JUSNATURALISMO E DIREITO NATURAL – DOS ESTÓICOS À

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JUSNATURALISMO E DIREITO NATURAL – DOS ESTÓICOS À ONU
Thiago Galvan, OAB/RS número 64.762,
advogado militante, pós graduao em
Direito Público e Professor de Legislação
do SENAC Caxias do Sul/RS.
Introdução
Falar em Direito Natural, ao contrário do que se possa pensar, é não falar em
direito puro, em Direito justo. Não será possível compreender a questão do Direito Natural
sem compreender a questão do Direito em geral. Mas acontece que poucos, mesmo dentre
os especialistas, os juristas, realmente sabem o que é o Direito. E os que se põem a
manifestar-se sobre esse problema muitas vezes limitam-se a recitar definições decoradas,
como a de que o direito seria um conjunto de regras ou normas coercitivas emanadas pelo
poder estatal à regulamentar uma sociedade.
Ora esta definição é completamente errônea se olharmos simplesmente para a
realidade: a) há Direito que não é regra ou norma (o direito consuetudinário, o direito
contratual, o direito jurisprudencial, o direito doutrinal, etc.); b) há Direito que não é estatal
(o direito dos corpos intermédios, das autarquias locais, das regiões; o direito dos
organismos inter-estaduais, internacionais, da União Europeia, etc.); c) há Direito que não
é coercitivo (quer em casos de direito tradicional, quer no caso do Direito Internacional
Público clássico, que se mantém em muitos aspectos ainda hoje, apesar de todas as
declarações e mecanismos de tutela inter-nacional); d) A regulamentação e organização
sociais, a paz e a segurança podem, finalmente, ser levadas a cabo através de múltiplas
formas que não são, rigorosamente, jurídicas, nem é necessário que o sejam sempre.
Ordens sociais normativas hoje muito olvidadas mas até de grande valor adjuvante para o
Direito são a religião, a moral, as normas de trato social, a etiqueta, etc.
Assim, o jusnaturalismo perfaz uma doutrina jurídica que prescreve um
conjunto de normas para a conduta humana, denominado direito natural, cuja validade
intersubjetiva é diversa do sistema de normas fixadas pelo Estado político, chamadas de
direito positivo. O princípio filosófico do jusnaturalismo pode ser resumido com Norberto
Bobbio da seguinte maneira: “por reivindicar validade em si, o direito natural é
epistemologicamente anterior e eticamente superior ao direito positivo. Disso resulta
normativamente que, em caso de conflito, o jus naturale prevalece sobre quaisquer
legislações positivadas em direito”.1
Alguns autores destacam um renascimento do Jusnaturalismo no século XX,
notadamente frente à violação dos direitos humanos após a Segunda Guerra Mundial e ao
período em que interpretações histórico - evolutivas do direito e o positivismo jurídico
prevaleceram. Trata-se de uma percepção que reconhece o relativo esgotamento das formas
tradicionais de perceber a polêmica do Direito Natural, mas que se preocupa com a
necessidade de estabelecer limites éticos ao arbítrio do legislador em uma ciência do
direito orientada por valores éticos. Contudo, estas teorias nem sempre estão nos moldes
do Jusnaturalismo, mas sim revestidas de um objetivismo ou axiologismo jurídico, que a
rigor não pertencem ao campo estrito do Direito Natural. Muitos chamam estas atuais
percepções de Teorias da Justiça. De maneira geral, estas teorias se distinguem do
Jusnaturalismo, porque não se reportam necessariamente a princípios suprapositivos, ou
melhor, acima do Direito Positivo.
Cabe transcrever, para elucidar a necessidade da existência e aplicação do
direito natural, a estória Sr. Mané, caboclo humilde, mas com um bom senso muito agudo,
pensava na história do seu vizinho que passava seus dias na cadeia porque, angustiado
com a fome de seus bacuris (meninos), teria roubado alguns frangos de uma enorme
granja que pertencia a um "grande" político de seu Estado. Mané que, mesmo analfabeto,
assistia à televisão, pensava: Tem um sujeito que parece que roubou muito mais e
continua, solto, bem folgado. Isso não é injusto? Mané, bom sujeito, resolveu ir falar com
o Delegado, para dizer que seu vizinho era gente boa. O Delegado foi lhe dizendo que
tinha que cumprir a lei. Eu sou escravo da lei, dizia o delegado. Mané ainda tentou
retrucar: Mas tem gente que rouba muito mais e não lhe acontece nada. O delegado tinha
a resposta na ponta da língua: faltam P-R-O-V-A-S! Mané saiu dali porque não tinha mais
argumento, mas tinha convicção: A lei era injusta, tinha alguma coisa errada. Ou o
delegado não sabia interpretar e aplicar a lei. Isso não é direito! Tempos depois, um juiz
de bom senso, absolveu o vizinho do Sr. Mané porque ele teria agido em estado de
necessidade (estado famélico).
