culposamente. “A mudança de critério acaba por influenciar, segundo o pensamento de Roxin, a compreensão não só do conteúdo da autoria e da participação nesses delitos, mas também a relação entre ambas as categorias. Assim porque, se nos delitos de domínio não se admitiria participação em uma 33 34 Ibidem, p 144. TRANCHESI, 2011, p. 143-144. 240 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE conduta principal não dolosa, nos delitos de infração de dever não se verificaria tal limitação. Nesses delitos, como o único exigível para a imputação de responsabilidade a título de participação seria a “intervenção sem infração de dever especial”, em nada influenciaria que a conduta do autor fosse levada a cabo com ou sem dolo. Desse modo, Roxin acaba por propor uma acessoriedade que se poderia considerar “aquém da mínima” para os delitos de infração de dever, ao sustentar que a punibilidade da contribuição a tais delitos dependeria, tão somente, da existência de uma conduta principal objetivamente típica.” 35 Feita a última ressalva, passamos adiante para análise da evolução da legislação brasileira para na conclusão poder-se fazer algumas considerações a respeito do tema deste artigo. 3 AUTORIA E PARTICIPAÇÃO NO BRASIL 3.1 Código Criminal do Império O Código Criminal do Império de 1830 foi a primeira legislação penal promulgada no Brasil independente por Dom Pedro I 36, sendo que nesse estava prevista a distinção entre autores e cúmplices, conforme se percebe da leitura dos artigos 4° , 5° e 6°, nos quais estavam estabelecidas as disposições sobre autoria e cumplicidade. O referido artigo 4° dispunha sobre a autoria e eram considerados autores aqueles que praticassem, cometessem, constrangessem ou mandassem alguém cometer crimes; já o artigo 5° dispunha sobre cumplicidade: todos aqueles que diretamente concorressem para prática de um delito seria considerado cúmplice; por último, o artigo 6° punia a receptação e o favorecimento como cumplicidade 37. A cumplicidade era sancionada com a pena da tentativa, prevista no artigo 35 do referido Código, esta sanção representava que cúmplice era punido pela pena do crime consumado reduzida por um terço38. 35 Ibidem, p. 145 BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes: Uma investigação sobre os Problemas da Autoria e da Participação no Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. p. 1. 37 Ibidem, p. 3. 38 Ibidem, p. 4. 36 241 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 3.2 Código Penal da República O Código Penal da República de 1890 não alterou o conteúdo código anterior no que diz respeito à autoria e cumplicidade, vez que no artigo 17 havia previsão expressa de que os agentes do crime eram autores ou cúmplices39. Os parágrafos do artigo 18 estabeleciam quais eram as condutas consideradas de autor, quais sejam: “Art. 18 – São autores: § 1" - Os que directamente resolverem e executarem o crime; § 2" - Os que, tendo resolvido a execução do crime, provocarem e determinarem outros a executai-o por meio de dádivas, promessas, mandato, ameaças, constrangimento, abuso ou influencia de superioridade hierarchica; § 3" - Os que, antes e durante a execução, prestarem auxílio, sem o qual o crime não seria commettido; § 4 - Os que directamente executarem o crime por outrem resolvido.”40 Antes de serem analisados os artigos 19 e 20 que ainda tratam sobre a autoria, aponta-se para o fato de que o código republicano punia como autor do delito o superior hierárquico que por abuso ou influência determinasse ou provocasse terceiro a praticar um fato delituoso. No artigo 19 estava previsto que aquele que mandasse ou provocasse terceiro a cometer um delito seria responsabilizado como autor, sendo lhe imputável qualquer outro crime praticado pelo terceiro no intuito obter o resultado, bem como os crimes que resultassem da conduta. Entretanto, o artigo 20 dispunha que se o mandante retirasse a tempo sua cooperação pelo crime não poderia ser responsabilizado41. O artigo 21 estabelecia a responsabilidade dos cúmplices, que seriam aqueles que, não tendo mandado ou provocado o crime, fornecessem instruções ou 39BATISTA, 2005, p. 7. Ibidem, p. 8. 41 Art. 19 - Aquelle que mandar ou provocar, alguem a commetter crime, é responsável como autor: § 40 1º - Por qualquer outro crime que o executor commetter para executar o de que se encarregou; § 2º Por qualquer outro crime que daquelle resultar. Art. 20 - Cessará a responsabilidade do mandante si retirar a tempo a sua cooperação no crime. 242 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE auxiliassem na execução do crime; aqueles auxiliassem a fuga, a ocultação de instrumentos do crime ou a apagar os vestígios; a receptação e favorecimento 42. Por fim, o artigo 64 previa para a cumplicidade a mesma pena da tentativa, mesma sanção do Código Criminal do Império43. 3.3 Código Penal de 1940 O Código Penal de 1940 encerra a distinção entre autoria e participação, adotando causalidade e equivalência das condições como critérios para determinação da autoria. O referido código teve como inspiração o código italiano de 1930 e, nos dizeres de Nilo Batista, simplificou a legislação penal: “O código penal de 1940, inspirando-se confessadamente no código italiano de 1930 quanto à orientação adotada, conferiu-nos as normas mais simplificadas que jamais regeram a matéria no desenvolvimento histórico do direito penal brasileiro. ”44 As questões relativas à autoria e participação encontravam-se reguladas nos artigos 25, 26 e 27, do Título IV da Parte Geral do código. O artigo 25 adota um “conceito extensivo, de base causal” 45, vez que dispôs: Art. 25 – Quem de, qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas. É da própria leitura deste artigo que se observa a nova opção legislativa pelo conceito referido acima. Portanto, patente a distinção dos códigos analisado anteriormente para com este. 42 Art. 21 - Serão cúmplices: § l° - Os que, não tendo resolvido ou provocado de qualquer modo o crime, fornecerem instrucções para commettel-o, e prestarem auxilio à sua execução; § 2° - Os que antes ou durante a execução prometterem ao cnmmoso auxilio para evadir-se, occultar ou destruir os instrumentos do crime, ou apagar os seus vestígios; § 3" - Os que receberem. occultarem. ou comprarem cousas obtidas por meios criminosos, sabendo que o foram, ou devendo sabeI-o, pela qualidade ou condições das pessoas de quem as houverem; § 4° - Os que derem asylo ou prestarem sua casa para reunião de assassinos e roubadores. Conhecendo-os comotaes e o fim para que se reunem. 43 Art. 64 – A cumplicidade será punida com as penas da tentativa e cumplicidade da tentativa com as penas desta, menos a terça parte. Quando, porém, a lei impuzer á tentativa pena especial, será applicada integralmente essa pena à cumplicidade. 44 45 BATISTA, 2005, p . 14-15. Ibidem, p. 15. 243 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE O artigo 26 estabelecia a incomunicabilidade das circunstâncias de caráter pessoal, salvo quando elementares ao crime. E o artigo 27 dispunha que os partícipes não seriam punidos se o crime não fosse, pelo menos, tentado. Esta mudança de postura foi citada na exposição de motivos do código: “O projeto aboliu a distinção entre autores e cúmplices: todos os que tomam parte no crime são autores. Já não haverá mais diferença entre participação principal e participação acessória, entre auxílio necessário e auxílio secundário, entre a ‘societas criminis” e a “societas in crimine” 46. A parte geral do código de 1940 sofre, em 1984, uma grande mudança principalmente na parte referente às penas e medidas de segurança e no que se refere à teoria do delito. Entretanto, naquilo que diz respeito à autoria e participação a alteração foi mais modesta47. 3.4 A Lei n° 7.209/84 e a Reforma de 1984 ao Código Penal e as Questões Sobre Autoria e Participação As alterações que se deram nas disposições referentes à autoria e participação, em conformidade com aquilo que já foi dito acima, foram pequenas comparadas às mudanças implementadas em outros pontos da Parte Geral do Código Penal. Contudo, não se deixou de se evidenciar uma nítida evolução destes institutos. É preciso que se destaque a inclusão, na disposição do antigo artigo 27, artigo 29 após as alterações, de prescrição normativa que estabeleceu que a análise da culpabilidade deve ser realizada distintamente em relação a cada interveniente 48. Por outro lado, nota-se a conversão da participação de menor importância de atenuante (inciso III, do antigo artigo 48) para causa de diminuição pena, alteração que se apresenta como benéfica ao acusado, uma vez que o partícipe que atue de forma menos importante poderá, dependendo do caso concreto, sofrer condenação abaixo do mínimo legal. Esta nova disposição encontra-se no § 1°, do artigo 29.49 46 TRANCHESI, 2011, p. 73. BATISTA, 2005, p. 24. 48 Ibidem, p. 25. 49 BATISTA, loc. cit. 47 244 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE No tocante à disposição referente à participação em crime menos grave, que, da redação original do Código, levava à responsabilidade objetiva do partícipe (parágrafo único, do artigo 49), houve mudança que conformou a disposição normativa ao princípio da culpabilidade (§ 2°, do artigo 29).50 As disposições referentes à incomunicabilidade das circunstâncias de caráter pessoal, salvo quando elementares do tipo, e à impunibilidade de meros atos preparatórios foram mantidas (artigo 30 e 31, respectivamente).51 Por fim, constata-se a manutenção da agravante para os casos em que haja concurso de agente (artigo 62), bem como destaca-se as disposições do § 2°, do artigo 20, e do artigo 22 que tratam de modalidades de autoria mediata, por mais que não o digam expressamente.52 4 CONCLUSÃO Primeiramente, convém apontar que nos primeiros Códigos Penais que foram promulgados em nosso país o legislador preocupou-se em fazer distinção entre autores e partícipes, apesar dessa distinção ser ainda incipiente. Contudo, essa distinção encerrou-se com o advento do Código Penal de 1940, que adotou a teoria unitária de autor. No entanto, após inúmeras críticas à essa teoria e sua adoção pelo legislador, sobreveio a Lei 7.209/84, que alterou a parte geral do Código Penal e, conforme dito acima, também a parte atinente ao Concurso de Pessoas. Sendo assim, é necessário que se façam algumas ponderações a respeito da teoria que foi adotada pelo Código Penal Brasileiro vigente, ou seja, aquele de 1940 que foi alterado pela Lei n° 7.209/84. Portanto, a pretensão era distinguir a forma pela qual se daria a responsabilização dos diferentes intervenientes que praticam um fato delituoso, tendo em vista que a disposição alterada não fazia essa distinção. Porém, apresenta-se uma situação contraditória na parte geral do Código Penal no que diz respeito à autoria e participação, pois, apesar de aparentemente não haver adotado nenhuma teoria e haverem autores que defendam ter sido adotada a teoria restritiva de autoria, é flagrante que as disposições dos artigos 20, § 50 BATISTA, 2005, p. 25. BATISTA, loc. cit. 52 BATISTA, loc. cit. 51 245 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 2°, e 22 do Código apontam para a responsabilização penal conforme a teria do domínio do fato, a qual possibilita que os autores mediatos sejam responsabilizados pelo fato criminoso praticado por instrumento que agiu sem dolo. Dessa forma, é preciso observar-se as contradições inerentes ao próprio Código Penal, uma vez que também se denota da leitura do artigo 13 resquícios da teoria da causalidade. Portanto, parece importante que o legislador tome um partido e deixe claro afinal qual é a teoria adotada, já que a moldura de aplicação disponibilizada aos juízes demonstra-se extensa, o que não se compatibiliza com os princípios que regem o Direito Penal. 246 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 5 REFERÊNCIAS BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes: Uma investigação sobre os Problemas da Autoria e da Participação no Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 454 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral: Tomo I: Questões Fundamentais: a doutrina geral do crime. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Portugal: Coimbra Editora, 2007. JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: Parte General, vol. II. Tradução Santiago Mir Puig; Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981. ORTIZ, Mariana Tranchesi. Concurso de agentes nos delitos especiais. São Paulo: IBCCRIM, 2011. STRATENWERTH, Günter. Derecho Penal: parte geral, I. Tradução Gladys Romero. Madrid: Edersa, 1982. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro, volume I: parte geral. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2008. 247 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 248 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE CRIMINOLOGIA E O CONTROLE SÓCIO-PENAL CRIMINOLOGY AND THE SOCIAL CRIME CONTROL Giana Engelhorn Jacon1 Mário Luiz Ramidoff2 1 Graduanda em Direito pelo UNICURITIBA/PR. Graduado pelo Curso de Graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1991); Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002); Doutor pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná (2007). Pósdoutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2012); Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná; Professor Titular do Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba; Professor do Centro Universitário Internacional - Uninter; Experiência na área de Direito, com ênfase em: Direito da Criança e do Adolescente; Direito Penal; Ministério Público; Direito Procesual Penal; Criminologia; e Política Criminal. 2 249 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SUMÁRIO RESUMO. ABSTRACT. 1. INTRODUÇÃO. 2. ESTADO E CONTROLE SOCIAL. 3. CONTROLE SÓCIO-PENAL. 4. PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO. 5. SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL. 6. PODER DAS AGÊNCIAS PENAIS. 7. CONSIDERAÇÕES PENAIS. REFERÊNCIAS. 250 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO O presente artigo objetiva estudar o controle sócio penal exercido pelo Estado, sua atuação através da cominação, aplicação e execução das sanções penais, bem como sua parcela de responsabilização perante as condutas delituosas, sob o ponto de vista de sua participação na criação da realidade criminal. Esta análise se fundamentou em estudos compostos pela verificação da existência de instituições de controle dentro de uma sociedade e seus diferentes graus de influência; sendo decorrente, a constatação da relevância do Direito Penal no exercício do controle social, a partir da análise de seus caracteres diferenciadores, quais sejam: subsidiário, coercitivo e programático. Ao fim, debateu sobre os processos de criminalização: primário e secundário, os fenômenos da seletividade e etiquetagem do sistema penal (labelling approach) e o poder das agências penais perante esses processos. Ainda, ressalta-se que a metodologia de pesquisa consistiu essencialmente em buscas bibliográficas, com a análise de artigos, textos e obras pertinentes ao tema pesquisado, uma vez que se trata de um assunto fundamentalmente teórico. Palavras-chave: controle sócio penal; processos de criminalização; seletividade do sistema penal; labelling approach. 251 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT The following article's main goal is to study the social crime control exercised by the State, its performance through formulation, application and execution of penalties, as well as its plot of responsibility before criminal conducts, from the point of view of its participation on the development of criminal reality. This analysis has grounded itself in studies composed by the verification of control institutions' existence within a society and its different levels of influence; being due, the confirmation and relevance of the Criminal Law on the practice of social control, from the analysis of its differential characteristics, namely: subsidiarity, coercive and programmatic. By the end, it debated on the criminalization processes: primary and secundary, the phenomenon of the criminal system's selectivity, the labelling approach and the power of the criminal agencies before these processes. At last, it is noteworthy that the research methodology consisted mainly of literature searches, with the analysis of articles, texts and books relevant to the research topic, since this is a basically theoretical subject. Keywords: social crime control; criminalization processes; criminal system’s selectivity; labelling approach. 252 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como escopo uma análise do controle sócio penal, a atuação estatal nos processos de criminalização: de elaboração e aplicações de sanções penais; e a recorrente seletividade do sistema penal. Assim, teve como problematização a análise da parcela de influência e responsabilidade estatal na criação da realidade criminal, uma vez que o Estado é quem rege o controle sócio penal, bem como condiciona os processos de criminalização. Com efeito, discutiu a influências das instituições de controle dentro do Estado, tais como a Polícia, o Direito, as instituições escolares, moda, família, mídia, entre outras; e determinou como foco a atuação do Direito Penal nesse controle social. Nesse sentido, destacou três caracteres que diferenciam o Direito Penal dos demais ramos do Direito: seu caráter coercitivo (repressivo-punitivo); subsidiário e programático. Ao fim, avaliou o processo de criminalização primário – a elaboração de leis – e o secundário – a aplicação das sanções penais, momento que destacou a seletividade do sistema penal e sua ocorrência através de uma seleção quantitativa e qualitativa das condutas delituosas e dos delinquentes. Nesse sentido, encerrou enfatizando o poder das agências penais dentro dos processos de criminalização e do controle sócio penal. Em resumo, esse trabalho é relevante na análise da parcela de responsabilidade estatal na prática de condutas delituosas, verificando até que ponto os processos de criminalização que definem a realidade criminal influenciam na prática dessas condutas. 2 ESTADO E CONTROLE SOCIAL Para entender como funciona o Direito e a sua função de controle social, primeiramente deve se analisar quem detém a premissa desse controle. Aquele que detém o poder para controlar a sociedade: o denominado Estado. 253 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE O Estado Moderno, forma de Estado atual, surgiu no século XVIII, da necessidade da classe burguesa em alcançar o poder político; uma vez que era uma classe social economicamente bem sucedida, mas sem destaque social. Assim, passando por uma fase do Estado Absolutista para um Estado Liberal, o Estado Moderno foi configurando as formas da atual sociedade capitalista, conforme refletiu Wolkmer (1990, p.9): A categoria teórica Estado deve ser entendida, no presente ensaio, como a instância politicamente organizada, munida de coerção e de poder, que, pela legitimidade da maioria, administra os múltiplos interesses antagônicos e os objetivos do todo social, sendo sua área de atuação delimitada a um determinado espaço físico. Assim, conclui-se que o Estado é um instituto outorgado pelos indivíduos que os compõe, capaz de administrar os interesses e objetivos do todo social por possuir poder, inclusive de coerção, para tal. Ainda, também nessa linha, o sociólogo Anthony Giddens (2005, p.343) detalhou mais esse conceito e definiu o Estado como: Um mecanismo político de governo (instituições como um parlamento ou congresso, além de servidores públicos) controlando determinado território, cuja autoridade conta com o amparo de um sistema legal e da capacidade de utilizar a força militar para implementar suas políticas. Todas as sociedades modernas são estados-nações, ou seja, estados nos quais a grande massa da população é composta por cidadãos que se consideram parte de uma única nação. Este Autor ressaltou que o Estado possui uma delimitação territorial para sua atuação, bem como acrescentou que ampara seu poder de controle em um sistema legal e militar, ou seja, que o controle social exercido pelo Estado estrutura-se no Direito e na milícia. Continuando a conceituação de Estado, não se pode olvidar a definição simples de Weber (1992, p. 36), no qual o Estado é uma “comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio legítimo da força física, dentro de um determinado território”. Destacando que a partir dessa definição de Estado, Weber (1992, p. 37) definiu a política como “a participação no poder ou a luta para influir na distribuição do poder, seja entre estados ou grupos dentro de um Estado. 254 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Seguindo essas conceituações de Estado e de sociedade anteriormente descritas, compreende-se que o Estado é o instituto que tem legitimidade para representar uma sociedade, mais especificamente, os indivíduos que compõe uma sociedade. Nesse sentido, os indivíduos que compõem uma sociedade delegam seus poderes para grupos de pessoas que se responsabilizam pela organização e estruturação de determinadas áreas da sociedade. Essa organização estatal é de extrema necessidade e importância, uma vez observado que o convívio social é um gerador natural de conflitos, devendo haver por parte do Estado um controle que possibilite minimizar e conter esses conflitos. Esse controle que delimita e organiza as ações do coletivo, bem como as ações individuas de cada sujeito é o chamado controle social. À vista disso, percebe-se a existência de grupos de poder que juntos compõe a estrutura de poder estatal. Desta forma, permitem ao Estado o exercício do controle social, e assim, uma melhor organização do convívio em coletividade. Os grupos que compõem essas estruturas são as instituições da sociedade, tais como a família, os centros educacionais, os partidos políticos, a mídia, a religião. Aquelas que orientam e formam a opinião social. Assim, na visão de Zaffaroni e Pierangeli, cada instituição tem uma parte no controle social, algumas com maior amplitude de influência na sociedade e outras com menor. Mas certo que o controle social, é um conglobamento de instituições que visam formar uma opinião comum entre a sociedade. Esse controle é um dos elementos que constitui e equilibra o poder estatal, e assim, o Estado, por isso de sua importância. Ademais, verifica-se que esse controle social pode ser de duas formas, como classificado por Zaffaroni e Pierangeli, uma figura difusa, na qual se inclui os meios de comunicação em massa, a moda, a família, o preconceito; e sua forma institucionalizada, as escolas e universidades, a polícia, a Medicina, o Direito. Com relação a estes grupos, nota-se que alguns destes são mais próximos da estrutura de poder estatal, ou seja, que oferecem uma maior influência no exercício do controle social; sendo que a contraponto, existem aqueles mais distantes, mais marginalizadas e ainda que possuam influência esta é diminuta. Nas palavras de Zaffaroni e Pierangeli (2009, p. 58): 255 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE O certo é que toda a sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que dominam e grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados dos centros de decisão. De acordo com essa estrutura se controla socialmente a conduta dos homens [...] Deste modo, toda sociedade tem uma estrutura de poder (político e econômico) com grupos mais próximos e grupos mais marginalizados do poder, na qual, logicamente, distingue-se graus de centralização e marginalização. Nesse sentido, pode-se concluir que as sociedades divergem e se assemelham quando possuem instituições de influência iguais ou diferentes. Para tal, toma-se como exemplo a grande divergência entre o mundo ocidental e oriental, uma vez que estes hemisférios possuem instituições de maior influência na estrutura estatal diferentes. Nessa linha, pode-se fazer a comparação de diversos países, diversos Estados, que se assemelharam ou divergem conforme suas instituições de influência. Há divergentes qualificações de fatos como delituosos de acordo com o contexto cultural, e as variações transculturais fazem com que um fato seja normal em uma cultura e crime em outra, sendo lembrado o exemplo da incriminação do álcool nos países islâmicos nos quais se admite, no entanto, a poligamia, punida nos países ocidentais (REALE JUNIOR, 2006, p. 10). Assim, considerando que os grupos de poder são aqueles que determinam o rumo da sociedade através de seus diferentes graus de influência, observa-se que aquele que detém o poder desse controle é quem exerce o controle social. Desta forma, pode-se concluir que o controle social é exercido através de uma manipulação de ideologias feita pelos grupos de poder dominantes de uma sociedade. Como já exposto, o detentor desse poder é o Estado, sendo sua estrutura de poder composta por centros políticos. Nesse sentido, frisa destacar a importância dessa manipulação de idéias pelo Estado. Isto ocorre, pois os centros detentores do poder estatal necessitam que suas ideais prevaleçam e vinculem na sociedade, para isso, precisam de uma teorização que fortifique seu discurso. Toda prática necessita de uma teoria para embasá-la. Assim, os discursos dos grupos de poder transformam suas idéias em teorias e o Estado as interpretam como melhor lhes convém. 256 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Com esse pensamento, Zaffaroni e Pierangeli descaracterizaram a reflexão padrão sobre poder e saber. Debatendo contrariamente a doutrina positivista que prescreveu: quanto mais conhecimento adquirido, mais poder se tem. Em contraposto os Autores concluíram que: “é o poder que condiciona o saber” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 59). Assim, mostraram que atualmente as sociedades são lideradas por ideologias que fortificam o discurso do poder e condicionam através desse um saber. Ou seja, existe uma manipulação da realidade social pelo poder. A realidade social é uma construção do Estado. Os centros de poder, utilizando-se de discursos ideológicos como melhor lhes convém, estabelecendo regras de condutas que a sociedade deve obedecer. Para melhor justificar esta teoria Zaffaroni e Pierangeli explicaram que a teorização de algo não visa um bem ou um mal. As melhorias ou prejuízos que uma teoria acarreta estão na sua aplicação. Assim, o autoritarismo não tomou de Hegel a parte liberal, e sim a exaltação do estado; o racismo não tomou do evolucionismo as advertências prudentes, mas ostentou uma “ortodoxia” evolucionista jamais sustentada com a seriedade por seus criadores; [...] o psicologismo quietista toma de Freud ou das outras correntes psicanalíticas o seu aspecto de “técnica”, mas passam por alto os contextos sociológicos originários etc. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 61). Nessa linha, a manutenção do poder estatal está relacionada com a manipulação da sociedade, esta necessita concordar e acatar o discurso - a ideologia - que esta sendo apresentada a ela. Assim, não há uma verdade ou mentira, há um discurso apresentado - uma forma de interpretar a realidade social – que deve ser recebido pela sociedade. Justo é assimilar que a verdade não pode expressar-se por inteiro em seus conceitos, simplesmente porque a verdade é infinita e a conceituação – isto é, a ideologia – é um recurso finito. Portanto, toda a referência ideológica à verdade, inevitavelmente, sempre é parcial (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 62). Desta forma, percebe-se que os problemas sociais então na forma em que se manipulam e vinculam essas teorias. Os centros políticos deveriam sempre se 257 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE preocupar para que as ideologias apresentadas sejam aquelas que proporcionem às melhores vantagens a sociedade como um todo. Isto exposto, passa-se a analisar a influência do Direito, e principalmente do Direito Penal para o exercício do controle estatal. 3 CONTROLE SÓCIO – PENAL Conforme elucidado nas definições de Estado na seção acima, o mesmo é composto por grupos de poder que viabilizam uma estrutura de poder. Estes grupos são as instituições da sociedade: a escola, a mídia; a religião, entre outras. A estrutura de poder é o centro político do Estado. Uma importante instituição estatal para o controle social é o Direito. Como já dito pelo sociólogo Anthony Giddens, o qual explicou que o Estado ampara-se em um sistema legal para a implementação de suas políticas, ou seja, para o exercício de seu controle. Assim, considerando que a forma usual para o Estado exercer seu controle social é através do aparato legal; conclui-se que o Direito nada mais é que uma regularização de conflitos e uma forma de organização da sociedade. Para tanto, embora o Direito seja um só, este se divide em diferentes áreas de atuação que proporcionam um melhor controle e organização da sociedade. Assim, dentro do Direito existem divisões que possibilitam a organização interna deste, as quais delimitam quais matérias serão reguladas por determinadas áreas do Direito, e com isso, quais as áreas do Direito que possuem competência para resolver quais tipos de conflito. Nesse sentido, existem as divisões entre matéria civil, do trabalho, do consumidor, por exemplo. Os atos da vida civis são regulados pelo Direito Civil, assim como as relações trabalhistas são reguladas pelo Direito do Trabalho e as relações de consumo pelo Direito do Consumidor. Cada área do Direito é responsável por resolver conflitos de determinadas espécies. O Direito Penal tem como matéria a punição de condutas que visam prejudicar os bens jurídicos dos cidadãos, tais como a vida, o patrimônio, a 258 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE liberdade. Os seja, é a garantia, através da coerção, de proteção a alguns direitos fundamentais previstos em nossa constituição. Quanto ao fator delimitador das matérias abrangidas por cada área do Direito. Essa delimitação é feita pelas leis do país. Assim, a matéria civil é aquela prescrita no Código Civil, enquanto a matéria trabalhista é aquela prescrita na CLT e a matéria de competência penal é aquela prescrita do Código Penal. Com isso em mente, analisa-se a reflexão que Zaffaroni e Pierangeli iniciam um de seus livros: Se dispensamos o código e as leis penais e formulamos uma pergunta indiscreta à realidade social, não necessitamos maior aprofundamento para percebermos que nada há em comum entre a conduta de quem emite um cheque sem provisão de fundos e a de quem ataca uma mulher e a estupra, isto é, que se trata de duas ações com significando social completamente distinto (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 55). Nessa linha de raciocínio, conclui-se que mesmo que muitas vezes não tenham uma classificação social igual, ou seja, que seu impacto na sociedade não proporcione as mesmas consequências ou impressões, as condutas penalmente puníveis são aquelas descritas pelo Direito Penal, descritas nas leis penais. O Direito Penal é um fator que une condutas com significados sociais diferentes para um mesmo senso comum de punibilidade. Adiante, estabelece-se uma discussão da relevância do Direito Penal para o exercício do controle social por parte do Estado e a forma como isso se efetiva. Para tanto, devem-se analisar quais são os objetivos e características do Direito Penal e assim, da legislação penal, que o diferenciam dos demais ramos do Direito. Nesse sentido, um primeiro caráter a ser destacado é a subsidiariedade do Direito Penal. Em análise, primeiramente, como já exposto acima, deve-se lembrar que o Direito é uma das instituições que auxiliam no controle social. Todavia, recorda-se a existência de outras instituições que exercem essas funções, estando as mesmas classificadas por Zaffaroni e Pierangeli como difusas e institucionalizadas. Nessa linha, vale comparar essa classificação de Zaffaroni e Pierangeli com o pensamento de Reale Junior. Nas palavras do último, esta classificação baseia-se em instituições de caráter informal (a figura difusa elaborada por Zaffaroni e 259 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Pierangeli); e aquelas de caráter formal (a forma institucionalizada disposta por Zaffaroni e Pierangeli). Ainda, importa destacar, que o Autor considera o Direito Penal como a principal instituição de caráter formal. Assim, o Autor ressaltou em sua obra que as instituições de caráter informal devem agir antes das de caráter formal, sendo o Direito Penal o último remédio para o controle social. Em seus termos: O controle social exerce-se, primeiramente, por via da família, da escola, da igreja, do sindicato, atuante na tarefa de socializar o indivíduo levando-o a adotar os valores socialmente reconhecidos e os respeitar, independentemente da ação repressiva do Direito Penal, que constitui uma espécie de controle social, mas de caráter formal e residual, pois só atua diante do fracasso dos instrumentos informais de controle (REALE JUNIOR, 2006, p. 3). Nesse sentido, explica no capítulo inicial de sua obra que, primeiramente, uma criança, quando nasce, sofre a influência de todos os meios institucionais informais, citando principalmente a família, a escola e a mídia; sendo que essas instituições definem o padrão de conduta que a criança irá seguir. Além disso, elucida que os indivíduos de uma sociedade possuem um autocontrole para aceitar que nem tudo o que deseja pode ser alcançado. Explicando que alguns sujeitos, quando por motivos diversos, perdem este autocontrole, é o momento em que este irá ferir um bem jurídico protegido alheio para conseguir o que precisa. Assim, concluiu que a atuação do Direito Penal deve vir depois que as instituições informais forem insuficientes para manter o controle social, bem como quando o indivíduo perde seu autocontrole. Nas palavras do Autor: Quando os controles sociais informais de vinculação com a sociedade convencional são insuficientes ou deixam de existir, ou quando do há déficit de autocontrole, e põe-se acima de qualquer relação custo benefício a vontade do indivíduo de satisfação imediata dos desejos, surge a possibilidade da prática delituosa, que fere os mais altos e relevantes interesses da sociedade. Busca esta, então, impedir e depois reprimir a realização do crime por meio das instâncias formais de controle, ou seja, recorrendo à estatuição de normas cogentes, positivadoras e protetoras de valores sociais, que imponham sanções redutoras de direitos àqueles que as infrinjam (REALE JUNIOR, 2006, p. 9). 260 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Ainda, explica que o Direito Penal é essencial para o sentimento de segurança de uma sociedade, pois o mesmo se utiliza da força para garantir a proteção dos bens jurídicos prezados. Sem ele, a sociedade não conseguiria combater as atitudes lesivas que fogem ao controle social. Assim, reforça-se que o Direito Penal é o último meio a ser utilizado para garantir a ordem social. Adota-se a ameaça de restringir direitos, punir, com a intenção de assegurar a obediência às regras consagradoras dos interesses relevantes para a vida social, legitimando-se o uso da força para garantir a preservação de valores essenciais revelados pela história e reconhecidos pela coletividade. Se não houvesse o Direito Penal a sociedade sentir-se-ia desprotegida, pois incapacitada de responder por meio da ameaça de sanções aos atos lesivos que desestabilizam a convivência social (REALE JUNIOR, 2006, p. 9). Assim, conclui-se possuir o Direito Penal um caráter subsidiário ou fragmentário, ou seja, o Direito Penal como a ultima ratio, uma vez que o mesmo deve ser o último meio de ação do aparato estatal, exatamente por ser uma medida incisava que causa restrições de direitos. O recurso à intervenção penal cabe apenas quando indispensável em virtude de que tem o Direito Penal caráter subsidiário, devendo constituir a ultima ratio e por isso ser fragmentário, pois o antijurídico penal é restrito em face do antijurídico decorrente do Ordenamento, por ser obrigatoriamente seletivo, incriminando apenas algumas das condutas lesivas e determinando desvalor, as de grau elevado de ofensividade (REALE JUNIOR, 2006, p. 25). Também nesse sentido, o autor Claus Roxin expôs que a aplicação da pena só será justificada se não houver outros meios, menos gravosos, para garantir a proteção ao bem jurídico. Em suas palavras, “[...] mesmos nos casos em que um comportamento tenha de ser impedido, a proibição através de pena só será justificada se não for possível obter o mesmo efeito protetivo através de meios menos gravosos” (ROXIN, 2008, p. 52). Adiante, outro destaque está no caráter coercitivo do Direito Penal, sendo a coerção penal diferente das outras coerções impostas pelo Direito por conter uma carga punitiva-repressiva em suas sanções, que restringe direitos do agente. 261 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Todos os ramos do Direito se baseiam em coerções para que as normas jurídicas sejam respeitadas. Entretanto, percebe-se uma diferença na coerção penal com relação ao resto das áreas do Direito. Nesse sentido, numa análise do regime jurídico-penal, visualiza-se que as normas penais selecionam aquelas condutas que quando executadas comprometem a paz social como um todo. Assim, este se utiliza de uma sanção para prevenir ou reparar condutas que desencadeariam um abalo social geral. Em síntese: sustentamos que o Direito Penal tem, como caráter diferenciados, o de procurar cumprir a função de prover à segurança jurídica mediante a coerção penal, e esta, por sua vez, se distingue das restantes coerções jurídicas, porque aspira assumir caráter especificamente ou particularmente reparador (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 93). Ademais, como conceituado por Zaffaroni e Pierangeli, a coerção penal se classifica em duas vertentes. Primeiramente, falando de uma coerção penal stritu sensu, encontra-se a pena. A pena é a forma específica do Direito Penal exercer sua coerção, com o intuito principal de proporcionar segurança jurídica à sociedade. A pena, como sanção principal do Direito Penal, tem como objetivo prevenir condutas delitivas ou reparar os danos causados por estas quando da sua execução. Em um sentido latu sensu, inclui-se todas as formas coercitivas do Direito Penal, tais com as internações de incapazes e medidas se segurança. Aquelas soluções que saem do caráter estritamente punitivo do sistema penal. Afirma-se que a prevenção de futuras condutas delitivas pode ser alcançada ou pretender-se alcançá-la mediante a prevenção geral ou a prevenção especial. Para uns a prevenção se realiza mediante a retribuição exemplar e é a prevenção geral. Que se dirige a todos os integrantes da comunidade jurídica. Para outros, a prevenção deve ser especial, procurando com a pena agir sobre o autor, para que aprenda a conviver sem realizar ações que impeçam ou perturbem a existência alheia (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 95). Em conclusão, entende-se que o caráter acentuadamente coercitivo do Direito Penal baseia-se na aplicação de sanções, sendo sua principal a pena. 262 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Ademais, cabe elucidar o caráter programático do Direito Penal, o qual caracteriza a legislação penal como possuidora de um fim definido. Deste modo, considerando que o Direito Penal passa por duas fases, primeiramente a de criação, feita pelos políticos e então sua aplicação, feita pelos operadores do Direito. A importância em determinar parâmetros para o Direito Penal inclui a criação de leis e reformas legais melhores por parte do legislador, assim como, uma melhor aplicação prática das leis penais pelos operadores do Direito, conforme a realidade fática com que se deparam. Assim, da análise dos objetivos da legislação e assim o seu caráter programático, descobre-se qual a melhor lei a ser criada para alcançar o objetivo ensejado e como melhor interpretar essa lei para que seja coerente na sociedade. Nesse sentido, encontram-se dois objetivos clássicos visados pelo Direito Penal: a segurança jurídica e a defesa social. Quando analisado o Direito Penal sobre a ótica da segurança jurídica, concretizou-se que a sanção penal deve visar as pessoas que não cometem as condutas delituosas, assim, caracterizando uma prevenção geral na sociedade; ou seja, a pena deve prevenir que aqueles que não cometeram crimes os cometam. De outro lado, considerando o objetivo como sendo a defesa social, percebese uma tendência a se considerar a sanção penal sob a ótica de uma prevenção especial na sociedade. Com isso, as sanções penais se destinam a controlar os autores de crimes cuja objetividade é a repressão penal disciplinadora. Assim, a sanção penal baseada na prevenção geral esta fundamentada num caráter de retribuição, enquanto a constituída pela prevenção especial baseia-se num caráter de reeducação e ressocialização. A retribuição deve devolver ao delinquente o mal que este causou socialmente, enquanto a reeducação e a ressocialização devem prepará-lo para que não volte a reincidir no delito (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 85). Contudo, a teoria mais bem aceita pela doutrina envolve uma conjugação das duas proposições citadas, na qual a retribuição seria o fim da pena em concreto, enquanto a ressocialização seria o visado pela execução da pena. 263 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Deste modo, o Direito Penal quando cria as suas leis visa intimidar os cidadãos, prevenindo que estes cometam delitos. Entretanto, quando um autor de uma conduta delituosa é criminalizado visa-se a sua reentrada na sociedade, reeducá-lo para o convívio social. Debatendo sobre a segurança jurídica, percebe-se que a função de todo Direito e prover a segurança jurídica. No sentido de que a convivência em sociedade estabelece uma necessidade de coexistência, e assim, de respeito dos cidadãos para com eles mesmos. Assim, o Direito nada mais é que uma forma de regular condutas humanas, tornando-as previsíveis. Desta forma, impedindo uma guerra civil, na qual os cidadãos entrariam em conflito interno. Em resumo, o Direito Penal ao assegurar a segurança jurídica assegura a ordem social. Desta forma, concretiza-se que o Direito protege os bens jurídicos, ou seja, os direitos de cada indivíduo da sociedade. Ademais, quando refletindo sobre a participação do Direito Penal na aplicação de penas para garantir a segurança jurídica, como explicado por Zaffaroni e Pierangeli (2009, p. 87): A pena, necessariamente, implica uma afetação de bens jurídicos do autor do delito (de sua liberdade, na prisão ou reclusão; de seu patrimônio, na multa; de seus direitos, nas penas restritivas). Esta privação de bens jurídicos do autor deve ser por objeto garantir os bens jurídicos dos demais integrantes da comunidade jurídica. Todavia, esta pena deve ter um limite sancionatório. Este limite é determinado socioculturalmente e se molda conforme a época e a sociedade, como explicado pelos Autores: A ingerência nos bens jurídicos do infrator se faria necessária para motivarse conforme as normas e reforçar assim o sentimento de segurança jurídica, neutralizando o alarme social do delito, mas não pode exceder deste grau de tolerância socialmente determinado, e por conseguinte, historicamente condicionado, sob pena de que esta mesma ingerência cause um alarme social, isto é, afete o próprio sentimento de segurança jurídica (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 87). 264 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Contudo, ressalta-se que devido a pluralidade de grupos sociais dentro de uma comunidade os sentimentos de segurança jurídica, bem como os limites aceitáveis da pena são diferentes para cada um. Assim, não existe um sentimento de segurança jurídica geral, que se aplica a todos os indivíduos da sociedade, o que se visa e chegar o mais próximo disto, diminuindo estas diferenças e igualando a tutela dos bens jurídicos. Deste modo, o Direito não deve esquecer que o sentimento de segurança jurídico é comunitário e deve ser construindo baseado nesse pilar. Em outro plano, encontra-se o caráter de defesa social do Direito Penal. Destarte, como explicado por Zaffaroni e Pierangeli, o conceito de defesa social está muito próximo da segurança, uma vez que quando se fala de social, fala-se em uma defesa da sociedade e sendo a sociedade essa coexistência que definimos, não há o que se diferenciar; ambos buscam essa proteção social. “Se a segurança jurídica é o asseguramento da coexistência e a coexistência é o social, vemos que a distância entre ambos os conceitos se encurta até a superposição” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 88). Entretanto, também explica que reside uma diferenciação entre proteção, garantia e tutela jurídica com relação a defesa social envolvendo a organização estrutural na sociedade. Nesse sentido, a defesa seria uma prevenção dos bens jurídicos ainda não afetados, uma defesa de bens que podem ser afetados no futuro. Resumindo, a defesa social bem entendida não pode ser algo distinto da segurança jurídica, salvo que se entenda que a primeira em sentido organicista ou antropomórfico e a segunda como um conceito puramente formal, ambas as pretensões que desembocam em uma legislação que aniquila os direitos humanos, por desconhecimento de todos os limites a sai ingerência (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 89). Desta forma, conclui-se que o Direito Penal se diferencia dos demais ramos do Direito principalmente por possuir três caracteres, quais sejam, subsidiário, coercitivo e programático. 265 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 4 PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO Como mencionado anteriormente, o Direito Penal é prescrito pelas leis penais. A importante reflexão está em perceber que essa penalização disposta pelo Direito Penal se dá através do sistema penal. Assim, o sistema penal é a forma aplicada do Direito Penal. Desta forma, reaviva-se a discussão sobre o controle social exercido pelo Estado através do Direito Penal, passando a focalizar em sua execução através do sistema penal. Nesse sentido, em sua estruturação e organização, o sistema penal estabeleceu dois processos de criminalização para exercer seu poder punitivo visando o controle e organização da sociedade. Esses processos foram divididos entre primário e secundário. Conforme Vera Regina Pereira de Andrade (2003, p. 175): Na estrutura organizacional do moderno sistema penal, podem-se distinguir, pois, duas dimensões e níveis de abordagem: a) uma dimensão definicional ou programadora do controle penal que define as regras do jogo para as suas ações e decisões e os próprios fins perseguidos, que define, portanto, o seu horizonte de projeção; b) uma dimensão operacional que deve realizar o controle penal com base naquela programação. O sistema é, pois, um conceito bidimensional que inclui normas e saberes (enquanto programas de ação ou decisórios), por um lado, e ações e decisões, em princípio racionalizadas, por outro. Sendo assim, na visão da Autora, destaca-se a ocorrência, primeiramente, de uma seleção dos bens que serão juridicamente protegidos pelo Direito Penal, bem como as condutas puníveis devido à violação desses bens (processo primário). Para depois ocorrer um enquadramento de indivíduos no tipo penal pela prática das referidas condutas (processo secundário). O processo de criminalização primário concretiza-se pela formulação de leis penas que prescrevem crimes e suas respectivas sanções, ou seja, a edição de leis. O legislador efetua a definição dos bens penalmente protegidos, bem como quais serão as condutas tipificadas como crime e as sanções que deverão ser aplicadas 266 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE aos casos concretos. Sendo assim, a execução do processo primário é realizada principalmente pelas agências políticas. Em definição de Zaffaroni e Pierangeli (2009, p. 43), a criminalização primária seria “o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas”. Com isso, visualiza-se o primeiro momento que uma ação é considerada ofensiva a sociedade, devendo ser punida para buscar a sua não ocorrência. Deste modo, esse processo propicia que a legislação penal do sistema exerça uma seleção dos bens jurídicos que serão protegidos, as condutas criminalizáveis e os indivíduos puníveis. Nesse sentido: O Direito Penal entendido como lei ou legislação penal integra a dimensão programadora do sistema. Tem, nesse sentido, um caráter “programático”, já que a normatividade penal não realiza, por si só, o programa: simplesmente o enuncia, na forma de um “dever-ser” (ANDRADE, 2003, p. 175). Portanto, esse processo configura o primeiro momento de enquadramento de pessoas como autores de um crime, uma vez que concretiza a definição de quais condutas serão criminosas e por quais condutas, no futuro, os autores serão criminalizados, somada a sua punição. Assim, conclui-se que esse processo inicia a seletividade do sistema penal, uma vez que a edição de uma lei nomeia quais indivíduos serão punidos e por quais condutas. O processo de criminalização secundário envolve a aplicação das normas criadas pelo processo primário. É a adequação de uma conduta concreta àquela primeira conduta prescrita, criminalizada. Entretanto, a lei não pode assegurar por completo a sua aplicação devido à complexidade de condutas que ocorrem faticamente. Essa situação de lacunas, em casos concretos, obriga os intérpretes a utilizarem princípios, regras e juízos de valor pessoais para promover a tutela jurídica mais adequada para cada caso. Com isso, as agências responsáveis por essa punição - são elas principalmente as judiciais, policiais e penitenciárias – possuem uma abertura de interpretação fática. 267 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A lei penal configura tão-só um marco abstrato de decisão, no qual os agentes do controle social formal desfrutam ampla margem de discricionariedade na seleção que efetuam, desenvolvendo uma atividade criadora proporcionada pelo caráter ‘definitorial’ da criminalidade [...], pois, entre a seleção abstrata, potencial e provisória operada pela lei penal e a seleção efetiva e definitiva operada pelas instâncias de criminalização secundária, medeia um complexo e dinâmico processo de refração (ANDRADE, 2003, p. 260). Assim, a legislação penal prescreve condutas, programando o sistema, para que então a Polícia e o Judiciário apliquem essas normas e executem as sanções penais, operacionalizando o sistema. 5 SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL Em análise do processo de criminalização primário, conclui-se que as leis penais visam à proteção de bens jurídicos. Contudo, os conteúdos dessas normas são variáveis, ou seja, há a proteção pelo Direito Penal de diversos bens jurídicos, contudo, cada bem possui uma norma protetora correspondente. Quando observado, percebe-se que a tendência do sistema penal são legislações com grande preocupação a bens patrimoniais e estatais e um relapso a bens gerais como a vida, saúde, liberdade. Isso fere a ideia de que as normas penais seriam igualitárias, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas. Na verdade, esse processo é profundamente seletivo, atingindo apenas determinado grupo de pessoas. Conforme Andrade: Quanto aos “conteúdos” do Direito Penal abstrato, esta lógica se revela no direcionamento predominante da criminalização primária para atingir as formas de desvio típicas das classes e grupos socialmente mais débeis e marginalizados. Enquanto é dada a máxima ênfase à criminalização de condutas contrárias às relações de produção (crimes contra o patrimônio individual) e políticas (crimes contra o estado) dominantes e a elas dirigidas mais intensamente à ameaça penal; a criminalização de condutas contrárias a bens e valores gerias como a vida, a saúde, e liberdade pessoal e outros tantos não guarda a mesma ênfase e intensidade da ameaça penal dirigida à criminalidade patrimonial e política (ANDRADE, 2003, p. 279). 268 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Essa seleção de criminalização do processo primário ocorre, principalmente, através do sistema de formulações técnicas dos tipos penais, observando-se, como exemplo, a atribuição dos mecanismos de agravantes e atenuantes aos tipos penais. Desta forma, o sistema penal consegue punir de forma mais severa os crimes que lhes convir e mais brandamente aqueles que não afrontam seus interesses. O foco deixa de ser a proteção ao cidadão individual e passe a ser o controle da sociedade. Em análise seguinte, visualiza-se o poder punitivo exercido pelo processo de criminalização secundário, o qual é realizado em face de pessoas específicas, visto que deve ser analisado perante os casos concretos. Com isso, o mesmo realiza um processo de estigmatização e seletividade do sistema penal, uma vez que as agências podem punir aqueles que quiserem, seguindo um padrão preconceituoso ou desigual para essa seleção. Para Zaffaroni e Pierangeli, a estigmatização da sociedade se desenvolve a partir da divulgação massiva de autores de crimes comuns e grosseiros - no sentido de menor ofensa a sociedade, aqueles que afrontam apenas o patrimônio e não a vida, integridade ou liberdade da pessoa humana - como sendo os únicos delinquentes da sociedade. Em suas palavras: Os atos mais grosseiros cometidos por pessoas sem acesso positivo à comunicação social acabam sendo divulgados por esta com os únicos delitos e tais pessoas como os únicos delinquentes. A estes últimos é proporcionado um acesso negativo à comunicação social que contribui para criar um estereótipo no imaginário coletivo. Por tratar-se de pessoas desvaloradas, é possível associar-lhes todas as cargas negativas existentes na sociedade sob a forma de preconceitos, o que resulta em fixar uma imagem pública do delinquente com componentes de classe social, étnicos, etários, de gênero e estéticos (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 46). Com isso, o processo de criminalização secundário seleciona perante a sociedade os autores de crimes mais vulneráveis - devido as suas características físicas de estigmatização e sua capacidade de executar apenas atos toscos, com baixa ofensa a seguridade social - e os criminaliza. Sendo assim, torna-se impossível para estes sua saída da criminalidade, uma vez que o sistema penal trabalha para que sejam criminalizados. Assim, as pessoas punidas pelo sistema 269 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE penal não são aquelas que cometem os crimes mais graves e sim aquelas sujeitas ao mesmo devido a sua vulnerabilidade. Isto leva à conclusão pública de que a delinquência se restringe aos segmentos subalternos da sociedade, e este conceito acaba sendo assumido por equivocados pensadores humanistas que afirmam serem a pobreza, a educação deficiente, etc., as causas do delito, quando, na realidade, são estas, junto ao próprio sistema penal, fatores condicionantes dos ilícitos desses segmentos sociais, mas, sobretudo, de sua criminalização, ao lado da qual se espalha, impune, todo o imenso oceano de ilícitos dos outros segmentos, que os cometem com menor rudeza ou mesmo com refinamento (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 48). Sendo assim, há uma punibilidade decrescente do sistema, onde em primeiro lugar se penaliza autores de crimes toscos e de fácil estigmatização devido a sua vulnerabilidade, para então criminalizar aqueles que estão em uma posição de não vulnerabilidade, mas que por algum descuido foram pegos pelo sistema. Na visão de Vera Regina Pereira de Andrade essa seletividade do sistema penal, deriva de duas variáveis estruturais: uma seleção quantitativa e uma seleção qualitativa. A ideia de seleção quantitativa envolve o proposital relapso estatal em punir diversas condutas criminosas, visando a não sobrecarga do sistema penal. No sentido de que o Estado deixa de punir muitas condutas delituosas, prescritas no processo de criminalização primário, pois a efetiva punição e penalização de todas estas ações desencadearia um caos social. Esta teoria baseia-se principalmente em dois fenômenos: o do colarinho branco e da cifra oculta. O primeiro originou-se dos estudos de Sutherland, o qual analisou estaticamente as condutas delituosas praticadas por pessoas que ocupavam uma posição de alto prestígio na sociedade estadunidense e permaneceram impunes ao sistema, devido à estruturação da sociedade e do sistema penal. O segundo, a cifra oculta, esclarece que a criminalidade real é profundamente conflitante com a criminalidade estatística. Pois, além dos crimes não punidos, devido a seus autores não estarem numa posição de vulnerabilidade social, existe o fenômeno da criminalidade oculta, aquela que não chega ao conhecimento da Polícia, visto que: 270 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Nem todo delito cometido é perseguido; nem todo delito perseguido é registrado; nem todo delito registrado é averiguado pela polícia; nem todo delito averiguado é denunciado; nem toda denúncia é recebida; nem todo recebimento termina em condenação (ANDRADE, 2003, p. 262). Numa análise desses fenômenos, percebe-se que a efetiva criminalização de todas as condutas delituosas praticadas pela população em geral ocasionaria a punição da maioria populacional da sociedade diversas vezes, tendo em vista as reiteradas atitudes criminosas em uma sociedade. Assim, ressalta-se que essa situação que não seria admitida ou sustentada pela população, principalmente pela camada de destaque na cadeia social. Nas palavras de Zaffaroni (1991, p. 21): Se o sistema penal concretizasse o poder criminalizante programado, provocaria uma catástrofe social. Se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as defraudações, todas a s falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças, todas as contravenções penais etc. fossem concretamente criminalizadas, não haveria habitante que não fosse criminalizado. Diante da absurda suposição, absolutamente indesejável, de criminalizar reiteradamente toda a população, torna-se obvio que o sistema penal está montado para que a legalidade processual não opere em toda sua extensão. Com isso, fica clara a ideia paradoxal de que para a perpetuação do sistema, este deve programar-se para que não funcione em sua magnitude. Assim, constatase uma predominância proposital referente a uma imunidade a certos autores delituosos e a criminalização de outros. Num segundo momento, explana-se sobre uma seleção qualitativa, na qual a seleção da criminalização secundária baseia-se nas qualidades, valores e características dos autores de delitos. É a já referida estigmatização dos cidadãos mais vulneráveis - devido principalmente a sua formação social - como os principais delinquentes da sociedade. Trata-se, portanto, de uma matriz fundamental na produção (e reprodução) de uma imagem estereotipada e preconceituosa da criminalidade e do criminoso vinculada aos baixos estratos sociais que condiciona, por sua vez, a seletividade do sistema penal, num círculo de representações extraordinariamente fechado que goza de uma secular vigência no senso 271 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE comum em geral e nos operadores do controle penal em particular (ANDRADE, 2003, p. 271). Com isso, conclui-se a existência de “um processo de seleção de pessoas às quais se qualifica como delinquentes e não, como se pretende, um mero processo de seleção de condutas qualificadas como tais” (ANDRADE, 2003, p. 267). Nesse ponto, deve-se fazer uma importante consideração a respeito da teoria do labelling approach. Em tradução, a palavra labelling significa etiquetagem, enquanto approach constitui abordagem, ou seja, esse fenômeno refere-se à abordagem direta do sistema penal que etiqueta, nomeia e configura determinadas pessoas, mas precisamente específica camada social, como os principais delinquentes da sociedade. Assim, ao contrário da ideia da criminologia positivista que pregava que os autores de crimes eram uma minoria social que desenvolviam tendências delinquentes devido a condições de anomalias físicas ou fatores ambientais e sociais que foram inseridos. A Criminalidade atual: [...] não é uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica pré-constituída à reação (ou controle) social, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social; isto é, de processos formais e informais de definição e seleção (ANDRADE, 2003, p. 205). Desta forma, reflete-se que “a clientela do sistema penal é constituída de pobres, não porque tenham uma maior tendência para delinquir, mas porque têm maiores chances de serem criminalizados e etiquetados como delinquentes” (ANDRADE, 2003, p. 270). Assim, conclui-se por uma seletividade intrínseca ao sistema e sua relevância em desfavor das camadas mais pobres da sociedade. 272 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 6 PODER DAS AGÊNCIAS PENAIS Como explicado anteriormente o sistema penal é dividido em agências que condicionam sua estruturação, assim pode-se dividir o mesmo em três grandes setores: os segmentos da Polícia, do Poder Judiciário e do Poder Legislativo. Esses segmentos que atuam na atividade institucionalizada do sistema, caracterizando uma tripartição do mesmo. Assim, as agências não atuam separadamente; sua atuação é conjunta e sua interferência no sistema penal é em consonância. Como explicam Zaffaroni e Pierangeli (2009, p.66): Trata-se de três grupos humanos que convergem na atividade institucionalizada do sistema e que não atuam estritamente por etapas, posto que têm predomínio determinado em cada uma das etapas cronológicas do sistema, podendo seguir atuando ou interferindo nas restantes. Assim, o judicial pode controlar a execução, o executivo ter a seu cargo a custódia do preso durante o processo, o policial ocupar-se das transferências de presos condenados ou informar acerca da conduta do liberado condicional. Todavia, cada agência possui uma função específica e a interferência demasiada dos setores sobre a competência uns dos outros não é salutar, haja vista que desequilibraria a organização tripartidária do sistema. Assim: Em geral, em quase toda a América Latina se tem observado uma clara tendência em reduzir ou neutralizar a interferência do Poder Judiciário, para possibilitar a intervenção de organismos do Poder Executivo. A centralização do poder punitivo nas mãos dos órgãos executivos é fato comprovado amplamente, com que se desequilibra seriamente a tripartição dos poderes do Estado democrático (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 67). Ademais, as agências que compõem o sistema penal possuem diferentes graus de influência na operacionalidade desse sistema, e assim, na sua seletividade. Numa análise do sistema penal, encontram-se dentro deste, primeiramente, os legisladores, aqueles que atuam configurando os padrões do sistema, através da edição de leis. Outrossim, compreende nos setores estáveis da estruturação, as 273 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE agências jurídicas, quais sejam: o segmento policial, judicial e de execução da pena. Por fim, também não se pode esquecer da participação da população no sistema. Desta forma, primeiramente, discursando sobre a influência dos legisladores na criminalização de condutas, percebe-se que seu poder reside da configuração de padrões das condutas. Cabe a eles decidir as condutas que serão punidas, selecionando as mesmas, e assim, como já dito, compondo o primeiro processo de criminalização. Entretanto, o poder de seleção que reside no Poder legislativo é menor do que o pretendido, uma vez que mesmo sendo as leis que definem quais as condutas penalizáveis, não cabe ao mesmo aplicar essa seleção. Assim, mesmo a regra estando “no papel” não significa que será aplicada. Os legisladores são os primeiros que dão os padrões de configuração, embora frequentemente eles mesmo ignorem o que realmente criam, pois superestimam seu poder seletivo. Na realidade, tem maior poder seletivo dentro do sistema penal a polícia do que o legislador, pois esta opera mais diretamente sobre o processo de “filtração” do sistema (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 67). Assim, maior poder possuem as agências policiais, pois são elas que trabalham diariamente e diretamente nessa filtração de condutas e assim realizando a seleção das mesmas. O advento de um processo penal e a consequente punição de uma conduta delituosa só ocorrerá após a prévia investigação da polícia. Desta maneira, pode-se considerar que a “porta de entrada” do processo de criminalização, a seleção de condutas e pessoas, ocorre através das agências policiais. Sob essa ótica, também as agências jurídicas não possuem um grau de seleção tão amplo quanto as agências policiais. Sua contribuição reside em aplicar uma punição aquelas condutas previamente selecionadas pela polícia, por isso seu poder de seleção é diminuto. As agenciais jurídicas só entram em atuação depois da prévia seleção policial sobre os crimes Assim, dentre uma prévia seleção das condutas criminalizadas pelo processo primário, as agências policiais são responsáveis por punir uma realidade de crimes toscos praticados por delinquentes estigmatizados. Apenas após essa dupla seleção 274 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE é que as agências judiciais realizam sua penalização. Sendo assim, o controle social exercido pelas mesmas é mínimo. Em razão disso, os poderes executivos latino-americanos jamais aceitaram a formação de uma polícia dependente do Poder Judiciário. Formalmente, a polícia judiciária, na prática, é limitadíssima, mormente quando o Poder Executivo possui um especial interesse na apuração ou não apuração de determinado fato com aparência de delito (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 67). Vale ressaltar que a seleção realizada pelo processo primário é incapaz de individualizar condutas devido a sua necessidade, falsamente realizada, de empregar uma abrangência geral. Com isso, temos que o verdadeiro poder de punição é operado pelas agências policias. Nas palavras de Zaffaroni e Batista (2003, p. 52): Na prática, a polícia exerce o poder seletivo e o juiz pode reduzi-lo, ao passo que o legislador abre um espaço para a seleção que nunca sabe contra quem será individualizadamente exercida [...] que a criminalização secundária é quase um pretexto para que as agências policiais exerçam um formidável controle configurador positivo da vida social, que em nenhum momento passa pelas agências judiciais. Todavia, sob essa ótica, ressalta-se que a maior seleção de condutas que serão criminalizadas está fora da estruturação estável do sistema. O maior controle de seleção de condutas está nas mãos do povo, uma vez que só é possível a criminalização das condutas reportadas ao Estado. Assim, mesmo que o legislador tenha criminalizado a conduta e as polícias, promotores e juízes estejam capacitados para empregar uma correta punição a essa conduta delituosa. A conduta só será crime quando chegar ao conhecimento do Estado. Ademais, nota-se que cada agência dentro do sistema possui uma ideologia específica; e ainda, dentro de cada segmento, várias são as ideologias existentes. Esse conflito de interesses e ideologias é a causa de falhas do sistema e a falta de um funcionalismo adequado. O sistema deveria trabalhar em consonância, buscando soluções em conjunto, enquanto na realidade trabalham conforme ideologias próprias egoísticas e culpam as falhas do sistema aos outros segmentos. 275 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Em geral, há uma manifesta separação de funções com contradição de discursos e atitudes, o que dá por resultado uma compartimentalização do sistema penal; a polícia atua ignorando o discurso policial e atividade que o justifica; a instrução, quando é judicial, ignora o discurso e a atividade sentenciadora; a segunda instância ignora as considerações da primeira que não coincidem com seu próprio discurso de maior isolamento; o discurso penitenciário ignora todo o resto. Cada um dos segmentos parece pretender apropriar-se de uma parte maior do sistema, menos o judicial, que vê retalhada suas funções sem maior alarme (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p. 71). A partir disso, desses conflitos entre os discursos jurídicos, é possível perceber a origem dos problemas operacionais do sistema, tais como: a estigmatização e seleção dos aprisionado, a vulnerabilidade de parte da sociedade perante o sistema, cifra oculta, labelling approach, entre outros. Desta forma, verifica-se necessária a comunicação entre os segmentos do sistema, para que com uma atuação conjunta destes, seja possível um melhor funcionalismo e uma melhor estruturação da sociedade. A cominação, aplicação e execução das sanções penais adequadas gerariam uma melhor preservação do convívio social. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS No presente artigo delimitou-se, em uma breve pesquisa, o controle sócio penal e a participação/responsabilização do Estado na criação da realidade criminal. Através deste, não se pretendeu trazer soluções inovadoras – principalmente devido à complexidade do tema – mas apenas buscou-se uma melhor compreensão da atuação do Direito Penal no âmbito estatal. Com efeito, verificou-se que o Estado é uma instituição legitimada por leis, com poder outorgado pela população, para diminuir conflitos de interesse e prover melhores condições de convívio social. Nesse sentido, conclui-se que o controle social exercido pelo Estado através do Direito Penal é diferenciado, uma vez que este é composto por três caracteres peculiares e essenciais, quais sejam: subsidiário, coercitivo e programático. Primeiramente, analisou-se que a coerção exercida pelo Direito Penal se diferencia dos demais ramos do Direito, na medida em que impõe um caráter repressivo-punitivo. O Direito Penal repreende certas condutas que lesam os bens 276 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE jurídicos e as pune através de restrições de direito. É uma coerção incisiva aos direitos do cidadão delinquente. Exatamente por restringir certos direitos fundamentais do indivíduo, o Direito Penal deve ser constituído de um caráter subsidiário, ou seja, deve ser a ultima ratio, a última medida de controle social a ser tomada pelo Estado. Assim, apenas após esgotados outros recursos para a solução do conflito, será legitima a intervenção penal. Todavia, o caráter de maior relevância para o controle sócio penal está no caráter programático do Direito Penal; este dispõe que o Direito Penal tem uma missão definida. Sendo assim, todas as fases do Direito Penal – de criação, aplicação e execução – são definidas e elaboradas pelo Estado, sendo por esse motivo o detentor do controle sócio penal. Nesse ponto, foi ressaltado que a pena é a forma pela qual o Direito Penal impõe sua coerção. A aplicação da pena possibilita e legitima o caráter repressivopunitivo da coerção penal. Desta forma, considerando a discussão dos caracteres do Direito Penal, principalmente seu caráter programático (fim definido) e o controle sócio penal exercido pelo Estado, verificou-se a formação de dois processos de criminalização dentro da máquina estatal: o primário e o secundário. Sendo a seletividade do sistema penal o principal problema derivado destes. Em seu âmbito primário, o processo de criminalização se baseia na elaboração de normas penais e sanções correspondentes. Em uma esfera secundária, encontra-se a aplicação das normas e sanções prescritas no processo primário, conforme a adequação do caso concreto. Insta destacar que o processo primário é realizado pelos legisladores, enquanto o secundário pelos aplicadores do Direito. Assim, o problema da seletividade do sistema se encontra na manipulação dos processos de criminalização para punir condutas delitivas específicas, basicamente infrações penais contra o patrimônio, geralmente de valores baixos; atos praticados, principalmente, pela população de baixa renda. Em conclusão, verifica-se que esta triagem de condutas potencialmente puníveis ocorre principalmente através de duas seleções: a quantitativa e a qualitativa. 277 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A seleção quantitativa demonstrou que o sistema penal é programado para não funcionar em toda a sua amplitude, pois a quantidade de fatos puníveis que ocorrem diariamente torna impossível a atuação estatal. Todo cidadão, em algum momento no decorrer de sua vida, já cometeu alguma infração penal. Se o sistema penal punisse todas as condutas delitivas, puniria toda a população, assim, acabaria perdendo seu poder de atuação e legitimidade, uma vez que toda a coletividade seria punida. Desta forma, o sistema se focou na punição de espécies bem definidas de condutas, ou seja, aquelas que ofendem o patrimônio, geralmente, em valores baixos. Juntamente com essa seleção quantitativa, talvez decorrente desta, surgiu a segunda seleção: a qualitativa, a qual definiu uma estigmação dos “potenciais delinquentes” da sociedade – dentro do rol daquelas espécies de condutas consideradas relevantemente puníveis – atingindo, como já elucidado, uma população de baixa renda. Em decorrência disto, determinou-se a criação e o fomento de um sistema de etiquetagem (labbeling approach) do delinquente em potencial. Nesse sentido, as agências penais, dentro de sua área de atuação, trabalham em função desse sistema de seletividade. Os legisladores criam regras e sanções penais tendo por objetividade a punição desses determinados tipos de conduta; a Polícia tem como ideal de criminoso esse determinado perfil de indivíduos; a população teme esse mesmo perfil; e o Judiciário condena esses mesmos indivíduos etiquetados. Desta forma, conclui-se que o sistema penal se fechou em um ciclo vicioso de punição de determinados tipos de condutas e indivíduos, no qual o controle sócio penal exercido pelo Estado volta-se, primacialmente, na contenção destas mesmas condutas e indivíduos. Assim sendo, o Estado estigmatizou, e de certa forma segregou, uma relevante parcela da população ao etiquetá-la como a parcela potencialmente criminosa da sociedade. Situação que fere princípios fundamentais do Estado Democrático (Constitucional) de Direito, cujo corolário principal é o da igualdade. 278 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2005. REALE JUNIOR, Miguel. Instituições de direito penal: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1992. WOLKMER, Antônio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editores, 1990. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Renavam, 1991. ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro: teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003. ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 279 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 280 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE LEGITIMIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO DIANTE DO PRINCÍPIO DA LESIVIDADE LEGITIMACY OF THE ABSTRACT RISK CRIMES AGAINST THE OFFENSE PRINCIPLE Glenyo Cristiano Rocha1 Gustavo Brita Scandelari2 Graduado em Direito pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA (2014). Pós-graduando no curso de especialização em Direito Contratual da Empresa no Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Advogado. 2 Graduado em Direito pela Universidade Positivo (2006). Pós-graduado em Direito Constitucional pela Unibrasil. Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC) em convênio com a UFPR. Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Professor de Cursos de Pós-Graduação em Direito. Professor de Direito Penal no UNICURITIBA. Associado fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Membro da Comissão da Advocacia Criminal da OAB/PR (2011/2012 e 2013/2015). Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). Membro do Instituto dos Advogados do Paraná. Advogado. 1 281 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SUMÁRIO 1 – Introdução. 2 - Harm Principle. 3 - Teorias do Bem Jurídico. 3.1 - Winfried Hassemer e a Teoria Pessoal do Bem Jurídico. 3.2 - Bem Jurídico Como Ponto de Fuga das Figuras de Imputação, de Bernd Schünemann. 3.3 - Vigência da Norma Como Objeto de Proteção Juridico-Penal, por Günther Jakobs. 3.4 - O Bem Jurídico Relacional de Stratenwerth. 3.5 Roxin e a Proteção Subsidiária de Bens Jurídicos. 3.6 - Teoria do Bem Jurídico e o Harm Principle, por Hirsch. 4 - Dano, Perigo Concreto e Perigo Abstrato. 4.1 - Delitos de Mera Conduta e Delitos de Resultado. 4.2 - Perigo Abstrato e Lesividade (Ofensividade). 4.3 - Delitos de Acumulação. 5 Análise Sobre os Crimes de Perigo Abstrato. 5.1 - Sociedade de Risco. 5.2 Aspectos de Política Criminal. 5.3 - Perigo Abstrato em Relação às Teorias do Bem Jurídico. 5.4 - Perigo Abstrato e o Harm Principle. 6 - Considerações Finais. Referências. 282 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO A presente pesquisa visa solucionar uma questão amplamente debatida na doutrina atual, que é a legitimidade dos crimes de perigo abstrato diante do princípio da lesividade, tendo em vista a pretensa incapacidade de criar qualquer resultado danoso a partir das condutas tipificadas. Fundamentando o raciocínio necessário ao desenvolvimento, são apresentadas diversas teorias do bem jurídico, de origem europeia, onde a discussão é mais intensa e profunda, demonstrando suas particularidades e pontos de distinção, evidenciando as várias acepções possíveis ao tema. A evolução técnico-científica justifica o expansionismo penal, e torna imprescindível a tipificação de novas condutas para acompanhar a modernização. O Harm Principle, elaborado por John Stuart Mill, representa uma solução viável para a aplicação da lei penal, conjugando a subsunção típica com a necessidade de ocorrência de dano ou risco efetivo de dano. Intenciona-se, com a realização desta pesquisa, verificar se há legitimidade nos crimes de perigo abstrato de um ponto de vista teórico-dogmático, em consonância com os preceitos legais e garantias historicamente estabelecidas, próprias do Direito Penal. Palavras-chave: Bem Jurídico, Harm Principle, Perigo Abstrato, Sociedade de Risco. 283 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT This research focus on solving a highly debated question at the actual academic production, which is the legitimacy of the abstract risk crimes against the offense principle, considering the alleged inability of creating any harmful result from a typified behavior. Basing the rationality required to the development, are presented many legal interest theories, with european origin, where the discussion is more intense and deeper, demonstrating its particularities and distinguish points, showing the many possible meanings to the theme. The technical-scientific evolution justifies the penal expansionism, and makes indispensable the typification of new behaviors to follow the modernization. The Harm Principle, elaborated by John Stuart Mill, represents a viable solution to the enforcement of the criminal law, conjugating the typical subsumption with the need of harm occurrence or effective risk of harm. The intention, with the realization of this research, is to verify if there is any legitimacy in the abstract risk crimes from a theoretical-dogmatic point of view, in harmony with the legal precepts and guaranties historically established, typical of the Criminal Law. Keywords: Legal Interest, Harm Principle, Abstract Risk, Risk Society. 284 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO Este artigo foi redigido a partir de uma concepção reiteradamente discutida há tempos, em que se teoriza que os crimes de perigo abstrato seriam ilegítimos. O principal argumento utilizado é que, diante do princípio da lesividade, condutas meramente perigosas não poderiam ser punidas por não lesionarem efetivamente qualquer bem jurídico, vez que sua perfectibilização prescinde de resultados no mundo exterior. Tal problema adquire relevância diante do momento expansionista em matéria penal, cuja produção legislativa ocorre de maneira desenfreada, pretensamente acompanhando o processo de modernização. Para verificar sua eventual confirmação em um aspecto dogmático, desconstruir-se-á o raciocínio em elementos essenciais, cuja compreensão individual e posterior reintegração possibilitem a tomada de conclusões. Se o problema é baseado na ausência de lesão a bens jurídicos pelos crimes de perigo abstrato, alguns pontos básicos precisam ser compreendidos para habilitar a construção de um posicionamento idôneo sobre o tema: O que é um bem jurídico? O que são os crimes de perigo abstrato? Qual o pressuposto do princípio da lesividade? Qual o panorama atual em termos de política criminal? O estudo do Harm Principle e da teoria do bem jurídico iniciam o apanhado intelectual. São conceitos que, como aponta Andrew Von Hirsch, podem se complementar de alguma forma, mas não costumam ser tratados conjuntamente, até mesmo porque o seu desenvolvimento se deu em bases territoriais distintas. Como forma de demonstrar a inquietude teórica sobre o tema, serão apresentados diversos posicionamentos doutrinários acerca da natureza do bem jurídico e, como será logicamente visto adiante, diferentes posicionamentos levam a diferentes conclusões. 2 HARM PRINCIPLE O Harm Principle é preconizado por John Stuart Mill na obra “Sobre a Liberdade”, publicada originalmente em 1859. O autor realiza um grande estudo 285 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE sobre o comportamento humano, historicamente considerado, e passa a dotar seus esforços na tentativa de delimitar as hipóteses em que a punição estatal (amplamente considerada, para além do Direito Penal) seria legítima. Prevê que a tendência no desenvolvimento das liberdades civis seria “do fortalecimento da sociedade e da diminuição do poder do indivíduo, esta intromissão não é um daqueles malefícios que tendem a desaparecer espontaneamente, mas que, pelo contrário, se tornam cada vez mais fortes” (MILL, 1997, p. 21). Tal tendência se concretizou, e o cenário atual demonstra grande expansão do aparato estatal e de seu intervencionismo. Analisando a evolução humana sob os aspectos político e social, começa a traçar os contornos do seu princípio: a única finalidade que justifica que a humanidade interfira, individual ou colectivamente, na liberdade de acção de qualquer dos seus membros é a sua própria protecção. Que o único objetivo da utilização legítima do poder que qualquer membro da comunidade civilizada, contra a sua vontade, é para evitar que outros sejam prejudicados. (MILL, 1997, p. 17). Não caberia, nesse aspecto, a punição por condutas que fossem somente moralmente reprováveis, ou ainda cuja ofensa não extrapolasse a si mesmo. Cada indivíduo tem o direito de guiar sua vida da maneira que achar mais adequada e, portanto, a intervenção estatal deveria ser a exceção, uma ultima ratio de fato. A sanção legítima puniria condutas que provoquem mal a outras pessoas. O importante é não obstaculizar a autodeterminação. Somente a liberdade, dentro das individualidades de cada pessoa, permitira a evolução. A evolução, enquanto livre desenvolvimento humano, é desejada, mas não a qualquer custo. A esfera de liberdades de alguém não pode invadir a esfera de liberdades de outrem, até mesmo porque isso impediria este de evoluir livremente e alcançar seus objetivos. O fundamento para a sujeição às restrições impostas seria que todos recebem a proteção da sociedade, e que devem retribuir isso seguindo determinado padrão de conduta: 286 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Embora a sociedade não seja baseada num contrato, e ainda que nenhuma finalidade importante resulte de se inventar um contrato para dele se deduzirem obrigações sociais, todos os que recebem a proteção da sociedade ficam a dever-lhe uma retribuição pelo benefício recebido, e o facto de se viver em sociedade torna indispensável que cada indivíduo seja obrigado a seguir uma determinada linha de conduta em relação aos restantes. Esta conduta consiste, em primeiro lugar, em não se lesar os interesses uns dos outros; ou, por outro lado, determinados interesses que, através de uma expressa estipulação legal ou de um acordo tácito, devem ser considerados como direitos; e, em segundo lugar, cada indivíduo deve suportar a sua quota-parte (a ser fixada com base num princípio equitativo) dos esforços e sacrifícios necessários para defender a sociedade ou os seus membros de quaisquer danos e ataques. (MILL, 1997, p. 72). Generalizando o princípio, na tentativa de condensá-lo em um conceito, a punição seria cabível apenas para os casos em que houver lesão a interesses e direitos de terceiros na busca de objetivos que não sejam legítimos. Nas palavras do próprio autor, o princípio é composto por duas máximas: Estas máximas são, em primeiro lugar, que o indivíduo não é responsável perante a sociedade pelos seus actos, desde que estes não digam respeito a ninguém a não ser ele próprio. Conselhos, instruções, persuasão e evitar a presença, se alguém entender que tal é necessário, são as únicas medidas através das quais a sociedade pode justificadamente exprimir o seu desagrado ou condenação pela sua conduta. Em segundo lugar, que o indivíduo é responsável pelos actos que são prejudiciais aos interesses de outrem, podendo ser punido social ou legalmente, se a sociedade for da opinião que um ou outro modo de castigo é necessário para sua protecção. (MILL, 1997, p. 95). Ao que parece, o objetivo principal é assegurar aos indivíduos a devida liberdade para desenvolver-se livremente, desde que suas ações, tendo por parâmetro o interesse geral, não prejudiquem outrem. 3 TEORIAS DO BEM JURÍDICO O próximo passo é compreender a natureza do bem jurídico. O que é? E o que é apto a ser um bem jurídico? Esse é o ponto chave. O costume, ao menos na tradição brasileira, é afirmar simplesmente que o bem jurídico é o objeto da ação, ou seja: a vida é o bem tutelado no homicídio, portanto a lesão ao bem “vida” é 287 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE criminalizada; o patrimônio é o bem tutelado no furto, portanto a lesão ao bem “patrimônio” é criminalizada. Ocorre que a doutrina europeia se antecipa e trava, há tempos, discussão sobre a natureza do bem jurídico, principalmente diante da evolução social e, consequentemente, do Direito Penal. Nesse aspecto, doravante serão apresentados os posicionamentos de alguns autores, que em alguma medida divergem conceitualmente. 3.1 WINFRIED HASSEMER E A TEORIA PESSOAL DO BEM JURÍDICO Hassemer discorre que, historicamente, os bens jurídicos servem para descriminalizar, pois a atuação legiferante em matéria penal se referiria somente a condutas que ameaçassem bens jurídicos. Porém, tal critério não poderia ser o único, ainda que seja necessário. Além desse, existem vários princípios relativos à limitação de punibilidade, como a subsidiariedade, a danosidade social, o respeito à dignidade humana, Direito Penal do fato e taxatividade da lei penal. O legislador deve proteger os bens que estiverem sistematicamente inseridos nesses limites. Ao passo em que a legislação moderna passa a se ocupar com a supraindividualidade, inviabilizando a determinação precisa do sujeito passivo das condutas ora criminosas, deixa de proteger interesses meramente individuais e passa a proteger também instituições ou funcionamento de sistemas. Os padrões antigos não são mais suficientes, e há uma ampliação indistinta dos bens jurídicos. Acresça-se ainda que uma sociedade moderna amplia as possibilidades de ação e, com novas instituições, cria novas possibilidades de lesão. Seria míope querer salvar os princípios jurídicos clássicos minimizando a importância dessa evolução. Intenso tráfico de drogas, desgaste do meio ambiente e atentados ameaçadores a estruturas econômicas ou de tecnologia e comunicação conduzem a novos problemas sociais, que devem ser enfrentados pela teoria do bem jurídico. (HASSEMER, 2011, p. 20). 288 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Para acompanhar o desenvolvimento da sociedade, é necessário assimilar os novos problemas sociais e partir para uma proteção que não é mais exclusivamente individual, mas social: Essa tradição consiste em funcionalizar os interesses da coletividade e do Estado a partir do indivíduo: bens jurídicos universais têm, nessa medida, somente uma base, quando comprovadamente forem interesses indiretos do indivíduo. Na origem dessa tradição está uma compreensão liberal de Estado, para a qual o Estado não é fim em si próprio, mas deve apenas promover o desenvolvimento e a garantia das possibilidades vitais do ser humano. (HASSEMER, 2011, p. 21). Em última análise, deve haver uma teoria pessoal do bem jurídico, entendido como interesses humanos que precisam de proteção penal e, com isso, poderiam ser tuteladas instituições intangíveis também, desde que isso resulte na proteção de humanos, ainda que indiretamente. Não significa negar a existência de bens jurídicos do Estado ou da coletividade, mas que estes sejam úteis aos interesses dos seres humanos. 3.2 BEM JURÍDICO COMO PONTO DE FUGA DAS FIGURAS DE IMPUTAÇÃO, DE BERND SCHÜNEMANN Bernd Schünemann elege como bens jurídicos todos aqueles que o sujeito precisa para seu livre desenvolvimento, desde que não obtidos em detrimento do desenvolvimento dos outros, imprescindíveis para a convivência pacífica e que digam respeito à liberdade de escolha dos indivíduos: O conceito de lesão ou (em perspectiva inversa) o de bem expressa, também, não um interesse qualquer, mas apenas um interesse urgente da convivência pacífica pode ser objeto da proteção penal, de modo que meras inconveniências que aflijam o indivíduo ou meras incompletudes da organização social não bastam para justificar o apelo ao Direito Penal. (SCHÜNEMAN, 2011, p. 37). O autor entende que o bem jurídico desempenha importante papel na estrutura do delito, além de restringir as condutas que são capazes de afetá-lo, pois 289 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE seu processo de delimitação substancial abrange uma série de princípios que acabam por solidificar a proibição. 3.3 VIGÊNCIA DA NORMA COMO OBJETO DE PROTEÇÃO JURIDICO-PENAL, POR GÜNTHER JAKOBS A teoria adotada por Günther Jakobs é bastante distinta, e seu argumento é de que o Direito Penal tutelaria, na verdade, a própria vigência da norma. Isso significa dizer que o bem jurídico não possui um conteúdo definido previamente, mas qualquer conteúdo que permita a manutenção da forma de Estado e sociedade: A contribuição que o Direito penal presta à manutenção da configuração social e estatal está em garantir as normas. A garantia consiste em que as expectativas imprescindíveis para o funcionamento da vida social, na forma dada e na exigida legalmente, não se deem por perdidas no caso de serem defraudadas. Por isso, - ainda que contradizendo a linguagem usual – se deve definir como o bem proteger a firmeza das expectativas normativas essenciais face à decepção, firmeza diante das decepções que tem o mesmo âmbito que a vigência da norma posta em prática; este bem se denominará a partir de agora bem jurídico-penal.3 (JAKOBS, 1997, p. 45, tradução nossa). A contribuição do Direito Penal seria à manutenção da configuração social e estatal, garantindo que as expectativas relativas ao funcionamento da vida social não se percam. 3.4 O BEM JURÍDICO RELACIONAL DE STRATENWERTH Günter Stratenwerth inicia explicando que interesses sempre existem em qualquer norma, sendo dirigidos a algo e, simultaneamente, reflexos desse algo, No original: “La contribución que el Derecho penal presta al mantenimento de la configuración social y estatal reside en garantizar las normas. La garantia consiste en que las expectativas imprescindibles para el funcionamiento de la vida social, en la forma dada y en la exigida legalmente, no se den por perdidas en caso de que resulten defraudadas. Por eso, - aun contradiciendo el lenguaje usual – se debe definir como el bien a proteger la firmeza de las expectativas normativas esenciales frente a la decepción, firmeza frente a las decepciones que tiene el mismo ámbito que la vigencia de la norma puesta en práctica; este bien se denominará a partir de ahora bien jurídicopenal.”. 3 290 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ainda que não sejam esse algo. É inviável, portanto, lesionar um interesse e, partindo dessa perspectiva, o bem jurídico não pode ser um interesse. Também não poderia ser um valor, pois valores igualmente não podem ser lesionáveis. Para superar essas propostas, afirma que o bem jurídico não é um objeto, nem um juízo de valor, mas a relação valorada entre um ser humano e um interesse. A fim de tornar esse bem digno de proteção, deve ser conferido a uma pessoa, de maneira a assegurar seu desenvolvimento pessoal. Assim, não seria qualquer ofensa que ensejaria a punição, mas apenas aquelas que interfiram no “estado lesionável” do bem jurídico: como se sabe, o furto em nada altera os direitos de propriedade. Toda atribuição tem, contudo, seu lado fático, correspondendo a ela a possibilidade de utilizar o bem, de conduzir a própria vida (e talvez de gozála), de fazer uso das próprias capacidades físicas e da própria liberdade etc. Nessa relação encontra-se o verdadeiro substrato do bem jurídico, o ‘estado’ lesionável e que por isso tem de ser protegido contra lesões, isto é, contra a eliminação ou diminuição das possibilidades de vida que esse estado representa. (STRATENWERTH, 2011, p. 108). Há ainda bens jurídicos que tutelam, em última análise, as normas que regem a sociedade. São consequências da violação da norma e não a violação em si. Quanto a essa dimensão de bens jurídicos, Stratenwerth afirma que: Esse campo de convicções personalíssimas não pode, contudo, ser descrito em seu conteúdo, ser materializado, e talvez seja essa a razão para que se fale na paz pública como o bem jurídico protegido, uma vez que, apesar de ser secundária, ela se mostra mais substancial do que o apelo às normas que regulam o respeito às convicções alheias. (STRATENWERTH, 2011, p.110). Considerando as diferenças dos objetos de proibição penal, o autor retoma a perspectiva de que não se encontrou, historicamente, um conceito de bem jurídico com aplicação a todos os delitos. Para Stratenwerth, não se trata de algo pendente de solução, mas algo cuja solução é impossível. 3.5 ROXIN E A PROTEÇÃO SUBSIDIÁRIA DE BENS JURÍDICOS 291 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Claus Roxin inicia seus escritos sobre o tema refletindo que o legislador tem o direito de estabelecer penas a partir de uma atribuição constitucional que pressupõe a existência de um direito do Estado penalizar, mas o legislador constitucional silenciou quanto a quais condutas poderiam ser legitimamente punidas. O conceito material de delito deveria ser entendido como “proteção subsidiária de bens jurídicos”. A lesão a um bem jurídico seria, portanto, um pressuposto da punibilidade. Para delimitar a autorização da intervenção jurídico-penal, parte-se da função do Direito Penal, entendida como a “existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre e quando estas metas não possam ser alcançadas com outras medidas político-sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos” (ROXIN, 2009, p. 16), fronteira para além da qual não se pode criminalizar quaisquer condutas. Conceitua o bem jurídico como todas as “circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos” (ROXIN, 2009, p. 16). A grande diferença nessa acepção é que não se limita a bens jurídicos individuais, mas também abrange os da generalidade. Não haveria, porém, legitimidade em todos os bens jurídicos supraindividuais, mas apenas naqueles que servem ao indivíduo. O conceito de bem jurídico não se afasta da derivação das incumbências do Estado e dos direitos fundamentais, de maneira que todos os preceitos penais estão submetidos às limitações constitucionais. Não é um conceito estático, pois aberto às mudanças sociais e aos progressos do conhecimento científico. O conceito de bem jurídico somente proporciona um critério para desenvolvimento da matéria jurídica e de orientação para o legislador e aplicadores do direito devem consultar para criação de leis e interpretação de cada caso concreto. Distingue bem jurídico e objeto da ação, que por vezes parecem ser o mesmo, mas aquele é o bem ideal que se incorpora no objeto atacado, enquanto apenas os objetos individuais da ação são lesionáveis. 292 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 3.6 TEORIA DO BEM JURÍDICO E O HARM PRINCIPLE, POR HIRSCH Enquanto Mill considerava o harm principle o único critério válido para penalização de comportamentos, Joel Feinberg, que teorizou a partir do referido princípio, utiliza também outros critérios, como o efeito ofensivo intrínseco a uma conduta, chamado de offense to others, mas também rejeita os critérios do paternalismo e da proteção penal das tradições morais. Hirsch realiza um estudo sobre o princípio do dano, partindo do conceito de dano em paralelo com a noção de interesse. Haveria o dano quando uma conduta despreza um interesse, que deve ser entendido como um recurso sobre cuja integridade tenha direito outra pessoa. Recurso seria um meio ou uma capacidade que normalmente possui um certo valor para a manutenção de um padrão de qualidade de vida. O autor traça um paralelo entre o conceito de dano, mencionado no parágrafo anterior, e o conceito de bem jurídico, afirmando que a partir do harm principle é possível construir algo parecido com um bem jurídico. Adverte que a discussão do bem jurídico está muito mais desenvolvida que a discussão em torno do harm principle, mas que ainda assim a combinação das duas teorias pode resultar em alguns ensinamentos para a doutrina penal alemã. O panorama da discussão na Alemanha gira em torno da necessidade de manutenção da teoria do bem jurídico devido à falta de claridade e vagueza com conceito. Uma solução apontada por Hirsch seria a utilização de harm to others como uma maneira de limitar a definição de bem jurídico. Os fundamentos do princípio do dano são amplos, o que torna possível uma legítima maior aplicação, como passa a explicar: A lesividade para outras pessoas deve, portanto, contemplar-se a partir deste princípio de modo individualista; trata-se, assim, sobretudo de lesões a pessoas de carne e osso. Apesar da evidente prioridade dos interesses individuais, o harm principle permite também a proibição de condutas coletivamente lesivas, como por exemplo o delito fiscal, sem que seja necessário chegar tão longe como chegam os membros da Escola de Frankfurt, que consideram que os bens jurídicos coletivos não são nada além da soma dos bens jurídicos dos indivíduos. O harm principle pode 293 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE abarcar condutas lesivas de bens coletivos, porém por outro lado exige que a ratio desses bens coletivos, ao menos em casos normais, seja proveniente da proteção da qualidade de vida dos seres humanos, isto é, que o prioritário são os interesses pessoais. Assim, por exemplo, a razão pela qual deve ser protegida a Fazenda Pública deve extrair-se do fato de que em um Estado social a arrecadação de impostos reverte-se na qualidade de vida dos cidadãos.4 (HIRSCH, 2007, p. 44, tradução nossa). Prossegue indicando que a ênfase na lesão de interesses de terceiros pode colaborar com a diferença entre o desprezo de interesses de terceiros e dos interesses do próprio agente, que ocorre na teoria do bem jurídico. Um dos pontos centrais da discussão do Legal paternalism é se o Direito deveria intervir quando uma conduta autolesiva possa conduzir a danos muito graves e irreparáveis. A justificação dessas normas é proveniente da gravidade e irreparabilidade dos danos autoinfligidos, a intensidade e duração da intervenção e a coerência e aparente racionalidade dos motivos que o agente tenha para agir. O Offense Principle parte de um pressuposto distinto do harm principle, pois determina que certas ofensas despertam sentimentos indesejados em outras pessoas, pelo que, na visão de Feinberg, essas condutas deveriam ser penalmente proibidas quando tornem difícil que os outros cidadãos possam ignorá-las. Hirsch critica esse posicionamento, pois mesmo nessa hipótese acredita ser indispensável a ocorrência de dano para ensejar a punição. 4 DANO, PERIGO CONCRETO E PERIGO ABSTRATO O Direito Penal Clássico preocupava-se com os crimes de dano e perigo concreto, mas no Direito Penal Econômico os crimes de perigo abstrato, antes No original: “La lesividad hacia otras personas debe, por tanto, contemplarse desde ese principio de un modo individualista; se trata, así, sobre todo de lesiones a personas de carne y hueso. A pesar de la evidente prioridad de los interesses individuales, el harm principle permite en todo caso la prohibición de conductas colectivamente lesivas, como por ejemplo el delito fiscal, sin que sea necessario aquí llegar tan lejos como llegan los miembros de la Escuela de Frankfurt, que consideran que los bienes jurídicos colectivos no son sino la suma de los bienes jurídicos de los indivíduos. El harm principle puede abarcar conductas lesivas de bienes colectivos, pero por otro lado exige que la ratio de esos bienes colectivos, al menos en los casos normales, radique en la proteccíon de la calidad de vida de los seres humanos, esto es, que lo prioritario son los interesses personales. Así, por ejemplo, la razón por la que debe ser protegida la Hacienda pública debe extraerse del hecho de que en un Estado social la recaudación de impuestos revierte en la calidad de vida de los ciudadanos.”. 4 294 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE exceções, passam a ser a regra. Para esclarecer esse ponto, faz-se necessária a distinção entre essas espécies de técnicas de tipificação. Introdutoriamente, Eugenio Raúl Zaffaroni distingue perigo e dano quanto à afetação do bem jurídico: Há dano ou lesão quando a relação de disponibilidade entre o sujeito e o ente foi realmente afetada, isto é, quando, efetivamente, impediu-se a disposição, seja de forma permanente (como ocorre no homicídio) ou transitória. Há afetação do bem jurídico por perigo quando a tipicidade requer apenas que essa relação tenha sido colocada em perigo. (ZAFFARONI, 2006, p. 482). Os crimes de dano dependem da realização do resultado de uma conduta. Os delitos de perigo concreto são aqueles em que o perigo é uma elementar do tipo, estando expressamente previsto no texto legal, mas não restrito à sua literalidade. A conduta deve aproximar-se da realização de dano e, para sua configuração, deve haver dois momentos de análise: O primeiro juízo, antes da ocorrência do fato (ex ante), deve verificar que a conduta apresentou uma possibilidade de dano e o segundo juízo, posterior ao fato (ex post), conferirá se o dano esteve perto de efetivamente ocorrer, se houve alta probabilidade de dano ao bem jurídico (D’AVILA, 2009, p. 110). Este raciocínio demonstra conformidade com o apresentado por Luis Greco: Ponto comum à grande maioria dos que se importam em definir o que seja perigo concreto é a perspectiva com base na qual ele deve ser ajuizado: trata-se da perspectiva ex post, isto é, levam-se em conta todas as circunstâncias reais, mesmo as somente conhecidas e cognoscíveis após a realização do fato. (GRECO, 2011, p. 99). O tipo traz consigo uma presunção relativa de que aquela conduta é potencialmente lesiva, portanto é necessário provar a ocorrência do perigo na situação fática da conduta analisada. Os delitos de perigo abstrato são “aqueles crimes cujo tipo não exige nem uma lesão, nem um perigo concreto para o bem jurídico protegido” (GRECO, 2011, p. 99). É uma técnica que prevê uma conduta perigosa por si própria, em que há a 295 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE presunção do perigo tão somente pela ocorrência da conduta. Segundo a lição da doutrina: O tipo de perigo abstrato é a técnica utilizada pelo legislador para atribuir a qualidade de crime a determinadas condutas, independentemente da produção de um resultado externo. Trata-se de prescrição normativa cuja completude se restringe à ação, ao comportamento descrito no tipo, sem nenhuma referência aos efeitos exteriores do ato, ao contrário do que ocorre com os delitos de lesão ou de perigo concreto. (BOTTINI, 2010, p. 113). Para a configuração de um crime de perigo abstrato, a rigor, recorrendo a interpretação meramente literal, é necessária apenas uma análise ex ante factum, ou seja, previamente ao fato, ocasionando que “a prova da causalidade e do resultado torna-se desnecessária, em princípio basta a mera prática da conduta descrita para que se incorra na sanção.” (GRECO, 2011, p. 4). Nesse sentido, pode-se afirmar que “os crimes de perigo abstrato, por outro lado, prescindem da referência a fenômenos externos à atividade descrita como ilícita. Sob o aspecto formal, a mera prática da conduta indicada na norma exaure os aspectos objetivos do tipo penal” (BOTTINI, 2010, p. 114). Não há, portanto, necessidade de que haja qualquer resultado, pois “o núcleo do injusto penal é a conduta praticada: o desvalor reside na ação e não no resultado, dispensado para a configuração formal do ilícito” (BOTTINI, 2010, p. 115). Existem, ainda, os delitos de perigo abstrato-concreto, os quais podem ser definidos como aqueles que: [...] descrevem a conduta proibida e exigem expressamente, para a configuração da tipicidade objetiva, a necessidade da periculosidade geral, ou seja, que a ação seja apta ou idônea para lesionar ou colocar em perigo concreto um bem jurídico. Estes tipos penais atrelam a conduta proibida a um critério material de injusto, que será a criação de um risco não permitido, mesmo que não realizado concretamente. (BOTTINI, 2010, 118). É uma categoria mais contida que o perigo abstrato tradicional, pois a tipificação não se fundamenta tão somente na criação de um risco, mas pressupõe a potencialidade lesiva da conduta em relação a um bem jurídico. 296 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 4.1 DELITOS DE MERA CONDUTA E DELITOS DE RESULTADO Com a finalidade de esclarecer embasar a análise que segue, convém conceituar os crimes de mera conduta e os crimes de resultado Jorge de Figueiredo Dias define os crimes de resultado como aqueles em que “o tipo pressupõe a produção de um evento como consequência da actividade do agente” (DIAS, 2007, p. 306), enquanto os crimes de mera conduta (por ele denominados de “crimes de mera actividade”), são aqueles em que “o tipo incriminador se preenche através da mera execução de um determinado comportamento” (DIAS, 2007, p. 306). Há uma confusão conceitual que embaralha esses conceitos com os de perigo e dano, mas os delitos de dano não são o mesmo que os de resultado, bem como os de perigo não se confundem com os delitos de mera conduta. Essa distinção é apresentada por Luís Greco: Afinal, enquanto a distinção entre delitos de lesão e de perigo se refere ao bem jurídico, a distinção entre delitos de resultado e de mera conduta parte da existência ou não de um objeto da ação espácio-temporalmente diverso da conduta do agente. (GRECO, 2011, p. 40). Os tipos de resultado (também chamados de “materiais”) exigem um resultado específico, ou seja, que a conduta cause determinada consequência. Os tipos de mera conduta (denominados também de “formais”), por outro lado, apenas descrevem determinada conduta, sendo que o tipo se preenche com a realização da conduta, pouco importando o efeito decorrente desta. 4.2 PERIGO ABSTRATO E LESIVIDADE (OFENSIVIDADE) Realizado o panorama geral, o momento passa a ser de entender a grande discussão acerca dos crimes de perigo abstrato. O debate reside em sua legitimidade, em especial à questão de sua possível inconstitucionalidade face à ausência de lesividade das condutas tipificadas. 297 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A fim de seguir um raciocínio lógico e evitar uma confusão conceitual já de início, faz-se necessária a apresentação introdutória do referido princípio, partindo então para uma análise da crítica apresentada por uma divergência doutrinária. Nilo Batista explica que, “à conduta do sujeito autor do crime deve relacionarse, como signo do outro sujeito, o bem jurídico (que era objeto da proteção penal e foi ofendido pelo crime – por isso chamado de objeto jurídico do crime)” (BATISTA, 2007, p. 91), situação em que “o bem jurídico põe-se como sinal da lesividade (exterioridade e alteridade) do crime que o nega, ‘revelando’ e demarcando a ofensa” (BATISTA, 2007, p. 95). A lesividade é pressuposto de um direito penal voltado à proteção de bens jurídicos, como expõe Zaffaroni: [...] se a norma tem sua razão de ser na tutela de um bem jurídico, não pode incluir em seu âmbito de proibição as condutas que não afetam o bem jurídico. Consequentemente, para que uma conduta seja penalmente típica é necessário que tenha afetado o bem jurídico. (ZAFFARONI, 2006, p. 481). Conforme disserta Fabio Roberto D’Avila, “a liberdade, enquanto valor constitucional fundamental, somente pode ser restringida quando o seu exercício implicar a ofensa de outro bem em harmonia com a ordem axiológico-constitucional” (D’AVILA, 2009, p. 53). Ao abordar o assunto, Eduardo Sanz de Oliveira e Silva adere à necessidade de lesão a um bem jurídico, explicando que “ainda que a perigosidade seja pressuposta, há que se verificar a ofensividade típica do delito de perigo abstrato, bem como da conduta em si” (SILVA, 2005, p. 275) e, se o caso concreto demonstre uma situação incapaz de ofensa a um bem jurídico, necessariamente acarretaria na “exclusão de punibilidade por impossibilidade concreta do instrumento lesar ou colocar em perigo o bem jurídico, o que acabaria por não perfazer o ilícito-típico justamente por ausência de ofensividade ao bem jurídico pela conduta” (SILVA, 2005, p. 275). Ainda que a mera conduta seja suficiente para preencher o tipo penal, é plenamente possível a ofensa a um bem jurídico, a qual enseje legitimamente uma persecução penal. 298 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Um embasamento cabível a esse raciocínio é de que “não há conduta sem resultado” (ZAFFARONI, 2006, p. 404). Ainda que nos crimes de perigo abstrato não se exija um resultado material e específico, parte-se de pressuposto que todos os tipos exigem um resultado, pois a conduta tipificada certamente culminará em algum efeito, de maneira indissociável, mas a estes delitos pouco importa qual será o resultado (ZAFFARONI, 2006, p. 405). A simples realização de um resultado não delimitado previamente, por si só, não é suficiente para dar razão a qualquer tipificação. É necessário que a ação resulte em uma lesão ao bem jurídico. Fábio D’Avila sustenta que “ao falarmos em uma necessária restrição do ilícito penal às hipóteses de efetiva ofensa a bens jurídicos, não estamos propondo uma limitação do direito penal aos crimes de dano e aos crimes de perigo concreto” (D’AVILA, 2009, p. 77), pois é possível compatibilizar o conceito de perigo abstrato com o requisito de ofensa a bens jurídicos através da consideração dos efeitos da conduta sobre o bem jurídico (D’AVILA, 2009, p. 107). 4.3 DELITOS DE ACUMULAÇÃO O Direito Penal tem sido utilizado para prevenção de uma maneira diferente da tradicional. Outrora a punição ocorreria devido a um fato danoso, cujo resultado seria proveniente de uma conduta específica, havendo perfeito e aparente nexo de causalidade entre a conduta e o resultado. Jesús-María Silva Sánchez, ao conduzir o tema, explica que essa forma de tipificação “dispensa uma valoração do fato específico, requerendo somente uma valoração acerca de qual seria a transcendência global de um determinado gênero de condutas que viesse a ser considerado lícito” (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 117). Para justificar a ocorrência de uma possível ilicitude, o autor propõe uma pergunta-chave: “o que aconteceria se todos os intervenientes neste setor de atividade realizassem a conduta X – quando existe, ademais, uma séria probabilidade de que muitos deles o façam –, caso fosse considerada lícita?” (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 117). 299 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE O problema dessas condutas não residiria em cada uma delas isoladamente, mas no impacto que sua intensa repetição causaria. A preocupação não é com a conduta de alguém, mas com a conduta de todos. Como explica Pierpaolo Cruz Bottini: Trata-se de ações que, isoladamente, não representam uma ameaça, em potencial para bens jurídicos tutelados, mas sua reiteração ou multiplicação acaba por consolidar um ambiente de riscos efetivos para estes interesses protegidos. O núcleo do injusto não é a potencialidade lesiva da conduta individual, mas o risco que a repetição destas condutas ocasiona ao bem protegido. (BOTTINI, 2010, p. 126). Pondera, ainda, que, devido a sua natureza, os delitos por acumulação somente poderão ser tipificados através dos crimes de perigo abstrato, tendo em vista que “não será possível atrelar, por critérios causais, o dano potencial a um ato isolado, porque este fenômeno decorre de um somatório de ações similares, que podem ser praticadas por agentes diversos” (BOTTINI, 2010, 127). 5 ANÁLISE SOBRE OS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO 5.1 SOCIEDADE DE RISCO A obra do sociólogo alemão Ulrich Beck é de grande importância para a análise do contexto social contemporâneo. O livro La Sociedad del Riesgo, que, embora não tenha sido a primeira obra a tratar do tema, foi a que adquiriu maior relevância, sendo frequentemente invocada para embasar o momento atual e justificar a política criminal que tem sido adotada. Teoriza que, na modernidade, a produção social de riqueza é acompanhada da produção social de riscos produzidos pelo avanço técnico-científico. Simultaneamente ao crescimento exponencial das forças produtivas no processo de modernização, surgem riscos e potenciais de auto ameaça, em uma medida desconhecida até o momento (BECK, 2006, p. 29). Ao núcleo do problema da sociedade de risco, corresponderia uma questão essencial: 300 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Como se podem evitar, minimizar, dramatizar e canalizar os riscos e perigos que se tem produzido sistematicamente no processo avançado de modernização e limitá-los e reparti-los, expostos na figura de “efeitos secundários latentes” de tal modo que nem obstaculizem o processo de modernização e nem ultrapassem os limites do “suportável” (ecológica, médica, psicológica, socialmente)?5 (Tradução nossa) (BECK, 2006, p. 30). O processo de modernização também é caracterizado pelo autor como reflexivo: ao mesmo tempo em que é objeto de análise, é um problema a ser resolvido. A sociedade, que depende desse avanço, é integralmente afetada pela produção dos riscos e seus efeitos, independentemente da camada social em que os indivíduos se encontrem. Nesse cenário de uma sociedade com riscos globais, muitas vezes invisíveis, mas com enorme potencial de destruição, estaria, em tese, legitimada a intervenção estatal para coibir condutas que ainda não causam um dano, mas têm potencialidade suficiente para tanto. Algumas condutas não ocasionam resultados de maneira imediata, mas impactam de maneira remota, de maneira que nem sempre a relação de causalidade é visível. Com isso, muitos defendem que o Direito Penal deveria ser uma ferramenta de proteção de interesses supraindividuais, servindo para prevenção e proteção da existência humana, não apenas na atualidade, mas até mesmo das gerações futuras. 5.2. ASPECTOS DE POLÍTICA CRIMINAL Cumpre destacar que, antes mesmo de entrar no mérito da discussão, há um grande problema a se levar em consideração para a construção de um raciocínio jurídico que sirva para as pessoas, não sendo apenas uma idealização dogmática realizada a partir de belas palavras e coerência sistemática. Há um enorme descompasso entre a teoria e a prática quando se trata da realidade brasileira. Por mais que os fundamentos da punição de determinadas práticas encontrem um No original: “¿cómo se pueden evitar, minimizar, dramatizar y canalizar los riesgos y peligros que se han producido sistemáticamente en el proceso avanzado de modernización y limitarlos y repartilos allí donde hayan visto la luz del mundo en la figura de <<efectos secundarios latentes >> de tal modo que ni obstaculicen el proceso de modernicazión ni sobrepasen los límites de lo <<soportable>> (ecológica, médica, psicológica, socialmente)?”. 5 301 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE paralelo plenamente justificável em teorias abstratas e etéreas, sua efetivação no sistema penal é distorcida e maléfica. O Direito Penal afeta pessoas, por mais óbvio que isso possa parecer. Porém, tal obviedade jamais pode ser esquecida! É de extrema importância lembrar que cada amontoado de papel tramitando há anos em todos os graus de jurisdição representam uma vida humana, plenamente digna, que está prestes a ter sua liberdade restringida por uma decisão judicial. Os impactos desta restrição são devastadores e passíveis de acabar com a vida de qualquer indivíduo, uma vez que “viver” é um termo colocado em um plano distinto do “sobreviver”. A questão do expansionismo penal deve ser tratada com cautela. Chegou-se ao momento em que há a punição pela possibilidade do sujeito cometer uma conduta que pode ou não criar um risco que, por sua vez, pode ou não vir a se concretizar em um dano. É difícil encontrar um posicionamento pronto e acabado de qual seria a solução correta a ser adotada, mas é necessário conjecturar algumas possibilidades. O atual momento reflete um grande e desenfreado expansionismo. É evidente reconhecer que novas normas penais são criadas em alta velocidade, muitas vezes sem atenção à própria sistemática normativa em que são inseridas. São criadas punições atendendo ao clamor social, visando a retribuição de casos específicos com alto apelo midiático, ou então se utiliza o Direito Penal como mero instrumento de apoio para a efetivação de políticas administrativas, para coagir o indivíduo a agir de acordo com a vontade do Estado. A expressão “Ultima Ratio” frequentemente deixa de ter qualquer significado e a intervenção penal passa a ser a primeira opção. Não se pensa mais em intervenção mínima, mas em intervenção imediata e “necessária”. A liberdade certamente não tem mais o mesmo valor que deveria ter e é cada vez mais desprezada e ignorada. O legislador não parece conhecer ou dar qualquer valor à alteridade, e sua atuação provavelmente não passa por qualquer teoria penal conhecida. Conhecer o Direito Penal em seus detalhes é bastante complexo, mas fazer leis severas assegura vantagem eleitoreira diante das massas que querem a resposta imediata a qualquer situação ocorrente na realidade social, ainda que isso seja um 302 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE retribucionismo simplista, que acarreta em prejuízos enormes para a própria sociedade como um todo. A adoção do expansionismo resulta em alguns problemas de grande magnitude. O aumento do número de tipos acaba por aumentar geometricamente os processos em tramitação no Poder Judiciário. É evidente que não há meios para um magistrado dar conta de toda a demanda processual existente com a devida cautela e a necessária análise dos autos em sua integralidade. Também são prejudicadas as finalidades da pena. Ocorre efetivamente a retribuição pelo crime cometido, mas dentro da matriz de prevenção somente ocorre a mais cruel delas, a especial negativa, que é a mera inocuização do infrator. Nesse aspecto, perde-se por não conseguir ressocializar o indivíduo, sendo que, observando por um viés humanista, esta seria a mais importante das funções propostas. O fenômeno da “impunidade”, que se reflete na inépcia estatal em cobrir todos os delitos a que se propõe em abrangência legislativa, inviabiliza a prevenção geral em qualquer de seus vieses. No outro extremo, o abolicionismo também não seria a solução adequada. Por mais que seja relativamente fácil enumerar as diversas mazelas da atual situação penal, não é viável ou mesmo desejável abolir o sistema por inteiro. Não é de se repudiar o abolicionismo, pois em um plano teórico ideal provavelmente seria a melhor solução, mas este cenário está longe de se concretizar. Com uma política criminal eficaz, o Direito Penal é justificável e seus resultados podem ser benéficos, em alguma medida, para todos os envolvidos. Nesse aspecto, a dificuldade continua sendo a atual forma com que as coisas vêm se concretizando, retornando à dificuldade prática. A possibilidade mais ponderada seria o reducionismo penal. Diminuir o número de tipos a um núcleo essencial de crimes, que sejam unanimemente passíveis de coerção penal. Não significa, porém, que novas normas não devam ser criadas. A sociedade está em constante evolução e, com isso, é evidente que novas condutas encontrarão a necessidade de criminalização. O Direito Penal não pode ser estanque e deve acompanhar o desenvolvimento social, mas sem esquecer das garantias e direitos conquistados e consolidados durante toda essa evolução. 303 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Reduzir o número de tipos implicaria a redução de número de processos e, com isso, cada processo poderia ser analisado mais detidamente, com maior atenção e respeito ao cidadão representado naqueles autos. Outra consequência da adoção desta política seria a alteração substancial da população carcerária. A segregação ocorreria apenas para um número reduzido de indivíduos, possibilitando, em termos práticos, a concretização das diversas finalidades da pena. Em uma ótica ideal, o sujeito submetido ao sistema prisional poderia ter alguma contribuição para a sua ressocialização ou, na pior das hipóteses, que o encarceramento não tenha a consequência diametralmente oposta a esta. Para todas as condutas que não mais seriam reguladas pelo Direito Penal, existem os outros âmbitos do Direito, reforçando a ideia de “Ultima Ratio”. Muitas das condutas ora taxadas como crimes poderiam facilmente ser passíveis de reparação civil ou sancionadas administrativamente, desonerando o aparato estatal quanto à resposta penal. Neste prisma, porém, o problema seria a discricionariedade a que se submeteriam. O Direito Penal, enquanto sistema dotado de várias garantias que proporcionam um processo supostamente justo, tende a impossibilitar grandes discricionariedades. A punição por meio de sanções administrativas possibilitaria a perseguição política e o aumento de corrupção através de favorecimentos, por exemplo. Em uma análise sobre uma das técnicas mais utilizadas em questão de tipificação de novas condutas, essas considerações são pertinentes. A ciência do Direito deve ter rigor teórico inigualável, mas não pode se dissociar da realidade em que será aplicada, cujo desrespeito incorre na dura pena de ser um instrumento plenamente ineficaz. 5.3 PERIGO ABSTRATO EM RELAÇÃO ÀS TEORIAS DO BEM JURÍDICO Em meio à doutrina, é possível encontrar críticos ferrenhos aos delitos de perigo abstrato. Gustavo L. Vitale é um dos autores que tece suas críticas sobre o tema. Baseado na premissa da ausência de afetação a bens jurídicos: 304 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A categoria dos “delitos de perigo abstrato” foi criada de um modo contrário às normas constitucionais que exigem, como pressuposto de imposição de toda pena estatal, a prova de afetação a bens jurídicos de terceiras pessoas. Isso acontece porque frequentemente se afirma que os citados “delitos” são dessa natureza porque presume-se, sem admitir prova em contrário, que afetam um bem jurídico alheio (ainda que, em verdade, isso não ocorra). Com isso não apenas se violenta o direito humano à presunção de inocência (que exige ao Estado, como condição para impor penas, a prova de todos e cada um dos pressupostos de punibilidade – e que, correlativamente, não requer ao imputado a prova de nenhuma circunstância de ausência de punibilidade –), mas que, além disso, se permita a punição sem afetação alguma à disponibilidade de direitos de terceiras pessoas.6 (VITALE, 1998, p. 93, tradução nossa). A posição emanada pelo referido jurista é semelhante à adotada por vários outros autores. Sustentam, em síntese, que os crimes de perigo abstrato não seriam legítimos pelo fato de que são incapazes de afetar um bem jurídico. No entanto, esse posicionamento não está necessariamente correto ou errado, mas depende de um embasamento teórico que justifique a possibilidade ou não da ocorrência dessa lesão. As teorias do bem jurídico demonstradas anteriormente são bastante versáteis, e possuem peculiaridades que as fazem únicas e, portanto, detentoras de características especiais que, quando analisadas individualmente, podem eventualmente legitimar a categoria dos crimes de perigo abstrato em um contexto lógico. Entre as teorias exploradas, verifica-se que alguns autores analisam o conteúdo do bem jurídico, enquanto outros tecem considerações de uma perspectiva formal. Para defender a legitimidade do perigo abstrato, o argumento utilizado é de que a lesão deve ser a um bem jurídico, enquanto fruto do desenvolvimento teórico. Diferente seria afirmar que a lesão deve ser naturalística, ou que o resultado deve ser inteiramente perceptível, pois nem todas as condutas implicam um resultado No original: “La categoria de los “delitos de peligro abstracto” ha sido creada de un modo contrario a las normas constitucionales que exigen, como presupuesto de imposición de toda pena estatal, la prueba de la afectación a bienes jurídicos de terceras personas. Ello sucede por cuanto suele pretenderse que los citados “delitos” son tales por el hecho de presumirse, sin admitir prueba en contrario, que afectan un bien juridico ajeno (aunque, en verdad, ello no ocurra). Con ello no sólo se violenta el derecho humano a la presunción de inocencia (que exige al Estado, como condición para imponer penas, la prueba de todos y cada uno de los presupuestos de punibilidade – y que, correlativamente, no requiere al imputado la prueba de ninguna circunstancia de no punibilidad –), sino que, además, se permite la punición sin afectación alguna a la disponibilidad de derechos de terceras personas.”. 6 305 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE dessa natureza. Importante é distinguir as definições de bem jurídico e objeto da ação. Um exemplo de teoria que contrapõe a ideia de ausência de lesão a bem jurídico é a proposta por Günther Jakobs, que nega a existência de um conteúdo único dos bens jurídicos, sendo que a tipificação ocorreria com base na manutenção da forma de sociedade e do Estado. Sob este prisma, os bens jurídicos não representam um objeto específico, mas a própria vigência da norma é tutelada, de modo que o resultado naturalístico é perfeitamente prescindível. Insta ressaltar que o momento da discussão é teórico, em questão de produção legislativa. Para esse momento, discute-se a necessidade de aptidão de uma conduta a lesionar um bem jurídico, o que não significa que ela sempre o fará. No âmbito prático, de aplicação da lei, é necessária a constatação da lesão a um bem jurídico, não bastando mera adequação típica. Nesse sentido, Gonzalo D. Fernández se manifesta: Ainda quando a conduta seja adequada à descrição típica de comportamento, marca apenas a primeira constatação no juízo imputativo, que deve complementar-se com um elemento adicional, formado pela afetação concreta desse bem jurídico, anteposto e protegido pela lei. 7 (FERNÁNDEZ, 1998, p. 425, tradução nossa). Em geral não há, quanto ao tema, uma única resposta válida. Por maior que seja a insegurança jurídica em que isso possa resultar, os diversos discursos podem caracterizar diversas soluções. É certo é que a discussão não está finalizada, mas em pleno desenvolvimento, e todas as análises deverão ser feitas considerando a evolução social e a realidade a que as teorias serão aplicadas. 5.4 PERIGO ABSTRATO E O HARM PRINCIPLE Independentemente da teoria adotada, o harm principle se mostra uma escolha segura para delinear os contornos do bem jurídico e sua relação com os No original: “aun cuando la conducta sea adecuable a la descripción tipica de comportamiento, ello marca apenas la primera constatacíon en el juicio imputativo, que debe complementarse con un elemento adicional, conformado tan luego por la afectación concreta de ese bien jurídico, antepuesto y protegido por la ley.”. 7 306 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE crimes de perigo abstrato. Em um momento de política criminal expansionista, é imprescindível estabelecer critérios rígidos para a produção legislativa. Importante ressaltar que não há de se confundir a noção de bem jurídico com a de harm principle. A proposta é, na verdade, estabelecer uma relação entre os dois conceitos, a fim de que esta ponte sirva de orientação teórica. Conforme visto, não há um conceito pacífico e bem determinado de bem jurídico. Há, porém, rica discussão sobre o tema e uma condição que se repete várias vezes: A criminalização de condutas deve servir para possibilitar o livre desenvolvimento do indivíduo. Partindo desse pressuposto, a tipificação de novas condutas poderia ser entendida como uma espécie de resposta estatal, utilizando-se de sua coercitividade, para assegurar que cada indivíduo tenha condições de buscar seu crescimento em todos os aspectos, sem que terceiros o impeçam disso. Essa ideia está em harmonia com o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o qual é classificado como fundamento da República Federativa do Brasil, de acordo com a Constituição Federal de 1988. Primeiramente, cumpre apresentar um conceito de Dignidade da Pessoa Humana desenvolvido por Ingo Wolfgang Sarlet: Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2001, p. 60). Da mesma forma que o conceito de bem jurídico, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana também não possui uma delimitação precisa, e a maior parte dos conceitos apresentados na doutrina brasileira são bastante amplos. A amplitude conceitual, porém, não pode se confundir com imprecisão, nesse caso. Por mais que os conceitos sejam amplos, o são para possibilitar a maior abrangência possível, e para que sua concretização seja cabível no maior número possível de casos concretos. 307 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Outra característica do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é a sua dupla dimensão. Possui um caráter positivo, em que o Estado deve atuar para prover as condições necessárias para o desenvolvimento do sujeito, e um caráter negativo, de abstenção, em que o Estado deve garantir que os outros indivíduos não atrapalhem esse desenvolvimento. Nesse sentido, a doutrina se posiciona: Neste contexto, não restam dúvidas de que todos os órgãos, funções e atividades estatais encontram-se vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-se lhes um dever de respeito e proteção, que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado de abster-se de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, quando no dever de protegê-la (a dignidade pessoal de todos os indivíduos) contra agressões oriundas de terceiros, seja qual for a procedência, vale dizer, inclusive contra agressões oriundas de outros particulares, especialmente – mas não exclusivamente – dos assim denominados poderes sociais (ou poderes privados). Assim, percebe-se desde logo que o princípio da dignidade da pessoa humana não apenas impõe um dever de abstenção (respeito), mas também condutas positivas tendentes a efetivar e proteger a dignidade dos indivíduos. [...] o princípio da dignidade da pessoa humana impõe ao Estado, além do dever de respeito e proteção, a obrigação de promover as condições que viabilizem e removam toda sorte de obstáculos que estejam a impedir às pessoas de viverem com dignidade. (SARLET, 2001, p. 108). Toda esta noção pode ser igualmente transferida para o Direito Penal e a teoria do Bem Jurídico. O Estado, enquanto garantidor da abstenção de ingerências alheias que obstaculizem o livre desenvolvimento do indivíduo, tipifica essas condutas para que, caso a intervenção ocorra, haja a devida resposta penal. O Harm Principle, de forma semelhante, pugna pela intervenção estatal tão somente quando houver prejuízo a outrem. Poderia discutir-se sobre a compatibilidade do referido princípio com a questão dos crimes de perigo abstrato, encarando o termo “prejuízo” como dano efetivo. Porém, o termo é mais amplo, englobando um leque de situações que vai além do próprio dano, incluindo o perigo abstrato. John Stuart Mill utiliza como exemplo uma situação em que não há resultado naturalístico, mas há uma ofensa social passível de punição: Quem não tem pelos interesses e sentimentos dos outros a consideração que lhes é devida, não sendo a isso obrigado por um dever mais imperioso, ou justificado por admissível preferência pessoal, é objecto de condenação moral por essa falta, mas não por causa desta, nem pelos erros que podem, desde há longa data, ter conduzido a ela e que dizem meramente respeito à 308 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE sua pessoa. Do mesmo modo, quando um indivíduo, devido à conduta que apenas lhe diz respeito, se torna incapaz de desempenhar um determinado dever público de que foi incumbido, esse indivíduo é culpado de uma ofensa social. Ninguém deve ser punido simplesmente por estar embriagado; mas um soldado ou um polícia devem ser punidos por se encontrarem embriagados enquanto estão de serviço. Em suma, sempre que há efectivamente um dano ou risco efectivo de danos, quer para um indivíduo quer para o público, o caso é retirado da esfera da liberdade e passa a situar-se no âmbito da moralidade ou da lei. (MILL, 1997, p. 83). Não é, porém, em qualquer caso que o autor entende ser cabível essa forma de punição. É preciso que a ação implique alguma forma de lesão a alguém ou à sociedade de maneira geral, sendo inviável castigar condutas que não apresentem qualquer violação ou que o façam apenas em relação ao próprio agente: Mas quanto à simples contingência, ou, como poderá ser chamado, dano construtivo que um indivíduo causa à sociedade por conta de uma conduta que não viola qualquer dever específico para com o público, nem provoca um sofrimento perceptível a nenhum indivíduo, a não ser a ele próprio, esta é uma inconveniência que a sociedade pode tolerar pelo bem da liberdade humana. (MILL, 1997, p. 84). Mill ressalta essa característica, e também posiciona-se acerca da punição antecipada de condutas, que em termos práticos frequentemente se valem do perigo abstrato como técnica de tipificação: O direito inerente da sociedade de evitar crimes contra si através de precauções antecipadas sugere as limitações óbvias à máxima de que não deverá haver ingerência, a título de prevenção ou de castigo, na má conduta que diz respeito meramente ao próprio indivíduo. (MILL, 1997, p. 98). Importa esclarecer que, quando John Stuart Mill menciona punições, não necessariamente serão de natureza penal. Do mesmo modo, a restrição de liberdade a que se refere não é necessariamente a liberdade de locomoção, mas as liberdades individuais de maneira geral. Diante do exposto, o Harm Principle se mostra perfeitamente compatível com os crimes de perigo abstrato, porém estabelece padrões aparentemente seguros para sua implementação. 309 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Seguindo a doutrina proposta por Mill, a tipificação de condutas que não resultem em dano real, como ocorre nos delitos de perigo abstrato, é aceitável, desde que haja risco efetivo de lesão a terceiro ou ofensa social a partir da não observância de um dever público. A proposta é satisfatória, mas em termos práticos colide com diversos tipos existentes no ordenamento jurídico brasileiro e apresenta certo descompasso com a tendência imposta pela sociedade do risco. Em muitos casos, a necessidade de risco efetivo de lesão a terceiro, que pode ser considerado o parâmetro mais importante da doutrina do Harm Principle, resta prejudicado, pois incompatível com a extensão intrínseca às noções de causalidade remota e delitos por acumulação, por exemplo. Com isso, a sua aplicação na prática legislativa não seria possível na integralidade das situações, mas certamente pode ser uma diretriz prioritária a ser observada nos casos em que haja identidade com a natureza da conduta a ser tipificada. Porém, em que pese a restrição seja flagrante no processo legiferante, que engloba um número abstrato e amplo de situações hipotéticas, é passível de extensa utilização na jurisprudência. A lei prevê uma generalidade, mas caberia aos magistrados verificarem a ocorrência do dano ou risco efetivo de dano em cada caso concreto, restringindo as punições tão somente às hipóteses em que haja essa incidência. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A discussão sobre a legitimidade dos crimes de perigo abstrato não parece estar próxima de se encerrar, mas pode ser apaziguada. Diante do raciocínio formulado neste artigo, essa técnica de tipificação pode ser considerada perfeitamente legítima. Os critérios propostos introdutoriamente podem ser retomados e respondidos agora, a fim de auxiliar nas conclusões. Ficou constatado que não há um conceito único sobre o que seja o bem jurídico. O debate fomentado na doutrina europeia se mostra bastante aprofundado, e diversas são as teorias que buscam explicar sua natureza. É inviável descartar uma única teoria, principalmente porque todas têm seus pontos de relevância e são 310 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE dotadas de coerência sistêmica, portanto é possível apenas discordar de determinada teoria. Os crimes de perigo abstrato preveem condutas intrinsecamente perigosas, cujo risco é presumido. De qualquer modo, o princípio da lesividade deve ser respeitado e, portanto, é imprescindível que haja lesão a um bem jurídico, que não exige resultado naturalístico. Em termos de política criminal, o cenário é de crescente expansionismo, com intensa atuação legiferante e criação diuturna de novos tipos penais, que frequentemente mostram desacordo com toda a legislação já produzida. O Direito Penal, muitas vezes, deixa de ser a ultima ratio e passa a abranger condutas que não deveriam estar sob sua égide. No entanto, abolir o perigo abstrato não pode ser a solução para este problema, pois sua utilização viabiliza que o Direito Penal acompanhe o desenvolvimento social. Pensar em uma única “solução” para um problema arraigado culturalmente é algo delicado. Um bom caminho seria a racionalização da atividade legislativa, revendo a legislação posta, criminalizando condutas com verdadeiro impacto social e não cedendo a pressões. Um panorama como esse, porém, parece estar longe de se concretizar. 311 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 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Atualmente é professor e pesquisador do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA e membro-pesquisador do Departamento de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Tem experiência na área de Filosofia do Direito, com enfoque nas teorias modernas e contemporâneas da Justiça, e, em fundamentos do direito público (constitucional, eleitoral, penal e administrativo). 315 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 316 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO Este trabalho destina-se a analisar estudos inovadores no âmbito dos Direitos Humanos, os quais possibilitam pensar a justiça internacional penal sob uma nova perspectiva, a fim de se estabelecer uma abordagem do Direito Internacional Penal construída por meio da dialética dos princípios do universalismo e do relativismo cultural. Para tanto, o presente trabalho discute a complexidade dos Direitos Humanos, que na maioria das vezes tentam se impor em face de concepções culturais que sequer têm em sua bagagem linguística conceitos fundamentais para a sua existência. Fato é que o princípio da universalidade sempre se faz presente, e, ainda, segue desbravando culturas sem analisar as peculiaridades das diferentes comunidades. Por outro lado, o relativismo cultural pura e simplesmente aplicado também apresenta diversas limitações. Adotar uma ou outra corrente de pensamento, diametralmente opostas, cuja discussão está longe de cessar, não parece ser a resposta mais apropriada para o Direito Internacional Penal. Diante desse impasse, deve-se encontrar uma terceira via de abordagem entre os dois extremos que possibilite uma análise interdisciplinar atualizada e condizente com a demanda social. Assim, uma pretensa solução é alcançar o universalismo por meio do diálogo entre culturas. As proposições de Joaquín Herrera Flores e Boaventura de Sousa Santos possibilitam o entendimento de que o primeiro passo se dá com o rompimento do olhar “de cima para baixo’’. Sendo assim, a caminhada do Direito Internacional Penal deve se dar vis-à-vis às novas lentes dos Direitos Humanos. Palavras-chave: Direitos Humanos, Direito Internacional Penal, Universalismo, Relativismo Cultural, Terceira Via. 317 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT This paper is intended to examine innovative studies in Human Rights, which enable international criminal justice to think from a new perspective, in order to establish an International Criminal Law approach built through the dialectic of the principles of universalism and cultural relativism. Therefore, this paper discusses the complexity of Human Rights, which most often try to impose upon cultural conceptions that do not even have in their linguistic luggage fundamental concepts to their existence. The fact is that the principle of universality always prevailed, and continues to break cultures without considering the peculiarities of the different communities. On the other hand, cultural relativism simply applied also presents several limitations. Adopting one or another school of thought, that are diametrically opposed, whose discussion is far from ceasing, does not seem to be the most appropriate response to the International Criminal Law. Faced with this impasse, we must find a third way to approach the two extremes that enables an interdisciplinary analysis updated and consistent with the social demand. Thus, an alleged solution is to achieve universalism through dialogue between cultures. The propositions of Joaquín Herrera Flores and Boaventura de Sousa Santos enable the understanding that the first step is the disruption of the look "top-down''. Thus, the International Criminal Law path should be taken vis-à-vis to the new lenses of Human Rights. Key words: Human Rights, International Criminal Law, Universalism, Cultural Relativism, Alternative Ways. 318 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO A relevância do tema abordado se insere na crescente importância atribuída ao Direito Internacional Penal e a sua discussão a partir de um direito alternativo proposto por alguns pensadores da área de Direitos Humanos. A transposição do direito interno para além das fronteiras territoriais do estado como resultado do interesse estatal na proteção da ordem pública (JANCOV, 2009, p. 1), deve buscar a coesão social, sendo que qualquer imposição de regras tidas como universais, mas que apenas traduzem pensamentos eurocêntricos deve ser afastada. A internacionalização de direitos é um processo - embora muitas vezes se pense óbvio - de natureza extremamente delicada, na medida em que se baseia em valores supostamente comuns, partilhados por uma comunidade internacional, e traduz uma nova realidade que precisa ser construída e consolidada (DELMASMARTY, 2004, p. 66). A questão posta em discussão busca mostrar que embora os legisladores e os juízes de direitos internacionalmente reconhecidos sejam nacionais de diversos continentes, eles normalmente se formaram nas mesmas universidades e seguem um raciocínio de jurisdição indubitavelmente ocidental. Essa constatação limita o alcance dos tribunais penais internacionais em termos de ética, pois embora o acordo entre esses pensadores e aplicadores seja condição necessária para legitimar um universalismo, está longe de ser, por si só, suficiente para justificar a natureza predominante de tal princípio (DELMAS-MARTY, 2004, p. 66). A teoria da universalidade busca proteger os seres humanos independentemente das idiossincrasias que os diferenciam (DONNELLY, 2003 p. 15), uma vez que existem certos valores aceitos pela comunidade internacional como um todo, e que alguns atos transcendem a singularidade dos interesses nacionais; portanto, devem ser temas dispostos de forma a buscar certa generalidade, ou ainda, devem ser invariavelmente perseguidos. A partir de normas jus cogens, que restringem a ética universal da comunidade internacional, pois agregam o ethical minimum reconhecido por todos os estados (JANCOV, 2009, p. 48), é que se chega a direitos como a dignidade da pessoa humana, os quais possuem caráter universal, indivisível e inalienável. 319 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE De outra forma, o princípio do relativismo cultural tem como seu marco fundador as proposições de Franz Boas (2010, p. 87), o qual defende que “civilização não é algo absoluto, mas é relativa, e nossas ideias e concepções são verdadeiras apenas na medida de nossa civilização". A validade desse pensamento se dá na medida em que cada sociedade tem sua dinâmica própria construída historicamente dentro de seu contexto específico e único. Ao observar sistemas culturais sem partir de conceitos ocidentais modernos de moral e ética ganha-se, e muito, na riqueza de detalhes particulares de cada grupo social. Embora ambas as escolas tenham oferecido avanços e retrocessos em relação à abordagem dos direitos humanos, fato é que, quando se trata das codificações de direito internacional, a universalidade sempre se fez presente3, deixando quase nada ou muito pouco de análise discricionária nas mãos dos operadores do direito. Observa-se assim que o direito internacional penal está envolto pelo princípio universalista que segue desbravando culturas sem analisar as peculiaridades de cada grupo de indivíduos. No entanto, embora essa posição tenha se mostrado limitada, o relativismo cultural, pura e simplesmente aplicado, também não traz soluções prontas que garantam a efetividade da aplicação da lei de forma justa, ao fim e ao cabo e, como bem observado por Eric Hobsbawm (1995, p. 13), não se pode relativizar o holocausto. Adotar uma ou outra corrente de pensamento, que são diametralmente opostas e cuja discussão parece estar longe de cessar, não parece ser a resposta mais apropriada para o Direito Internacional Penal. Logo, idealmente, deve-se encontrar uma terceira via de abordagem entre os dois extremos que incite os debates internacionais entre homens de diferentes culturas e possibilite uma análise interdisciplinar atualizada e condizente com a demanda da sociedade. É a partir da constatação da necessidade de uma nova via de entendimento para a justiça internacional penal que este trabalho busca delinear alguns aspectos alusivos em relação aos princípios do universalismo e do relativismo cultural nesse âmbito. 3Vale citar como exemplos de codificações com um cunho universalista a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789; a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; a Declaração de Viena, de 1993 e o próprio Estatuto de Roma, de 2002. 320 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A síntese universal dos direitos humanos deve ser buscada sem deixar de reconhecer, em primeiro plano, as diferenças étnicas ou de gênero dos diferentes estados, e também dos grupos díspares dentro deles. Para Herrera Flores (2009, p. 193), o universal não deve ser considerado um ponto de partida, ao contrário, ao universal deve-se chegar, e esse caminho envolve um processo de luta, de diálogo e de confrontação. Para Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 432), a solução para o embate é a superação da discussão acerca do universalismo e do relativismo, uma vez que somente dessa maneira é que a noção de direitos humanos será revista para uma perspectiva multicultural de modo a abarcar uma operação de baixo para cima ou contra hegemônica. Dessa maneira, depois de superado o embate entre os princípios em questão, a pesquisa realizada irá propor que para se alcançar um 'mínimo irredutível' - direitos sem os quais o ser humano estaria reduzido à “vida nua” (AGAMBEN, 2004, p.1216) - há que se garantir a emancipação das mais diversas 'gentes', para que a proteção de certos aspectos inerentes à qualidade do ser humano seja buscada por meio de um universalismo de confluência. Em outras palavras, os bons ventos da justiça só baterão às portas do Direito Internacional Penal a partir de um diálogo mobilizador que busque a conciliação entre as mais diversas gentes e as poderosas forças políticas, sociais e econômicas. Para alcançar isso, teoria e prática, ideias e políticas públicas, Themis e Hermes, justiça e conciliação, devem caminhar de mãos dadas. 2 PRESSUPOSTOS ESSENCIAIS PARA A CONSTRUÇÃO DA IDEIA CONTEMPORÂNEA DE DIREITOS HUMANOS De todos os ramos do direito, pode-se dizer que o âmbito dos direitos humanos foi um dos últimos a ganhar a devida importância e a despertar o interesse dos estudiosos. É bem verdade que a experiência humana em sociedade existiu desde sempre, porém, o desenvolvimento histórico dos direitos inerentes à pessoa humana sempre foi lento e gradual. 321 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Até meados dos anos 40 do século XX, eram os direitos fundamentais que faziam, ou pelo menos, tentavam fazer frente ao desrespeito em relação a certas questões próprias à natureza humana. Neste prisma, tem-se que o texto era positivado tão somente na esfera constitucional de um determinado estado (CANOTILHO, 2008, p.34). Segundo Flávia Piovesan (2008, p.118), certos acontecimentos do século XX revelaram que a proteção aos direitos humanos deve transcender o âmbito de um estado, pois a partir do momento em que vige a lógica da destruição, e as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteger os direitos humanos, emerge a necessidade de reconstruí-los como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral. No processo de internacionalização dos direitos humanos, o esforço conjunto era em busca da cidadania que representasse a máxima do ‘direito a ter direitos’ (LAFER, 1988, p.117). Hannah Arendt defende que a igualdade em dignidade e direitos, base dos direitos humanos, não é dada como pressuposto pelo direito natural ou pela crença no progresso histórico; para ela, “Nós não nascemos iguais. Nós nos tornamos iguais como o resultado da organização humana na medida em que é norteada pelo princípio da justiça” (ARENDT, 1990, p. 335). Contudo, para garantir a internacionalização de tais direitos, a civilização teve de enfrentar lutas sociais, políticas, religiosas e econômicas ao longo dos séculos. Diante disso, a história, mais do que qualquer outra ciência, traz o retrato dessa busca. Para Norberto Bobbio (1992, p.6), os direitos do homem são, antes de tudo, direitos históricos, porque nascem em circunstâncias definidas, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes. A historicidade dos direitos humanos é uma questão delicada na medida em que embora eles não tenham sido revelados em um momento de luz, a referência a um passado milenar parece ser equivocada por não levar em consideração construções e conceitos fundamentais para que tais conquistas se compreendam como direitos humanos na atualidade. Para Ricardo Marcelo Fonseca (2011, p.274), a fundamentação e a aplicação dos direitos humanos deve ser contextualizada no espaço e no tempo, pois pensar o passado do direito enquanto um objeto inserido e relacionado com todo o seu 322 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE entorno e também como um objeto com contornos próprios é crucial na compreensão do processo de lutas pela afirmação dos direitos. 2.1 A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO A modernidade jurídica tem raízes remotas, porém, o desejo de libertar os indivíduos de antigos condicionamentos e fazer dele o pilar da nova ordem se estendeu até o século XX. Ao invés de ser uma estratégia ingênua, Paolo Grossi (2008. p. 21) elucida que o plano era muito mais astuto, uma vez que buscava fundações sólidas e intocáveis que justificassem a tutela exercida por determinados interesses de grupo. Tal modelo pressupunha indivíduos sem história, como representantes de uma entidade abstrata que justificasse a busca por uma moral e leis universais. Na busca por essa abstração, é o jusnaturalismo - fundado a partir da existência de um direito natural e independente do positivismo - que oferecerá respostas aos anseios da sociedade (GROSSI, 2008, p. 21). A nova igualdade era, no entanto, meramente jurídica, já que a abstração favorecia certa parcela da população que já tinha condições outras que a colocava em uma situação de vantagem. Ao contrário, para a maioria da população, que desconhecia essa igualdade proveniente de um conjunto de valores e pretensões humanas legítimas que não decorreriam do direito positivo, continuava sendo uma realidade inatingível. Em outras palavras, a paisagem jurídica moderna era reducionista, pois tentava angariar em regras gerais uma complexidade de culturas, de pessoas e de costumes. Os fatos brutos de uma sociedade não têm força para se tornarem direitos sem que se leve em consideração o indivíduo em seu próprio âmbito social, econômico e de negócios (GROSSI, 2008, p. 21). Joaquín Herreira Flores (2009. p. 82) afirma que a maior falácia nos direitos humanos é a falácia do naturalismo, teoria em qual a parte se apresenta como todo, e o particularismo como um universalismo, ou seja, entende que a experiência de uns poucos deve ser entendida como “fatos” incontroversos e universalizáveis a todos. 323 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 2.1.2. A Delimitação dos Princípios do Universalismo e do Relativismo Cultural Com a adoção da Declaração Universal dos Direitos do Homem reconheceuse pela primeira vez o princípio de que cada um tem direito à dignidade e ao respeito, a ser reconhecido a qualquer pessoa, assim como ninguém pode ser excluído das vantagens do direito e da justiça. Tal reconhecimento, de acordo com os universalistas, representa uma ruptura fundamental com um passado no qual os Direitos Humanos só abrangiam os privilegiados e estavam conscritos ao âmbito dos estados. Segundo Antonio Enrique Pérez Luño (1998 p. 46-47), os direitos humanos universais nascem com a modernidade, correlacionados com o preceito jusnaturalista que defende que os direitos naturais, inerentes a todas as pessoas, devem ser reconhecidos pelo poder político, por meio do direito positivo. Assim, os direitos humanos só existem enquanto baseados em um ethos universal, pois sem essa conotação, tais direitos seriam direitos de grupos, entidades ou determinadas pessoas (PÉREZ-LUÑO, 1998, p. 46-47). Para Norberto Bobbio (1992, p. 50), o universalismo – que pressupõe que todos os indivíduos pertencem, igualmente, ao gênero humano – foi uma conquista lenta, e nasceu a partir de uma perspectiva filosófica de que ninguém pode subtrair do indivíduo a ideia de que o homem enquanto tal em direitos, por natureza, nasce livre e igual. A ideia universalista também está muito presente no pensamento kantiano, o qual busca bases a priori, universais, ou seja, comuns a todos. Segundo Ricardo Marcelo Fonseca (2011, p. 283), para Kant existem categorias do entendimento e dados da intuição sensível com mecanismos de funcionamento absolutamente idênticos em todas as pessoas à medida que todos recortam a realidade (o fenômeno) da mesma maneira no ato de conhecer. Para Ferrajoli (2003, p. 19), o universalismo dos direitos fundamentais e seu nexo com a igualdade se constituíram devido ao fato de que quase todos os direitos foram instituídos não já como direitos do cidadão, senão como direitos da pessoa; em outras palavras, tem-se que o direito à cidadania possui natureza supranacional, vez que é inato a todos os seres humanos. 324 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Com efeito depreende-se, então, que a busca pela institucionalização global dos direitos inerentes ao homem defende que qualquer escusa cultural para justificar o desrespeito em relação a esses direitos deva ser considerada ilegal e combatida por toda a comunidade internacional. A consideração da diversidade cultural, no entanto, não pode ser entendida como um obstáculo à universalidade; antes deve ser vista como uma contribuição, pois é a partir das particularidades ou da diversidade do gênero humano que se buscam os valores universais. Segundo Cançado Trindade, “a diversidade cultural há que ser vista, em perspectiva adequada, como um elemento constitutivo da própria universalidade dos direitos humanos, e não como um obstáculo a esta.’’ (TRINDADE, v. III, 2003, p. 336). Os relativistas acreditam que cada ser humano tem sua dinâmica própria construída historicamente dentro de seu contexto específico e único; sendo assim, não há como pressupor direitos universais que se baseiem apenas naquilo que é natural e compartilhado entre todos os indivíduos. Nesse sentido, Jack Donelly (2003, p. 15) adverte que a natureza humana é um projeto social mais do que uma concepção pré-social já dada. Flávia Piovesan (2011, p. 44) elucida que, para os relativistas, a noção de direito está intrinsecamente ligada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade; dessa maneira, cada cultura possui um discurso próprio em relação aos direitos fundamentais. A recusa a uma moral universal parte do pressuposto de que a história do mundo é plural, pois as culturas não são homogêneas e estáticas. Contra a visão hegemônica da cultura eurocêntrica ocidental, os relativistas responderão que as culturas são complexas, variáveis, múltiplas, fluidas, enfim, são criações humanas. Segundo Piovesan, “na análise dos relativistas, a pretensão de universalidade desses instrumentos simboliza a arrogância do imperialismo cultural do mundo ocidental, que tenta universalizar suas próprias crenças.” (PIOVESAN, 2008, p. 151). Segundo Ruth Benedict (2000, p. 48), cada cultura explora apenas algumas dentre as tantas alternativas possíveis pela qual a vida pode conduzir-se; assim, a generalização pura e simples não tem força ou interesse intelectual, não passa de uma grande banalidade à qual faltam minuciosidade ou surpresa, exatidão ou revelação. 325 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Clifford Geertz propõe (2001, p. 125) que “precisamos buscar relações sistemáticas entre fenômenos diversos, não identidades substantivas entre fenômenos similares”. Defende, então, que encontrar algo comum entre os seres humanos buscando em um grupo homogêneo é um instrumento empregado pelos defensores de um universalismo puro e simples. Ao tratar da definição de homem, Geertz (2008. p. 32) afirma que as relações devem ser buscadas em fenômenos diversos, ele imagina que deva existir algo de comum no tocante a esse aspecto; porém, a busca por um padrão cultural deve compreender as mais diversas culturas. Ao contrário do que se pensa, o objetivo não é se utilizar de elementos culturais para desrespeitar os cidadãos, a busca é pela democratização dos documentos internacionais que enumeram direitos como se universais fossem partindo do pressuposto de que são culturamente divididos por toda a humanidade. A inquietude causada pelo universalismo dos direitos humanos é bem representada por Costa Douzinas (2011, p. 2): Direitos humanos e cláusulas de boa governança são rotineiramente impostas pelo Ocidente sobre os países em desenvolvimento como condição para acordos comerciais e de ajuda. Os direitos humanos são a ideologia após o final muito alardeado de ideologias, a utopia “última” após o final da história. É por isso que precisamos pensar de forma crítica os direitos humanos. Seu triunfo é cheio de paradoxos e contradições. Se já não bastasse isso, ainda há que se lembrar de que são justamente os países que mais fizeram uso do mecanismo do estado de exceção, no qual segundo Giorgio Agambem (2004, p.12-16) o ser humano estaria reduzido à “vida nua", os que buscam a custos altos impor padrões universais. Assim, as declarações universais não devem ser vistas como proclamações gratuitas de valores eternos metajurídicos, mas sim como uma figura original da inscrição da vida natural na ordem jurídico-política do estado-nação. A razão e os princípios estabelecidos pelas declarações universais sofreram um grande golpe quando, especialmente no século XX, ficou demonstrado que a razão não somente liberta e emancipa como também pode eventualmente aprisionar, destruir, matar e cometer genocídios (FONSECA, 2011, p. 279). Com o intuito de resolver esse impasse, Cançado Trindade (2003, v. III, p. 301) expõe que o respeito ao próximo constitui um princípio básico comum a todas 326 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE as culturas, crenças e religiões, porém, não há como negar que certos padrões sociais e culturais de conduta se mostram discriminatórios. A liberdade cultural que representa padrões culturais de uma coletividade, ou seja, a sincera auto identidade do indivíduo com a cultura não só pode, como deve, figurar nos direitos humanos. Já em relação à liberdade invocada a partir de um passado cultural como meio de manipulação política, essa deve, definitivamente, ser devidamente monitorada e punida. Para Joaquín Herrera Flores (2009, p. 39), o que deve ser rechaçado são as pretensões intelectuais que se apresentam como neutras, e os seres humanos como ideias abstratas, isso porque “nem todos temos por igual os direitos, ou seja, os instrumentos e meios para levar adiante nossas lutas pelo acesso aos bens necessários para afirmar nossa própria dignidade” (FLORES, 2009, p. 47). Somente poderemos enfrentar as novas realidades que se apresentam a partir de um saber crítico que entenda os conflitos de interesse que se encontram por trás de todo debate cheio de ideologias. Apenas uma visão crítica é capaz de conceber os direitos humanos por uma nova ótica que entenda que a dignidade da pessoa humana não é um preceito universal porque cada cultura lista um rol de premissas garantidoras de dignidade. Segundo Herrera Flores, somente a luta por uma vida mais digna de ser vivida pode ser universal (2009, p. 68). 2.2 A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS INTRÍNSECOS AO HOMEM Embora a história desempenhe papel fundamental, não se pode perder de vista que a internacionalização dos direitos humanos se deu em um momento muito específico que, sem dúvida, favoreceu o florescimento de tais ideias. Diante da situação em que se encontrava a humanidade pós-guerra o objetivo era, antes de mais nada, buscar, sob uma perspectiva jusnaturalista do direito, aquilo de comum que havia entre os seres humanos (BOBBIO, 1992, p.66). Para Celso Lafer (1994, pg. XXVI), o processo de internacionalização dos direitos humanos foi a primeira resposta jurídica da comunidade internacional ao fato de que o direito de todo ser humano só começaria a partir do momento que o ‘direito a ter direitos’ tivesse uma tutela internacional. A razão do estado e a soberania dos governantes passou a ser delimitada e analisada de forma vinculada com a 327 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE democracia e com a paz. Sendo assim, a base das relações entre estado e seres humanos não é a soberania estatal, mas a solidariedade humana (TRINDADE, v. I, 2003, p. 107). Assim, de uma vez por todas é mister demarcar a importância histórica das lutas e dos reconhecimentos dos direitos nas lutas; porém, o que não pode ser afastado de maneira alguma é o contexto social em que ocorreram. Herrera Flores (2009, p. 49) afirma que toda interpretação implica fixar a relação de um objeto com a estrutura social em que – e para que – surge. Contra as barbáries cometidas durante a segunda guerra mundial, o movimento que se presencia é o constitucionalismo global (CANOTILHO, 2008, p. 134), que além de proteger os direitos fundamentais, limita o poder do estado, mediante a criação de um aparato internacional de proteção de direitos. Noutras palavras, os estados não têm mais liberdade suficiente para dispor dos direitos fundamentais de seus cidadãos do modo que melhor lhes aprouver. Para Pietro Costa (2010, p. 70), é razoável que após terem surgido sobre cinzas, os novos sistemas europeus queiram se consolidar sobre o valor absoluto da pessoa e sobre direitos que a ela devam ser assegurados. Em direção à limitação do caráter absoluto da soberania, “a pessoa e os direitos aparecem como o centro de uma ordem que encontra no estado não o fim, mas um instrumento” (COSTA, 2010, p.96). Nesse jaez, promulga-se a Declaração Universal, a qual defende que os direitos são o parâmetro a partir do qual se avalia a legitimidade do estado, cuja tarefa coincide com a tutela e a realização dos próprios direitos (COSTA, 2008, p.71). A Declaração caracteriza-se não só pela amplitude dos direitos nela proclamados, mas também pela universalidade do alcance desses direitos. Ao consagrar valores básicos universais, o escopo basilar de tal documento é delinear uma nova ordem pública mundial fundamentada no respeito à dignidade humana e na universalidade dos direitos do homem, que não se entendem mais como derivados das peculiaridades sociais e culturais de determinada sociedade. Segundo Flávia Piovesan (2008, p. 137), a universalidade dos direitos humanos traduz a absoluta ruptura com o legado nazista que condicionava a titularidade de direitos à pertinência à determinada raça. Segundo o que preleciona o próprio preâmbulo da 328 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Declaração, agora a condição de pessoa é requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos. É inegável a contribuição da Declaração Universal dos Direitos Humanos e de todos os documentos com tal caráter que a seguiram; parece até que, para aquele momento de perigo da história (FONSECA, 2009, p. 162), o esforço da reflexão não tinha outra opção a não ser buscar uma explicação histórica para a solução de seus impasses. No entanto, a falta de eficácia real dos pressupostos previstos em tal documento também vem trazendo enorme ônus à sociedade, vez que o alcance da famosa dignidade da pessoa humana depende necessariamente de uma série de outros direitos que, ou não são nem previstos em certos ordenamentos jurídicos ou, quando são, não alcançam o resultado esperado. Nesse prisma, não há como negar que o documento em questão levou em consideração sociedades desenvolvidas, ou seja, toda e qualquer abstração foi feita a partir da análise de um determinado grupo de pessoas, que certamente não possui tudo de cultura, de economia e de sociedade que a diversidade dos indivíduos guarda consigo. Bem por isso o universalismo eurocêntrico previsto especialmente na Declaração de 1948 deslegitima qualquer intervenção humanitária por melhor que seja sua intenção, isso porque parte do pressuposto de que certos direitos estão sendo violados por desrespeito, por descaso, por falta de educação formal, e não leva em consideração a forma de pensar dos diferentes grupos e a situação de miséria em que se encontram. A dignidade da pessoa humana, só é possível para uma parcela da população que já tem assegurados outros direitos básicos (FLORES, 2009, p.101). Assim, os documentos que buscam traçar diretrizes básicas são guias; todavia, não são capazes por si só de estabelecer a justiça no mundo. 3 A CONCEPÇÃO DE UM DIREITO INTERNACIONAL PENAL O julgamento de Nuremberg ensejou parte do pressuposto de que existem certas exigências fundamentais de vida na sociedade internacional. Segundo Celso Lafer (1988, p.169), essas exigências de ordem pública internacional precisavam ser 329 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE tipificadas em norma internacional geral como ilícito penal, na medida em que comportamentos considerados como atentados contra os próprios fundamentos da sociedade deveriam acarretar não só a reparação civil, mas também a responsabilidade penal individual dos responsáveis. Finalmente, no ano de 1998, o Comitê Preparatório para a Criação de um Tribunal Penal Internacional criado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, finalmente encaminhou para a Conferência Diplomática em Roma, um Projeto de Estatuto e um Projeto de Lei Final (JANCOV, 2009, p. 30) que foram aprovados juntamente com um Ato Final em 17 de julho de 1998. Cerca de quatro anos após essa data, o Estatuto do Tribunal Internacional entrou em vigor. Assim, nasce de fato uma antiga e renovada aspiração, a justiça penal internacional, necessária devido a evolução do direito penal interno para além das fronteiras territoriais do estado como resultado do interesse estatal de proteção da ordem pública. A ideia basilar desse ramo do direito é a de que os indivíduos têm deveres internacionais que transcendem as obrigações nacionais de obediência impostas pelos estados de maneira individual. Nas palavras de Antonio Cassese (2003, p. 15), O Direito Internacional Penal é um corpo de regras internacionais destinadas tanto a proibir os crimes internacionais quanto a impor aos estados a obrigação de processar e punir ao menos alguns desses crimes. Ele também regula os procedimentos internacionais para processar e julgar pessoas acusadas desses crimes (grifo nosso). Assim como todos os documentos assinados em prol da humanidade no século XX, o objetivo do Direito Internacional Penal não podia ser outro além da imposição de certos valores que se creem universais. A limitação desse pensamento não se encontra, necessariamente, na busca da universalização de certos direitos; muito pelo contrário: não se defende, neste trabalho, que não há nada que não deva ser protegido universalmente. A vulgaridade dessa ideia está no fato de que o universal buscado pela Declaração Universal de 1948 - e que serviu de modelo para todos os outros processos de internacionalização que se seguiram - foi baseado em um modelo ocidental-liberal de pensamento, que abstrai as distintas circunstâncias em que se desenvolvem a vidas das pessoas. 330 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Embora a universalização dos Direitos Humanos seja necessária para que se obtenha uma base ética entre os povos, o que tem havido é uma imposição jurídica a certas sociedades que muitas vezes sequer têm qualquer noção de direito4, ou seja, em um contexto como esse, qualquer imposição já vem inundada de uma concepção colonialista. Disto se depreende a dificuldade na elaboração de uma norma internacional (especialmente penal) que se pretenda de fato legítima, isso porque não há como se conceber uma norma penal de tal natureza que seja considerada imparcial. 3.1 O ESTATUTO DE ROMA E ALGUMAS QUESTÕES QUE ENSEJAM REFLEXÃO Segundo Fernanda Jancov (2009, XXI), o Estatuto de Roma possui como objetivo primordial equacionar a garantia do direito à justiça, o fim da impunidade e a soberania do estado à luz do princípio da subsidiariedade 5 entre sua jurisdição e a jurisdição dos estados-parte. Aqui reside uma das grandes questões do direito internacional penal, que é a análise discricionária feita pelo tribunal para determinar se um estado tem vontade (willingness) de levar a cabo o inquérito ou o procedimento; ou se tem capacidade (ability) para fazê-lo. Considerando que todos os casos que se encontram no TPI dizem respeito a conflitos africanos, pode-se concluir que o tribunal faz uso de parâmetros específicos traçados vis-à-vis com questões políticas, sociais e econômicas. Dessa forma, o princípio da subsidiariedade pode ser facilmente controlado pela corte, considerando que tanto a questão de falta de vontade como o quesito de falta de capacidade são muito relativos, e justificá-los torna-se fácil em um contexto como o africano. 4Essa questão pode se estender também para a linguística, visto que certas sociedades se quer tem palavras para descrever certos conceitos ocidentais, um exemplo disso, é o caso da China. Segundo o jurista Chung-Sho, a China não possuía uma expressão correspondente à noção ocidental de ‘’direito subjetivo’’. Os primeiros tradutores chineses de obras políticas e jurídicas ocidentais tiveram que inventar um novo vocábulo, chuan-li (poder-interés), para tentar uma tradução conceitual de alguma maneira sensata (CHUNG-SHO, 1949). 5Em consonância com esse princípio, o Tribunal Internacional Penal somente poderá exercer sua jurisdição se o Estado competente para conhecer o fato não o fizer ou não tiver a possibilidade de fazê-lo. 331 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Outra questão a se debater diz respeito à jurisdição da corte. De acordo com o art. 13 do Estatuto de Roma, a provocação para que a jurisdição do TPI seja exercida pode ocorrer de três formas distintas: por parte do Estado-Parte (self referral), pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS), ou ainda pelo promotor do tribunal (SCHABAS, 2011, p. 158). Embora os casos descritos no art. 13(a) e (c) devam respeitar o fato de um estado ser membro signatário do TPI, a terceira forma de provocar a jurisdição do tribunal (art. 13(b)) não necessariamente precisa considerar esse requisito. Sendo assim, aqui reside mais um ponto controverso, afinal, nesse caso específico, a jurisdição da corte é praticamente universal não fosse o fato de o TPI poder aceitar ou não a denúncia feita pelo CS. Conforme afirma Flávia Piovesan e Daniela Ribeiro Ikawa (2002, p. 212-213), A relação entre o Tribunal Penal Internacional e o Conselho de Segurança tem implicações diretas sobre os Estados-Partes no estatuto, pois altera, num primeiro momento, o grau de igualdade entre esses Estados e, num segundo momento, o grau de imparcialidade da justiça no âmbito internacional. Não fosse o poder concedido ao CS pelo art. 13(b) do estatuto, o artigo 16 do mesmo documento também concede prerrogativas sem precedentes a essa instituição. Segundo esse artigo, o CS pode interromper inquéritos ou procedimentos criminais no TPI, ou impedir que prossigam, mediante Resolução aprovada nos termos do disposto no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas. O preâmbulo do Estatuto de Roma, também deve ser analisado com cautela à medida que trata os seres humanos como se todos partissem de pressupostos econômicos e sociais similares e pudessem efetivar imediatamente o que foi previsto em um documento internacional. Segundo o estatuto, o entendimento dos estados-parte é o de que todos os povos estão unidos por laços comuns e suas culturas foram construídas sobre uma herança que partilham. O preâmbulo ainda faz uso de ideias, tais como ‘comunidade internacional no seu conjunto’ e ‘crimes de maior gravidade que afetem a comunidade internacional no seu conjunto’. 332 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Segundo Danilo Zolo (2007, p. 88), atualmente, a universalidade dos direitos humanos não corresponde à universalidade de sua proteção internacional, uma vez que os particularismos dos estados nacionais se opõem a essa ideia. Ainda, afirma que do ponto de vista de culturas não ocidentais, os direitos humanos estão estritamente vinculados a standards racionais de cultura ocidental, tais como o formalismo jurídico, o individualismo e o liberalismo ocidental. A ideia de que os direitos podem funcionar como trunfos, como ‘ases na manga’, para resolver conflitos políticos é ingênua e falsa, porque a referência aos direitos muitas vezes acentua e torna os contrastes mais rígidos em vez de resolvêlos, principalmente quando os próprios direitos se encontram em uma relação de antinomia recíproca (ZOLO, 2007, p. 89). Destarte, o que se busca mostrar por meio da análise do preâmbulo do estatuto e das reflexões apresentadas é que esses documentos que se propõem universais, mostram uma visão unilateral do mundo. Há diversas outras necessidades que devem ser garantidas antes que certas culturas estejam aptas a discutir suas limitações. Na tentantiva de propor uma solução a esse impasse, Will Kymlicka (1998, p. 122) propõe que o indivíduo seja protegido não como algo abstrato, mas como membro de uma comunidade cultural na qual sua identidade se constitui e sua capacidade de auto-proteção aumenta. Mantendo em mente o caráter indissociável entre direito e política, conclui-se que o preâmbulo do Estatuto de Roma, nos mesmos moldes de documentos tais como a Declaração de 1948, busca impor o ritmo da música a ser dançada, a partir de objetivos a-históricos, abstratos e universais. A busca por novas ideias que tentem unir as idiossincrasias, incitar a discussão e buscar a proteção da vida humana não é a solução, mas pode ser o começo de uma de mudança de pensamento. 4 UMA PRETENSA SOLUÇÃO BUSCADA PARA SE ALCANÇAR UNIVERSALISMO POR MEIO DO DIÁLOGO ENTRE AS CULTURAS O O termo from below expressa o caráter resistente ou mobilizador das ações comunitárias, da sociedade civil e de outros atores não estatais, na sua oposição às 333 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE poderosas forças políticas, sociais, e econômicas hegemônicas (MCEVOY; MCGREGOR, 2008, p. 5). Assim, qualquer visão que tenha como ponto de partida um contexto particular e seja difundida como se fosse universal não passa de um exemplo do que é conhecido como universalismo tradicional. Não se pode negar o fato de que os direitos humanos que temos hoje não foram uma construção de “baixo para cima’’, e sim um conceito que surgiu em um contexto particular (Ocidente) e difundiu-se por todo o globo como se fosse o mínimo ético necessário para se lutar pela dignidade (FLORES, 2009, p. 43). Para discutir a justiça internacional penal à parte de normas pré-concebidas unilateralmente, deve-se passar, necessariamente, pelo fundo comum de valores que chamamos de Humanidade. Segundo Delmas Marty (2004, p. 71), o que emana assim de modo implícito da noção penal de crime contra a humanidade é a consagração penal de uma humanidade plural, envolvendo ao mesmo tempo a singularidade de cada ser e sua igual vinculação com a comunidade humana. 4.1 JOAQUÍN HERRERA FLORES E O UNIVERSALISMO DE CHEGADA Na obra “A (re)invenção dos Direitos Humanos”, Herrera Flores buscará responder ao seguinte questionamento: como pressupor a existência de direitos humanos se as comunidades são desiguais no desenvolvimento de suas condições básicas? Com isso não se busca destruir qualquer bem comum que possa unir a humanidade; muito pelo contrário, o intuito é propor a construção de uma nova racionalidade libertada da jaula de ferro na qual os direitos humanos foram encerrados pela ideologia de mercado e por sua legitimação formalista e abstrata (FLORES, 2009, p. 92). Assim, a sistematização dos direitos humanos não pode se dar à parte das nossas lutas e compromissos; falar desses direitos indubitavelmente requer falar em primeiro plano da luta pela dignidade humana. A construção dos direitos humanos deve ser baseada em intervenções sociais públicas, diálogo, participação, ou seja, deve partir do pressuposto do “devemos ter” e não do que “temos”, do “devemos ser” e não do “somos”. Os direitos se apresentam como fatos que já existem; no entanto, qualquer norma deve partir do 334 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE conjunto de valores que impera nas mais diferentes sociedades concretamente consideradas, e não de um particularismo especial que se pretende universal. Diante disso, para assegurar uma teoria realista e crítica dos direitos humanos, alguns deveres básicos devem ser respeitados, tais como: o estabelecimento de uma visão realista do mundo, pois ser realista é saber exatamente onde estamos e aonde queremos ir; a conscientização e mobilização dos indivíduos, por meio do ‘empoderamento’ do cidadão; e o contato com os contextos jurídicos nos quais vivemos (FLORES, 2009, p. 61-66). Assim, os mais diversos indivíduos devem ser chamados a compartilhar seus problemas na medida em que nossa visão ocidental é poluída, incapaz de enxergar as necessidades dos outros – dos não ocidentais ou até mesmo de grupos díspares dentro da nossa própria sociedade. Segundo Herrera Flores (2009, p. 107), “trabalhar com e para os direitos humanos pressupõe, pois, ir contra a banalização das desigualdades e injustiças globais”. Não é outro o entendimento de Jean Paul Sartre (2004, p. 89), Se me dão este mundo com suas injustiças, não é para que eu as contemple com frieza, mas para que eu as anime com a minha indignação e para que as revele e crie sobre a natureza delas, quer dizer, sobre os abusos que devem ser suprimidos. É importante ressaltar que nem sequer a dignidade humana dos direitos humanos, como a concebemos, é universal, isso porque cada cultura lista um rol de premissas garantidoras de dignidade. O universal é, tão somente, a luta por uma vida melhor (FLORES, 2009, p. 82). A proposta não é afastar qualquer conceito universal, e sim afirmar que a participação das mais diversas sociedades é pressuposto básico para a universalização de certos valores. Portanto, contra as abstrações que não deixam de ser a justificação da ordem dominante existente, procura-se construir uma teoria que abandona as idealizações de um único sistema e aposta em uma visão materialista da realidade. Uma teoria crítica dos direitos humanos analisará o mundo real, repleto de situações de desigualdade, diferenças e disparidades, de impurezas e mestiçagens, afinal somente o impuro pode ser objeto dos nossos conhecimentos (FLORES, 2009, p. 86). 335 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE O objetivo da visão complexa é incorporar os mais diferentes contextos físicos e simbólicos na experiência do mundo. Assim, essa visão assume a realidade e a presença de múltiplas vozes, todas com o mesmo direito a se expressar, a denunciar, a exigir e a lutar (FLORES, 2009, p. 158). Na tentativa de se desvencilhar dessas limitações, superando o universal e o multicultural, Herrera Flores propõe um modelo intercultural que cria condições para o desenvolvimento das potencialidades humanas, de um poder constituinte difuso que se componha de generalidades compartilhadas à qual chegamos, não das quais partimos (FLORES, 2009, p. 164). Isso é senão dar poder as mais diversas lutas por dignidade. Assim, O que não aceitamos é considerar o universal como um ponto de partida ou um campo de desencontros. Ao universal, há de se chegar – universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes) de um processo de luta discursivo, de diálogo ou de confrontação em que se rompam os pressupostos e as linhas paralelas. (grifo nosso). (FLORES, 2009, p. 163). Pensar os direitos unilateralmente é deixá-los sob controle do mais forte. Para que a outra face do direito seja iluminada, deve-se dar voz aos excluídos, aos oprimidos, aos dominados. O ideal de que todas as culturas ofereçam suas opções de uma posição mínima de simetria – senão de igualdade – só poderá ser alcançado quando a busca por direitos for posterior à construção de condições sociais, econômicas, políticas e culturais que propiciem o desenvolvimento das capacidades humanas nos contextos em que se situam. E como a utopia não é mais do que a abertura do possível, Herrera Flores morreu acreditando que “apesar de tudo, apesar de todos os desatinos e crueldades que se comentem, continuamos desejando rosas, as rosas que nos fazem acreditar que existe a possibilidade do milagre” (FLORES, 2009, p. 187). 4.2 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS E UMA CONCEPÇÃO MULTICULTURAL DOS DIREITOS HUMANOS No texto “Por uma concepção multicultural de direitos humanos”, Boaventura de Sousa Santos, buscando responder preocupações também expressadas por 336 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Joaquín Herrera Flores, partirá do seguinte questionamento: Como poderão os direitos humanos ser uma política simultaneamente cultural e global? Assim, o objetivo de Boaventura é desenvolver um quadro analítico capaz de reforçar o potencial emancipatório da política dos direitos humanos no duplo contexto da globalização. Busca-se, então, apontar as condições que permitem conferir aos direitos humanos tanto o caráter global quanto a legitimidade local (SANTOS, 2010, p. 432). Boaventura (2010, p. 432) defende o cosmopolitismo6 do subalterno em luta contra a sua subalternização. Assim, para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização contra-hegemônica, os direitos humanos têm de ser reconceitualizados como multiculturais. Concebidos como direitos universais, como tem acontecido, os direitos humanos tenderão sempre a ser um instrumento de choque de civilizações, ou seja, uma arma do Ocidente contra o resto do mundo (SANTOS, 2010, p. 438). Assim, a proposta estabelecida consiste em transformar a conceitualização e a prática dos direitos humanos de um localismo globalizado para um projeto cosmopolita. Apenas a relação equilibrada e mutuamente fortalecedora entre a competência global e a legitimidade local permitirá a abrangência global dos direitos humanos. Essa transformação somente será possível a partir de um multiculturalismo emancipatório (SANTOS, 2010, p. 438). As premissas dessa transformação cosmopolita dos direitos humanos seriam, primeiramente, a superação do debate entre universalismo e relativismo cultural, que segundo Boaventura, trata-se de um debate cujos conceitos opostos são igualmente prejudiciais para uma concepção emancipatória de direitos humanos (SANTOS, 2010, p. 441). A segunda premissa dessa transformação cosmopolita dos direitos humanos é identificar preocupações isomórficas em diferentes culturas. Em terceiro lugar, aumentar a consciência de incompletude cultural como tarefa prévia para a concepção multicultural de direitos humanos. Depois, há que se definir qual versão de dignidade humana propõe um círculo de reciprocidade mais amplo do que as 6 Conjunto muito vasto e heterogêneo de iniciativas, movimentos e organizações que partilham a luta contra a exclusão e a discriminação sociais e a destruição ambiental produzidas pelos localismos globalizados e pelos globalismos localizados, recorrendo a articulações transnacionais tornadas possíveis pela revolução das tecnologias de informação e de comunicação. 337 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE outras. E por fim, uma política emancipatória de direitos humanos deve saber distinguir entre a luta pela igualdade e a luta pelo reconhecimento igualitário das diferenças a fim de poder travar ambas as lutas eficazmente. A luta pelos direitos humanos necessita de um diálogo intercultural e de uma hermenêutica diatópica. A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os topoi7 de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem e exige produção de conhecimento coletiva, participativa, interativa, intersubjetiva e reticular, uma produção baseada em trocas cognitivas e afetivas que avancem por intermédio do aprofundamento da reciprocidade entre elas (SANTOS, 2010, p. 452). A hermenêutica diatópica deve ser fruto de acordos mútuos e centrar-se em perplexidades e desconfortos que apontem na mesma direção, apesar de formulados em linguagens distintas e quadros conceituais virtualmente incomensuráveis. Assim, pressupõe a aceitação do seguinte imperativo transcultural: Temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza (SANTOS, 2010, p. 452). Na forma como têm sido concebidos, os direitos humanos são um localismo globalizado, uma espécie de esperanto que dificilmente poderá se tornar a linguagem quotidiana da dignidade humana nas diferentes regiões culturais do globo. Compete à hermenêutica diatópica, proposta por Boaventura, transformá-los em uma política cosmopolita que ligue em rede línguas diferentes de emancipação pessoal e social e as torne mutuamente inteligíveis e traduzíveis. Assim, o projeto de uma concepção multicultural dos direitos humanos pode parecer tão utópico quando o universalismo de chegada ou de confluência, para Herrera Flores. No entanto, como bem observado por Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 458), não é tão utópico quanto o respeito universal pela dignidade humana, e nem por isso este último deixa de ser uma exigência ética séria. 7Os topoi são determinados por Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 443) como os lugares comuns retóricos mais abrangentes de uma determinada cultura. 338 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 5 A CAMINHADA DO DIREITO INTERNACIONAL PENAL VIS-À-VIS AS NOVAS LENTES DOS DIREITOS HUMANOS Foi demonstrado até aqui que à universalidade dos Direitos Humanos deve ser incluída a diversidade. O indivíduo não pode mais ser tratado de forma genérica e abstrata, e sim inserido em um contexto peculiar e particular. Assim, segundo Flávia Piovesan (2006, p. 29), determinados sujeitos de direitos e determinadas violações de direitos exigem uma resposta específica e diferenciada. Ao lado do direito à igualdade, surge também o direito à diferença. A igualdade só pode ser alcançada mediante a redistribuição somada ao reconhecimento; isso também pode ser expresso pela necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as igualdades (SANTOS, 2010 p. 32). As cortes internacionais efetivam os direitos humanos, pois constituem um dos instrumentos mais poderosos no sentido de persuadir os Estados a cumprir obrigações concernentes a tais direitos. E, ao mesmo tempo, essas cortes só existem pela força ‘empoderante’ dada a elas pelos próprios direitos humanos. Sendo assim, direitos humanos e cortes internacionais estão amarrados um ao outro, por meio em uma relação indissociável. A proposta deste trabalho é, então, questionar um dos ramos mais conservadores do direito: o direito penal e sua extensão internacional. Buscar gerir problemas em “escala mundial” a partir de ferramentas jurídicas unificadas sob o pretexto de existência de um “núcleo axiológico rígido”, universal, parece ser impraticável sem que se esteja de fato a colocar em prática outros objetivos que não a proteção de bens jurídicos amplamente valorados. Além disso, é digno de ironia afirmar que finalmente há um sistema de justiça penal internacional e observar que, passados dez anos da ratificação de seu estatuto, somente ditadores periféricos foram réus no TPI. Contra uma justiça internacional estagnada e conservadora reside a proposta de Joaquín Herrera Flores e Boaventura de Sousa Santos, os quais buscam propor a reconstrução de valores por meio de uma abordagem mais justa dos direitos humanos. 339 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE No processo de construção normativa democrática, a aceitação do outro não é suficiente para garantir um diálogo frutífero, é necessário, ainda, o reconhecimento genuíno do diferente. Segundo Costas Douzinas (2009, p. 375), “os direitos humanos constroem seres humanos. Sou humano porque o outro me reconhece como tal, o que, em termos institucionais, significa que sou reconhecido como detentor de direitos humanos”. O TPI pode estabelecer-se como inestimável canal democrático desde que mantenha seu debate vis-à-vis com as novas tendências dos direitos humanos. Esse mecanismo superaria o conceito do ‘outro’, tão importante às teorias repressivas e aos mecanismos geradores de preconceitos, e levaria à lógica constatação de que o outro não é ninguém mais que a continuidade de nós mesmos. Para tanto, a aproximação do TPI com a comunidade que está sendo investigada ou julgada pela corte é essencial. No entanto, essa relação encontra uma série de obstáculos, tais como o fato da corte estarem um país diferente (Holanda), o orçamento limitado do TPI, e o mero fato de que, muitas vezes, a corte tem que fechar a porta às vítimas de um conflito internacional pois, apesar de ter alguns mecanismos de reparação, o TPI, ao fim e ao cabo, visa à retribuição. Nas palavras de Bassiouni (2004, p. 86), o principal objetivo do sistema jurídico internacional de punição é a preservação da ordem mundial e a manutenção da paz e da segurança. No entanto, essa busca deve, necessariamente, olhar na mesma direção dos imediatamente afetados pelo conflito analisado. De pouco adianta que a busca por justiça seja idealizada e levada a cabo por pessoas alheias à comunidade em questão, e que as decisões tomadas não correspondam com a vontade dos que sofreram dano diretamente. Os fundamentos de um sistema de justiça criminal devem ser a prevenção, a punição e a reabilitação (SCHARF, 1999, p. 507). No entanto, cada sociedade entende de forma muito particular esses conceitos. O continente africano, historicamente, abordou o tema da justiça dando maior valor à justiça restaurativa, e concedendo amplo espaço ao perdão público. Nem por isso as sociedades africanas deixam de respeitar inúmeros valores básicos que fundamentam os direitos humanos. A diferença reside tão somente na maneira pela qual esses direitos são avaliados, e a forma com que são implementados (DONELLY, 2003, p. 78). 340 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Existem dois conceitos da cultura religiosa africana que sustentam a ênfase dada à reconciliação: a teologia cristã e o conceito tradicional de ubantu, que enfatiza a comunidade sobre o indivíduo (GRAYBILL; LANEGRAN, Fall 2004). Modelos criminais ocidentais se concentram nos elementos mais restaurativos de justiça, ao passo que muitas sociedades na África e em outros lugares preferem confiar em métodos mais restauradores. Enquanto sistemas retributivos dão maior ênfase ao crime e à punição, os sistemas restauradores enfatizam o dano e a necessidade de reparar a injustiça (EYBER; AGER, 2002, p. 871). A distância física entre a corte e os países julgados, de fato, é um fator relevante e que indubitavelmente não colabora no tocante ao diálogo entre o TPI e as comunidades afetadas. Esse distanciamento, além de físico, é também ético, no que diz respeito à escolha das situações e dos juízes da corte. Atualmente, o TPI está julgando 8 situações: Uganda, República Democrática do Congo, Sudão, República Centro-Africana, Quênia, Líbia, Costa do Marfim e Mali. Não é preciso um esforço intelectual-geográfico grande para compreender que todos, sem exceção, estão em continente africano. Os que ontem foram colonizados, hoje estão sendo julgados, ou seja, duplamente penalizados pelos mesmas forças políticas. Segundo informações do próprio site do TPI, atualmente a divisão judicial da corte conta com 18 juízes, além dos 6 que continuam seu mandato até que seus casos se finalizem de acordo com o Art. 36(10) do Estatuto de Roma. Do levantamento desses dados, conclui-se que dos 24 juízes, apenas 5 são do continente africano, ou seja, enquanto 100% dos casos são de países africanos, apenas cerca de 21% dos juízes são nacionais de países da África. Segundo Delmas-Marty (2004, p.67), embora os juízes dos tribunais penais internacionais venham de vários continentes e pertençam a diferentes culturas, muitas vezes eles se formaram pelas mesmas universidades, são recrutados na maioria das vezes entre juízes ocidentais e trabalham em língua inglesa ou francesa. E essa condição, claramente presente no TPI, limita sim o alcance da corte em termos de ética. O maior envolvimento de representantes das comunidades em todo o processo no TPI seria significativo, permitindo assim a participação de vítimas e agressores, particularmente em sociedades que valoram mais processos de justiça restaurativa, 341 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE os quais reconhecem que o crime não se limita a afetar os indivíduos, mas a sociedade como um todo. Sendo assim, pode-se cogitar o fato de até mesmo a corte passar a ser itinerante, ou, pelo menos, manter parte significativa dos procedimentos nos países os quais julga. Isso, a priori, pode parecer utopia; no entanto, há cerca de 20 anos, a criação de um tribunal penal internacional também o era, e nem por isso esse projeto não se realizou. Outrossim, poderia haver um juiz - nacional do país que está sendo julgado com função consultiva na corte. Ou seja, qualquer uma das câmaras (primeira instância, julgamento e apelação) poderia pedir que esse juiz elaborasse pareceres em relação a méritos específicos. Sendo assim, ao indiciar um país, o TPI poderia indicar um nacional, com experiência em direito, para ocupar essa função. Apenas dessa forma é possível vislumbrar uma corte aberta ao diálogo e mais engajada com os cidadãos do estado que está sendo julgado. Idealmente, a participação teria que se dar da forma mais ampla e participativa possível; no entanto, diante das realidades fáticas, o TPI deve, no mínimo, fazer com que as pessoas se identifiquem com a justiça que está sendo perseguida. Diminuir a distância física e nomear um nacional para acompanhar o caso pode ser um começo à abertura do diálogo, que é necessária e deve se consolidar o mais brevemente possível. Assim, se o desenvolvimento de uma sociedade mais justa tem em seu cerne a deliberação, o TPI tem que se abrir o mais brevemente possível às discussões críticas propostas acerca dos direitos humanos. Quando a justiça é buscada e efetivada por pessoas em concreto, a consciência do papel social que ocupam facilita o entendimento da justiça e a aceitação da verdade em nível comunitário. De tal forma, é apenas por meio do empoderamento das pessoas envolvidas nos crimes julgados pelo TPI, com o intuito de escutar o que as mais diversas vozes entendem por dignidade humana, que a corte poderá se desvincular da ideia de que é um mero instrumento nas mãos do Ocidente para punir os inimigos. 342 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 5 CONCLUSÃO Este trabalho procurou demonstrar que pensar os direitos humanos a partir de uma perspectiva jusnaturalista, que pressupõe indivíduos a-históricos, representantes de uma entidade abstrata que justifica a busca por uma moral e leis universais (GROSSI, 2008, p. 21), é algo que não pode mais prosperar. Pelo contrário, os direitos humanos devem sempre ser pensados e aplicados de forma contextualizada no espaço e no tempo (FONSECA, 2011, p. 274). A paisagem jurídica moderna é reducionista, pois tenta angariar em regras gerais uma complexidade de culturas, de pessoas e de costumes (PÉREZ-LUÑO, 1998, p. 46-47). É nesse contexto que surgiram os direitos humanos universais que defendem que os direitos naturais, inerentes a todas as pessoas, devem ser reconhecidos pelo poder político, por meio do direito positivo. A ideia da universalidade dos direitos humanos teve seu auge em 1948 com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que selecionou certas culturas para serem detentoras da verdade universal. Contra esse pensamento levantam-se os relativistas, que consideram que a noção de direito está intrinsecamente ligada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade (PIOVESAN, 2011, p. 44); sendo assim, cada cultura possui um discurso próprio em relação aos direitos que entende serem fundamentais. Dessarte, ambos os princípios considerados por si só apresentam limitações; diante disso, busca-se agora novas saídas para incluir as diversidades e ao mesmo tempo buscar algo em comum que una os seres humanos. O desenrolar do direito internacional e dos direitos humanos após 1948 demonstrou que aquilo que se acreditava ser intrínseco ao humano abstratamente considerado não passava da universalização de uma perspectiva particular (FLORES, 2009, p. 82 e ss). Não podia ser diferente a abordagem do Direito Internacional Penal, que amparado pela tradicional teoria dos direitos humanos, tenta criminalizar apenas certas condutas e não outras, nos levando a crer que as decisões do TPI não tem outro cunho senão o político. Embora o Estatuto de Roma seja mais comedido do que a Declaração de 1948 em relação aos termos utilizados para expressar o universalismo de tal 343 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE documento, algumas situações previstas no texto do estatuto que criou o TPI demonstram que muitas das decisões são excessivamente discricionárias – vide o fato de 100% das situações do TPI serem de países africanos e o Conselho de Segurança deter o poder de, ao final, se sobressair ao princípio da complementariedade. Assim, esta pesquisa buscou demonstrar que documentos internacionais, os quais garantem direitos essenciais aos mais diversos povos, partem do pressuposto que todos os seres humanos têm condição, de antemão, de efetivar essa busca pela dignidade humana. No entanto, o real entendimento de necessidade das diferentes comunidades apenas será possível por meio do ‘empoderamento’ dos cidadãos, que até então jamais tiveram a chance de dividir sua concepção de dignidade humana. Apenas por meio desse universalismo de confluência8, e não mais de uma visão “de cima para baixo’’, será possível encontrar algo que seja intrínseco a todo e qualquer ser humano (FLORES, 2009, p.64). Assim, Herrera Flores não afirma que todas as ideias concebidas sobre direitos humanos são erradas, fruto do colonialismo e do imperialismo, apenas propõe que da maneira com que tais direitos foram construídos eles não podem se pretender universais. Para que os direitos humanos possam operar como forma de cosmopolitismo, como globalização contra-hegemônica, eles devem, necessariamente, ser reconceitualizados como multiculturais. Para Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 458), os diálogos interculturais devem ser capazes de transformar os direitos humanos em uma política cosmopolita que ligue em rede línguas diferentes de emancipação pessoal e social e ao mesmo tempo as torne mutuamente inteligíveis e traduzíveis. A partir da consideração de que o TPI dá efetividade aos direitos humanos, e os direitos humanos formam a base de todo aparato jurídico e moral da corte, a caminhada da jurisdição internacional penal não pode se dar em passos mais lentos do que o desenvolvimento proposto aos direitos humanos. 8Esse processo é denominado, por Joaquín Herrera Flores, como multiculturalismo crítico ou de resistência. O único essencialismo válido para uma visão complexa do real é aquele que cria condições para o desenvolvimento das potencialidades humanas, de um poder constituinte difuso que se componha não de imposições ou exclusões, mas sim de generalidades compartilhadas às quais chegamos, não das quais partimos. 344 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Tal e qual a busca de Themis por justiça jamais poderia ser difundida não fosse Hermes para trafegar pelo mundo em busca da conciliação, o TPI deve sempre, tanto e mais buscar a justiça por meio da participação dos mais diversos interlocutores. Para a construção de metas de diálogo e ideias dialeticamente construídas que se proporão universais pode-se até, por que não, beber da fonte da democracia deliberativa, por meio da qual os cidadãos deliberam, trocam opiniões, debatem os motivos e buscam soluções conjuntas para políticas públicas. As opiniões não são simplesmente um resultado fixo de interesses privados, mas sim uma construção dos cidadãos com respeito a fundamentos constitucionais e questões de justiça básica (RAWLS, 1999, p. 138-139). Assim, os direitos humanos, e por conseguinte sua aplicação pelas Cortes Penais Internacionais, em especial pelo TPI, devem ser algo constantemente em transformação, pois como bem observado por Costa Douzinas (2009, p. 384) até a presente data os direitos humanos são um ‘mito concretizado’ das sociedades pósmodernas, e tal ideia é válida tão somente aos que sofrem violações em maior e menor grau nas mãos dos poderes que declaram seu triunfo. Sempre haverá obstáculos para a concretização dos direitos humanos, no entanto eles não devem ser entendidos como utopia (FLORES, 2009, p. 113). A história do TPI é consideravelmente recente, bem por isso que o repensar, recriar, reformar, readaptar, reorientar, e rediscutir devem fazem parte do dia a dia da corte. Somente assim ideais universalmente construídos poderão ser, enfim, legitimamente defendidos. Na caminhada do direito internacional penal rumo a uma justiça mais transparente e participativa, os que acreditam na defesa da dignidade da pessoa humana seguirão desejando Flores. 345 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. ARENT, Hannah. Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. BASSIOUNI, M. Cheriff. International Criminal Law: Quo Vadis?. Nouvelles etudes pénales, n.19, 2004. 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Doutora Maria Luiza Scaramella10 9 Graduanda em Direito na UNICURITIBA Possui doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2010), com estágio no "Institut des Textes et Manuscrits Modernes" (ITEM), na "École Normale Supérieure" (2006-2007), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (2004) e graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1998). Atualmente é professora de Sociologia e Antropologia do Direito no Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA), membro do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR), na Universidade de São Paulo (USP), e do grupo de pesquisa "Trajetórias e etnografia: narrativas, eventos, experiências", na UNICAMP (ambos cadastrados no CNPq). Tem experiência na área de Ciências Sociais com ênfase em Antropologia, atuando principalmente nas seguintes áreas e temas: antropologia, antropologia do direito, sociologia, abordagem biográfica, trajetória, história de vida, narrativas biográficas. 10 349 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SUMÁRIO 1 – Introdução. 2 – Criação de Estereótipos. 3 – Segregação social. 4 – Considerações Finais. Referências. 350 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO O presente artigo tem como objetivo realizar uma análise acerca da criação de estereótipos, bem como a segregação social, que a sociedade brasileira trás como herança da época da escravidão e reflete em nossa sociedade, gerando grande impacto. Pretende-se ainda com esse trabalho identificar a dificuldade dos exdetentos para retomar a vida em sociedade, assim como para encontrar um emprego que dignifique ou com real possibilidade de crescimento. Palavras-chave: Estereótipos. Segregação social. Preconceito. 