Os casos clínicos freudianos Aula 1 Como todos vocês sabem, uma

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Os casos clínicos freudianos
Aula 1
Como todos vocês sabem, uma das grandes peculiaridades da psicologia é a existência de uma
modalidade de saber que chamamos de “clínica”. Como bem lembra meu amigo Christian
Dunker, a clínica é um regime de saber composto por quatro elementos: uma semiologia dos
sintomas nascido da observação da evolução da doença, uma estrutura de classificação
diagnóstica das estruturas dos estados patológicos, uma etiologia que visa o estudo das causas
e, por fim, um conjunto de técnicas terapêuticas de intervenção. Neste sentido, não é apenas a
psicologia que tem, ao lado de uma reflexão teórica sobre o comportamento humano, uma
clínica. Na verdade, como vocês sabem, o modelo do saber clínico nasce com a medicina.
Mas devemos nos perguntar se haveria alguma especificidade no saber clínico próprio
à psicologia. As modalidades clínicas diante do sofrimento psíquico são estruturalmente
idênticas àquelas em exercício quando estamos diante do sofrimento orgânico? Por exemplo,
Xavier Bichat, um dos país da medicina moderna, recomendava àqueles que se adentravam na
clínica médica:
Durante vinte anos, você terão tomado nota sobre afecções do coração, dos pulmões
das vísceras gástricas, de manhã e de noite, diante do leito do doente. Tudo será para
voc6es apenas confusão a respeito de sintomas que, não se relacionando a nada, vos
oferecerão apenas fenômenos incoerentes. Abram alguns cadáveres: vocês verão
rapidamente desaparecer a obscuridade que apenas a observação poderia dissipar1.
Tal recomendação era clara em seus pressupostos. A escuta do relato da doença pelo médico
contribui em muito pouco para o saber clínico. A fala do doente não é fiável, é insegura e
movediça, não porta objetividade alguma. O médico pode ouvi-la, mas apenas para tentar
acalmar o paciente, ou seja, sua escuta tem um efeito terapêutico que em nada contribui para
a compreensão da verdadeira doença. Na verdade, o saber clínico é um saber de objetos que
podem ser descritos sempre na terceira pessoa. A compreensão do sofrimento orgânico pede
uma submissão da clínica à fisiologia. Por isto, Bichat pode comparar seu objeto a um cadáver,
a uma coisa na qual eu não me reconheço. O corpo fisiológico é um corpo como coisa.
Mas notem um dado importante nesta configuração de saber. Se a fala singular do
paciente, esta que assume a condição da primeira pessoa, nada traz de seguro a respeito da
etiologia da doença e de seus sintomas, então não há nada que possamos chamar de uma
clínica do caso singular. A própria noção de “caso clínico” perde muito de sua função. Ela será,
no máximo, a história de uma descoberta clínica, seja diagnóstica, seja terapêutica. Um pouco
como estes relatos de descobertas que conhecemos nas narrativas edificantes da história das
ciências. No limite, reduziremos o caso clínico a um mero conjunto de indicações exemplares
sobre como o médico se comportou diante de um quadro específico.
1
BICHAT, Anatomie générale, p. XCIX
Por exemplo, o DSM IV editou um conjunto de casos clínicos a fim de exemplificar
estruturas nosográficas. Em um caso de transtorno sexual e de identidade de gênero,
encontramos o relato de Eric, um pedófilo. Em quatro parágrafo, sua história é contada.
Descobrimos que Eric era filho adotivo, que foi abusado sexualmente e que começou seu
“comportamento sexual inapropriado”a partir dos cinco anos. Depois de relatos de abusos
sexuais que ele cometara, ficamos sabendo que Eric foi internado aos 17 anos.
No hospital psiquiátrico, Eric foi submetido a entrevistas, testes psicométricos e de
medição objetiva como a plestimografia peniana (na qual se mede a excitação do sujeito
através de estímulos visuais e auditivos). As entrevistas são simplesmente factuais, ou seja, os
médicos e psicólogos procuram reconstruir a história do paciente, sem que a própria
elaboração do paciente sobre os fatos, sua importância e seus afetos entrem em conta. A
partir daí segue-se o diagnóstico: pedofilia, transtorno depressivo sem outra especificação,
transtorno de estresse pós-traumático e funcionamento intelectual borderline.