1
BOBBIO, Norberto. et al. Dicionário de política. Trad. do italiano coordenada por João Ferreira.
Ou seja, mesmo com a disseminação da codificação, tratada mais adiante, têmse que o direito natural não se estagnou com a idéia de positivismo, mas sim sofreu uma
evolução com o passar dos tempos, que se traduz em uma visão para aplicação do direito
como ideal de justiça, dos Estóicos à ONU.
Breve histórico
O jusnaturalismo pode ser visto como coetâneo ao pensamento ocidental. O
fragmento mais antigo do Ocidente2 contém uma visão de lei, ao conceber como justa a
necessidade que leva todas as coisas a desaparecerem naquilo que lhes deu origem de
acordo com a ordem inexorável do tempo (tou kronón). Em Sófocles, o jusnaturalismo
assume feições trágicas na figura de Antígona, que desobedece às ordens de Creonte
porque, tendo as leis da pólis origem no tempo, não podiam estar sobrepostas às leis da
família (oîkós), promulgadas desde tempos imemoriais pelos porta-vozes dos deuses.3 No
Górgias, Platão marca a posição jusnaturalista da era clássica, quando Cálicles afiança que
é justo por natureza quem é mais difícil de vencer, vale dizer, a justiça da phýsis é superior
à justiça provinda do nómos.4
Comparados com tais referências temporais, os estóicos elaboraram a primeira
versão do jusnaturalismo ocidental, ao promulgarem que toda a natureza é governada por
lei universal, imanente a tudo o que existe. As vertentes latinas mais conhecidas do
jusnaturalismo grego tardio são as de Cícero e Ulpiano. Ambos defendem a idéia de uma
lei uniforme, à revelia da diversidade de povos e imune ao tempo que corrói costumes,
preceitos e normas. Ao justificar a inalterabilidade normativa com a verdade, a concepção
2
A tradução do Fragmento de Anaximandro de Mileto permanece controvertida. Cf.
HEIDEGGER, Martin. Der Spruch des Anaximander. In: Holzwege. 5. Aufl. Frankfurt a/Main:
Klostermann, 1972, p. 296-343.
3
FREITAG, Barbara. Itinerários de Antígona. A questão da moralidade. Campinas: Papirus, 1992,
p. 19-23. Cf. também BIGNOTTO, Newton. Teoria e racionalidade na Antígona de Sófocles. In:
Sintese Nova Fase. Belo Horizonte: v. 20, n. 63, 1993. p. 731-44.
4
PLATÃO. Górgias (483). In: APELT, Otto (Hrsg). Sämtliche Dialoge. Bd. I. Hamburg: Meiner,
1988, p. 89-91. Em oposição à expressividade dramática de Antígona, a figura de Cálicles introduz
sem rodeios a lei do mais forte como critério distintivo entre o justo natural e o que é justo por
artifício dos fracos, acobertados em massa sob leis igualitárias por não terem a força de se fazerem
valer. Para Cálicles, leis feitas por convenção não passam de um instrumento tosco e truculento
nas mãos de escravos que, ressentidos, buscam desesperadamente domesticar quem é senhor por
natureza.
estóico-ciceroniana de lei natural tem feição racionalista, ao passo que posição estóicoulpiana é de cunho naturalista, por atribuir à lei natural um caráter impulsivo. Para essa
última versão, antes de ser norma de conduta o jus naturale constitui-se em pulsão
coeterna da natureza.
Reconstruções axiológica e epistomológica
Como fiel na balança do jusnaturalismo medieval, o agir conforme a natureza,
de proveniência aristotélica, constitui critério axiológico para avaliar as relações entre lei
natural e lei revelada.