351 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT The aim of this article is to perform an analysis upon the creation of stereotypes, as well as the social segregation, in which the Brazilian society inherited from the slavery period that still reflects in our society today, generating great impact. Furthermore, it is intended in this project identify the deterrents of the former inmates to resume their lives in society, as to find a dignifying job or a job with real growth possibilities. Keywords: Stereotypes. Social Segregation. Prejudice. 352 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO Com o presente trabalho pretende-se analisar quais as causas da estigmatização social, qual a origem do preconceito e como ele se desenvolveu e é visto pela sociedade moderna, juntamente com a visualização da influência da mídia relacionada à criminalidade e por fim, indagar a segregação social existente com detentos e ex-detentos e a dificuldade de reingressar a vida em sociedade e encontrar um trabalho. Analisa-se a criação de estereótipos que ocorre no Brasil, bem como a influência da era escravocrata nos dias atuais, a herança trazida que faz com que a sociedade continue com um pensamento retrógrado de sujeito ideal, criando um padrão tido como o ideal a ser seguido, sendo que aqueles que não se encaixam são rotulados e subjugados. Averígua-se ainda a situação do sujeito típico tido como “marginal” que erroneamente está associado à criminalidade, verificando a influência e os reflexos desse pré-conceito, bem como a criação do “inimigo social”, com a ideia de que essa pessoa deve ser punida com toda a força estatal de maneira mais rígida e severa. O abismo que a sociedade cria entre diversas classes, raças, gêneros, entre outros, faz com que a desigualdade seja uma realidade brasileira crescente com pouca ou nenhuma disposição de mudança. Ainda, remete-se ao latente preconceito da sociedade, que cria paradigmas e divide as pessoas em grupos, utilizando como fundamento para tal divisão critérios pré-concebidos, segregação que atinge também crianças e adolescentes. Verificase ainda a necessidade de que o Estado, visando à igualdade entre as pessoas, respeite o direito inerente a todas as pessoas, promovendo a criação de políticas públicas para a melhor distribuição de recursos. 2 CRIAÇÃO DE ESTEREÓTIPOS Quando se fala em pobreza, logo vem à cabeça das pessoas a palavra “criminalidade”. Ao se falar em criminalidade, remete-se a um sujeito “típico” 353 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE desenvolvido pela sociedade como aquela pessoa que nasce nas comunidades carentes e cresce no meio da pobreza com pouco ou nenhum recurso. Esse sujeito aos olhos da sociedade é visto como sujeito propenso a ingressar no mundo do crime, devido as suas raízes e as circunstâncias nas quais se enquadra. Ao criar um estereótipo de como deve ser o “marginal”, a sociedade aumenta o preconceito com este sujeito e dificulta a tentativa de mudar essa visão de que, essa pessoa, já tem em sua essência a vontade de não respeitar as normas sociais, o que não correspondendo à realidade fática. Não se pode dizer que por nascer em uma comunidade carente ou pelo modo como vive que será determinada a escolha do sujeito pelo caminho da criminalidade. Criou-se um paradigma que, o “delinquente” será definido por sua cor, pobreza ou estilo de vida, tendo esse sujeito, em sua essência, um desvio de conduta, motivo pelo qual deve ser incriminado preventivamente e punido mais severamente que autores de outros crimes. Ao manter essa linha de pensamento, a sociedade cria sentimentos repulsivos contra essa pessoa desejando que esta, ao cometer um delito, desapareça, morra, ou no mínimo, tenha uma pena mais dura, pensamento que tem reflexo no sistema penitenciário. Há, de acordo com Adorno (2002), um sentimento que leva à “exclusão moral” do presidiário ou ex-presidiário pela sociedade. Foram realizadas em São Paulo pela Comissão Justiça e Paz, órgão das pastorais católicas. Revelaram acentuada desconfiança nos direitos humanos e acentuada imagem negativa dos presos, o que levou à conclusão de que estava em curso, na sociedade brasileira, um processo de exclusão moral, pelo qual delinquentes e infratores das leis penais eram percebidos como pessoas não apenas destituídas do direito a ter direitos, mais que isso, também destituídas de humanidade, razão por que poderiam até ser eliminadas sem julgamento. (ADORNO, 2002). Conforme Adorno revela em seu artigo, o aumento da criminalidade e da violência cumulado com a baixa capacidade de o Estado impor leis e normas é uma das causas do aumento da exclusão, pois a sociedade teme que se determinado sujeito não for punido de maneira extremamente rigorosa, vai encontrar brechas no sistema e na lei, conseguindo então a impunidade. No Brasil ainda nos dias de hoje, vê-se a persistência do modo errôneo de pensar que, direitos humanos significam proteger o criminoso ou lhe conceder 354 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE benefícios, quando apenas remetem aos direitos inerentes à pessoa humana, ou seja, a qualquer cidadão. A criação da figura de um sujeito típico criminoso se estende também as crianças e adolescentes, sendo definidos como “trombadinhas” ou “delinquentes” geralmente por fazerem parte de uma comunidade carente. A sociedade visualiza o crime muitas vezes como “traição”, que é reflexo do problema da exclusão social enfrentado por essas pessoas, que sofrem o abandono estatal não tendo ou tendo contato mínimo com escola, educação, saúde, trabalho, saneamento básico, entre outros. Ao ter esse pensamento, a sociedade faz uma divisão entre “cidadãos” e “inimigos” conforme prevê Juarez Sirino dos Santos (2008): O cidadão é autor de crimes normais, que preserva uma atitude de fidelidade jurídica intrínseca, uma base subjetiva real capaz de manter as expectativas normativas da comunidade, conservando a qualidade de pessoa portadora de direitos, porque não desafia o sistema social. [...] O inimigo é autor de crimes de alta traição, que assume uma atitude de insubordinação jurídica intrínseca, uma base subjetiva real capaz de produzir um estado de guerra contra a sociedade, com a permanente frustração das expectativas normativas da comunidade, perdendo a qualidade de pessoa portadora de direitos, porque desafia o sistema social. (SANTOS, 2008, p. 5) Não se deve falar em inimigo social, pois todas as pessoas que fazem parte de uma sociedade são detentores de direitos e deveres e, mesmo que determinado sujeito venha a praticar um delito, devem ser mantidos os direitos inerentes à pessoa humana ao sujeito que violou as normas. A imagem de um inimigo social usa como base, as áreas urbanas de baixa renda que normalmente são alvo de quadrilhas para o tráfico, por se tratarem de áreas vulneráveis, ou seja, as favelas e áreas de ocupação são controladas por grandes “grupos” devido ao baixo poder aquisitivo desse lugar, criando um sistema de comércio onde as dívidas são pagas com vidas, o que aumenta a violência nestas áreas. Sobre o assunto, explica Misse (2010): Nesse sentido, a sujeição criminal também se “territorializa”, ganha contornos espaciais e amplifica-se nos sujeitos locais e mesmo nas crianças e adolescentes cuja sujeição é esperada. Como tal, não pode ser 355 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE compreendida exclusivamente apenas no plano da interação contextual e do desempenho de papéis sociais, pois se mostra ancorada num plano macro de acumulação social da violência em tipos sociais constituídos e representados por sujeitos criminais produzidos em contextos sóciohistóricos determinados. Aqui a sujeição criminal poderia ser compreendida, ao mesmo tempo, como um processo de subjetivação e o resultado desse processo para o ponto de vista da sociedade mais abrangente que o representa como um mundo à parte. (MISSE, 2010, p. 15). A cultura associada a essas pessoas de origem humilde faz com que elas tenham grande dificuldade de tentar alterar essa realidade moldada, pois são vistas como potenciais “bandidos”, o que cria um grande obstáculo para tentar entrar no mercado de trabalho, pois sofrem preconceito. Ao não ver alternativa diante da dificuldade em se colocar no mercado de trabalho devido a pouca escolaridade e a falta de profissionalização, acrescida do grande preconceito e, com a necessidade de ajudar os seus familiares, muitas vezes essas pessoas acabam recorrendo ao mundo da criminalidade, por se tratar de um caminho de mais fácil acesso. Acerca do assunto discorre Misse (2010): Na sujeição criminal encontramos esses mesmos processos, mas potencializados por um ambiente de profunda desigualdade social, forte privação relativa de recursos de resistência (ou ocultação social) à estigmatização e pela dominação (mais que apenas pelo predomínio) da identidade degradada sobre todos os demais papéis sociais do indivíduo. O rótulo “bandido” é de tal modo reificado no indivíduo que restam poucos espaços para negociar, manipular ou abandonar a identidade pública estigmatizada. Assim, o conceito de sujeição criminal engloba processos de rotulação, estigmatização e tipificação numa única identidade social, especificamente ligada ao processo de incriminação e não como um caso particular de desvio. (MISSE, 2010, p. 19). Para que seja possível mudar essa realidade é necessário abandonar esse paradigma criado, pois ao selecionar características para definir como deve ser o “bandido”, aquele sujeito que representa ameaça e perigo, que deve ter uma incriminação preventiva e que está destinado a criminalidade, percorre-se um caminho à contramão do princípio da igualdade previsto na nossa Carta Magna. A crescente desigualdade social faz com que seja difícil a preservação dos direitos humanos nas comunidades da periferia. É de grande importância que o 356 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Estado, comece a distribuir mais recursos para áreas de baixa renda, principalmente educacionalmente. A porcentagem de pessoas analfabetas ou semianalfabetas que ingressão no sistema penitenciário é muito alta, sendo que grande parte está tendo seu primeiro contato com o Estado na cadeia. Dessa forma outro aspecto relevante a ser aqui considerado é o perfil da população penitenciária no Brasil, que segundo os dados fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, a maior parte da massa carcerária deste país é composta por jovens com menos de trinta anos e de baixa escolaridade (97% são analfabetos ou semianalfabetos). O restante, quase que na totalidade, são pessoas que não tiveram condições de concluir os estudos por razões variadas inclusive por terem sido iniciadas no crime ainda cedo. (SANTOS, 2005). Além da necessidade da melhor distribuição de recursos, é imprescindível a mudança da visão que a sociedade estabeleceu sobre um estereótipo. A incriminação de uma pessoa, seja ela criança, adolescente ou adulto não pode ser um processo simples definido por características levianas. Ao criar um estereótipo de “marginal” determinando suas características e ao desejar punições mais severas para este sujeito que nasce “predestinado” ao ingresso no mundo do crime, estamos retroagindo e voltando aquele conceito antiquado que estabelece que aquele que vai contra as normas sociais, deve ser punido com a máxima força estatal, pois essa visão distorcida nos leva a desejar que a pena tenha caráter de castigo e vingança, ignorando a finalidade da pena que é a ressocialização para o sujeito que transgrediu as normas possa ingressar na sociedade. É importante frisar que é muito difícil que as punições sejam equânimes, visto que os crimes cometidos têm características diferentes. É inadmissível que em uma sociedade moderna ainda exista essa ideia preconceituosa de que o infrator das normas tem necessariamente que pertencer a uma classe desfavorecida. Ao dizer que as punições não devem ser equânimes, refere-se à punição diferente para crimes diferentes. Porém o que se vê é a punição diferente para pessoas diferentes, mesmo que o delito seja igual com características semelhantes, ou seja, o sujeito oriundo de uma classe social desfavorecida que transgrediu as normas será punido mais rigorosamente devido a suas origens. Ainda há que se falar na falha do Estado ao proporcionar defesa para a pessoa carente que cometeu o delito e está respondendo ao processo penal, 357 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE indicando defensores que muitas vezes não estão qualificados para exercer esse papel de fundamental importância. Em contrapartida, as pessoas que possuem recursos para contratar um especialista, possuem ampla defesa e dedicação exclusiva, aumentando suas chances de diminuição da pena ou até mesmo a não imputação desta. Observa-se que, grande parte dos crimes cometidos envolve a população carente, com pouco ou nenhum recurso. O que não se deve deixar de lado é a falha do sistema policial na criação de uma estatística dos crimes: por um lado se esquece que as maiores vítimas da violência estão em regiões periféricas e de baixa renda; por outro, não há estatísticas que envolvem as classes mais abastadas, sendo essa relação entre condição social e desvio de conduta fortemente contestável. As pessoas realizam erroneamente a associação da criminalidade com a pobreza, utilizando o argumento de que a violência é maior nos crimes cometidos pelo “inimigo social”. É possível ver essa injustiça social também na força da punição promovida pelo Estado, sendo que, dificilmente um sujeito pertencente a uma classe social favorecida, será visto cumprindo pena em um sistema prisional, porém o inverso é tido como padrão. De acordo com Sergio Adorno (2002), entre 13 e 16 de abril de 1995, o Jornal do Brasil/Vox Populi realizou uma pesquisa de opinião conforme indicado abaixo: 73% dos brasileiros não confiam na Justiça. As respostas dadas ao questionário mostraram que, no entender da maioria da população, a lei não é igual para todos. Embora esse princípio esteja estabelecido no Artigo 5º. Da Constituição. Para 82% dos 3.075 entrevistados, a lei é mais rigorosa para alguns, privilegiando outros. O Vox Populi perguntou se negros e brancos, pobres e ricos recebem o mesmo tratamento para crimes iguais. Para 80%, não há dúvida: o pobre será julgado mais rigorosamente; e 62% acreditam que o negro receberá punição mais pesada. (ADORNO, 2002). O que fica comprovado é que, mesmo após mais de 10 anos da realização da pesquisa pouco ou quase nada se alterou na mentalidade dos brasileiros. Esse preconceito não é apenas uma realidade atual, ao contrário, a ideia de que uma parcela da sociedade não é possuidora de direito está presente desde a época da escravatura, tendo os escravos características que o determinavam como tais. 358 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A segregação social que ocorre no Brasil, separando os indivíduos por classe social, raça, religião, entre outros, é fruto de um sistema prejudicado que vem desde a época da colonização brasileira. Desde a independência política das colônias portuguesas, verifica-se a segregação sofrida pelos escravos, que eram tratados como objetos, os quais pertenciam a um senhorio que tinha amplos poderes sobre a vida e o destino destes. Com a criação do Código Penal em 1830 a situação para os escravos não se alterou, sendo que conforme estudos de Andrei Corner (2006), havia apenas um único artigo que mencionava os escravos, que determinava que quando não fossem condenados à morte ou a pena de galés, teriam penas que seriam cumuladas de açoites, sem prejuízos ao trabalho. A pena de galés era uma pena ao qual o sujeito era condenado ao trabalho forçado, sendo que geralmente os escravos tinham seus pés acorrentados com correntes de ferro e trabalhavam, sem direito a nenhuma contraprestação, ao governo. A Constituição Federal de 1824 do Império determinava que as cadeias fossem seguras, limpas e bem arejadas, fato que até os dias atuais são questionáveis em grande parte, senão em todos os sistemas penitenciário, devendo ainda ter separação dos réus de acordo com a natureza do crime praticado e a classificação penal. Para os escravos, eram reservados os piores espaços nas prisões, denominado calabouço, recebendo vestuário e alimentação de pior qualidade, sendo obrigados a prestação de serviços externos e internos para os outros encarcerados. Em 1874, criou-se uma prisão vislumbrada, pelo menos em seu projeto, como ideal panóptico, a chamada Casa de Correção da Corte, porém pouco ou nada se alterou para os escravos e africanos, que agora tinham como lugar reservado o andar térreo e o sótão, lugares tidos como insalubres devido à alta temperatura do local e a grande umidade, sendo reservado aos demais presos os andares intermediários. A lógica do sistema prisional revelou aos poucos sua verdadeira função, que era a de controle e vigilância. O projeto panóptico de penitenciária foi elaborado por uma sociedade da Inglaterra em 1826 e, tinha como principal objetivo uma prisão com melhorias, sendo que seriam “quatro raios, com duzentos cubículos cada um, totalizando 800 celas. 359 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE [...] As celas seriam distribuídas ao longo de um corretor central havendo também os corredores externos” (KOERNER, 2006, p. 211). Ademais, apesar de um projeto ideal para o sistema carcerário, a Casa de Correção na Corte apresentava diversos erros na sua construção e se tornou nada mais do que um sistema bruto e cruel de aprisionamento de escravos e outros infratores. Não obstante a segregação ocorrida dentro do sistema penitenciário da colônia, os negros e pardos denominados “livres” não tinham liberdade de ir e vir nas ruas, eram tidos suspeitos, sendo que a polícia, em suas rondas noturnas, detinha estes sujeitos para verificar se eram escravos fugitivos. Ainda, nas relações íntimas entre escravo e proprietário, eram possíveis todos os atos que o senhorio julgasse necessário para preservar a boa ordem, incluindo castigos físicos, suplícios, intimidação, entre outros. Um dos objetivos dos proprietários de escravos era, como bem observado por Koerner (2006), a destruição da identidade anterior, com intuito de “adestrar” o escravo, e moldá-lo ao “servo perfeito”, devendo este ser totalmente submisso. Com o passar dos anos, as reformas penais visaram melhorias para os chamados homens livres, sendo esta uma visão mais humanitária, porém, os escravos eram ainda separados lugares insalubres, que se não os matasse os tornaria inutilizável para o seu senhor, sendo que se nenhum senhorio fosse requerer a soltura daquele escravo, ele morreria na cadeia. Tomando a análise de Koerner (2006) e mesmo de DaMatta (1997), vemos que o sistema social brasileiro é amplamente fragmentado, dividindo a sociedade entre dominantes e dominados, superiores e inferiores, de modo hierarquizado para manter o preceito de que, cada pessoa deve saber o seu lugar, demonstrando a densa carga autoritária que o sistema carrega. No Brasil os traços da escravidão são latentes, tendo em vista que mesmo abolida, nunca houve um efetivo sistema que objetivasse promover a igualdade. Ou seja, apesar de a escravatura ter sido abolida no Brasil em 1888, o negro era tido antes de tudo como suspeito, não tendo a mínima autonomia sequer para caminhar nas ruas após o toque de recolher, podendo ser recolhido as casas de detenção sem grandes explicações, sendo realizada a separação, de quem na teoria, deveria ser igual. 360 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A exclusão social é um processo histórico, sendo que a parcela alvo desta, geralmente tem como características a situação de carência, a segregação e a discriminação, sendo essa última a mais relevante. O Brasil sendo um país democrático deveria realizar a aplicabilidade da igualdade entre todos perante a lei que está prevista na Constituição Federal de 1988, porém o que ocorre, conforme ilustrado pela célebre frase de Rui Barbosa é que, os desiguais são tratados na medida de suas desigualdades. Nesse sentido, de acordo com Koerner (2006), a frase de Rui Barbosa mostra-se com um caráter dúbio, que é o de justamente acirrar as desigualdades, não atribuindo o mesmo tratamento para as pessoas, dando ênfase a exclusão social. A separação social é amplamente difundida no Brasil, o que faz com que a sociedade reste fragmentada, difundido erroneamente um sistema que realiza a segregação de pessoas, privilegiando apenas uma parcela da sociedade, os denominados “bem apessoados” ou “apadrinhados”. Mesmo após a criação de uma constituição com base no princípio da igualdade entre as pessoas, verifica-se que esta “herança maldita” carregada desde a época da abolição está presente e continua realizando a individualização das classes sociais, selecionando e determinando a posição que determinadas pessoas devem ocupar na sociedade, restando para determinada classe/grupo social, pouca ou nenhuma possibilidade de alterar esta realidade criada. Segundo o autor Roberto DaMatta (1997), a segmentação baseada no sistema hierárquico, faz com que o sistema social seja corrompido, sendo que a lei que teoricamente deveria ser universal e igualitária é vastamente utilizada como forma de privilegiar alguns indivíduos, servindo dessa forma como elemento fundamental de sujeição é diferenciação política e social. O sistema de leis que deveria servir como forma de difundir e promover o tratamento igualitário entre as pessoas, ocasiona em verdade, um sistema que promove o aprisionamento de determinados grupos. Essa herança de diferenciação gera um aumento na desigualdade social, fazendo com que seja persistente a situação autoritária e hierárquica no Brasil, da perspectiva cultural, minando a prática democrática. Ainda, importante é o papel das políticas públicas que devem ser criadas pelo Estado para a diminuição da injustiça social, pois estas têm o poder de diminuir esta 361 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE lacuna criada para separar a sociedade entre sujeitos que merecem a proteção estatal e inimigos sociais. Ao invés da criação de políticas sociais, o que se vê é a criação de políticas penais que são utilizadas como mecanismo de contenção de uma massa vista pela sociedade como uma ameaça, um perigo. Essa desigualdade não é uma exclusividade do Brasil, sendo vista em outros países, como os Estados Unidos. Sobre o assunto, relata Loic Wacquant (2008): Finalmente, as limitações orçamentárias e a moda política de “menos governo” convergiram para intensificar as tendências da reificação do welfare assim como as do encarceramento. Diversas jurisdições, como o Texas e o Tennessee, consignam uma parte considerável dos seus condenados a estabelecimentos privados e subcontrata firmas especializadas para a administração dos beneficiários da assistência pública, pois o estado não tem capacidade administrativa para implementar sua nova política de combate à pobreza. Essa é uma maneira de tornar pessoas pobres e prisioneiros (cuja grande maioria era pobre em liberdade e voltará a ser pobre quando libertada) “lucrativos”, em termos ideológicos e econômicos. (WACQUANT, 2008). Não obstante a isto, exerce grande influência no estereótipo criado pela sociedade a mídia que, contribui fortemente, para a construção da imagem do sujeito “marginal”. É indiscutível que a mídia tem o poder de formar opiniões, pois quando a sociedade define um sujeito como típico ao ingresso na criminalidade, normalmente essa ideia criada é reforçada pela mídia. Sobre o tema, aduz Almeida (2003): [...] para evitar os desmandos jornalísticos e televisivos urge uma regulação, não censura mas um controle. Acusar sem provas também é uma violência, o cidadão é presumidamente inocente, o Estado é que deve provar ser ele culpado. Ainda que não haja defesa, o Estado tem que provar a culpa, senão a justiça irá inocentar o acusador por ausência de provas. Isso possibilita que alguns culpados sejam julgados inocentes, porém se justifica e é até plausível, desde que seja para que inocentes jamais sejam julgados culpados. Devemos proteger os inocentes ainda que para isso seja necessário proteger também os culpados. (ALMEIDA, 2003). Quando o Estado realizar uma distribuição de rendas que atenda as principais necessidades da população carente, estará trilhando um caminho que contribuirá 362 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE para o fim da exclusão social, aumentando sua capacidade de instituir as leis e as normas, fazendo-as serem respeitas. 3 A SEGREGAÇÃO SOCIAL A sociedade em sua essência cria paradigmas e divide as pessoas em grupos que geralmente são determinadas por algumas características, tais como gênero, raça e posição socioeconômica. Essa separação é um problema que teve o seu início desde que a sociedade começou se organizar como tal, não se tratando de um problema contemporâneo, visto que desde a colonização já era visível essa diferenciação, fundada em critérios pré-concebidos. A segregação da sociedade se verifica com um aspecto mais amplo sobre a separação por classes, mas a sociedade realiza a separação das pessoas nos dias atuais também determinadas por outras características, tais como separação racial, por gênero e por etnias. O preconceito da sociedade se verifica não só sobre aspectos raciais, abrangendo uma parte muito ampla de pessoas, mas também emerge de categorias de classe, gênero, etc. O processo de exclusão social não é definido apenas por uma “característica”, podendo ser diversificado conforme prevê Alba Zaluar (1997): Do ponto de vista da teoria dos sistemas simbólicos, podemos afirmar que qualquer sistema classificatório ou qualquer comunidade, como identidade que se diferencia de outras, cria exclusão: grupos religiosos, étnicos, raciais, familiares, tribais, localidades, nações etc. Mas tais grupos criam a exclusão por processos diferentes e por critérios distintos, tendo maior ou menor flexibilidade, fronteiras mais ou menos fluidas, além de laços ou relações entre seus membros de natureza bastante diversa (ZALUAR, 1997). Ao determinar critérios para subdividir as pessoas, fundado em características levianas, a sociedade alimenta o preconceito, criando um obstáculo para aqueles sujeitos que não se encaixam nos padrões estabelecidos. Não obstante, este préconceito é fomentado pelo Estado, que abandona essas pessoas socialmente, deixando-as em condições precárias. 363 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Na sociedade contemporânea, as pessoas também estão subdividias por classes econômicas, sendo que aquele que pertence a uma comunidade carente e cresce em meio à pobreza, terá que enfrentar uma enorme barreira de dificuldades. Determina-se que, aquela pessoa que nasce no “morro”, na “favela”, estaria determinada ao cometimento do ilícito penal. Se dita isso quase como se fosse uma regra, ou seja, ao nascer em uma área carente, o sujeito teria o seu destino traçado a criminalidade. Trata-se quase de uma regra imposta pela sociedade, um parâmetro estabelecido, a criança nascida em família de poucos recursos é tida como “pivete”, fato geralmente determinado pelas roupas que esta veste, um adolescente de classe baixa é denominado “marginal”. Quando se vê uma criança ou adolescente na rua, pedindo dinheiro no semáforo, não se leva em conta a razão que a levou a estar ali. Quando o Estado abandona as áreas carentes, ele contribui para a criminalização. A falta de escolas, creches, saneamento básico, condições mínimas de existência, previstas pelo princípio do mínimo existencial necessário para garantir a dignidade humana é desrespeitado sem escrúpulos nestas determinadas áreas. O Estado ao excluir socialmente algumas parcelas populacionais, faz com que cresça o abismo já existente entre aqueles sujeitos aos quais existe a ampla preocupação governamental e aqueles que foram excluídos da proteção estatal. Ao subdividir a sociedade entre os “bons” e os “maus”, os que são merecedores da proteção estatal e os que não são, abre-se margem para o crescimento constante da desigualdade entre estes sujeitos. É inconcebível que, em pleno século XXI ainda haja exclusão social, visto que afronta diretamente a Carta Magna, que está em vigor desde 1988. A criação de uma política estatal de inclusão social se faz necessária para preservar os direitos dos cidadãos, para que esses também respeitem suas obrigações, sendo que pela falta de informação muitos desconhecem os deveres e direitos inerentes a qualquer sujeito. Alba Zaluar (1997) discorre que: As políticas sociais devem ser implementadas não porque os pobres constituam um perigo permanente à segurança, não porque venham a ser as classes perigosas, mas porque um país democrático e justo não pode existir sem tais políticas. (ZALUAR, 1997). 364 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Nas áreas populacionais de baixa renda, denominadas favelas, existe a total falta de infraestrutura, havendo falta dos recursos mínimos necessários, tais como água potável, coleta de lixo e saneamento básico. Nestas áreas geralmente ocorre à superlotação e o que se vê frequentemente é o total descaso do Estado com as pessoas que lá habitam. A falta de estrutura nas escolas ou mesmo a inexistência destas nas favelas, sendo que para ter acesso ao estudo, normalmente os adolescentes tem que se deslocar de suas casas por muitos quilômetros, geralmente a pé devido à falta de transporte público, para outros bairros da região, motivo pelo qual grande porcentagem dos jovens abandonam a escola antes de atingir o ensino médio. Com a falta de estudo, excesso de tempo livre, falta de perspectiva de futuro e com o chamativo mercado de tráfico de drogas que tem rendimento lucrativo e possui fácil acesso, muitos jovens acabam ingressando a criminalidade, pois é um mercado altamente atrativo devido ao grande retorno financeiro. Ensina Zaluar (1997) que: Atraídos por essa identidade masculina, os jovens, nem sempre os mais destituídos, incorporam-se aos grupos criminosos em que ficaram à mercê das rigorosas regras que proíbem a traição e a evasão de quaisquer recursos, por mínimo que sejam. Entre esses jovens, o entanto, são os mais destituídos que portam o estigma de eternos suspeitos, portanto incrimináveis, quando são usuários de drogas, aos olhos discriminatórios das agências de controle institucional. (ZALUAR, 1999). Estes jovens, muitas vezes convivem apenas com um dos pais, seja esta presença familiar materna ou paterna, necessitando desde cedo ajudar com a renda em casa. É incontestável que nas favelas é alta a taxa de desempregos e, esta falta de empregos cumulada com a necessidade de ajudar a família, faz com que o mercado do tráfico de drogas, que é exercido nos morros das áreas populacionais carentes, seja chamativo e de fácil acesso. Sobre o assunto, discorre Pero (2005): Um outro fato marcante é que a taxa de desemprego entre moradores das favelas é de 20%, sendo significativamente maior do que para os não moradores (15%). Esse resultado sugere a existência de algum efeito discriminatório no emprego de trabalhadores que moram em favelas, com 365 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE um aspecto ainda mais preocupante se considerarmos o fato de que a maior diferença entre as taxas de desemprego de moradores e não moradores em favelas está entre os chefes de família. (PERO, 2005, p. 12) Nas favelas, normalmente há uma alta taxa de criminalidade, que é corroborada pela falta de estrutura e falta de saneamento básico, juntamente com a falta de ensino público. Como característica essencial destas áreas, tem-se a concentração de alta taxa de pobreza aliada com a desestruturação urbana gerada pela falta de planejamento. Explana Alba Zaluar (1999): A violência estrutural passa a ser distinguida das outras formas de violência: a institucional, a doméstica, a interpessoal. A dificuldade principal desta abordagem é que violência torna-se um sinônimo de desigualdade, exploração, dominação, exclusão, segregação e outros males usualmente associados à pobreza ou a discriminação de cor e de gênero. Não oferece, pois meios para pensar aquelas ações caracterizadas pelo excesso ou descontrole no uso da força física (ou dos seus inúmeros instrumentos) nas interações sociais, passíveis de controle democrático. (ZALUAR, 1999). Além disto, é grande a preocupação com as crianças, que muitas vezes ficam aos cuidados dos irmãos mais velhos ou de vizinhos quando seus pais ou responsáveis saem para trabalhar, não tendo a devida atenção exigida e nem acesso aos recursos necessários. Importante e necessário é o desenvolvimento de políticas púbicas visando à criação de creches para que essas crianças não fiquem a mercê vagando pelas ruas enquanto seus pais trabalham, devendo estas creches ser estruturadas com profissionais qualificados e recursos necessários. O Estado deve criar políticas institucionais de investimento nas áreas carentes, visando principalmente à criação de escolas para os jovens, capaz de oferecer estudo digno aos moradores das favelas, para que estes consigam ter uma perspectiva de futuro longe da criminalidade. Um ideal de escola pública seria a criação de escolas com turnos em período integral, método frequentemente usado em outros países, onde durante um turno os alunos teriam conteúdo escolar curricular e no contra turno praticariam esportes do mais diversos e aulas com cursos técnicos visando à profissionalização. 366 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Nestas escolas em turno integral, o foco não seria só o conteúdo didático, como também haveria ampla preocupação com a prática de esportes visando inclusive à saúde e bem estar dos jovens como também e o aprendizado em cursos profissionalizantes. Ainda, sobre a matéria, leciona Cancian (2010): Os dados são da última pesquisa realizada em colégios da rede pública pelo Ministério da Educação, em parceria com universidades federais. Em Curitiba, 36 escolas públicas funcionam nesse sistema – são os centros de educação integral. Na rede privada de ensino, há pelo menos mais três que aplicam essa mesma proposta – e o número só tende a aumentar. [...] Na educação infantil, esse procedimento já é bastante usual entre as escolas. A continuidade no ensino fundamental se mostra como uma necessidade de pais que trabalham em ambos os períodos e não têm com quem deixar os filhos em casa. (CANCIAN, 2010). Quando se pensa na escolarização das crianças e adolescentes, tanto quando se fala em creches ou escolas públicas de qualidade, tem-se como consequência direta a diminuição de tempo ocioso na vida dos jovens e o consequente afastamento das ruas, mudando o foco para a educação. Dificilmente um jovem focado na escola, com hora de almoço, lanche e lazer recreativo vai adentrar na criminalidade. Deve-se investir nos jovens para que o resultado tenha reflexo quando adultos, melhorando o mercado de trabalho com profissionais qualificados e melhor preparados. O primeiro passo para começar a romper os paradigmas criados pela sociedade deve ter como principal aliado e colaborador o Estado que deve criar políticas públicas que visem alterar esse pensamento retro de que, quem nasce na favela está destinado a ingressar no mundo do crime. A criação de escolas de qualidade terá como consequência direta pessoas melhor instruídas, o que abaixa relativamente o índice de criminalidade. Outra medida indiscutivelmente necessária e que deve ser analisada com ampla atenção é a necessidade de melhor distribuição de recursos, principalmente no que concerne a saneamento básico nas áreas populacionais carentes, pois o Estado ao não abranger determinadas áreas com recursos mínimos de saúde e higiene, afronta diretamente os princípios básicos que preveem o mínimo necessário para preservar a dignidade da pessoa humana. 367 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Outro fato que aumenta a criminalidade nas áreas pobres é a globalização dos produtos, visto que no século XXI vê-se que o consumismo se transformou frequentemente em um vício tido pelas pessoas. Esse consumismo tende a afetar principalmente os jovens, que estão em fase de descobrir e moldar seu caráter e, nessa etapa são amplamente influenciados pelos amigos, colegas e pelo “status” que determinado objeto tem perante os outros. Ora, ainda que o consumismo não possa ser usado como “desculpa” ou motivo para o cometimento do ilícito penal, é equivocado pensar que um jovem que está fora da escola, com baixa escolaridade, sozinho em casa devido ao trabalho dos pais e que busca se adequar um grupo não irá à busca do que o faça se sentir integrado ao grupo, motivo pelo qual muitas vezes são levados ao cometimento de delitos, exigidos pelos “amigos” como prova de que aquele sujeito merece fazer parte de determinado conjunto. As pessoas sentem a necessidade de se encaixar em grupos, estabelecer vínculos, sendo que os jovens sentem essa necessidade aflorada, sendo essencial buscar um padrão, um exemplo a ser seguido. Quando o jovem está na escola, os vínculos criados lá dentro geralmente não estão relacionados à criminalidade, sendo que quando o adolescente não está estudando e como consequência possui muito tempo ocioso, converte esta necessidade de se encaixar em um grupo para o que está ao seu alcance e, indiscutível é que as favelas e “morros” estão sendo chefiado pelos traficantes de drogas, motivo pelo qual os jovens tornam-se alvos interessantes para os chefes de milícias para ingressarem na criminalidade. A despeito disso, Vergara (2002) discorre: É bom lembrar que a maior parte da criminalidade gerada em meio à pobreza tem como vítimas os próprios pobres, que ainda vivem o drama de não ter a quem recorrer, visto que, em muitos bairros de baixa renda, a presença da polícia e de serviços de saúde é muito menor. Isso é verdadeiro especialmente em relação aos crimes violentos, enquanto os crimes contra o patrimônio, guiados muito mais pela oportunidade, ocorrem nas regiões mais ricas das cidades, onde há patrimônio para ser subtraído. [...] Há muita divergência sobre a causa dessa correlação. Argumenta-se que a adolescência é uma idade em que: 1) as influências de amigos e o desejo de amizade são especialmente forte; 2) há necessidade crescente de dinheiro mas só existem subempregos à disposição; 3) há necessidade de afirmação de valores individuais, em contraposição aos aceitos pela sociedade. (VERGARA, 2002). 368 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE O Estado não pode ignorar o problema latente que envolve a violência gerada pela criminalidade e pela exclusão social, sendo que diversos estudos apontam que, os homicídios geralmente envolvem homens com idade mediana entre 15 e 24 anos, pobres e moradores da favela, sendo que o principal motivo é para que os chefes do tráfico, estes jovens são facilmente descartados. Ainda, conforme ilustrado pela autora Alba Zaluar (1994): Constata-se, também, que essas mortes violentas estão atingindo principalmente homens jovens entre 14 e 29 anos, na proporção média de 8 homens para cada mulher em todo Brasil. [...] É o quadro de um país em guerra. (ZALUAR, 1994, p. 214) Outro importante fator que envolve a criminalidade é o uso de drogas ilícitas, sendo que grande parte dos roubos e furtos são realizados com intuito de conseguir dinheiro para saldar dívidas feitas com traficantes, pois estes não perdoam e, aqueles que não conseguem quitar suas dívidas, geralmente pagam o saldo devedor com a própria vida. Ainda, conforme estudo de Alba Zaluar (1994): Assim, o reducionismo serviu como álibi para que continuassem a agir os responsáveis pelas atividades claramente ilegais e discriminatória contra aqueles que, estes sim, o Estado deveria defender e tratar em centros de saúde: os jovens, especialmente os mais pobres, que continuam sendo extorquidos e criminalizados pelo uso de drogas e que, por isso, acabam nas mãos de traficantes e assaltantes. Alguns destes jovens foram também as vítimas de chacinas, as quais, quando esclarecidas, exibiram seus reais motivos: a cobrança de “dívidas” [...].(ZALUAR, 1994, p. 215) Muitos dos sujeitos de classe baixa que cometem o ilícito penal e são detidos pela polícia, ao ingressar no sistema penitenciário tem o seu primeiro contato com certos recursos estatais, tais como água encanada, sistema de esgoto, entre outros. Além disto, o Estado tem como grande falha a defesa insuficiente prestada pelos advogados da defensoria pública as pessoas que não tem condições financeiras para arcar com um advogado particular. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 369 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Conclui-se que a criação de estereótipos é uma herança presente em nossa sociedade, que foi trazida desde a época da escravidão, perdurando até os dias de hoje, sendo que pouco se alterou no modo de pensar, o que se traduz em uma contínua segregação social. Deve-se ressaltar que a segregação social é uma realidade latente no Brasil, atingindo não apenas classes baixas, como também etnias, ideologias, entre outros supracitados nesta monografia. Não obstante a precariedade do sistema carcerário algumas vezes os detentos sofrem o abandono familiar, razão pela qual muitas vezes perdem a perspectiva de futuro. Quando libertos, os ex-detentos tem grande dificuldade de retornar a vida em sociedade, visto que encontram barreiras fundadas no preconceito social. Ademais, esse preconceito atinge-os principalmente durante a busca por um emprego no mercado de trabalho, dificilmente conseguindo a oportunidade de um trabalho digno ou que tenha efetiva possibilidade de ascensão social. 370 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS ADORNO, Sergio. Ressocialização através da educação. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S151745222002000200005&script=sci_arttext Acesso em: 13 maio 2013. CANCIAN, Natália. 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Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná. Professor Titular do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Professor do Centro Universitário Internacional – UNINTER. Luana Bruna Okamura Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. 373 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SUMÁRIO 1. Introdução – 2. Dos crimes cibernéticos – 2.1. Histórico – 2.2. Conceito e Classificação – 2.3. Sujeitos – 2.4. Competência – 3. Dispositivos Legais Aplicáveis e Projetos de Lei – 4. Responsabilidade dos Provedores – 5. Conclusão – 6. Referências. 374 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO O presente artigo tem por escopo demonstrar o posicionamento do Direito Penal brasileiro frente à evolução tecnológica dos meios de informação e comunicação, utilizados para o cometimento de atos ilícitos. Para tanto, pesquisamos se os tipos penais previstos no Código Penal e na legislação esparsa são suficientes para o enquadramento e combate de infrações relacionadas ao ambiente virtual, que podem ocasionar danos a bens jurídicos tutelados pelo Direito. Depois, descrevemos acerca dos agentes criminosos e fizemos uma análise da competência para julgamento destes atos delituosos. E, diante das recentes legislações específicas e dos projetos de lei existentes, pretende-se explanar acerca da elaboração de um modelo capaz de suprir de forma efetiva os anseios da sociedade. Destaque para a função primordial do Estado na tutela de garantias constitucionais fundamentais, embora se observe que os operadores do Direito encontram dificuldades em acompanhar os avanços tecnológicos. PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal brasileiro, crimes cibernéticos, avanços tecnológicos. 375 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT This article has the purpose to show the position of the Brazilian Criminal Law front of the cyber-crimes. For that, we researched if the Penal Code and the sparse laws are enough for frame and combat the cyber-crimes, which may cause harm to properties legally protected by law. After, we described about the virtual criminal and we made a review of the competence for judge these crimes. Then, with the analysis of recent specific laws, we presented the elaboration of a model able to effectively satisfy the expectations of the society. Emphasis on the important role of the State in the protection of constitutional guarantees, although, there is evidence that the law operators have difficult to follow the technology advances. KEY-WORDS: Brazilian Criminal Law; cyber-crimes; technology advances. 376 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO O avanço tecnológico associado à popularização da Internet tem contribuído substancialmente para o desenvolvimento sociocultural, possibilitando a coleta e o compartilhamento de dados e informações em larga escala a nível global. Porém, ao mesmo tempo, usuários com vasto conhecimento técnico aproveitam-se indevidamente dos dispositivos eletrônicos e da Internet para a prática de diversos atos ilícitos. Tais atos, até então, não restaram totalmente tipificadas em nosso ordenamento, fazendo com que a ciência do Direito, sobretudo o Penal, tenha de assumir uma posição. Diante fato, infere-se que com a crescente utilização do meio virtual, a criminalidade e os crimes tornaram-se ilimitáveis. Sendo que, na maioria das vezes, estes delitos ficam impunes: pela falta de dados imprescindíveis à investigação policial; pela falta de políticas de segurança e de orientação da vítima; pelas “brechas” da lei; pela dificuldade em se identificar o delinquente; dentre outros fatores, perdurando assim uma sensação de impunidade. Nesse contexto, o agente criminoso atuante no âmbito virtual fica cada vez mais fortalecido e disposto a aprimorar seus conhecimentos e, por conseguinte, seu comportamento criminoso. Portanto, na medida em que a sociedade evolui, com o advento de novas tecnologias, em um mundo globalizado e sem fronteiras, o Direito deve acompanhála. Para tanto, os operadores do Direito devem reformular, na medida do possível, tipos penais previstos no Código Penal e na legislação esparsa, a fim de abarcar esses atos lesivos, e criar novos tipos penais capazes de coibir as infrações (prevenção), além de resguardar os bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico. Ademais, é preciso, também, que sejam criados mecanismos de controle que garantam a identificação do autor dessas práticas. Assim, diante da difusão dos crimes cibernéticos, o Estado deve prever os mecanismos com os quais irá prevenir e reprimir tais práticas ilícitas seja em âmbito civil ou penal, além de definir órgãos e setores especializados na investigação criminal e no combate a essa “nova” criminalidade. Um dos maiores problemas verificados, ao se voltar para eles, é a questão da competência para julgamento da autoria do crime, já que a Internet é uma rede 377 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE mundial, no qual, a execução, a consumação e o resultado de um crime podem ocorrer em diferentes países. 2 DOS CRIMES CIBERNÉTICOS 2.1 HISTÓRICO Devido a grande variedade de práticas delituosas no âmbito virtual e do caráter transnacional da Internet, é difícil relatar, de modo preciso, quando houve a primeira ocorrência de um crime cibernético. Ivette Senise Ferreira afirma que os crimes virtuais iniciaram-se na década de 60, mas que o exame criminológico dessas condutas só foi realizado a partir da década seguinte. Nesse sentido: Ulrich Sieber, professor da Universidade de Würzburg e grande especialista no assunto, afirma que o surgimento dessa espécie de criminalidade remonta à década de 1960, época em que aparecem na imprensa e na literatura científica os primeiros casos do uso do computador para a prática de delitos, constituídos, sobretudo por manipulações, sabotagens, espionagem e uso abusivo de computadores e sistemas, denunciados, sobretudo em matérias jornalísticas. Somente na década seguinte é que iriam iniciar-se os estudos sistemáticos e científicos sobre essa matéria, com o emprego de métodos criminológicos, analisando-se um limitado número de delitos informáticos que haviam sido denunciados, entre os quais alguns casos de grande repercussão na Europa por envolverem empresas de renome mundial, sabendo-se, porém, da existência de uma grande cifra negra não considerada nas estatísticas (Ferreira, 2005, p.239). Segundo Sandro D’Amato Nogueira, foi no ano de 1997 que ocorreu o primeiro caso esclarecido de crime cibernético no Brasil, no qual um jornalista passou a receber centenas de e-mails de cunho erótico-sexual, juntamente com mensagens de ameaça a sua integridade física. O crime passou a ser investigado e conseguiu-se chegar ao autor das mensagens, um analista de sistemas que foi condenado a prestar serviços junto a Academia de Polícia Civil, dando aulas de informática para policiais. Contudo, cabe ressaltar que, antes mesmo da ocorrência deste fato, já houve outros casos de crimes virtuais, no entanto, foram situações não investigadas e/ou solucionadas. 378 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 2.2 CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO Crimes de informática, crimes de computador, crimes virtuais, crimes telemáticos, crimes cibernéticos, delitos informáticos. Estas são apenas algumas das designações aos delitos que atingem dispositivos informáticos, a própria Internet ou aqueles praticados por essas vias. Até hoje, não há um consenso doutrinário quanto ao nomen juris destes delitos. Além das diversas nomenclaturas, tanto o conceito quanto a classificação dos crimes de informática tampouco são uniformes. Para Carla Rodrigues Araújo de Castro: Crime de informática é aquele praticado contra o sistema de informática ou através deste, compreendendo os crimes praticados contra o computador e seus acessórios e os perpetrados através do computador. Inclui-se nesse conceito os delitos praticados através da Internet, pois pressuposto para acessar a rede é a utilização de um computador (CASTRO, 2003, p. 9). Diante da conceituação supracitada, depreende-se que os crimes de informática podem ser distinguidos em duas categorias. Esta é a classificação mais aceita pela doutrina brasileira, propugnada por Hervé Croze e Yves Bismuth: a) os crimes cometidos contra um sistema de informática, independentemente da motivação do agente. São os crimes de informática propriamente ditos; b) os crimes cometidos contra outros bens jurídicos, por meio de um sistema de informática, isto é, tecnologias da informação e comunicação utilizadas para a prática de crimes comuns, ex.: difamação e discriminação racial. Não há essencialidade do meio eletrônico para a concretização do ato ilícito, e os bens já são protegidos por outras normas penais incriminadoras. No mesmo sentido, Damásio classifica os crimes em puros (próprios) e impuros (impróprios): puros ou próprios como aqueles praticados por meio de um sistema eletrônico, no qual a realização e a consumação do crime também se operam no ambiente virtual. Sendo, neste caso, o sistema computacional (segurança dos sistemas, titularidade das informações e integridade dos dados, da máquina e periféricos) o objeto jurídico tutelado. E, por sua vez, os impuros ou impróprios como aqueles em que o agente utiliza o sistema de informática como 379 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ferramenta para a prática de condutas lesivas a bens diversos dos eletrônicos, por exemplo: a pedofilia. Todavia, como dito anteriormente, existe mais de uma classificação para os crimes de informática. Tomando como exemplo, segundo Túlio Vianna, os crimes podem ser impróprios, próprios, mistos e mediatos, diferentemente de Damásio que os classifica somente em puros e impuros. Para Vianna, os crimes de informática são: 1) impróprios – quando o computador é usado como instrumento para a execução do crime, porém não há ofensa ao bem jurídico inviolabilidade dos dados ou informações. Exemplo: crimes contra a honra cometidos por meio da Internet; 2) próprios – quando o bem jurídico protegido pela norma penal é a inviolabilidade dos dados ou informações. Exemplo: artigo 313-A, do Código Penal, acrescentado pela Lei nº. 9.983/2000 (inserção de dados falsos em sistema de informações); 3) mistos – quando há crimes complexos em que a norma busca, além da proteção da inviolabilidade dos dados, a tutela de bens jurídicos de natureza diversa. São delitos derivados do acesso não autorizado a sistemas computacionais; 4) mediatos ou indiretos – quando o delito-fim não informático herdou essa característica do delito-meio informático realizado para poder ser consumado. Exemplo: o acesso não autorizado a um sistema computacional bancário para a realização de um furto. Neste caso, tendo em vista que a intenção criminosa é alcançada pelo cometimento de mais de um tipo penal, o agente somente será punido pelo furto e não pelo crime-meio informático, em razão da consumação daquele (crime-fim). Assim sendo, o crime-fim absorve o crime-meio (princípio da consunção). 2.3 SUJEITOS Muitas vezes, por não haver a necessidade de nenhuma forma de identificação ou qualquer tipo de controle no acesso a Internet, qualquer cidadão pode deliberadamente acessá-la usando pseudônimos (nome fictício). Esse fato acaba evidenciando uma das maiores falhas do ambiente virtual que é a falta de identificação de usuários, seja pelo seu RG ou CPF. 380 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Para que o usuário possa ser localizado, o provedor lhe atribui um número de protocolo de Internet (IP – Irternet Protocol) exclusivo, composto por quatro séries numéricas de 0 a 255, pelo período de conexão. É através desse protocolo único para cada conexão, que se pode detectar de onde o usuário esta acessando, podendo identificar o provedor e a localidade aproximada em que foi realizada a conexão. Para se aplicar a devida sanção penal, é crucial a imputação objetiva pela prática do evento criminoso ao autor, bem como a sua comprovação no mundo fático. Assim, deve-se ter fixo um sujeito infrator, vez que o direito penal não pode alcançar pessoas meramente abstratas, virtuais, e muito menos, aplicar a sanção penal àquele que pela sua conduta não concorreu para a caracterização do evento criminoso. Surgiu, então, a necessidade de se traçar um perfil denominando grupos que praticam estes delitos. Nesse sentido, Tourinho Filho (1998, p. 34) afirma que: "O problema da qualificação do acusado é de suma importância, porquanto, em se tratando de qualidade personalíssima, não poderá ser atribuída a outra pessoa que não a verdadeira culpada.”. Logo, a pretensão punitiva deve recair sobre o sujeito que realmente cometeu o crime. Atualmente, qualquer pessoa pode figurar como agente ativo de um crime cibernético, haja vista a facilidade no acesso a informações e a prática do anonimato. Além disso, juntamente com a sensação de impunidade frente ao mundo virtual, é cada vez mais frequente que usuários comuns cometam atos ilícitos. Diante de todo o exposto, cabe diferenciar a figura do hacker e do cracker. Apesar de grande parte das pessoas acreditarem que o hacker é o criminoso da informática, esta não é a nomenclatura mais adequada. Tanto doutrinadores, bem como profissionais ligados à informática, preferem chamá-lo de cracker. Em geral, os hackers e os crackers possuem vasto conhecimento sobre informática e sistemas operacionais, porém, a principal distinção é a finalidade de suas práticas, na medida em que os primeiros são pessoas que realizam atividades positivas, não criminosas. Por isso, os hackers muitas vezes são contratados por empresas para o desenvolvimento de tecnologias de segurança, desenvolvendo antivírus, sistemas de bloqueio a acesso de dados não permitidos, dentre outras 381 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE funções; de modo a procurar por eventuais falhas que comprometam dados sigilosos ou o próprio funcionamento do sistema e corrigindo-as. Nesse sentido, Sandro D’Amato Nogueira traz o conceito de hacker: HACKER – Este indivíduo em geral domina a informática e é muito inteligente, adora invadir sites, mas na maioria das vezes não com a finalidade de cometer crimes, costumam se desafiar entre si, para ver que consegue invadir tal sistema ou página na internet, isto apenas para mostrar como estamos vulneráveis no mundo virtual. Várias empresas estão contratando há tempos os Hacker’s para proteção de seus sistemas, banco de dados, seus segredos profissionais, fraudes eletrônicas, etc.(NOGUEIRA, 2008, p. 61). Outro termo comumente associado aos hackers é o White Hat, para Marcos Flávio Araújo Assunção, seriam justamente os hackers do bem (= hackers dos chapéus brancos), pois não causam danos e, geralmente, agem por diversão ou desafio. Entretanto, com base no conceito acima transcrito, o fato dos hackers não procurarem causar danos, não significa que não podem cometer crimes. Em relação ao cracker, este sim é considerado o criminoso do mundo virtual, que faz uso de seu conhecimento apenas para benefício próprio ou destruição. Em outras palavras, ao invés de desenvolver medidas para correção de uma falha, que torna o sistema vulnerável, os crackers criam códigos para explorar essa falha e conseguir destruir determinado sistema ou obter informações pessoais, dados sigilosos, senhas, etc. Logo, pode-se dizer que a motivação dos crackers é criminosa, agindo normalmente premeditadamente com objetivo criminoso de obter vantagens ilícitas. Ao contrário do hacker, o cracker também pode ser denominado como Black Hat, conforme aponta Marcos Flávio Araújo Assunção (2008, p.13): “Hacker BlackHat: “Hacker do Mal” ou “chapéu negro”. Esse, sim, usa seus conhecimentos para roubar senhas, documentos, causar danos ou mesmo realizar espionagem industrial. Geralmente tem seus alvos bem definidos [...].”. Os criminosos virtuais ainda podem ser subdivididos conforme a área de atuação ou nível de conhecimento. Vejamos os seguintes exemplos: Carder: são pessoas que utilizam informações bancárias como números de cartões de crédito, cartões de conta corrente ou poupança, ou contas em sites de 382 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE movimentações bancárias, para beneficio próprio como comprar produtos, fazer transferência para contas de laranjas, entre outros atos ilícitos. Defacer: são os indivíduos conhecidos como pichadores virtuais, especializados em alterar a forma das páginas de sites na Internet. Eles utilizam a técnica Deface para pichar sites, explorando vulnerabilidades para conseguir acesso administrativo a um site para alterar a página inicial do mesmo, por uma que ele (invasor) criou. Geralmente, a página criada pelo invasor serve como um meio ilícito de protesto contra o site ou ideologia do site. Existem várias técnicas de Deface, entre elas estão SQL Injection e Cross Site Scripting (XSS). Basicamente, o SQL Injection permite inserir dados no site e/ou apagar as tabelas do banco de dados; enquanto Cross Site Scripting (XSS) é uma técnica que tem por objetivo explorar códigos de Javascript (linguagem de programação) e ler cookies (grupo de dados trocados entre o navegador e o servidor de páginas) para uma possível invasão. Phreaker: é o criminoso virtual especializado em ações voltadas para os sistemas de telecomunicações (telefonia móvel e fixa). Os Phreakers utilizam técnicas para burlar os sistemas de segurança das companhias telefônicas, muitas vezes para fazer ligações gratuitas ou conseguir créditos. Lammer: diferente do hacker e do cracker, o lammer não possui bom conhecimento em informática, mas tão-somente um conhecimento limitado, e que procura tutoriais na Internet que ensinam a fazer invasões para a realização de ações simples. Por fim, pode-se dizer que há a figura do Script Kiddie. Para experts em informática, diferente do noob (=newbie) que pode ser caracterizado como aprendiz de hackers, o Script Kiddie é o aprendiz de crackers. Normalmente são pessoas que ainda não tem domínio de técnicas para prejudicar dispositivos informáticos e obter benefícios próprios. Trata-se de crackers inexperientes. Quanto ao sujeito passivo dos crimes cibernéticos, podem ser pessoas físicas ou jurídicas (públicas ou privadas), titulares do bem jurídico tutelado, que utilizam qualquer tecnologia informática (computador, smartphone, pager, caixa eletrônica, tablete, etc.), estejam conectados ou não a Internet. Conforme Sandro D’Amato Nogueira (2008, p. 63): “Qualquer um de nós pode ser vítima, todos nós que temos acesso à rede mundial de computadores estamos arriscados a sermos vítimas dos 383 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE delitos informáticos”. Logo, qualquer pessoa está vulnerável a ser lesado, isto é, está à mercê de sofrer as consequências da ação do criminoso virtual. Sempre haverá o sujeito passivo, porém nem sempre este saberá que está sendo vítima de um crime virtual, até que a ação criminosa tome maiores proporções. 2.4 COMPETÊNCIA A grande dificuldade é a definição da competência para processo e julgamento dos crimes cibernéticos. Em relação ao local do crime, o Brasil adota a teoria da ubiquidade, de acordo com o que prescreve o artigo 6º do Código Penal, isto é, o local onde ocorreu a ação ou omissão, bem como onde se produziu ou deveria produzir o resultado. Neste caso, a lei penal de um Estado só impera dentro dos seus limites territoriais e o lugar do crime é tanto aquele em que se inicia a execução, quanto aquele em que houver o resultado. Logo, o crime de informática iniciado ou com resultados verificados no Brasil será apreciado conforme a legislação brasileira. É importante destacar o disposto no artigo 72 do Código de Processo Penal brasileiro que estabelece a competência pelo domicílio ou residência do réu no caso de desconhecimento do lugar da infração. E, ainda, o artigo subsequente (artigo 73, do CPP) que prevê uma exceção, no qual, tratando-se de ação exclusivamente privada, o querelante poderá optar pelo foro de domicílio/residência do réu ou pelo local da infração. No entanto, a maior dificuldade em se estabelecer a competência jurisdicional deve-se ao caráter transnacional (sem fronteiras) da Internet, sua velocidade e mobilidade, podendo haver conflitos de jurisdição como, por exemplo: determinado autor do crime esteja em um país e a vítima em outro; o que pode ser crime em um lugar pode não ser em outro; com o uso da Internet pode-se obter acesso a um sistema num determinando país, manipular dados em outro e obter resultados em um terceiro país; dentre outras hipóteses. Nossos dispositivos legais mandam aplicar a lei brasileira aos crimes cometidos no território nacional, ou seja, no âmbito de validade espacial do ordenamento jurídico do Brasil. Neste sentido, conforme o Manual Prático de Investigação do Ministério Público Federal: 384 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Nos termos do artigo 109, inciso IV, da Constituição brasileira, compete aos juízes federais processar e julgar os crimes cometidos em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, suas entidades autárquicas ou empresas públicas. Assim, é competência da Justiça Federal julgar os crimes eletrônicos praticados contra os entes da Administração Federal indicados nesse inciso. [...] Quanto à hipótese prevista no inciso V do artigo 109 da Constituição, ou seja, os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando iniciada a execução no país o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, vale lembrar que as condutas tipificadas no artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente e também o crime de racismo (tipificado na Lei 7.716/89) tem previsão em convenções internacionais de direitos humanos. Como a consumação delitiva normalmente ultrapassa as fronteiras nacionais quando os dois crimes são praticados através da internet, a competência para julgá-los pertence à Justiça Federal. A competência da Justiça Federal para processar e julgar a divulgação na Internet de material pornográfico envolvendo crianças e adolescentes já foi reconhecida por quatro Tribunais Regionais Federais (1ª, 3ª, 4ª e 5ª Regiões) brasileiros. Outros delitos não abrangidos pelas hipóteses acima mencionadas – por exemplo, os crimes contra honra de particular, praticados através da rede – deverão ser investigados e processados no âmbito das Justiças Estaduais, já que o simples fato do crime ter sido cometido por meio da internet não é suficiente para justificar a competência da Justiça Federal (MPF, 2006). Logo, em razão da matéria, a Internet, em tese, estaria sujeita a regulamentação da ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações), e, por conseguinte, a competência seria da União, desde que fosse considerado um serviço de telecomunicação. Tal fato teria amparo legal na Constituição Federal no artigo 21, inciso XI, que prevê a competência da União para explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei. No entanto, ocorre que a União é competente para amparar o serviço público propriamente dito (a rede), mas não prevê regulamentação para alguns crimes, não podendo, portando, considerar no caso dos crimes virtuais a competência de tal órgão. Cabe, portanto, analisar o contexto de cada caso individualmente. Em suma, de acordo com o trecho do Manual anteriormente citado, a Justiça Federal tem competência para processar e julgar, nos termos do artigo 109, incisos IV e V, da Constituição Federal (CF): - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no país, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente; 385 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da justiça militar e da justiça eleitoral. Vale ressaltar que, em relação aos crimes de pornografia infantil e racismo, o Brasil é signatário da Convenção da ONU sobre os direitos da criança (1989) e da Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial (1968). Assim, conforme entendimento já consolidado, além dos casos que atentem contra a União, suas autarquias ou empresas públicas; havendo a previsão em tratado internacional e o caráter transnacional do crime cibernético, a competência jurisdicional será da Justiça Federal (precedentes do STF, STJ e TRF’s da 1ª, 3ª, 4ª e 5ª Regiões), cabendo à Justiça Estadual a competência jurisdicional nos demais casos. 3 DISPOSITIVOS LEGAIS APLICÁVEIS E PROJETOS DE LEI A legislação nacional já prevê alguns tipos penais, como é o caso do artigo 72 da Lei nº. 9.504/97, que trata dos três tipos penais eletrônicos de natureza eleitoral: Art. 72. Constituem crimes, puníveis com reclusão, de cinco a dez anos: I - obter acesso a sistema de tratamento automático de dados usado pelo serviço eleitoral, a fim de alterar a apuração ou a contagem de votos; II - desenvolver ou introduzir comando, instrução, ou programa de computador capaz de destruir, apagar, eliminar, alterar, gravar ou transmitir dado, instrução ou programa ou provocar qualquer outro resultado diverso do esperado em sistema de tratamento automático de dados usados pelo serviço eleitoral; III - causar, propositadamente, dano físico ao equipamento usado na votação ou na totalização de votos ou a suas partes (BRASIL, Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997). Em relação aos direitos autorais, estes estão garantidos pela Constituição da República Federativa do Brasil. Tanto o artigo 12, caput, §§ 1º e 2º, da Lei Federal nº. 9.609/98, quanto o artigo 184, do Código Penal brasileiro tipificam o crime de violação de direitos autorais, sendo que a referida lei federal prevê, especificamente, sanção para quem violar direitos de autor de programa de computador. 