Temos então três páginas sobre o tratamento onde se descreve o uso de técnicas de
Terapia Cognitivo Comportamental, como a saciação masturbatória, a sensibilização secreta, a
reestruturação cognitiva e a prevenção de recaídas. Todas falham, Eric não é capaz de se
controlar, embora os médicos reconheçam a existência de um sentimento de culpa que o
vincula ao tratamento. No entanto, não há absolutamente nada a respeito dos possíveis
vínculos entre a história da doença e os fracassos do tratamento. nem sobre a natureza
peculiar de seu sentimento de culpa.
Por fim, descobrimos que Eric pediu passar por uma castração química através da
aplicação constante de acetato de leuprolide. O relato descreve a aumento de seu controle
dos impulsos sexuais em 100%. “Estamos muito satisfeitos com a respeito de Eric”, dizem
Richard Kruegen e Meg Kaplan, que se felicitam também dele ser “bem sucedido no controle
de seus impulsos”. Podemos medir a intensidade deste sucesso através de um parágrafo
como:
Nos últimos 10 anos em que passou tomando acetato de leuprolide, Eric disse
continuar a ter um controle de 100% sobre seus impulsos sexuais. Relata não ter
abusado sexualmente de ninguém desde então e não há relatos ou sugestões de que
tenha tido qualquer outra vítima. Ele relata que tem tido várias namoradas com as
quais mantém atividade sexual, visto que consegue ereção e se envolver em relações
sexuais, mas há anos não tem conseguido ter uma ejaculação. Teve alta do hospital e
tem morado em várias casas de recuperação. Foi re-hospitalizado várias vezes, não por
questões de conduta sexual, mas por ser suicida ou por ameaçar fisicamente uma
namorada2.
Como se vê, trata-se de uma visão muito particular de sucesso clínico que é diretamente ligada
à miséria especulativa do relato e do histórico do tratamento. Uma miséria que indica como
estamos diante de um relato exemplar, no sentido de desprovido de toda e qualquer inflexão
singular possível.
2
SPITEZ (org). DSM IV TR, Casos clínicos vol. II, Porto Alegre: Artes Médicas, 2008, p. 306
No entanto, é possível que a compreensão da especificidade do sofrimento psíquico
exija, por sua vez, uma especificidade clínica maior. Tal especificidade clínica encontra sua raiz
na irredutibilidade da noção de “caso clínico”. Mas aqui devemos colocar uma pergunta que
só é simples em aparência, a saber, o que é exatamente um caso clínico quando nos referimos
aos modelos de intervenção diante do sofrimento psíquico?
O que é um caso clínico?
Que o caso seja, a princípio, o relato do processo de tratamento e do histórico da cura, eis algo
que ninguém negaria. No entanto, dizer isto é dizer muito pouco. Pois que tipo de relato é
este e, principalmente, o que se relata? Aristóteles costuma dizer que não era possível haver
ciência do acidental (sumbebexos): “O Ser por acidente não é objeto de nenhuma especulação.
A prova é que nenhuma ciência, nem prática, nem poética, nem teórica dele se ocupa~3. Por
“acidental” entendamos “o que poderia ser de outra forma” por exemplo, que um homem seja
branco, isto é um acidente, pois tal atributo não está analiticamente presente no sujeito
“homem”. Já que o homem seja um animal, eis algo que não é acidente.
Se não há uma ciência do acidental, é porque o acidental é aquilo que não conheceria
necessidade, aquilo cujo regime seria a contingência. Se algo aconteceu de maneira
contingente, então meu saber sobre isto em nada me fornecerá regularidades e leis gerais
necessárias para a fundação da previsibilidade de qualquer saber que se queira ciência. Levar
em conta a singularidade das contingências de um sujeito e de seus encontros não nos levaria
para longe de discursos com pretensão científica?
Neste sentido, o que poderia ser um caso clínico a não ser uma descrição daquilo que é
universal e necessário no desenvolvimento da doença e na determinação do tratamento com
seus protocolos de cura? Sendo assim, o conhecimento através do caso só teria interesse na
medida em que pudesse ser generalizado para situações estruturalmente semelhantes. Como
conhecemos procedimento mais precisos de generalização, como as experiências em larga
escala, os questionários e a análises estatísticas, o conhecimento através do caso seria
relegado, no máximo, a um expediente pedagógico de ilustração. Uma espécie de momento
literário do saber médico, ou seja, que deveria ser tratado como uma forma peculiar de
literatura com pretensões médicas.