Se a validade das leis naturais provém do fato de elas serem boas, não há
necessidade de uma lei revelada. Caso, mesmo assim, dela houver alguma, essa não poderá
contrariar aquelas. Com isso, o aristotelismo tomista chega a seus limites. Ou bem a lei
revelada é supérflua, ou não passa de uma potencialidade normativa da phýsis grega. Se,
inversamente, a validade das leis naturais não está assegurada, devido ao fato de tratar-se
de leis eticamente questionáveis, a lei revelada deve postular uma alteração substancial da
natureza humana como fonte do jus naturale, caso o homem deva cumprir o que está
prescrito em leis às quais ele não tem acesso por meios naturais, ou seja, uma lei perde
vigência no momento em que os destinatários dela não são mais os seres para os quais está
em vigor. Para que possa haver uma lei do dever ser, o antípoda medieval Rousseau
postula, conseqüentemente, a aliénation totale do homem natural, neutralizando qualquer
gérmen de objeção por parte desse homem às leis que regem a vontade geral dos cidadãos.5
Independentemente do fato de o jus naturale estar certo ou errado, ser válido
ou nulo, ter eficácia ou não, a razão pela qual homens com deficiência axiológica
necessitam de leis sobrenaturais pertence à doutrina revelada, e não resulta da natureza
humana. Lutero tira disso a conclusão, negando a existência de um direito natural pós
5
“Celui qui ose entreprendre d’instituer un peuple doit se sentir en état de changer, pour ainsi dire,
la nature humaine; de transformer chaque individu, qui par lui-même est un tout parfait et solitaire
(...); d’altérer la constitution de l’homme pour da renforcer; de substituer une existence partielle et
morale à l existence physique et indépendante que nous avons tous reçue de la nature. Il faut, en un
mot, qu’il ôte à l’homme ses forces propres pour lui donner qui lui soient étrangeres et dont il ne
puisse faire usage sans le secours d’autrui. Plus ces forces naturelles sont mortes et anéanties, plus
les acquises sont grandes et durables, plus aussi l’institution es solide et parfaite”. ROUSSEAU,
Jean-J. Du contrat social: ou, principes du droit politique. In: Oeuvres complète III. Paris:
Gallimard, 1964, p. 381.
estado paradisíaco,6 uma vez que é por revelação divina que sabemos sermos pecadores.
Corrupta por definição, a natureza humana não pode ser fonte de leis vinculantes para
qualquer ser humano. Em face de tal xeque-mate teológico, o senso aristotélico do
tomismo mostrou-se inofensivo, bloqueando o entendimento com a Reforma.
Sumariando, o luteranismo descarta o direito natural por princípio, o
jusnaturalismo moderno contrapõe ao estado natural um estado político.
Epistemologicamente falando, o legislador da lei natural e o legislador da lei
revelada são o mesmo, somente as leis tem matrizes diferentes. O fato de haver um único
legislador estar isento de contradição, ao promulgar a lei criada e a lei revelada, não
esclarece se iria se contradizer caso viesse a legislar duas ou mais leis naturais e ou duas ou
mais leis reveladas.
A continuidade/descontinuidade entre Medievo e Modernidade, relativa a uma
normatividade anterior ao direito positivo, pode ser resumida como segue. Na mesma
medida em que o positivismo teológico ficou esvaziado pelo confronto entre múltiplas
confissões, o jusnaturalismo filosófico esvaiu-se em contato com a multiplicidade
constitucional dos Estados nacionais. Os problemas que a intervenção de um Estado em
outro Estado, em nome de doutrinas jusnaturalistas, traz atualmente para o direito positivo
são similares aos problemas que a excomunhão de multidões, em nome da respectiva
doutrina revelada, trouxe para o jus naturale na época da Reforma.
Contextualização histórica e evolução – o caminho percorrido entre o medieval e o
moderno
A solução dada pelo direito moderno à derrocada da Cristandade e às
subseqüentes guerras de religião é contundente. A distinção de Hobbes entre fides/faith e
professio/confession7 marca o ponto sem retorno entre direito natural moderno e
6
Segundo Lutero, os primeiros homens viviam no paraíso em estado natural, e não em um estado
praeter natural. Em seu Comentário do Gênesis, o reformador escreve: “Quin hoc statuamus
iustitiam non fuisse quoddam donum, quod ab extra accederet, separatum a natura hominis. Sed
fuisse vere naturalem, ut natura Adae esset diligere Deum, credere Deo, cognoscere Deum (...).
Porro haec omnia probant, originalem iustitiam fuisse de natura hominis, ea autem per peccatum
amissa, manifestum est naturalia non mansisse integra sicut Scholastici delirant” (Weimarer
Gesamtausgabe, Bd. 24, p. 124).
7
HOBBES. De cive or the citizen (XVIII), 4-5). Ed. by Sterling Lamprecht. Westport: Greenwood
Press, 1982, p. 197 e 199.
jusnaturalismo medieval. O estado hobbesiano possui o mando absoluto na esfera política e
religiosa, mas não prescreve aos cidadãos pensamentos íntimos e tampouco a fé que
deveriam ter. Limitado ao que é exterior, o estado absolutista não reivindica acesso à
crença, “pois só Deus conhece os corações”.8 À revelia da distinção hobbesiana entre
interior/exterior, o jusnaturalismo moderno frutificou a liberdade, de pensamento e culto,
como embrião de um elenco de direitos elementares, o pólo nucleador do complexo
jurídico basilar, ratificável em direitos fundamentais incorporados às modernas ordens
constitucionais.
