1 ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA DO ESTADO DO CEARÁ CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM DIREITO CONSTITUCIONAL CLAUDIO DE ALMEIDA MARTINS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E A PRIMAZIA DA NORMA MAIS FAVORÁVEL AO SER HUMANO Fortaleza 2014 2 CLAUDIO DE ALMEIDA MARTINS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E A PRIMAZIA DA NORMA MAIS FAVORÁVEL AO SER HUMANO Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Direito Constitucional da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC), como requisito parcial para a obtenção do Título de Especialista em Direito Constitucional. Orientador: Ms Bruno Cunha Weyne. Fortaleza 2014 3 4 A Deus. Aos meus pais, que sempre me escutam e em tudo me apoiam. A minha adorável avó Júlia, exemplo de ser humano, sempre justa e companheira, que sempre estará viva em nossos corações. A minha esposa Shirly, companheira em todos os momentos. Aos meus familiares, que sempre acreditam e confiam em mim. Aos meus verdadeiros amigos, que considero extensão de minha família. 5 AGRADECIMENTOS A Deus, criador de tudo, pois, sem ele, nada seria. A minha mãe, exemplo de mulher, por sempre me incentivar e me acompanhar nos estudos. Ao professor Bruno Cunha Weyne, por aceitar a tarefa de orientação e pelo apoio prestado na realização deste trabalho. A Assessoria Pedagógica da ESMEC, por estar sempre presente e por orientar em todas as dúvidas. Ao professor Gustavo César Machado Cabral e à professora Ana Cristina Batista Luz, por aceitarem participar da banca examinadora desta monografia. 6 Ages de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio. Immanuel Kant 7 RESUMO Os tratados internacionais surgiram como forma de estreitar as relações entre os Estados soberanos, dentre eles o Brasil que, por sua vez, ainda tem um ordenamento jurídico que causa dúvidas no momento de incorporação de tais tratados ao ordenamento interno, principalmente quando se refere à tratados de direitos humanos. Grande parte das discussões e polêmicas em torno do tema abordado diz respeito, justamente, a forma de incorporação e ao status hierárquico dado à norma internacional e, consequentemente, qual norma deverá prevalecer em caso de conflito, se a interna ou a proveniente do tratado internacional. A doutrina e a jurisprudência brasileira ainda não chegaram a um consenso, daí a importância da presente pesquisa, a qual tem como objetivo geral demonstrar a interpretação que se deve dar aos tratados de direitos humanos incorporados ao direito interno e, como objetivos específicos, demonstrar os pontos controversos e a discussão atual sobre o tema, tanto na doutrina como na jurisprudência, apontando a primazia da norma mais favorável ao ser humano, em prol da dignidade da pessoa humana, como solução para tal polêmica. Para atingir tais objetivos, o primeiro capítulo retratará os tratados internacionais de modo genérico, dando ênfase à incorporação ao ordenamento interno, bem como sua hierarquia normativa, abordando a clássica divisão teórica entre o dualismo e o monismo. No segundo capítulo serão retratadas as questões gerais sobre direitos humanos e, em maior profundidade, a incorporação dos tratados de direitos humanos, além da discussão a respeito do status normativo de tais tratados. No terceiro e último capítulo serão analisados os possíveis casos de conflitos entre a Constituição Federal e referidos tratados especiais, apontando a primazia da norma mais favorável ao ser humano como solução para tais possíveis conflitos. Palavras-chave: Tratados Internacionais. Direitos Humanos. Primazia da Norma mais Favorável ao Ser Humano. 8 ABSTRACT The international treaties have emerged as a way to strengthen the relations between sovereign states, including Brazil which, by its turn, still has a legal system that causes doubts at the time of incorporation of such treaties to domestic law, especially when it refers to the human rights treaties. Much of the discussions and controversies around the addressed theme concerns rightly to the form of incorporation and the hierarchical status given to the international standard and consequently, which rule shall prevail in case of conflict, whether internal or from the international treaty. The Brazilian doctrine and jurisprudence have not reached a consensus yet, hence the importance of this research, which has as its general objective to demonstrate the interpretation that should be given to human rights treaties incorporated into domestic law and, as specific objectives, to demonstrate the controversial points and the current discussion about the theme, both in doctrine and jurisprudence, pointing the primacy of the rule more favorable to the human being, in favor of the dignity of the human person, as a solution to this controversy. To achieve these goals, the first chapter will portray the international treaties in general terms, emphasizing the incorporation into domestic law as well as its normative hierarchy, addressing the classical theoretical division between dualism and monism. In the second chapter will be portrayed general questions about human rights and, in greater depth, the incorporation of human rights treaties, including discussions about the normative status treaties. In the third and final chapter will be analyzed the possible cases of conflicts between the Federal Constitution and mentioned special treaties, pointing the primacy of the rule more favorable to human being as solution to the potential conflicts. Keywords: International Treaties. Human Rights. Primacy of the Standard More Favorable to the Human Being. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................................ 10 1 TRATADOS INTERNACIONAIS................................................................................ 15 1.1 Conceito ..................................................................................................................... 15 1.2 Relações do Direito Internacional com o Direito Interno........................................... 17 1.2.1 Dualismo.................................................................................................................. 18 1.2.2 Monismo .................................................................................................................. 20 1.2.3 Sistema misto de incorporação dos tratados............................................................ 23 1.2.4 Primazia da norma mais favorável ao indivíduo (ser humano)................................ 25 1.3 Incorporação e Hierarquia dos Tratados ao Ordenamento Interno Brasileiro........................................................................................................................... 28 2 TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO................................................................................................................... 35 2.1 Direitos Humanos: Aspectos Gerais........................................................................... 36 2.2 Incorporação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ao Ordenamento Jurídico Brasileiro............................................................................................................. 40 2.3 Hierarquia Normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no Ordenamento Jurídico Brasileiro...................................................................................... 45 2.4 Efeitos do art. 5º, § 3° da Constituição Federal e a Denúncia dos Tratados de Direitos Humanos.............................................................................................................. 63 3 CONFLITO ENTRE TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS E A ORDEM INTERNA BRASILEIRA: A PRIMAZIA DA NORMA MAIS FAVORÁVEL AO SER HUMANO...................................................................... 72 3.1 Tribunal Penal Internacional (TPI) e o Ordenamento Jurídico brasileiro................... 83 CONCLUSÃO.................................................................................................................. 93 REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 97 10 INTRODUÇÃO Os tratados internacionais de direitos humanos, no modelo atual, surgiram como um legado da Declaração Universal de 1948. Por sua vez, tal Declaração Universal surgiu no pós Segunda Guerra Mundial como forma de consolidação e de verdadeiro reconhecimento dos direitos humanos, até mesmo em detrimento do velho conceito da soberania estatal absoluta, visto que, até então, apenas os Estados eram reconhecidos como sujeitos de direito internacional. Assim é que os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos passaram a ser genericamente e globalmente utilizados, para que tais direitos conquistados não ficassem ao bel prazer da soberania de cada Estado, uma vez que tais tratados passaram a ser dotados de mecanismos para a salvaguarda dos direitos humanos internacionalmente protegidos, dentre eles a própria relativização da soberania estatal, visto serem admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos. Apesar de a Declaração Universal datar de 1948, somente a partir 1985, com a deflagração do processo de democratização do país, é que o Estado brasileiro passou a ratificar tratados de direitos humanos. Assim, em 1989, já sob a égide da atual Constituição brasileira, é que houve a ratificação do primeiro tratado de direitos humanos, qual seja: a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes. A partir de então, vários outros tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo Brasil. Não obstante a Constituição da República de 1988 já assegurar, como princípio orientador das relações internacionais, o primado da prevalência dos direitos humanos, bem como já estabelecer a chamada “cláusula aberta” dos direitos fundamentais, a prática brasileira da época, como forma de hierarquização das normas de qualquer tratado incorporado ao ordenamento interno, seja de direitos humanos ou não, considerava-os como norma ordinária, infraconstitucional, ou seja, de hierarquia inferior à Constituição. Assim, os tratados internacionais, sejam de direitos humanos ou não, foram considerados como lei ordinária, por grande parte da doutrina e da jurisprudência, até a aprovação da chamada “Reforma do Judiciário”, oportunidade em que a emenda constitucional n.º 45/2004 incluiu o § 3º ao artigo 5° do texto constitucional, conferindo status de emenda constitucional aos tratados de direitos humanos, caso fossem aprovados com quórum especial de emenda. 11 Com tal modificação, a discussão a respeito da hierarquia dos tratados de direitos humanos aprovados antes da EC 45/2004 ganhou mais força, em vez de ser sanada, visto que várias dúvidas surgiram a respeito, dentre elas, a questão do status normativo dos tratados de direitos humanos aprovados antes da referida emenda. Outra dúvida diz respeito ao caso de conflito entre tratados de direitos humanos aprovados na forma do artigo 5º, § 3º, da CF e normas internas anteriormente já inseridas no ordenamento jurídico brasileiro: continuar-seiam se utilizando os critérios da especialidade ou cronológico? Como exemplo prático, tem-se o Pacto São José da Costa Rica, ao qual o Brasil aderiu em 1992. Em tal tratado, que é de direitos humanos, há menção apenas da prisão civil por dívida alimentar, não prevendo, contudo, a prisão civil do depositário infiel, como estabelece a Constituição brasileira. Pois bem, diante do caso concreto, tal tratado, anterior à EC 45/2004, poderia ser aplicado em detrimento do texto constitucional, tendo em vista se tratar de norma que privilegia os direitos humanos? Desde o ano de 2007, o Supremo Tribunal Federal já decidiu de três formas diferentes: primeiro equiparando os tratados de direitos humanos à lei ordinária; depois considerando tais tratados como norma supralegal; e, ainda, equiparando-o à constituição (constitucionalidade material). Até 2007, o STF entendia majoritariamente que os tratados de direitos humanos tinham status de lei ordinária, fundamentando-se, principalmente, no artigo 102, III, b da Constituição Federal. No entanto, com tal entendimento, o Brasil estaria sujeito a ser responsabilizado internacionalmente pelo descumprimento de tratados de direitos humanos e por violar o princípio da primazia de tais direitos nas relações internacionais. Assim, muito provavelmente por pressão internacional, o STF passou a repensar seu posicionamento tradicional e, buscando orientações no primado da proteção da dignidade humana, a nova visão da Corte passou a ter dois novos posicionamentos: a supralegalidade, até então posição majoritária, e a constitucionalidade das normas internacionais de direitos humanos, entendimento ainda minoritário. A tese da supralegalidade, capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes, fica bem caracterizada em alguns julgamentos da Suprema Corte, dentre eles o paradigmático julgamento do Recurso Extraordinário 466.343, de 03 de dezembro de 2008, no qual se discute a possibilidade da prisão civil do depositário infiel em face do Pacto de São José, que 12 não alberga tal prisão. Com tal entendimento, o STF passou a considerar os tratados internacionais com três hierarquias distintas. Os tratados de direitos humanos, aprovados na forma de emenda, serão equivalentes às emendas constitucionais (CF, art. 5º, § 3º); os tratados de direitos humanos, aprovados pelo procedimento ordinário (CF, art. 47), terão status supralegal, situando-se em hierarquia inferior à Constituição e superior à legislação ordinária; e, os tratados e convenções internacionais que não versem sobre direitos humanos ingressarão no ordenamento jurídico brasileiro com força de lei ordinária. Este também é o entendimento de grande parte da doutrina. Apesar de tal entendimento ainda ser majoritário no STF e na doutrina constitucionalista, outra corrente, capitaneada por vários autores internacionalistas e pelo Ministro do STF Celso de Mello, entende que todos os tratados de direitos humanos seriam materialmente constitucionais, ou seja, independentemente da forma de aprovação de tal tratado internacional, apenas pelo fato de tratar sobre direitos humanos, de acordo com uma interpretação sistemática do texto constitucional brasileiro, com a incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro, os tratados de direitos humanos passam a ter status constitucional, não necessitando de quórum específico para atingir referido status. Tal entendimento, bem caracterizado no habeas corpus 87.858-8/TO, de 26 de junho de 2009, já foi parâmetro de algumas decisões no STF, no entanto, ainda em posição minoritária. Diante de toda a discussão, dúvidas e polêmicas, a pesquisa sobre o assunto poderá amadurecer ainda mais o debate, lembrando, ainda, de outros pontos pouco utilizados e mencionados pela atual doutrina e pela jurisprudência, dentre eles o primado dos direitos humanos nas relações internacionais, princípio este expressamente previsto no art. 4º, II do texto constitucional brasileiro, bem como a própria dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF), dentre outros princípios constitucionais implícitos que poderão ajudar a solucionar os seguintes questionamentos: A posição majoritária atual a respeito da forma de incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, bem como a sua hierarquia normativa corresponde aos princípios garantidos pela Constituição da República de 1988? Qual a posição do STF e da doutrina sobre o assunto atualmente? Como a primazia da norma mais favorável ao ser humano poderá ser utilizada como regra hermenêutica? A justificativa do presente trabalho fica demonstrada pelo próprio assunto, haja vista tratar de direitos humanos, tema que, por si só, tem seu grande valor de importância. Ademais, será abordada uma das principais discussões atuais da Suprema Corte brasileira, 13 qual seja: o debate sobre a incorporação e hierarquia dos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Ainda assim, serão analisados, mesmo que brevemente, os principais aspectos dos direitos humanos perante a comunidade internacional, bem como seus reflexos no ordenamento jurídico do Brasil, procurando-se, ao final, debelar as principais dúvidas sobre o assunto e afastar qualquer interpretação que desfavoreça a dignidade humana. Tem-se, como objetivo geral, demonstrar a correta interpretação que se deve dar aos tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao direito interno, qual seja: status de norma constitucional, apontando a primazia da norma mais favorável ao ser humano como regra hermenêutica para possíveis conflitos jurídicos. Como objetivos específicos têmse os seguintes: demonstrar a forma de incorporação dos tratados internacionais comuns e dos tratados de proteção aos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, bem como a hierarquia normativa de tais tratados; demonstrar os pontos controversos e a discussão atual sobre o tema, demonstrando a correta interpretação que se deve dar ao assunto, de acordo com uma interpretação sistemática do texto constitucional; demonstrar o entendimento sobre a primazia da norma mais favorável ao ser humano como regra hermenêutica em prol da dignidade da pessoa humana. Em relação aos aspectos metodológicos, as hipóteses são investigadas através de pesquisa bibliográfica e documental. No que tange à tipologia da pesquisa, esta é, segundo a utilização dos resultados, pura, visto que é realizada apenas com o intuito de aumentar o conhecimento, sem transformação da realidade. Segundo a abordagem, é qualitativa, com a observação intensiva de determinados fenômenos sociais, até porque o critério não é numérico. Quanto aos objetivos, a pesquisa é exploratória, definindo objetivos e buscando maiores informações sobre o tema em questão, e descritiva, descrevendo fatos, natureza, características, causas e relações com outros fatos. Assim, de início, no primeiro capítulo serão analisados os tratados internacionais de modo genérico, seu conceito, sua forma de incorporação ao ordenamento interno, bem como sua hierarquia normativa, abordando-se, ainda, as principais teorias que rodeiam o assunto, dentre elas a clássica divisão teórica entre o dualismo e o monismo. No segundo capítulo, serão retratadas, inicialmente, as questões gerais sobre os direitos humanos, dentre elas sua conceituação e características. Em seguida, será analisada a incorporação dos tratados de direitos humanos, além da discussão a respeito do status normativo de tais tratados, bem como sobre a correta interpretação que se deve dar ao novo § 3º do artigo 5º da Constituição Federal. 14 No terceiro e último capítulo, será confirmada a hierarquia normativa que se deve dar aos tratados de direitos humanos, sendo analisados os possíveis casos de conflitos entre a Constituição Federal e os tratados de direitos humanos, apontando-se como solução para tal conflito a primazia da norma mais favorável ao ser humano. O ponto alto e principal do presente trabalho é, então, demonstrar que a primazia da norma mais favorável ao ser humano deve ser utilizada como método hermenêutico para a solução dos possíveis conflitos entre a norma interna e a norma internacional, fazendo prevalecer, no caso concreto, a norma que mais favoreça e dignifique o homem, seja ela interna ou internacional. 15 1 TRATADOS INTERNACIONAIS Os tratados internacionais são a principal fonte de obrigação do direito internacional, tanto que houve a chamada Convenção de Viena de 1969, que dispõe sobre métodos para elaboração de tratados. Daí se poder afirmar que tratado é fonte do Direito, até mesmo porque deverá ser respeitado pelos Estados signatários, não apenas no âmbito internacional, mas também internamente. Justamente devido a tal obrigação de respeito aos tratados aderidos pelos respectivos Estados signatários, seja internamente ou internacionalmente, é que se visualizam grandes polêmicas sobre o estudo de tal instituto, principalmente quando o tema é tratados internacionais de proteção aos direitos humanos. Assim, neste capítulo, até mesmo para uma melhor investigação do trabalho, fazse necessário conceituar os tratados internacionais, bem como verificar, de maneira sucinta, a relação entre o direito internacional e direito interno, juntamente com sua incorporação e hierarquia no ordenamento jurídico brasileiro. 1.1 Conceito Classicamente, o conceito de tratados parte da definição dada pela Convenção de Viena de 1969, que começou a vigorar internacionalmente apenas em 27 de janeiro de 1980, quando, nos termos de seu artigo 84, atingiu-se o quórum mínimo de trinta e cinco Estadospartes. Segundo o artigo 2º, § 1º, a, de tal Convenção, tratado “significa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica”1. É importante salientar que a Convenção de Viena foi ratificada pelo Brasil no dia 14 de dezembro de 2009, por meio do Decreto Executivo n.º 7.030/2009, ato que promulgou, com reservas ao artigo 25 e 66, o Decreto Legislativo n.º 496/2009, no qual já havia aprovado a incorporação de tal Convenção desde 17 de julho de 2009. Eis uma grande vitória do Direito 1 BRASIL. Decreto Presidencial n.° 7.030 de 14 de dezembro de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7030.htm>. Acesso em 23 set. 2013. 