Eu gostaria de mostrar, neste curso, uma outra forma de pensar a estrutura da clínica
do sofrimento psíquico. Tal estrutura assenta-se, na verdade, na defesa da centralidade do
caso clínico. Mas, para tanto, há de se mostrar como é possível inverter a clássica proposição
de Aristóteles e afirmar que é possível algo como uma ciência do acidental. Esta é uma
maneira de dizer que, para compreender como o sofrimento psíquico se configura e se
dissolve precisamos de uma escrita do contingente, ou seja, uma escrita que descreva a
maneira com que acontecimentos contingentes ligados à vida afetiva, à sexualidade, à
3
ARISTOTELES< Metafísica, 1026b
constituição da identidade e do modo de engajamento em papéis sociais produzem efeitos na
vida psíquica dos sujeitos, sejam efeitos de adoecimento, sejam de cura.
Se tal escrita não nos fornece proposições generalizáveis, ela nos fornece, por sua vez,
um exercício de refinamento da escuta em relação àquilo que não nos é fornecido por uma
norma ou regra geral. Este exercício não é apenas o aprendizado da escuta do que é
contingente na vida psíquica de um sujeito, mas é também a maneira com que o manejo das
contingências pelo psicoterapeuta é capaz de impulsionar processos de cura. Desta forma,
leremos um caso clínico não procurando mais suas generalidades, mas a maneira com que
intervenções singulares podem abrir novas situações produzidas por acontecimentos
contingentes. Um caso clínico não fornece um modelo, como se estivéssemos falando de um
sujeito genérico, como se o caso tivesse a mesma função que uma média estatística. Um caso
clínico fornece uma estratégia de escuta, o que é algo completamente diferente. Ele compõe
um tipo de saber que não é um saber das proposições que enunciam universalidades sobre o
comportamento humano, mas um saber das técnicas.
Esta é uma questão interessante pois nos coloca diante de problemas que não são
estritamente clínicos. Se um caso clínico não fornece modelos é porque o sofrimento psíquico
não pode ser abordado através de prescrições. Sua etiologia não segue a lógica de uma
causalidade necessária. Por exemplo, uma criança que viu um movimento incessante de
destruição da autoridade e do desejo do pai pela mãe não necessariamente terá alguma forma
de comportamento anti-social advindo do déficit da autoridade paterna. Ela pode compensar
tal déficit por outras vias, pode desenvolver um comportamento depressivo, ao invés de antisocial e violento, etc. Não existe causalidade necessária no interior dos estados mentais e da
vida psíquica, embora exista relações causais que se tornam necessárias para um sujeito a
partir de situações contingentes. Mas tais relações nunca podem ser deduzidas de uma
sequência, eles simplesmente demonstram retroativamente o engendramento de sua
necessidade.
Como vocês percebem, esta proposição não é apenas uma proposição clínica. No
fundo, ela demonstra uma afirmação maior de Georges Canguilhem: “É inevitável que, ao
propor-se como teoria geral da conduta, a psicologia faça sua alguma ideia de homem. Faz-se
necessário então permitir à filosofia perguntar à psicologia de onde ela retira tal ideia e se não
seria, no fundo, de alguma filosofia”4. Esta é uma maneira direta de lembrar que as práticas
clínicas, principalmente aquelas próprias aos fatos psicológicos, são dependentes, de maneira
fundamental, de decisões prévias e muitas vezes não tematizadas a respeito dos padrões de
racionalidade da observação, da intervenção terapêutica e, principalmente, da definição do
objeto próprio à psicologia.
Neste sentido, seguindo a afirmação de Canguilhem, a reflexão epistêmica sobre a
psicologia seria, necessariamente, uma reflexão sobre a maneira com que uma certa
antropologia filosófica guiaria, de forma insidiosa, a racionalidade da direção do tratamento.
Como se a psicologia fosse, a todo momento, remetida a uma raiz metafísica a respeito da qual
ela não seria capaz de se livrar. Raiz metafísica que nos colocaria diante da necessidade em
responder uma pergunta maior, a saber: uma prática clínica pode abstrair de pôr, em seu
4
CANGHUILHEM, Georges, Qu´est ce que la psychologie?, p. 367
horizonte de racionalidade, uma concepção de sujeito que se desdobre em uma teoria da
conduta racional, base da definição do que se define como patologia mental ?