Defensiva por evolução histórica, a validade autóctone das liberdades
individuais toma a natureza humana como aliada contra leis, preceitos e atos que cerceiam
indevidamente o ser livre inato do homem. O jusnaturalismo posterior a Hobbes é
defensivamente positivista. Nele invoca-se a natureza humana como fonte de direitos
negativos. A liberdade não está à disposição para ser usufruída como um bem, mas
enforma o homem como esteio de direitos, justificando a autoproteção e a defesa contra
intervenções estatais na esfera da vida individual. Ser livre não é visto em sua positiva
dimensão moral senão como direito-mor de reação em um catálogo de garantias legais que
asseguram ao cidadão liberdades pontuais concretas no sistema abrangente do direito
positivo.
Essa dupla negatividade – não estar identificada com a moral e não poder ser
induzida coletivamente – constitui a via crucis da moderna doutrina jusnaturalista. Por um
lado, o jusnaturalismo não pode renunciar às suas pretensões dogmáticas e, por outro, não
pode aceitar ser convertido em positivismo jurídico. Para gerar direitos e não apenas
marcar passo, a doutrina jusnaturalista moderna precisa conceder a cada indivíduo um
poder legiferante nato, mas, para não ser descartada como moralmente auto-suficiente,
necessita de um referencial jurídico coletivo, o qual lhe reconheça indivíduos naturais
como seres de direito. A negação, a contestação, a impugnação, a bandeira política “hay
gobierno, soy contra” é, por assim dizer, essencial ao jusnaturalismo liberal, razão por que
nenhum direito participativo fundamental, à diferença dos direitos individuais de primeira
geração, prospera sob a égide do liberalismo clássico.
8
“As for the inward thought, and beleef of men, which humane Governours can take no notice of,
(for God onely knoweth the heart) they are not voluntary, nor the effect of the law, but of the
unrevealed will, and of the power of God; and consequently fall not under obligation”. HOBBES.
Leviathan(cap. XL). Ed. by R. Tuck. Cambrige/New York: Cambridge University Press, 1991, p.
322.
A teoria pura do direito9 e sua correspondente noção de justiça,
consubstanciadas no positivismo jurídico da norma kelseniana, constituem o projeto
recente mais sério de subtrair ao jusnaturalismo moderno a prerrogativa de limitar o direito
estatal-positivo. A poeira levantada pela reação a Kelsen por parte dos profissionais do
direito positivo deixa à vista fissuras concepcionais que há tempo pareciam soterradas pelo
constitucionalismo moderno. As duas objeções relevantes à filosofia do direito de índole
kelsiana – ser avesso ao jusnaturalismo e excludente com a moral na esfera do direito –
resumem os dois melhores argumentos que foram levantados contra o absolutista Hobbes
no âmbito da filosofia moderna: o primeiro calcado sobre a natureza (Rousseau) e o
segundo com os olhos na moral (Kant). Avaliado pelo estremecimento que Hobbes e
Kelsen até hoje causam, seus críticos paradoxalmente não deixam de conviver com o
positivismo ético e ou sociológico, não obstante ambos os autores tenham assentado o
golpe de morte no legalismo pré-jurídico. Talvez a única exceção de monta nesse
solidarismo eclético reativo façam Hegel, no século passado, e C. Schmitt em nosso tempo.
Para Hobbes, o homem moderno nasce com direito e não com deveres. É aos
últimos, e não ao primeiro, que cabe o ônus da prova. De acordo com uma emblemática
passagem no De Cive, “a lei (lex/law) é uma amarra, o direito (right/jus) é liberdade”.10
Comparado ao jusnaturalismo posterior, o direito natural hobbesiano é ofensivamente
positivo. Não se trata de permanecer o mais livre possível dos vínculos da lei civil, que
impõe grilhões à liberdade individual, mas de o homem ter a capacidade natural de “enjoy
his liberty”,11 vale dizer, no estado natural hobbesiano os “homens têm a liberdade de
fazer o que a razão de cada homem sugerir como o mais favorável a seu interesse”.12
A noção hobbesiana de direito positivo é, em contrapartida, maximamente
absolutista e minimamente positivista. Ambos os atributos são inversamente proporcionais
à sua concepção jusnaturalista. Minimalista o direito positivo de Hobbes é porque o direito
natural hobbesiano concede a cada homem o poder sobre todas as coisas e faz dele juiz em
causa própria. Sendo assim, o direito positivo não tem como ampliar o âmbito da liberdade
individual, uma vez que a esfera do direito natural tem as dimensões da liberdade humana.
9
KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre. 2. Aufl. Wien: Franz Deutike, 1960.
“For law is a fetter, right is freedom, and they differ like contraries”. HOOBES. De cive or the
citizen (XIV, 3). Ed. by Sterling Lamprecht. Westport: Greenwood Press, 1982, p. 158.