386 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Ainda, para determinados crimes comuns (ex.: calúnia, estelionato) envolvendo dispositivos informáticos, aplica-se os tipos penais já descritos no Código Penal de 1940. Vejamos os seguintes exemplos: Crimes contra a honra: subdividem-se em calúnia, difamação e injúria. Eles estão previstos, respectivamente, nos artigos 138, 139 e 140, do Código Penal. O CP apresenta o conceito de crime de calúnia, dizendo ser o fato de atribuir a outrem, falsamente a prática de um fato definido como crime. Julio Fabbrini Mirabete traz a seguinte explicação acerca deste tipo penal: Pratica o crime quem imputa, atribui a alguém, a prática de crime, ou seja, é afirmar, falsamente, que o sujeito passivo praticou determinado delito. É necessário, portanto, para a configuração da calúnia, que a imputação verse sobre fato determinado, concreto, específico, embora não se exija que o sujeito ativo descreva suas circunstâncias, suas minúcias, seus pormenores. Trata-se de crime de ação livre que pode ser cometido por meio da palavra escrita ou oral, por gestos e até meios simbólicos. Pode ela ser explícita (inequívoca) ou implícita (equívoca) ou reflexa (atingindo também terceiro). A imputação da prática de uma contravenção não constitui calúnia, mas pode caracterizar o delito da difamação (MIRABETE, 2003, p. 687). Para Damásio, o crime de calúnia constitui: Crime formal, porque a definição legal descreve o comportamento e o resultado visado pelo sujeito, mas não exige sua produção para que exista crime, não é necessário que o sujeito consiga obter o resultado visado, que é o dano a honra objetiva do agente (JESUS, 2007, p. 219). Com base nas conceituações supracitadas, o crime de calúnia tutela a honra objetiva do indivíduo e para a sua consumação é necessário que terceira pessoa tome conhecimento do fato. Em relação ao crime de difamação, Damásio explica que: Difere da calúnia e da injúria, enquanto a calúnia definido como crime, na difamação o fato é reputação do ofendido. Além disso, o tipo de normativo da falsidade da imputação, o que é difamação (JESUS, 2007, p. 225). existe imputação de fato meramente ofensivo a calúnia exige elemento irrelevante no delito da 387 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE O artigo 139, do CP estabelece este crime como sendo o fato de atribuir a outro a prática de conduta ofensiva à sua reputação. Neste caso, há a tutela da honra objetiva, e o crime se consuma quando terceiro toma conhecimento do fato, visto que a difamação fere a moral da vítima, com a intenção de torná-la passível de descrédito na opinião pública. E, por fim, Julio Fabbrini Mirabete dispõe acerca do crime de injúria descrito no artigo 140, do CP: A conduta típica é ofender a honra subjetiva do sujeito passivo, atingindo seus atributos morais (dignidade) ou físicos, intelectuais, sociais (decoro). Não há na injúria imputação de fatos precisos e determinados, como na calúnia e difamação, mas apenas de fatos genéricos desonrosos ou de qualidades negativas da vítima, como menosprezo, depreciação, etc.(MIRABETE, 2003, p. 692). Neste tipo penal, caberá ao julgador analisar cada caso concreto, visto que é difícil saber se realmente houve a ofensa, isto é, se a real intenção do agente era ofender. A injúria fere a honra subjetiva, que constitui o sentimento próprio do cidadão. Neste crime, há a imputação de qualidade negativa ao sujeito passivo, abatendo seu ânimo, e ofendendo verbalmente, fisicamente ou por escrito, a dignidade ou o decora da vítima. Torna-se muito complexa a distinção entre brincadeira e real imputação de injúria, podendo citar, como exemplo, a pessoa que ao ver uma foto da amiga em um site da Internet faz um comentário sobre seus atributos físicos, sem a intenção de injuriar. A pedofilia é outro crime comum que pode estar associado ao uso de dispositivos informáticos. É frequente a ocorrência deste crime, e é motivo de comoção social, porém não é raro encontrar na Internet, imagens ou vídeos com conteúdos pornográficos envolvendo menores. Diante disso, a pedofilia é um dos poucos crimes que tem sua atuação no ambiente virtual tipificada, através do artigo 241, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90), que dispõe: 388 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Art. 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo; II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo (BRASIL, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). A referida lei sofreu algumas alterações no ano de 2008, visando proporcionar maior combate a pedofilia, vez que, por exemplo, antes de sua modificação, não havia punição para pessoas que mandavam e-mails contendo arquivos envolvendo sexo ou conteúdo pornográfico com crianças e/ou adolescentes. Além dos crimes supracitados, também, pode-se fazer referência aos crimes de estelionato (artigo 171, do CP), de dano ao patrimônio (artigo 163, do CP), de sabotagem informática (artigo 202, do CP), dentre outros. No Brasil, há, ainda, diversos projetos de lei que estão em trâmite perante no Congresso Nacional. Como exemplo, podemos citar o PLC (projeto de lei da Câmara) 89/2003, de autoria do Deputado Luiz Piauhylino, que busca alterar o Decreto-Lei nº. 2.848/40 – Código Penal e a Lei nº. 9296/96, dispondo sobre os crimes cometidos no campo da informática e suas penalidades, propondo, ainda, que o acesso de terceiros não autorizados a informações privadas mantidas em redes de computadores, dependerá de prévia autorização judicial. Neste ano, entraram em vigor as Leis nº. 12.735/2012 e nº. 12.737/2012 que tratam especificamente dos crimes virtuais. Ambas foram aprovadas pela Câmara dos Deputados, pelo Senado e sancionadas pela presidente Dilma no ano passado. A primeira diz respeito à Lei Azeredo (oriunda do PL 84/99) e a segunda, que foi apelidada de Lei Carolina Dieckmann (oriunda do PL 2793/2011), tipifica alguns crimes cibernéticos, como a invasão de dispositivos informáticos, clonagem de cartões de crédito ou débito e a indisponibilização/perturbação de serviços telemáticos. 389 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE As referidas leis só entraram em vigor no início do mês de abril deste ano (02/04/2013). Dentre elas, a Lei “Carolina Dieckmann” foi a que causou maior repercussão. Esta lei dispõe basicamente que, aquele que invadir dispositivo informático alheio (computadores, tablets, notebooks, celulares, entre outros), conectado ou não à Internet, alterar ou destruir dados/informações, criar programas de violação de dados ou divulgar e negociar informações obtidas de forma ilícita, isto é, sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo informático, poderá ser punido com multa e até com pena privativa de liberdade. Também estabelece que se o crime praticado com fins ilícitos for cometido contra o presidente da República, do Supremo Tribunal Federal (STF), governadores, prefeitos, entre outros cargos públicos, a pena poderá ser aumentada de um terço à metade. Ainda, passou a ser crime interromper serviço telemático ou de informática de utilidade pública, e o uso de dados de cartões de débito e crédito sem autorização do proprietário também está previsto na lei, sendo equiparado à falsificação de documento particular. Para alguns doutrinadores e profissionais de segurança da informação, alguns pontos da lei ainda ficaram em aberto, isto é, seus dispositivos são amplos, podendo gerar uma dupla interpretação. Além disso, acreditam que as penas são pouco inibidoras, não contribuindo de modo efetivo no combate ao crime cibernético no Brasil, e permitindo o enquadramento destes atos em crimes de pequeno potencial ofensivo. Embora, muitas vezes, o que acontece é que uma apropriação indevida de dados pode ser mais prejudicial que um furto comum e, por isso, não deveria ter pena mais baixa, por exemplo: casos de espionagem que podem levar à concorrência desleal. O artigo 2º da referida lei, é considerado polêmico, pois condiciona o crime à violação indevida de mecanismo de segurança. Em sua redação, a infração é definida como a invasão de dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações. Logo, tendo por base a literalidade do dispositivo legal, a necessidade de haver a violação de um mecanismo de segurança (ex.: códigos, senhas ou dados biométricos) pode tirar a responsabilidade de quem cometeu o crime por falta de atenção da vítima. E, o parágrafo primeiro deste mesmo artigo pode criminalizar profissionais da área de TI 390 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE (Tecnologia da Informação) que trabalham na busca de brechas de segurança em sistemas, vez que sua redação estabelece punição para quem produz dispositivo ou sistemas eletrônicos que permitem invadir dispositivos. Diante das questões levantadas, deve-se esclarecer que a invasão, para ser criminosa, deve se dar sem a autorização expressa ou tácita do titular dos dados ou do dispositivo. Logo, o profissional que realiza teste de “intrusão” nos sistemas, em tese, não pode ser punido, por não estarem reunidos todos os elementos do crime. Porém, para isso, é recomendável que as empresas de segurança contratantes adaptem seus contratos de serviços e pesquisa neste sentido, prevendo expressamente a exclusão de eventual incidência criminosa nas atividades desenvolvidas. Outra questão polêmica acerca da lei que prevê os crimes cibernéticos é a finalidade de “obter dados”. Para parte dos juristas, o simples acesso não seria crime, só se falando em obtenção no sentido de adquirir cópia dos dados. Já para outra corrente, o mero acesso a dados já agride o bem jurídico tutelado pelo Direito Penal, e demonstra a intenção em obter dados, uma vez que já permite ao criminoso virtual, em determinados casos, beneficiar-se com as informações obtidas. Diante deste paradigma, é o Judiciário quem vai interpretar e julgar estas questões, vez que o agente que invade determinado dispositivo informático, sem autorização, para tão somente demonstrar a insegurança e cooperar para o aprimoramento dos controles, teoricamente, não responderia pelo crime. Ou ainda, a vítima que eventualmente forneça credenciais/dados de acesso ou até mesmo ingresse voluntariamente em determinado sistema que libera o seu acesso, em tese, não teria amparo legal, podendo o agente, diante do caso concreto, responder por outros delitos do Código Penal, de acordo com a extensão do dano. Apesar das críticas, a lei pode ser considerada benéfica, na medida em que demonstra, de certo modo, que houve uma preocupação do legislativo com questões relacionadas ao ambiente virtual, definindo normas que amparam os usuários das redes. Entretanto, embora a nova lei seja considerada uma evolução, para profissionais da área de Inteligência Tecnológica da Polícia Judiciária, ela não trouxe nenhuma mudança significativa, vez que não dispõe de mecanismos para que a Polícia tenha maior acesso aos dados dos provedores de serviços que auxiliem na 391 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE resolução do caso, tendo em vista que o procedimento de investigação consiste, basicamente, em: 1) Identificar o crime e o meio empregado. Exemplos: e-mail (terra, hotmail, etc.), sala de bate-papo (chats), página da web (blogs, sites, etc.), redes sociais (orkut, facebook, etc.), entre outros; 2) Preservar as evidências para salvar e garantir a integridade dos dados (materialidade do crime), sempre que possível, notificando e contando com a colaboração dos provedores; 3) Identificar os responsáveis pelo serviço (sites nacionais [.br] - www.registro.br / sites estrangeiros - www.whois.com); 4) Obter a quebra do sigilo de dados telemáticos (IP). Neste caso é necessária ordem judicial para obtenção destes dados de conexão por parte dos provedores de serviço e de acesso à Internet (logs): endereço IP, data, hora e referência GMT da conexão e dados cadastrais do investigado. Caso não haja vínculo do provedor com o Brasil, será necessário recorrer à cooperação internacional; 5) Obter a quebra do sigilo de dados telemáticos do usuário para identificar a máquina de onde o crime foi praticado (a partir do IP fornecido); 6) Por fim, para a obtenção de provas de autoria e materialidade do crime: poderá ser realizada a busca e apreensão do computador, a oitiva do assinante da conexão, o laudo pericial no computador e demais materiais apreendidos, e ainda, se necessário, a interceptação de e-mails. Portanto, trata-se de uma investigação complexa, no qual a obtenção de dados exige a participação da Justiça, o que acarreta em um procedimento moroso, fazendo com que na maioria das vezes a vítima desista de procurar a Polícia. Além disso, não há lei que estabeleça a obrigatoriedade no armazenamento destes logs de conexão por determinado período pelos provedores, sendo que, atualmente, a média de guarda é de somente três meses, o que é relativamente pouco tempo diante do andamento dos procedimentos judiciais. Cabe citar a lei estadual de São Paulo nº. 12.228/06, que estabeleceu a obrigatoriedade das lan houses e cybercafés de promoverem o cadastro de seus clientes (inclui nome completo, data de nascimento, endereço, telefone, RG) e ainda manterem o registro dos horários – inicial e final – de conexão, além do equipamento utilizado pelo cliente, pelo período 392 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE de 60 meses. A referida lei estadual tem como objetivo coibir os crimes de informática nestes estabelecimentos, com a identificação dos usuários. Em relação à Lei nº. 12.735, conhecida como Lei Azeredo, após um longo processo de tramitação perante o Congresso Nacional, pode-se dizer que esta lei carregou pouca coisa de seu projeto original, vez que sua redação era considerada excessivamente restritiva, pois atribuía aos provedores, por exemplo, a função de fiscalizar os usuários da rede. Além disso, em sua redação original, o projeto de lei do Senador Eduardo Azeredo pretendia tipificar uma das práticas mais utilizadas pelos criminosos, que é a disseminação de vírus, seja para obtenção de senhas de banco, seja para induzir a vitima ao depósito de pagamentos indevidos. Essa prática, portanto, ainda não pode ser punida ante a falta de tipicidade da conduta. Neste caso, só poderá ser punido o agente que difunde códigos maliciosos, os chamados vírus, e que, em decorrência desse fato cometa outra atividade ilícita prevista em nosso ordenamento jurídico. Por fim, a Lei Azeredo indica que as Polícias Judiciárias, mediante regulamentação, devem estruturar equipes e setores especializados para o combate de crimes cibernéticos. E, estipula que, em casos de crime de discriminação (Lei 7.716 de 1989), o juiz poderá solicitar a retirada de conteúdo discriminatório não somente de rádio, televisão ou Internet, mas de qualquer meio possível; dentre outras providências. 4 RESPONSABILIDADE DOS PROVEDORES Primeiramente, cabe fazer a seguinte diferenciação: os provedores de serviços são os que oferecem utilidades na Internet, remuneradas ou não, como hospedagem, e-commerce, serviços de e-mails, chats, dentre outros (ex. Google, Mercado Livre, Yahoo, Microsoft, Facebook, etc). Ainda, registram dados de conexão e podem ou não exigir dados cadastrais. Já provedores de acesso são os que fornecem acesso à Internet (rede mundial de computadores), sendo que estes, por sua vez, exigem o cadastro do usuário titular do meio eletrônico/Internet utilizado para o crime. (ex. Embratel, Net, GVT, Brasil Telecom, Claro, etc.). 393 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Em regra, o crime cibernético se dá nos provedores de serviços ou por meio destes serviços, que não exigem cadastro de dados pessoais para a utilização, ensejando, muitas vezes, a ocorrência do anonimato. Inicialmente, deve-se acionar o provedor de serviços, para que este informe os dados de conexão (data, hora - GMT, IP). Com estes dados, deve-se, na sequência, acionar o provedor de acesso, para que este informe os dados físicos (nome, RG, CPF, endereço, telefone, etc.) do titular da conta de Internet que estava conectado na exata data e hora identificada pelo provedor de serviços. É com esta correlação, envolvendo provedor de serviços e provedor de acesso, que se pode chegar à autoria de crimes envolvendo o meio virtual. Diante das informações apresentadas, a questão da responsabilidade recai sobre os provedores de serviços. Neste caso, poderá haver responsabilidade civil, uma vez que sua atividade pode ocasionar danos a terceiros. De acordo com Maria Helena Diniz a responsabilidade civil pode ser definida como: A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato por ela mesmo praticado, por pessoa por quem ela responde por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal (DINIZ, 2006, p. 40). Logo, o provedor de serviços pode responder solidariamente ou subsidiariamente pelos atos praticados pelo usuário. Por exemplo, por negligência, depois de devidamente notificado, o provedor deixou de retirar conteúdo ofensivo. No entanto, não se considera o dano moral um risco inerente à atividade dos provedores de serviços e não se pode exigir que a fiscalização, por parte destes, de todo conteúdo postado, pois isso eliminaria o maior atrativo da rede, que é a transmissão de dados em tempo real e poderia ensejar numa violação à privacidade/intimidade. Na esfera penal, pelo fato dos servidores terem a guarda dos logs de conexão, isto é, informações que possibilitam a identificação da máquina (ex.: computador), é considerado um forte aliado nas investigações criminais, caso venha a contribuir para a liberação de dados. 394 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Vale frisar que os provedores de acesso à Internet também detem informações que o cliente repassou através do cadastro e as informações de tudo que foi acessado, modificado, enviado ou recebido pelo seu cliente, podendo assim aumentar consideravelmente a probabilidade de identificar criminosos e na instrumentalização de provas. 5 CONCLUSÃO Os crimes cibernéticos trouxeram a crescente necessidade de adequação e modificação das normas penais presentes no ordenamento jurídico, bem como a criação de novos tipos penais, até então, objetos de projetos de lei. Dentre os problemas enfrentados para o combate aos crimes cibernéticos estão: a ausência de canal único de denúncias, uma cooperação internacional pouco eficiente, muitas lan houses e redes abertas, a falta de estrutura na área pericial, o pouco comprometimento dos provedores, a constante capacitação dos crackers, falta de identificação dos usuários da rede, a possibilidade de camuflagem dos dados e a utilização de dados falsos dificultam a identificação do sujeito ativo, dentre outros fatores. Além disso, pelo caráter transnacional da Internet, um dos maiores enfrentamentos é a questão da competência para julgamento das infrações penais. Diante fato, o que se faz necessário é uma ação conjunta a nível global, de maneira que se acorde e regulamente - prevenindo e reprimindo – a prática de atos ilícitos no meio virtual. Esta é apenas uma possibilidade, o que se faz mister é o acompanhamento das transformações tecnológicas e das novas formas de criminalidade, a fim de que o Estado possa exercer sua função, conferindo maior segurança aos usuários dos meios eletrônicos de informação e comunicação, punindo infratores, bem como resguardando direitos fundamentais inerentes a todo cidadão. Assim, dentre as formas de combate à criminalidade no ambiente virtual pode-se citar: a criação de novas estratégias de segurança (ex.: passwords – senhas, firewall – dispositivos de segurança de dados das redes de computadores), de novas formas de controle e incriminação das condutas lesivas e a necessidade de uma ação conjunta dos países, por meio de convenções/tratados. 395 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Verificou-se que os provedores de serviços nem sempre podem ser responsabilizados por infrações no ambiente virtual, haja vista a impossibilidade de se conhecer e ter controle sobre todo o conteúdo difundido pela Internet. Por fim, pode-se dizer que é possível é identificação do agente criminoso que faz uso de seu vasto conhecimento para fins ilícitos. No entanto, ainda perdura um processo burocrático e demorado, do qual muitas pessoas não tem conhecimento, deixando de buscar o auxílio adequado (delegacias especializadas); fazer denúncias (que pode ser feita através da Internet); ou retardando a investigação do caso, o que pode acarretar em prejuízos, no sentido de comprometer a obtenção de provas para o processo, vez que nos crimes cibernéticos a perícia é de suma importância. Por sua vez, solucionado o caso, poderá ser imposta indenização por danos morais e/ou materiais previstos em lei e até mesmo pena privativa de liberdade ao infrator. 396 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 6 REFERÊNCIAS ASSUNÇÃO, Marco Flávio Araújo. Segredos do hacker ético. 2. ed. Florianópolis: Visual Books, 2008. BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 13 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 27 maio. 2013. BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 30 set. 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm>. Acesso em: 28 maio. 2013. CASTRO, Carla Rodrigues Araújo de. Crimes de informática e seus aspectos processuais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro.20.ed.v.7. São Paulo. Saraiva, 2006. FERREIRA, Ivette Senise. A criminalidade informática. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Direito & Internet: aspectos jurídicos relevantes. 2 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2005. JESUS, Damásio. Direito penal: dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Manual Prático de Investigação de Crimes Cibernéticos. Disponível em: <http://www.mpce.mp.br/orgaos/CAOCRIM/pcriminal/ManualdeCrimesdeInform%C3 %A1tica-versaofinal.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2013. MIRABETE, Julio Fabbrini. Código penal interpretado. 3.ed.São Paulo: Atlas, 2003. 397 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE NOGUEIRA, Sandro D’Amato. Crimes de informática. São Paulo: BH Editora, 2008. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 1998. 398 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA: UMA REFLEXÃO SOB A ÓTICA DO CINEMA. THE CRIMINALIZATION OF POVERTY: A REFLECTION FROM THE PERSPECTIVE OF THE CINEMA Marcela Guedes Carsten da Silva1 Professora Dra. Maria Luisa Scaramella2 1 Acadêmica do 8º período do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba. Possui doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2010), com estágio no "Institut des Textes et Manuscrits Modernes" (ITEM), na "École Normale Supérieure" (2006-2007), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (2004) e graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1998). Atualmente é professora de Sociologia e Antropologia do Direito no Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA), membro do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR), na Universidade de São Paulo (USP), e do grupo de pesquisa "Trajetórias e etnografia: narrativas, eventos, experiências", na UNICAMP (ambos cadastrados no CNPq). Tem experiência na área de Ciências Sociais com ênfase em Antropologia, atuando principalmente nas seguintes áreas e temas: antropologia, antropologia do direito, sociologia, abordagem biográfica, trajetória, história de vida, narrativas biográficas. 2 399 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 400 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO A proposta deste artigo é discutir e propor uma reflexão quanto ao sistema carcerário brasileiro a partir da ótica dos documentários: O Prisioneiro da Grade de Ferro - Autorretratos de Paulo Sacramento, Ônibus 174 de José Padilha e Juízo e Justiça de Maria Augusta Ramos. A análise fornecia pela ótica cinematográfica nos apresenta outra perspectiva, como uma resposta “contra cultura” proveniente da parcela da sociedade que é preponderante no sistema prisional. Como uma forma de preencher as lacunas deixadas pelo processo penal, considerando o sujeito de direito muito além das tipificações que lhe são correspondentes, pela existência de circunstâncias que vão além dos parcos fatos narrados nos autos. A análise fornecida pelo cinema considerando as produções fílmicas pensadas sob a ótima de Marc Ferro como documentos históricos, e a fim de se lançar uma nova perspectiva para se pensar o processo penal, bem como todo contexto que o rodeia, este trabalho propõe uma análise de quatro documentários que visam problematizar questões concernentes a dilemas sociais vividos atualmente. Palavras-chave: Criminalização da Pobreza, sistema penitenciário, sociologia, cinema. 401 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT The purpose of this article is to discuss and propose a reflection on the Brazilian prison system from the perspective of the documentaries: “O Prisioneiro da Grade de Ferro- autoretratos” from Paulo Sacramento, “Ônibus 174” from José Padilha, “Justiça” and “Juízo” from Maria Augusta Ramos. The analysis provided by the film presents us with another perspective, as a response "against culture" from the portion of society that is prevalent in the prison system. As a way to fill the gaps left by the criminal proceedings, considering the subject of rights beyond the typifications that are relevant for the existence of circumstances beyond the meager facts presented in the record. The analysis provided by the cinematic optical presents us another perspective, as a response "against culture" from the portion of society that is predominant in the prison system. As a way to fill the gaps left by the criminal proceedings, whereas the subject of law far beyond the crime that you are corresponding, by the existence of circumstances beyond the meagre facts narrated in the records. The analysis provided by the film considering the movie productions designed under the great of Marc Ferro as historical documents, and in order to launch a new perspective to think about the criminal proceedings, as well as all the surrounding context, this paper proposes an analysis of four documentaries that aim to discuss issues concerning social dilemmas experienced today. Key Words: Criminalization of poverty, penitentiary system, sociology, cinema. 402 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 BREVE ANALISE SOBRE A HISTÓRIA E O CINEMA O Cinema, já usado pelo Estado como ferramenta para propagar suas ideologias, bem como sua capacidade de comunicar-se em massa, serve também como ferramenta de análise histórica. Nesse sentido, Ferro apresenta o cinema como uma forma de contra poder, pois pode “sem intenção do cineasta, revelar zonas ideológicas e sociais das quais ele não tinha necessariamente consciência, ou que ele acreditava ter rejeitado” (FERRO, 1992, p. 16). Portanto, podemos afirmar que as produções cinematográficas são documentos privilegiados, na medida em que despertam no nosso inconsciente óptico, não necessariamente de uma forma proposital, a busca de novos caminhos deixados pelo diretor. Independente da vontade, quase que como uma negligência, a câmera captura cenas que carregam elementos que são inerentes a imagem, ou seja, transparecessem certos aspectos da nossa convivência. Um exemplo de tal acontecimento é quando, por exemplo, temos situações em que um filme enseja várias intepretações que não necessariamente seriam as inicialmente idealizadas. Aliado a este caráter independente (leia-se aqui independente no sentido de poder abarcar varias interpretações cinematográficas), o cinema é uma forma de se apresentar a “conta cultura”. Quando temos grupos de marginalizados, que não teriam muita representatividade nos registros tradicionais, tomando a frente e se impondo na medida em que assumem o controle dos seus próprios registros iconográficos, acabam por complementar os elementos da história tradicional. Assim como Ferro afirma, “Eu somente escrevi as linhas para lançar o alarde: certamente o cinema não é toda História. Mas sem ele, não se poderia ter o conhecimento do nosso tempo” (FERRO, 1992, p. 81). A escolha de filmes se deu pelo fato de cada um deles mostrar algo que leve a uma reflexão quanto ao sujeito sendo pensando além dos autos. A escolha da categoria documentário veio por conta dos elementos artísticos que lhe cercam. A retratação das pessoas comuns, não de atores profissionais transparece aspectos particulares da nossa convivência, possibilitando uma releitura do sujeito. No curso de Direito aprendemos que não é possível encontrar a “verdade real”, mesmo que todos os esforços estejam voltado a isso. Destarte, é no mínimo válida a consideração destes testemunhos, que se personificam como depoimentos de 403 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE setores da sociedade que são geralmente excluídos, como formas de se pensar a aplicabilidade da lei? 2 PRISIONEIRO DA GRADE DE FERRO: AUTORETRATOS Em 2001 Paulo Sacramento e sua equipe ministraram aulas de vídeo dentro do então maior presídio da América Latina, o Carandiru, para os moradores dos pavilhões nº 6, 8 e 9. Depois de quase sete meses o material arrecadado virou a produção premiada no 8º Festival Internacional de Documentários – É Tudo Verdade. As cenas registradas variavam entre os momentos de convivência comum dentre os presos até os momentos mais obscuros à nossa realidade fora do cárcere. Os próprios presos passaram a registrar seu cotidiano, além da equipe que os acompanhava. Na primeira cena do filme temos a imagem da penitenciária sendo “desimplodida”, a cena aparece como se os prédios estivessem sendo reconstruídos a partir dos estilhaços. Em uma entrevista (GARDINER; VALENTE, 2004) Sacramento esclareceu que o seu objetivo era passar a ideia de que o filme não estava sendo produzido numa época em que um presídio estava sendo destruído, mas justamente o contrário, para que o filme fosse situado na época em outras vagas estavam sendo geradas, que outros presídios estavam sendo construídos, o que ele resgata no final do filme quando em das cenas finais do documentário, temos o pronunciamento de Geraldo Alckmin, no seu discurso de inauguração de uma das novas dimensões da penitenciária, enaltecendo os números o número de vagas criadas nos últimos 100 anos, fazendo uma comparação à outros governos em relação ao número de vagas criadas para a penitenciária. Reconhecendo a grandiosidade de seu feito como um recorde, senão do mundo, pelo menos do Brasil. Em um das cenas do documentário, dois detentos “dichavam” a maconha enquanto explicam como funciona a comercialização da droga, um dos homens faz o seguinte questionamento: 404 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE - Será que se o Estado estivesse dando mais atenção pra nós estaria acontecendo isso aqui, agora nesse momento? Nós não estaríamos numa oficina, trabalhando, fazendo um curso ou qualquer outra coisa? - Eu acho que a preferência deles é essa mesmo. Por causa que, jamais eles vai querer nós bem informado para bater de frente com as patifaria do jeito que eles agem né mano. Se nós... Se nossa mente estivesse mais aberta, mais um estudo, mais uma informação melhor, nós ia bater de frente com eles e nós ia puxar o tapete deles. Pra quem nunca fez nada, não aprontou nada, já não tem espaço no mercado de trabalho, eles vão querer abrir pra nós? Com o objetivo de democratizar a criação da própria imagem, trazendo a perspectiva do próprio detento, Paulo Sacramento nos traz imagens que desmistificam a imagem comumente veiculada pela mídia quanto aos presos. Motivado principalmente pela mediocridade com que a mídia se posiciona quando a estes assuntos, o diretor buscou produzir algo com que os presos se identificassem e que servisse como uma forma de se entender os problemas e as contradições desta realidade. O documentário aborda não só a rotina, mas também mostra a vida de vários presos, mostrando toda a cultura desenvolvida dentro do presídio. Um dos pontos mais interessantes na produção é quanto a expressão artística. Além disso, temos também os registros das alas da penitenciária, desde a ala hospitalar em que constatamos o nível de precariedade da insuficiência da assistência, que não consegue vencer o número de casos que aparece no pavilhão todos os dias, e nos casos em que se requer um procedimento cirúrgico, vemos a questão da insuficiência estatal. É visível a vontade dos presos em se apresentar, como uma forma de revelar todo um talento que existe e é esquecido por trás da figura estigmatizante que lhe é imposta, até como uma forma de demonstrar que eles podem progredir na vida. Sacramento nos coloca diante de cenas que poderiam ser cômicas, se não fossem tristes considerando a seriedade da matéria. Ao vemos as cenas do detento, William Guimarães de Souza, que passa pela análise da Comissão Técnica de Classificação (CTC), responsável por orientar o magistrado quando a concessão de progressão de regime, nos leva ao questionamento inevitável quanto a maneira que a análise é conduzida. 405 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Do questionário sobrevém um relatório fundamentando um parecer desfavorável ao pedido de progressão para o regime semiaberto. A manifestação do técnico aponta as ‘inquietadoras características’ constatadas em William que o impediriam de obter o benefício, tais como ‘imaturidade psíquica’, ‘crítica inadequada sobre o delito’ e ‘egocentrismo’, o que seria aceitável caso o plano anterior não tivesse mostrado as perguntas feitas ao detendo. Inquirições genéricas como ‘Você sabe com que idade você largou das fraldas?’ perfazem um questionário que acaba sendo impessoal, considerando o tempo de entrevistas e a profundidade das perguntas, chegando até mesmo serem irônicas como, ‘Você é amigo de alguém importante, assim, como Bill Clinton, Madonna?’ entre outras. Nas cenas seguintes, e fazendo um contra ponto com a atuação do CTC temos as celas isoladas, as chamadas “solitárias”, um conjunto de dezoito celas que em média suportariam seis detentos cada, que geralmente estão pagando alguma penitência por ter infringido alguma regra disciplinar da casa. A equipe consegue passar a câmera pela abertura da porta, possibilitando o registro do local em que os presos ficam. Constata-se que o número máximo inicialmente indicado de presos por cela é desrespeitado, e logo vemos celas abrigando 14 pessoas. Nesse contexto, verificase o revezamento ‘horizontal e vertical’ no qual os presos são obrigados a se revezar para conseguirem dormir e pegar um ar livre que entra pela estreita janela no alto da cela. Comumente o espaço é ordenado com redes improvisadas que possibilitam uma maior comodidade, na medida do possível, embora seja considerável a ausência de condições básica de higiene, como, por exemplo, a falta de papel higiênico, pasta de dente, água para beber e para dar a descarga. “O inferno dentro da cidade grande”, assim classificado por um dos presos, a ponto de termos, no depoimento do detendo Robinho a seguinte constatação: “eu acho que é muito mais humano dar um tiro na cabeça do outro”. Ao final temos o registro dos depoimentos de vários funcionários que passaram pelo Carandiru, logo concluímos que não só a penitenciária precisa de uma reforma, mas principalmente a necessidade de se repensar o sistema penal como um todo. Quando questionado sobre qual era sua conclusão após ter realizado o filme, o Paulo Sacramento fala sobre como existe um desperdício da capacidade e 406 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE criatividade dos presos. Antes do lançamento oficial do filme, foi realizada uma pré estreia na Penitenciária Feminina da Capital em São Paulo, o Jornal do Brasil registrou alguns dos depoimentos das presas após a sessão. Muitas ficaram impressionadas com a situação precária da Penitenciária Masculina, já outras ficaram satisfeitas ao ver a realidade carcerária sendo publicizada. Um das presas, a Sra. Vilma, afirmou “o que eu vi pesa, dói, machuca, por mostrar um lugar pior que o nosso. Mas é importante para que a sociedade veja outras facetas do ser humano preso. Pois aqui dentro perdemos nossa melhor parte: a capacidade de amar.” (FONSECA, 2004). De uma forma fascinante o documentário expande nossa visão sobre aquelas indivíduos, penetrando em suas personalidades, histórias de vida e principalmente desmistificando a simples ideia de redução a um papel social do individuo tido então como “criminoso”. Em uma entrevista concedida à Eduardo Valente e Ruy Gardnier, na sessão do Cineclube realizada no Cine Odeon em Abril de 2004, Paulo Sacramento e Aloysio Raulino - diretor e direito de fotografia respectivamente - responderam a alguns questionamentos e falaram mais sobre a produção do documentário. Segundo o diretor, a proposta era dar a oportunidade para que os próprios presos produzirem sua imagem, para que os próprios presos pudessem se reconhecer no filme. (OLIVEIRA, 2004). Se no início do filme temos os nomes de seus respectivos números, no final temos o resgate da individualidade e da reconstrução da personalidade dos sujeitos que então eram reduzidos a um artigo. A capacidade de reaver os outros papéis sociais desempenhados pelos protagonistas é talvez, um dos maiores ganhos do filme. A evolução da narrativa proporciona esse percurso do prisioneiro que ao longo do filme vai tomando proporções mais humanas, desmistificando sua imagem. A produção de Sacramento vem como uma forma de alarde, não como algo a ser esquecido após a sessão, mas como uma forma de se fomentar toda uma discussão acerca da conduta Estatal frente a falência das suas políticas quanto ao sistema carcerário e de repressão ao crime. Em uma das cenas finais do filme, como uma forma de personificar esta ideia, temos a declamação de um poema por um dos presos, Claudinho: 407 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Silêncio total pavilhão 8. Quem sou eu? O filho do sofrimento. Menino de rua, delinquente, marginal. É um menino igual a tu fostes, só com uma diferença. Nasceste em família forte, não tão forte quando a morte. Que não queres evitar. Tirando o guri da rua e dando para ele um lar. Antes que alguém o arme e ele venha te matar. A manchete vai ser boa no noticiário popular. “Mataram o Doutor à toa ao tentarem lhe roubar” O doutor foi sepultado, o menino algemado. Foi parar lá na FEBEM, onde dizem passar bem. Fica ligeiro moro polícia O crime tá voltando Original Paz, justiça, liberdade. O poema termina com o lema do PCC – Primeiro Comando da Capital, que vêm como uma forma de mensagem a ser dita. O diretor se refere a este momento como uma leitura bem avançada do filme, no sentido de nos questionarmos sobre como esta sendo a atuação do Estado frente aos frequentes problemas de criminalidade. Ao analisarmos o poema, temos não somente um momento de desabafo de uma história que se repete constantemente, mas também da constatação de que o problema não esta sendo solucionado, e com certeza após vermos as imagens do documentário, esta longe de ser. As políticas repressivas do Estado que “em nome da justiça” camuflam uma verdadeira guerra que ocorre diariamente, somente agravam os índices de criminalidade que não diminuem por conta de uma legislação mais rígida. Enquanto as práticas criminais estão se atualizando cada vez mais, vemos o Estado respondendo sempre da mesma forma, e junto a isso o evidente fracasso em sua tentativa frustrada de conter os desvios da sociedade. Pode-se dizer que o filme não só nos coloca frente a outra perspectiva da realidade, mas também nos deixa com aquela angústia e sensação de incomodo. Aquela sensação que devemos, de certa forma incitar nas pessoas, para que proporcione uma discussão quanto as políticas do Estado. 408 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 3 ÔNIBUS 174 Da produção de José Padilha podemos destacar a questão da construção bibliográfica de Sandro, personagem principal da trama vivenciada no dia 12 de Julho de 2000 durante o episódio que ficou conhecido como sequestro do ônibus 174. A abordagem do filme é feita por uma montagem paralela entre imagens veiculadas na época pelas emissoras e os depoimentos de pessoas que conheceram Sandro de alguma forma. A história narra desde a trajetória do garoto que passou a viver com a tia após o assassinato da mãe, até o momento em que ele foge e passar a viver nas ruas do Rio de Janeiro. No decorrer do filme temos vários relatos sobre a infância de Sandro, e logo percebemos que ele foi exposto a várias situações de violência, o que o levou a se tornar uma pessoa agressiva e introspectiva. Quando analisamos as imagens do dia do sequestro, é notório o impacto da mídia e dos espectadores que rodeavam o local. Se na conduta de Sandro podemos perceber que ele finalmente consegue ser percebido pela sociedade, apesar de estar se impondo pela força, podemos destacar também que a conduta dos policiais sofreu o mesmo grau de influencia. Segundo Rodrigo Pimentel, ex capitão do BOPE, em seu depoimento este afirmou que a oportunidade de ter acertado Sandro com um tiro de uma sniper e ter acabado com aquele episódio existiu, entretanto a cena seria chocante e a conduta teria uma repercussão negativa frente as milhares de pessoas que assistiam. O episódio termina quando Sandro saí do ônibus, aparentemente exausto e já menos agressivo, com a refém – Geisa Firmo Gonçalves – como escudo. Neste momento, o oficial Marcelo Oliveira Santos, em uma ação precipitada, sai agachado pela frente do veículo, aproximando-se por trás de Sandro, disparando contra este em seguida. As câmeras conseguem captar o caos que se estabeleceu no momento e certamente tal atitude deu outro fim a história. Pelas imagens percebemos que imediatamente após o tiro do policial, Sandro dispara atingindo a refém. Em seguida os dois corpos caem no chão e rapidamente os bombeiros levam a garota para o hospital. Outro oficial, o Capitão Ricardo de Souza Soares retira Sandro do local, colocando-o dentro da viatura para evitar o linchamento pelos espectadores. Ao chegarem ao hospital constata-se que Sandro morreu por asfixia. Após a perícia 409 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE constatou-se que dos quatros tiros que atingiram Geise, um era proveniente da arma do policial Marcelo, que teria errado a pontaria, sendo que os outros três pertenciam a arma portada por Sandro. Utilizando-se das análises da dissertação de Luiz Eduardo Figueira que estudou a lógica da construção da verdade no Tribunal do Júri, desenvolvendo seu projeto a partir do caso Ônibus 174, temos os relatos sobre como se procedeu o julgamento dos oficiais que foram acusados de matar Sandro. Inicialmente, Soares fora denunciando por homicídio junto com outros seis policiais, antes de serem remetidos ao Tribunal do Júri quatro policiais foram “impronunciados”, ou seja, o Juiz por acreditar que não existiria nenhum indício de intenção de participar da conduta descrita na denúncia não mandou para Júri os Srs. Paulo Roberto Alves Monteiro (motorista da viatura) e Luiz Antônio de Lima Silva (o ocupante do assento da carona). Portanto, somente os acusados Ricardo de Souza Soares, Flávio de Val Dias e Márcio de Araújo David foram pronunciados. Quando as denuncias sobre o Coronel Penteado e o policial Marcelo dos Santos, foram rejeitadas. Ao longo da análise de Luiz Eduardo Figueira, percebemos que a fala da defesa constantemente irá reduzir Sandro a uma só categoria: a do delinquente que cometeu um crime e que deve ser punido, apesar de já star morto. O advogado de defesa direciona seu discurso no sentido de que a ação dos policia não poderia ser incriminada tendo em vista que a pessoa que foi vítima era um delinquente. Seguindo esta linha de pensamento, temos uma pessoa que é constantemente ignorada pelo Estado e rejeitada pela sociedade, que representa um tipo social pejorativamente chamado de “marginal”, estereotipado como pobre, negro, mal vestido e todas as outras características que vão distancia-lo do modelo considerado “normal”. Na verdade, Sandro representa mais do que um morador de rua, ele era tudo aquilo que a sociedade rejeita em si mesma e que tenta constantemente fugir. Portanto, naquele momento de tensão em que todos estão prestando atenção em seus movimentos, ele demonstra que existe, burlando aquela capa de invisibilidade que o contornava normalmente. 410 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Por outro lado, a promotoria rebate este argumento constantemente, chamando atenção para o fato de que não se pode dar a prerrogativa do poder de executar arbitrariamente. Vejamos um trecho da fala da promotoria: [...] Condenamos o capitão e o soldado do BOPE”. Mas e daí?! E a família deles?! E os filhos?! Por isso, a doutor promotor de justiça3, disse assim: “se tivesse atirado minutos antes, estaria em legítima defesa de terceiro, conduta lícita, louvada por todos, talvez condecorado o policial”. Então, o resultado morte, nesse caso do Sandro, não era antijurídico, dependendo do momento em que ele fosse causado. No caso, aqui, o desvalor, a censura, não é do resultado, mas é da conduta: como fizeram, não poderiam ter feito. Me parece, repito, que condená-los a pena mínima de doze anos, não resolveria nada. Temos aqui então um embate. Se por um lado a ação dos policiais não foi correta, a condenação por homicídio duplamente qualificado seria uma forma de se desincentivo a profissão do policial. Por outro lado, o ocorrido não poderia ser deixado de lado, afinal seria uma forma de se dar carta branca para as execuções arbitrárias por parte da polícia. O Advogado de defesa desenvolve o resto de sua fala fazendo um jogo moral, num o tom estigmatizante sobre Sandro, como se houvesse uma distância entre a natureza humana destas pessoas classificadas como “marginalizadas”. Tal fato pode ser vislumbrado em um trecho de suas alegações finais, quando comenta sua reação ao ver o caso pela televisão “Liguei a televisão e, na televisão, estava esse homem, com aquela baba, com aquele olhar, com aquele cheiro. Eu senti o cheiro dentro de casa, na minha casa, a muitos quilômetros de distância”. Tanto a acusação quanto a defesa reforçam seus argumentos na medida em que os trechos do documentário de José Padilha é projetado no Tribunal. Se por um lado a defesa destaca o histórico criminal de Sandro, no momento em que o filme mostra seu histórico criminal, a promotoria vai utilizar dos elementos que mostram como Sandro teria sido vítima de vários atos de violência, como por exemplo no depoimento de um dos meninos que esteve internado junto de Sandro junto ao Instituo Padre Severino, relatando os vários episódios de maus tratos aos quais foram submetidos, afirmando no final que a casa de detenção para menores em nada ajudou na sua reeducação, mas pelo contrário somente colaborou para o surgimento de um sentimento de revolta. 3 Refindo-se ao outro promotor de acusação. 411 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE À medida em que o advogado que defendia os policias ressaltava também o fato de Sandro ter precedentes criminais e como era seu estilo de vida criminoso. Principalmente nos momentos em que o filme reproduz as cenas de violência praticadas por Sandro no episódio do ônibus, construindo a imagem de uma pessoa violenta e perigosa. O Promotor utiliza-se da construção bibliográfica de Sandro para mostrar o lado do garoto que desde cedo teve o desemparo completo, mostrando tanto o lado da exclusão quanto o lado da ausência do amparo social. Ademais, para comprovar a intenção de matar pelos agentes da polícia, o Promotor faz a interpretação do momento posterior a saída de Sandro do ônibus e a hora em que o policial defere o tiro que gera toda a confusão. Alegando que pelas imagens, os policias não tinham como imaginar que o policial teria errado o tiro, mesmo por que Sandro estava com a camiseta ensanguentada, portanto o que aconteceu dentro da viatura foi uma tentativa de terminar o que o outro policial já havia começado. Já o advogado leva o debate para o lado do policial, que em sua ação heroica retira o rapaz do meio da multidão para evitar um linchamento. E que se realmente houvesse vontade de matar, ele teria deixado a população fazê-lo. Como uma chance tivesse sido dada a Sandro. Em contrapartida, o Promotor elenca características dos policiais, citando um relatório da ONU que teria concluído que a polícia do Rio de Janeiro era que tinha o maior número de execuções do Brasil, ou seja, utilizando características externar para justificar seus argumentos. Considerando que nosso dispositivo constitucional determina que os crimes ditos hediondos serão processados pelo Tribunal do Júri, sabe-se que neste caso a decisão cabe a um Conselho de Sentença e não a um Juiz propriamente dito. No caso, este conselho formado por jurados leigos decidirão se o réu é culpado ou não, motivados pelas suas convicções pessoais. Ou seja, na medida da sua identificação social, os jurados irão reprovar ou não a conduta do réu, produzindo suas próprias interpretações dos fatos, influenciados pelo discurso tanto do promotor de justiça quando do advogado de defesa. A culpabilidade do sujeito vai sendo construída levando em contra, principalmente, como ele fala e como ele esta se veste. Existem casos em que o próprio Juiz se vê em uma situação de pré-julgamento ou um julgamento superficial do réu. E essa prática vai além, abrange as situações diárias que no decorrer dos anos excluíram e expulsaram várias pessoas do meio social comum. 412 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Ao final do julgamento, acusação argumenta a necessidade de uma condenação, entretanto não necessariamente um que envolva a privação de liberdade, mas que respondam pelas consequências de terem agido de forma arbitrária. A promotoria chega a conclusão que a condenação por homicídio duplamente qualificado seria uma punição demasiada, sendo a favor da se condenar sem incidência da qualificadora e com a atenuante, por ter ocorrido após violenta emoção. Afinal, o Direito é um instrumento para promover a justiça pela lei, mas neste caso específico, devido as circunstâncias, deveria promover apesar desta. Por fim, temos a leitura do veredicto dos jurados, os pronunciados foram absolvidos pela maioria dos votos, ou seja, quatro votos a três. Neste caso, o documentário proporcionou o desenvolvimento da biografia de Sandro, e com certeza os fatos que foram trazidos pelas sua construção história advindos dos depoimentos do documentário agregaram à análise feita pelo Júri. Frente aos acontecimentos explanados pela produção de José Padilha o julgamento toma outra proporção, pois vemos quão complexa a questão se torna ao envolvermos seu passado e principalmente, se pensarmos em Sandro não somente como um incurso em um artigo do código penal, mas sim como uma pessoa que antes de mais nada teve seus direitos básicos violados. Não no sentido de justificar sua ação, seria uma análise no mínimo equivocada, mas nos mostra que este problema que permeia quase a maioria das ocorrências penais depende a cima de tudo, de políticas públicas. É evidente os as consequências da ausência do Estado, permeada pela pobreza, e faz-se essencial ressaltar que equivocadamente liga-se os acontecimentos numa linha casuística, como se necessariamente um acontecimento levasse ao outro, sendo que na verdade não. 4 JUÍZO E JUSTIÇA Em “Justiça”, produzido em 2004 por Maria Augusta Ramos, temos a retratação da realidade do Judiciário por uma perspectiva que aborda as questões de tensão dos problemas da violência urbana. A partir de imagens que pretendem provocar a reflexão do espectador, nos deparamos com situações que nos faz questionar o que realmente entendemos por justiça. 413 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Se em “Justiça” vemos a decadência das penitenciárias e a clara tendência do sistema penal em criminalizar a pobreza, em “Juízo”, produzido em 2006 pela mesma diretora, vemos a origem deste problema. É evidente a relação da carência de políticas públicas com a questão da criminalidade, entretanto, vemos a pobreza sendo camuflada por atos infracionais, propiciando cada vez mais a absorção desta parcela da sociedade pela máquina carcerária, proporcionado não uma reeducação ou reintegração à sociedade, mas sim o desenvolvimento de uma carreira criminal. Pela sequência de cenas a partir da captação das imagens por uma câmera fixa objetivando transparecer um olhar de espectadores deste, como chamado pela diretora “teatro da justiça” vemos a desconstituição do sujeito. Se inicialmente olhamos para os personagens com olhares carregados do estigmatizante caráter de “criminoso”, temos ao longo das narrativas essa alteração que ocorre deforma gradual, na medida em que vamos conhecendo mais sobre as vidas dos réus. Justamente por mostrar os sujeitos além dos fatos presentes nos autos, como uma forma de humanizar sua imagem. Como por exemplo, o caso do menino em “Juízo” acusado de matar seu pai. O caso desperta a curiosidade por se tratar de um dos crimes mais graves da narrativa. Pela transcrição do diálogo podemos sentir quão complexa é a questão, na audiência a Juíza pergunta: Juíza: É verdade isso? Alexandre: É Juíza: Você matou seu pai? Por quê? Alexandre: Por que ele me batia muito, em mim e na minha mãe! Juíza: Ele batia em você e na sua mãe e o que... Alexandre: Ele estava “doidão”, chegava do serviço “doidão” e me batia. Juíza: Doidão de que? Alexandre: Cerveja e cachaça. Juíza: E quando ele batia em você e na sua mãe ele estava sempre bêbado? (o garoto acena com a cabeça). Num outro momento da audiência: Juíza: Ta arrependido? De ter matado teu pai? Alexandre: To. Juíza: Ta sentindo falta dele? Alexandre: Falta não, por que ele não me dava nada. Juíza: O que ele tinha que te dar que ele não te dava? Alexandre: Ah, um pouco de carinho, mas ele nem falava comigo. 414 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Juíza: Mas se eu perguntar para você qual a lembrança boa que você tem do teu pai, o que você vai me dizer? Alexandre: Nenhuma. Ou seja, o caso de maior relevância em nenhum momento ultrapassou as outras medidas socioeducativas aplicadas, considerando a ponderação psicológica acerca do que aquele fato representava para o garoto. Neste caso, vemos que apesar de sua conduta ser gravíssima, chama a atenção para outros problemas como a questão da desestruturação familiar. Vemos que os problemas enfrentados pelos detentos maiores de idade não diferem muito dos enfrentados pelos menores de infratores. A começar pelo tratamento hostil desde as audiências até episódios de violência pelos agentes penitenciários (com raras exceções), até quanto aos locais eles habitam. Se nas penitenciarias de “Justiça” temos cenas de superlotação e locais insalubres em “Juízo” temos locais tão precários quanto, principalmente tratando-se do Instituto Padre Severino, a única instituição em que houve reiteradas reclamações sobre o abuso do violência pelos agentes de segurança. Além disso, em 2004 a Human Rights Watch visitou a casa de internação e divulgou um relatório criticando as más condições. Relatos como o caso a morte do menino que se recusou a dividir um biscoito com outro adolescente e por isso foi espancado até a morte ou e talvez o mais memorável de todos, o caso do então diretor administrativo, Paulo Roberto de Souza, que em 1999 foi encontrado em seu gabinete por PM’s em sua sala acariciando um menos nu. No entanto esse não foi o único caso, outras vítimas relataram que eram obrigadas a fazer sexo com Souza. Em 2011 o Instituto Padre Severino foi fechado para modificações, sendo reinaugurado em 2012 para inaugurar o Centro de Socioeducação Dom Bosco (LEONI; LEITE, 2012). Outra semelhança que pode ser estabelecida entre as duas produções é quanto a questão da delegação da responsabilidade à outro órgão, seja a outra instância do Judiciário ou para o próprio Executivo, como forma de se eximir da culpa. Algo visto principalmente nas falas dos magistrados frente a relatos de problemas enfrentados pelos réus. Vejamos a transcrição de um destes momentos, em uma das primeiras audiências de “Justiça” temos um cadeirante que é conduzido a sala de audiências, 415 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE posiciona-se na frente do magistrado que passa a questioná-lo sobre os fatos. Como de praxe, a linguagem rebuscada vai agravando a distância entre o homem agora visto como réu, e o próprio Juiz. A acusação seria plausível, se não tendesse ao absurdo ao supor que um cadeirante teria assaltado uma casa e, para tanto, necessariamente ter pulado um muro para fugir. Ao final da audiência o detento fala: Detento: Dr. Meritíssimo, se eu for retornar lá para DP, se o senhor pudesse dar uma autorização para mim mandar para o hospital. Por quê po... Por que la no “xadrez” lá, são 79 lá no xadrez. Pra mim... Juiz: O que você tem? Esta doente? Detento: Não, pra mim dar uma evacuada tenho que ficar me arrastando no chão. Pra mim tomar banho, não tenho condições de tá lá. E lá eu tenho dificuldade de certas coisas Juiz: Mas eu só posso te remover se eu tiver uma recomendação médica. Só se o médico pedir a sua remoção, por isso é assunto médico, isso não é assunto de Juiz. Se o médico disser que você precisa de atendimento, que precisa ser removido, você será removido. Fora disso não! A diretora consegue demonstrar, de uma forma intrigante, como os discursos dos réus são filtrados e transformados em uma linguagem legal, de acordo com os dispositivos dos códigos sem que ao menos considerar elementos essenciais para as análises dos respectivos casos. Este ritual de formalismo e frieza é visto em quase todas as audiências, demostrando como caminhamos para um campo de insensibilidade que acaba acometendo os atuantes da área do Direito, talvez pelo habito ao lidar com a esta realidade, mas não seria este um problema senão gravíssimo dos operadores do Direito na medida em que eles mesmos vão esquecendo ou ignorando os dramas humanos por trás dos processos? Por fim, podemos destacar algo que é constatado a partir das análises da sequencia das produções de Maria Augusta Ramos. Não raramente, senão de forma majoritária, a população que habita as penitenciárias em “Justiça” são predominantemente negros ou pardos, advindos de locais marcados pela ausência de políticas públicas do Estado (escolas, infraestrutura, saúde, etc.), permeados pela pobreza, mas principalmente, estigmatizados pela sociedade. Sendo que em “Juízo” vemos esta mesma população só que mais jovem, sendo captada para o sistema carcerário cada vez mais cedo. 416 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Em tempos como este em que nossas instituições de uma forma quase que hipócrita destinas a “correção” das pessoas são verdadeiros reprodutores de violência e incitadores da estigmatização social, é no mínimo suicida acharmos que estas instituições penais estão servindo a sua função inicialmente idealizada. 5 SOBRE A POSIÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS Após as análises dos documentários anteriores e, pautando-se nos ensinamentos de Aldaíza Sposati, podemos vislumbrar algo comum em todos os documentários, a questão da concepção errônea quanto o que seriam os direitos sociais inerentes ao cidadão. Partindo da equivocada tendência da monetarização dos direitos sociais na medida em que colocamos como sinônimo de política social o combate a pobreza, considerando as tendência neoliberais particulares do nosso país desde o período da ditadura militar até o período de redemocratização, acompanhamos uma consequente desqualificação quanto o que seriam esses direitos básicos do cidadão. Se considerarmos que o Brasil passou por um procedimento de redemocratização incompleto, sendo que tal fenômeno não atingiu em sua plenitude, na medida que não alcançou as instâncias políticas e judiciais e, tendo em vista a crise econômica subsequente ao período militar enfrentada pelo Brasil, causando índices de inflação altíssimos, temos como consequência direta um desiquilibrando na situação econômica da sociedade. Somado a isso, podemos destacar também como característica deste contexto, o emprego informal como uma alternativa ao desemprego, principalmente pela sua facilidade e não necessidade de conhecimento técnico. Entretanto, acabou sendo confundido com outras práticas paralelas, como forma de se obter renda, práticas de “empreendimentos econômicos criminosos” (ZALUAR, 2007). Aliado a isto temos como aponta Sposati uma assimetria no desenvolvimento e na percepção destes direitos sociais. Normalmente o alcance destas políticas, nos países latino americanos, tende a seguir a legislação trabalhista, frustrando a universalização de tais direitos, restringidos apenas a concessão aos trabalhadores formais. 417 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Antes de ser uma questão de superar a desigualdade, deve-se entender que esse procedimento de reconhecimento dos direitos inerentes ao cidadão como uma demonstração da possibilidade real de inclusão advém não pela sua capacidade aquisitiva, mas justamente por este ser um cidadão. Sendo este um dos desafios para o século 21. (SPOSATI,2001). Ao longo da sua análise, conclui-se que a políticas sociais passaram a desenvolver-se de forma apartada, dando margem a atuação, por exemplo, de organizações não governamentais. Ressaltando que devemos ter cautela em não cairmos na ideia errônea que altera o ponto de vista quando a estas políticas, “deslocada do campo das necessidades sociais (a serem providas por políticas sociais universais) para a atenção a necessitados sociais. Esse deslizamento encobriria a cidadania e os direitos sociais por "boas ações" aos mais frágeis” (SPOSATI, 2001). Ao fazermos isso, perdermos o caráter universalista, passando a ser interpretado como “melhoria social” e não uma plenitude a fim de se concretizar a cidadania. E, justamente pela discrepância do acesso a tais direitos, temos entre os próprios cidadãos a reprodução das desigualdades. Sendo assim, devemos almejar essa homogeneização dos alcance de tais direitos, exigindo a presença do Estado, espaço que facilmente é ocupado por entidades filantrópicas. Devemos tanto buscar a “universalidade”, no sentido de uma aplicação igual, quanto o “universalismo”, que seria o diálogo entre as diferentes politicais sociais. Não podemos reduzir a ideia de inclusão social ao combate a pobreza, sem que os outros direitos sejam propiciados. Estaríamos resumindo o processo de inclusão do sujeito na medida em que sua capacidade de consumo fosse suprida, nas palavras de Aldaíza, “combater a miséria e a pobreza implica em política econômica e não só social” (SPOSATI, 2001). Portanto, devemos não só buscar uma intercomunicação entre os direitos sociais, no sentido de se desmercantilizar suas condições de acesso, bem como desmistificar sua aparência de caridade, considerando que seria uma prerrogativa de qualquer cidadão, independente de sua capacidade aquisitiva. Por fim, Aldaíza Sposati elenca quais seriam os desafios para o século XXI: i) reposicionar o sentido de direitos socais sem que recaiam em políticas de combate a pobreza; ii) a incorporação dos outros direitos sociais, sua intercomunicação e 418 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE aplicabilidade universal. A socióloga alerta para evitarmos a “culpabilização do indivíduo pobre”, bem como reconhece que a pobreza é uma problema multidimensional, intimamente ligado ao lastro do modelo econômico adotado. Se resumirmos a questão da pobreza, descaracterizaria sua qualidade de direito e cidadania. Afinal, o enfrentamento da pobreza não se restringe ao percebimento de renda, mas a uma consequente interligação de políticas públicas que forneçam suporte ao cidadão. Ampliar as condições de consumo não consubstancia a condição de cidadão, isso somente corrompe a noção de direitos sociais. O caminho equivocado da monetarização desses direitos nos leva a uma desqualificação e desconstrução daquilo que entendemos como sujeitos de direitos, culminando numa consequente “robotização social”. Diante disso, o que vemos é a dificuldade da sociedade, do estado e suas instituições em abandonar a lógica/pratica – lembrando Loic Wacquant (WACQUANT, 2008) – de criminalização da pobreza. Diante da fragmentação das políticas publicas e do seu parco alcance, o que vemos é a continua utilização de politicas penais e a judicialização indevida de situações como forma de controlar e administrar a pobreza no nosso país. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se, após toda a reflexão exposta que afastar o inexorável, escondendo-se por trás das palavras, munido de uma tranquilidade (um tanto quanto assustadora) somente agrava o problema da invisibilidade social. A importância dos documentários que tratam sobre o sistema penitenciário e a sua realidade inseparável, vêm como uma forma de “contra cultura”. Buscando dar materialidade ao inenarrável, objetivando reavivar a angústia necessária ao tratarmos dos casos do permeiam a seara da área penal. O indivíduo deve ser considerado além da sua tipificação objetiva, mesmo por que julgar alguém, extraído do seu contexto em um país em que a desproporcionalidade social é alarmante, somente dissemina a hegemonia dos costumes e verdades de uma parcela da sociedade sobre a outra. Ou seja, considerando que temos, majoritariamente, membros das classes mais altas ocupando os respectivos cargos responsáveis pela “justiça” no Brasil, veremos, não 419 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE coincidentemente, a criminalização da pobreza e a monetarização dos direitos sócias. Logo, é de se esperar que a prisão funcione como uma alternativa para a higienização social. Entretanto, vemos ai um sentido equivocado sendo atribuída a ideia de cidadão. Espera-se com esse trabalho, despertar um sentimento necessário para se tratar esta matéria. Deseja-se angústia pra que não sejamos levianos. Empatia para que as leis não sejam aplicadas sem sentido, mas a cima de tudo, deseja-se despertar a consciência social, pois nenhuma mudança reformará tal pensando deturbado, senão tivermos uma reforma na sociedade. 420 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS FERRO, Marc, História e Cinema. Tradução de Flávia Nascimento. 1.ed. São Paulo: Paz e Terra s.a, 1992. FIQUEIRA, Luiz Eduardo. O ritual judiciário do Tribunal do Júri: O caso do ônibus 174. 238f. Dissertação (Pós-Graduação) – Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/91545176/Tese-Luiz-Eduardo- Figueira>. Acesso em: 10 jun. 2013. FONSECA, Rodrigo. Autoanálise do inferno. Jornal do Brasil. 2003. Disponível em: <http://br.groups.yahoo.com/group/3setor/message/22455>. Acesso em: 10 mar. 2013. LEONI, Fabíola; LEITE, Renata. Fim do Padre Severino: Estado inaugura novo espaço para menores infratores. Jornal O Globo. Rio de Janeiro. ago. 2012. 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Abri. 2013. 421 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SACRAMENTO, Paulo. Prisioneiro da Grade de Ferro: autorretratos. Direção: Paulo Saramento. Produção: Gustavo Steinberg e Olhos de Cão. [S.I] Idê Lacreta e Paulo Sacramento. 2003. 1 bobina cinematográfica (123 min), son., color., 35mm. WACQUANT, Loic. O lugar das prisões da nova administração da pobreza. Novos estudos - CEBRAP, São Paulo , n. 80, Mar. 2008. Disponível em: <<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010133002008000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso: 15 jul. 2013. ZALUAR, Alba. Democratização inacabada: fracasso da segurança pública. Revista Estudos Avançados. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. 21. n.61. 2007. 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Integra a Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Paraná (OAB-PR) e a Comissão de Controle da Administração Pública da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Paraná (OAB-PR). É advogado militante no Paraná. 1 2 423 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SUMÁRIO 1. Introdução. 2. Origens e reflexos da corrupção e impunidade no Brasil. 3. Mecanismos de controle preventivos e repressivos e a Lei n° 8.429/92. 4. As recentes alterações na legislação eleitoral e o combate à corrupção. 5. Conclusão. 