16 Internacional, visto que a aprovação da Convenção de Viena já estava na “ordem do dia” do Congresso Nacional para a devida apreciação desde outubro de 1995. Apesar da demora na ratificação da Convenção de Viena, esta consagra várias normas costumeiras, por isso, mesmo sem a devida ratificação pelo Brasil, até então, sua aplicação no ordenamento interno brasileiro não era tida como problema. Pois bem, para o professor Paulo Henrique Gonçalves Portela, “os tratados são acordos escritos, firmados por Estados e organizações internacionais dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Direito Internacional Público, com o objetivo de produzir efeitos jurídicos no tocante a temas de interesse comum”2. Na definição de Louis Henkin, lembrando ainda de outras denominações dada aos tratados: O termo ‘tratado’ é geralmente usado para se referir aos acordos obrigatórios celebrados entre sujeitos de Direito Internacional, que são regulados pelo Direito Internacional. Além do termo ‘tratado’, diversas outras denominações são usadas para se referir aos acordos internacionais. As mais comuns são Convenção, Pacto, Protocolo, Carta, Convênio, como também Tratado ou Acordo Internacional. Alguns termos são usados para denotar solenidade (por exemplo, Pacto ou Carta) ou a natureza suplementar do acordo (Protocolo)3. De acordo com as definições acima mencionadas, conclui-se que tratado é instrumento regido pelas normas de Direito Internacional Público, sendo um acordo formal, por ser escrito, entre dois ou mais Estados, ou seja, podendo ser bilateral ou multilateral, sendo hábil para produzir efeitos jurídicos. Diante dessas conclusões e em decorrência da própria natureza jurídica do tratado é que se visualiza tal instituto não apenas como fonte de Direito Internacional, mas também como fonte do próprio Direito positivo interno, haja vista sua possibilidade de ingresso no ordenamento interno do Estado. Ademais, é importante lembrar que os tratados internacionais geram efeitos jurídicos, podendo criar ou extinguir direitos e obrigações, ensejando, inclusive, responsabilização internacional pelo seu descumprimento. 2 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 83. 3 HENKIN, Louis apud PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 44. 17 1.2 Relações do Direito Internacional com o Direito Interno As controvérsias e discussões a respeito dos reflexos do Direito Internacional no Direito Interno de cada Estado soberano parece não ter fim. Tais controvérsias surgem, principalmente, a partir das discussões sobre tratados internacionais. Pois bem, após a assinatura do tratado perante a comunidade internacional, tal ato passa a ter reflexo no Direito interno do respectivo Estado. É nesta relação entre direito interno e internacional que pode surgir um conflito entre os preceitos de Direito Internacional e de Direito interno. A referida relação é tradicionalmente analisada pela doutrina sob o aspecto de duas grandes teorias, o dualismo e o monismo. Lembra, ainda, o professor Paulo Henrique Gonçalves Portela, que, devido à emergência de certos ramos do Direito das Gentes, surgem outras possibilidades de solução de conflitos, como a primazia da norma mais favorável ao indivíduo, que prevalece dentro do Direito Internacional de Direitos Humanos4. Valerio de Oliveira Mazzuoli demonstra bem tal problemática quando afirma: A grande discussão que ainda se trava consiste em saber se, após a ratificação de um tratado, seria necessária a edição de ato com força de lei materializando internamente o conteúdo do instrumento ratificado, ou se seria dispensável a sistemática de incorporação legislativa para a efetiva execução interna do tratado internacional. Tormentosa fica também a questão relativa ao conflito entre tratados internacionais e leis internas, bem como qual das normas deverá prevalecer em caso de confronto5. Importante ressaltar que há doutrinadores, dentre eles, Flávia Piovesan, André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, que defendem que o Brasil haveria adotado um sistema misto de incorporação dos tratados, por adotar critérios diferentes na incorporação dos tratados tradicionais com relação aos tratados de direitos humanos6. Valerio de Oliveira Mazzuoli, também concorda com tal entendimento, no entanto, passou a chamar tal sistema de “sistema único diferenciado”7. 4 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 50. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito Internacional Público: Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.72. 6 Cf. PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 93. 7 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos e sua Incorporação no Ordenamento Brasileiro. Disponível em: <http://www.mt.trf1.gov.br>. Acesso em 15 de ago. 2013, p. 11. 5 18 Demonstrando o quando é polêmico o assunto, Pedro Baptista Martins afirmou: “Nenhum dos problemas jurídicos da atualidade avantaja-se em importância teórica ou política ao das relações entre o direito interno e o direito internacional”8. Observa-se que, devido às discussões e teorias sobre a relação entre direito internacional e direito interno, realmente, o assunto gera muitas controvérsias, não se chegando a um consenso na doutrina internacionalista até a atualidade. Em seguida serão verificadas as teorias sobre o assunto, acima apontadas. 1.2.1 Dualismo Para a corrente dualista, o Direito Internacional e o Direito Interno são duas ordens legais distintas, totalmente independentes uma da outra, visto que uma trata da ordem externa, e a outra, da interna. Por conta da independência entre referidas normas, estas não teriam como conflitar uma com a outra. De acordo com tal corrente, o Direito Internacional e o Direito Interno nunca entrariam em conflito, visto que o Direito Internacional apenas poderia ingressar no ordenamento doméstico caso seja incorporado ao mesmo, sendo “transformado” em lei nacional, mediante um procedimento específico que o adapte à norma interna do respectivo Estado. Ademais, o Direito Internacional regularia as relações entre os Estados, enquanto o Direito Interno se destinaria a regular a conduta com os indivíduos. Celso D. de Albuquerque Mello lembra que o primeiro estudo sobre o dualismo fora realizado por Heinrich Triepel, em 1899. Segundo tal autor, Triepel afirmava que o Direito Internacional e o Direito Interno seriam noções diferentes e independentes, não possuindo qualquer área em comum, havendo três diferenças entre as duas ordens jurídicas. A primeira seria “as relações sociais”, argumentando que, na ordem internacional, o Estado seria o único sujeito de direito, enquanto, na ordem interna aparece, o homem também como sujeito de direito. A segunda diferença estaria relacionada às fontes nas duas ordens jurídicas, sendo que o Direito Interno seria o resultado da vontade de um Estado, enquanto o Direito Internacional teria como fonte a vontade coletiva dos Estados, manifestando-se nos tratados e 8 MARTINS, Pedro Baptista apud MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 206. 19 costumes internacionais. A última diferença estaria relacionada à estrutura, a interna estaria baseada em um sistema de subordinação e a internacional na coordenação9. Sintetizando bem a concepção dualista, Valerio de Oliveira Mazzuoli afirma: Esta concepção dualista de que o direito internacional e do direito interno são ordens jurídicas distintas e independentes uma da outra emana do entendimento de que os tratados internacionais representam apenas compromissos exteriores do Estado, assumidos por Governos na sua representação, sem que isso possa influir no ordenamento interno desse Estado, gerando conflitos insolúveis dentro dele. Ou seja, os dois sistemas são mutuamente excludentes, não podendo um interferir no outro por qualquer motivo.[...] Por esse motivo é que, para os dualistas, esses compromissos internacionalmente assumidos não podem gerar efeitos automáticos na ordem jurídica interna, se todo o pactuado não se materializar na forma de diploma normativo típico interno com uma lei, um decreto, um regulamento, ou algo do tipo. É dizer, a norma internacional só vale quando recebida pelo direito interno, não operando a simples ratificação essa transformação. Neste caso, havendo conflito de normas, já não mais se trata de contrariedade entre o tratado e a norma de direito interno, mas entre duas disposições nacionais, uma das quais internalizou a norma convencional10. Pois bem, observa-se que, de acordo com tal teoria, não há como haver conflitos entre o Direito Internacional e Direito Interno. Na verdade, segundo o dualismo, não há que se falar em conflito de norma internacional e doméstica, mas sim de conflito apenas de normas nacionais, pois tal norma deve ser “internalizada” formalmente pelo Direito Interno por meio de lei interna e distinta. Valerio Mazzuoli lembra, ainda, que no Brasil, há dois modelos de dualismo, o radical e o moderado. No primeiro, haveria a necessidade de edição de uma lei distinta para a incorporação do tratado à ordem interna. No segundo modelo, a incorporação não necessitaria de lei, apesar de necessitar de um procedimento complexo, com aprovação do Congresso Nacional e promulgação executiva11. A teoria do dualismo moderado, como se observa, assemelha-se bastante ao atual modelo brasileiro, pelo menos no caso dos tratados internacionais comuns (que não dizem respeito à proteção dos direitos humanos), visto que, após a aceitação do tratado comum no âmbito internacional, para que tal ato seja incorporado, deverá haver aprovação pelo Congresso Nacional e, posteriormente, o Presidente da República deverá promulgar um 9 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 12. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.109-110. 10 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito Internacional Público: Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.73. 11 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 212. 20 decreto. Na prática brasileira, até então, não é necessário um projeto de lei interna discutindo o conteúdo do tratado internacional comum, bastando apenas sua incorporação ao ordenamento interno por meio de procedimento específico que, normalmente, inclui apenas a aprovação do parlamento e, em seguida, a ratificação do Chefe de Estado. A teoria dualista é bastante criticada. A principal crítica que se faz a tal corrente é que esta simplesmente despreza o indivíduo como sujeito internacional. Além desta crítica, Celso D. de Albuquerque Mello aponta várias outras: É o dualismo passível de uma série de críticas: a) o homem é também sujeito internacional, uma vez que tem direitos e deveres outorgados diretamente pela ordem internacional; b) o direito não é produto da vontade nem de um Estado, nem de vários Estados [...]; c) Kelsen observa que coordenar é subordinar a uma terceira ordem; assim sendo, a diferença entre as duas ordens não é de natureza, mas de estrutura, isto é, uma simples ‘diferença de grau’; d) o DI consuetudinário é normalmente aplicado pelos tribunais internos sem que haja qualquer transformação ou incorporação; e) quanto à escola italiana, que sustenta que o DI se dirige apenas ao Estado e não ao seus direito interno, podemos endossar a opinião de Rolando Quadri, que observa não ser ‘possível dissociar o Estado do seu ordenamento’; f) pode-se acrescentar a observação de P. Paone de que o dualismo no DI está sempre ligado à sua concepção como sistema privatístico12. Outro crítico de renome à teoria dualista é Hans Kelsen, afirmando ser esta insustentável. Primeiro porque o direito interno também é plural; segundo, porque tanto as normas de direito internacional como as das ordens jurídicas internas devem ser consideradas como normas simultaneamente válidas, e válidas de igual modo como normas jurídicas e, por conta disso, não pode haver conflitos entre tais ordens, visto que ambas se apoiam sobre a vontade de um mesmo Estado, gerador de uma unidade jurídica entre si13. Apesar da teoria dualista moderada, aparentemente, ser aplicada ao ordenamento jurídico brasileiro, mais parece que ela, por si só, é insuficiente à realidade atual do Direito pátrio, como será analisado no decorrer do presente trabalho. 1.2.2 Monismo A concepção monista é justamente o contraponto da teoria dualista, ou seja, tem como principal fundamento a unidade das normas jurídicas. A referida teoria sustenta a tese 12 MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., p. 110-111. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 230-231. 13 21 que há apenas uma ordem jurídica, com normas interligadas na ordem externa e interna. Desta forma, não seria necessária a elaboração de uma nova norma para que o tratado fosse incorporado. Valerio Mazzuoli afirma que, segundo a teoria monista, não se faz necessário um novo diploma legal que transforme a norma internacional em regra a ser aplicada internamente, visto que, se um Estado assina e ratifica um tratado internacional, é porque está se comprometendo juridicamente a assumir um compromisso que envolve direitos e obrigações que podem ser exigidos no âmbito interno14. Assim, de acordo com a doutrina monista, as ordens jurídicas interna e externa coexistem, no entanto, tal teoria deixa margem às dúvidas sobre qual ordem normativa deveria prevalecer para o caso de conflito entre as normas. Diante disso, a teoria monista se subdividiu em duas vertentes: o monismo internacionalista e o monismo nacionalista. No monismo internacionalista, há a sustentação de uma unicidade da ordem jurídica com o primado do direito externo, ou seja, o direito interno deriva do direito internacional, sendo este último com hierarquia jurídica superior ao direito interno. Celso D. de Albuquerque Mello lembra que a referida teoria foi desenvolvida, principalmente por Kelsen, ao formular a teoria pura do direito, oportunidade em que enunciou a pirâmide de normas. Segundo o referido autor, Kelsen, inicialmente chegou a sustentar a inexistência de conflitos entre as normas interna e internacional, em seguida, passou a admitir a possibilidade de conflitos entre as duas ordens jurídicas, no entanto, tal possibilidade não quebra a unidade do sistema jurídico, da mesma forma que um conflito entre a lei e a Constituição não quebra a unidade do direito estatal15. Celso D. de Albuquerque Mello completa, assegurando a primazia do direito internacional: O importante é a predominância do DI, que ocorre na prática internacional, como se pode demonstrar com duas hipóteses: a) uma lei contrária ao DI dá ao Estado prejudicado o direito de iniciar um ‘processo’ de responsabilidade internacional; b) uma norma internacional contrária à lei interna não dá ao Estado direito análogo ao da hipótese anterior. Podemos citar ainda em favor do monismo com primazia do DI a formação de uma nova fonte formal na nossa matéria: a lei internacional. Esta, muitas vezes, se dirige diretamente ao indivíduo sem que haja transformação em lei interna16. 14 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p.73. MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., p.112. 16 Idem, Ibidem,, p.112. 15 22 Na vertente monista, há ainda a teoria do monismo moderado, sustentando que caso haja norma interna contraria à norma internacional, aquela terá sua validade no âmbito interno, no entanto, o Estado signatário será responsabilizado internacionalmente pelo descumprimento da norma Internacional. Assim, no caso concreto, de acordo com tal vertente, deve-se aplicar tanto o direito internacional como o direito interno, mas de acordo com o que está expresso no ordenamento interno, aplicando-se o critério cronológico no caso de conflito entre as normas interna e externa. Celso D. de Albuquerque Mello lembra que a principal crítica que se faz ao monismo internacional é que tal teoria não corresponde à História, que ensina ser o Estado anterior ao Direito Internacional. Logo em seguida, o referido autor destaca a defesa de tal teoria: Os monistas respondem que sua teoria é ‘lógica’ e não histórica. Realmente, negar a superioridade do DI é negar a sua existência, uma vez que os Estados seriam soberanos absolutos e não estariam subordinados a qualquer ordem jurídica que lhes fosse superior. O argumento invocado pelos dualistas, em favor da independência das duas ordens jurídicas, dizendo que uma norma interna só pode ser revogada por um procedimento de Direito Interno, cai por terra ao observarmos que isto ocorre porque o contencioso internacional é de reparação e não de anulação. Tal fato se dá em virtude do próprio DI e não por causa de uma completa independência ou autonomia do ordenamento interno17. Segundo Valerio Mazzuoli, o Brasil, no que diz respeito aos tratados internacionais de direitos humanos, de acordo com o § 2°, do art. 5° da Constituição Federal, adotou o monismo internacionalista, visto que a Constituição brasileira contém um preceito que assegura o direito internacional de direitos humanos como parte integrante do direito interno, com status de norma constitucional18. Para a vertente do monismo nacionalista, o Direito Interno prevalece, em razão do valor absoluto da soberania de cada Estado. Assim, as normas internas seriam superiores às normas externas, além disso, os Estados apenas se vinculariam às normas que fossem anteriormente consentidas. Deste feita, tal teoria aceita a integração da norma externa à norma interna, mas apenas com o primado da ordem interna, valendo tal integração apenas em grau 17 MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., p.112-113 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 224. 18 23 hierárquico inferior à norma interna. Tal teoria tem poucos adeptos, talvez por estar influenciada pela filosofia de Hegel, que é fundada em uma soberania absoluta do Estado. Por fim, Valerio Mazzuoli lembra que a questão envolvendo a doutrina dualista e monista é importante na prática, visto que, através de tal discussão, pode-se saber se o Estado deve ou não invocar o seu ordenamento jurídico interno para deixar de aplicar o que foi acordado internacionalmente. Segundo o referido autor, a resposta a tal questão prática é negativa, pois, conforme o art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, bem como pelos reiterados pronunciamentos da Corte Internacional de Justiça, o Estado não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado19. 1.2.3 Sistema misto de incorporação dos tratados Para o professor Paulo Portela, cada Estado é livre para aderir qualquer teoria (monista ou dualista), de acordo com sua ordem constitucional ou jurisprudencial, podendo, inclusive, inovar ou mesclar o entendimento de tais teorias20. Pois bem, é exatamente a partir de tal possibilidade, que se afirma existir uma teoria mista, mesclando a teoria dualista e a monista. No entanto, é importante observar que tal sistema misto não se encaixa em uma concepção nova na relação entre direito interno e direito internacional. Na verdade, o que há é apenas uma observação feita por autores internacionalistas brasileiros que afirmam que o Brasil teria adotado um sistema misto, haja vista se utilizar de parâmetros da teoria monista internacionalista e da teoria dualista. Valerio Mazzuoli, apesar de se filiar à doutrina monista internacional, menciona que o Brasil teria adota um sistema único diferenciado (sistema misto), visto que, conforme interpretação constitucional (artigo 5º, § 1º da CF), não haveria a necessidade de decreto de execução presidencial para que os tratados de direitos humanos sejam incorporados ao ordenamento brasileiro, bastando apenas a aprovação congressual, diferentemente dos 19 Cf. Ibid. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 228; Ibid. Direito Internacional Público: Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.76. 20 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 53. 24 tratados comuns, que além da aprovação do congresso, necessitam de uma ratificação presidencial feita por meio de decreto21. Flávia Piovesan, da mesma forma, afirma que o Direito brasileiro optou por um sistema misto de incorporação de tratados. A referida autora, explica tal sistema misto de acordo com os ensinamentos de André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros. Segundo estes últimos, no sistema misto, o Estado não reconhece a vigência automática de todo o Direito Internacional, mas apenas para certas matérias, umas vigorando no direito interno independentemente de “transformação” e outras apenas mediante “transformação”. Por fim, tais autores afirmam que o referido sistema é conhecido como sistema da cláusula geral da recepção semiplena, tendo em vista ser resultado da adoção cumulativa das concepções monistas e dualistas22. A partir de então, afirma Flávia Piovesan: [...] conclui-se que o Direito brasileiro faz opção por um sistema misto, no qual os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos – por força do art. 5°, §1° – aplica-se a sistema de incorporação automática, enquanto aos demais tratados internacionais se aplica a sistemática de incorporação legislativa, na medida em que se tem exigido a intermediação de um ato normativo para tornar o tratado obrigatório na ordem interna. Com efeito, salvo na hipótese de tratado de direitos humanos, no Texto Constitucional não há dispositivo que enfrente a questão da relação entre o Direito Internacional e o interno. Isto é, não há menção expressa a qualquer das correntes, seja à monista, seja à dualista. Por isso, a doutrina predominante tem entendido que, em face do silêncio constitucional, o Brasil adota a corrente dualista [...]. Embora seja essa a doutrina predominante, este trabalho sustenta que tal interpretação não se aplica aos tratados de direitos humanos, que, por força do art. 5º, §1°, têm aplicabilidade imediata. [...]. Logo, defende-se que a Constituição adota um sistema jurídico misto, já que, para os tratados de direitos humanos, acolhe a sistemática da incorporação automática, enquanto para os tratados tradicionais acolhe a sistemática da incorporação não automática23. Tayara Talita Lemos explica que tal sistema misto não é adotado pelo Judiciário brasileiro, uma vez que este não reconhece, até então, a incorporação automática e aplicabilidade imediata dos tratados de direitos humanos24. De fato, até o momento, a jurisprudência brasileira adota entendimento de incorporação de tratados internacionais semelhante ao entendimento da autora acima 21 Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos e sua Incorporação no Ordenamento Brasileiro. Disponível em: <http://www.mt.trf1.gov.br>. Acesso em 15 ago. 2013, p. 11. 