11
Ibidem (XIII, 15), p. 151.
12
HOBBES. Leviathan (cap. XXI). Ed. by R. Tuck. Cambrige/New York: Cambridge University
Press, 1991, p. 147: “(...) it followeth necessarily, that in all kinds of actions, by the laws
10
O Estado mínimo de Hobbes tem a ver, portanto, com sua posição jusnaturalista de
liberdade. Sendo essa absoluta, como direito natural, o direito emanado do Leviatã não faz
os homens mais livres do que os encontra no estado de natureza e tampouco lhes consegue
conferir mais direitos. Sob este aspecto, o direito positivo hobbesiano não altera a natureza
humana, assim como se diz que a educação muda as pessoas, o socialismo subverte a
sociedade de classes e a fé enternece o mais empedernido dos corações.
Absolutista o mesmo Leviatã é porque, ao gerar direito positivo, o Estado
produz leis. Iguais às naturais e divinas, as leis civis permitem, obrigam ou coíbem, algo
absolutamente impossível de ser providenciado pelo direito natural hobbesiano. Como
Hobbes equipara todas as leis (naturais/divinas/civis) por definição, o Estado hobbesiano
só não seria absolutista se pudesse ser limitado pelo direito divino como um direito
revelado, oposto ao positivo. Tal alternativa exigiria que se fizesse uma exceção nas
definições hobbesianas de lex e ius para a lei divina e o direito divino. Tal concessão
implica, para Hobbes, confundir lei com direito e vice-versa,13 e teria por conseqüência
imediata que o cristão apenas estaria obrigado a obedecer à lei divina quando esta fosse
conforme ao direito divino. Ao manter as definições dadas, Hobbes conclui que súditos
não têm direitos positivos que possam restringir as leis do soberano,14 assim como homem
algum dispõe de um direito natural que limite leis naturais e também o cristão não pode
apelar ao direito divino para sustar alguma lei de Deus. O Estado absolutista hobbesiano é,
por conseguinte, devedor à impossibilidade jusnaturalista de conceber o direito natural
como fonte de leis civis. Sob este aspecto, todas as leis são reduzidas por Hobbes a um
único tipo e podem ser permutadas entre si. Por um lado, estando cada lei de acordo com o
direito correspondente, as três espécies dela não estão em desacordo entre si, pois todas são
igualmente válidas. Por outro lado, vige o princípio de que “leis inferiores podem reduzir a
liberdade permitida por leis a elas superiores, embora jamais a possam ampliar”.15
A filosofia política de Aristóteles tem uma identidade política própria,
estabelecida no vácuo daquilo que o direito romano denomina societas e que, desde então,
praetermittet, men have the Liberty, of doing what their own reasons shall suggest, for the most
profitable to themselves”.
13
Idem. De cive or the citizen (XIII, 3). Ed. by Sterling Lamprecht. Westport: Greenwood Press,
1982, p. 157. “They confound laws with right, who continue still to do what is permittet by divine
right, notwithstanding it be forbidden by the civil law”.
14
Ibidem (XIII, 15), p. 151: “The liberty of subjects consists not in being exempt from the laws of
the city, or that they who have the supreme poweer cannot make what laws they have a mind to”.
15
Ibidem (XIV, 3), p. 157-58: “(...) for inferior laws may restrain the liberty allowed by the
superior, although they cannot enlarge them”.
reivindica o espaço político-filosófico ocidental. Comparável ao nada teológico do dogma
da criação, Aristóteles concebe a ficção estática de um compacto aglomerado humano
como contraface nocional para aquilo que lhe significa a pólis (cidade). Por maior atenção
que o Estagirita tenha dado à formação natural da família, de clãs e aldeias, não é o oîkos
(domus/casa) sob a direção de um despótes (pater familias/senhor) que sustenta
ontologicamente a definição clássica de homem como anthropós phýsei politikón zoón e
fundamenta, em conseqüência, a constituição da justiça no universo da politéia
(civitas/república) aristotélica. Todas essas formas organizacionais, cronologicamente
anteriores ao surgimento da pólis grega constituem um nada político real, o qual só não se
manifesta socialmente como tal, por ter logicamente contíguo a si, desde os primórdios, o
télos político ao qual tendem os homens como animais políticos por natureza.