424 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO O presente artigo objetiva o estudo dos atos de corrupção e improbidade administrativa no Brasil e dos mecanismos de controle em face de tais condutas deletérias. Para tanto, procede-se à análise histórica do fenômeno, por meio da percepção das suas origens quando da Colonização e das principais características e acontecimentos brasileiros que contribuíram para a reprodução e desenvolvimento do problema. Ressaltam-se alguns dos reflexos e a importância da observação dos princípios basilares da administração pública. Examinam-se os mecanismos de controle da improbidade administrativa e estudam-se algumas das disposições da Lei de Improbidade Administrativa. Analisam-se as recentes alterações na legislação relativas ao tema e algumas das propostas de mudanças provindas de movimentos de combate à corrupção. Conclui-se pela importância e necessidade de alterações na legislação, contudo, não sendo a única solução para o problema, que passa, principalmente pela maior conscientização de todos para com a coisa pública. Palavras-chave: Corrupção, Improbidade, Impunidade, Eleitoral 425 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT This article aims to study the acts of corruption and misconduct in Brazil and the administrative control mechanisms in the face of such harmful conduct. To do so, it proceeds to the historical analysis of the phenomenon, through the perception of their origins when the colonization and the main characters and Brazilian events that contributed to the reproduction and development of the problem. It emphasizes some of the reflections and the importance of observing the basic principles of public administration. It examines the mechanisms of control of administrative misconduct and studies some of the provisions of the Law of Administrative Misconduct. It analyzes the recent changes in legislation relating to the theme and some of the proposals of changes that are coming from the movements against corruption. It concludes by the importance and need for changes in the law, however, not being the only solution to the problem, which passes mainly through greater awareness for all exchequer. Keywords: Corruption, Dishonesty, Impunity, Electoral 426 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO A corrupção faz parte do cotidiano do brasileiro, sendo noticiada diariamente pelos meios de comunicação, e fazendo com que, boa parte da população, não confie nos representantes eleitos. Além do descrédito ao representante, é nítido também o sentimento de impunidade. Presentes desde a colonização, os atos corruptos e ímprobos encontraram no Brasil solo fértil para sua reprodução, marcando, profundamente a história do país. O segundo item deste artigo buscará demonstrar os porquês da ocorrência tão comum destes atos, utilizando-se, para tanto, de uma análise histórica. No mesmo item averiguar-se-ão os principais reflexos do problema. Existem, há décadas, mecanismos de combate à corrupção e à improbidade, bem como, leis que versam acerca dos atos deletérios. A análise dos meios de combate aos atos deletérios e de alguns dispositivos previstos em diplomas legais relacionados ao tema serão o objeto de estudo do terceiro item. Ademais, observa-se, em um período recente, o advento de uma série de mudanças na legislação brasileira visando a redução da impunidade, a diminuição da influência do poder econômico e a busca de maior igualdade nas eleições. Presencia-se, ainda, uma inquietação provinda da sociedade, com a ascensão de novos movimentos de combate à corrupção e a apresentação de projetos de lei de iniciativa popular. O exame das alterações já realizadas e de algumas de possível acontecimento será objeto do quarto item deste artigo. É necessário, então, o estudo do tema para a elucidação da conectividade entre a impunidade e os atos ímprobos e corruptos e se, alterações na legislação eleitoral se mostram realmente efetivas no combate desses vícios. 2 ORIGENS E REFLEXOS DA CORRUPÇÃO E IMPUNIDADE NO BRASIL Os atos corruptos e ímprobos são exemplos de afrontas diretas aos princípios regentes da administração pública, consagrados constitucionalmente. Contaminados de antivalores e de presença diária nos noticiários brasileiros, ocasionam além de grandes prejuízos para a população, com a redução de verbas destinadas à 427 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE investimentos públicos, uma tímida indignação popular, face ao tamanho do problema. O melhor estudo do fenômeno, com a apresentação de possíveis soluções, deve, necessariamente, observar o caráter histórico que tais atos detém, percebendo que são reproduzidos por estas terras desde o descobrimento. É justamente deste ponto que a análise do tema deve partir, ou seja, do colonizador português, tendo em vista que, dentre as inúmeras heranças deixadas pelos lusitanos no Brasil, uma é do tipo que nenhum sucessor gostaria de receber: a corrupção. Sem dúvida, foi Portugal que deu origem aos modelos e formas arquetípicas mais originárias de nosso modo de ser sócio-político. O Brasil herdou de Portugal o primeiro modelo de organização do Estado e a concomitante força moral que o sustentava. Foi certamente através do descobrimento que os caracteres primordiais – acompanhando os navegadores, imigrantes e aventureiros e unidos a outros valores e antivalores originados das peculiaridades da nova terra – se moldaram, produzindo nossas tendências sociopolíticas. Sem um retorno às raízes culturais lusitanas não disporíamos de elementos suficientes para explicar adequadamente muitos fenômenos, inclusive, o da corrupção (ZANCANARO, 1994, p. 53). Portugal, antes do descobrimento, dispunha de características inerentes ao desenvolvimento de um Estado tendente à reprodução de atos carregados de antivalores. Primeiramente destaca-se que o Estado Português era o de Dominação Patrimonial, decorrido do modelo de Dominação Tradicional, explicado por Max Weber (1968), e organizado em torno de uma administração estamental. Em Portugal a extrapolação da política e da administração domésticas para fora do circuito familiar era encontrada, primeiramente, nas atitudes do rei. O soberano dispunha de posição de prevalência incontestável, possuindo total controle dos bens estatais e dos subordinados. Acerca desta posição superior, importante a lição de Raymundo Faoro (2012. p. 38): Na monarquia patrimonial, o rei se eleva sobre todos os súditos, senhor da riqueza territorial, dono do comércio – o reino tem um dominus, um titular da riqueza eminente e perpétua, capaz de gerir as propriedades do país, dirigir o comércio, conduzir a economia como se fosse empresa sua. 428 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE As atitudes do rei dificultavam, principalmente, a diferenciação entre o que era patrimônio público e o que era patrimônio privado da Coroa. Ademais, não eram raras as situações em que este, agindo em causa privada, atuava ao arrepio das Leis que ele mesmo instituíra. Outra característica sempre presente em Portugal foi a da sobreposição do fausto sobre o trabalho. Este traço inclusive, ajudou a formar o português aventureiro e explorador, o famoso conquistador de novas terras. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobiliante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação (HOLANDA, 1995, p. 38). Para sustentar tal modo de vida viram-se necessárias as expedições portuguesas, que acabaram por aumentar o domínio e o território da Metrópole. O soberano, a fim de manter o controle sobre o maior território, se viu obrigado a delegar algumas de suas funções. Através da concessão de poderes e da troca de favores à “funcionários públicos” - na maioria das vezes pessoas de sua confiança e convívio - o potentado estendia seus ideais de governo por todo o reino. Os antigos empregados da casa do rei, ou de sua família, deste modo, acabaram se tornando servidores do Estado, passaram a deter certo poder e importância, sempre com a premissa de que seus atos eram atos de interesse da monarquia. É neste ponto que nasce outra característica primordial para o entendimento da reprodução histórica dos atos de corrupção no Brasil, a organização estamental do estado, desde a colonização. O estamento, por sua vez, de natureza mais complexa e diversa, verdadeira camada ou espécie social, constitui uma comunidade política, um círculo qualificado superior, destinado ao pleno exercício do poder, possuindo seus membros consciência de sua formação e agrupamento. O indivíduo alcança os privilégios do grupo pelo prestígio social que detém entre seus pares, assim como pelo conceito de sua honra social perante a comunidade (GHIZZO NETO, 2012, p. 29-30). Tendo em vista a proximidade que tinham para com o soberano e até mesmo a confiança que deste possuíam, era de se esperar que os atos dos “funcionários 429 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE públicos” fossem baseados à imagem e semelhança das ações provindas da Coroa. Assim, formou-se, desde logo, um corpo de administradores tendentes à confusão entre o patrimônio público e privado e à reprodução dos atos de pouco baixo conteúdo valorativo. Affonso Ghizzo Neto (2012, p. 23-24) reconhece a o pouco respeito pelo coletivo e compromisso para com a racionalidade que se desenvolveu em Portugal, muito pelo ideal de vida de luxo e bem-estar sem esforço. Este tipo de ideal acabou aportando no Brasil com a vinda dos colonizadores em 1500. Como se não bastasse as características já encontradas nos habitantes portugueses, alguns fatores locais, inerentes da Colônia, ainda agravavam a situação. Em primeiro lugar, a grande porção territorial descoberta, em que se demonstrava necessário o povoamento, bem como a distância para com a Metrópole, dificultavam o controle e fiscalização do Estado. Imensa se demonstrava a fragilidade jurídica, caracterizada pela convivência de ordenamentos provenientes da Coroa Portuguesa, de ordens do estamento já instalado nas terras colonizadas e de regramentos impostos pelos senhores, importantes figuras principalmente nas localidades interioranas. Em cada canto do país se predominava uma ordem, sendo que nos principais centros urbanos a Coroa mostrava sua força, que ia se esvaindo quanto mais passos ao interior do território fossem dados. A população, encontrando tamanha desorganização, mal tinha ciência de qual regramento devia respeitar, tendendo-se a uma desobediência total das regras normativas. Além de pouco ciente para com os regramentos, a população ainda demonstrava-se pouco identificada para com o território. Não se via no povo o sentimento próprio de uma nação, eram apenas aventureiros em busca do ganho fácil, que pouco se importavam com o modo de agir e com o resultado de suas condutas na terra a ser explorada, ansiando pela volta à Metrópole para desfrutarem da vida como nobres. O terceiro e também relevante fator diz respeito à falta de identificação dos servidores portugueses enviados, com o desenvolvimento e preservação do próprio país, pautada na ideia egoística de que o eventual ganho a ser individualmente obtido, teria que ser sempre, e por qualquer meio, potencializado, a fim de ser proporcional aos perigos e sacrifícios enfrentados pelo europeu na nova terra (PADILHA FILHO, 2010, p. 22). 430 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Todos estes fatores, somados, resultavam em uma característica muito comum no território da Colônia: a impunidade de atos ilegais. A impunidade deve ser entendida como a força motriz de todo o sistema estamental desenvolvido no país, tendo em vista que a certeza da não punição garantia a segurança para a reprodução dos atos deletérios. Antonio Frederico Zancanaro (1994, p. 155) salienta o caráter decisivo da impunidade como alicerce de reprodução do sistema patrimonial, destacando que a ausência de castigo aos atos deletérios - tanto em terras portuguesas como em brasileiras - era justificada principalmente pelas relações de amizade e parentesco. Não padece dúvida, portanto, que a corrupção político-administrativa encontra seu realimentador na impunidade dos delitos. Na cultura lusobrasileira dificilmente o corrupto é chamado a prestar contas de seus atos. E quando isto ocorre, são muitos os álibis que lhe permitem fugir às sanções da lei. O próprio sistema patrimonial realimenta a impunidade, gerando uma extraordinária segurança em quem manipula o poder a seu favor. As intrincadas amarras de caráter afetivo e sentimental que impregnam o fenômeno conferem a garantia de impunidade. Tal segurança garante as condições de uso e abuso do poder cedido em benefício próprio e no de parentes e amigos. A impunidade dos delitos tornou-se, portanto, uma superestrutura lógica do sistema patrimonial de dominação. Assim, conviveu o país, desde o início de sua colonização, com a propagação de antivalores e a grande quantidade de atos deletérios, que eram realimentados e garantidos pela certeza da não punição. Com marcas tão profundas, era de se esperar que tais características perdurassem pelos períodos posteriores. Durante a Monarquia brasileira o panorama não era outro, o soberano, dotado de poder ainda maior, com o advento do Poder Moderador, continuava agindo de modo a não estabelecer limites entre seu patrimônio particular e o estatal. Abaixo dele, um corpo de funcionários tendentes aos mesmos atos, que viam no Estado a grande oportunidade de uma vida com lucros e sem muito trabalho. A população, por sua vez, não via seus anseios e interesses próprios representados e convivia, cada vez mais, com um cenário de corrupção e impunidade, que contaminava todos os graus da administração. (FAORO, 2012, p. 447). Esperavam-se mudanças com o surgimento dos ideais Republicanos e a posterior proclamação da República, em 1889, porém, o que se viu foi a permanência de muitos dos valores já conhecidos durante os períodos anteriores. 431 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A postura pouco democrática que orientou a instalação da república nacional não correspondeu às expectativas e acaloradas discussões que eram diariamente travadas, nos mais diversos estratos sociais da época. Representava, o regime republicano, um ideal de progresso no cenário político, um pensamento de vanguarda, a exemplo dos inúmeros avanços tecnológicos testemunhados naquele momento. O encanto cedeu lugar à frustração (PADILHA FILHO, 2010, p. 27). A participação popular foi diminuta desde o início, por mais que o voto seja uma característica inerente a este sistema. Destaca Raymundo Faoro a ínfima porcentagem de comparecimento dos eleitores aos pleitos da época que, entre 1898 e 1926, flutuou entre 3,4% e 2,3% da população total. Somente nas eleições de 1930 foi registrada a participação de mais de um milhão de eleitores, o que representava o percentual de 5,7% do total de habitantes. Destaca Raymundo Faoro (2012, p. 698) a ínfima porcentagem de comparecimento dos eleitores aos pleitos da época que, entre 1898 e 1926, flutuou entre 3,4% e 2,3% da população total. Somente nas eleições de 1930 foi registrada a participação de mais de um milhão de eleitores, o que representava o percentual de 5,7% do total de habitantes. Passado o período da República do café-com-leite, de destaque foram os governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. O primeiro, pela concessão de novos direitos, a se destacar os trabalhistas; o aumento dos direitos eleitorais; a ascensão de novas pessoas ao poder político; e um grande inchaço da máquina estatal. O segundo, pelo financiamento de grandes obras públicas, com o plano de metas (“Cinquenta anos em cinco”). Ambos, por possuírem altos índices de atos ímprobos e corruptos. Foi o fim da sociedade patrícia, o começo da entrada em massa do povo na política e a expansão da máquina estatal iniciados em 1930, mas acelerados após 1945, que abriram as portas para o florescimento da corrupção na forma de clientelismo, patrimonialismo, nepotismo, ou simples gatunagem de dinheiro público. Mais recursos disponíveis, mais demandas dos eleitores e menos escrúpulos dos políticos operaram a mudança. A corrupção entrou em curva ascendente. (CARVALHO, 2008 apud AVRITZER, 2008, p. 242) A corrupção era tanta, que o carro chefe de campanha do presidente que viria a ser eleito no período pós Juscelino, era a eliminação da corrupção, tendo inclusive 432 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE como símbolo de campanha a memorável “vassoura”. Jânio Quadros acabou eleito em 1960, Porém, com pouco tempo de governo e após sofrer diversas pressões, acabou renunciando, tendo assumido, em seu lugar, João Goulart, ex-partidário de Vargas. Logo após, em 1964, foi de destaque o golpe militar, que impuseram um regime de forte censura e ínfima participação popular, implementando um discurso contra o comunismo e a corrupção. O grande problema é que as duas figuras, do comunista e do corrupto, eram muitas vezes confundidas pelo militar. Além disso, como é de conhecimento geral, atos de corrupção auxiliaram na propagação do regime, que por vários anos limitou a liberdade e a participação da nação nas decisões estatais. Não há duvidas de que um governo autoritário, sem participação popular, como o presente na ditadura, dificulta muito o controle populacional acerca do patrimônio comum, estatal. Com a queda da Ditadura Militar e volta de Democracia, materializada através da promulgação da Constituição de 1988 e da realização de novas eleições, os escândalos de corrupção foram notícias em todos os governos, até o atual. No governo do primeiro Presidente da República eleito, descobriram-se esquemas de corrupção que levaram a instauração de procedimento de impeachment contra Fernando Collor de Mello, que acabou por renunciar ao mandato antes do julgamento do processo. Ao fim, restou o alagoano condenado à perda do mandato e suspensão dos direitos políticos. O governo subsequente, de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, destacou-se pelo amplo programa de privatizações. Passaram por este procedimento importantes empresas nacionais, que continuam sendo de destaque até os dias atuais, como a Companhia Vale do Rio Doce, a Telebrás e a Eletropaulo. Os leilões de privatização foram alvo de grandes críticas, principalmente da esquerda nacional, tendo em vista que, inclusive, abriu-se a possibilidade de o próprio Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, financiar parte dessas compras, fazendo com que recursos públicos acabassem auxiliando a aquisição, por particulares, de bens públicos, restando nítido o favorecimento a algumas companhias. Entretanto, em mais de vinte anos, nenhum escândalo de corrupção teve maior repercussão no país do que o chamado “mensalão”. Um grande esquema de 433 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE corrupção, articulado por diversas lideranças políticas, dentre elas: José Dirceu, exministro da Casa Civil do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva; José Genoíno, ex-presidente do PT; Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT; João Paulo Cunha, Deputado Federal; e Marcos Valério, empresário e publicitário. Depois de quatro meses e meio de sessão, em dezembro de 2012, o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento da Ação Penal nº 470. Dos 38 réus do processo, 25 foram condenados, sendo apontado como mandante do esquema o ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu, e como principal operador, o empresário Marcos Valério. Ademais, foram condenados a suspensão dos direitos políticos e consequente perda do mandato, os deputados federais João Paulo Cunha, Pedro Henry e Valdemar Costa Neto. Importante ressaltar a inexistência, até o momento, de trânsito em julgado das condenações, que ainda estão pendentes de análise e julgamento de Embargos Infringentes. Era de se esperar que mais de 500 anos de um cenário impregnado de antivalores gerassem grandes reflexos sobre a população, os governantes e o patrimônio público. Em relação ao patrimônio público, percebe-se atualmente que a corrupção causa grandes desfalques aos cofres estatais, fazendo com que a população sinta anualmente a falta destes valores, vivendo em um país carente de investimentos em âmbitos básicos, como saúde e educação. Em relatório recente, datado de março de 2010, elaborado pelo Departamento de Competitividade e Tecnologia (Decomtec), da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP, concluiu-se que os custos com a corrupção são estimados entre 1,38% a 2,3% do PIB, o que resultariam nos montantes entre R$ 41,5 bilhões a R$ 69,1 bilhões (em reais de 2008) (Disponível em <www.fiesp.com.br/arquivo-download/?id=2021>. Acesso em: 16 abr. 2013.). Mais preocupantes que os dados apurados em relação aos custos da corrupção, são as pesquisas que demonstram a consciência da população frente ao problema. Destaca-se que a população verifica a existência da corrupção, porém, é dificultosa ainda a percepção de como a corrupção afeta a todos os brasileiros. Neste diapasão, salientam-se os seguintes dados, apresentados na Pesquisa Social Brasileira – PESB, em que foram realizadas 2.364 entrevistas por todo o Brasil, no ano de 2002: 74% das pessoas afirmaram que cada um deve ter cuidado sobre o 434 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE que é seu, deixando a coisa pública sobre cuidado exclusivo do governo; 56% da população consultada afirmou que se deve auxiliar o governo na administração, somente nos momentos em que ele cuida da coisa pública, quando ele é vigilante sobre ela.(GHIZZO NETO, 2012, p. 82). Pesquisas como estas salientam a gravidade do problema, tanto em termos de custos quanto de falta de consciência e educação cívica dos brasileiros. Evidenciam, além disso, o panorama de confusão entre coisa pública e privada e o distanciamento existente entre o cidadão e o bem público, características históricas presentes desde o Brasil Colônia, como já foi visto. Valmor Antonio Padilha Filho (2010, p. 38) salienta que o caráter histórico do fenômeno da corrupção no Brasil culminou na formação de uma população pouco consciente para com o erário público: (...) Partindo-se da premissa de que o sujeito é produto do seu meio, ou pelo menos, na moldura de seus padrões de conduta está sujeito à sua influência, pode-se sustentar que a sua preocupação inicial (do brasileiro), ou primordial, sempre se deu com a preservação daquilo que lhe pertence diretamente, é palpável, que pode ser facilmente visualizado, quantificado: questão de sobrevivência. (...) Não se percebe nitidamente uma responsabilidade, uma necessidade, em preservar, aquilo que, para ele, é do outro, ou pior, é considerado de ninguém. Após a realização da análise histórica e de alguns dos reflexos da corrupção e improbidade, as definições e o entendimento dos conceitos desses fenômenos ficam facilitados. Primeiramente, há de se destacar a correlação entre a corrupção, o alcance e a manutenção do poder político e o poder econômico. O último possui grande influência no atual sistema de representação no Brasil, pelo forte papel de financiador das campanhas eleitorais, formador de correntes políticas e angariador de votos. O poder econômico incide diretamente nas eleições, influenciando seu resultado. Contrapõem-se as ideias e o debate para com o dinheiro e as influências. O produto da prevalência dos segundos é a contaminação do pleito. À proporção que a riqueza invade a disputa eleitoral, cada vez se torna mais avassaladora a influência do dinheiro, espantando os líderes políticos genuínos, que também vão cedendo, ainda que em menor escala, a 435 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE comprometimentos econômicos que não conseguem de todo escapar, sendo compelidos a se conspurcarem com métodos corruptores. (...) É bastante insidiosa a ação corrosiva do poder econômico, espalhando-se pelas artérias de influência pública, minando-as por todos os lados, ora imperceptível e se necessário ostensivamente, com as modalidades mais imagináveis de recompensas, sempre conversíveis em valor econômico, para o objetivo político colimado (RIBEIRO, 1998, p. 52-53). A necessidade de diminuição da influência do poder econômico sobre o poder político é gritante, visando a garantir a maior representatividade dos cidadãos pelos políticos. “A boa regulação e a defesa da concorrência são antídotos fundamentais contra a corrupção” (OLIVEIRA in FERRAZ JÚNIOR; SALOMÃO FILHO; NUSDEO, 2009, p. 170-171). Além de demonstrarem a relação entre domínio econômico e político, os atos corruptos e ímprobos são frontalmente contrários aos princípios basilares da administração pública no Brasil. Dentre estes, enfatizam-se os previstos no artigo 37, da Constituição Federal, quais sejam: da moralidade, da legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. De destaque, ainda, o princípio da probidade administrativa, que chega a ser defendido por autores, como Mateus Bertoncini (in OLIVEIRA; CHAVES; GHIGNONE, 2010, p. 13-15), como um direito fundamental de terceira geração, inerente a todos os povos e nações, por seu caráter transnacional, universal e geral. Desta forma, o respeito à moralidade, à probidade administrativa e aos demais princípios regentes da administração pública impõe-se como fundamental em qualquer ato provindo dos agentes públicos. A ligação entre Ética e Política é pressuposto da Democracia. Em termos de princípios, o cidadão parece contemplado e protegido, porém, ao se analisar a realidade, encontra-se assolado por um cenário de descaso com o bem público, improbidade e corrupção, agravados a cada dia pela impunidade. Necessária a análise, então, dos instrumentos de controle e combate a corrupção e a improbidade, a fim de se perceber a possibilidade de mudanças no preocupante panorama atual. 436 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 3 MECANISMOS DE CONTROLE PREVENTIVOS E REPRESSIVOS E A LEI N° 8.429/92 Os mecanismos de controle da probidade administrativa se dividem em dois grandes grupos, os controles preventivos e os repressivos. As definições de cada um decorrem de seus próprios nomes, como não é custoso se depreender. O controle preventivo da probidade administrativa possui duas características essenciais, o fato de ser antecipatório e educativo, ou seja, além de evitar com que o ato corrupto aconteça (evitando o dano), ainda grava na população e nos governantes os valores inerentes à administração proba e ética. Ana Cristina Melo de Pontes Botelho (2010, p. 148-149) aponta que, dentre os atuantes do controle preventivo, destacam-se os órgãos da administração pública, por meio da elaboração de Códigos de Conduta e Ética dos servidores; os Tribunais de Contas, com ações de auditoria e avaliação; e a Controladoria Geral da União, com a criação de mecanismos como a Secretaria de Prevenção da Corrupção e Ações Estratégicas e suas ramificações. Ademais, de destaque a atuação preventiva do Ministério Público, tendo em vista que, dentre as suas atribuições, se destacam a defesa dos interesses sociais e do regime democrático e o zelo pelo respeito aos Poderes e serviços de relevância pública, todas previstas nos artigos 127 e 129, da Constituição da República Federativa do Brasil. Affonso Ghizzo Neto (2012, p.206) enfatiza a necessidade do desempenho preventivo realizado pelo Parquet: Sem prejuízo da sua atuação tradicional na área repressiva, muitas vezes necessária e obrigatória, o Ministério Público está legitimado (poder-dever) constitucionalmente a agir preventivamente em busca da observância e do respeito ao princípio (direito e garantia) da moralidade administrativa. Assim, é recomendado ao membro do Ministério Púbico, valendo-se de suas prerrogativas constitucionais, exercer prioritária e efetivamente o controle preventivo da corrupção, valendo-se, inclusive, da articulação com os Poderes constituídos e do envolvimento com os movimentos organizados provenientes dos anseios sociais. A atuação preventiva é, incontestavelmente, a mais eficiente das formas de controle. Isto se deve ao fato de que a prevenção não é apenas a maneira menos 437 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE custosa, pois se instaura antes mesmo da consumação dos atos deletérios e da ocorrência de prejuízos, mas também a mais educativa, com maior possibilidade de inserção de princípios e valores ao cotidiano dos administradores e da sociedade em geral. Entretanto, como visto, não é só a atuação preventiva a existente como meio de controle dos atos corruptos e ímprobos. A segunda forma de controle é a repressiva, que também possui duas características a ela inerentes: a da recuperação dos recursos ilegalmente tomados e o fornecimento do exemplo, a demonstração de que qualquer agente está sujeito ao controle e às sanções. O meio de controle repressivo, deste modo, vem a combater frontalmente um aspecto histórico no cenário nacional, o do sentimento de impunidade. A ineficácia das instituições responsáveis pela fiscalização e apuração de crimes e danos ao patrimônio público é decisiva para a manutenção do sentimento de impunidade que está presente na população brasileira, colocando em risco nossa ainda tímida democracia. (...) Torna-se então senso comum a ideia de que todo mundo mete a mão, permitindo até a opção política por candidatos a cargos públicos que roubam mas fazem (AZEVEDO; REIS, 1994, p. 20-21). O controle repressivo acompanha a divisão tripartite dos poderes, adotada constitucionalmente, sendo classificado em legislativo, administrativo e judiciário. Neste panorama, cada poder da administração pública é responsável por seu controle interno e, reciprocamente, pela fiscalização das atuações dos outros e repressão nos casos em que se demonstrar necessário. O controle administrativo é classificado como controle interno. Ele é expresso em duas frentes: a primeira pela possibilidade de autocontrole, com a reforma de atos eivados de vício ou por conveniência e oportunidade (Súmula 473, do STF); e a segunda, que garante a investigação, o recurso e o procedimento administrativo, decorrentes do poder disciplinar e do direito de petição, previsto no artigo 5º, XXXIV, da Constituição. O controle repressivo legislativo é definido como controle externo e é exercido através das maneiras política e financeira. A atuação política deve observar não somente o caráter de edição de leis, mas também, seu caráter de vigilância das funções administrativas. Um mecanismo de destaque na atuação do controle legislativo é a instauração das Comissões 438 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Parlamentares de Inquérito, as CPI’s, que tem como função principal a colheita de provas e o auxílio ao Ministério Público em futuras denúncias (GARCIA; ALVES, 2011, p. 179-181). Em relação à atuação financeira do poder legislativo há de se destacar os atos autônomos e auxiliares do Tribunal de Contas da União. Essa vigilância da Corte de Contas está prevista no artigo 70, da Constituição Federal. Phillip Gil França (2010, p. 94), em sua obra, destaca sua importância: As contas; a adequação entre o recebido e o gasto; a correição do dinheiro público empregado de acordo com políticas de Estado factíveis, impessoais e com verdadeiras finalidades de atingir o maior bem comum possível devem ser feitas por um órgão técnico, como o Tribunal de Contas. Da mesma forma que os demais meios de controle da Administração, a valorização, a fortificação e o respeito do trabalho desta instituição são chaves-mestra para a realidade de um Estado forte, promotor do cidadão. Por fim, porém não menos importante, é o controle exercido pelo Poder Judiciário. É uma forma de controle externo da administração de fundamental importância, pois lhe conferiu a Constituição da República, no artigo 5°, XXXV, a última palavra acerca de lesão ou ameaça de direito. A intervenção do Judiciário é, então, justificada, principalmente nos casos em que os agentes públicos atuem ao arrepio da lei e dos princípios formadores da administração pública. O Judiciário precisa firmar o seu papel na sociedade que protege, impondo o seu poder/dever de coibir atos que atentem ao direito, tendo em vista que este detém a prerrogativa da aplicabilidade coativa da lei aos litigantes, assumindo sua posição como órgão controlador das atividades normativas do executivo e como peça central da manutenção da estabilidade social do Estado nacional. (...) Isto posto, conclui-se que a inafastável atuação do Judiciário na aplicação do direito no caso regulatório concreto é capital para a estrita observância da segurança jurídica dos atos da Administração Pública e proteção do cidadão (...) (FRANÇA, 2010, p. 116). A atuação do Poder Judiciário, em relação ao tema, está diretamente ligada, então, com a aplicação e respeito às leis que tratam do controle dos atos ímprobos. Dentre essas Leis, a de maior destaque é, sem dúvida, a Lei n° 8.429/92. A lei em questão enumerou as situações que configuram atos ímprobos, estabeleceu as sanções de possível cominação e os procedimentos administrativo e 439 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE judicial aplicáveis em sendo constatado o ato deletério. Assim, algumas disposições merecem estudo mais detalhado. Destaca-se, em primeiro lugar, a grande abrangência em relação à sujeição ativa, sendo passível de enquadramento na lei, qualquer agente público, inclusive aqueles que exercerem cargo, mandato, emprego ou função transitória, sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo. O tratamento dado à sujeição ativa reflete a preocupação para com o interesse e patrimônio públicos. Interesse e patrimônio público, aliás, que demonstram o real sujeito passivo do ato de improbidade, toda a coletividade, cada brasileiro integrante do Estado. Os artigos 9º, 10 e 11 trataram de estabelecer um parâmetro acerca de quais atos seriam enquadrados como ímprobos. Assim, dividiram-se em três grandes grupos de atos: os que gerem enriquecimento ilícito, os que causem prejuízo ao erário e os que importem em lesão aos princípios da administração pública. Algumas considerações acerca desses atos são de importante análise. A primeira delas é que todos, sem exceção, importam em desrespeito aos princípios e valores da administração pública. No entanto, a edição do artigo 11 foi necessária porque nem todos os atos, concretamente, causam prejuízos ao erário ou geram enriquecimento ilícito, mas, mesmo assim, são contrários às previsões do artigo 37, da Constituição Federal. Em segundo lugar, destaca-se que a Lei estabeleceu, expressamente, que a forma culposa somente seria possível em relação às condutas que se amoldassem ao artigo 10, sendo, ainda assim, necessária a demonstração da negligência, da imprudência ou da imperícia da conduta. Deste modo, meras ilegalidades ou erros provocados por falta de habilidade do agente público não são o objeto da Lei de Improbidade. Conclui-se ser de fundamental importância, a comprovação da má-fé do agente público, quando da configuração do ato ímprobo. O objetivo da Lei de Improbidade é punir o administrador público desonesto, não o inábil. Ou, em outras palavras, para que se enquadre o agente público na Lei de Improbidade é necessário que haja o dolo, a culpa e o prejuízo ao ente público, caracterizado pela ação ou omissão do administrador público. Meros equívocos formais ou inabilidade do agente público são insuficientes para justificar a possibilidade jurídica da ação de improbidade (MATTOS, 2005, p. 7-8). 440 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Em relação ao artigo 11, que define como ímprobos os atos que atentem contra os princípios da administração pública, qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, é importante ressaltar a divergência Doutrinária em relação à abrangência do princípio da legalidade. São confrontadas duas teses, a primeira daqueles que acreditam que a ilegalidade do ato, por si só, ensejaria a sua configuração como ímprobo (GARCIA; ALVES, 2011, p. 280). Para outra parte da doutrina, como Mateus Bertoncini (2007, p. 165-166), a mera ilegalidade do ato, em que não encontradas a desonestidade e a imoralidade, não teria o condão para eventual caracterização de ato ímprobo. Na jurisprudência, por sua vez, são recorrentes os entendimentos no sentido de que não se configuram como atos ímprobos aqueles eivados de mera ilegalidade, constituídos por incapacidade ou inabilidade do agente. Neste sentido, o seguinte trecho de voto, proferido em 17 de agosto de 1999: A punição deve ser adequada a um administrador inábil e despreparado. (...) De fato, a lei alcança o administrador desonesto, não o inábil, despreparado, incompetente e desastrado. Com razão, o aresto guerreado ao sustentar que: “...a improbidade administrativa, no ato contra a legalidade, deve dizer necessariamente, com a falta de boa-fé, com a desonestidade, com a conduta tipo do ilícito.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 213.994 - MG, Primeira Turma, Relator para o acórdão Ministro Garcia Vieira, j. 17 ago. 1999). A Lei de Improbidade Administrativa estabelece, ainda, no artigo 12 e incisos, as sanções de possível cominação. Estas estão divididas em três naturezas: civil, administrativa e política. As sanções de caráter cível são divididas entre: a perda dos valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio (aplicável às condutas que se amoldem ao artigo 9° e seus incisos); o ressarcimento integral do dano (sempre aplicável aos artigos 9° e 10, e, logicamente, somente aplicável às condutas do artigo 11 quando destas resultar algum dano); o pagamento de multa (aplicável às condutas previstas nos três artigos, apenas se variando os valores); e as proibições de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios e de contratação com o Poder Público (aplicáveis às condutas previstas nos três artigos, apenas se variando o prazo da proibição entre elas). 441 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A sanção de caráter administrativo imposta na Lei de Improbidade é a perda da função pública. Esta penalidade é aplicável às condutas que se amoldem em qualquer das categorias de atos ímprobos, sendo necessário o trânsito em julgado da sentença condenatória para que seja efetivada (artigo 20, da Lei nº 8.429/92). A perda da função pública não se confunde as sanções de perda de mandato eletivo e suspensão dos direitos políticos. As últimas são classificadas como sanções de caráter político sendo necessário, em ambas, o trânsito em julgado da sentença condenatória. Estas sanções são aplicáveis aos três grandes tipos de condutas classificadas como ímprobas, sendo imprescindível a explícita indicação da suspensão na sentença condenatória. É forçoso advertir que as sanções poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, com base na gravidade do fato, de acordo com a redação conferida ao caput do artigo 12, pela Lei nº 12.120/2009. Os critérios de dosimetria, para a aplicação das sanções que não possuem prazos ou quantidades fixas, estão dispostos no parágrafo único do artigo 12, devendo o Juiz considerar a extensão do dano causado somada ao proveito patrimonial obtido. Ainda, deverá o Juiz observar critérios como o da proporcionalidade, razoabilidade e a boa-fé do agente quando da cominação das penalidades, sendo vedado o excesso (ARRUDA ALVIM in OLIVEIRA; CHAVES; GHIGNONE, 2010, p. 178). A Lei de Improbidade Administrativa ainda fornece a regulamentação do Procedimento Administrativo (nos artigos 14 e 15) e do Processo Judicial (artigo 17). Neste aspecto, importante ressaltar a independência dos dois institutos, bem como a possibilidade de o segundo aproveitar-se do primeiro, principalmente em relação à coleta de evidências. Por fim, destacável o disposto no artigo 73, § 7° da Lei nº 9.504/97, que estabeleceu que as condutas vedadas estabelecidas naquele diploma, caracterizariam, atos de improbidade administrativa, sujeitos às sanções previstas no artigo 12, III, da Lei 8.429/92. As condutas vedadas dispostas na Lei das Eleições têm como principal justificativa a necessidade de manutenção da isonomia dos candidatos na disputa pelo cargo eletivo, ou seja, ao se incorrer em qualquer delas, a validade do pleito – como real resultado da vontade e consciência popular – estará ameaçada por desrespeito da igualdade de oportunidades dos candidatos. O principal objetivo da 442 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Lei das Eleições, então, ao estabelecer esta série de condutas é o de coibir o uso dos recursos estatais, da máquina administrativa, em favor da candidatura de qualquer pleiteante a mandato. O abuso de direito é das mais graves violências contra o regime jurídico republicano, e ele se manifesta tanto pelo abuso de poder político, quanto pelo abuso de poder econômico. Ambos compreendem arbitrariedade e discriminação. O abuso de autoridade, espécie de abuso de poder político, se caracteriza pelo uso exorbitante de faculdades administrativas, pelo privilégio, pela discriminação. (AMARAL; CUNHA, 2002, p. 283). As sanções de possível cominação através da própria Lei das Eleições são: a suspensão imediata da conduta; a aplicação de multa, duplicável a cada reincidência; e a cassação do registro ou do diploma, nos casos de conduta grave. Entretanto, com relação ao enquadramento de tais condutas como ímprobas, percebe-se a notável disparidade entre a conduta vedada e a sanção a ela aplicada através da Lei de Improbidade Administrativa, se comparadas a outros tipos de atos. Isto porque, tratou a Lei das Eleições, de enquadrar as condutas vedadas como atos ímprobos que atentam contra os princípios da administração pública, passíveis das sanções do artigo 12, III. Destaca-se que algumas das sanções previstas neste artigo, como a suspensão dos direitos políticos e a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, são de período notadamente inferior às passíveis de imposição face às condutas previstas nos artigos 9º e 10. Porém, não se percebem grandes diferenças entre as condutas previstas como vedadas pela Leis das Eleições e as condutas dos artigos 9º e 10, ao menos não a ponto de justificar essa disparidade na graduação da pena. Ressalvada a colocação supra, as condutas vedadas poderão ainda, gerar efeitos no tocante à elegibilidade do candidato, conforme previsão do artigo 1°, I, da Lei Complementar 64/90, com redação conferida através da Lei Complementar 135/2010, que será objeto de estudo do próximo item. 4 AS RECENTES ALTERAÇÕES NA LEGISLAÇÃO ELEITORAL E O COMBATE À CORRUPÇÃO Realizado o apanhado histórico da corrupção e da improbidade – com a apuração de alguns de seus reflexos – e estudados os mecanismos de controle 443 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE preventivos e repressivos e as disposições legais mais tradicionais e de maior relevância em relação ao tema, percebe-se, ainda, a presença de algumas lacunas na legislação, que além de gerarem dúvidas, facilitam a propagação dos atos deletérios. Para o preenchimento destas lacunas, muitas vezes, a própria Justiça Eleitoral acaba atuando normativamente, como na criação de Resoluções e na formulação de respostas a consultas acerca da matéria eleitoral. Para tanto, o Tribunal Superior Eleitoral se vale da sua legitimidade constitucional para a edição de atos normativos, reforçada através do disposto no Código Eleitoral, em seu artigo 23, incisos IX e XII. Entretanto, as resoluções são fonte de dúvidas e frequentemente matéria de consultas. A fim de diminuir as recorrentes dúvidas e consolidando em muito o posicionamento adotado pelo TSE em diversas questões, foram editadas duas importantes Leis, a de nº 11.300/2006 e a de nº 12.034/2009, as chamadas “minirreformas eleitorais”. Vê-se, notadamente, em ambas, a preocupação com a atualização da legislação eleitoral, com maior regulamentação de temas como propaganda eleitoral, participação de ambos os sexos nos pleitos, financiamento e prestação de contas. É claro que muitas dessas alterações significam, em última análise, meios de combate à corrupção, pois conferem maior igualdade de condições e representatividade ao pleito, com menor influência do poder econômico. A busca por maior igualdade é legítima e está relacionada à influência do poder econômico sobre o sistema eleitoral vigente no país. Quanto maior a intervenção do poder econômico sobre as eleições, é elevada a desigualdade do pleito e são maiores as chances de se elegerem candidatos compromissados com seus “investidores de campanha”, exemplificados atualmente no país pela classe financeira (DIAS, 2004, p. 146). Deste modo, o pesado investimento em campanhas eleitorais somado à pouca fiscalização é uma das fontes primárias de corrupção administrativa, por eleger, cada vez mais, os chamados “políticos de rabo preso”. Dentre as mudanças realizadas pelas “minirreformas” em relação à maior igualdade e representatividade, destacam-se, primeiramente, as que objetivam a maior participação feminil nos pleitos. A Lei 12.034/2009 trouxe modificações na Lei Partidária (9.096/95), ocasião em que foram inseridas normas de reserva de cota para participação política feminina, expressadas no artigo 44, V (reserva de cota de 444 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE recursos) e no artigo 45, IV (reserva de cota de tempo de propaganda). Paulo Henrique dos Santos Lucon (2010, p. 570) discorre acerca das normas de participação da mulher: Em uma interpretação puramente gramatical, esse dispositivo viola a Constituição Federal que estabelece a igualdade entre sexos. Entretanto, é sabido não haver igualdade de oportunidades de participação das mulheres em muitas situações da vida. Na política, isso não tem sido diferente. Por isso, os recursos provenientes do Fundo Partidário serão aplicados na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres (...). Outra mudança, no mesmo sentido, foi a realizada no artigo 10, § 3°, da Lei n° 9.504/97, que dispõe que devem ser preenchidas, pelos partidos ou coligações, o número mínimo de 30% das vagas, por um dos sexos, e o máximo de 70%, pelo outro. Neste caso, como não existe referência direta a qual sexo se quer proteger, apenas se garantindo número mínimo de qualquer um, não há o que se aventar acerca de eventual inconstitucionalidade do dispositivo. São de destaque as alterações feitas nos meios de controle do atual modo. A Lei 11.300/2006, por exemplo, trouxe novidades em relação à necessidade - por parte de partidos, coligações e candidatos – da divulgação na internet de relatórios que explicitem recursos e gastos estimáveis realizados em campanha, com indicação de doadores e doados (art. 28, § 4º) e a limitação dos tipos de doações (art. 23, §4°, I e II). Ainda, são importantes as proibições de distribuição de brindes por candidatos (art. 39, §6°), de showmícios (art. 39, §7º) e de distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios, por parte da Administração Pública (art. 73, § 10º). Essas condutas, certamente, são impactantes nas condições do pleito. Em relação aos meios de controle, foram procedidas significativas mudanças nos artigos 30, 30-A, 41-A e 73, da Lei 9.504/97. Primeiramente, destaca-se que, os últimos três dispositivos supracitados, podem, além das sanções específicas, virem a gerar os efeitos da inelegibilidade, prevista pelo artigo 1º, I, j, da Lei Complementar 64/90. Adotou-se, ainda, para processamento das ações, o rito da representação do artigo 22, da Lei de Inelegibilidades, principalmente por seu caráter de maior efetividade e celeridade. De plano, a segunda “minirreforma” eleitoral incluiu ao artigo 30 da Lei das Eleições quatro incisos. Estes incisos formaram as balizas ao julgador das contas de 445 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE campanha, consistindo-se em: aprovação, aprovação com ressalvas, desaprovação e não prestação. Nas duas primeiras situações, as contas são aprovadas, não percebendo o candidato maiores problemas. No caso da não prestação das contas, nota-se que esta obsta a diplomação de candidatos eleitos, além de poder configurar crime de desobediência. Para a desaprovação das contas, caso do inciso III, a falha existente tem que ser sobremaneira incisiva, devendo o julgador proceder a uma análise profunda das contas em cada caso concreto. O próprio dispositivo salienta que a falha deve necessariamente comprometer a regularidade das contas. Ponto controverso é o dos efeitos gerados pela desaprovação das contas. Sustenta Rodrigo López Zílio (2012, p. 413) que “a rejeição das contas, por si só, na tem qualquer efeito sobre o candidato eleito, sendo necessário o ajuizamento de uma ação eleitoral específica para o afastamento do mandato eletivo.” Entretanto, para alguns autores, como Olivar Coneglian (2012, p. 216), quando desaprovadas as contas, o efeito imediato deveria ser o barramento da obtenção de certidão de quitação eleitoral. Inserido através da Lei n° 11.300/2006, o artigo 30–A, da Lei das Eleições, regulamenta a possibilidade de representação face à captação e dispêndio ilícitos de recursos, mais conhecido pelo exemplo do “caixa dois”. A mesma Lei também previu a aplicação, no que fosse cabível, do procedimento descrito no artigo 22, da LC 64/90 e a negação ou cassação do diploma (§§ 2° e 3°). Thales Tácito Cerqueira (2010, p. 230) destaca que, para a aplicação do artigo 30-A, da Lei 9.504/97, não se é exigida a potencialidade do dano, porém devem ser observadas a proporcionalidade e a razoabilidade, quando do julgamento. Processualmente, o dispositivo teve sua redação alterada pela Lei n° 12.034/2009 especificamente na inserção do prazo para a representação de quinze dias contados da diplomação, bem como o prazo de recurso de três dias para recurso da decisão que julgue a representação (§ 3°). A Lei 12.034/2009 alterou a redação dos parágrafos do artigo 41-A, que veda a captação ilícita de sufrágio. A principal alteração está no § 1º, que evidenciou a adoção de duas teorias: a Teoria da Anuência Implícita e a Teoria do Dolo Específico. Na primeira, firmou-se que, para a caracterização da prática do tipo previsto no caput, é desnecessário o pedido explícito de voto, assim, o candidato 446 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE pode vir a ser responsabilizado por compra de votos, mesmo que sua atitude tenha sido implícita. Já a Teoria do Dolo Específico se depreende da expressão “bastando a evidência do dolo, consistente no especial fim de agir”, constante do § 1°. Assim, é necessário que o candidato ofereça a vantagem com o fim específico da obtenção do voto do eleitor (CERQUEIRA, 2010, p. 355). No §2° restou tipificado o caso de captação ilícita de sufrágio por candidato que se utilize grave ameaça ou violência a fim de obter o voto dos seus eleitores. Foram, ainda, provocadas mudanças processuais nos §§ 3º e 4º, referentes ao ajuizamento da representação e a possibilidade de recurso das decisões. No tocante às condutas vedadas, as principais alterações conferidas foram: incluir a sanção de cassação do registro ou do diploma para o agente que incorrer nas condutas de distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública (art. 73, §10), em abuso de autoridade (art. 74), ou ainda realizar shows artísticos pagos com recursos públicos para a realização de qualquer tipo de inauguração; restou proibida a simples presença de candidatos em inaugurações (art. 77), não cabendo mais a discussão acerca da participação efetiva do candidato no evento. A Lei 12.034/2009 regulou de forma extensiva a matéria da propaganda eleitoral. Disposta entre os artigos 36 a 58-A, da Lei nº 9.504/97, já incluindo o direito de resposta, diversas foram as alterações previstas pela “minirreforma”, objetivando, principalmente, o maior controle das veiculações, a maior igualdade de condições de propaganda e a menor influência do poder econômico sobre as veiculações. Dentre estas alterações destacam-se as limitações de tamanho de 4m² para faixas, placas e cartazes (art. 37, § 4º), à vedação de outdoors e à proibição do uso de trios elétricos (art. 38, § 10). Ainda, foram feitas alterações nas propagandas eleitorais na imprensa escrita, no rádio e televisão (arts. 43-57). Por fim, em relação à propaganda na internet, restaram vedados o anonimato (art. 57-D) e a veiculação de propagandas pagas, ou em sites de pessoas jurídicas, sob pena de multa (57-C e parágrafos). Após a análise das “minirreformas”, imprescindível também o estudo das mais importantes alterações realizadas através da Lei Complementar 135/2010, a Lei da Ficha Limpa, nas disposições da Lei de Inelegibilidades (Lei Complementar 64/90). Destaca-se o caráter popular desta Lei, como o resultado de um grande processo de 447 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE recolhimento de assinaturas, coordenado pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) e pela Articulação Brasileira contra a Corrupção e a Impunidade (ABRACCI), contando com a adesão de mais de um milhão de brasileiros. Em relação as alterações, percebe-se que a maioria delas concentrou-se no artigo 1°, I, da antiga Lei de Inelegibilidades, buscando não só o enquadramento de mais situações como passíveis de conferir os efeitos da inelegibilidade à certo candidato, mas, principalmente, garantir a efetividade destes efeitos, reduzindo o sentimento de impunidade. Esta preocupação está evidente em diversos incisos no aumento do prazo de inelegibilidades de 3 para 8 anos. O lapso anterior – de três anos – era criticável em razão de sua exigüidade. Considerando-se que as eleições ocorrem a cada quatro anos, a imposição da sanção trienal não impedia quem a sofresse de se apresentar como candidato para o mesmo cargo no certame seguinte; impedia-o apenas de disputar a eleição intermediária. Nesse sentido, a ineficácia da regra geral era de todo censurável, sendo evidente que não se tratava de sanção séria, mas meramente simbólica. A mudança operada pela LC nº 135/2010 otimiza a eficácia da regra em apreço, pois impede que o beneficiário de abuso de poder concorra nos quatro pleitos seguintes. Na prática, esse longo afastamento pode significar sua “morte política”. (GOMES, 2012, p. 269). Outro ponto merecedor de destaque é o da desnecessidade, em diversos casos, de trânsito em julgado da sentença condenatória para que a inelegibilidade começasse a surtir efeitos. A Lei estabelece apenas a necessidade de a decisão ser proferida por órgão colegiado, sendo possíveis inclusive as decisões providas do Tribunal do Júri, nos casos de inelegibilidade por condenação criminal. Neste ponto, geraram-se dúvidas em relação ao princípio da presunção de inocência no âmbito do Direito Eleitoral. A principal fonte de críticas em relação à Lei da Ficha Limpa, sem dúvidas, foi a aplicação da Lei da Ficha Limpa a fatos pretéritos, ou seja, a incidência da inelegibilidade de oito anos à fatos anteriores à sua publicação. No sentido da impossibilidade, pertinente a lição de Thales Tácito Cerqueira (2010, p. 728): Pois bem, ao permitir a retroatividade da LC n. 135/2010 para casos já julgados (coisa julgada) ou em curso antes da publicação da nova lei, ferindo o art. 16 da CF/88, temos a consagração do que denominamos “Direito Eleitoral do Inimigo”: 448 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE a) “antecipação da punição do inimigo” sem qualquer espécie de contraditório e ampla defesa, apenas um comunicado da Justiça Eleitoral dizendo que antes não estava inelegível, mas agora estará, ou, ainda, que antes sua inelegibilidade era de três anos, mas agora foi aumentada para oito anos; b) “desproporcionalidade das penas e relativização e/ou supressão de determinadas garantias processuais” – as penas são aumentadas para 8 anos, algumas a partir da condenação até 8 anos após o cumprimento da pena, além de supressão de todas garantias processuais, porquanto, ao retroagir, a lei para casos julgados (coisa julgada) ou em curso (em vez de condenações servirem para próximas eleições), o contraditório e ampla defesa está ou totalmente “estuprado” (ferindo coisa julgada) ou “mitigado” ( no caso do processo em curso); c) criação de lei severa destinada à clientela – a LC n. 135/2010 é uma lei altamente positiva, mas, a partir do momento que também deseja retroagir, desvia-se de sua finalidade moralizadora para servir de instrumento de atingir “inimigos”, clientela de políticos condenados, razão pela qual jamais o STF pode (ou poderia) permitir esse instrumento de vingança Entretanto, apesar das críticas apresentadas, em julgamento conjunto das ADC 29 e 30, e da ADI 4578, em fevereiro de 2012, o Supremo Tribunal Federal, por decisão não-unânime, deliberou pela constitucionalidade total da Lei da Ficha Limpa. Em relação ao princípio da presunção de inocência, de destaque os votos que diferenciaram o âmbito penal e processual penal do eleitoral, entendendo pela primazia do princípio da moralidade, como visto no voto do Ministro Joaquim Barbosa. A inelegibilidade foi tratada como o descumprimento de uma condição, da condição da elegibilidade, e não como uma pena propriamente dita (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.578, Relator para o acórdão Ministro Luiz Fux, j. 16 fev. 2012). Em relação aos argumentos levantados acerca da existência de ofensa a coisa julgada, foi considerado não haver direito adquirido à elegibilidade, se tratando de condição a ser preenchida pelo candidato quando do momento da eleição à que se pretende disputar. No que diz respeito à irretroatividade das Leis, interessante a diferenciação levantada entre retroatividade autêntica e retroatividade inautêntica (retrospectividade), pelo Relator, Ministro Luiz Fux, sustentando ser visível, na Ficha Limpa, o enquadramento da retrospectividade, que seria permitida no ordenamento jurídico (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.578, Relator para o acórdão Ministro Luiz Fux, j. 16 fev. 2012). Ainda, de destaque a mudança realizada através da inserção do inciso XVI ao artigo 22. Restou, por ela, abandonado posicionamento já consolidado na 449 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Jurisprudência, da necessidade da potencialidade do fato para a incidência da inelegibilidade, aplicando-se, sendo indispensável, com a nova redação, a gravidade do fato. Luiz Gustavo de Andrade (2010) explica: Com advento da lei da ficha limpa, acrescentou-se o inciso XVI, no art. 22, da LC 64/90, dispondo que para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição. Sem dúvida uma inovação que demonstra preocupação com a moralização das eleições. Entretanto, é bom ressaltar que o legislador, no mesmo dispositivo, estabeleceu que os tribunais, por outro lado, deverão levar em consideração a "gravidade das circunstâncias" que caracterizam o ato. Assim, certamente a defesa dos candidatos passará a alegar que o ato não era grave, forçando a jurisprudência a estabelecer critérios para qualificar uma conduta como grave ou não-grave. Entretanto, vê-se que as modificações trazidas através das “minirreformas” e da Lei Complementar 135/2010, embora muito significativas, não tocaram em importantes pontos, que devem ser debatidos. Um desses pontos é o das doações ocultas. A possibilidade de doações sem identificação facilita a ocorrência de financiamentos de campanha com verbas provenientes de fontes ilegais, ou, por doadores que tenham interesse em proveitos futuros, caso seus financiados sejam eleitos. Dados recentes demonstram que a ocorrência de doações sem identificação tem se tornado o principal meio de financiamento de campanhas. Pesquisas recentes revelaram que 71% das doações a candidatos a prefeito de capitais do país, nas eleições de 2012, foram ocultas. (D’AGOSTINO, 2012) Ainda sobre as doações ocultas, esclarecedoras as palavras de Paulo Henrique dos Santos Lucon (2010, p. 564): É sabido e ressabido que se um financiador não deseja ter seu nome vinculado a um candidato, ele doa ao partido político. O partido, tendo recebido os recursos, repassa o dinheiro ao candidato. (...) As irregularidades, se existentes, somente aparecerão muito tempo depois das eleições. Esse sistema “partido-ponte” não permite a fiscalização a contento e possibilita doações de origem altamente questionável. Doações provenientes de origem ilícita maculam as eleições e devem ser combatidas com veemência. O fato de as alterações deixarem à margem discussões como a das doações ocultas, somados aos exemplos de êxito da Lei n° 9.840/99 e da Lei Complementar 450 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE n° 135/2010 e à insatisfação da população em relação aos seus representantes faz com que surjam, cada vez mais, movimentos populares que almejem mudanças. Esse tipo de procedimento é demonstrativo da força da população em um regime democrático, uma população tendente a ser cada vez mais consciente e zelosa para com a coisa pública e participativa em relação ao regime político. Por participação política não se deve entender apenas a manifestação de vontade na escolha de representantes, mas uma série de atos tendentes à manutenção do controle de tudo o que se faz no exercício do poder político, desde a militância num partido político, até a participação em grupos de interesse ou de pressão. (KNOERR, 2009, p. 45) Nessa esteira, em ação encabeçada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), juntamente com o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, entre outras instituições, surgiu em período recente e vem tomado força o projeto Eleições Limpas3, que vem buscando a adesão da população, por meio de coleta de assinaturas, para a realização de alterações mais significativas no sistema eleitoral brasileiro, objetivando, basicamente, a diminuição dos gastos nas eleições e do número de candidatos, o fortalecimento dos ideais partidários e o maior controle dos financiamentos de campanha. Pode-se dizer que o projeto, em última análise, objetiva, como seu próprio nome diz, “limpar as eleições”, ou seja, diminuir a corrupção eleitoral, as influências e o abuso do poder político e econômico. As principais mudanças seriam: restrições nos financiamentos de campanha, proibindo a participação de pessoas jurídicas e limitando a de pessoas físicas; mudança nas eleições proporcionais, com a adoção de sistema de dois turnos, em que no primeiro se votam nos partidos e no segundo nos candidatos; a permissão de propagandas pagas na internet; e a consideração, como propaganda eleitoral, apenas das propagandas pagas, excluindo-se as gratuitas. Em relação ao financiamento de campanha e a necessidade de mudanças, importante a lição de Francisco de Assis Vieira Sanseverino (in RAMOS, 2012, p.263-269), que assevera como constitucional apenas o sistema misto, públicoprivado, por ser plural. Entretanto, registra a necessidade da busca por maior 3 Movimento Eleições limpas. Disponível em: <https://eleicoeslimpas.org.br/> Acesso em: 12 ago. 2013. 451 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE publicidade e transparência, com o fim das doações ocultas e das doações por pessoas jurídicas (que não possuem capacidade eleitoral ativa nem passiva). Como consequência da maior publicidade, salienta o autor a necessidade do aumento da fiscalização e punição, como na criação de sanções aos candidatos que recebam doações além do limite legal e na possibilidade de acompanhamento das contas durante a campanha. Em relação à votação em dois turnos, um problema reside na escolha dos nomes que participariam do segundo turno, pois esta poderia ser feita por meio de listas fechadas dos partidos. Fernando Gustavo Knoerr (2009, p. 68) aponta que a adoção de listas fechadas pode significar a oligarquização partidária, sustentando que, para que tal mudança não fosse prejudicial, seria imprescindível uma maior democratização dos partidos políticos. Por fim, destaca-se a proposta de se classificar como propaganda eleitoral, apenas a propaganda paga. Com isso, uma infinidade de propagandas não seriam alcançadas pelo crivo da Justiça Eleitoral, fugindo de sua competência, visto que, com a desconfiguração da propaganda gratuita como meio de propaganda eleitoral, eventuais abusos nela presentes não seriam mais passíveis de julgamento pela Justiça Especializada. A alteração pretendida é passível de diversas críticas, tendo em vista a importância do tema das propagandas eleitorais nos pleitos, e a necessidade de existência de um rígido controle sobre o que é veiculado, sob pena de se ceifar a igualdade entre os candidatos. Após tais considerações, não pode se negar a importância da maior participação da população, conscientizando-se, fiscalizando os agentes públicos, sendo cautelosa com a coisa pública, ou até mesmo apresentando projetos de iniciativa popular. Essa maior participação é sempre benéfica à subsistência e reprodução do regime democrático. 5 CONCLUSÃO Através do artigo concluiu-se que o fenômeno da corrupção é histórico no país, gerando grandes prejuízos e se configurando como afrontas diretas aos princípios regentes da administração pública. 452 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Viu-se que são necessárias rígidas legislações quando se tratam de atos corruptos e ímprobos, tendo em vista a importância da moralidade e da probidade do agente público ao tratar da coisa pública. Importantes, ainda, as alterações realizadas buscando a redução da influência do poder econômico no pleito e a diminuição da impunidade, principalmente as provindas da sociedade, como a Lei da Ficha Limpa. Entretanto, como se viu, não somente de leis e punições é que se faz um Estado mais probo e ético. Se assim fosse, os atos corruptos e ímprobos seriam de escala mínima no país, tendo em vista a já extensa existência de legislação relativa ao tema. A realidade, porém, é distante disso. A necessidade de conscientização da população para a escolha do seu representante e de discernimento do representante para com o erário público é mais que clara. A prevenção, mais do que a punição, se destaca como um caminho mais coerente para a diminuição da corrupção no país. O cidadão não deve ter o governante que merece, ele deve ter o governante que escolhe, a partir de uma escolha consciente e convicta. 453 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS AMARAL, Roberto; CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Manual das eleições. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. ANDRADE, Luiz Gustavo de. A Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa) e as alterações introduzidas na Lei das Inelegibilidades. Disponível em: <http://m.parana-online.com.br/canal/direito-e-justica/news/455058/> Acesso em: 09 ago. 2013. AVRITZER, Leonardo. Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. AZEVEDO, Luis; REIS, Adacir. Roteiro da impunidade. 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Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), Pós-Graduação em Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é professor horista da disciplina de Processo Penal, nos cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: direito processual penal e direito penal. 457 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SUMÁRIO 1- Introdução. 2- Direitos da personalidade. 3- Direitos fundamentais. 4- Esfera particular do indivíduo. 5- Direito à vida privada. 6- Direito à intimidade. 7- Direito ao Sigilo das Comunicações. 7.1- Princípio da inviolabilidade das comunicações. 7.2 Limites ao sigilo das comunicações. 7.3 - Limites ao sigilo das comunicações telefônicas. 8 - Conflito aparente entre direitos fundamentais. 9 - Considerações Finais. Referências. 458 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO O Estado Democrático de Direito tem assento na proteção dos direitos fundamentais individuais. O sigilo das comunicações telefônicas, através da regra da inviolabilidade, é um dos meios de se garantir efetividade aos direitos fundamentais à intimidade e à vida privada para proteção da esfera particular do indivíduo, estando previsto no art. 5º, XII da Constituição Federal de 1988. Entretanto, o constituinte originário permitiu expressamente a mitigação do segredo das comunicações telefônicas no âmbito penal. Considerando esta violação autorizada, o objetivo do presente estudo é verificar, com auxílio do método dedutivo e utilização de pesquisa bibliográfica, quais situações permitiriam a colocação de limites e restrições legais aos referidos direitos fundamentais. Palavras-chave: Direito à vida privada, Direito à intimidade, Sigilo das comunicações telefônicas. 459 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT The Rule of Law is based on the protection of individual fundamental rights. The secrecy of telephone communications, by the rule of inviolability, is a mean of guaranteeing the fundamental right to intimacy and privacy. This way to protect the private sphere is referred to in article 5, XII, of the Federal Constitution of the Brazilian Republic of 1988. Nonetheless, the legislator who drawn up the Constitution allowed the mitigation of this right in criminal scope. Considering this authorization of violation, the goal of this present study is to verify, using the deductive method and "bibliographic research", which situations admit the placement of limits and legal restrictions on these fundamental rights. Keywords: Right to privacy, Right to intimacy, The secrecy of telephone communications. 460 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO O presente artigo pretende estudar o âmbito de proteção dos direitos à intimidade e à vida privada enquanto direitos da personalidade e liberdades fundamentais como meio de garantir o livre desenvolvimento do indivíduo mediante o reconhecimento pelo Estado de uma esfera de não interferência na liberdade da pessoa humana. Deste modo, a Constituição Federal declarou invioláveis os direitos à intimidade e à vida privada e para garantir a efetividade destes assegurou também, com fundamento no direito à liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, o direito ao sigilo das comunicações em geral, pelo princípio da inviolabilidade das comunicações. No âmbito das telecomunicações o objetivo desta regra de segredo é a proteção do emissor e receptor contra a interceptação e divulgação por terceiro do conteúdo comunicado. Todavia, cabe verificar não só se esta regra tem aplicação absoluta e caso contrário, analisar em que condições e por quais motivos pode ser legítima a intervenção neste âmbito de proteção, como também os possíveis conflitos entre direitos fundamentais, quais sejam, o interesse público do esclarecimento da verdade e da produção da prova pelo Estado com o direito à vida privada, à intimidade e ao sigilo das comunicações. 