22 PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 93. 23 Idem, Ibidem, p. 91-92. 24 LEMOS, Tayara Talita, A emenda constitucional 45/04 e as alterações na recepção dos tratados internacionais de direitos humanos. Disponível em: <http://www.cedin.com.br>. Acesso em 22 ago. 2013, p. 16. 25 mencionada, haja vista não reconhecer a incorporação automática dos tratados de proteção aos direitos humanos, exigindo que tais tratados sejam incorporados mediante decreto presidencial. 1.2.4 Primazia da norma mais favorável ao indivíduo (ser humano) A primazia da norma mais favorável surgiu como caminho alternativo às teorias dualista e monista, visto que a doutrina não é totalmente satisfeita com a clássica divisão, pois tais teorias abordam apenas aspectos formais e acabam por deixar de lado aspectos materiais, ou seja, não discutem o conteúdo das normas em conflito, sequer ponderam qual valor deve prevalecer, apenas seguem uma linha formal de pensamento preestabelecido. O professor Paulo Portela25 menciona que o dualismo e o monismo enfatizam apenas questões formais, desconsiderando a relevância do valor que a norma pretende proteger, possibilitando que um preceito legal possa deixar de ser aplicado simplesmente por não se adequar ao entendimento de uma determinada teoria. A partir de tal entendimento é que se defende cada vez mais o princípio da primazia da norma mais favorável ao indivíduo, tendo como principal fundamento a dignidade da pessoa humana, valor este consagrado pela Constituição brasileira. Devido a tal proteção constitucional é que muitos doutrinadores, fazendo interpretação sistemática da Constituição de 1988, defendem que a primazia da norma favorável deve prevalecer quando houver conflitos entre tratados de direitos humanos e a norma interna. Antônio Augusto Cançado Trindade sintetiza bem a questão ao afirmar: No presente domínio de proteção, não mais há pretensão de primazia do direito internacional ou do direito interno, como ocorria na polêmica clássica e superada entre monistas e dualistas. No presente contexto, a primazia é a da norma mais favorável às vítimas, que melhor as proteja, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno26. 25 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 53. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional de Direitos Humanos. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, v. 1, p. 542. 26 26 Assim, o princípio da primazia da norma favorável não discute qual norma deve prevalecer, se a nacional ou a internacional, mas sim qual norma protegerá mais a pessoa humana. André de Carvalho Ramos explica que a primazia da norma mais favorável foi desenvolvida pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, justamente como forma de solucionar eventual conflito entre a norma interna e a norma internacional27. O referido autor explicar que a primazia da norma mais favorável é aplicada no ordenamento interno devido haver previsão internacional em tratados de direitos humanos: A chamada primazia da norma mais favorável significa que deve ser aplicada pelo intérprete necessariamente a norma que mais favoreça o indivíduo. Assim, a primazia da norma mais favorável nos leva a aplicar quer a norma internacional, quer a norma interna, a depender de qual seja mais favorável ao indivíduo. Cabe lembrar que tal princípio é verdadeiro dispositivo convencional internacional, ou seja, é cláusula prevista em tratado internacional. Com efeito, o princípio da norma mais favorável é regra tradicional insculpida nos tratados internacionais de Direitos Humanos e consiste na impossibilidade de se invocar uma norma internacional para reduzir direitos já garantidos em outros tratados ou mesmo na legislação interna. [...] É o próprio Direito Internacional, por meio de cláusulas previstas em tratados internacionais, que possibilita a aplicação de norma interna, desde que mais favorável ao indivíduo. De fato, essa cláusula de ‘primazia da norma mais favorável’ é assaz comum em tratados de Direitos Humanos, nos quais firma-se, em geral, que as disposições da referida convenção não poderão ser utilizadas como justificativa para a diminuição ou eliminação de maior proteção oferecida por outro tratado. Como exemplo, lembro que tal cláusula é encontrada no art. 5. 2 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), no art. 5.o do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no art. 60 da Convenção Europeia de Direitos Humanos e no art. 29, b da Convenção Americana de Direitos Humanos28. Segundo o entendimento de tal autor, a aplicação da primazia da norma mais favorável encontra seu principal fundamento no próprio Direito Internacional, uma vez que o sistema de proteção aos direitos humanos não possibilita que tratados ou leis posteriores sejam utilizadas como justificativa para a diminuição ou eliminação de um direito já consagrado ou de maior proteção conferida por outro tratado. No ordenamento brasileiro, a primazia da norma mais favorável encontra guarida no art. 4º, II da CF, ao estabelecer, como princípio, a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais. Ademais a aplicação de referido princípio também se justifica pela previsão constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Assim, o próprio texto 27 RAMOS, André de Carvalho. Supremo Tribunal Federal Brasileiro e o Controle de Convencionalidade: Levando a Sério os Tratados de Direitos Humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 104, p. 241-286, jan./dez. 2009, p. 254. 28 RAMOS, André de Carvalho, op. cit., p. 255. 27 constitucional estabelece a aplicação da primazia da norma mais favorável, como bem explica Valério de Oliveira Mazzuoli: Um dos princípios constitucionais expressamente consagrados pela Magna Carta, o qual, inclusive, é norteador da República Federativa do Brasil, é o princípio da prevalência dos direitos humanos (CF, art. 4.º, II), que, aliás, aparece pela primeira vez em uma Constituição brasileira, como princípio fundamental a reger as relações internacionais do Estado brasileiro. Ora, se é princípio da República Federativa do Brasil a prevalência dos direitos humanos, a outro entendimento não se pode chegar, senão o de que todos tratados internacionais de direitos humanos terão prevalência, no que forem mais benéficos, às normas constitucionais em vigor. [...] Dessa forma, com base na própria Carta da República, deve-se entender que, em se tratando de direitos humanos provenientes de tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, há de ser sempre aplicado, no caso de conflito entre o produto normativo convencional e à Lei Magna Fundamental, o princípio da primazia da norma mais favorável às vítimas, princípio este defendido com veemência pelo Professor Cançado Trindade, e expressamente assegurado pelo artigo 4º, II da Constituição Federal. Em outras palavras, a primazia é da norma que, no caso, mas protege os direitos da pessoa humana29. Desta maneira, verifica-se que a primazia da norma mais favorável ao ser humano advém tanto de cláusulas de tratados internacionais de direitos humanos, bem como, no caso do Brasil, do próprio texto constitucional. Tal previsão constitucional reflete a necessária interação entre direito interno e direito internacional quando se trata de proteção aos direitos humanos. Diante disso, o presente trabalho tentará demonstrar que tal princípio deve ser aplicado independentemente de qualquer teoria, até mesmo porque a teoria dualista e a teoria monista ensejam muitas controvérsias e polêmicas, mas com pouco efeito prático na realidade atual. Por isso é que se faz necessário que a primazia da norma mais favorável ao indivíduo seja aplicada, quer seja a norma interna ou internacional, e não apenas devido a fundamentos doutrinários “mirabolantes”, mas devido ao próprio fundamento constitucional brasileiro vigente. 29 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. A influência dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos no direito interno brasileiro e a primazia da norma mais favorável como regra de hermenêutica internacional. Disponível em: <www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista53/influencia.htm>. Acesso em 21 ago. 2013. 28 1.3 Incorporação e Hierarquia dos Tratados Internacionais no Ordenamento Interno Brasileiro O presente trabalho não pretende detalhar todo o processo de formação e incorporação dos tratados internacionais comuns, no entanto, para um melhor entendimento sobre as peculiaridades dos tratados de proteção aos direitos humanos e, em consequência, possibilitar uma melhor análise sobre a aplicação da primazia da norma mais favorável ao ser humano, é importante mencionar breves comentários sobre a forma de incorporação dos tratados internacionais (tradicionais ou comuns) ao ordenamento brasileiro, bem como qual seus status normativo na ordem interna brasileira. Importante destacar que a incorporação dos tratados no ordenamento interno do país signatário poderá variar de acordo o modelo adotado pelo respectivo Estado, sendo que, em alguns países, a mera assinatura do tratado já o insere como norma a ser seguida no ordenamento interno e, em outros países, é necessário um procedimento mais burocrático, com a participação do Executivo e do Legislativo. Não obstante, o problema do ingresso do tratado como norma jurídica interna passa a ser a definição do status hierárquico que tal norma terá na ordem interna. Eis a grande polêmica sobre tratados, principalmente quando versam sobre direitos humanos. Pois bem, a prática brasileira exige um processo formal no qual tanto o Poder Executivo como o Poder Legislativo participem para a devida aprovação e posterior promulgação do tratado internacional. Três dispositivos constitucionais abordam sobre a aprovação de tratados internacionais. O artigo 21, I da Constituição Federal prevê que compete a União manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais. Por sua vez, o artigo 84, VIII da CF afirma que cabe, privativamente, ao Presidente da República celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional. Por último, o artigo 49, I da CF dispõe que cabe ao Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais30. 30 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado, 1988. 29 Como se verifica, tais dispositivos constitucionais não deixam bem claro todo o procedimento de aprovação dos tratados internacionais, apenas cravam a obrigatoriedade de participação do Executivo e do Legislativo. Com a falta de clareza de tais dispositivos, o STF acabou tendo que se manifestar sobre o assunto. Assim, conforme a ADI-1480/DF, reconheceu-se que o procedimento de internalização do tratado no Brasil é ato complexo: O exame da vigente Constituição Federal permite constatar que a execução dos tratados internacionais e sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve, definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais (CF, art. 49, I) e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe – enquanto Chefe de Estado que é – da competência da promulgá-los mediante decreto31. Portanto, de acordo com o STF e de acordo com a prática brasileira de incorporação dos tratados, após o cumprimento de todas as fases e procedimentos internacionais para a elaboração de um tratado, dentre eles a negociação e assinatura – ato este que compete ao Presidente da República ou a outras autoridades relacionadas às relações exteriores ou ainda às autoridades delegadas pelo Presidente da República – tal tratado é encaminhado ao Congresso Nacional para a devida aprovação – ou não – e, somente posteriormente, com a devida aprovação pelo Congresso, é que tal tratado, novamente retorna à Presidência da República para a devida ratificação. De forma resumida, Fernando Cesar Novaes Galhano aborda muito bem todo o procedimento acima mencionado: [...] O consenso é exigência essencial para a celebração dos tratados internacionais. Na hipótese da incorporação legislativa, o chefe do Poder Executivo, no uso de suas atribuições constitucionalmente previstas, inicia o processo de formação dos tratados com atos de negociação. Na fase seguinte, após sua assinatura, o tratado deve ser levado à apreciação do Poder Legislativo, para discussão e votação nas duas casas do Congresso Nacional, com início na Câmara dos Deputados, antecedida a votação em plenário pela análise das respectivas comissões. [...] O decreto legislativo materializa a concordância do Poder Legislativo. Na fase posterior, que é a ratificação pelo chefe do Poder Executivo, momento em que o tratado, em nível internacional, passa a ocasionar efeitos jurídicos. Com o fito de que sejam dadas executoriedade e aplicabilidade em âmbito interno, efetuada a ratificação, por ato do presidente da República, será editado um decreto de promulgação. 31 SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, Tribunal Pleno, ADI 1480/DF, Relator: Celso de Mello. DJ n. 140, 08/08/2001. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 25 set. 2013. 30 A exigência final é o depósito do instrumento no órgão guardião; é certo que, na constância do processo de formação dos tratados, poderão acontecer reservas e adesões. Portanto, com a ratificação, tornam-se vigentes as obrigações decorrentes dos tratados internacionais, produzindo-se efeitos jurídicos, gerando-se responsabilidades, especialmente, em cumprimento ao princípio do pacta sunt servanda, da parte contratante inadimplente32. Importante destacar, para não deixar dúvidas, que o art. 49, I da CF ao determinar que cabe ao Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados”, tal dispositivo não significa que caiba ao Congresso ratificar o tratado ou decidir, literalmente, de maneira definitiva sobre a celebração ou não de um tratado pelo Estado brasileiro. A decisão definitiva caberá ao parlamento brasileiro apenas no caso de rejeição do tratado internacional. Caso o tratado seja aprovado pelo Poder Legislativo, a decisão final cabe, discricionariamente, ao Presidente da República33. Incorporado o tratado internacional ao ordenamento jurídico brasileiro, o problema passa a ser o status hierárquico de tal tratado no ordenamento interno e, em decorrência, quais os meios de solução caso haja possíveis conflitos entre a lei já vigente no Brasil e o tratado internacional inserido posteriormente. Sobre tal problema, destaca Valerio de Oliveira Mazzuoli: A Constituição brasileira de 1988, em nenhum de seus dispositivos, estatuiu de forma clara qual a posição hierárquica dos tratados comuns perante o nosso Direito interno. Deixou esta incumbência para a opinião, necessariamente falível, da doutrina e da jurisprudência pátrias, legando a estas um problema que competia ao legislador constituinte evitar34. O referido autor completa, ainda, mencionando que o problema da posição hierárquica dos tratados internacionais comuns pode ser resolvido, em princípio, de duas maneiras. A primeira, dando prevalência aos tratados sobre o direito interno infraconstitucional, como ocorre nas Constituições francesa de 1958 (art. 55), grega de 1975 (art.28, §1°) e peruana de 1979 (art. 101), garantindo ao tratado internacional plena vigência, independentemente de leis internas posteriores que o contradigam. Na segunda maneira, o problema é resolvido garantindo aos tratados internacionais apenas tratamento paritário, 32 GALHANO, Fernando César Novaes. Incorporação de Tratados de Direitos Humanos pelo Brasil. Revista do Curso de Direito da Faculdade de Humanidades e Direito. v. 6, n. 6, p. 93-105, 2009, p. 97-98. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/RFD/article/viewFile/944/1001>. Acesso em 24 set. 2013, p. 11. 33 Cf. PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 123; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 312-314. 34 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 332. 31 tornando-os equivalentes as leis nacionais, ou seja, em caso de conflito, aplica-se o critério da lex posterior derogat priori (critério cronológico)35. A segunda solução apresentada pelo autor acima referido é o modelo adotado pelo Supremo Tribunal Federal desde 1977, sendo reafirmado na ADI 1480/DF36, já mencionada anteriormente. Assim, de acordo com o STF, o tratado, ao ser incorporado ao ordenamento brasileiro, passar a ter força de lei ordinária. Consequentemente, tal tratado (com exceção dos tratados de direitos humanos) tanto pode revogar leis anteriores como ser revogado por leis internas posteriores, perdendo sua eficácia. Desta maneira, de acordo com o atual posicionamento do STF, o Estado brasileiro, mesmo após se comprometendo internacionalmente em um tratado, poderá, em caso de conflito com uma lei interna posterior, deixar de ser aplicado, haja vista que, de acordo com tal entendimento, os tratados internacionais e as leis infraconstitucionais estão no mesmo grau hierárquico. Tal entendimento da Suprema Corte brasileira simplesmente despreza o compromisso internacional realizado pelo Brasil, não se preocupando em possível responsabilidade internacional, sequer levando em conta a possibilidade de denúncia do tratado internacional, que seria sua forma correta de revogação ou de não aceitação do tratado pelo ordenamento interno. Este é o ensinamento de Valerio Mazzuoli: Não se ateve o Tribunal ao fato de que os tratados internacionais têm sua forma própria de revogação, que é a denúncia, nem mesmo de que o descumprimento interno de um compromisso assumido externamente acarreta a responsabilidade internacional do Estado, além de outras graves consequências no plano político internacional37. Apesar da observação feita pelo autor acima, o STF vem entendendo pelo status de lei ordinária dos tratados internacionais desde o ano de 1977, com o julgamento do 35 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 332. “[...] PARIDADE NORMATIVA ENTRE ATOS INTERNACIONAIS E NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS DE DIREITO INTERNO. – Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficiência e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em consequência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa. Precedentes. No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (“Lex posterior derogat priori”) ou, quando cabível, do critério de especialidade. Precedentes. [...].” Cf. SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, Tribunal Pleno, ADI 1480/DF, Relator: Celso de Mello. DJ n. 140, 08/08/2001. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 25 set. 2013. 37 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 333. 36 32 Recurso Extraordinário 80.004-SE38, até os dias atuais, passando inclusive pela ADI 1480/DF, já mencionada acima. Ademais, a Suprema Corte brasileira se apega a tal entendimento também com fundamento no art. 102, III, b da CF, no qual se admite o controle da constitucionalidade dos tratados, afirmando-se que a hierarquia estaria ínsita em preceitos da Constituição como o próprio art. 102, III, b e nos dispositivos que submetem a aprovação e a promulgação dos tratados a um processo legislativo menos exigente que o das emendas constitucionais39. De acordo com tal linha de entendimento, é que o professor Paulo Portela chama a atenção dispondo que, como os tratados estão sujeitos à controle de constitucionalidade e são considerados com status de lei ordinária, a eles não seria possível regulamentar matéria reservada a lei complementar40. Entretanto, Flávia Piovesan lembra que, anteriormente a 1977, o STF decidiu diversas vezes consagrando o primado do Direito Internacional, dentre eles, a referida autora cita o caso da União Federal c. Cia Rádio Internacional do Brasil, em 1951, em que o STF decidiu unanimemente que um tratado revogava as leis anteriores (Apelação Cível 9.587); o acórdão do STF, em 1914, no Pedido de Extradição nº 7 de 1913, em que se declarou está em vigor e aplicável um tratado, mesmo havendo uma lei posterior contrária a ele; A apelação Cível 7.872 de 1943, em que, com base no voto de Philadelpho de Azevedo, também afirma que a lei não revoga o tratado. Por último, lembra, ainda, da Lei n.º 5.172/66 que estabelece que os tratados internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna e serão observadas pela que lhe sobrevenha41. Em que pese o atual entendimento jurisprudencial da Suprema Corte brasileira, não se pode concordar com o mesmo, pelos seguintes motivos: primeiro, os tratados internacionais possuem modelo próprio de revogação ou de não aceitação pelo Estado de maneira unilateral, que é a denúncia, ou seja, caso o Brasil verifique que, de alguma forma, o tratado internacional esteja conflitando e prejudicando a lei interna, tal tratado internacional poderá ser denunciado – o tratado comum, é bom que se diga, visto que os tratados de proteção aos direitos humanos não poderão ser denunciados, como será analisado mais 38 Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 333; PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 128; PIOVESAN, Flávia. Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: Jurisprudência do STF. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_tratados_sip_stf.pdf>. Acesso em 25 ago. 2013, p. 11. 39 SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, Tribunal Pleno, RHC 79.785/RJ, Relator: Sepúlveda Pertence, Brasília, DF, 29 mar. 2000. DJ 22/11/2002, p. 57. 40 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 128-129. 41 PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 12-13. 