Hegel é absolutamente pretencioso com sua teoria da lei. No âmbito do espírito
objetivo, a lei encontra a formulação abstrata que enuncia a tese em relação à qual o direito
natural parece constituir a antítese, eis que uma é devedora à natureza e a outra à formação
(Bildung). Hegel escreve: “Faz parte da formação, do pensar como consciência do singular
na forma da universalidade, que eu seja apreendido como pessoa universal, no que todos
são idênticos. O homem vale, portanto, porque é homem, e não porque seja judeu, católico,
protestante, alemão, italiano etc. Essa consciência, para a qual o pensamento vale, é de
uma importância infinita – ela só é defeituosa, quando, por exemplo, no sentido do
cosmopolitismo, se fixa em defrontar a vida concreta do Estado”.16 Voltado contra Kant, o
complemento da última frase não considera o cosmopolitismo antitético, mas tão-somente
defeituoso (mangelhaft) em face da tese enunciada.
Portanto, nos séculos XVIII e XIX a essência do Direito Natural era a razão,
surgindo o racionalismo, com o objetivo de construir uma nova ordem jurídica baseada em
princípios de igualdade e liberdade, proclamados como os postulados da razão e da justiça.
Percebe-se que o Direito Natural é uma constante histórica, apesar das
inúmeras críticas. Ora é invocado para justificar rupturas com o ordenamento jurídico
vigente, ora para suprir lacunas legais. Ele reflete características específicas de sua
respectiva época, mas, continua suscitando questões sobre a natureza do direito, sua
justificação, inclusive do direito oficial.
16
Idem. Grundlinien der Philosophie des Rechts (parágrafos 209). 4. Aufl. Hamburg: Meiner,
1967, p. 180.
Conforme destaca Miguel Reale, o Direito Natural se reduz a um problema de
axiologia antropológica, haja vista que sua configuração depende do sentido do valor
atribuído ao homem, consoante a época histórica e a respectiva escala prioritária de
valores.
Quando se pergunta se existem critérios racionais para crer na existência de um
Direito Natural, poder-se-ía responder afirmativamente, se considerarmos que de cada
época histórica emergem novos pressupostos axiológicos como arcabouço justificador dos
ordenamentos jurídicos positivos. Infere-se, então, uma concepção política do
Jusnaturalismo, compreendido como instrumento legitimador de uma nova ordem jurídica
e política.
Disto se retira a premência do debate sobre o ressurgimento do Jusnaturalismo
e sua relevância em uma época carente de valores e ideais, que não sejam os
economicamente fundamentados pela globalização.
Destas reflexões surge um processo de politização e legitimação do direito: o
Jusnaturalismo, de cunho axiológico, histórico, dinâmico e não formal, como instrumento
de justificação da ordem política e jurídica em vigor, a fim de garantir um mínimo
"axiológico" ao direito. Não se quer aqui negar o sistema jurídico, o que implicaria no
desaparecimento de um mínimo de segurança jurídica. A intenção é conciliar este aspecto
legal, e portanto, estático, do ordenamento jurídico, ao direito como expressão de valores.
Desta feita, o estudo sobre o Jusnaturalismo contribui para esta compreensão, de cunho
axiológico, do direito no século XXI.
O Jusnaturalismo e as teorias contemporâneas de justiça
Para os jusnaturalistas é possível estabelecer a relação entre direito e moral.
Segundo Santiago Nino pode-se resumir em dez pontos as principais teses jusnaturalistas:
as normas de todo sistema jurídico refletem, de fato, os valores e aspirações morais da
comunidade na qual vigoram ou dos grupos de poder que participam direta ou
indiretamente na formulação de tais normas; as normas de um sistema jurídico devem
ajustar-se a certos princípios morais e de justiça que são universalmente válidos,
independentemente do fato de serem aceitos ou não pela sociedade em que tais normas se
aplicam; as normas de um sistema jurídico devem reconhecer e fazer efetivas as pautas
morais vigentes na sociedade, qualquer que seja a validade de tais pautas do ponto de vista
de uma moral crítica ou ideal; não é possível formular uma distinção conceitual que
desvincule as normas jurídicas das normas morais vigentes numa sociedade; os juizes
aplicam, em suas decisões, não apenas normas jurídicas mas também normas e princípios
morais; os juizes devem recorrer a normas e princípios morais para resolver questões que
não estão claramente resolvidas pelas normas jurídicas; os juizes devem negar-se a aplicar
aquelas normas jurídicas que contradizem radicalmente princípios morais ou de justiça
fundamentais; se uma regra constitui uma norma de um sistema jurídico, ela tem força
obrigatória moral, qualquer que seja sua origem e conteúdo, e deve ser aplicada pelos
juízes e obedecidas pelo povo; a ciência jurídica deve encarar a tarefa de formular
princípios de justiça aplicáveis a distintas situações juridicamente relevantes e avaliar até
que ponto as normas jurídicas vigentes satisfazem tais princípios e podem ser interpretadas
de modo a conformar-se às suas exigências; para identificar um sistema normativo como
uma ordem jurídica ou uma regra com uma norma jurídica não basta verificar se o sistema
ou a regra em questão satisfazem certas condições de fato, mas deve-se determinar, além
disso, sua adequação aos princípios morais e de justiça; um sistema ou um regra que não
estejam adequados a tais princípios não podem ser qualificados de jurídicos.