Como vocês podem ver, temos aqui várias questões de cunho epistemológico: o que é
um caso clínico? Qual sua importância no interior do conhecimento psicológico? Em que
condições a reflexão sobre casos exige a mobilização de um conjunto de pressupostos
referentes às condições necessárias de uma teoria do sujeito? Ou seja, práticas clínicas e
terapêuticas não seriam um setor avançado uma teoria do sujeito?
Os casos freudianos
Gostaria de discutir tais questões através do comentário e da releitura dos cinco grandes casos
de Sigmund Freud: o caso Dora (sobre a histeria feminina), o caso do Pequeno Hans (sobre a
fobia infantil), o caso do Homem dos Lobos (sobre a neurose obsessiva), do Homem dos Ratos
(sobre a neurose obsessiva) e, caso tenhamos tempo, do Presidente Schreber (sobre a psicose
paranoica). Há três razoes para privilegiarmos os casos freudianos. Primeiro, uma das grandes
especificidades da psicanálise na atualidade é sua defesa da centralidade do caso clínico como
escrita da contingência. Ela não só conservou o uso massivo de casos clínicos, a despeito de
outras técnicas de cunho estatístico, como usa o caso de uma maneira distinta das outras
práticas psicoterápicas.
Segundo, em larga medida, tais casos freudianos são descrições de fracassos. A parte o
homem dos Lobos, que ao que tudo indica foi um caso muito bem-sucedido, e do Presidente
Schreber, que é, na verdade, o comentário de um livro, Memória de um doente dos nervos, os
outros casos podem ser lidos como descrições de fracassos clínicos. Isto demonstra seu
interesse se levarmos em conta que o ensinamento aqui diz respeito à dificuldade em
desenvolver a escuta clínica. Por outro lado, isto nos permitirá desenvolver um esforço
comparativo com as releituras que tais casos receberão no decorrer do tempo pela
posteridade psicanalítica. Neste sentido, voltar aos casos freudianos não é um exercício de
reiteração das respostas fornecidas por Freud, mas o reconhecimento de que sua grandeza
estava na capacidade de deixar evidente as respostas que ele não era capaz de encontrar, as
dificuldade com as quais ele se deparava. OS casos clínicos freudianos mostram, muitas vezes,
a dificuldade de Freud em não operar com a transformação do complexo de Édipo e da teoria
da sexualidade infantil em quadros normativos da maturação individual. Neste sentido,
podemos ler seus casos tendo em vista os momentos em que a intervenção analítica
negligencia a natureza das contingências,
Por fim, a última razão encontra-se na própria técnica psicanalítica. Contrariamente a
Bichat, Freud nunca acreditou que a clínica deveria começar por desviar-se da fala do paciente
e abrir alguns cadáveres. O desenvolvimento de uma prática baseada na reorientação da
palavra do paciente, na compreensão da maneira com que seu discurso estabelece
associações, dá significação afetiva à situações, constrói dicotomias que impedem certas
ações, é uma conquista clínica inegável, porém atualmente colocada incessantemente em
questão. Ela é uma conquista clínica por fornecer o meio de elaboração de uma experiência
singular de sofrimento que só pode ser realmente curada à condição de levarmos em conta
sua maneira de exigir construções singulares de cura.
A análise dos casos clínicas será uma maneira de abrir certas questões gerais sobre a
psicanálise enquanto prática. Primeiro, veremos o caso Dora. Isto nos permitirá desenvolver
certas considerações gerais sobre a relação entre histeria e feminilidade, ou ainda, sobre a
maneira com que a psicanálise compreende a produção de identidades de gênero através de
patologias. Gostaria ainda de discutir os limites da intervenção clínica e as justificativas de
Freud, isto a partir, principalmente, da releitura do caso fornecida por Jacques Lacan.
Esta articulação entre patologias e processo de constituição de identidades de gênero
será relevada também na análise do caso do Homem dos Ratos com suas articulações possíveis
entre neurose obsessiva e masculinidade. Gostaria ainda de discutir o sucesso da intervenção
clínica colocando-o em relação com o sucesso da figuração literária da neurose obsessiva
através das leituras que Freud faz de Dostoievski. Esta passagem da escrita do caso à escrita
literária será um objeto importante de nosso curso. Este dois primeiros casos nos permitirão
colocar uma questão diagnóstica maior a respeito da constituição psicanalítica do quadro das
neuroses e sua dissolução pela psiquiatria contemporânea. Por que atualmente apenas a
psicanálise conservou o quadro clínico das neuroses? Qual o sentido desta conservação e o
que se perde quando as deixamos de lado?
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