33 adiante –, sob pena de responsabilização internacional; segundo, não sendo o tratado denunciado, está o mesmo vigente no ordenamento jurídico pátrio e, por conta do art. 27 da Convenção de Viena42, incorporado ao ordenamento interno e ratificado pelo Presidente, o Estado signatário não poderá justificar a não aplicação do tratado internacional por razões de direito interno; por último, deve o tratado internacional ser interpretado de boa-fé, como também determina o art. 31 da Convenção de Viena, assim, caso o Estado brasileiro simplesmente promulgue uma lei com intenção de não respeitar um tratado internacional, não estará agindo de boa-fé. Concordando com o que foi afirmado acima, Flávia Piovesan esclarece: Sustenta-se, assim, que os tratados tradicionais têm hierarquia infraconstitucional, mas supralegal. Esse posicionamento se coaduna com o princípio da boa-fé, vigente no direito internacional (o pacta sunt servanda), e que tem como reflexo o art. 27 da Convenção de Viena, segundo o qual não cabe ao Estado invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não-cumprimento de tratado. À luz do mencionado dispositivo constitucional, uma tendência da doutrina brasileira, contudo, passou a acolher a concepção de que os tratados internacionais e as leis federais apresentavam a mesma hierarquia jurídica, sendo portanto aplicável o princípio “lei posterior revoga lei anterior que seja com ela incompatível”. Essa concepção não apenas compromete o princípio da boa-fé, mas constitui afronta à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados43. Diante disso, não há como admitir o entendimento jurisprudencial majoritário sobre o assunto, até mesmo porque, desde 1940, o legislador brasileiro vem aprovando leis no sentido de dar primazia aos tratados internacionais, primeiro com o Código Penal, que ressalva os tratados internacionais, em seu artigo 5° (“Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional”), depois o Código de Processo Penal em seu art. 1º, I (“O processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código, ressalvados os tratados, as convenções e regras de direito internacional”) e, por último, pode-se citar o Código de Defesa do Consumidor em seu art. 7° (“os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário”). Assim, Valerio Mazzuoli menciona: Em suma, quiseram tais normas (art. 5º do CP e art. 1º, inc. I do CPP) atribuir expressamente aos tratados internacionais firmados pelo Estado brasileiro um status 42 Art. 27 “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado. Esta regra não prejudica o artigo 46” – Convenção de Viena. Decreto Presidencial n.° 7.030 de 14 de dezembro de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Decreto/D7030.htm>. Acesso em 23 set. 2013 43 PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 11. 34 de supralegalidade, eis que prevalecem sobre as legislações penal e processsual penal ordinárias, respectivamente. Há entretanto, outro dispositivo na legislação brasileira, a respeito do status supralegal dos tratados comuns, que merece ser lembrado. Trata-se do art.7º da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990[...] Como se pode notar facilmente, o referido dispositivo separa os tratados internacionais de que o Brasil seja signatário da legislação interna ordinária, o que reflete claramente a vontade do legislador pátrio em ver os compromissos internacionalmente assumidos alçados a um grau superior ao da legislação ordinária infraconstitucional. Se a intenção do legislador fosse a de equiparar os tratados internacionais à legislação interna ordinária, não teria ele, certamente, feito a distinção que fez. Bastava ter feito referência apenas à legislação ordinária, onde já se incluiriam os tratados internacionais, se esta fosse sua vontade44. Portanto, não há como se filiar ao entendimento do STF, visto que é claro o entendimento de que o ordenamento brasileiro considera os tratados internacionais (comuns) com grau hierárquico superior a lei ordinária e apenas inferior à Constituição, lhe conferindo status supralegal. Grau hierárquico este que, como será demonstrado adiante, é defendido, até o momento, pela maioria dos Ministros do STF, quando se trata de tratados de direitos humanos. Posição com a qual, também, discordar-se-á, de acordo com a análise feita nos capítulos seguintes. 44 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 343. 35 2 TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos passaram a ser efetivamente utilizados após a 2ª Guerra Mundial, haja vista que foi justamente nesta época – pós 2ª Guerra Mundial – que o ser humano passou a ser considerado, verdadeiramente, como prioridade. Em tal época, mais precisamente em 1945, houve a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), e, em 1948, houve a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, apesar de, tecnicamente, não ser um “tratado internacional”, é considerada pela comunidade internacional de proteção aos direitos humanos, a principal fonte dos tratados de proteção ao ser humano. Desta maneira, a Declaração Universal de 1948 é verdadeiro legado que serve como fonte para todos os tratados internacionais de direitos humanos. Consequentemente, os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos passaram a ser genericamente e globalmente utilizados, para que tais direitos conquistados não ficassem ao bel prazer da soberania de cada Estado. No decorrer do século XX, vários foram os tratados de direitos humanos promulgados pelo mundo, no entanto, no Brasil, em 1989, já sob a égide da atual Constituição da República, é que houve a ratificação do primeiro tratado de direitos humanos, qual seja: a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes. A partir de então, com o processo de democratização, vários outros tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo Brasil. Importante destacar que a Constituição da República de 1988 já assegurava – e ainda assegura – como princípio orientador das relações internacionais, o primado da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II), bem como estabelece a chamada “cláusula aberta” dos direitos fundamentais (art. 5º, § 2º). No entanto, a prática brasileira da época em que a Constituição atual foi promulgada, como forma de hierarquização das normas de quaisquer tratados incorporados ao ordenamento interno, seja de direitos humanos ou não, considerava-os como norma ordinária, infraconstitucional, ou seja, hierarquicamente inferior à Constituição. 36 Tal sistemática efetivada durante anos pela “prática brasileira” (por muito tempo com apoio da jurisprudência do STF, que parece caminhar para uma “evolução”), é umas das principais polêmicas atuais no campo jurídico. Antes de iniciar, efetivamente, comentários sobre os efeitos práticos do sistema de incorporação e a problemática da hierarquia normativa dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil – principalmente após o advento da emenda constitucional 45/2004, chamada de “Reforma do Judiciário” –, é importante tecer breves considerações sobre algumas concepções e características dos direitos humanos, além de observar como tais “direitos” foram sendo inseridos na prática internacional de proteção ao ser humano. 2.1 Direitos Humanos: aspectos gerais A doutrina mais tradicional costuma diferenciar a definição entre “Direitos Fundamentais” e “Direitos Humanos”. Para J. J. Gomes Canotilho45, os direitos fundamentais são aqueles objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta, enquanto os direitos humanos são aqueles válidos para todos os povos e em todos os tempos. Desta maneira, a doutrina considera direitos fundamentais os direitos já incorporados ao ordenamento interno, enquanto que os direitos humanos estariam dispostos em documentos de ordem internacional e válidos universalmente que, caso cheguem a ser incorporados pela ordem interna, passam a ser considerados como direitos fundamentais. Tal diferenciação parece trazer mais controvérsias que soluções, principalmente quando há conflitos entre o ordenamento interno e a ordem internacional. Valerio de Oliveira Mazzuoli, ao explicar a diferenciação que a doutrina faz entre os termos “direitos do homem”, “direitos fundamentais” e “direitos humanos”, menciona que o que realmente importa é admitir a interação de tais “direitos” (do homem, fundamentais e humanos) a fim de que todas as pessoas – pertencentes ou não pertencentes ao Estado onde se encontrem – estejam efetivamente protegidas. Explica, ainda, que há pontos de divergência entre tais termos, principalmente quando se leva em conta que nem todos os direitos fundamentais previstos nos textos constitucionais modernos são exercitáveis por todas as pessoas indistintamente (como por exemplo, o direito de voto, que não pode ser exercido 45 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 391. 37 pelos estrangeiros e por conscritos, durante o período de serviço militar, art. 14,§2° da CF), ao passo que os direitos humanos podem ser vindicados por todo cidadão do planeta e em quaisquer condições, bastando a violação de um direito seu, reconhecido em tratado internacional do qual seu país seja parte. Por fim, o referido autor, menciona que, por isso, alguns autores tenham preferido utilizar a expressão direitos humanos fundamentais, como forma de união material da proteção constitucional com a salvaguarda internacional de tais direitos46. O professor Paulo Henrique Gonçalves Portela também aborda a utilização do termo direitos humanos fundamentais pela doutrina. O referido professor trata sobre a polêmica que é a noção de direitos humanos, visto haver muitas acepções sobre tal termo, muitas delas influenciadas por pontos de vista de cunho político e ideológico. No entanto, segundo ele, não se pode atribuir aos direitos humanos noção que afaste seu caráter de prerrogativas a serem efetivamente resguardas47. Preocupado com uma definição adequada aos direitos humanos, o professor Bruno Cunha Weyne afirma que “a falta de uma elucidação da noção de direitos humanos abre caminho para que eles sejam utilizados de modo inflacionário, servindo, muitas vezes, de instrumental retórico a serviço de interesses particulares e arbitrários daqueles que os invocam”48. Diante disso, segundo o referido professor, é necessário se entender o alcance da expressão “direitos humanos” para que esta não seja utilizada apenas emotivamente, sendo importante um conceito de direitos humanos baseado em argumentos plausíveis e de relevância prática para teoria dos direitos humanos49. Como se observa, não é tarefa fácil definir a expressão “direitos humanos”, tanto que a doutrina confere a tal termo diversas concepções, definições e comparações. No entanto, é importante destacar uma concepção contemporânea de direitos humanos lembrada por Flávia Piovesan50. A referida autora se fundamenta na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, conferindo o real valor da dignidade humana como ponto alto do sistema de proteção 46 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 737-738. 47 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 615. 48 WEYNE, Bruno Cunha. A concepção dos direitos humanos como direitos morais. Revista Direitos Fundamentais e Democracia. Curitiba, v. 06, 2009, p. 2. Disponível em: <http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/17>. Acesso em 18 set. 2013. 49 WEYNE, Bruno Cunha, op. cit., p. 2. 50 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, o Princípio da Dignidade Humana e a Constituição Brasileira de 1988. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 94, n. 833, p. 41-53, mar. 2005, p. 42-48. 38 internacional de direitos humanos. Segundo tal autora, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é o maior marco do processo de reconstrução dos direitos humanos, por introduzir uma concepção contemporânea, caracterizada pela universalidade e indivisibilidade. A primeira devido à extensão universal dos direitos humanos, visto que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e titularidade de direitos. A segunda, devido à garantia dos direitos civis e políticos em conjunto com os direitos sociais, econômicos e culturais. Assim, a referida autora afirma que, quando qualquer um deles é violado, os demais também o são, por isso, os direitos humanos compõem uma unidade indivisível, interdependente e interrelacionada51. Importante mencionar, ainda, as consequências da concepção contemporânea dos direitos humanos: [...] a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado ao Estado, isto é não deve se restringir à competência nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Por sua vez, esta concepção inovadora aponta a duas importantes consequências: 1. a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos[...] 2. a cristalização da ideia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de Direito. Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua soberania52. Como se observa, a concepção mencionada pela autora se encaixa perfeitamente no atual sistema de proteção internacional de direitos humanos, haja vista colocar o ser humano antes de tudo, até mesmo do próprio Estado soberano, reconhecendo o ser humano como sujeito de direito internacional. Em decorrência de tal concepção, vários tratados internacionais de proteção aos direitos humanos foram adotados procurando tornar concreto o sistema de proteção a tais direitos. A concepção acima mencionada sobre direitos humanos pode ser interpretada de acordo com cinco características peculiares a tal direito, apontadas por Robert Alexy e muito 51 52 PIOVESAN, Flávia, op. cit., p.43. PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 44. 39 bem lembradas pelo professor Bruno Cunha Weyne, quais sejam: universalidade, fundamentalidade, abstratividade, moralidade e prioridade53. A universalidade, como o próprio nome diz e como já foi mencionado acima, garante que todos os seres humanos, sem qualquer distinção, poderá vindicar seus devidos direitos em caso de violação. A fundamentalidade diz respeito aos interesses e direitos fundamentais do ser humano, ou seja, não são todos os direitos abarcados pelos direitos humanos, somente os fundamentais ao homem. A abstratividade, juntamente com as duas primeiras características, garante que os direitos humanos não possam ser violados em hipótese alguma. A moralidade deve assegurar que os direitos morais independem de qualquer recepção ou incorporação jurídica, ou seja, mesmo em sistemas jurídicos que não os reconheça, tais direitos poderão ser reivindicados. Por último, a característica da prioridade, é decorrência da moralidade, visto que os direitos humanos devem ser respeitados, podendo ser vindicados, mesmo quando o direito positivo não garanta tais direitos, ou seja, os direitos humanos têm prioridade frente ao direito positivo54. A partir de tais características é que Bruno Weyne define a expressão “direitos humanos”: [...] a expressão ‘direitos humanos’ diz respeito àqueles direitos que sejam válidos moral e universalmente e, ao mesmo tempo, protejam os interesses e as carências mais fundamentais do ser humano, devendo, em razão disso, comportar um conteúdo com uma mesma importância abstrata e ser prioritários em relação aos demais direitos jurídico-positivos. Isso sem esquecer, é claro, que a sua incorporação ao ordenamento jurídico positivo, na forma de direitos fundamentais, como visto acima, é uma condição necessária para que tais direitos possam gozar de reconhecimento e proteção55. A definição de direitos humanos acima mencionada não poderia estar mais completa. Ademais, tal professor menciona, ainda, sobre a necessidade de incorporação de tais direitos ao ordenamento jurídico positivo na forma de “direitos fundamentais”. É justamente sobre tal ponto – incorporação de direitos humanos – que se passará a discutir em seguida, levando-se em consideração o status normativo que se deve dar a tais normas, não somente se baseando nos preceitos da comunidade internacional, mas, principalmente, de acordo com o texto constitucional brasileiro. 53 Cf. WEYNE, Bruno Cunha, op. cit., p. 3. Cf. WEYNE, Bruno Cunha, op. cit., p. 3-5. 55 WEYNE, Bruno Cunha, op. cit., p. 6. 54 40 2.2 Incorporação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ao Ordenamento Jurídico Brasileiro A discussão a respeito da incorporação dos tratados internacionais não é nova, principalmente quando relacionadas aos tratados de proteção aos direitos humanos. Grande parte da doutrina entende que a incorporação de tais tratados ocorrem de maneira imediata, ou seja, sem a necessidade de decreto presidencial. Tais doutrinadores se fundamentam no que determina o § 1° do Art. 5º da CF: “as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”56. Flávia Piovesan, defensora da aplicabilidade imediata dos tratados internacionais de direitos humanos, afirma que “se as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais demandam aplicação imediata e, se por sua vez, os tratados de direitos humanos têm por objeto justamente a definição de direitos e garantias, conclui-se que tais normas merecem aplicação imediata”57. No entanto, tal posição não é acolhida pelo STF, como bem lembra Paulo Henrique Gonçalves Portela: Decerto que a ideia de dispensar o Decreto presidencial está em consonância com princípios como o da máxima efetividade das normas constitucionais e o da interpretação sistemática, pelos quais a maior celeridade na entrada em vigor no Brasil do tratado de direitos humanos estaria em conformidade com o valor da dignidade humana dentro da Carta Magna. Entretanto, essa não é a posição acolhida pelo STF, que continua entendendo que a emissão do Decreto Presidencial é o ato final do processo de incorporação do tratado ao ordenamento jurídico interno, que assegura sua promulgação e publicidade e lhe confere, portanto, a devida executoriedade58. Como se observa, com relação à incorporação de tratados, o STF não diferencia os tratados de direitos humanos dos tratados comuns, exigindo para incorporação de ambos, tanto a ratificação do Presidente (após a devida aprovação do Congresso Nacional) como a emissão de Decreto Presidencial. Este último “detalhe” – Decreto Presidencial – exigido pelo STF é que se contrapõe com a doutrina majoritária. 56 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 85. 58 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 739-740. 57 41 Valerio de Oliveira Mazzuoli, concordando com o entendimento de Flávia Piovesan (acima mencionado), discordando do entendimento do STF e mencionando sobre o status constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, explica: [...] Ora, se as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, uma vez ratificados, por também conterem normas que dispõem sobre direitos e garantias fundamentais, terão, dentro do contexto constitucional brasileiro, idêntica aplicação imediata. [...] Atribuindo-lhes a Constituição a natureza de ‘normas constitucionais’, passam os tratados de proteção dos direitos humanos, pelo mandamento do citado § 1º do seu art. 5º, a ter aplicabilidade imediata, dispensando-se, dessa forma, a edição de decreto de execução para que irradiem seus efeitos tanto no plano interno como no plano internacional. Já nos casos de tratados internacionais que não versem sobre direitos humanos, este decreto, materializando-os internamente, faz necessário.[...] Como se já não bastasse, é ainda de se ressaltar que todos os direitos inseridos nos referidos tratados, incorporando-se imediatamente no ordenamento interno brasileiro (CF, art. 5º, § 1º), por serem normas também definidoras dos direitos e garantias fundamentais, passam a ser cláusulas pétreas, não podendo ser suprimidos nem mesmo por emenda à Constituição (CF, art. 60, § 1º, IV). É o que se extrai do resultado da interpretação dos §§ 1º e 2º, do art. 5º da Lei Fundamental, em cotejo com o art. 60, § 4º, IV, da mesma Carta. Isso porque o §1º do art. 5º da Constituição da República, como se viu, dispõe expressamente que ‘as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata’59. Não é outro o entendimento de Ingo Sarlet sobre o assunto: À luz dos argumentos esgrimidos, verifica-se que a tese da equiparação (por força do disposto no art. 5º, § 2º, da CF) entre os direitos fundamentais localizados em tratados internacionais e os com sede na Constituição formal é a que mais se harmoniza com a especial dignidade jurídica e axiológica dos direitos fundamentais na ordem jurídica interna e internacional, constituindo, ademais, pressuposto indispensável à construção e consolidação de um autêntico direito constitucional internacional dos direitos humanos, resultado da interpenetração cada vez maior entre os direitos fundamentais constitucionais e os direitos humanos dos instrumentos jurídicos internacionais. Ainda no que concerne à força dos direitos fundamentais extraídos dos tratados internacionais, impende considerar que, em se aderindo à tese da paridade com os demais direitos fundamentais da Constituição, incide também o princípio da aplicabilidade direta destas normas pelos poderes públicos (art. 5º, §1º da CF). Além disso, é de cogitar-se do fato de estes direitos fundamentais de matriz internacional estarem sujeitos à proteção das assim denominadas ‘cláusulas pétreas’ de nossa Constituição, posição esta que já havíamos sustentado em outra ocasião e que também encontra respaldo na mais recente doutrina60. 59 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 371-374. 60 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais, Reforma do Judiciário e Tratados Internacionais de Direitos Humanos. In: CLÈVE, Merlin Clève; SARLET, Ingo Wolfgang e PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Direitos Humanos e Democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 345-346. 