Assim, a certeza do Direito para o Jusnaturalismo é o conhecimento por parte
do indivíduo sobre o que é lícito ou não fazer, não se limitando ao mero ato de
conhecimento objetivo das normas, mas sim transcendendo a empiria normativa para
dirigir-se à busca da verdade do Direito: a justiça.17 Assim, a justiça está em superior em
relação a certeza, em contraponto à percepção positivista, onde a certeza está sobre a
justiça.
No século XX, notadamente após a Segunda Guerra Mundial e suas
atrocidades em nome de um Direito Estatal, surge um movimento que admite a
incapacidade do Positivismo Jurídico de fundamentar axiologicamente o Direito e que não
garante princípios essenciais. Trata-se de uma concepção que busca a reflexão sobre a
citada verdade do Direito: a justiça.18
17
PEREZ LUÑO, Antonio-Enrique, op. cit., p. 133.
Cumpre salientar que a primeira linha de pensamento sobre a Justiça, que afirma a sua realidade
como princípio, valor, idéia ou ideal, se inicia no período pré-socrático, com Homero, Hesíodo,
Sólon, Anaximandro, Parmênides e Heráclito, se desenvolve na filosofia platônica e aristotélica, se
projeta no Direito Romano e na Escolástica, culminando no pensamento de Leibniz. A segunda
linha, cujos representantes iniciais foram os sofistas gregos, entende a Justiça como uma mera
18
Um dos precursores foi Rudolf Stammler, que distingue o conceito do direito e
a idéia do direito: esta é a realização da justiça, que exige que todos os esforços legais se
dirijam no sentido de atingir a mais perfeita harmonia na vida social. Giorgio Del Vecchio
também trabalha com esta distinção e considera que o Direito Natural sempre acompanhou
a humanidade.19
Para Chaïm Perelman, a justiça é invocada para proteger a ordem estabelecida
e para justificar as reviravoltas revolucionárias.20 E neste sentido a justiça é um valor
universal, ainda que seja uma "noção confusa" 21- assume rostos diversos. O autor conclui
pela existência de dois conteúdos no conceito de justiça: o formal, ou justiça abstrata, que
compreende "princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial
devem ser tratados da mesma forma"22, e o particular, ou justiça concreta (que representa
uma noção comum), que não permite acordo justamente porque considera uma
característica diferente como a única, que se deve levar em conta na aplicação da justiça.
Assim, Perelman trabalha com o princípio da igualdade para definir sua Teoria da Justiça.
Já John Rawls parte de uma concepção mais contratualista: em uma situação
inicial, que o autor chama de original, se atinge um consenso sobre justiça, a partir de um
véu de ignorância que dissipa as atitudes e inclinações particulares dos indivíduos
(circunstâncias econômicas e sociais diversas).23 O autor trabalha mais com a concepção
política de justiça - princípios básicos de uma sociedade, um conceito de justiça como
eqüidade. "O objetivo da abordagem contratualista é o de estabelecer que tomados em seu
conjunto esses pressupostos estabelecem parâmetros adequados para os princípios de
Justiça aceitáveis."24
A concepção de justiça política de Höffe procura resgatar o Direito Natural por
intermédio de uma crítica ética ao direito e ao Estado. A Justiça Política seria a crítica ética
das leis e das instituições políticas, designando a idéia ética de Direito e de Estado, o que o
legitima e o limita. Para tanto, é preciso estruturar e organizar os poderes públicos,
convenção ou criação humana, prossegue com Epicuro e os céticos, é retomada por David Hume e
pelas correntes utilitaristas, empiristas, positivistas e sociologistas. (TEIXEIRA, António Braz, op.
cit., p. 164)
19
Idem, p. 151-153.
20
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito, 1999, p. 146.
21
Por "noção confusa" compreendem-se termos de difícil definição e com alto grau valorativo
(PERELMAN, Chaïm, op. cit., p. 6).
22
RAWLS, John. Uma teoria da justiça, 1997, p. 19.
23
Ibidem, p. 136-153.