2 DIREITOS DA PERSONALIDADE Denominam-se direitos da personalidade o conjunto de direitos essenciais à pessoa humana e que devem ser resguardados para garantia do seu pleno desenvolvimento. Consoante Bittar (1989, p. 6): Consideram-se como da personalidade os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos no homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos. 461 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Deste modo, por serem intrínsecos à pessoa humana, os bens jurídicos vida, liberdade, honra e intimidade, entre outros, são direitos protegidos enquanto primeira categoria de bens do indivíduo. “A proteção que se dá a esses bens primeiros do indivíduo, são denominados de direitos de personalidade” (SZANIAWSKI, 2005, p. 70). Tais bens podem ser divididos, conforme Bittar (1989, p. 59) em três grupos, quais sejam: bens de ordem física, psíquica e moral. No primeiro conjunto destacam-se os elementos extrínsecos da personalidade, compreendidos especialmente no direito à vida e à integridade física. Quanto aos bens de ordem psíquica, ressalta-se o direito ao exercício das liberdades individuais, o direito à intimidade e ao segredo, dentre outros elementos ínsitos da personalidade. Por último, como valores de ordem moral atinentes ao modo como a coletividade valora o indivíduo, destacam-se os bens jurídicos identidade, reputação e honra. Para Sampaio (1988, p. 51), em que pese o anseio dos indivíduos por autonomia diante do Estado ser de longa data, a construção teórica dos direitos da personalidade é relativamente nova e ainda existem discussões doutrinárias a respeito da natureza desses direitos. Nada obstante, o Ordenamento Jurídico Brasileiro reconheceu sua existência e para tanto garantiu proteção através do direito positivo. É o que se verifica dos artigos 5º, caput, e incisos IV, VI, IX, X, XIII, XV, XVI, XVII da CF; existem ainda outros dispositivos esparsos no texto constitucional, haja vista que os direitos arrolados no art. 5º pelo legislador não esgotam a proteção neste âmbito. Szaniawski (2005, p. 144) acerca da normatização assim explica: Enquanto tratou o constituinte de cuidar da tutela da personalidade humana através de uma cláusula geral, consubstanciada no princípio da dignidade da pessoa humana, expresso no inciso III, do art. 1º, como princípio informador matriz, especializou o constituinte no art. 5º, alguns direitos da personalidade destinados a fortalecer a tutela da personalidade humana, mediante as garantias fundamentais expressas na Constituição. Verifica-se, todavia, que os mesmos direitos tutelados pelos direitos da personalidade sob o panorama das relações privadas (o direito à vida, à liberdade, à integridade e à intimidade, a título meramente exemplificativo), ou seja, entre particulares, ao serem analisados sob o ângulo de proteção do sujeito de direitos 462 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE perante o Estado (relações de direito público) são discriminados como “liberdades públicas” ou “direitos fundamentais”. Quanto à expressão “direitos fundamentais”, Sarlet (2007, p. 33) salienta que, […] tanto na doutrina, quanto no direito positivo (constitucional ou internacional), são largamente utilizadas (e até com maior intensidade), outras expressões, tais como “direitos humanos”, “direitos do homem”, “direitos subjetivos públicos’’, “liberdades públicas”, “direitos individuais”, “liberdades fundamentais” e “direitos humanos fundamentais”, apenas para referir algumas das mais importantes. Sobre os diferentes planos de observação, público e privado, leciona Bittar (1989, p. 3) que, “Alguns desses direitos, quando enfocados sob o aspecto do relacionamento com o Estado e reconhecidos pelo ordenamento jurídico positivo, recebem o nome de “liberdades públicas.” Assim, como bem ressalva Bittar (1989, p. 24), […] a doutrina – principalmente na França- distingue os direitos da personalidade das liberdades públicas, como institutos diversos, quanto ao plano e quanto ao conteúdo. As liberdades públicas distanciam-se dos direitos do homem, com respeito ao plano, pois, conforme se expôs, os direitos inatos ou direitos naturais situam-se acima do direito positivo e em sua base. São direitos inerentes ao homem, que o Estado deve respeitar e, através do direito positivo, reconhecê-los e protegê-los. Mas esses direitos persistem, mesmo não contemplados pela legislação, em face da noção transcendente da natureza humana. Já por liberdades públicas, entendemse os direitos reconhecidos e ordenados pelo legislador: portanto, aqueles que, com o reconhecimento do Estado, passam do direito natural para o plano positivo. Por conta disso, passa-se à análise dos direitos à intimidade e à vida privada sob a ótica das liberdades fundamentais. 3 DIREITOS FUNDAMENTAIS Os direitos fundamentais, de acordo com Afonso da Silva (2007, p. 180), 463 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE […] são direitos constitucionais na medida em que se inserem no texto de uma constituição ou mesmo constem de simples declaração solenemente estabelecida pelo poder constituinte. São direitos que nascem e se fundamentam, portanto, no princípio da soberania popular. Para Mendes (1999, p. 413) “os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos essenciais da ordem constitucional objetiva.” Por conseguinte, forçoso concluir que essas liberdades fundamentais assentam a base do ordenamento jurídico brasileiro, bem como determinam as diretrizes para as políticas públicas nacionais. Acerca da terminologia empregada, o doutrinador Afonso da Silva (2007, p. 178) justifica, dentre as várias possibilidades, a utilização do conceito “direitos fundamentais do homem”, por entender que ela se apresenta como a expressão mais adequada de seu conteúdo: […] no qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como o macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana. Direitos fundamentais do homem significa direitos fundamentais da pessoa humana ou direitos fundamentais Diante da essencialidade dos direitos fundamentais, Sarlet (2007, p. 79) recorda que a Constituição Federal de 1988 acentuou a importância destes incluindo-os em posição de relevo no texto constitucional: Dentre as inovações, assume destaque a situação topográfica dos direitos fundamentais, positivados no início da Constituição, logo após o preâmbulo e os princípios fundamentais, o que, além de traduzir maio rigor lógico, na medida em que os direitos fundamentais constituem parâmetro hermenêutico e valores superiores de toda a ordem constitucional e jurídica, também vai ao encontro da melhor tradição do constitucionalismo na esfera dos direitos fundamentais. Ademais, considerando ser o sustentáculo para manutenção do Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais do homem foram elevados a 464 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE cláusula Pétrea e constituem hoje disposição legal taxativamente blindada que deve ser aplicada imediatamente (SARLET, 2007, p. 79). Sobre a cláusula de imutabilidade ensina Sarlet (2007, p. 79) que Esta maior proteção outorgada aos direitos fundamentais manifesta-se, ainda, mediante a inclusão destes no rol das “cláusulas pétreas” (ou “garantias de eternidade”) do art. 60, §4º, da CF, impedindo a supressão e erosão dos preceitos relativos aos direitos fundamentais pela ação do poder Constituinte derivado. Ainda com o objetivo de assegurar a proteção dos direitos considerados nucleares para proteção do indivíduo na relação verticalizada com o Estado, os direitos contemplados como fundamentais da pessoa humana caracterizam-se pelo seu caráter inalienável, dado que são direitos intransferíveis; irrenunciáveis, vez que mesmo em caso de não serem exercidos estes não poderão nunca ser renunciados; e imprescritíveis, visto que poderão ser sempre exigíveis. No que tange a imprescritibilidade dos direitos fundamentais, Silva (2007, p. 181) ilustra que “a prescrição é um instituto jurídico que somente atinge, coarctando, a “exigibilidade dos direitos de caráter patrimonial, não a exigibilidade de direitos personalíssimos, ainda que não individualistas, como é o caso”.” Quanto à classificação do conteúdo, os direitos fundamentais são identificados como individuais ou, conforme ilustra o mencionado autor, “direitos fundamentais do homem-indivíduo, que são aqueles que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independência aos indivíduos diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado” (AFONSO DA SILVA, 2007, p. 191). É, portanto, em função do reconhecimento desta esfera de independência e não interferência frente ao Estado que os direitos fundamentais são também chamados de direitos de defesa ou direitos negativos, pois pressupõe uma não intervenção do Estado, por meio de seus órgãos, na esfera de liberdade da pessoa humana, de maneira a garantir a livre manifestação da personalidade. Mendes (1999, p. 414.) explica que, “como observado, enquanto direitos de defesa, os direitos fundamentais asseguram a esfera da liberdade individual contra 465 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE interferências ilegítimas do Poder Público, provenham elas do Executivo, Legislativo ou, mesmo, do Judiciário”. Dentre os direitos da personalidade que no âmbito constitucional são contemplados pelos direitos de viés fundamental e, por conta disso, especialmente assegurados pelo Estado, sobressaem o direito à intimidade e à vida privada, os quais integram o plano de existência particular do indivíduo. 4 ESFERA PARTICULAR DO INDIVÍDUO Como demonstrado, os direitos de personalidade incluem os direitos essenciais ao desenvolvimento do indivíduo destinados a resguardar a dignidade da pessoa humana. Segundo Oliveira (2009, p. 84.), […] como garantia fundamental ao exercício de dignidade humana, a liberdade foi também tutelada na ordem constitucional vigente, que autoriza, como pressuposto para a consolidação da democracia, a escolha do sujeito em manter-se individualizado e desenvolver-se, internamente, sem intromissão e repressão do outro. Deste modo, levando em conta que a personalidade humana é complexa e atua dinamicamente, para garantir a proteção ao seu livre desenvolver é indispensável tutelar a esfera interna de existência dos indivíduos evitando a ingerência alheia. Consoante Szaniawski (2005, p. 115.), A pessoa humana, como ser social, vive em sociedade integrada dentro de uma comunidade de personalidades. Assim, cumpre à ordem jurídica tornar possível a cada ser humano realizar sua tarefa ética, seu desenvolvimento criador, sua evolução pessoal e espiritual. Sampaio (1988, p. 27) identifica a relação existente entre o direito à liberdade e a esfera da vida privada: 466 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Recolhemos da liberdade um desdobramento imediato, referível a própria existência humana, uma autodeterminação em matéria de sexualidade, de vida familiar, de tempo de vida e morte, de informações pessoais, autodefinidora do caráter identificador “da pessoa”, ganhe esta o matiz que quiser e puder. A esse desdobramento, nominamos vida privada. Diante disso, Costa Júnior (2007, p. 24) afirma a existência de duas esferas distintas da existência humana - a esfera interna ou privada e externa ou individual: [...] contrapõe-se à esfera individual a esfera particular ou privada. Aqui, não se trata mais do cidadão no mundo, relacionado com os semelhantes, como na esfera individual. Trata-se, pelo contrário, do cidadão na intimidade ou no recato, em seu isolamento moral, convivendo com a própria individualidade. De modo semelhante, Bittar (1989, p. 105) trata de definir o alcance da esfera privada: Na esfera privada propriamente dita, tem-se a pessoa em seu interior ou em sua intimidade (esfera da confidencialidade ou do segredo, reservada ao intelecto próprio) e, portanto, inatingível por ação arbitrária de terceiro. Existem, assim, fatos, ações ou dados cuja extrapolação não interessa à pessoa, que pode, pois, evitar, juridicamente, sejam postos a conhecer, ou a sancionar, a divulgação realizada sem, ou contra, o seu consentimento (art.5, X). Em função desta separação entre o espaço público e privado e para proteção à livre existência, a Constituição Federal, em seu art. 5, X, declarou invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Portanto, como expõe Afonso da Silva (2007, p. 205), a Constituição […] erigiu, expressamente, esses valores humanos à condição de direito individual, mas não o fez constar do caput do artigo. Por isso, estamos considerando-o um direito conexo ao da vida. Assim, ele figura no caput como reflexo ou manifestação deste. Da mesma forma, pela terminologia utilizada, o legislador quis indicar ao intérprete a existência de conteúdos diversos abarcados pelo direito à intimidade e pelo direito à vida privada (AFONSO DA SILVA, 2007, p. 206). Sampaio (1988, p. 467 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 28.) entende que “com a Constituição de 1988, enumerando no inciso X do art. 5º, destacadamente a intimidade e a privacidade, não haveriam de ser confundidos os dois sentidos.” Então, quando trata de prevenir a ingerência do arbítrio de terceiros na esfera particular, trata-se de direito à vida privada. De outro lado, diz-se direito à intimidade quando se busca em um momento posterior impedir a divulgação de fato conhecido por terceiro referente à esfera intima da pessoa humana3. 5 DIREITO À VIDA PRIVADA Em que pese a Constituição Federal ter garantido o direito à vida privada e à intimidade de modo autônomo, muitos autores os entendem enquanto sinônimos. Isso se verifica também em razão de que, como expõe Afonso da Silva (2007, p. 208), “não é fácil distinguir vida privada de intimidade. Aquela, em última análise, integra a esfera íntima da pessoa porque é o repositório de segredos e particularidades do foro moral e íntimo do indivíduo”. Assim analisado, o direito à vida privada visa proteger a fruição da vida livre de perturbações e a garantia do segredo no âmbito particular, independentemente de eventual divulgação posterior das confidencialidades inerentes à vida privada, motivo pelo qual eventual lesão a esse direito antecederia a lesão do direito à intimidade. Segundo o autor, o direito à vida privada parte, pois, “da constatação de que a vida das pessoas compreende dois aspectos: um voltado para o exterior e outro para o interior” (AFONSO DA SILVA, 2007, p. 208). Enquanto no aspecto exterior o indivíduo integra a sociedade mediante as relações sociais que trava, a vida interior do indivíduo abrange o universo de seus familiares, amigos e principalmente de si mesmo. Logo, o conteúdo do direito à vida privada está fundamentalmente ligado ao aspecto interior da vida humana. 3 Carlos Alberto Bittar observa que “Autores existem, ainda, que adotam – a par das divergências de nomenclatura – conceituações diversas, como, por exemplo, quanto ao direito ao respeito à vida privada (no direito italiano, de “segretezza”) e ao direito à intimidade (ou de “riservatezza”), salientando que, enquanto com o primeiro se procura evitar a invasão da esfera privada, com o segundo se busca elidir a divulgação do fato conhecido. Outros, ao revés, já entendem ambas as posições no direito à intimidade”. É o caso do autor que entende como sinônimos o direito à vida privada e à intimidade. 468 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 6 DIREITO À INTIMIDADE De acordo com Bittar (1989, p. 102), “de grande relevo no contexto psíquico da pessoa é o direito à intimidade, que se destina a resguardar a privacidade em seus múltiplos aspectos: pessoais, familiares e negociais.” Por isso, a proteção fundamental ao direito à intimidade é para o fim de evitar o conhecimento de elementos da vida particular do indivíduo por terceiros. Explica a respeito o citado autor que, […] nesse sentido, pode-se acentuar que consiste no direito de impedir o acesso de terceiros aos domínios da confidencialidade. Trata-se de direito, aliás, em que mais se exalça a vontade do titular, a cujo inteiro arbítrio queda a decisão sobre a divulgação. (BITTAR, 1989, p. 104). Sobre o conteúdo do direito à intimidade, Costa Jr. (2007, p. 27) lembra que “na expressão direito à intimidade são tutelados dois interesses, que se somam: o interesse de que a intimidade não venha a sofrer agressões e o de que não venha a ser divulgada.” Com amparo nestes objetivos, o direito à intimidade abraça as seguintes garantias: a inviolabilidade do domicílio, do sigilo da correspondência e do segredo profissional (AFONSO DA SILVA, 2007, p. 206). Acerca da proteção ao domicílio, Afonso da Silva (2007, p. 207) aponta que: Ao estatuir que a casa é o asilo inviolável do indivíduo (art. 5, XI), a Constituição está reconhecendo que o homem tem direito fundamental a um lugar em que, só ou com sua família, gozará de uma esfera jurídica privada e íntima, que terá que ser respeitada como sagrada manifestação da pessoa humana. Já o sigilo de correspondência relaciona-se com o direito à liberdade de expressão e comunicação; o dever de segredo diz respeito ao profissional, que em razão da profissão, vem a tomar conhecimento de confidencialidade alheia. Neste caso, o titular do segredo será protegido uma vez que o profissional se obriga a guardar com fidelidade. (AFONSO DA SILVA, 2007, p. 207). 469 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 7 DIREITO AO SIGILO DAS COMUNICAÇÕES Segundo Szaniawski (2005, p. 373), “com o intuito de salvaguardar o direito ao respeito à vida privada e familiar do indivíduo, as Constituições dos países democráticos têm assegurado o sigilo das comunicações, garantindo, desse modo, o direito ao segredo dos cidadãos.” Por esse motivo, também a legislação brasileira protegeu o direito fundamental ao sigilo das comunicações, conforme previsão do art. 5º, XII da Constituição Federal. Além de direito fundamental, como exposto inicialmente, Cambi (2004, p.143) relembra que, “a inviolabilidade das comunicações telefônicas se insere na tutela dos direitos de personalidade, notadamente no direito a privacidade.” Segundo ele, o direito de conversar no telefone é um direito de personalidade visto que para desenvolver-se é preciso trocar livre e confidencialmente ideias e opiniões. Para Szaniawski (2005, p. 309), o respeito ao segredo das comunicações “encontra seu fundamento no direito à liberdade de opinião, de expressão e de manifestação do pensamento, que é expressamente tutelado pelo art. 220 da Constituição.” Concorde Mendes (2011, p. 330), “o sigilo das comunicações é não só um corolário da garantia da livre expressão de pensamento; exprime também aspecto tradicional do direito à privacidade e à intimidade”. Segue justificando que quebrar o segredo da comunicação significaria “frustrar o direito do emissor de escolher o destinatário do conteúdo de sua comunicação”. É assim que, nas lições de Szaniawski (2005, p. 305), “o direito ao segredo das comunicações consiste na possibilidade da manutenção sigilosa das comunicações em geral, tutelando sua inviolabilidade em caráter consideravelmente amplo”. Para ele estariam abrangidos, portanto, o direito ao segredo da comunicação epistolar, telefônica, telegráfica e via internet. 7.1 PRINCÍPIO DA INVIOLABILIDADE DAS COMUNICAÇÕES Acorde Sampaio (1988, p. 457), o princípio da inviolabilidade das comunicações pessoais enquanto reforço considerável à proteção da intimidade surgiu com o princípio da inviolabilidade da correspondência, como destaca: 470 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Da França ao mundo, o principio converteu-se em norma constitucional ainda no Século XIX. Assim foi reconhecido pela Constituição brasileira de 1824 e pela Carta Política da Confederação Helvética de 1874. Hoje recebe merecida proteção jurídica, no âmbito penal, civil e constitucional, estendendo-se a outras formas de comunicação, além da correspondência epistolar, de modo a melhor definir-se como principio da inviolabilidade das comunicações pessoais. Neste diapasão, para ele, O princípio da inviolabilidade das comunicações pessoais patrocina o respeito à intimidade, à medida que retira da curiosidade alheia algo que pode dizer da reserva pessoal, às vezes de sua própria intimidade, como o conteúdo de suas comunicações (SAMPAIO, 1988, p. 457). Quanto à aplicação deste princípio nas telecomunicações, o referido autor acrescenta que O regime de disciplina deferida aqui é análogo ao do direito à inviolabilidade de correspondência. Protegem-se emissor e receptor contra a interceptação e divulgação por terceiro do conteúdo comunicado, assim como um em relação ao outro, contra a gravação e divulgação da comunicação mantida, para alguns.(SAMPAIO, 1988, p. 463). Não obstante, a regra da inviolabilidade das comunicações não tem aplicação absoluta, conforme se analisará. 7.2 LIMITES AO SIGILO DAS COMUNICAÇÕES Sarlet (2007, p. 386) explica “que todo direito fundamental possui um âmbito de proteção (um campo de incidência normativa ou suporte fático, como preferem outros) e todo direito fundamental, ao menos em princípio, está sujeito a intervenções neste âmbito de proteção.” Nesse prisma, Sampaio (1988, p. 379) aponta que tais direitos não são ilimitados em razão da 471 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE […] multiplicidade de aspectos e projeções valorativas dos direitos humanos que pode levar a situação de aparente conflito, imprimindo a necessidade de opção. Também pode desafiar outros “valores” da vida em sociedade, colocando um ponto de interrogação sobre a prevalência que se deva conferir: ao direito fundamental ou aos valores-princípios em questão. Em vista disso, a noção da impossibilidade de proteção dos direitos fundamentais de maneira absoluta, “não tem oferecido maiores dificuldades, tendo sido, de resto, amplamente aceita no direito constitucional contemporâneo”(SARLET, 2007, p. 387). No tocante ao direito à intimidade, Bittar (1989, p. 106) elenca uma série de interesses da coletividade que podem sustentar a necessidade de eventual limitação, entre eles: exigências de ordem histórica, científica, cultural ou artística; exigências de cunho judicial ou policial, inclusive com o uso de aparatos tecnológicos de detectação de fatos; exigências de ordem tributária ou econômica; exigências da informação, pela constituição de bancos, empresas, ou centros, públicos ou privados, de dados, de interesse negocial, e de agências de divulgação comercial (de elementos de cunho patrimonial); exigências de saúde pública e de caráter médico-profissional e outras. Se, de fato, como acentua Costa Jr. (2007, p. 51), […] não é lícito desnudar a vida particular ou familiar de um indivíduo, seus hábitos e vícios, suas aventuras e preferências, nulla necessitate iubente, a contrario sensu (sem que nenhuma necessidade promova, em sentido contrário), será legítimo desvendá-la, presentes determinadas justificativas. Por isso, segue aduzindo o autor que não raramente se verificam hipóteses “em que o interesse do indivíduo é superado pelo interesse público, justificando-se o sacrifício da intimidade”, de modo a reduzir seu âmbito de proteção, sem, no entanto, eliminá-la (COSTA JUNIOR, 2007, p. 52). Em concordância com os ensinamentos de Arantes Filho (2009, p. 222), Retoma-se aqui a precisa lição da doutrina brasileira: deve-se proceder à ponderação entre o interesse publico na restrição do sigilo e o interesse privado de quem tem o seu segredo revelado, em observância ao principio da proporcionalidade. 472 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Pois bem. A Constituição Federal em seu art. 5º, XII, ao passo que resguarda o direito fundamental ao sigilo das comunicações, ressalva expressamente a hipótese de intervenção no âmbito de proteção das comunicações telefônicas nos seguintes termos: XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; Acerca dessa disposição, Szaniawski (2005, p. 431) entende acertada a regra constitucional acima, devendo sim encontrar exceções no âmbito penal, como explica: […] diante da existência de um delito e por necessidade de investigação criminal, cujo fundamento nos dá a segurança pública, que visa a garantia dos cidadãos no seio da sociedade e a necessidade de apurar ou reprimir delitos. O próprio interesse público e o direito à liberdade do homem determinam a colocação de limites e restrições legais aos direitos e garantias individuais. Por essas razões, o autor infere que o direito ao segredo das comunicações em geral não é tutelado pelo direito brasileiro de modo ilimitado, […] encontrando-se exceções legais ao sigilo absoluto, que se fundam em interesses superiores de combate à criminalidade, quando poderão ser utilizadas as interceptações de comunicações e infiltrações em casos de investigação criminal e de instrução processual penal, que, assegurando um mínimo do direito ao segredo das comunicações do investigado, serão sempre processadas em autos apartados e sob segredo de justiça (SZANIAWSKI, 2005, p. 313, grifo nosso). Sob outra perspectiva, “onde não se diga respeito à necessária investigação criminal, a qualquer violação de segredo de qualquer meio de comunicação, haverá, inegavelmente, um grave atentado ao direito de personalidade do interceptado” (SZANIAWSKI, 2005, p. 432). Diante disso, Mendes (2011, p. 239) reforça a conclusão de “que direitos, liberdades, poderes e garantias são passíveis de limitação ou restrição. É preciso 473 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE não perder de vista, porém, que tais restrições são limitadas”, de modo que a limitação deve estar em conformidade com as finalidades que conduziram a sua imposição. 7.3 LIMITES AO SIGILO DAS COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS Acerca das espécies de limitações ao direito fundamental, Sarlet (2007, p. 386) indica “que os direitos fundamentais podem ser restringidos tanto por expressa disposição constitucional como por norma legal promulgada com fundamento na Constituição.” No caso desta última, Mendes (2011, p. 228) explica que estas são “aquelas limitações que o legislador impõe a determinados direitos individuais respaldado em expressa autorização constitucional.” Para Sampaio (1988, p. 383), a restrição ao direito fundamental por atuação legislativa “se dá em função de que “nenhuma medida legislativa poderá ser adotada sem ter uma base legal (princípio da legalidade)”.” Mas não é só. De acordo com Mendes (2011, p. 230), […] a técnica que exige expressa autorização constitucional para intervenção legislativa no âmbito de proteção dos direitos individuais traduz, também, uma preocupação de segurança jurídica, que impede o estabelecimento de restrições arbitrária ou aleatórias. Da análise das restrições por atuação legislativa, subdividem-se estas em reserva legal simples e reserva legal qualificada. Conforme Sarlet (2007, p. 392), enquanto as simples autorizam o legislador a intervir sem estabelecer pressupostos objetivos, […] as reservas legais qualificadas, têm como traço distintivo o fato de estabelecerem pressupostos e/ou objetivos a serem atendidos pelo legislador ordinário para limitar os direitos fundamentais, como bem demonstra o clássico exemplo do sigilo das comunicações telefônicas (5º, XII, CF): “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. 474 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Considerando o exposto, assegura-se que a ressalva apresentada pelo art. 5º, XII, da Constituição Federal, referente ao direito ao sigilo das comunicações telefônicas, constitui uma restrição legal qualificada, haja vista que “a Constituição não se limita a exigir que eventual restrição ao âmbito de proteção de determinado direito seja prevista em lei, estabelecendo, também, as condições especiais, os fins a serem perseguidos ou os meios a serem utilizados” (MENDES, 2011, p. 234). Por esse motivo, Mendes (2011, p. 235) manifesta que “a restrição à inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas somente poderá concretizarse mediante ordem judicial, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer”, razão pela qual “não pode o legislador autorizar a interceptação telefônica para investigações de caráter administrativo-disciplinar ou, no caso, de investigações relacionados com eventual propositura de ações de improbidade”. 8 CONFLITO APARENTE ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS Levando em conta que os direitos fundamentais não são absolutos, como anteriormente explanado, em se verificando uma situação em que “ambos os direitos conflitantes são fundamentais, são direitos primeiros, que são legitimamente tuteláveis pela Constituição e demais normas ordinárias” (SZANIAWSKI, 2005, p. 268), Szaniawski ensina que será preciso averiguar qual o direito preponderante no caso concreto. Relaciona o autor que dentre os “conflitos do direito de personalidade com outro direito, também primeiro, tutelado pela Constituição, encontramos o direito à prova, que é um direito fundamental” (SZANIAWSKI, 2005, p. 268). Este direito, com poucas exceções, ressalta o mencionado estudioso, “encontra seus fundamentos na obrigação de boa-fé que todos devem ter no processo e no princípio da descoberta da verdade, pois ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade” (SZANIAWSKI, 2005, p. 270). Concorde Avolio (1995. p. 152), “o direito à prova constitui um desdobramento do princípio do contraditório, não se reduzindo ao direito de propor ou ver produzidos os meios de prova, mas, efetivamente, na possibilidade de influir no convencimento do juiz.” 475 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Contudo, Sampaio (1988, p. 396) entende não ser possível estabelecer, “uma regra geral de prevalência do interesse da Justiça sobre o interesse individual”, posto que “em muitos pontos, o interesse público do esclarecimento da verdade cruza com o direito à intimidade de uma das partes em questão. Ou até de terceiros.” Além do mais, Szaniawski (2005, p. 277) adverte que “esta problemática deve ser enfrentada tanto no processo civil como no processo penal, pois a busca da verdade em qualquer processo poderá violar os direitos de personalidade do indivíduo sujeito a essa verificação.” Szaniawski ( 2005, p. 272) examina que, ao menos em teoria, […] não deveriam existir limites ou restrições à admissibilidade de qualquer meio de prova no processo, uma vez que esta pretende sempre demonstrar a verdade dos fatos, colimando com a realização da justiça. Mas, muitas vezes, a prova pode ser obtida por meios ilícitos ou, até mesmo, criminosos. É o caso, por exemplo, da utilização da prova ilícita no processo, em que estão em conflito […] o direito à prova através de todos os meios, para alcançar-se a verdade, e o direito da parte contrária de opor-se a tal meio de prova, por constituirse este num grave atentado ao direito ao respeito à vida privada, sendo tal prova denominada de prova ilícita. (SZANIAWSKI, 2005, p. 368). A fim de evitar tais excessos na averiguação da verdade, a Constituição Federal proíbe expressamente a utilização das provas obtidas de modo ilícito. Sobre isso reflete Cambi (2004, p. 147): “Ora, se o direito a privacidade não é absoluto, o direito a prova também encontra limitações na Constituição”. No entendimento de Avólio (1995, p. 153), consideram-se ilícitas as provas que na sua obtenção infringiram normas ou princípios de direito material, mas que sua ilicitude repercute também no plano processual e como consequência, será inutilizada. Em razão deste conflito aparente entre direitos, Baltazar Jr. (2006, p. 239) justifica a necessidade de positivação do direito ao sigilo das comunicações e sua posterior limitação, regulamentada pela Lei 9.296/96, como se lê: 476 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Esse conflito entre a proteção da vida privada e as necessidades da investigação criminal, bem como o fato de que, na comunicação telefônica, não há possibilidade de averiguação posterior do que foi dito, pois as palavras se esvaem no próprio momento em que proferidas, levaram à inclusão na Constituição, precisamente no inciso XII do art. 5º, de referência específica ao sigilo das comunicações telefônicas. Dessa feita, a Lei 9.296/1996 ao dispor taxativamente quais as hipóteses em que se permite a violação autorizada cessou a discussão acerca da existência de um conflito aparente entre direitos, destacando-se ainda que a possibilidade de mitigação do direito ao sigilo das comunicações, na forma da lei, não importará na sua exclusão. 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS É de se ressaltar que os direitos à intimidade e vida privada, previstos no art. 5, X, da Constituição Federal de 1988, são denominados direitos da personalidade de ordem psíquica, na medida em que constituem um conjunto de direitos inerentes ao homem e, portanto, essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, por isso protegidos enquanto primeira categoria de bens do indivíduo. Observou-se que esses mesmos direitos à intimidade e vida privada, quando enfocados sob o aspecto das relações entre indivíduos e Estado, são chamados de liberdades públicas ou direitos fundamentais, uma vez que ao serem positivados pelo Estado passam a assentar toda a base do ordenamento jurídico, garantindo a manutenção do Estado Democrático de Direito. Além disso, são também conhecidos como direitos de defesa ou negativos por reconhecerem a autonomia dos particulares e estabelecerem a não interferência do Estado na esfera de liberdade da pessoa humana, especialmente na esfera particular do indivíduo, que protege a livre existência. Nesta, sobressaem-se, com maior destaque, os direitos fundamentais à vida privada e à intimidade: enquanto o primeiro previne a ingerência arbitrária de terceiros no aspecto interior da vida humana, o segundo visa impedir o conhecimento de elementos da vida privada do indivíduo. Deste modo, com o intuito de salvaguardar o direito à intimidade e à vida privada, foi constitucionalmente assegurado o direito ao sigilo das comunicações 477 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE pelo princípio da inviolabilidade das comunicações telefônicas, fundado na liberdade de manifestação do pensamento. Todavia, foi possível verificar que, em função da multiplicidade de interesses coletivos, é impossível a garantia absoluta dos direitos fundamentais, razão pela qual eles estão sujeitos à intervenção no seu âmbito de proteção. É o que ocorre com a regra da inviolabilidade das comunicações quando a Constituição Federal, expressamente, mediante reserva legal qualificada, ressalva a hipótese de redução da sua proteção diante da existência de um delito e do dever do Estado de investigar. Não obstante, eventuais restrições ao direito ao sigilo das comunicações telefônicas são limitadas pelas próprias finalidades que conduziram a sua imposição. Constatou-se, então, que existe um conflito aparente entre direitos fundamentais: de um lado o interesse público do esclarecimento da verdade e a prerrogativa da produção da prova pelo Estado que se cruzam, de outro lado, com o direito à vida privada, à intimidade e o sigilo das comunicações. Esta “incompatibilidade” foi resolvida pela Lei 9.296/1996 que, obedecendo uma exigência legal da Constituição Federal, estabeleceu as hipóteses e os requisitos formais para mitigação de direitos fundamentais. Todavia, caberá sempre o exame do caso concreto para a autorização ou não da interceptação, atendendo-se à excepcionalidade da medida e ao cumprimento dos dispositivos legais, posto que não existe uma regra geral de preponderância entre liberdades públicas. 478 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. ARANTES FILHO, Marcio Geraldo Britto. 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Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), Pós-Graduação em Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é professor horista da disciplina de Processo Penal, nos cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: direito processual penal e direito penal. 1 2 481 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 482 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO O presente trabalho objetiva demonstrar a pertinência da previsão da responsabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, por parte do projeto do Novo Código Penal. Sobre este instituto far-se-á uma breve análise histórica, para em seguida estabelecer uma análise das posições doutrinárias favoráveis e contrárias a inserção da responsabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento brasileiro, ponderando questões dogmáticas, dificuldades de adequação ao Direito Penal Clássico, bem como a dificuldade em se estabelecer um indivíduo culpado pela prática ilícita. Por fim, pretende-se, abordar a adoção da responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil pela Lei 9.605/98 dos crimes ambientais, bem como análise dos dispositivos constitucionais que supostamente trazem essa previsão, e a adoção em outros países. Palavras-chave: responsabilidade penal da pessoa jurídica, ordenamento jurídico brasileiro, posições doutrinárias, adoção em outros países. 483 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT The present study aims to demonstrate the relevance of the possible acceptance of corporate criminal liability by the Brazilian law system. For that purpose, it will be made a brief historical analysis, and than an investigation about the doctrinal positions for and against its adoption in the Brazilian legal system, analyzing dogmatic issues, the difficulties of adequacy on the classic criminal system, as well as the difficulties of establishing a subject responsible for violating the law. Lastly, it will be studied the adoption of the corporate criminal liability by the 9.605/98 law of the environment crimes, also an analysis of the constitutional devices that supposedly accept it, and the adoption in other countries. Keywords: corporate criminal liability, Brazilian law system, doctrinal positions, adoption in other countries. 484 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO O ordenamento brasileiro é fruto dos ideais iluministas da revolução francesa, e com isso toda conformação do Direito Penal é pautada nos paradigmas do Direito Penal clássico, ou seja, na teoria geral do delito (culpabilidade, antijuridicidade e tipicidade) e na responsabilidade subjetiva, da pessoa natural. E é neste paradigma clássico, em sua estrutura dogmática, e na teoria da ficção, que se fundamentam os doutrinadores contrários a adoção da responsabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, a qual foi prevista no projeto de reforma do Código Penal de 1940, para a prática de crimes contra ordem econômica e administração pública. Para os doutrinadores favoráveis leva-se em consideração a corrente moderna, já presente em muitos países, que trás a adoção da responsabilidade objetiva, devido a força e influência que as grandes corporações passaram a ter na sociedade globalizada e os novos bens jurídicos e direitos a serem tutelados. Além destes fatos cumpre salientar que com relação aos crimes ambientais já há previsão legal para a responsabilização penal das empresas, fomentando a controvérsia com relação a este instituto. Portanto, o intuito deste artigo é entender o surgimento e posições doutrinárias acerca deste instituto para esclarecer a pertinência de sua adoção no ordenamento jurídico brasileiro. 2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS Dentro da conformação do Direito Romano podem-se identificar determinadas estruturas que em muito se assemelhavam com o conceito que se tem hoje de diferenciação entre a pessoa física e jurídica, bem como a responsabilização desta última. Na Roma antiga havia a distinção entre obrigações das universitas, comparáveis a corporações, e seus membros os singuli, caracterizando-se nos primórdios de uma diferenciação entre pessoa jurídica e pessoa física. Entretanto, mesmo com esta separação, as corporações eram tidas como pura ficção, e não 485 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE realidade social ou jurídica, e por este motivo não possuíam responsabilidade criminal. (SHECAIRA, 2011, p. 7) Além deste modelo, tinha-se a possibilidade de exercer a actio dolus malus, a acusação contra o Município, quando o coletor dos impostos exercesse sua função de forma irregular, com cobranças em demasia, enriquecendo de maneira ilícita. No caso descrito era possível se insurgir contra o Município, o que poderia ser considerado como um mecanismo primitivo de admissão da responsabilização de uma corporação com relação a um dano causado a população. Na Idade Média a concepção do modelo de responsabilização da pessoa jurídica também não é prevista, entretanto podem-se perceber institutos semelhantes igualmente como no Direito Romano. Neste período tem-se o modelo do Estado Soberano, o qual concentrava todos os poderes para si, corroborando para os abusos deste poder, e contribuindo para o questionamento deste modelo, trazendo assim a necessidade de uma responsabilização deste ente para com seus excessos. Uma maior proximidade com o conceito de responsabilização da pessoa jurídica era identificado nos glosadores, esta escola tinha o conceito de um ente coletivo, as universitas como corporações, quando considerava que as decisões do conjunto de membros desta entidade configuravam-se como uma decisão única. No entanto, embora os glosadores não tivessem conhecido um conceito de pessoa jurídica, não ignoravam a figura da corporação, entendida como a soma e a unidade dos membros titulares de direito. Essas corporações podiam delinqüir. Havia crime da corporação quando a totalidade de seus membros iniciava uma ação penalmente relevante por meio de uma decisão conjunta. (BITENCOURT, 2011, p. 28) A corporação respondia criminal e civilmente por suas decisões coletivas, se a decisão não se caracterizasse como de todo o grupo representado pela corporação havia a responsabilização do membro que cometeu o delito individualmente. Os glosadores trouxeram esta imputabilidade à corporação como ente que representava uma decisão de um determinado grupo de pessoas, o que se tornava mais fácil do que se punir individualmente. Os canonistas, por sua vez, conferem uma evolução significativa no conceito de pessoa jurídica, admitindo-o no caso da instituição eclesiástica. Isto se deu pela 486 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE “[...] dificuldade prática em explicar o fenômeno real das organizações eclesiásticas, a partir da concepção dos glosadores [...]”. (BITENCOURT, 2011, p. 29) Com a conferência de capacidade jurídica para as universitas, que divergia da capacidade de seus integrantes, tem-se que a igreja passou a identificar Deus, no caso representado pelo Papa, como o titular dos direitos eclesiásticos, e não os membros que compunham a organização. Com isto, as instituições eclesiásticas passam a ser consideradas como entes sujeitos de direitos, desenvolvendo o modelo anterior, no qual as corporações respondiam pelas decisões do coletivo, mas apenas seus membros eram considerados pelos glosadores como titulares de direitos. Com os pós-glosadores as universitas adquiriram a possibilidade de delinquir, praticando crimes, e responder pelos mesmos. As corporações detinham capacidade como fictio iuris, e respondiam por crimes próprios, relacionados com atividades essenciais à corporação, ou impróprios, as quais só poderiam ser realizadas por um representante. No primeiro caso quem respondia pelo crime cometido era o ente jurídico, no segundo o sujeito que praticou o delito, estabelecendo a distinção entre crime imputado ao sujeito, e crime imputado ao ente coletivo. (BITENCOURT, 2011, p. 30) Com o movimento iluminista e a Revolução Francesa, que trouxe os conceitos de igualdade fraternidade e liberdade, tem-se um pensamento voltado para o indivíduo que rechaça os modelos de dominação destes entes coletivos opressores, e com isso tem-se o abandono da responsabilização penal da pessoa jurídica, para se difundir uma responsabilização individualista. Entretanto, o motivo para este fenômeno envolve apenas questões políticas, e como na pós-modernidade percebe-se que as corporações voltaram a exercer grande poder e influência social, tem-se a volta deste modelo no ordenamento jurídico de diversos países. 487 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 3 POSICIONAMENTOS ACERCA DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA Como se pôde perceber a responsabilização penal do ente moral não é uma criação da modernidade, seu surgimento remete a períodos longínquos da história, principalmente quando corporações ou agrupamentos adquiriam destaque na sociedade. Por este motivo, parte da doutrina considera que, como na atualidade as corporações voltaram a ganhar poder e importância na sociedade, por serem responsáveis pelas principais mudanças sociais, a criminalidade do grupo deve ser reconhecida em detrimento da criminalidade individual, reconhecendo novos bens jurídicos de caráter coletivo como a saúde pública, fazenda pública e o meio ambiente, (BUSATO, 2012, p.26) os quais sofrem influência significativa destes agrupamentos, e cuja responsabilização individual de seus membros, devido a sua organização hierárquica e fracionariedade, torna-se de difícil alcance. (SCHUNEMANN, 1988, p.530) A doutrina majoritária, entretanto, rechaça veementemente a ideia de considerar como responsável penalmente o ente coletivo, pelo fato do ordenamento jurídico brasileiro se basear nos ideais iluministas da Revolução Francesa do culto ao homem. O impedimento para esta parcela doutrinária encontra-se no avanço científico-dogmática da teoria geral do delito (culpabilidade, antijuridicidade e tipicidade), a qual estabelece os parâmetros para o Direito Penal clássico, que se pauta na responsabilidade subjetiva e no indivíduo físico. É esta preocupação mais com a forma do que com o conteúdo, mais com a coerência interna do sistema do que com suas consequências, mais com a preservação de um status quo da falácia da segurança jurídica do que com a permeabilidade do sistema para com as intercorrências sociais que conduz à diatribe entre os que rechaçam e os que defendem a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. (BUSATO, 2012, p. 34) E para melhor entender a divisão de posicionamentos que surge na doutrina, faz-se necessária uma análise dos argumentos favoráveis e contrários a adoção deste instituto. 488 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 3.1 POSIÇÃO CONTRÁRIA Primeiramente deve-se salientar que o Direito Penal clássico coloca-se como ultima ratio, ou seja, última instância a se recorrer na garantia dos bens jurídicos socialmente relevantes. Antes de se valer do direito penal, deve-se esgotar todos os outros meios de garantia do ordenamento jurídico, e isto se torna a principal crítica à expansão do direito penal, vez que, o direito penal na modernidade passou a ser utilizado como primeiro recurso de tutela, em contraposição a sua real natureza, trazendo a discussão da possibilidade de penalização do ente moral. (SHECAIRA, 2011, p. 258) É necessário ponderar também que para esta linha de pensamento, a simples dificuldade em penalizar o real agente que praticou o ilícito dentro da conformação empresarial, principal argumento favorável como veremos mais adiante, não pode servir de justificativa para que princípios que pautam nosso ordenamento jurídico sejam violados ou deixados de lado. Para melhor entender o cerne da problemática da responsabilização do ente moral é necessário citar duas teorias distintas usadas para explicar a natureza da pessoa jurídica, a teoria da ficção, e da realidade. A primeira, criada por Savigny, preceitua que o ente coletivo trata-se de algo irreal, de existência fictícia, sendo incapaz de delinquir, visto que os delitos são praticados por seus membros, pessoas físicas que o compõe. Nas palavras de Shecaira: Ora, os delitos que são imputados à pessoa jurídica são praticados sempre pelas pessoas físicas que a compõem (diretores, membros, funcionários) e pouco importa que o interesse da corporação tenha servido de motivo ou de fim para o delito. É que o direito penal refere-se ao homem natural, que dizer refere-se a um ser livre, inteligente e sensível. A pessoa jurídica, ao contrário, está desprovida desse caráter, não sendo mais do que um ser abstrato que o direito penal não pode atingir. (SHECAIRA, 2011, p. 89) Já a segunda, defendida por Otto Gierke, vê o ente moral como um ente real, independente do indivíduo que o compõe, “o ente corporativo existe, é uma realidade social. É sujeito de direitos e deveres, em consequência é capaz de dupla responsabilidade: civil e penal”. (PRADO, 2002, p. 260) 489 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A incompatibilidade tida pela doutrina majoritária encontra respaldo no princípio presente nos países adeptos do sistema romano-germânico da societas delinquere non potest, “segundo o qual é inadmissível a punibilidade penal das pessoas jurídicas, aplicando-se-lhes somente a punibilidade administrativa ou civil [...]” (BITENCOURT, 2011, p. 26), a punibilidade só pode recair sobre as pessoas naturais que compõe a pessoa jurídica como autores ou partícipes. (PRADO, 2011, p. 131). Este posicionamento é defendido pelo penalista René Ariel Dotti, ao trazer a questão da possibilidade de deixar que os verdadeiros responsáveis pelo crime fiquem em pune, enquanto se responsabiliza o órgão que os representa (DOTTI, 2011, p. 166). Admitir a responsabilização penal da pessoa jurídica seria inserir a responsabilidade objetiva em um sistema penal pautado pela responsabilidade subjetiva, que é o caso do ordenamento jurídico brasileiro, e ai resta a dúvida se há a possibilidade de adequar o modelo adotado da teoria geral do delito para recepcionar está figura jurídica ou não. Na caracterização da responsabilidade penal subjetiva têm-se elementos essenciais, que não se encontram presentes na pessoa jurídica, quais sejam: “a) capacidade de ação no sentido penal estrito; b) capacidade de culpabilidade (princípio da culpabilidade); c) capacidade de pena (princípio da personalidade da pena) [...]”. (PRADO, 2002, p. 219) 3.1.1 Capacidade de ação Segundo o modelo causalista, criado por Franz Von Liszt (sistema causalnaturalista), ação seria uma atividade realizada pelo ser humano a partir de sua vontade, produzindo um efeito modificador no mundo exterior (VON LISZT, 1889, p.193). Já o conceito trazido pela teoria social de acordo com Daniela de Freitas Marques seria “[...] toda atividade humana social e juridicamente relevante, segundo os padrões axiológicos de uma determinada época, dominada ou dominável pela vontade” (MARQUES, 2001, p.67). E por fim, o conceito finalista de Welzel, ação passou a ser uma atividade humana voluntária voltada para um fim que pode ser lícito, no qual não há intenção de promover o ilícito, mas por negligência, 490 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE imprudência ou imperícia, ocorre o resultado lesivo ou ilícito, no qual existe a intenção da lesão. Dentre todos os conceitos trazidos pela doutrina percebe-se um fator comum, que é o fato da conduta só poder existir enquanto exercício humano proveniente da vontade dirigida a uma finalidade. Conforme coloca o professor René Ariel Dotti “No sistema positivo brasileiro, a possibilidade de atribuição de um delito é privativa das pessoas físicas”. (DOTTI, 2004, p. 303) Para os críticos da responsabilização penal da pessoa jurídica, ela é incapaz de praticar uma ação, por tratar-se de um ente representativo de um grupo de pessoas, e este grupo, por meio de seu Conselho diretivo, estabelece decisões, que serão implementadas através da pessoa jurídica. Trata-se de um instituto criado por um coletivo de indivíduos que não possui consciência, nem vontade para tomar decisões e agir de forma autônoma. A responsabilidade subjetiva é o modelo adotado pelo nosso ordenamento em respeito ao princípio da Dignidade da pessoa humana “[...] que, ao inserir o homem no centro do Direito Penal, trata-o como um ser livre e com capacidade de autodeterminação. ” (KNOPFHOLZ, 2013, p. 165), por este motivo a conduta é um ato típico do ser humano, vez que “[...] deve haver, para a responsabilização penal, liame psíquico entre o fato criminoso e seu autor, e não mera ligação entre ação (ou omissão) e resultado [...]”. (KNOPFHOLZ, 2013, p. 166) En otras palavras: sólo podrá ser sujeto con capacidade de acción quien posea individualidade psicológica. Pero, como la persona jurídica carece de voluntad en este sentido no es capaz de acción y sólo puede ser concebida como una ficción. Sólo las personas físicas pueden actuar y, por lo tanto, pueden tener capacidade para delinquir: societas delinquere non potest. (BACIGALUPO, 1998, p. 63) E por mais que a ação, segundo a teoria finalista, esteja voltada apenas para sua finalidade, não exclui a necessidade de um ser humano com capacidade para discernir frente às consequências de sua conduta que culminarão em determinado fim. Deste entendimento tem-se a complexidade do modelo de uma ação como dolosa ou culposa, diferente do que trazia o modelo causal. 491 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A doutrina finalista da ação não se preocupa apenas com o conteúdo da vontade, o dolo, que consiste na vontade de concretizar as características objetivas do tipo penal, mas também com a culpa. O Direito não deseja apenas que o homem não realize condutas dolosas, mas também, que imprima em todas as suas atividades uma direção finalista capaz de impedir que produzam resultados lesivos. As ações que, produzindo um resultado causal, são devidas à inobservância do mínimo de direção finalista no sentido de impedir a produção de tal consequência (sic), ingressam no rol dos delitos culposos. (JESUS, 2002, p. 235) O dolo e a culpa constituem-se como elementos essenciais para verificação do grau de reprovabilidade da conduta, e sua previsão está extensamente disposta no ordenamento jurídico penal brasileiro, bem como em diversos outros. É o modelo que vige na sociedade, no qual o dolo passou a integrar a conduta como elemento subjetivo do tipo, na tentativa de buscar um julgamento que culmine na pena mais justa de acordo com o grau de vontade de lesividade da conduta praticada. Para o estabelecimento de culpa ou dolo, segundo maior parte da doutrina, é necessário que haja uma conduta humana, para avaliar se houve vontade no cometimento do crime, ou se ele ocorreu por negligência ou imperícia. No caso o dolo apresenta-se como elemento cognitivo e volitivo, o conhecimento do fato ilícito e a vontade de praticá-lo. 3.1.2 Capacidade de culpabilidade Culpabilidade é a relação subjetiva entre o autor do fato e sua consequência. Trata-se da “[...] reprovabilidade da conduta ilícita (típica e antijurídica) de quem tem capacidade genérica de entender e querer (imputabilidade) e podia, nas circunstâncias em que o fato ocorreu, conhecer a sua ilicitude, sendo-lhe exigível comportamento que se ajuste ao direito”. (FRAGOSO, 2004, p. 240) A culpabilidade, dentro de um contexto moderno, vincula o autor ao fato, aspecto esse que a doutrina denomina imputação subjetiva. A desaprovação que se atribui ao autor do delito é resultado de um enlace eminentemente individual; depende de sua personalidade, suas particulares relações afetivas, psicológicas, espirituais, fundamentalmente éticas (mas não morais). (SHECAIRA, 2011, p. 79) 492 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE O autor do ilícito deve conhecê-lo, ou dispor de meios para tanto, para assim ter a possibilidade de decisão entre a prática da conduta reprovável ou não, pois a culpabilidade se pauta pela vontade e consciência do indivíduo. O conceito de culpa trás o entendimento de “[...] um juízo de censura ético-pessoal, com fundamento na liberdade do homem, na sua vontade consciente e livre [...]”, (DIAS, 2007, p. 296) considerado como algo próprio do ser humano. Dos pressupostos que a compõe a culpabilidade, a imputabilidade dispõe sobre a capacidade de ser culpável, de lhe ser imputada uma pena pelo cometimento de determinado delito, neste elemento convergem os conceitos de compreensão do ilícito, e a vontade de seu cometimento baseado neste entendimento. Por este motivo, que os menores de idade, considerados incapazes juridicamente, não podem ser declarados culpados do cometimento do crime, bem como as pessoas com doenças mentais, indivíduos que não possuem o desenvolvimento necessário para compreender e discernir sobre o que a lei estabelece como bom e como reprovável. Este caráter de compreensão e vontade de praticar o ilícito, que compõe a imputabilidade, são características que só podem ser atribuídas a pessoas físicas, entes fictos não possuem vontade nem discernimento. Ademais, em não possuindo consciência do ilícito não há como se cobrar conduta diversa da praticada. Quanto à consciência da ilicitude, tem-se a necessidade do indivíduo dispor de meios para saber que aquela conduta era ilícita, e isto se pressupõe pelo fato das leis estarem codificadas e descritas em suportes físicos de acesso geral, ninguém pode se eximir de pena alegando desconhecimento da lei, pois a lei é um mecanismo proveniente de um dos três poderes estatais, que visa garantir os direitos dos cidadãos e limitar a atuação estatal. “É suficiente que o sujeito tenha a possibilidade de conhecer a ilicitude da conduta, não se exigindo que possua real conhecimento profano do injusto”. (JESUS, 2002, p. 463) Quanto à pessoa jurídica também é difícil encaixá-la nestes moldes tendo em vista que não é um ente pensante para poder ter conhecimento sobre algo. A pretensão de se incriminar as pessoas coletivas esbarra na impossibilidade de se conceber que uma empresa comercial, por exemplo, tenha possibilidade de formar “consciência de ilicitude” da atividade que é desenvolvida pelos seus prepostos e servidores. Nem seria razoável 493 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE formular-se um juízo de reprovabilidade penal pelo desempenho de uma instituição financeira, embora seja possível estabelecer-se o juízo externo de reprovação pelo seu comportamento nocivo junto ao mercado mobiliário. Mas, trata-se de um julgamento que deságua na imputação da responsabilidade administrativa, fiscal e civil; jamais de natureza criminal. (DOTTI, 2011, p. 185-186) Outro pressuposto da culpa, a exigibilidade de conduta diversa, está na possibilidade do indivíduo não praticar o ilícito, praticando uma conduta legal, lícita. No caso de não possuir de outros meios para defender-se, se não praticar o ilícito, pode ser configurado como legítima defesa, dentro outros institutos. Exige-se a possibilidade de conduta conforme o direito, o que parte do pressuposto de um juízo de valor inerente a pessoa física. A culpabilidade, então, em todos os seus pressupostos, prescinde de uma vontade e de uma cognição que são características da pessoa física, e configuram a dificuldade de amolde da responsabilização da pessoa jurídica nestes aspectos. A responsabilidade prescinde de culpa, e a culpa não pode recair sobre fato alheio, ou seja, não pode recair sobre uma suposta ação de um ente fictício quando cometida por seus dirigentes, o que acabaria por ferir o princípio da culpabilidade. (PRADO, 2011, p. 134) Para que se tenha culpa é necessário consciência da ilicitude, e apenas a pessoa natural é capaz de ter esta cognição e entendimento sobre o ilícito e capacidade de se auto determinar, praticando o ato delitivo a partir de sua vontade, que é inerente ao ser humano. O ente coletivo trata-se de uma ficção, suas “ações” são o reflexo da vontade e cognição de seus membros, ele por si só não possui personalidade e existência real, portanto não pode praticar uma ação nem ser-lhe imputada a prática de um ilícito. Ademais a culpabilidade também é utilizada como medidor de pena após a condenação, “o dado básico para a individualização judicial da pena é, sem dúvida, a culpabilidade”, (LUISI, 2011, p. 40) ela se torna parâmetro a ser seguido pelo juiz, para aplicação da pena, bem como a avaliação de outros elementos, como conduta social, personalidade, comportamento da vítima etc. E dentre estes fundamentos, muitos prescindem do status de ser humano. Com relação ao ente moral não há os pressupostos judiciais mais primordiais para a formação da pena-base, com relação ao procedimento de individualização da pena. (SANTOS, 2011, p. 290) 494 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 3.1.3 Capacidade de pena A capacidade da pena tem relação com o princípio da personalidade da pena, ou seja, nenhuma pena passará da pessoa do condenado, o que pressupõe que a pena nunca será imposta a outrem que não o real autor do ilícito, e não sobre um grupo de pessoas, aos quais não se pode precisar quem é efetivamente responsável pelo crime. Se não é possível aplicarmos a sanção de maneira individualizada à pessoa jurídica, mas sempre tomando como referencia à atuação de seu dirigente, não se preserva íntegro o princípio constitucional da individualização da pena. A individualização não pressupõe somente a existência de duas sanções a dois acusados, mas uma sanção penal verdadeiramente autônoma, especificamente voltada à pessoa condenada, como fundamento em uma responsabilidade própria e distinta do corréu, diferenciada em razão de cada “individualidade”. (BREDA, 2011, p. 294) Tem-se a possibilidade de ao se condenar a pessoa jurídica, a pena recair sobre sócios minoritários, ou acionistas que não participaram da confecção ou planejamento do ilícito, mas por fazerem parte da estrutura hierárquica acabam por sofrer as consequências em igual medida. Portanto, a pena deixa de se restringir àquele que lhe cabe, como garantia constitucional do Estado democrático de direito, e passa a ter a possibilidade de atingir terceiros inocentes. Outrossim, o princípio da personalidade pressupõe os conceitos de autoria e participação inerentes a pessoa natural, de indivíduos que possuam capacidade cognitiva possuindo personalidade e vontade para cometer a infração penal, e seguindo esta lógica a pessoa jurídica não poderia ser considerada como autor ou participe. (SANTOS, 2011, p. 288) Com relação à função da pena tem-se modernamente que ela se estabelece para afirmar a concepção de bem jurídico para maioria da sociedade. (SHECAIRA, 2011, p. 95) A pena visa punir condutas antijurídicas, estipulando ao transgressor a redução de seus direitos ou bens jurídicos, sendo fundamental que este sujeito possa sentir os efeitos gerados pelo ilícito praticado. (BACIGALUPO, 1998, p. 132) E neste sentido não possui a pessoa jurídica capacidade para sentir os efeitos da penalização, fazendo com que seja excluída uma das principais funções da pena. 495 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 3.2 POSIÇÃO FAVORÁVEL O maior argumento para a parcela doutrinária que defende a responsabilização penal da pessoa jurídica está na dificuldade de estabelecer a autoria pelo ilícito dentro de uma complexa conformação hierárquica e fragmentada, em que a estrutura empresarial se dimensiona. “Aspectos como a estrutura organizacional da pessoa jurídica e a distinção entre titularidade, poder e condução da sociedade constituem dificuldades a serem superadas em casos tais”. (KNOPFHOLZ, 2013, p. 137). O processo de tomada de decisões dentro da empresa acaba por ser descentralizado e muitas vezes os próprios dirigentes do ente moral não tem conhecimento da totalidade de serviços e ações que estão sendo realizadas internamente, ou por intermédio da empresa. O mesmo ocorre com funcionários de menor nível hierárquico que executam tarefas sem ter conhecimento do resultado final ilícito objetivado pela empresa. O que acaba por transparecer no âmbito social é a vontade da empresa ao estabelecer seus produtos e serviços voltados a um objetivo de mercado, enquanto que na sua estrutura funcional, os indivíduos que a compõe, permanecem ocultos pela figura que o ente jurídico socialmente representa. O que normalmente ocorre hoje é a penalização de pequenos membros das empresas, trabalhadores ou empregados de nível hierárquico inferior, cuja sanção comprova-se ineficaz para atingir as condutas ilícitas praticadas pela empresa em maior escala, vez que a tentativa de penalizar os membros com maior influência dentro do ente moral, como diretores, acaba por se perder na falta de material probatório. Na estrutura empresarial as decisões não advêm apenas de um indivíduo ou grupo, cada célula, ou seja, cada setor dentro da empresa tem sua importância e sua responsabilidade por determinado projeto ou serviço prestado. Para se chegar na conduta ilícita de fato, praticada pela empresa, passasse pelo crivo de diversos setores e áreas da empresa, os quais tem seus próprios superiores, não se pode arbitrariamente impor a responsabilidade ao grupo de diretores, ou administradores, 496 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE pois o processo de tomada de decisão diverge em cada estrutura empresarial, o que caracteriza a dificuldade de se individualizar a conduta penalmente reprovável. En una empresa econímica, al tener lugar la ejecución imediata regularmente en el nível inferior o más bajo por médio de órganos subordinados que no disponen ni de un propio poder de decisión, ni de las informaciones necessárias para el enjuiciamento de la peligrosidad de su propio comportamento, mientras que las decisiones concretas son adoptadas generalmente por la gerencia intermedia o superior, a la que el nível más alto de la dirección, en el que confluyen en primer término todas las informaciones, ni siquiera necessita comunicar órdenes expresas, [...]. (SCHUNEMANN, 2009, p. 125) Ademais diz-se também que a vontade da associação, trata-se de uma vontade especial, a conformação da vontade de todos os indivíduos que a compõe, o que corrobora para a teoria de que se trata de um ente real, com existência real na sociedade, sendo algo mais do que somente a soma de seus membros. (BACIGALUPO, 1998, P.73) Seguindo esta lógica tem-se que “[...] a sociedade se manifesta por seus órgãos diretivos, e a partir do momento em que uma decisão é tomada, em nome da sociedade, deixa de existir a vontade individual para existir a vontade da pessoa jurídica”. (SILVA, 2011, p. 254) Outrossim, se a própria empresa possui deveres jurídicos e personalidade jurídica perante a sociedade, levando em consideração sua importância para a mesma, além da possibilidade de cumprir suas obrigações, também pode causar danos a sociedade. (SHECAIRA, 2011, p. 101) Sus argumentos toman como punto de partida el reconocimiento de la creciente importância de las personas jurídicas en la vida social. El reconocimiento de derechos y obligaciones a las mismas supone, a su vez, el reconocimiento de certa liberdad social. El uso indebido de esa libertad social que se le concede a la persona jurídica también debe tener como consecuencia la exigência de responsabilidade penal. (BACIGALUPO, 1998, p. 133) Com relação à função social da pena, ela deve ser imposta de forma justa, todo momento em que um sujeito atue de forma a violar sua liberdade social, prejudicando a sociedade. (BACIGALUPO, 1998, p. 133) E esta mesma lógica pode ser aplicada ao se penalizar o ente moral, quando ele cometer uma conduta 497 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE reprovável, no caso seria uma sanção visando diminuir a autonomia econômica da empresa. Neste sentido a pena continua apresentando caráter retributivo, sendo imposta ao ente moral e não aos seus membros em específico como uma pena coletiva. Há que se lembrar de que a formação do modelo penal clássico adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro provém do ideal iluminista da revolução francesa, na qual é refutado o antigo regime arbitrário de governo, para se ter uma nova estrutura de Estado que atue de maneira a tutelar os direitos do indivíduo. O homem torna-se centro das questões políticas e sociais, e com isso surgem os direitos fundamentais de primeira geração, os quais se caracterizam por proteger o indivíduo contra a atuação indiscriminada estatal. Entretanto hoje, não só existem os direitos fundamentais de segunda geração, que tratam de direitos sociais, como também os direitos fundamentais de terceira geração, que abrangem os novos bens jurídicos provenientes da modernidade e da sociedade de risco, como o meio ambiente, direitos do consumidor, os quais tratam-se de direitos do coletivo, não adstritos a um indivíduo ou grupo em específico, mas a toda humanidade. “Enquanto os direitos de primeira geração têm como preocupação o indivíduo, os direitos fundamentais de 3 a geração se direcionam à proteção de toda a coletividade, onde, aliás, está inserido o homem”. (SILVA, 2011, p. 267) Nota-se a necessidade de mudança dos paradigmas penais, e conformação das questões dogmáticas para abarcar as novas estruturas da sociedade moderna de risco. Paulo César Busato trás o entendimento de que os institutos dogmáticos que a maioria doutrinária utiliza para refutar a adoção da responsabilidade penal dos entes morais, não trazem nenhum empecilho real para tanto. A capacidade de ação não deve ser interpretada por fatores psicológicos, levando-se em consideração qual a intenção de quem atua, mas sim qual a mensagem enviada por esta ação. (BUSATO, 2012, p. 34) A ação não está adstrita a um movimento, ou a uma vontade interna, mas sim ao efeito e significado social produzido. Quanto ao dolo, ou seja, a vontade de causar o dano, trata-se não de um estado mental, mas sim de algo atribuído, imputado ao sujeito que pratica o ilícito, 498 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE “Ou seja, o dolo não é algo que existe, que seja constatável, mas sim, o resultado de uma avaliação a respeito dos fatos, que faz com que se impute a responsabilidade penal”. (BUSATO, 2012, p. 45) É um juízo de valor, que cabe ao juiz avaliar conforme a situação de fato, e por isso não obsta qualquer impedimento a penalização das corporações. 