42 Pelo vasto entendimento doutrinário, não há como pensar de maneira diferente. O texto constitucional brasileiro (§ 1°, art. 5°) é claro ao prever a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais e, em consequência, dos tratados internacionais de direitos humanos, ou seja, tais tratados são incorporados automaticamente ao ordenamento jurídico brasileiro – sendo materialmente constitucionais, como será demonstrado mais adiante – não necessitando de Decreto Presidencial para gerar efeitos no ordenamento interno, bem como para gerar direitos subjetivos para os indivíduos, garantindo a qualquer indivíduo do território brasileiro, a devida vindicação ao Judiciário em caso de desrespeito aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Outro argumento que se expõe a favor da autoaplicabilidade dos tratados internacionais de direitos humanos é que estes advém das próprias normas de direito internacional, ou seja, se um Estado se compromete com os preceitos de um tratado é porque deseja que suas normas sejam imediatamente exigíveis61. Antonio Augusto Cançado Trindade também admite uma presunção em favor da aplicabilidade imediata dos tratados de direitos humanos, a não ser que contenha regras expressas que condicionem, por meio de leis subsequentes, o cumprimento das obrigações do respectivo tratado62. Importante esclarecer que a ratificação presidencial não se confunde com o Decreto Presidencial. Na prática brasileira, adotada pelo STF, há a exigência de um ato jurídico complementar – Decreto Presidencial –, dando publicidade e executoriedade aos tratados já ratificados pelo Brasil no âmbito interno, ou seja, em regra, após a negociação e assinatura do tratado internacional, este passa pelo crivo do Congresso Nacional que, aprovando tal tratado, deixa a cargo discricionário do Presidente da República para posterior ratificação. Após a ratificação e devida comunicação à comunidade internacional é que, no Brasil, exige-se um Decreto Presidencial com força de incorporar o texto do tratado ao ordenamento jurídico brasileiro. Esta prática, de acordo com o entendimento doutrinário acima mencionado, aplica-se apenas aos tratados tradicionais, visto que para o tratados de direitos humanos, basta apenas a ratificação presidencial, não necessitando de Decreto do Executivo. 61 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 372. CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Direito Internacional e Direito Interno: Sua Interação na Proteção dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/introd.htm>. Acesso em 18 de set. 2013. 62 43 Flávia Piovesan resume bem o assunto e ainda diferencia o sistema de “incorporação automática” do sistema de “incorporação legislativa”: [...] não será mais possível a sustentação da tese segundo a qual, com a ratificação, os tratados obrigam diretamente aos Estados, mas não geram direitos subjetivos para os particulares, enquanto não advém a referida intermediação legislativa. Vale dizer, torna-se possível a invocação imediata dos tratados e convenções de direitos humanos, dos quais o Brasil seja signatário, sem a necessidade de edição de ato com força de lei, voltado à outorga de vigência interna aos acordos internacionais. A incorporação automática do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelo direito brasileiro – sem que se faça necessário um ato jurídico complementar para sua exigibilidade e implementação – traduz relevantes consequências no plano jurídico. [...] permite ao particular a invocação direta dos direitos e liberdades internacionalmente assegurados, e [...], proíbe condutas a atos violadores a esses mesmos direitos [...]. Importa esclarecer que, ao lado da sistemática da ‘incorporação automática’ do Direito Internacional, existe a sistemática da ‘incorporação legislativa’ do Direito Internacional. Isto é, se em face da incorporação automática, os tratados internacionais incorporam-se de imediato ao Direito nacional em virtude do ato de ratificação, no caso da incorporação legislativa os enunciados dos tratados ratificados não são incorporados de plano pelo Direito nacional; ao contrário, dependem necessariamente de legislação que os implemente. Essa legislação, reitere-se, é ato inteiramente distinto do ato da ratificação do tratado63. Mais adiante, Flávia Piovesan adapta tais tipos de incorporação aos tratados de direitos humanos e aos tratados comuns, com a devida diferenciação, afirmando que o Brasil teria adotado um sistema misto: Diante dessas duas sistemáticas diversas, conclui-se que o Direito brasileiro faz opção por um sistema misto, no qual os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos – por força do art. 5°, §1° – aplica-se o sistema de incorporação automática, enquanto aos demais tratados internacionais se aplica a sistemática de incorporação legislativa, na medida em que se tem exigido a intermediação de um ato normativo para tornar o tratado obrigatório na ordem interna. Com efeito, salvo na hipótese de tratado de direitos humanos, no Texto Constitucional não há dispositivo que enfrente a questão da relação entre o Direito Internacional e o interno. Isto é, não há menção expressa a qualquer das correntes, seja à monista, seja à dualista. Por isso, a doutrina predominante tem entendido que, em face do silêncio constitucional, o Brasil adota a corrente dualista, pela qual há duas ordens jurídicas diversas (a ordem interna e a ordem internacional). Para que o tratado ratificado produza efeitos no ordenamento jurídico interno, faz-se necessário a edição de um ato normativo nacional – no caso brasileiro, esse ato tem sido um decreto de execução, expedido pelo Presidente da República [...]. Embora seja essa a doutrina predominante, este trabalho sustenta que tal interpretação não se aplica aos tratados de direitos humanos, que, por força do art. 5º, §1°, têm aplicabilidade imediata. Isto é, diante do princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, os tratados de direitos humanos, assim que ratificados, devem irradiar efeitos na ordem jurídica internacional e interna, dispensando a edição de decreto de execução. Logo, defende-se que a Constituição adota um 63 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 86-87. 44 sistema jurídico misto, já que, para os tratados de direitos humanos, acolhe a sistemática da incorporação automática, enquanto para os tratados tradicionais acolhe a sistemática da incorporação não automática64. Tal “sistema misto” de incorporação dos tratados internacionais é chamado de “sistema semipleno” por Artur Cortez Bonifácio65, e de “sistema único diferenciado”, por Valerio de Oliveira Mazzuoli66. No entanto, Valerio Mazzuoli67, apesar de defender uma diferença entre a incorporação dos tratados comuns e dos tratados de direitos humanos, afirma que tal modelo não se trata de “sistema de misto”, visto não existir mistura ou fusão de sistemas distintos. Para o referido autor, tal sistemática é única para ambos os tratados porque, tanto para os tratados comuns quanto para os tratados de direitos humanos, faz-se necessário da assinatura do Presidente da República, da aprovação congressual e da subsequente ratificação, mas com a diferenciação de que os tratados de proteção dos direitos humanos dispensam a edição de decreto de execução presidencial, exigido pela prática brasileira para a incorporação de tratados comuns. Assim, segundo tal autor, o sistema é único e geral porque para ambas as modalidades de tratados, o procedimento a ser seguido é o mesmo, de acordo com o artigo 84, VIII e artigo 49, I da CF, com a única “diferença” para os tratados de proteção aos direitos humanos, visto que estes, devido a sua autoaplicabilidade, incorporam-se ao ordenamento brasileiro sem a necessidade de decreto presidencial, condição necessária apenas para a incorporação dos tratados comuns. Diante disso é que tal autor, de maneira pioneira, chama de “diferenciado” o sistema adotado pela Constituição brasileira com relação aos tratados de direitos humanos e, ao fim, denominando tal sistema de “único diferenciado”, justamente por ser um “único” e geral sistema de incorporação, mas com uma “diferença” com relação aos tratados de direitos humanos. 64 PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 91-92. QUIXADÁ, Letícia Antonio. O Supremo e os Tratados Internacionais de Direito Humanos: debate jurisprudencial em relação ao nível hierárquico normativo dos tratados internacionais. Monografia apresentada à Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP. São Paulo, 2009, p. 23. Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/monografia/148_Monografia%20Leticia%20Quixada.pdf>. Acesso em 18 de set. 2013. 66 Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos e sua Incorporação no Ordenamento Brasileiro. Disponível em: <http://www.mt.trf1.gov.br>. Acesso em 15 ago. 2013, p. 11; Ibid. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 385-389. 67 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 385-388. 65 45 A denominação acima mencionada é original e sintetiza bem o modelo de incorporação adotado pelo Brasil, uma vez que a exigência procedimental para a incorporação de ambas as modalidades de tratados internacionais é a mesma, sendo diferenciada apenas com relação aos tratados de direitos humanos. É bem verdade que não há “mistura de sistemas” quanto à incorporação de tratados, no entanto, há “mistura” de sistemas com relação à hierarquia dos tratados internacionais, haja vista que os tratados de direitos humanos, de acordo com o art. 5º, § 2º da CF, têm status de norma constitucional – como será analisado neste capítulo – e os tratados internacionais comuns têm status infraconstitucional, mas supralegal, como já foi destacado, mesmo em contraponto ao entendimento atual do STF. Este também é o entendimento do próprio Valerio Mazzuoli: O que se poderia denominar de misto, ao nosso ver, é o sistema adotado pela Constituição de 1988 no que tange à hierarquia dos tratados internacionais, e não no que se refere ao procedimento de incorporação desses mesmos tratados. Hierarquicamente, no direito brasileiro, bem como em outros ordenamentos jurídicos, a exemplo do ordenamento argentino, os tratados internacionais diferemse uns dos outros pelo grau hierárquico que o texto constitucional a eles confere: os tratados tradicionais têm hierarquia infraconstitucional (mas supralegal), e os de proteção dos direitos humanos, hierarquia constitucional, em face do art. 5º, §2º da Carta de 1988. [...] Esse caráter especial passa a justificar, assim o status constitucional atribuído aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos. Dessa forma, o ser humano, nessa escala de valores, passa a ocupar posição central, já de há muito merecida, consagrada, agora, pela própria Constituição da República68. Diante do exposto, verifica-se que não há outro entendimento a ser seguido senão o da autoaplicabilidade dos tratados internacionais de direitos humanos. Outra polêmica, talvez uma das mais acirradas da atual doutrina, principalmente após o advento da emenda constitucional 45/2004, diz respeito à hierarquia normativa dos tratados internacionais de direitos humanos após incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro. 2.3 Hierarquia Normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no Ordenamento Jurídico Brasileiro A questão da hierarquia normativa dos tratados internacionais de direitos humanos sempre foi questão polêmica na doutrina brasileira, ainda mais após o advento da emenda constitucional n.° 45/2004, que, dentre várias modificações, incluiu o § 3º ao art. 5º da CF. 68 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 388-389. 46 De início, pode-se afirmar que existem quatro posicionamentos sobre o status normativo dos tratados de direitos humanos incorporados ao ordenamento brasileiro. O primeiro, e mais tradicional deles, que foi acolhido pelo Supremo Tribunal Federal por muitos anos, é o que reconhece status de lei ordinária a todo e qualquer tratado internacional, inclusive os de proteção aos direitos humanos; O segundo posicionamento, atualmente majoritário no STF, reconhece o status supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos, ou seja, tais tratados seriam normas inferiores à Constituição, mas superior às leis ordinárias; O terceiro posicionamento, defendido por Valerio Mazzuoli, Flávia Piovesan e Antonio Augusto Cançado Trindade, entende que os tratados de direitos humanos possuem status de norma constitucional, principalmente com base na interpretação do § 2° do art. 5° da CF; O quarto posicionamento, defendido por Ceslo D. Albuquerque de Mello, reconhece o status supraconstitucional dos tratados de direitos humanos, atribuindo a primazia do direito internacional sobre o direito interno69. Na atualidade, apesar da tese que reconhece os tratados de direitos humanos como leis ordinárias ter sido majoritária no STF durante muitos anos, a discussão mais acirrada sobre a hierarquia normativa dos tratados de proteção aos direitos humanos gira em torno do reconhecimento do status constitucional e do status supralegal de tais tratados, não somente na doutrina, mas até mesmo no próprio STF, visto haver decisões acolhendo tanto uma como a outra tese. Apesar de a tese da constitucionalidade dos tratados de direitos humanos ser um pouco mais antiga, a discussão sobre o status normativos dos tratados de direitos humanos ganhou mais força após o advento da EC 45/2004, visto esta inserir o parágrafo § 3º ao art. 5º da CF, que assim dispõe: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”70. Como se observa, a EC 45/2004, possibilita que os tratados de direitos humanos sejam equivalentes às emendas constitucionais, caso respeitem o quórum específico para aprovação de emendas constitucionais. 69 Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito Internacional Público: Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.99-100.; EMERIQUE, Lilian Balmant; GUERRA, Sidney. A incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurídica brasileira. Revista Jurídica. Brasília, v. 10, n. 90, ed. Esp., p. 01-34, abr./maio, 2008, p. 3. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_90/Artigos/PDF/SidneyGuerra_Rev90.pdf>. Acesso em 17 set. 2013. 70 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988. 47 Por sua vez, o § 2° do art. 5º da CF, dispõe: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”71. Segundo este dispositivo é que alguns doutrinadores defendem a hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos, haja vista a “cláusula aberta” de direitos fundamentais, admitindo que outros direitos, além daqueles que prevê, possam existir, seja em razão de decorrerem do regime e de princípios que adota, seja em razão de decorrerem dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte72. Pois bem, a discussão atual sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos parte deste aparente contraponto: os tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao ordenamento brasileiro somente teriam status constitucional se aprovados pelo Congresso Nacional de acordo com a disposição do § 3º do Art. 5º, CF? Como fica a situação dos tratados de direitos humanos anteriores à EC 45/2004? A Constituição Federal, em seu art. 5º, § 2°, por si só, já não assegura a constitucionalidade dos tratados de direitos humanos? Vários são os outros contrapontos com relação à questão, o que será tratado, ao máximo, de acordo com a melhor doutrina e de acordo com as tendências jurisprudências do Brasil e, principalmente, de acordo com os princípios constitucionais. Entre 1977 e 2007, o STF, de maneira majoritária, filiou-se a tese que todos os tratados internacionais, inclusive os de proteção aos direitos humanos tinham status de lei ordinária, fundamentando-se, principalmente, no artigo 102, III, b da Constituição Federal. Tal posicionamento foi confirmado na ADI 1480-DF, oportunidade em que o STF entendeu que todo tratado internacional era equivalente à lei ordinária e, caso houvesse conflito entre as normas internas e externas, o intérprete deveria se utilizar dos critérios cronológicos ou da especialidade. Importante destacar que a discussão sobre a hierarquia normativa dos tratados internacionais de direitos humanos ganhou mais força após a ratificação pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica em 1992, visto que o referido tratado (art. 7, VII) autoriza apenas prisão por dívida de alimentos, nada dispondo sobre o depositário infiel, como dispõe o inciso LXVII do art. 5º da CF. 71 72 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988. CUNHA JUNIOR. Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 669. 48 Pois bem, em 22 de novembro de 1995, por meio do HC 72.131-RJ, o STF foi acionado para se manifestar sobre o assunto. Prevaleceu a tese que confere aos tratados de direitos humanos status de lei ordinária, sendo vencido o voto dos Ministros Marco Aurélio, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence, o que demonstra o quanto é antiga a polêmica sobre o assunto. Partes do voto do Ministro Celso de Mello, à época defensor da hierarquia ordinária dos tratados de direitos humanos, retrata bem a situação: É inquestionável, dentro do sistema jurídico brasileiro, que a normatividade emergente dos tratados internacionais permite situar tais atos de direito internacional público, no que concerne à hierarquia das fontes, no mesmo plano e grau de eficácia em que se posicionem as leis internas, como reconhece a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 58/70 – RTJ 83/809) e acentua o magistério da doutrina [...] Na realidade, inexiste, na perspectiva do modelo constitucional vigente no Brasil, qualquer precedência ou primazia hierárquico-normativo dos tratados ou convenções internacionais sobre o direito positivo interno, sobretudo em face das cláusulas inscritas no texto da Constituição da República, eis que a ordem normativa externa não se superpõe, em hipótese alguma, ao que prescreve a Lei Fundamental da República. [...] a ordem constitucional vigente no Brasil não pode sofrer interpretação que conduza ao reconhecimento de que o Estado brasileiro, mediante convenção internacional, ter-se-ia interditado a possibilidade de exercer, no plano interno, a competência institucional que lhe foi outorgada expressamente pela própria Constituição da República. A circunstância do Brasil haver aderido ao Pacto de São José da Costa Rica – cuja posição, no plano da hierarquia das fontes jurídicas, situa-se no mesmo nível de eficácia e autoridade das leis ordinárias internas – não impede que o Congresso Nacional, em tema de prisão civil por dívida, aprove legislação comum instituidora desse meio excepcional de coerção processual [...]. Os tratados internacionais não podem transgredir a normatividade emergente da Constituição, pois, além de não disporem de autoridade para restringir a eficácia jurídica das cláusulas constitucionais, não possuem força para conter ou para delimitar a esfera da abrangência normativa dos preceitos inscritos no texto da Lei Fundamental. [...] Parece-me irrecusável, no exame da questão concernente à primazia das normas de direito internacional público sobre a legislação interna ou doméstica do Estado brasileiro, que não cabe atribuir, por efeito do que prescreve o art. 5º, parágrafo 2º, da Carta Política, um inexistente grau hierárquico das convenções internacionais sobre o direito positivo interno vigente no Brasil, especialmente sobre o direito positivo interno vigente no Brasil, especialmente sobre as prescrições fundadas em texto constitucional, sob pena de essa interpretação inviabilizar, com manifesta ofensa à supremacia da Constituição – que expressamente autoriza a instituição da prisão civil por dívida em duas hipóteses extraordinárias (CF, art. 5º, LXVII) – o próprio exercício, pelo Congresso Nacional, de sua típica atividade político-jurídica consistente no desempenho da função de legislar[...] 73. 73 BRASIL. SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, HC 72.131/RJ, Relator: Min. Marco Aurélio. Plenário. 23/11/1995. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013. 49 O entendimento majoritário no HC 72.131/RJ foi reiterado pelo STF em vários outros julgamentos, dentre eles no RE 206.482-SP, HC 76.561-SP, RE 243.163 e na ADI 1480-3/DF74. Não há como concordar com tal posicionamento. O entendimento acima mencionado simplesmente despreza a cláusula de abertura dos direitos fundamentais, claramente estabelecida no § 2º do art. 5º da CF. Ademais, posiciona a supremacia da Constituição à frente de tudo, até mesmo do ser humano, chegando a lembrar do formalismo excessivo da “era Hitler”, que se utilizou das normas apenas para os Estados e não para os indivíduos, até mesmo em detrimento da liberdade e vida digna destes últimos. Pois bem, no caso da Constituição Federal de 1988, não há como negar o texto do § 2º do art. 5º. Ademais, segundo Flavia Piovesan, deve-se: [...] conferir hierarquia constitucional aos tratados de direitos humanos, com a observância do princípio da prevalência da norma mais favorável, é interpretação que se situa em absoluta consonância com a ordem constitucional de 1988, bem como sua racionalidade e principiologia. Trata-se de interpretação que está em harmonia com os valores prestigiados pelo sistema jurídico de 1988, em especial com o valor da dignidade humana – que é o valor fundante do sistema constitucional75. Especificamente sobre o art. 5º, § 2° da CF, Valerio de Oliveira Mazzuoli esclarece que a cláusula de abertura dos direitos fundamentais assegurada em tal dispositivo é resultado da proposta de Antonio Augusto Cançado Trindade à Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais da Assembleia Nacional Constituinte, em 29 de abril de 198776. Esclarece, ainda, o referido autor: [...] se a Constituição estabelece que os direitos e garantias nela elencados ‘não excluem’ outros provenientes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, é porque ela própria está a autorizar que esses direitos e garantias internacionais constantes dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil ‘se incluem’ no nosso ordenamento jurídico interno, passando a ser considerados como se escritos na Constituição estivessem. É dizer, se os direitos e garantias expressos no texto constitucional ‘não excluem’ outros provenientes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, é porque, pela lógica, na medida em que tais instrumentos passam a assegurar outros direitos e 74 Cf. BRASIL. SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013; PIOVESAN, Flávia, op. cit., p.64. 