24
Ibidem, p. 20.
determinando estratégias e caminhos, a fim de que o comprometimento com a justiça não
fique à mercê do arbítrio daquele que detém o poder. A ordem jurídica estatal se apresenta
como uma trama complexa de regras, instâncias e poderes exclusivamente positivos,
perdendo seu sentido o apelo a uma instância crítica suprapositiva, e tornando a justiça
utópica. A filosofia política deve considerar três conceitos: Direito, Justiça e Estado, a
serem considerados em um contexto sistemático: o Estado está obrigado à justiça, a Justiça
Política forma a medida normativo-crítica do Direito e o Direito justo é a forma legítima da
convivência humana. Assim, é possível melhor compreender o objeto e a finalidade da
Justiça Política. Neste sentido, a Justiça Política de Höffe busca justamente resgatar a
legitimidade do Estado de Justiça e não qualquer Estado, discutindo os mandatos políticos
sob uma perspectiva ética. Mas ele destaca que a justiça não é um ato de graça, ela é
exigida, o que a diferencia e a legitima frente a outras exigências da moral social, os
deveres de virtude. Trata-se de ser justo por convicção, de conhecer suas obrigações
jurídicas não apenas por medo da punição.25
As concepções abordadas, portanto, buscam defender o fundamento axiológico
do direito, que é a justiça, como valor fundante e universal. Contudo, a justiça é um valor
destituído de conteúdo unívoco e exige a percepção da circunstancialidade histórica,
cultural, política, econômica e social do direito sob análise. Ainda que se aceite a noção de
justiça na análise do Direito, ela não é única e implica em complementações de cunho
diverso.
Ora, de tudo quanto foi até o presente momento se depreende que, mesmo com
a tentativa de se extirpar o direito natural do ordenamento social-político, com o
positivismo, depreende-se que não é possível proceder-se dessa forma, pois mesmo que se
pudesse prever a situação em que todas as regras estivessem codificadas, ainda assim seria
necessário uma interpretação a luz do Direito Natural em a sua evolução e visão com o
passar dos tempos – dos Estóicos à Onu –, excutindo-se da vida social os Srs. Manés e os
problemas daquela natureza.
25
HÖFFE, Otfried. Justiça Política - Fundamentação de uma Filosofia Crítica do Direito e do
Estado, passim.
Conclusão
Ora, hoje o Direito Natural, recuperando e renovando o velho legado clássico,
é sobretudo uma preocupação pela Justiça e o ressurgir de um método para procurá-la. No
dizer do professor Juenil Antônio dos Santos: "A moderna concepção do Jusnaturalismo
está vinculada ao próximo momento histórico, ou seja, o movimento que rejeita toda e
qualquer explicação transcendente e procura centrar-se tão somente no homem. O homem
é, a partir desta fase, o centro do universo. Tudo passa a ser explicado a partir do próprio
homem."26
Ao analisarmos as doutrinas do Direito Natural no curso da História, vimos que
entre as escolas e os pensadores há um certo sentimento e reivindicações morais, mas
também progressos jurídicos. Hoje a concepção do Direito Natural importa essencialmente
numa afirmação de fé em certas categorias de valores, em vez de demonstração.
Reiteramos os dizeres do professor Juenil, quando afirma na citação acima
"(...) procura centrar-se tão somente no homem (...)". Pois, não sendo desta forma, como
explicar a voz da Revolução Francesa, na luta contra o Absolutismo? E a Magna Carta e a
Constituição dos Estados Unidos, que traziam na sua essência os direitos do cidadão? A
nossa Constituição da República de 05/10/1988, atendendo aos anseios da sociedade,
capitulou este pensamento em seu texto, e o considerou como cláusula pétrea. Não
devemos esquecer também que a razão da Declaração dos Direitos do homem e do
Cidadão, em todos os seus artigos, é tão somente o próprio homem.
Há, sem dúvidas, em todos esses documentos, uma anunciação da nova ordem
social e econômica, baseada na propriedade privada dos meios de produção e na autonomia
da vontade do homem-cidadão.
E todos sentimos esse apelo. Numa excelente exposição das perspectivas do
Direito Natural desde as origens a Tomás de Aquino, o jusfilósofo italiano Reginaldo
Pizzorni sintetizou com apolínea clareza esta ideia simples. E a simplicidade é
normalmente sinal de verdade: “Em geral, podemos afirmar que todos os homens,
possuindo uma certa capacidade de discernir entre o bem e o mal, assim como entre o
justo e o injusto, uma inclinação a fazer o bem e uma repugnância em fazer o mal,
possuem ainda uma certa ideia do direito natural e dos direitos naturais do homem, como
exigência da recta razão para a realização autêntica da pessoa, como lei constitutiva da
pessoa, como uma certa ordem essencial, que se encontra intimamente ligada à natureza
humana, ou melhor, à pessoa humana, e que vale, ou pelo menos deveria valer, de per si,
independentemente da intervenção do legislador humano ou do Estado.” E prossegue: “O
homem, de facto, é naturalmente levado a subordinar a validade da lei à sua conformidade
com o valor da justiça, aos fundamentais princípios de uma ordem interior a todos os
seres e em seguida interior ao próprio homem (...)”27.
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26
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27
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TEIXEIRA, António Braz,
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