4 PREVISÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Primeiramente, deve-se citar a suposta previsão de responsabilização penal da pessoa jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, no Código Criminal do Império em 1831, e no Código Penal de 1890, em seu artigo 103, parágrafo único, o qual dispunha que se o crime fosse cometido por uma corporação, ela seria dissolvida. Entretanto este dispositivo penal estaria em desacordo com o artigo 25 do mesmo Código, o qual trazia o conceito da responsabilidade penal como algo exclusivamente pessoal, logo tratava-se de uma má redação da norma penal que levou a esta interpretação errônea. A responsabilidade penal da pessoa jurídica, como já mencionado, foi inserida em nosso ordenamento pela Lei 9.605 de 1998, a qual dispõe sobre os crimes ambientais, e em seu artigo 3o trás a possibilidade da pessoa jurídica ser penalizada civil, administrativa e penalmente. Esta previsão se justifica pelos dois artigos da Constituição Federal que fazem menção a esta possibilidade, o artigo 173, § 5o, que dispõe que será estabelecida responsabilidade do ente moral, sem prejuízo da pessoa natural, com punições compatíveis com sua natureza. E o artigo 225, § 3o do mesmo dispositivo legal, o qual discorre que tanto as pessoas físicas como jurídicas, sujeitar-se-ão as sanções penais pelas infrações ambientais cometidas. Estes dispositivos legais são a base que serve de fundamento à argumentação da minoria doutrinaria favorável à responsabilização de empresas no âmbito penal, “O legislador constituinte reconheceu, sabiamente, que a impunidade gerada pelo artifício de proteger o aparato empresarial não mais seria fomentada com a inovação criminal proposta” (SANCTIS, 1999, p. 61). São dispositivos que 499 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE demonstram a influência dos direitos fundamentais de terceira geração no ordenamento moderno. Entretanto, a maioria doutrinaria coloca que esses dispositivos constitucionais não se caracterizam como a adoção por parte do legislador constituinte, tendo em vista o artigo 5o da Constituição Federal, em seu inciso XLV, que trata da responsabilidade pessoal. Sobre este aspecto tem-se o disposto por Luiz Vicente Cernicchiaro, “A sanção penal, no entanto, está vinculada à responsabilidade pessoal (art. 5o, XLV, CF/88). Hoje, dela é inseparável. A Constituição brasileira, portanto, não afirmou a responsabilidade penal da pessoa jurídica [...]”. (CERNICCHIARO, 1995, p. 164) Para a parcela desfavorável da doutrina o artigo 173, § 5 o da Constituição Federal, coloca que as punições à pessoa jurídica serão de acordo com sua natureza, logo não há o reconhecimento de responsabilidade penal, posto que só pode ser sancionada de acordo com sua essência que levaria ao uso de punições no âmbito administrativo e civil. Ademais a redação original deste parágrafo, elaborada na Comissão de Sistematização, estabelecia a responsabilidade criminal das empresas, entretanto o Plenário da Constituinte não aprovou esta redação, mas sim a que se encontra atualmente. É óbvio que o Constituinte ao dar ao parágrafo em questão uma redação diferente da proposta pela Comissão de Sistematização, com ela não concordou. Ou seja: é solar que o Constituinte ao não aprovar a redação que expressamente estabelecia a responsabilidade penal da pessoa jurídica, a repeliu. E limitou-se a dizer, sem necessidade real, que a punição da pessoa jurídica tem que se compatibilizar com a “ontologia” da pessoa jurídica, ou seja, com sua natureza. (LUISI, 2011, p. 37) Entretanto, o caso de se aplicar penas de acordo com a natureza da pessoa jurídica também pode ser entendido como a previsão de sanções penais para as mesmas por parte do legislador constituinte, pois tendo em vista que no âmbito criminal cabem vários tipos de sanções, seria óbvio não adotar sanções penais incompatíveis com a natureza do ente moral, ou seja, que estabelecessem penas físicas, corporais, às pessoas jurídicas. O fato do legislador constituinte tratar apenas de bens jurídicos de ordem ambiental e econômica em seu texto não exclui a criminalização dos entes morais 500 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE por lesões causadas a outros bens, (SANCTIS, 1999, p. 64-65) apenas estabelece uma preocupação maior para com esses bens, deixando a cargo do legislador infraconstitucional tutelar outros bens e direitos. Quanto ao artigo 225, § 3o da Constituição Federal já anteriormente mencionado ao usar as expressões “condutas” e “atividades” teria deixado implícito a distinção de que as pessoas naturais exerceriam condutas, as quais ensejariam sanções penais, e as pessoas jurídicas praticariam atividades que levariam às sanções administrativas dispostas no texto constitucional. Também tem-se o entendimento de que a maneira correta de interpretar tal dispositivo seria colocando a palavra “respectivamente” após a expressão “sanções penais e administrativas”, assim as sanções penais estariam para as pessoas naturais e as sanções administrativas para as pessoas jurídicas. E mesmo com a promulgação da Lei de crimes ambientais supracitada, parte da doutrina ainda afirma que dito dispositivo legal não implica na adoção efetiva da responsabilidade penal das empresas, posto que as polêmicas quanto à princípios constitucionais e aspectos doutrinários persistem. Não há como, em termos lógico-jurídicos, quebrar princípio fundamental como o da irresponsabilidade criminal da pessoa jurídica, ancorado solidamente no sistema de responsabilidade da pessoa natural, sem fornecer, em contrapartida, elementos básicos e específicos conformadores de um subsistema ou microssistema de responsabilidade penal, restrito e especial, inclusive com regras processuais próprias. (PRADO, 2011, p. 154) Com relação à legislação infraconstitucional dos crimes ambientais, para aqueles que admitem a pena do ente moral trata-se da adoção incontestável e expressa da responsabilização penal deste agente no ordenamento brasileiro, entretanto aqueles que criticam dizem que a referida lei apresenta falhas inegáveis, “Isso significa não ser ela passível de aplicação concreta e imediata, pois lhe faltam instrumentos hábeis e indispensáveis para a consecução de tal desiderato”. (PRADO, 2011, p. 154) Percebe-se que mesmo com dispositivos constitucionais legislando sobre o tema, e com previsão de legislação infraconstitucional da responsabilidade penal 501 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE das pessoas jurídicas a discussão sobre sua pertinência em nosso ordenamento persiste. O próprio ordenamento francês já admite a penalização da pessoa jurídica, bem como outros países, o que corrobora para a conclusão de que trata-se de uma corrente moderna, e de uma discussão relevante. 5 DIREITO COMPARADO Mesmo com os entraves dogmáticos, atualmente tem-se o surgimento de uma nova criminalidade, em que é percebida a adoção da responsabilidade penal da pessoa jurídica por diversos países que antes rechaçavam este instituto. Percebe-se que a dicotomia entre os ideais abolicionistas e funcionalistas subsiste no direito penal atual. A primeira vertente converge para uma dogmática tradicional, na qual o direito penal se estabelece como ultima ratio, já a segunda trás a ideia de um novo direito penal, “que abandone as garantias dogmáticas e aumente sua capacidade funcional, para dessa forma fazer frente aos novos desafios do complexo mundo em que vivemos [...]”. (SILVA, 2011, p. 258) Atualmente são três os sistemas relacionados a adoção da responsabilidade da pessoa jurídica existentes nos países, o sistema que reconhece plenamente sua adoção, de maioria dos países do common law e alguns do civil law; o sistema que refuta integralmente tal adoção, seguido pela maioria dos países da Europa continental; e por fim um meio termo que vige principalmente no ordenamento alemão. (SHECAIRA, 2011, p. 26) 5.1 DIREITO FRANCÊS O ordenamento francês por muito tempo considerou a pessoa jurídica com apenas um ente fictício, o qual não poderia ser responsabilizado penalmente, vez que a lei penal só poderia recair sobre os membros da empresa, posto tratarem-se de pessoas naturais com responsabilidade individual. Todavia com as alterações efetuadas no Código Penal francês em 1994, seu artigo 121-2 passou a prever a responsabilização dos entes coletivos. Em termos 502 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE teóricos isto consistiu na consagração da pessoa jurídica como detentora de uma vontade própria, a qual diverge da vontade individual de cada um de seus membros, podendo ela ser penalizada pela prática de ilícitos, desde que este seja praticado por um de seus representantes e em seu interesse. Dentre as penas aplicáveis temse previsão de: [...] multa, interdição definitiva ou temporária de exercer uma ou várias atividades profissionais ou sociais, controle judiciário por 5 anos ou mais, fechamento definitivo ou temporário do estabelecimento utilizado para a prática do delito, a exclusão definitiva ou temporária dos mercados públicos, a interdição do direito de emitir cheques, o confisco do objeto do crime, a publicação da decisão judicial e a dissolução. (SHECAIRA, 2011, p. 41) Neste sentido tem-se a responsabilidade por reflexo, em que o critério subjetivo, de dolo e culpa, estaria na pessoa individual que representando o ente coletivo praticou o ilícito, possibilitando a responsabilidade objetiva do mesmo. Esta previsão, no entanto, não se trata de uma inovação no direito francês, havia previsão de penalização às comunidades de cidades, grupos e companhias que praticassem ilícitos, até advir a consolidação do princípio do societas delinquere non potest, com o Código Penal de 1810. “Portanto, a atual previsão da responsabilidade penal da pessoa jurídica obedeceu a uma lógica de continuidade evolutiva, sedimentada com o passar do tempo”. (PRADO, 2011, p. 145) Tem-se também que no ordenamento francês ao legislador nacional cabe eleger uma espécie de responsabilização que atenda aos princípios da efetividade, proporcionalidade e dissuasão. (PRADO, 2011, p. 145) 5.2 DIREITO INGLÊS No caso da Inglaterra, maior representante desse sistema, a adoção de penalização do ente moral decorreu da Revolução industrial, pois as corporações passaram a ganhar considerável destaque no quadro social e praticar mais crimes, com isso passou-se a sancionar os entes coletivos por infrações omissivas e comissivas. A responsabilidade da pessoa jurídica foi afirmada por um dispositivo 503 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE geral presente no Interpretation Act, de 1889, o qual aumentou a abrangência do termo “pessoa”, para cingir também o ente coletivo. Este tipo de responsabilidade, em um primeiro momento, abrangeu apenas a prática de crimes de menor potencial ofensivo, e a partir de 1948, com o Criminal Justice Act, que inaugurou a oportunidade de substituição de penas privativas de liberdade em penas de ordem pecuniária, (SHECAIRA, 2011, p. 28) teve-se uma significativa ampliação nesta responsabilidade, que passou a abranger toda a sorte de crimes. (PRADO, 2011, p. 142) Atualmente as pessoas jurídicas são passíveis de pena tanto por crimes menos ofensivos, quanto por crimes graves, desde que estejam de acordo com sua natureza, logo, aplica-se a responsabilidade objetiva ou strict liability, caracterizada por não necessitar da comprovação de culpa, aplicando-se a responsabilidade subjetiva nos casos em que for necessária presença de mens rea (dolo ou culpa). Dentre as penas aplicadas à pessoa coletiva tem-se dissolução, apreensão, limitação de atividades e penas pecuniárias. Também deve-se dispor sobre a teoria da identificação, em que um membro da sociedade, ou seja, uma pessoa natural que pratica o ilícito, tem por sua vontade a vontade do ente coletivo. O problema que trás a teoria da identificação, é que para penalizar a pessoa jurídica, deve-se identificar a pessoa física responsável pelo controle da empresa. 5.3 DIREITO NORTE-AMERICANO Os Estados Unidos, sendo outro representante do sistema da common law, admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica de forma ampla e como regra dentro da sua conformação federativa, sendo apenas alguns Estados que não admitem tal responsabilidade. “Nos Estados Unidos o princípio da responsabilidade criminal da pessoa jurídica é mais amplo do que na Inglaterra. A chamada responsabilidade corporativa atinge até mesmo os sindicatos [...]”. (SILVA, 2011, p. 262) No direito americano a empresa responde por atos ilícitos culposos praticados por um de seus empregados no exercício de suas funções dentro da empresa, 504 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE mesmo que o ilícito não traga nenhum benefício para a corporação. Também responde “quando o fato criminoso for cometido a título de dolo se praticado por um executivo de nível médio”. (SHECAIRA, 2011, p. 30) No Código Penal de Nova York, de 1882, está prevista a responsabilidade penal das pessoas jurídicas com pena de não mais de cinco mil dólares, quando for condenada pelo cometimento de um ilícito por parte de uma pessoa natural, a qual também responderá pelo crime. O Código Penal da Califórnia de 1976, trás previsão similar, na qual é responsabilizada penalmente a empresa pela prática de ilícito por parte de um agente executivo ao atuar no âmbito de sua posição empresarial e em favor do ente moral. Mesma previsão trás o Model Penal Code, e o Código Criminal Federal de 1988, que estabelece que as empresas juntamente com as pessoas naturais, serão punidas, de maneira direta ou indireta, pelo cometimento de ações lesivas ao patrimônio público ou ligadas ao crime organizado. (SHECAIRA, 2011, p. 31) Com o aumento dos crimes econômicos as penas às corporações passaram a ser mais severas, o Ciminal Fine Enforcement Act de 1984, aumentou a possibilidade de penas pecuniárias ao invés de penas restritivas de liberdade, bem como expandiu seu valor econômico (SHECAIRA, 2011, p. 32) para se fazer mais efetivo como meio punitivo. Entretanto as corporações passaram a reverter essas penas pecuniárias, numa maior onerosidade a seus produtos e serviços disponibilizados no mercado, e com isso, em 1991 o Federal Sentencing Guidelines, propôs que as empresas que adotarem medidas preventivas de crime, mesmo praticando o ato lesivo, terão a aplicação de penas mais brandas. Assim, cria-se a figura da good citizen corporations ou do corporate ethos, que garantirá à empresa, em troca de sua colaboração com a prevenção do crime, além de uma melhor imagem e da garantia de confiança para implementar autonomamente seu sistema de prevenção e controle, uma redução de sua sanção caso haja o cometimento de algum delito. (SHECAIRA, 2011, p. 32) No direito americano o ilícito praticado por corporações é reconhecido a 100 anos. Anteriormente o modelo se estabelecia de acordo com o vicarious corporate liability civilista, em que era necessária a atuação ilícita de pessoa natural 505 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE representando a corporação, para que se transferisse a imputação à pessoa jurídica. Entretanto, com o passar do tempo, em âmbito federal, a base penal passou a ser a organizational negligence, na qual era penalizada a corporação por não impedir a conduta delitiva de seus empregadores. (SHECAIRA, 2011, p. 33) 5.4 DIREITO ALEMÃO Para o direito penal alemão a penalização se foca na conduta humana, por este motivo não se admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica, o que se admite são sanções por infrações menos graves, impostas a estes entes pelo direito penal administrativo. O artigo 30 da OWIG, de 1975, estabelece a pena de multa, em caráter acessório, à pessoa jurídica, quando a pessoa física praticar um delito ao representar a pessoa moral. A adoção deste tipo de penalização se caracteriza pelo fato deste ordenamento considerar que a pessoa jurídica não possui personalidade e, por este motivo, não poderia ser-lhe imputada sanção de caráter penal. (SHECAIRA, 2011, p. 49) A pena de multa não subsiste como única forma de penalização, o referido dispositivo legal também trás a possibilidade do confisco de bens dentro outras. Por mais que tenha-se trazido a tona a questão da responsabilidade penal das empresas, especialmente quanto a crimes de ordem econômica e ambiental, a comissão alemã de reforma do sistema penal de sanções, em 2000, recusou qualquer modificação do modelo penal clássico vigente, para uma estrutura penal mais repressiva. Todavia em 2002 teve-se uma extensão das penas de multa aplicadas às empresas, possibilitando sua aplicação mesmo quando da falta dos diretores da empresa. (SHECAIRA, 2011, p. 52) 6 PROJETO DO CÓDIGO PENAL Atualmente está em discussão no Senado Federal a proposta de reforma do Código Penal de 1940, PLS 236/2012, que prevê a responsabilização penal das empresas em casos de crimes contra a administração pública, sistema financeiro, a economia popular e a ordem econômica. 506 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE O artigo 41 do referido dispositivo atribui penalização apenas às pessoas jurídicas de direito privado, excluindo os entes públicos, além de delimitar o âmbito dos tipos de delitos que podem ser praticados pelas mesmas. Também tem-se a disposição de que elas só podem ser sancionadas se o ilícito for praticado por decisão de uma pessoa natural, representando legal ou contratualmente a empresa, ou por seu órgão colegiado, agindo no interesse do ente moral, ou seja, tem-se o “[...] afastamento da possibilidade de atribuir à empresa um papel que não seja de mero instrumento de prática delitiva [...]”. (BUSATO, 2012, p. 57) Percebe-se que a comissão adotou uma postura cautelosa com relação a adoção deste tipo de responsabilidade, fazendo uma série de restrições a sua aplicação, tendo em vista a dificuldade de adequar este instituto no ordenamento jurídico penal brasileiro. Neste sentido a responsabilização adotada tem grande semelhança com a responsabilidade reflexiva, presente no ordenamento francês, na qual se penaliza a pessoa natural pelo ilícito, e por reflexo alcança-se a pessoa jurídica. Com isso, identifica-se uma convergência às correntes modernas, estabelecidas em outros países, como no caso da França e de Portugal, que passaram a adotar a responsabilização penal das empresas. Cumpre salientar que não se pode extrair do anteprojeto a base teórica de tal inovação, ou seja, se permanecem as estruturas clássicas da concepção finalista, ou se há a inserção de concepções de caráter funcionalista. Ademais a maneira como foi estruturada a responsabilização penal dos entes morais no anteprojeto trás criticas tanto de doutrinadores favoráveis, que clamam pela responsabilização total, sem restrições e direta, quanto da doutrina majoritária e desfavorável. Busato estabelece algumas questões que permanecem sem explicação, quais sejam: [...] se o projeto adotaria um esquema de autorresponsabilidade ou de heterorresponsabilidade penal das pessoas jurídicas; em que bases seria reconhecida a ação da pessoa jurídica; que limites seriam impostos pelo princípio de culpabilidade em face de tal responsabilidade e, mesmo, qual a natureza jurídica das consequências do delito praticado por pessoa jurídica. (BUSATO, 2012, p. 55) 507 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Além destas questões critica-se o fato de somente serem autores de infrações as pessoas jurídicas de direito privado, bem como a restrição de penalização à alguns grupos de bens jurídicos. Mesmo que alguns vejam como uma grande inovação o anteprojeto permanece como tal devido a inúmeras críticas pelas inovações trazidas e pelas pretendidas, como, por exemplo, a diminuição da maioridade penal, por se tratarem de temas polêmicos e que exigem extrema cautela caso seja pertinente sua introdução no ordenamento penal brasileiro. 7 CONCLUSÃO A questão da pertinência de aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica, tendo em vista a previsão do novo Código Penal, de criminalização do ente moral por crimes cometidos contra a ordem pública, sistema financeiro, e economia popular, torna-se um assunto de difícil solução. Entretanto, como percebido no direito internacional esta adoção trata-se de um movimento lógico da sociedade levando-se em consideração sua conformação atual e o fato de que as empresas detêm cada vez mais poder e influência na sociedade pós-moderna. A previsão de responsabilidade da pessoa jurídica supõe-se tratar de algo natural, inerente a sociedade atual, entretanto, os países que antes a rechaçavam e hoje admitem esta responsabilização detém maior cultura jurídica para tanto, tendo maior cuidado e preparo para sua aplicação e se valendo de mecanismos como a teoria da identificação do direito inglês, ou da responsabilidade por reflexo do direito francês. Trata-se de um movimento lógico da pós-modernidade e da globalização, o qual sedimentou-se com o decorrer do tempo. A globalização trouxe, difusão e democratização de riscos e derrubou as fronteiras econômicas e sociais entre os países, com isso tem-se uma padronização das culturas nas mais diversas instâncias. Entretanto, está padronização deve ser tida com parcimônia e cuidado, preservando-se as culturas e tradições inerentes a cada país. Pode-se prever uma evolução natural aos ordenamentos jurídicos, e hoje a tendência é a adoção de padrões universais, a exemplo dos direitos humanos, iguais a todas as nações, 508 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE entretanto, não pode-se apenas reproduzir padrões externos sem modificar sua estrutura para adequá-la às bases jurídicas do ordenamento brasileiro. Como pode ser visto a previsão da responsabilidade penal do ente moral, por mais que se justifique de acordo com a conformação atual, foi visivelmente estabelecida de maneira apressada e sem o devido zelo, tanto que recebe críticas de ambos os lados doutrinários. É necessário um refinamento desta ideia, levando em consideração que o nosso ordenamento pauta-se em regras clássicas e na responsabilidade individual e subjetiva, e inspirar-se em modelos externos, como no caso francês da responsabilidade por reflexo. O Brasil não possui uma cultura jurídica própria de tal sorte que seja o bastante para impedir quaisquer discrepâncias jurídicas que a adoção da responsabilidade das empresas possa trazer. Logo, há que se ter cautela e maior estudo, até que tenha uma conformação jurídica sólida que possibilite segurança na adoção da responsabilidade dos entes coletivos. 509 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS BACIGALUPO, Silvina. La responsabilidad penal de las personas jurídicas. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, S.A., 1998. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial 2 dos crimes contra a pessoa.11. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. BREDA, Juliano. A inconstitucionalidade das sanções penais da pessoa jurídica em face dos princípios da legalidade e da individualização da pena. In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (Coords.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: Em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed. 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Briguiet, 1889. t. l. 511 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 512 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE PROCESSO E PROCEDIMENTO DA LEI MARIA DA PENHA PROCESS OF LAW AND PROCEDURE OF MARIA PENHA Priscila Nélida Hristof Cortez Ferrarezi1 Mario Luiz Ramidoff2 do 8º período do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba, pelo Curso de Graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1991); Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002); Doutor pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná (2007). Pósdoutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2012); Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná; Professor Titular do Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba; Professor do Centro Universitário Internacional - Uninter; Experiência na área de Direito, com ênfase em: Direito da Criança e do Adolescente; Direito Penal; Ministério Público; Direito Procesual Penal; Criminologia; e Política Criminal. 1Acadêmica 2Graduado 513 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SUMÁRIO RESUMO 1 INTRODUÇÃO 2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER 2.1 CONCEITUAÇÃO 2.2 ESPÉCIES 2.2.1 Violência de Gênero 2.2.2 Violência Contra a Mulher 2.2.3 Violência Doméstica 3 SUJEITO ATIVO E SUJEITO PASSIVO 3.1 SUJEITO ATIVO 3.2 SUJEITO PASSIVO 4 LEI MARIA DA PENHA (LEI 11.340/2006) 4.1 POLITIZAÇÃO DO PROBLEMA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER 4.2 PANORAMA ANTERIOR A CRIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA 4.3 MECANISMOS DE PROTEÇÃO À MULHER 5 CONCLUSÃO REFERÊNCIAS 514 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO Um dos graves problemas que atinge a humanidade é o fenômeno da violência. O uso intencional da força física ou o abuso de poder, contra outra pessoa, grupo ou comunidade, trazem impactos e danosas consequências para a humanidade. A violência contra a mulher, vista a partir das relações de gênero, distingue um tipo de dominação, de opressão e de crueldade nas relações entre homens e mulheres, estruturalmente construído, reproduzido na cotidianidade e subjetivamente assumido pelas mulheres, atravessando classes sociais, raças, etnias e faixas etárias. No entanto, a maior consciência de seus direitos e o aprimoramento dos registros policiais vêm fazendo com que a violência cometida contra a mulher adquira maior visibilidade na sociedade brasileira, culminando na Lei Maria da Penha. Palavras-chave: mulheres, homens, violência, gênero, Lei Maria da Penha 515 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT One of the serious problems affecting mankind is the phenomenon of violence. The intentional use of physical force or abuse of power, against another person, group or community impacts and bring harmful consequences for humanity. Violence against women, seen from gender relations, distinguishes one type of domination, oppression and cruelty in relationships between men and women, structurally built, reproduced in the everyday and subjectively assumed by women across social classes, races, ethnicities and age groups. However, greater awareness of their rights and the improvement of police records have been causing the violence committed against women acquire greater visibility in Brazilian society, culminating in the Maria da Penha Law. Keywords: women, men, violence, gender, Maria da Penha Law 516 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO Hodiernamente, a violência contra a mulher, praticada no ambiente familiar é uma das mais cruéis, pois o lar, considerado local acolhedor e de conforto, passa a ser um ambiente de perigo contínuo. A percepção social de que a violência contra a mulher é um problema de extrema gravidade contribui para o reconhecimento de sua existência e das sérias consequências que atingem, física e psicologicamente, as suas vítimas. A situação de vulnerabilidade da mulher vítima em relação ao seu agressor é evidente, por isso o Estado deve disponibilizar meios, através de políticas públicas de gênero para fornecer amparo e proteção para que ela possa resolver o problema e recomeçar uma nova vida livre da violência. O advento da Lei Maria da Penha representa um grande avanço na geração de meios de defesa para a mulher, buscando resgatar a cidadania feminina. Porém, para seu cumprimento, faz-se necessária a implementação de ações que articulem todas as instituições responsáveis e conscientizem a população sobre os direitos das mulheres. Assim, este estudo tem como objetivos específicos, proceder à definição de violência de gênero, violência doméstica e violência contra a mulher e analisar a Lei Maria da Penha; 2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER 2.1 CONCEITUAÇÃO O termo violência deriva do latim violentia, e significa qualidade de violento; ato violento; ato de violentar. E, para o senso comum, violência é sinônimo do uso da força física, psicológica ou moral para obrigar outra pessoa a fazer alguma coisa contra a sua vontade. Impedir que o outro manifeste sua vontade, oprimir, constranger, tolhendo a liberdade, são formas de violar direitos essenciais do ser humano. Em geral, a 517 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE violência está ligada ao uso de força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não quer. A liberdade, que corresponde à primeira geração dos direitos humanos, é violada quando o homem submete a mulher ao seu domínio. Também não há como deixar de reconhecer, nesta postura, afronta aos direitos humanos de segunda geração, que consagra o direito à igualdade. De outro lado, quando se fala nas questões de gênero, ainda marcadas pela verticalização, é flagrante a afronta à terceira geração dos direitos humanos que tem por tônica, a solidariedade (DIAS, 2010, p.41). Quanto às espécies, são apresentadas a seguir: 2.2 ESPÉCIES 2.2.1 Violência de Gênero Gênero diz respeito a relações de poder e à distinção entre atributos culturais atribuídos a cada um dos sexos e suas peculiaridades biológicas. Veja-se: Gênero é o sexo socialmente modelado, ou seja, as características tidas como masculinas e femininas são ensinadas desde o berço e tomadas como verdadeiras, pela sua repetição cultural. Essas características socialmente atribuídas se fundam na hierarquia e na desigualdade de lugares sexuados (SAFFIOTI & ALMEIDA, 1995, p.118). A violência de gênero abrange a que é praticada por homens contra mulheres, por mulheres contra homens, entre homens e entre mulheres (ARAÚJO; MATTIOLI, 2004, p.17). Deve-se considerar que a mulher também pode atuar como agente de violência no relacionamento com um homem, porém, cultural e historicamente, na grande maioria dos casos, ela é a vítima preferencial. “A violência contra a mulher constitui uma questão de saúde pública, além de ser uma violação explícita dos direitos humanos” (GOMES; MINAYO; SILVA, 2007, p.118), 518 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Suas várias formas de opressão, de dominação e de crueldade incluem assassinatos, estupros, abusos físicos, sexuais e emocionais, prostituição forçada, mutilação genital, violência racial e outras (SCHRAIBER et al. 2002). A visibilidade da violência contra a mulher - entendida como uma expressão da violência de gênero, deve muito de sua força ao movimento feminista que, junto com a politização da questão ambiental, constitui o mais importante movimento social do século XX. A partir da segunda metade desse século, sua estratégia de ação se centrou na desconstrução das seculares raízes culturais da inferioridade feminina e do patriarcalismo, nas denúncias das diversas formas de violência, nas tentativas de modificar as leis que mantinham a dominação masculina e na construção de novas bases de relação, protagonizada por mudanças de atitude e de práticas nas relações interpessoais. A vitimização da mulher no espaço conjugal, por exemplo, foi um dos maiores alvos da atuação do movimento feminista, que nos últimos 50 anos vem buscando desnaturalizar os abusos, os maus-tratos e as expressões de opressão. Assim, problemas que, até então, permaneciam como segredos do âmbito privado – “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher” – passaram a ter visibilidade social (GOMES; MINAYO; SILVA, 2007, p.118). Assim, a expressão gênero tornou-se relevante para compreender a interação e a cumplicidade com que se constroem as relações entre homens e mulheres, ambos marcados por uma cultura machista e patriarcal. Para entender a problemática da violência de homens contra mulheres a partir da perspectiva de gênero, faz-se necessário analisar os processos de socialização e sociabilidade masculinas e os significados de ser homem em nossas sociedades. A adequada compreensão de tal fenômeno não dispensa a percepção de que a violência contra a mulher tem três fases. Para se compreender melhor tal fenômeno, há que se perceber que a violência contra a mulher tem fases: inicia-se com a (1) construção da tensão, chegando à (2) tensão máxima, finalizando com a (3) reconciliação. Há um escalonamento da intensidade e da frequência das agressões, que depende das circunstâncias da vida do casal. Não obstante as variáveis (circunstâncias da vida do casal), já se constatou que a repetição cíclica das etapas tende a fazer com que a agressão seja cada vez mais grave e habitual.Dentre os fatores que levam as mulheres vítimas de violência a permanecer no relacionamento com o parceiro violento, merecem destaque os seguintes: medo de que o agressor torne-se ainda mais violento, 519 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE concretizando ameaças, caso esta o denuncie ou o abandone; esperança de que o agressor mude o seu comportamento, fazendo cessar a agressão; preocupação com a manutenção da integridade da família e vergonha de expor publicamente os episódios de violência (BIANCHINI, 2011). Os homens são educados, desde cedo, para responder a expectativas sociais, de modo proativo, em que o risco e a agressividade não são algo que deve ser evitado, mas experimentado cotidianamente. A noção de autocuidado, muitas vezes é substituída por uma postura destrutiva e autodestrutiva (MEDRADO; LYRA, 2003, p.22). Tal noção desenvolve-se de diferentes maneiras e em diferentes lugares: nas brincadeiras infantis, na mídia segmentada por idade e sexo, nas ruas, escolas, casas, bares, quartéis, mosteiros, prisões, na guerra. Não importa o lugar. Importantes são os recorrentes mecanismos de brutalidade constitutivos do tornarse homem, pois a violência é, muitas vezes, considerada uma manifestação tipicamente masculina para resolução de conflitos. Os homens são, em geral, socializados para reprimir suas emoções. A raiva e a violência são formas que acabam por se tornar socialmente aceitas como expressões masculinas de sentimentos. Logo, essas manifestações “aceitas”, e até mesmo estimuladas pela sociedade, podem representar portas abertas para atos violentos graves que atentam inclusive contra a vida de muitas mulheres e dos próprios homens (MEDRADO; LYRA, 2003, p.22). 2.2.2 Violência Contra a Mulher A “violência contra a mulher”, é aquela que ocorre no ambiente doméstico ou em relações familiares ou de afetividade, caracterizando-se pela discriminação, agressão ou coerção, com objetivo de levar à submissão ou subjugação do indivíduo, pelo simples fato de esse ser mulher (NUNES apud BENFICA;VAZ; DUTRA, 2007. p.25). Logo, trata-se de uma agressão que vai além dos limites da integridade física, comprometendo também aspectos da saúde sexual e psicológica, causando 520 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE consequências sérias e aumentando a sensação de vulnerabilidade, perda e traição, em virtude de o agressor se tratar de alguém em quem se confia e com quem se divide a intimidade e privacidade. No mundo todo, a violência contra a mulher atinge as mulheres em todas as idades, raças, etnias, graus de instrução, classes sociais e orientação sexual. A violência de gênero em seus aspectos de violência física, sexual e psicológica, é um problema intrínseco ao poder, onde impera o domínio dos homens sobre as mulheres, além da existência de uma ideologia dominante, que lhe dá sustentação (CARNEIRO, 2003, p.9). Senão, veja-se: É importante ressaltar que, independente do tipo de violência praticada contra a mulher, todas têm como base comum as desigualdades que predominam em nossa sociedade. São muitas as formas de violência de gênero: as desigualdades salariais, o assédio sexual no trabalho o uso do corpo da mulher como objeto, nas campanhas publicitárias; o tratamento desumano que muitas recebem nos serviços de saúde. Todas representam uma violação aos direitos humanos e atingem a cidadania das mulheres. A violência de gênero, também conhecida como violência doméstica e sexual, aí incluídos o assédio moral e sexual e o tráfico nacional e internacional de mulheres e meninas, é ainda mal dimensionada, necessitando maiores investimentos em pesquisas e medidas legislativas e jurídicas adequadas (CARNEIRO, 2003, p.9). A violência familiar causa a desestruturação familiar, comprometendo o futuro da mulher, do marido e dos filhos do casal, e há ainda os efeitos negativos sobre a sociedade. 2.2.3 Violência Doméstica Violência doméstica é “a agressão contra a mulher, num determinado ambiente (doméstico, familiar ou de intimidade), com finalidade específica de objetála, isto é, dela retirar direitos, aproveitando da sua hipossuficiência” (CUNHA; PINTO, 2008, p.48). Apesar de alguns preconizarem a necessidade de habitualidade, não nos parece correto, considerando não somente o espírito dos tratados, mas do 521 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE próprio legislador pátrio ao tipificar como violência doméstica “qualquer ação ou omissão”; aliás, exigir habitualidade é admitir que o Estado deve tolerar, antes de agir, uma agressão(CUNHA & PINTO. 2008. p.48). O termo “violência doméstica” é utilizado em virtude de compreender a agressão no ambiente caseiro, envolvendo pessoas com ou sem vínculo familiar, “inclusive as esporadicamente agregadas, integrantes dessa aliança” (CUNHA; PINTO, 2008, p.49). Tal definição abrange os empregados domésticos. Por fim, é importante ressaltar que a violência doméstica é uma espécie de violência contra a mulher que, por sua vez, é uma espécie de violência de gênero. 3 SUJEITO ATIVO E SUJEITO PASSIVO 3.1 SUJEITO ATIVO Para que se configure a violência doméstica, conforme a Lei Maria da Penha, não é necessário que as partes sejam marido e mulher, nem que sejam ou estejam casados. Veja-se: - Na união estável a agressão é considerada como doméstica, mesmo que a união já tenha findado. O sujeito ativo tanto pode ser um homem como outra mulher, bastando estar caracterizado o vínculo de relação doméstica, de relação familiar ou de afetividade. Ou seja, não importa o gênero do agressor. - Netos ou netas que cometam agressões contra a avó. - Também responde pela prática e violência de âmbito familiar a parceira da vítima, quando ambas mantém uma união homoafetiva (art. 5º, parágrafo único). - Conflitos entre mães e filhas, sogras e noras ou entre irmãs, com motivação de ordem familiar. - Tanto o patrão como a patroa, em conflito com a empregada doméstica. - Companheiras de quarto ou coabitantes de repúblicas são equiparadas aos entes tutelados na Lei Maria da Penha (DIAS, 2010, p.54-55). 3.2 SUJEITO PASSIVO Quanto ao sujeito passivo, há a exigência de uma qualidade especial: ser mulher. 522 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Esposas, companheiras ou amantes, filhas e netas do agressor, sua mãe, sogra, avó ou qualquer outra parente do sexo feminino com quem o agressor tenha um vínculo e natureza familiar estão no âmbito de abrangência do delito de violência doméstica como sujeitos passivos. O Superior Tribunal de Justiça - STJ reconhece que o namoro é uma relação íntima de afeto e a agressão levada a afeito por ex-namorado configura violência doméstica. Ainda, lésbicas, transexuais, travestis e transgêneros, que tenham identidade social com o sexo feminino são amparados pela Lei Maria da Penha. “Ainda que parte da doutrina encontre dificuldade em conceder-lhes o abrigo da Lei, descabe deixar à margem da proteção legal aqueles que se reconhecem como mulher. Felizmente, assim já vem entendendo a jurisprudência” (DIAS, 2010, p.56-58). Ainda, ocorre uma hipótese que tem levado a questionamentos sobre a constitucionalidade da Lei: ocorre quando, na mesma ação, são vítimas pessoas de diversos sexos. Por exemplo, quando uma filha e um filho são agredidos pelo pai. Pela agressão contra a filha, aplicam-se as medidas protetivas da Lei Maria da Penha. Já pela agressão contra o filho, se a lesão for de pequeno potencial ofensivo, incide a legislação dos Juizados Especiais. Fora isso, aplica-se o Código Penal. Como uma das vítimas está ao abrigo de lei especial, não há duplicidade de processos. O processo deve tramitar no Juizado de Violência Doméstica. Mas com relação à vítima masculina, aplica-se a legislação dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95). Tal possibilidade não deve levar à subsunção de uma prática delitiva à outra (DIAS, 2010, p.58). Existe também a possibilidade de o sujeito passivo não ser necessariamente mulher. A Lei prevê mais de uma majorante ao crime de lesão corporal em sede de violência doméstica (CP, art. 129, § 11): se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência. A pena do agressor será dilatada quando o alvo da lesão corporal for deficiente físico, de qualquer sexo. 4 LEI MARIA DA PENHA (LEI Nº 11.340/2006) Para melhor compreender a Lei Maria da Penha, é importante considerar a trajetória do feminino ao longo da história. Homem e mulher são diferentes, como 523 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE também o são, macho e fêmea, na natureza. A fase biológica dessa diferença gera desigualdades naturais, inevitáveis nas outras espécies animais, notadamente quanto às funções de reprodução. E a raça humana, consciente de sua própria existência, tem como escolher entre amenizar as desigualdades ou realçá-las. Porém, é possível verificar que, no decorrer da História, os seres humanos têm agigantado as desigualdades por meio da dominação patriarcal. Além das relações de gênero, este desequilíbrio também alcançou a interação entre as nações, etnias e classes sociais. Na relação entre os que subjugam e os que são subjugados, tal desequilíbrio gera, quase sempre, o conflito, que, exacerbado, gera a violência. Considerando o fato de que não é próprio da natureza humana submeter-se eternamente nestas relações desiguais – e muitas vezes violentas -, surgem focos de resistência e luta. O atual modelo de vida – racional, competitivo, antiecológico, beligerante – vem atravessando, há décadas, intensa crise global. Dela resultaram progressos científicos notáveis, especialmente nas ciências exatas e naturais, como Matemática, Física, Química, Biologia, Medicina. Mas também nasceram e floresceram males devastadores: guerras insanas, degradação ambiental, desigualdades, miséria e fome. O mundo colhe hoje, tanto os bons como os maus frutos dessa caminhada (HERMANN, 2012, p.14). É importante ressaltar que a resistência não é apenas das mulheres, mas também do feminino, compreendido como padrão valorativo e de organização social. A opressão gera reação, às vezes sutil, às vezes através da força. A dominação masculina ocorre há milhares de anos, e a resistência feminina se manifesta de muitas maneiras e por muitas estratégias: ou delineada pela negação da alteridade, ou seja, pela busca da igualdade absoluta, ou pela valorização da diferença, anseio por respeito à alteridade. Mesmo depois de muita luta e de muitas conquistas femininas, a desigualdade, a dominação e a violência ainda subsistem, e seu principal reduto é o espaço onde deveria prevalecer o afeto e o respeito: dentro de casa. O marco da violência doméstica, que vitima principalmente mulheres, é expressão de resistência do patriarcado em declínio. O modelo patriarcal [...] resiste simbolicamente no espaço doméstico. Essa resistência simbólica 524 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE se reproduz no plano global, vitimizando nações periféricas, minorias discriminadas e outros tantos diferentes dentro da espécie humana (HERMANN, 2012, p.15). A presença de mulheres em espaços de poder caracteristicamente masculinos tem abalado as estruturas do patriarcado. E existe resistência por parte dos homens. Quando a mulher invade o universo masculino, o ônus que lhe é imposto consiste em masculinizar comportamentos, posturas e decisões, o que significa abrir mão da ótica feminina e aderir a valores androcêntricos. Apesar de marcante presença em lugares simbólicos de poder, o feminino ainda não colheu valorização compatível com essas conquistas. A inserção política, cultural e decisória de tantas mulheres em espaços públicos contribuiu muito para a atual crise do patriarcado, marcante no contexto da grande crise de valores e modelos que a civilização atravessa, mesmo porque o domínio patriarcal não se restringe às relações de gênero; é também determinante de outros preconceitos e discriminações – raça, etnia, cor, classe e outras diferenças – convergindo à estrutura hierarquizada e excludente da sociedade contemporânea (HERMANN, 2012, p.35). Assim, as mulheres seguem em luta. Levantam bandeiras, conquistam espaços, saem às ruas e praças, reivindicam seus direitos de voto e greve, pela igualdade de oportunidades e salários, por inclusão num mundo racional e masculino. Nessa trajetória, em alguns momentos declaram guerra aos homens e, em outros, optam pela racionalidade competitiva do paradigma masculino, para alcançar seu lugar no mercado de trabalho e nos espaços públicos. Contudo, ainda sofrem discriminação nos salários, ainda são minoria no Poder e ainda precisam provar em dobro capacidade e competência para manterem suas conquistas. No lar, as mulheres debatem-se entre amor e ódio, entre a doçura da intimidade e a ofensa, entre o carinho e a bofetada. Muitas atravessam a infância, a juventude, maturidade e velhice vivendo e revivendo este ciclo perverso, em um visível conformismo. Outras, ainda, encontram a doença, a invalidez e até a morte precoce. E algumas, conscientes de seus direitos, rebelam-se num exercício heroico de bravura, o que lhes custa muita dor e sofrimento. Recorrem à Justiça, apelam por proteção e socorro, buscam amparo na Lei Maria da Penha. 525 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 4.1 POLITIZAÇÃO DO PROBLEMA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER O mascaramento e a potencialização da violência doméstica, em grande parte decorrem das próprias características do território de sua ocorrência. “O problema circunscreve-se a um espaço fechado, ambíguo e fortemente estruturado do ponto de vista simbólico, no qual as categorias de conhecimento/reconhecimento contêm, tendencialmente, maior peso emocional que o cognitivo” (ALMEIDA, 1998, p.89). Porém, considerando o que é amplamente divulgado na literatura de gênero e violência, o que é pessoal é político. Assim, é preciso que se resgate o caráter político da violência doméstica, não a subordinando a outras manifestações de violência. A significação contida no “pessoal é político” deve perpassar as práticas individuais e coletivas, públicas e privadas. A busca do estatuto político da violência contra a mulher e de sua visibilidade como objeto de políticas públicas é de fundamental importância (OSTERNE, 2008, p.250). O espaço público é o cenário político por natureza. Nele as pessoas têm a liberdade de se expor, discutir e chegar a um senso comum necessário à produção de um mundo comum. Na esfera pública, exige-se das pessoas a discussão de assuntos reconhecidos como importantes para a coletividade. Cada um pode expressar suas ideias. A pluralidade de ideias é fundamental nas decisões tomadas em conjunto. O fenômeno da violência contra a mulher deixou de ser um problema policial e passou ao âmbito social. Estudar e pensar a violência significa estudar e pensar a sociedade. O estudo de suas causas constitui elemento de exercício da própria cidadania. A dinâmica da violência contempla, ao mesmo tempo, esferas individuais e coletivas, pois que envolve pessoas, grupos e classes sociais. Não se pode tratar da violência contra a mulher como problema isolado (OSTERNE, 2008, p.275). As informações trazidas pelas mulheres nas denúncias de violência doméstica devem ser organizadas e levadas à possibilidade de ampla visibilidade, capaz de apontar políticas sociais coletivas e democráticas que enfrentem o problema em seu circuito produtivo (OSTERNE, 2008, p.276). O Estado deve atuar como órgão promotor e articulador de atos políticos que garantam um Estado de Direito. Em outras palavras, um Estado que possa estar à 526 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE frente de políticas públicas capazes de alterar as visíveis desigualdades sociais existentes no País, em diálogo com a sociedade e com as organizações que as representem. As políticas públicas devem atingir e modificar a vida das mulheres, oportunizando condições para o estabelecimento de relações mais igualitárias entre homens e mulheres. Devem pautar-se pelos princípios de igualdade e respeito à diversidade; da equidade; da autonomia das mulheres; da justiça social; da transparência dos atos públicos; e da participação e controle social (OSTERNE, 2008, p.268-269). 4.2 PANORAMA ANTERIOR À CRIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA Antes mesmo da promulgação da Lei Maria da Penha, inúmeras medidas em favor das vítimas de violência doméstica vinham sendo implantadas. Em 1984, surgem as primeiras iniciativas na área da saúde. Atendendo reivindicações do movimento das mulheres, o Ministério da Saúde elaborou o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher - PAISM. Em setembro de 1992, a primeira casa de apoio foi a Viva Maria, na cidade de Porto Alegre, onde se prestava atendimento por equipes de auxiliares operacionais e técnicos das áreas de enfermagem, serviço social, pedagogia, psicologia e direito, a mães e filhos envolvidos em episódios de violência doméstica. Em 2004, foi lançada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher – Princípios e Diretrizes. Mas a primeira providência significativa foi a criação das Delegacias da Mulher, multiplicadas hoje em todo o território nacional. Assim, as mulheres foram encorajadas a denunciar qualquer agressão sem o medo da exposição e do vexame público que tais fatos acarretam. Também foram criados abrigos e instituições onde as vítimas e seus dependentes recebem amparo e atendimento adequado. Tais ambientes devem ser lugares sigilosos que tragam segurança à mulher e seus filhos, proporcionem-lhes acolhimento e acompanhamento psicológico e social, e garantam o resgate da autoestima e da cidadania. 527 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Importante serviço presta a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, que funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana. Esta Central dispõe de atendentes especializadas para orientar as vítimas, esclarecer as dúvidas sobre denúncia e acolhimento, fornecer orientações e alternativas para se proteger do agressor. Também informa a mulher sobre seus direitos, sendo-lhe fornecida a relação dos serviços especializados e os tipos de estabelecimentos que pode procurar em sua cidade, como delegacias de atendimento, defensorias públicas, postos de saúde, instituto médico legal para casos de estupro, centros de referência, casas-abrigos e outros mecanismos de promoção de defesa de direitos da mulher. As estatísticas dão conta que, a cada 15 segundos, ocorre uma agressão doméstica ou sexual contra uma mulher. Apesar disso, nem todos os Estados contam com serviços de atendimento às vítimas. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM do governo federal mantém um quadro dos serviços disponíveis. Assim, urge que se leve atendimento especializado a todas as vítimas, em todos os cantos do país. 4.3 MECANISMOS DE PROTEÇÃO À MULHER Diante da necessidade de cumprir os tratados assumidos pelo Brasil em âmbito internacional, foi criada a Lei nº 11.340 de 7 de agosto de 2006, para a qual foi atribuído o “nome” Lei Maria da Penha, devido ao caso de Maria da Penha Maia Fernandes que, “diante da inoperância da legislação brasileira” (SOUZA, 2009, p.22), num ambiente de reiterada violência doméstica durante seis anos de casamento, acabou sendo vítima de tentativa de homicídio por parte do seu então marido. A situação de continuadas agressões (arma de fogo, eletrocussão e afogamento) culminou em um quadro de paraplegia irreversível. Maria da Penha acirrou sua luta pelos direitos humanos das mulheres em âmbito internacional, resultando em condenação ao Estado brasileiro perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos - OEA, pela sua omissão na implementação de medidas investigativas e punitivas contra o agressor. Somente após 19 anos de julgamento é que o marido de Maria da Penha foi recolhido à prisão, e ficou apenas dois anos em regime fechado. 528 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Na estrutura familiar não pode coabitar prática de qualquer tipo de violência, além do que “a violência doméstica não encontra qualquer suporte jurídico por contrariar as regras mais elementares dos costumes, dos princípios gerais de direito, [...], além da legislação expressa em contrário” (PARODI;GAMA, 2009, p.17). Em vista disso, o Estado brasileiro assumiu, ratificando documentos internacionais de proteção à mulher, o compromisso de adotar medidas que garantam os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares, de forma a preservá-las de todas as formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (CUNHA;PINTO, 2008, p.41). A Lei Maria da Penha criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição da República de 1988, bem como nos termos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. A violência doméstica contra a mulher, anteriormente, era abarcada pela Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que implantou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. A Lei nº 9.099/95 permitiu a divisão da criminalidade em duas modalidades: de “pequena criminalidade” e a “grande criminalidade”. Assim, a violência doméstica mais comum foi, por esta lei, incluída nas pequenas criminalidades, podendo ser julgada pelos juizados especiais, já que não teria uma grande repercussão social. Sob o aspecto jurídico, a Lei nº 9.099/95, caracterizada pela prioridade à informalidade, incluía a violência doméstica contra a mulher como um delito de menor potencial ofensivo, o que trouxe repercussões desastrosas sobre as vítimas dessas ações, levando à banalização da pena aplicada aos agressores. A finalidade da Lei nº 9.099/95 foi alcançada, já que a justiça tornou-se mais rápida, apesar de a pena ser mais branda, fundamentada nos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade (arts. 2º e 62 da Lei nº 9.099/95). Mas no que se refere à proteção da mulher contra a violência doméstica, as medidas adotadas (penas de multa - pagamento de multa e penas restritivas de direitos – entrega de cestas básicas de alimentos, de higiene pessoal ou de remédios destinadas às entidades de caridade, por exemplo), não eram 529 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE suficientes para punir adequadamente (e exemplarmente) o agressor e nem serviam como efeito pedagógico (SIRVINKAS, 2007, p.109). Com a Lei nº 11.340/2006 criaram-se os Juizados de Enfrentamento da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal que podem responder às necessidades das mulheres. Sendo assim, a lei em comento visa prevenir as diversas formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, a criação e ampliação de serviços públicos, campanhas educativas e mecanismos ágeis de acesso à justiça para o atendimento à mulher em casos envolvendo este tipo de violência. Também insere diversos mecanismos recomendados pela Convenção de Belém do Pará, dentre eles a obrigação do Estado na criação desses serviços e a capacitação de seus agentes para que possam atender adequadamente as mulheres nessa situação. Além disso, cria medidas de proteção imediatas, tanto de caráter penal como de caráter civil, tais como o afastamento do agressor do lar, a separação de corpos, a regulamentação de guarda dos filhos, a fixação de alimentos, dentre outras. Prevê ainda mudanças na aplicação de penas, pois ficarão vedadas, nos casos de violência doméstica familiar contra a mulher, as penas restritivas de direito de prestação pecuniária, cesta básica e multa (BENFICA; VAZ; DUTRA, 2007, p.36). No Quadro 4, Anexo IV, apresenta-se um comparativo da legislação no que diz respeito à investigação, procedimentos, apuração e solução para as ocorrências de violência contra a mulher, antes e depois da criação da mencionada Lei. A Lei em estudo, a partir do Capítulo III, em seu art. 10, estabelece os seus comandos à autoridade policial, a quem cabe, no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, entre outras providências: I) Garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário; II) Encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao instituto médico legal; III) Fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de morte; IV) Se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar; V) Informar à ofendida os direitos a ela conferidos na lei e os serviços disponíveis. 530 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Assim, verifica-se que a mencionada Lei busca prevenir a violência doméstica com medidas integradas de prevenção e por meio de políticas públicas que fomentem a integração de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública, Assistência Social, Saúde, Educação, Trabalho e Habilitação. Visa ainda promover estudos e pesquisas, implementar centros de atendimento multidisciplinar, realizar campanhas educativas, e desenvolver outros mecanismos para a prevenção da violência. Neste contexto, é importante destacar a atuação do Ministério Público a quem cabe, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher: requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e de segurança, entre outros; fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar; adotar, de imediato, as medidas administrativas e judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas; e cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher (CAVALCANTI, 2008, p.692-693). A referida lei está longe da perfeição. Porém, apresenta uma adequada estrutura para atender a complexidade do fenômeno da violência contra a mulher, já que prevê mecanismos de prevenção, assistência às vítimas, políticas públicas e punição para os agressores. Trata-se de uma lei que prioriza o cunho educacional e de promoção de políticas públicas de assistência às vítimas (CHAVES; ALVES; ROSENVALD, 2008, p.671). Assim sendo, tal Lei revela presença organizada das mulheres no embate humano, social e político por respeito. Sua presença está marcada na ênfase à valorização e inclusão da vítima no contexto do processo penal, na preocupação com prevenção, proteção e assistência aos atores do conflito, no resguardo de conquistas femininas, como espaço no mercado de trabalho (HERMANN, 2012, p.18). Eis que, a Lei em estudo “emerge como resposta estatal à prática de violência degradante contra a mulher, tratando de forma específica um mal que há muito tempo aflige muitas famílias no território nacional” (PARODI; GAMA, 2009, p.15). 531 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Tal solução legislativa, com fundo ideológico firmado nas experiências de algumas mulheres no domínio cruel de seus maridos e companheiros, pretende estabelecer harmonia nas relações familiares entre cônjuges ou companheiros, para que se ponha fim à violência contra a mulher. 5 CONCLUSÃO A luta contra a discriminação, exclusão e violência feminina tem crescido. Atualmente, as mulheres, conscientes de seus direitos, buscam por direitos equânimes, igualdade entre homens e mulheres e uma vivência livre de padrões opressores. O fenômeno da violência doméstica contra a mulher, concretizada sob a forma de crimes contra a pessoa, honra e patrimônio, há tempo demandava resposta eficaz por parte do Estado, por ser este partícipe da promoção do bem-estar e da dignidade da pessoa humana. A Lei Maria da Penha, criada para prover a prevenção e combate a tal fenômeno, inova o ordenamento jurídico pátrio, expressando o imprescindível respeito aos direitos humanos das mulheres, tipificando as condutas delitivas e delineando políticas integradas de enfrentamento. Não se trata de normativa puramente punitivista: sua essência situa-se nas normas, princípios, diretrizes e políticas públicas de prevenção e proteção, providências, procedimentos, medidas, planos, estratégias, instrumentos e mecanismos de caráter assistencial e combativo da violência de gênero. Tal lei concedeu tratamento diferenciado ao conflito ao criar Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e dotá-los de aparato preventivo e assistencial à vítima, ao agressor, aos familiares e, muitas vezes, até mesmo às testemunhas. A legislação tem o mister de acompanhar a dinâmica evolução da sociedade para permitir que o Estado intervenha para garantir a integridade física e psíquica dos membros de qualquer forma de família. A concretização da igualdade de gêneros se constitui em um direito humano basilar, e sua efetivação amplia os horizontes de realização pessoal da mulher, vencendo obstáculos situados no preconceito e na discriminação. 532 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE Contam-se milênios de opressão e violência contra a mulher na História da humanidade, e há apenas sete anos a sociedade brasileira conta com uma lei específica para o seu atendimento. A Lei Maria da Penha não resolve o problema de violência doméstica, mas dá meios para a mulher conseguir seguir a vida longe do agressor. Dar efetividade às diretrizes preventivas, protetivas e assistenciais da Lei Maria da Penha por certo trarão repercussões em outros espaços de desigualdade, visando, como finalidade maior, a disseminação de uma nova cultura, pautada no respeito e no consenso, que privilegie uma tomada de consciência social que reconheça a igualdade entre homens e mulheres, na família e na sociedade. 533 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE REFERÊNCIAS ALMEIDA, Suely Souza. Femicídio: algemas (in)visíveis do público-privado. Rio de Janeiro: Revinter, 1998. ARAÚJO, M.F.; MATTIOLI, O. (Orgs.) Gênero e violência. São Paulo: Arte & Ciência, 2004. BENFICA, Francisco Silveira; VAZ, Márcia; DUTRA, Débora. A Violência Doméstica Praticada Contra Mulheres: Revisão dos aspectos médico-legais e jurídicos. In: Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal. 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Curitiba: Juruá, 2009. 535 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 536 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE A DOENÇA MENTAL COMO CAUSA DE INIMPUTABILIDADE E AS MEDIDAS DE SEGURANÇA APLICADAS THE MENTAL ILLNESS AS CAUSE OF UNIMPUTABILITY AND THE SECURITY MEASURES APPLIED Rafael Vieira Vianna Santos Gustavo Britta Scandelari1 1 Bacharel em Direito pela Universidade Positivo (UP). Pós-graduado em Direito Constitucional pela Unibrasil. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em convênio com o Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor de Cursos de Pós-Graduação (lato sensu) em Direito. Professor de Direito Penal na graduação do UNICURITIBA. Associado fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Membro da Comissão da Advocacia Criminal da OAB/PR. Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). Membro do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP). Advogado. 537 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE SUMÁRIO 1. Introdução; 2. Classificação de comportamentos como doenças; 3. A inimputabilidade no Código Penal brasileiro; 4. Medidas de segurança; 5. Lei 10.216/2001 – Lei da Reforma Psiquiátrica; 6. Conclusão. 538 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE RESUMO O presente trabalho tem como objetivo apresentar um estudo sobre as medidas de segurança aplicadas aos inimputáveis dentro do direito penal brasileiro, mais precisamente abordando os inimputáveis derivados de doenças mentais. Para isso será analisado como a doença mental pode causar a inimputabilidade acusado, bem como quais as medidas de segurança prevista no Código Penal e quais as mudanças previstas pela Lei 10.216/2001, mais conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica. Palavras-Chave: Inimputabilidade, Semi-imputabilidade, Doenças Mentais, Direito Penal, e Lei 10.216/2001. 539 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE ABSTRACT This paper aims to present a study on the security measures applied to unimputable within the Brazilian criminal law, specifically addressing the unimputable derived from mental illness. For it will be analyzed how mental illness can cause unimputability, as well as what security measures provided for in the Criminal Code and changes envisaged by Law 10.216/2001, better known as the Psychiatric Reform Law. Key Words: Unimputable, Semi-Unimputable, Mental Illness, Criminal Law, and Law 10.216/2001. 540 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE 1 INTRODUÇÃO De tempos em tempos novas classificações de doenças e transtornos mentais são lançadas pelos especialistas da área de saúde. Nos últimos anos, porém, o que se tem percebido é que o número de novas doenças mentais presentes no CID (Classificação Internacional de Doenças) e no DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais) tem aumentado em uma escala assustadora. Uma vez que estes transtornos e/ou doenças mentais podem causar a inimputabilidade do sujeito que pratica um ato ilícito, é importante que se saiba como ocorre esta declaração de inimputabilidade e quais suas consequências. Além disso, é importante conhecer quais as medidas de seguranças que são aplicadas a estes inimputáveis, uma vez que a eles não é permitida a aplicação de uma pena. Estas medidas, porém, são alvos de algumas críticas pela doutrina e também por militantes do movimento antimanicomial já que, apresentam algumas lacunas que acabam por torna-las, em certos casos, piores do que a aplicação de penas “normais” aos acusados. Por fim, será analisada a Lei da Reforma Psiquiátrica, (Lei 10.216/2001), que surgiu como uma resposta às reivindicações feitas, principalmente pelos militantes do movimento antimanicomial, e traz algumas melhorias e garantias para os doentes mentais. Embora esta lei seja mais ampla do que o assunto abordado neste artigo, já que versa sobre todos os portadores de doenças mentais, alguns de seus parágrafos tem aplicação direta aos inimputáveis derivados de doenças mentais, o que faz necessário sua análise. 2 CLASSIFICAÇÃO DE COMPORTAMENTOS COMO DOENÇAS A cada ano o número de comportamentos sociais classificados como doenças mentais tem tido um aumento significativo. Segundo Dale Archer (Archer apud VINES, 2013), a “caixa da normalidade” está cada vez menor e a culpa é do excesso de diagnósticos de doenças mentais. Ou seja, percebe-se que a cada dia que passa a medicina tem trabalhado para incluir um número cada vez maior de 541 COLETÂNEA 1 – JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE comportamentos, que antes eram tidos como normais, na lista de comportamentos que caracterizam transtornos mentais. Este resultado pode ser entendido de duas maneiras. Por um lado, pode-se entender que o maior número de doenças classificadas se dá pelo avança das tecnologias em identificar tais problemas no seio da sociedade. Por outro lado, há quem defenda que esse acumulo de diagnósticas possuí outro significado, patrocinado pela indústria farmacêutica, que teria um grande interesse em “criar” novos modelos de doenças, para os quais, certamente, já possuí uma forma de tratamento. De acordo com Thomas Szasz (2010, p. X), velhas doenças, como a homossexualidade e a histeria desapareceram, enquanto outra nova, como vícios em apostos e consumo de