75 PIOVESAN, Flávia, op. cit., p.64. 76 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 750. 50 garantias, a Constituição ‘os inclui’ no seu catágolo de direitos protegidos, ampliando seu ‘bloco de constitucionalidade’77. Flávia Piovesan segue o mesmo raciocínio do autor acima mencionado, complementando que a Constituição brasileira atribui aos direitos enunciados nos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, uma natureza especial e diferenciada, integrando os direitos constitucionalmente consagrados. Segundo tal autora, tal conclusão advém de uma interpretação sistemática e teleológica do texto constitucional, especialmente devido à força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do texto constitucional78. Tal raciocínio decorre da interpretação material que se deve dar à Constituição Federal, ou seja, toda e qualquer Constituição não pode se reduzir apenas ao texto formal e positivado. Deve-se, assim, alargar o seu bloco de constitucionalidade por meio de princípios não escritos, como bem menciona Canotilho: O programa normativo-constitucional não pode se reduzir, de forma positivística, ao ‘texto’ da Constituição. Há que densificar, em profundidade, as normas e princípios não escritos, mais ainda reconduzíveis ao programa normativo-constitucional, como formas de densificação ou revelação específicas de princípios ou regras constitucionais positivamente plasmadas79. O referido autor mencionando, ainda, a questão do direito internacional na ordem interna: Apesar da notável amplitude do elenco constitucional dos direitos fundamentais, é natural que não se encontrem aí todos os direitos ou dimensões de direitos contemplados pelas muitas convenções internacionais de direitos, bem como pela lei interna. [...] De resto, a referida cláusula constitucional traduz não apenas o acolhimento dos direitos já dotados de reconhecimento infraconstitucional, mas também uma expressa abertura aos que vierem a encontrar sedimentação no futuro, no direito internacional ou na lei interna. Trata-se de uma cláusula de abertura a novos direitos, reveladora do caráter não fechado e não taxativo do elenco constitucional dos direitos fundamentais80. Em decorrência da abertura do catálogo de direitos previstos na constituição, seja de maneira explícita, implícita ou ratificada por meios de tratados internacionais, é que Flávia Piovesan e Valerio Mazzuoli passaram a classificar os direitos e garantias individuais, 77 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 750. PIOVESAN, Flávia, op. cit., p.52. 79 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 982. 80 CANOTILHO, J.J. Gomes. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p.115-116. 78 51 dividindo-os em três grupos: os dos direitos expressos no texto constitucional, por exemplo, todos os incisos do art. 5º da CF; o dos direitos implícitos, decorrentes dos princípios adotados pela Constituição; e o dos direitos expressos em tratados internacionais de que o Brasil seja parte81. Apesar dos fortes argumentos acima mencionados, a jurisprudência majoritária pátria, bem como grande parte dos constitucionalistas, não aceita tal raciocínio sob o argumento da soberania estatal absoluta e, mais modernamente, apegando-se ao princípio da supremacia da Constituição. Ademais, argumentam no sentido de que reconhecer a constitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos seria o mesmo que mitigar a ação de poder constituinte, uma vez que anularia a participação dos órgãos do poder constituído no processo de formação das leis82. Devido a tal entendimento é que o STF, por muitos anos, equiparou os tratados de direitos humanos às leis ordinárias, como demonstram a ADI 1480-3/DF e o HC 72.131/RJ83. No entanto, mesmo quando a equiparação à lei ordinária dos tratados de direitos humanos era entendimento majoritário no STF, há casos em que se visualiza um entendimento diverso, como, por exemplo, a tese da supralegalidade defendida pelo Ministro Sepúlveda Pertence no RHC 79.789/RJ, em maio de 2000, e a tese da constitucionalidade defendida pelo Ministro Carlos Velloso no HC 82424-2/RS – “caso Ellwanger”84 – bem como na ADI 1480-3/DF. Sobre a tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos, o Ministro Sepúlveda Pertence assim se manifestou no RHC 79.789/RJ: [...] Certo, com o alinhar-me ao consenso em torno da estatura infraconstitucional, na ordem positiva brasileira, dos tratados a ela incorporados, não assumo 81 Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 751; Ibid. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p.359; PIOVESAN, Flávia, op. cit., p.58. 82 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 369. 83 HC 72.731/RJ – Voto do Ministro Celso de Mello:[...] Parece-me irrecusável, no exame da questão concernente à primazia das normas de direito internacional público sobre a legislação interna ou doméstica do Estado brasileiro, que não cabe atribuir, por efeito do que prescreve o art. 5º, parágrafo 2º, da Carta Política, um inexistente grau hierárquico das convenções internacionais sobre o direito positivo interno vigente no Brasil, especialmente sobre o direito positivo interno vigente no Brasil, especialmente sobre as prescrições fundadas em texto constitucional, sob pena de essa interpretação inviabilizar, com manifesta ofensa à supremacia da Constituição – que expressamente autoriza a instituição da prisão civil por dívida em duas hipóteses extraordinárias (CF, art. 5º, LXVII). Relator: Min. Marco Aurélio. Plenário. 23/11/1995. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013. 84 Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 752, nota 27. 52 compromisso de logo — como creio ter deixado expresso no voto proferido na ADInMc 1.480 — com o entendimento, então majoritário — que, também em relação às convenções internacionais de proteção de direitos fundamentais — preserva a jurisprudência que a todos equipara hierarquicamente às leis. Na ordem interna, direitos e garantias fundamentais o são, com grande frequência, precisamente porque — alçados ao texto constitucional — se erigem em limitações positivas ou negativas ao conteúdo das leis futuras, assim como à recepção das anteriores à Constituição (cf. Hans Kelsen, Teoria Geral, cit, p. 255). Se assim é, à primeira vista, parificar às leis ordinárias os tratados a que alude o art. 5º, § 2º, da Constituição, seria esvaziar de muito do seu sentido útil a inovação, que, malgrado os termos equívocos do seu enunciado, traduziu uma abertura significativa ao movimento de internacionalização dos direitos humanos. Ainda sem certezas suficientemente amadurecidas, tendo assim — aproximando-me, creio, da linha desenvolvida no Brasil por Cançado Trindade (e.q., Memorial cit., ibidem, p. 43) e pela ilustrada Flávia Piovesan (A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratado Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, em E. Boucault e N. Araújo (órgão), Os Direitos Humanos e o Direito Internos) — a aceitar a outorga de força supra-legal às convenções de direitos humanos, de modo a dar aplicação direta às suas normas — até, se necessário, contra a lei ordinária — sempre que, sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela constantes85. (grifo nosso) A tese da constitucionalidade dos tratados de direitos humanos defendida pelo Ministro Carlos Velloso fica bem caracterizada quando fala sobre o assunto em artigo desenvolvido por referido Ministro, remontando a algumas decisões suas no STF sobre a questão: Em votos proferidos no Supremo Tribunal Federal, tenho sustentado que são três as vertentes, na Constituição da República, dos direitos e garantias: a) direitos e garantias expressos na Constituição; b) direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição; c) direitos e garantias inscritos nos tratados internacionais firmados pelo Brasil (Constituição Federal, art. 5o, § 2o). Se é certo que, na visualização dos direitos e garantias, é preciso distinguir, mediante o estudo da teoria geral dos direitos fundamentais, os direitos fundamentais materiais dos direitos fundamentais puramente formais, conforme deixei expresso em voto que proferi na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.497/DF e em trabalho doutrinário que escrevi (VELLOSO, 1997a, p. 162), se é certo, repito, que é preciso distinguirmos direitos fundamentais materiais dos direitos fundamentais puramente formais, não é menos certo, entretanto, que, diante de direito fundamental material, que diz respeito à liberdade, inscrito em Tratado firmado pelo Brasil, como, por exemplo, o que está expresso na Convenção de São José da Costa Rica, art. 7 o, item 7, que limitou a prisão por dívida à hipótese de inadimplemento de obrigação alimentícia, força é reconhecer que se tem, em tal caso, direito fundamental com status constitucional. É dizer, o art. 7o, item 7 do citado Pacto de São José da Costa Rica, é direito fundamental em pé de igualdade com os direitos fundamentais expressos na Constituição (Constituição, art. 5o, § 2o). Nesse caso, no caso de tratar-se de direito e garantia decorrente de Tratado firmado pelo Brasil, a incorporação desse direito e garantia, ao direito interno, dá-se com status constitucional, assim com primazia sobre o direito comum. É o que deflui, claramente, do disposto no mencionado § 2o do art. 5o da Constituição da 85 BRASIL. SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, RHC 79.785/RJ, Relator: Min. Sepúlveda Pertence. In Informativo STF 187 de 29.03.2000. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013. 53 República. O Supremo Tribunal Federal, todavia, não acolheu essa tese86. (grifo nosso) Tal posicionamento resume bem o que foi abordado até o momento, visto que trata os direitos humanos como norma constitucional sob o argumento do dispositivo do § 2º do art. 5º da CF, diferenciando os direitos fundamentais formais e materiais. Apesar de tal posicionamento parecer o mais coerente, uma vez que garante ao texto constitucional uma interpretação que lhe conceda máxima efetividade, somente após o advento da EC 45/2004, é que a jurisprudência do STF passou, efetivamente, a se preocupar com a hierarquia que se deve dar aos tratados de direitos humanos. Tal preocupação se deve ao fato de, com a EC 45/2004, ser inserido o § 3º ao art. 5º da CF, passando a prevê que os tratados internacionais de direitos humanos, caso aprovados pelo Congresso Nacional em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, equivaler-se-ão às emendas constitucionais, ou seja, com a EC 45/2004, possibilitou-se uma equiparação dos tratados internacionais com a Constituição, daí a maior preocupação sobre o assunto. O Ministro Gilmar Ferreira Mendes, no julgamento do RE 466.343, de 03 de dezembro de 2008, de maneira bastante didática, explicou sobre as quatro vertentes dos status normativo dos tratados de direitos humanos (supraconstitucionalidade, constitucionalidade, supralegalidade e status de lei ordinária). Em referido voto, o Ministro, apesar de considerar interessantes as argumentações dos que defendem a hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos, entende que o novo § 3º do art. 5º da CF esvazia a discussão à respeito do status constitucional, uma vez que, somente caso seja seguido o quórum de votação estabelecido em tal parágrafo, é que os tratados de direitos humanos passam a ter status constitucional. Em tal voto, Gilmar Mendes mencionou a impossibilidade de se filiar a antiga corrente que equiparava os tratados de direitos humanos às leis ordinárias, sendo necessária uma mudança crítica na jurisprudência do STF sobre o assunto. Ao fim, o referido Ministro, defende o status supralegal dos tratados de direitos humanos, assegurando-se na interpretação do novo § 3º do art. 5º da CF e, principalmente, sob o argumento da supremacia da Constituição, visto que os tratados internacionais não podem afrontar a Constituição, mas 86 VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Os tratados na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 41, n.162, p. 35-46, abr/jun. 2004, p. 38-39. 54 devem ter lugar especial no ordenamento interno, superior à lei ordinária87. Veja excertos de paradigmática decisão: Apesar da interessante argumentação proposta por essa tese, parece que a discussão em torno do status constitucional dos tratados de direitos humanos foi, de certa forma, esvaziada pela promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, a Reforma do Judiciário (oriunda do Projeto de Emenda Constitucional nº 29/2000), a qual trouxe como um de seus estandartes a incorporação do § 3º ao art. 5º[...]. Em termos práticos, trata-se de uma declaração eloquente de que os tratados já ratificados pelo Brasil, anteriormente à mudança constitucional, e não submetidos ao processo legislativo especial de aprovação no Congresso Nacional, não podem ser comparados às normas constitucionais. Não se pode negar, por outro lado, que a reforma também acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre os Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico. Em outros termos, solucionando a questão para o futuro - em que os tratados de direitos humanos, para ingressarem no ordenamento jurídico na qualidade de emendas constitucionais, terão que ser aprovados em quórum especial nas duas Casas do Congresso Nacional -, a mudança constitucional ao menos acena para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos tratados e convenções internacionais já ratificados pelo Brasil, a qual tem sido preconizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o remoto julgamento do RE n° 80.004/SE, de relatoria do Ministro Xavier de Albuquerque (julgado em 1o.6.1977; DJ 29.12.1977) e encontra respaldo em um largo repertório de casos julgados após o advento da Constituição de 1988. Após a reforma, ficou ainda mais difícil defender a terceira das teses acima enunciadas, que prega a ideia de que os tratados de direitos humanos, como quaisquer outros instrumentos convencionais de caráter internacional, poderiam ser concebidos como equivalentes às leis ordinárias.[...]Posteriormente, no importante julgamento da medida cautelar na ADI n° 1.480-3/DF, Rel. Min. Celso de Mello (em 4.9.1997), o Tribunal voltou a afirmar que entre os tratados internacionais e as leis internas brasileiras existe mera relação de paridade normativa, entendendo-se as "leis internas" no sentido de simples leis ordinárias e não de leis complementares. A tese da legalidade ordinária dos tratados internacionais foi reafirmada em julgados posteriores (RE n° 206.4823/SP, Rel. Min. Mauricio Corrêa, julgado em 27.5.1998, DJ 5.9.2003; HC n°81.3194/GO, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 24.4.2002, DJ 19. 8. 2005) e mantémse firme na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. É preciso ponderar, no entanto, se, no contexto atual, em que se pode observar a abertura cada vez maior do Estado constitucional a ordens jurídicas supranacionais de proteção de direitos humanos, essa jurisprudência não teria se tornado completamente defasada.[...] Tudo indica, portanto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sem sombra de dúvidas, tem de ser revisitada criticamente. [...] Importante deixar claro, também, que a tese da legalidade ordinária, na medida em que permite ao Estado brasileiro, ao fim e ao cabo, o descumprimento unilateral de um acordo internacional, vai de encontro aos princípios internacionais fixados pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, a qual, em seu art. 27, determina que nenhum Estado pactuante "pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado". Por conseguinte, parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade. Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação 87 BRASIL. SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, RE 466.343-SP, Pleno. Relator: Min. Cezar Peluso. DJ 104, publicado em 05.06.2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013. 55 ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana. Essa tese foi aventada, em sessão de 29 de março de 2000, no julgamento do RHC n° 79.785-RJ, pelo voto do eminente Relator, Min. Sepúlveda Pertence, que acenou com a possibilidade da consideração dos tratados sobre direitos humanos como documentos supralegais. [...] Assim, a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional torna imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos na ordem jurídica nacional. É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano88. (grifo original) Tal decisão demonstra a preocupação não apenas do Ministro Gilmar Mendes, mas do próprio STF, em atualizar sua jurisprudência sobre tratados de direitos humanos, principalmente porque no referido julgamento (apertado), houve quatro Ministros vencidos – Celso de Mello, que mudou seu entendimento sobre o assunto, visto que antes apoiava a tese da “legalidade” dos tratados, Cezar Peluso, Ellen Grace e Eros Grau – , que defenderam a tese da constitucionalidade. Diante disso, o STF passou a repensar seu posicionamento tradicional (que conferia aos tratados de direitos humanos status de lei ordinária) e, buscando orientações no primado da proteção da dignidade humana, a nova visão da Corte passou a ter dois novos posicionamentos: a supralegalidade, até então posição majoritária, e a constitucionalidade das normas internacionais de direitos humanos, entendimento ainda minoritário. Pois bem, como se percebe no voto do Ministro Gilmar Mendes visto acima, a tese da supralegalidade reconhece que se deve dar tratamento diferenciado aos tratados de direitos humanos, desde que não desrespeite o princípio da supremacia da Constituição. Assim, segundo tal tese, os tratados de direitos humanos não podem ser considerados em pé de igualdade com a Constituição, bem como não podem ser revogados por leis ordinárias, cabendo-lhes, dentro da hierarquia normativa brasileira, grau superior às leis ordinárias, mas inferior à Constituição. Ademais, após a inclusão do § 3° ao art. 5º da CF, os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos somente poderão ser equivalentes às emendas constitucionais, caso sejam aprovados com o respectivo quórum de emenda constitucional, ficando esvaziada, de acordo com Gilmar Mendes, a discussão a respeito do § 2º do art. 5º da CF, no qual conferiria constitucionalidade aos tratados de direitos humanos. É importante destacar que a discussão sobre o assunto existe mesmo antes da EC 45/04, apesar de tal emenda ter dado maior força a polêmica. Na verdade, na prática jurisprudencial, a discussão em torno da hierarquia dos tratados de direitos humanos no STF, 88 Voto do Ministro Gilmar Mendes no RE 466.343-SP, Pleno. Relator: Min. Cezar Peluso. DJ 104, publicado em 05.06.2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013. 56 deu-se, principalmente, devido à não previsão, no Pacto de São José da Costa Rica, da prisão civil do depositário infiel, ou seja, o art. 5º, LXVII da CF prevê a possibilidade de prisão por dívida alimentar e do depositário infiel, diferentemente do art. 7, VII do Pacto de São José da Costa Rica que admite a prisão civil apenas no caso de dívida alimentar. Assim, a partir da tese da supralegalidade capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes, tal possibilidade passou a não ter aplicação na Constituição brasileira, ou seja, apesar da previsão da prisão civil do depositário infiel, esta não teria aplicação no ordenamento brasileiro. Tal posicionamento parece ser bastante confuso e com muitas contradições. Como se pode afirmar que os tratados de direitos humanos são hierarquicamente inferiores à Constituição e, mesmo assim, ser aplicado em detrimento de uma clara disposição constitucional? É isso que ocorre no conflito entre o Pacto de São José da Costa Rica – ratificado pelo Brasil desde 1992 – e com o inciso LXVII do art. 5º da CF, haja vista que, de acordo com o novo entendimento do STF, inclusive objeto de súmula vinculante89, não é possível a prisão do depositário infiel, mesmo havendo disposição constitucional que autorize tal prisão. Gilmar Mendes explica tal possibilidade devido ao chamado “efeito paralisante” das normas infraconstitucionais que conflitem com os tratados internacionais de direitos humanos, ou seja, para o Ministro, toda norma infraconstitucional que conflite com tais tratados, tem o seu efeito paralisado, afirmando, ainda, que o texto constitucional deixou de ter aplicabilidade devido ao efeito paralisante dado às normas infraconstitucionais decorrentes: Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5o, inciso LXVII) não foi revogada pelo ato de adesão do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7o, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, [...]. Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao art. 1.287 do 89 Súmula Vinculante n. 25: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito” Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 07 out. 2013. 57 Código Civil de 1916. Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7o, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5o, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel90. (Grifo Original) Ao fim, o referido Ministro afirma que o Pacto de São José da Costa Rica, bem como quaisquer outros tratados de direitos humanos, deverão se submeter ao procedimento especial de aprovação previsto no art. 5ª, § 3º da Constituição Federal, caso contrário, a estes não será conferido o status de emenda constitucional91. Com tal posicionamento, o Ministro simplesmente desconsidera a força normativa da Constituição, ou seja, em sendo assim, qualquer outro tratado de direitos humanos – mesmo tendo hierarquia inferior à Constituição – que conflite com a Constituição brasileira poderá fazer com que esta não seja aplicada, fazendo com que qualquer lei ordinária decorrente do texto constitucional fique “paralisada” devido ao contraponto trazido por um tratado internacional. Ora, tal posicionamento acaba por ofender não apenas a força normativa da Constituição, mas sua própria supremacia – principal argumento utilizado na defesa dos que negam a constitucionalidade dos tratados de direitos humanos –, haja vista que possibilita que um tratado internacional de direitos humanos paralise tanto a norma expressa do texto constitucional como a norma decorrente de tal texto. Sobre tal “efeito paralisante”, afirma Carlos Augusto Maliska: Na questão da prisão civil por dívida, o efeito paralisante provocado pelo Tratado internacional em razão de sua hierarquia supralegal produz, na prática, situação jurídica equivalente ao de uma emenda constitucional. A rigor, a prisão civil por dívida, nesses casos, está vedada, o dispositivo constitucional não possui condições de produzir efeitos jurídicos. Esse entendimento firmado no voto necessita ser analisado sob o ponto de vista da força normativa da Constituição, uma vez que ele propõe uma interpretação da Constituição conforme os Tratados, o que, por certo, retiraria da Constituição sua força normativa e a colocaria à disposição de instrumentos normativos infraconstitucionais. (...) Se formalmente o Tratado está subordinado à Constituição, não há que se falar em efeitos impeditivo, mas em inconstitucionalidade do Tratado, ou o Tratado está em nível constitucional, assim a interpretação favorável a ele é dada pela maior deferência aos direitos humanos que confere o documento internacional se comparado como texto interno, ou o Tratado está em nível infraconstitucional, sendo inconstitucional por violação ao disposto na Constituição. Aqui a hierarquia tem preferência sobre a regra da aplicação mais benéfica. A tese do efeito impeditivo somente é possível nas hipóteses de cláusulas 90 RE 466.343-SP, Pleno. Relator: Min. Cezar Peluso. DJ 104, publicado em 05.06.2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013. 91 RE 466.343-SP, Pleno. Relator: Min. Cezar Peluso. DJ 104, publicado em 05.06.2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013. 58 abertas da Constituição, em que o contudo é dado pela legislação infraconstitucional, pois estando o tratado em hierarquia superior à da lei, o legislador ordinário estaria vinculado ao disposto no documento internacional. Quando o texto do Tratado se confronta com o texto da Constituição, está diante de uma inconstitucionalidade92. Como se observa, não há como concordar com tal “efeito paralisante”. A interpretação dada por Gilmar Mendes em seu voto no RE 466.343, não condiz com o próprio texto constitucional, como será demonstrado no capítulo seguinte ao abordar, mais especificamente, sobre a questão dos conflitos entre o ordenamento interno brasileiro e os tratados internacionais de direitos humanos. Apesar de todas as considerações colacionadas acima levarem a assegurar a hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos, o professor Marcelo Novelino afirma que os tratados internacionais passaram a ter três hierarquias distintas após o majoritário entendimento do STF. Assim, segundo tal professor, os tratados de direitos humanos, aprovados na forma de emenda, serão equivalentes às emendas constitucionais (CF, art. 5º, § 3º); os tratados de direitos humanos, aprovados pelo procedimento ordinário (CF, art. 47), terão status supralegal, situando-se em grau hierárquico inferior à Constituição e superior à legislação ordinária; e, tratados e convenções internacionais que não versem sobre direitos humanos, ingressarão no ordenamento jurídico brasileiro com força de lei ordinária93. Com relação aos tratados internacionais de direitos humanos aprovados anteriormente à EC 45/2004, o professor Marcelo Novelino, alguns constitucionalistas94, e o próprio Gilmar Mendes, entendem que, para serem equiparados à norma constitucional, tais tratados devem ser submetidos a uma nova votação no Congresso Nacional e aprovados nos termos do art. 5º, § 3° da CF, devendo, tal iniciativa, por analogia, ser provocada pelos legitimados para propor emenda constitucional (art. 60, I a III / CF)95. A tese da supralegalidade juntamente com a interpretação distinta entre os tratados de direitos humanos aprovados antes e depois da EC 45/2004 é completamente incongruente. Não há como fazer tal diferenciação sob pena de, simplesmente, supervalorizar um direito formal em detrimento do que a norma pretende passar verdadeiramente. Sobre tal assunto, Flávia Piovesan adverte: 92 MALISKA, Marcos Augusto. Constituição e cooperação normativa no plano internacional: reflexões sobre o voto do Ministro Gilmar Mendes no Recurso Extraordinário n. 466.343-1. Espaço Jurídico, Joaçaba, v. 9, n. 2, p. 113-124, jul./dez. 2008, p. 117-119. 93 NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Método, 2009, p. 383-384. 94 Cf. SCORSAFAVA, Francisco Eduardo Torquato, op. cit. p. 30-31; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 362. 95 NOVELINO, Marcelo, op. cit., p. 384. 59 Reitere-se que, por força do art. 5º, §2º, todos os tratados de direitos humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade. O quorum qualificado está tão somente a reforçar tal natureza, ao adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a ‘constitucionalização formal’ dos tratados de direitos humanos no âmbito jurídico interno. Como já defendido por este trabalho, na hermenêutica emancipatória dos direitos há que impetrar uma lógica material e não formal, orientada por valores, a celebrar o valor fundante da prevalência da dignidade humana. À hierarquia de valores deve corresponder uma hierarquia de normas e não o oposto. Vale dizer, a preponderância material de um bem jurídico, como é o caso de um direito fundamental, deve condicionar a forma no plano jurídico-normativo, e não condicionado por ela96. No mesmo sentido, Valerio Mazzuoli: [...] na inteligência do art. 5º, §2º, da Constituição Federal, que o status do produto normativo convencional, no que tange à proteção dos direitos humanos, não pode ser outro que não o de verdadeira norma materialmente constitucional. Diz-se ‘materialmente constitucional’, tendo em vista não integrarem tais tratados, formalmente, a Carta Política, o que demandaria um procedimento de emenda à Constituição, previsto no art. 60, §2º, o qual prevê que tal proposta “será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros”. Integram os tratados de proteção dos direitos humanos, entretanto, o conteúdo material da Constituição, o ‘bloco de constitucionalidade’ [...]97. Ademais, deve-se dar ao texto constitucional, uma interpretação que lhe garanta a máxima efetividade e, no caso de dúvidas, deve-se preferir a interpretação que mais garanta eficácia aos direitos fundamentais, como bem resume Flávia Piovesan, citando Jorge Miranda, Konrad Hesse e Canotilho em seus argumentos: Tal interpretação é consoante com o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, pela qual, no dizer de Jorge Miranda, ‘a uma norma fundamental tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação. Interpretar a Constituição é ainda realizar a Constituição’. Na lição de Konrad Hesse: ‘a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma. [...] A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação. [...] A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se-á inevitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação jurídica vigente’. Vale dizer, todas as normas constitucionais são verdadeiras normas jurídicas e desempenham uma função útil no ordenamento. A nenhuma norma constitucional se pode dar interpretação que lhe retire ou diminua a razão de ser. Considerando os 96 PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 72. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p.363. 97 60 princípios da força normativa da Constituição e da ótima concretização da norma, à norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê, especialmente quando se trata de norma instituidora de direitos e garantias fundamentais. Como observa Canotilho, o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais ‘é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais – no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais’. Está-se assim a conferir máxima efetividade aos princípios constitucionais, em especial ao princípio do art. 5º, §2º, ao entender que os direitos constantes dos tratados internacionais passam a integrar o catálogo dos direitos constitucionalmente previstos98. Antonio Augusto Cançado Trindade destaca que falta vontade do Judiciário brasileiro em aplicar § 2º do art. 5° da CF corretamente. O referido autor assevera: A tese da equiparação dos tratados de direitos humanos à legislação infraconstitucional – tal como ainda seguida por alguns setores em nossa prática jurídica – não só representa um apego sem reflexão a uma postura anacrônica, já abandonada em vários países, mas também contraria o disposto no artigo 5º (2) da Constituição Federal brasileira. Se se encontrar uma formulação mais adequada – e com o mesmo propósito – do disposto no artigo 5º (2) da Constituição Federal, tanto melhor; mas enquanto não for encontrada, nem por isso está o Poder Judiciário eximido de aplicar o artigo 5º (2) da Constituição. Muito ao contrário, se alguma incerteza houver, encontra-se no dever de dar-lhe a interpretação correta, para assegurar sua aplicação imediata; não se pode deixar de aplicar uma disposição constitucional sob o pretexto de que não parece clara99. Novamente, Antonio Augusto Cançado Trindade, agora criticando o § 3º do art. 5º da CF e resumindo bem a resignação da melhor doutrina sobre o assunto, desabafa: Esta última outorga status constitucional, no âmbito do direito interno brasileiro (novo artigo 5(3)), tão só aos tratados de direitos humanos que sejam aprovados por maioria de 3/5 dos membros tanto da Câmara dos Deputados como do Senado Federal (passando assim a ser equivalentes a emendas constitucionais). Mal concebida, mal redigida e mal formulada, representa um lamentável retrocesso em relação ao modelo aberto consagrado pelo artigo 5(2) da Constituição Federal de 1988. No tocante aos tratados anteriormente aprovados, cria um imbroglio tão a gosto de nossos publicistas estatocêntricos, insensíveis às necessidades de proteção do ser humano. Em relação aos tratados a aprovar, cria a possibilidade de uma diferenciação tão a gosto de nossos publicistas míopes, tão pouco familiarizados, assim como os parlamentares que lhes dão ouvidos, - com as conquistas do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Este retrocesso provinciano põe em risco a interrelação ou indivisibilidade dos direitos protegidos em nosso país (previstos nos tratados que o vinculam), ameaçando-os de fragmentação ou atomização, em favor dos excessos de um formalismo e hermetismo jurídicos eivados de obscurantismo. Os triunfalistas da recente emenda constitucional n. 45/2004, não se dão conta de que, do prisma do Direito Internacional, um tratado ratificado por um Estado o vincula ipso jure, aplicando-se de imediato, quer tenha ele previamente obtido aprovação parlamentar por maioria simples ou qualificada. Tais providências de ordem interna, - ou, ainda menos, de interna corporis, - são simples fatos do ponto de vista do ordenamento jurídico internacional, ou seja, são, do ponto de vista 98 PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 58-59. CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Tratado de Direito Internacional de Direitos Humanos, volume III. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 624, nota 73. 99 61 jurídico internacional, inteiramente irrelevantes. A responsabilidade internacional do Estado por violações comprovadas de direitos humanas permanece intangível, independentemente dos malabarismos pseudo-jurídicos de certos publicistas (como a criação de distintas modalidades de prévia aprovação parlamentar de determinados tratados, a previsão de pré-requisitos para a aplicabilidade direta de tratados no direito interno, dentre outros), que nada mais fazem do que oferecer subterfúgios vazios aos Estados para tentar evadir-se de seus compromissos de proteção do ser humano no âmbito do contencioso internacional dos direitos humanos. Em definitivo, a proteção internacional dos direitos humanos constitui uma conquista humana irreversível, e não se deixará abalar por estes melancólicos acidentes de percurso100. Apesar de o § 2º do art. 5º da CF ainda não ser interpretado de maneira correta pela jurisprudência, é possível, embora que muito tardiamente, que tanto a jurisprudência pátria como o entendimento do STF passem a entender, de maneira majoritária, a hierarquia constitucional dos tratados de proteção aos direitos humanos. Primeiro porque o julgamento que tutelou a supralegalidade dos tratados de direitos humanos em detrimento da tese da constitucionalidade dos tratados de direitos humanos não foi unânime, visto que venceu por maioria apertada, com diferença de apenas um voto. Depois porque o próprio STF já reconheceu que sua jurisprudência deve ser “revisitada criticamente” (nas palavras de Gilmar Mendes), o que direciona para uma mudança que, realmente, garanta efetividade aos direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana. Por último já existem algumas decisões tanto no STF, como em outros Tribunais101, que reconhecem o posicionamento aqui defendido. A título de exemplo, pode-se citar a mudança de posicionamento do Ministro Celso de Mello, antes defensor da tese da equiparação com as leis ordinárias dos tratados de direitos humanos, e hoje ferrenho defensor da equiparação constitucional dos mesmos tratados. Tal modificação de posicionamento resume bem tudo o que foi explanado. Observe excertos do voto de referido Ministro no HC 87.585-8: Vê-se, daí, considerado esse quadro normativo em que preponderam declarações constitucionais e internacionais de direitos, que o Supremo Tribunal Federal se defronta com um grande desafio, consistente em extrair, dessas mesmas declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, a sua máxima eficácia, em ordem a tornar possível o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs.[...] O Poder Judiciário constitui o instrumento concretizador das liberdades constitucionais e dos direitos fundamentais assegurados pelos tratados e 100 CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Desafios e conquistas do direito internacional dos Direitos humanos no início do século XXI. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/esp/407490%20cancado%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.def.pdf>. Acesso em 25 set. 2013, p. 410, nota 4. 101 TRT 15ª – 3ª T, n. 31599/01, Ac. 8046/02-PATR, rel. Juíza Luciane Storel da Silva, DOE de 04.07.2002, p. 28 In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 361, nota 718. 62 convenções internacionais subscritos pelo Brasil. Essa alta missão, que foi confiada aos juízes e Tribunais, qualifica-se como uma das mais expressivas funções políticas do Poder Judiciário. [...] É dever dos órgãos do Poder Público – e notadamente dos juízes e Tribunais – respeitar e promover a efetivação dos direitos humanos garantidos pelas Constituições dos Estados nacionais e assegurados pelas declarações internacionais, em ordem a permitir a prática de um constitucionalismo democrático aberto ao processo de crescente internacionalização dos direitos básicos da pessoa humana. [...] Após longa reflexão sobre o tema,[...] julguei necessário reavaliar certas formulações e premissas teóricas que me conduziram a conferir aos tratados internacionais em geral (qualquer que fosse a matéria neles veiculadas), posição equivalente à das leis ordinárias. As razões invocadas neste julgamento, no entanto, convencem-me da necessidade de se distinguir, para efeito de definição de sua posição hierárquica em face do ordenamento positivo interno, entre as convenções internacionais sobre direitos humanos (revestidas de ‘supralegalidade’, como sustenta o eminente Ministro Gilmar Mendes, ou impregnadas de natureza constitucional, como me inclino a reconhecer) e tratados internacionais sobre as demais matérias (compreendidos estes numa estrita perspectiva de paridade normativa com as leis ordinárias). [...] Tenho para mim que uma abordagem hermenêutica fundada em premissas axiológicas que dão significativo realce a expressão ao valor ético-jurídico – constitucionalmente consagrado (CF, art. 4°, II) – da ‘prevalência dos direitos humanos’ permitirá, a esta Suprema Corte, rever a sua posição jurisprudencial quanto ao relevantíssimo papel, à influência e à eficácia (derrogatória e inibitória) das convenções internacionais de direitos humanos. [...] Em decorrência dessa reforma constitucional, e ressalvados as hipóteses a ela anteriores (considerando quanto a estas, o disposto no §2º do art. 5º da Constituição), tornou-se possível, agora, atribuir, formal e materialmente, às convenções internacionais sobre direitos humanos, hierarquia jurídico-constitucional desde que observado, quanto ao processo de incorporação de tais convenções ao ‘iter’ procedimental concernente ao rito de apreciação e de aprovação das propostas de Emenda à Constituição, consoante prescreve o §3º do art. 5º da Constituição [...]. É preciso ressalvar, no entanto, como precedentemente já enfatizado, as convenções internacionais de direitos humanos celebradas antes do advento da EC n. 45/2004, pois, quanto a elas, incide o §2º do art. 5º da Constituição, que lhes confere natureza materialmente constitucional, promovendo sua integração e fazendo com que se subsumam à noção mesma de bloco de constitucionalidade102. Tal voto bem que poderia servir de parâmetro para os futuros julgamentos da Suprema Corte brasileira sobre o assunto. Letícia Quixadá menciona que o julgamento do HC 87.858-8 fora realizado de maneira conjunta com o RE 349.703 e RE 466.343, este último já demonstrado acima com relação ao voto do Ministro Gilmar Mendes. A referida autora lembra, ainda, que em tal julgamento, os ministros Eros Grau e Ellen Gracie, assim como o Ministro Celso de Mello, passaram a entender que os tratados internacionais de direitos humanos devem ser recepcionados pelo ordenamento pátrio como norma constitucional. Segundo tal autora, o Ministro Ilmar Galvão, mudando seu posicionamento anterior no Tribunal, pela hierarquia constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, argumentou no sentido de 102 BRASIL. SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, HC 87858-8/TO, Pleno. Relator: Min. Marco Aurélio. DJ 118, publicado em 26.06.2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013. 63 reconhecer o bloco de constitucionalidade do art. 5º, parágrafo 2º da Constituição, interpretação que inviabiliza a prisão civil do depositário infiel103. Parece bem clara a tendência de mudança tanto na jurisprudência como na doutrina. É um alento para a efetividade dos direitos fundamentais. No entanto, considerando os tratados internacionais de direitos humanos equivalentes às normas constitucionais: como se deve interpretar caso haja conflito entre ambos? Deve-se primar o direito internacional sobre o direito interno? A Constituição não perderia força com tal interpretação? Eis o ponto alto do trabalho, que será analisado no capítulo final. Antes, porém, é importante que se destaque os efeitos e a correta interpretação que se deve dar ao § 3º do art. 5º da CF, principalmente no que se refere à possível denúncia de tratados de direitos humanos. 2.4 Efeitos do art. 5º, § 3° da Constituição Federal e a Denúncia dos Tratados de Direitos Humanos Apesar das pertinentes críticas ao § 3º do art. 5º da CF, como fazem Valerio Mazzuoli104 e Antonio Augusto Cançado Trindade105, tal dispositivo constitucional é realidade no ordenamento jurídico brasileiro, por isso é importante que seja dada ao § 3º do art. 5º, CF uma interpretação que não retire a eficácia já consagrada pelo § 2º do art. 5º da CF, visto que, este último dispositivo, estabelece a cláusula de abertura dos direitos fundamentais e, em consequência, possibilita que os tratados de direitos humanos tenham status de norma constitucional. Assim, os dois dispositivos devem conviver dentro do texto constitucional, não sendo necessário que se interprete tais dispositivos a ponto de torná-los esvaziados ou que se contradigam. É necessário, portanto, que se procure uma argumentação lógica que, além de conferir máxima eficácia ao texto constitucional, não torne nenhum dos dispositivos ineficazes. Não se pode deixar de destacar, ainda que brevemente, os efeitos trazidos pelo o novo parágrafo do artigo 5º, principalmente com relação à questão da denúncia dos tratados 103 Cf. QUIXADÁ, Letícia Antonio, op. cit., p.55-58. Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 754-758. 105 Cf. CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Desafios e conquistas do direito internacional dos Direitos humanos no início do século XXI. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/esp/407490%20cancado%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.def.pdf>. Acesso em 25 set. 2013, p. 410, nota 4. 104 64 de direitos humanos, isto porque há dúvidas com relação a tal possibilidade, haja vista que, uma vez incorporados ao ordenamento jurídico pelo mecanismo do § 3º, art. 5º da CF, tais tratados internacionais passariam a ser equivalentes às emendas constitucionais e, em tese, não poderiam ser retirados do ordenamento jurídico por meio de denúncia. Como já mencionado, inclusive com entendimento jurisprudencial do STF neste sentido (posição do Ministro Gilmar Mendes), a redação do dispositivo constitucional sob análise induz a concluir que, somente se os tratados de direitos humanos forem aprovados no quórum mencionado pelo parágrafo, é que passariam a ter grau hierárquico constitucional, levando a crer que os tratados de direitos humanos anteriores a tal dispositivo não teriam status constitucional, somente se colocado a nova votação e a aprovação ocorresse de acordo com o quórum estabelecido pelo § 3°106. O entendimento acima não é o que se deve conferir ao novo dispositivo constitucional. Como já averiguado no item anterior, o § 3º do art. 5º da CF possibilitou que os tratados internacionais de direitos humanos sejam, além de materialmente constitucionais – como já prescreve o § 2º do art. 5º – também sejam formalmente constitucionais, ou seja, com a aprovação do tratado de direitos humanos de acordo com o quórum do § 3º, aquele passa a integrar formalmente à Constituição, uma vez que equivale às emendas constitucionais, enquanto por força do § 2º – sem aprovação do quórum do § 3º – o tratado de direitos humanos passa a fazer parte do bloco de constitucionalidade, não integrando o texto constitucional propriamente dito, mas tendo status de norma constitucional por força da cláusula de abertura dos direitos fundamentais. Este é o entendimento de Valerio Mazzuoli: Tecnicamente, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil já têm ‘status’ de norma constitucional, em virtude do disposto no §2º do art. 5º da Constituição, segundo o qual os direitos e garantias expressos no texto constitucional ‘não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’, pois, na medida em que a Constituição ‘não exclui’ os direitos humanos provenientes de tratados, é porque ela própria ‘os inclui’ no seu catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu ‘bloco de constitucionalidade’ e atribuindo-lhes hierarquia de norma constitucional [...]. Portanto, já se exclui, desde logo, o entendimento de que os tratados de direitos humanos não aprovados pela maioria qualificada do §3º do art. 5º equivaleriam hierarquicamente à lei ordinária federal, uma vez que os mesmos teriam sido aprovados apenas por maioria simples (nos termos do art. 49, inc. I, da Constituição) e não pelo ‘quorum’ que lhes impõe o referido parágrafo. Aliás, o §3º do art. 5º em nenhum momento atribui ‘status’ de lei ordinária aos tratados não aprovados pela maioria qualificada por ele estabelecida. Dizer que os tratados de direitos humanos aprovados por este procedimento especial passam a ser ‘equivalentes às emendas constitucionais’ não significa 106 Cf. NOVELINO, Marcelo, op. cit. p. 382-384. 65 obrigatoriamente dizer que os demais tratados terão valor de lei ordinária, ou de lei complementar, ou o que quer que seja. O que se deve entender é que o ‘quorum’ que o § 3º do art. 5º estabelece serve tão-somente para atribuir eficácia formal a esses tratados no nosso ordenamento jurídico ‘materialmente’ constitucionais que eles já têm em virtude do §2º do art. 5º da Constituição. [...] A diferença entre o §2º, in fine, e o §3º, ambos do art. 5º da Constituição, é bastante sutil: nos termos da parte final do §2º do art. 5º, os tratados internacionais (de direitos humanos) em que a República Federativa do Brasil seja parte, são, a ‘contrario sensu’, incluídos pela Constituição, passando consequentemente a deter o ‘status’ de norma constitucional e a ampliar o rol dos direitos e garantias fundamentais (‘bloco de constitucionalidade’); já nos termos do §3º do mesmo art. 5º da Constituição, uma vez aprovados tais tratados de direitos humanos pelo ‘quorum’ qualificado ali estabelecido, esses instrumentos internacionais, uma vez ratificados pelo Brasil, passam a ser ‘equivalentes às emendas constitucionais'. [...] Falar que um tratado tem ‘status de norma constitucional’ é o mesmo que dizer que ele integra o bloco de constitucionalidade material (e não formal) da nossa Carta Magna, o que é menos amplo que dizer que ele é ‘equivalente a uma emenda constitucional’, o que significa que nesse mesmo tratado já integra formalmente (além de materialmente) o texto constitucional. Assim, o que se quer dizer é que o regime ‘material’ (menos amplo) dos tratados de direitos humanos não pode ser confundido com o regime ‘formal’ (mais amplo) que esses mesmos tratados podem ter, se aprovados pela maioria qualificada ali estabelecida. Perceba-se que, neste último caso, o tratado assim aprovado será, além de materialmente constitucional, também formalmente constitucional. Assim, fazendo-se uma interpretação sistemática do texto constitucional em vigor, à luz dos princípios constitucionais e internacionais de garantismo jurídico e de proteção à dignidade humana, chega-se à seguinte conclusão: o que o texto constitucional reformado quis dizer é que esses tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, já têm ‘status’ de norma constitucional, nos termos do §2º do art. 5º, poderão ainda ser formalmente constitucionais (ou seja, ser ‘equivalentes às emendas constitucionais’), desde que, a qualquer momento, depois de sua entrada em vigor, sejam aprovados pelo ‘quorum’ do §3º do mesmo art. 5º, da Constituição107. Tal entendimento também pode ser visualizado no voto do Ministro Celso de Mello no HC 87.585-8108, como já citado anteriormente. Outro não é o entendimento de Flávia Piovesan sobre o assunto: Desde logo, há que afastar o entendimento segundo o qual, em face do §3º do art. 5º, todos os tratados de direitos humanos já ratificados seriam recepcionados como lei federal, pois não teriam obtido o quorum qualificado de três quintos, demandado pelo aludido parágrafo. [...] Esse entendimento decorre de quatro argumentos: a) a interpretação sistemática da Constituição, de forma a dialogar os §§ 2º e 3º do art. 5º, já que o último não revogou o primeiro, mas deve, ao revés, ser interpretado à luz 107 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 764-765. Em decorrência dessa reforma constitucional, e ressalvados as hipóteses a ela anteriores (considerando quanto a estas, o disposto no §2º do art. 5º da Constituição), tornou-se possível, agora, atribuir, formal e materialmente, às convenções internacionais sobre direitos humanos, hierarquia jurídico-constitucional desde que observado, quanto ao processo de incorporação de tais convenções ao ‘iter’ procedimental concernente ao rito de apreciação e de aprovação das propostas de Emenda à Constituição, consoante prescreve o §3º do art. 5º da Constituição [...]. É preciso ressalvar, no entanto, como precedentemente já enfatizado, as convenções internacionais de direitos humanos celebradas antes do advento da EC n. 45/2004, pois, quanto a elas, incide o §2º do art. 5º da Constituição, que lhes confere natureza materialmente constitucional, promovendo sua integração e fazendo com que se subsumam à noção mesma de bloco de constitucionalidade. Voto do Ministro Celso de Mello, HC 87858-8/TO, Pleno. Relator: Min. Marco Aurélio. DJ 118, publicado em 26.06.2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013. 108 66 do sistema constitucional; b) a lógica e racionalidade material devem orientar a hermenêutica dos direitos humanos; c) a necessidade de evitar interpretações que apontem a agudos anacronismos da ordem jurídica; e d) a teoria geral da recepção do direito brasileiro. Sustenta-se que essa interpretação é absolutamente compatível com o princípio da interpretação conforme a Constituição. Isto é, se a interpretação do §3º do art. 5º aponta a uma abertura envolvendo várias possibilidades interpretativas, acredita-se que a interpretação mais consoante e harmoniosa com a racionalidade e teleologia constitucional é a que confere ao §3º do art. 5º, fruto da atividade do Poder Constituinte Reformador, o efeito de permitir a 'constitucionalização formal' dos tratados de proteção de direitos humanos ratificados pelo Brasil109. Não há outra interpretação que garanta máxima efetividade ao texto constitucional brasileiro senão a proposta acima. Desconsiderar o caráter materialmente constitucional dos tratados de direitos humanos aprovados antes da EC 45/2004, é simplesmente desconsiderar a própria dignidade da pessoa humana, atributo este também assegurado pelo texto constitucional brasileiro como ponto central de todos os outros direitos fundamentais. Uma interpretação em sentido contrário, além de não condizer com os direitos assegurados (e que devem ser efetivados) pela Constituição Federal, poderá ser contraditória por si só, haja vista que um tratado de direitos humanos aprovado de acordo com a EC 45/2004, em caso de conflito com outro tratado de direitos humanos ratificado anterior a tal emenda (não sendo considerado como norma constitucional) poderá, de acordo com uma lógica de interpretação, não ser aplicado em relação ao tratado que fora aprovado com o quórum específico. Ora, tal interpretação não seria a mais correta, visto tratar-se de direitos humanos e, em tais casos, não é a norma mais formal que deve prevalecer, e sim a norma que mais favoreça ao ser humano. Outra possibilidade de contradição é mencionada por Flávia Piovesan quando afirma não ser razoável sustentar que os tratados de direitos humanos já ratificados fossem recepcionados como lei federal, enquanto os demais adquirissem hierarquia constitucional exclusivamente em virtude de seu ‘quórum’ de aprovação, pois, por exemplo, o Brasil é parte da Convenção contra a Tortura de outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes desde 1989 (muito antes da EC 45/2004), estando próximo de ratificar Protocolo Facultativo de tal Convenção, assim, não seria razoável se a este último – um tratamento complementar e subsidiário ao principal – fosse conferida hierarquia constitucional, e ao instrumento principal fosse conferida hierarquia meramente legal, pois, desta maneira importaria em anacronismo do sistema jurídico, afrontando, ainda, a teoria geral da recepção acolhida no direito brasileiro110. 109 110 PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 72-73. PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 72-73. 67 Observa-se que tais autores propõem uma interpretação que acabam por conciliar ambos os parágrafos (§ 2º e o § 3º do art. 5º da CF), visto que considera todos os tratados de direitos humanos com status de norma constitucional, seja ratificado antes ou depois da EC 45/2004, com a única diferença que os tratados de direitos humanos aprovados de acordo com o quórum do § 3º, além de serem materialmente constitucional, também serão formalmente constitucionais, pois serão equivalentes à emenda constitucional. Essa é a diferença muito bem proposta por Flávia Piovesan: Se os tratados de direitos humanos ratificados anteriormente à Emenda n. 45/2004, por força dos §§2º e 3º do art. 5º da Constituição, são normas material e formalmente constitucionais, com relação aos novos tratados de direitos humanos a serem ratificados, por força do §2° do mesmo art. 5°, independentemente de seu quorum de aprovação, serão normas materialmente constitucionais. Contudo para converterem-se em normas também formalmente constitucionais deverão percorrer o procedimento demandado pelo §3°. [...] Isto porque, a partir de um reconhecimento explícito da natureza materialmente constitucional dos tratados de direitos humanos, o §3º do art. 5º permite atribuir o status de norma formalmente constitucional aos tratados de direitos humanos que obedecerem ao procedimento nele contemplado. Logo, para que os tratados de direitos humanos a serem ratificados obtenham assento formal na Constituição, requer-se a observância de quorum qualificado de três quintos dos votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos – que é justamente o quorum exigido para a aprovação de emendas à Constituição, nos termos do art. 60, §2°, da Carta de 1988. Nessa hipótese, os tratados de direitos humanos formalmente constitucionais são equiparados às emendas à Constituição, isto é, passam a integrar formalmente o Texto Constitucional. [...] Vale dizer, com o advento do §3° do art. 5° surgem duas categorias de tratados internacionais de proteção de direitos humanos: a) os materialmente constitucionais; e b) os material e formalmente constitucionais. Frisese: todos os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente constitucionais, por força do §2° do art. 5°. Para além de serem materialmente constitucionais, poderão, a partir do § 3° do mesmo dispositivo, acrescer a qualidade de formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à Constituição, no âmbito formal111. A diferença mencionada acima reflete um dos efeitos do § 3° do art. 5º da CF que é justamente de reformar a constituição, o que não é possível no caso do § 2º do art. 5º da CF, visto que, neste caso, há apenas um status de norma constitucional, no sentido material, e não de norma constitucional no sentido formal (e material). Esse é o raciocínio de Valerio Mazzuoli: A primeira consequência de se atribuir equivalência de emenda constitucional a um tratado de direitos humanos[...], é a de que eles passarão a reformar a constituição, o que não é possível quando se tem apenas o status de norma constitucional. Ou seja, uma vez aprovado certo tratado pelo quorum previsto pelo §3°, opera-se a imediata reforma do texto constitucional conflitante, o que não ocorre pela sistemática do §2º 111 PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 78-79. 68 do art. 5º, onde os tratados de direitos humanos (que têm nível de normas constitucionais, sem contudo serem equivalentes às emendas constitucionais) [...]. E isto significa que, na inteligência do art. 5, §2° da Constituição Federal, que o status do produto normativo convencional, no que tange à proteção dos direitos humanos, não pode ser outro que não o de verdadeira norma materialmente constitucional. Diz-se ‘materialmente constitucional’, tendo em vista não integrarem os tratados, formalmente, a Carta Política, o que demandaria um procedimento de emenda à Constituição, previsto no art. 60, § 2º [...]112. É importante destacar, para que não haja quaisquer dúvidas, que o procedimento de incorporação dos tratados de direitos humanos, seja antes ou depois do novo parágrafo, continua o mesmo, ou seja, assinatura do presidente, aprovação congressual e posterior ratificação presidencial. O que muda é apenas o quórum de votação no Congresso que, para tornar o tratado de direitos humanos formalmente constitucional, é necessário que a aprovação seja de acordo com quórum previsto no § 3º, caso contrário, tal tratado será considerado “apenas” materialmente constitucional, como os demais aprovados antes da EC 45/2004. Esse também é o entendimento de Valerio Mazzuoli: [...] Não há que se confundir a equivalência às emendas, de que trata o art. 5°, §3°, com as próprias emendas constitucionais previstas no art. 60 da Constituição. A Constituição não diz que estará aprovando uma emenda, mas um ato (neste caso, um decreto legislativo) que terá equivalência de emenda constitucional. Tudo continua da mesma forma como antes da EC 45/04, devendo o tratado ser aprovado pelo Congresso por decreto legislativo, mas podendo o Parlamento decidir se com o quorum (e somente com o quorum...) de emenda constitucional ou sem ele. Aliás, foi exatamente dessa forma que agiu o Congresso Nacional brasileiro ao aprovar o primeiro tratado de direitos humanos com equivalência de emenda constitucional depois da EC 45/2004, que foi a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência [...] Não é porque o Presidente da República não sanciona as emendas constitucionais que ele não irá ratificar um tratado internacional aprovado nos termos do §3° do art. 5° da Constituição. Uma coisa não tem nada a ver com a outra: a aprovação parlamentar do tratado de direitos humanos (com ou sem o quorum de emenda) é uma coisa, totalmente diferente dos atos posteriores de ratificação, promulgação e publicação do mesmo113. André Ramos Tavares não entende desta maneira. Para ele, após aprovação do Congresso Nacional com o quórum de emenda constitucional, justamente por tal motivo, não será mais necessário a ratificação presidencial, haja vista que no procedimento para a aprovação de emenda constitucional não há a participação do Presidente da República114. Não se pode concordar com tal entendimento. O entendimento de Valerio Mazzuoli parece ser o correto, visto que o § 3° do art. 5º da CF estabelece o mesmo quórum 112 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 765-766. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 759-760. 114 TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário no Brasil pós-88 – (Des) estruturando a Justiça. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 46-47. 113 69 de emenda constitucional, não dispondo que os tratados de direitos humanos assim aprovados, serão emendas constitucionais, mas apenas serão equivalentes às emendas constitucionais. Ademais, o art. 84, VII da CF estaria sendo desrespeitado, tendo em vista que em tal dispositivo há menção expressa de competência privativa do Presidente da República para celebração de tratados, cabendo ao Congresso apenas referendar tal celebração. Ainda assim, após a aprovação pelo Congresso do tratado, seja de direitos humanos ou não, como já demonstrado anteriormente, caberá ao Presidente da República ratificá-lo, sendo tal ato discricionário, ou seja, caso o Presidente não ratifique o tratado, este não terá efeitos no ordenamento jurídico pátrio115. Assim, o procedimento de incorporação dos tratados de direitos humanos continua o mesmo, independentemente do texto do § 3º. O que tal parágrafo estabeleceu foi apenas a possibilidade do Congresso Nacional equivaler o tratado de direitos humanos às emendas constitucionais, caso a aprovação seja de acordo com o quórum especial mencionado em tal dispositivo. Por último, outra consequência do novo parágrafo trazido pela EC 45/2004 é a impossibilidade de denúncia dos tratados de direitos humanos aprovados de acordo com o quórum especial, visto que, neste caso, os tratados internacionais, como mencionado anteriormente, agora integram formalmente o texto constitucional, ou seja, tais tratados passam a integrar a Constituição e por se tratar de direitos humanos e, consequentemente, de direitos fundamentais, serão considerados cláusulas pétreas, não podendo, assim, serem retirados do ordenamento jurídico mediante denúncia ou qualquer outro ato, inclusive, emenda à Constituição. Desta maneira, Flávia Piovesan entende que os tratados internacionais de direitos humanos aprovados com o quórum especial do § 3º são insuscetíveis de denúncia, pois, diferentemente dos tratados de direitos humanos aprovados sem a observância de tal quórum, passaram a compor o quadro constitucional não apenas no campo material, mas também no formal, não sendo admissível que um ato isolado e unilateral do Poder Executivo retire os direitos consagrados em tais tratados, mesmo quando em tais tratados esteja prevista a possibilidade de denúncia. No entanto, a referida autora, lembra que seria mais coerente se o ato de denúncia, no caso dos tratados de direitos humanos aprovados na forma do § 2º do art. 5º da CF, ocorresse do mesmo modo que fosse ratificado, ou seja, seria necessário a 115 Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 762-763. 70 participação do Legislativo referendando tal denúncia, o que não ocorre na prática brasileira116. Valerio de Oliveira Mazzuoli também concorda com tal entendimento, mencionando, ainda, que, caso o Presidente denuncie os tratados de direitos humanos aprovados na sistemática do § 3º, poderá ser responsabilizado, visto que, de acordo com o art. 85, III da CF, “são crimes de responsabilidade atos presidências que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”. Assim, segundo tal autor, justamente por ser equivalerem às emendas constitucionais e, portanto, cláusulas pétreas do texto constitucional, é que tais tratados de direitos humanos não poderão ser denunciados nem mesmo por Projeto de Denúncia do Congresso Nacional. O referido autor completa, ainda, que tecnicamente é possível a denúncia de tratados de direitos humanos aprovados sem a observância do quórum especial, no entanto, é totalmente ineficaz sob o ponto de vista prático, “uma vez que os efeitos do tratado denunciado continuam a operar dentro do nosso ordenamento jurídico, pelo fato de eles serem cláusulas pétreas do texto constitucional”117. Paulo Henrique Gonçalves Portela, com o raciocínio conciliador, afirma que “deve ser mantida a possibilidade de o Estado brasileiro denunciar um tratado de direitos humanos, mas apenas para que seja substituído por outro ato internacional que amplie a proteção da pessoa”. No entanto, o referido autor afirma que, mesmo assim, tal denúncia não poderia ser exercida exclusivamente pelo Poder Executivo, sem a participação do Legislativo118. Importante mencionar que tal problemática está sendo discutida no STF por meio da ADI 1625, proposta por conta da denúncia da Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), tratado este que traz em seu bojo, normas de direitos humanos. Na referida ADI, apesar de estar sem andamento desde 2009, parece sinalizar no sentido de reconhecer a participação do Congresso Nacional nos atos de denúncia. Aliás, este foi entendimento do Ministro Joaquim Barbosa em seu voto-vista na ADI 1625, oportunidade em que julgou o pedido integralmente procedente para declarar a inconstitucionalidade do decreto impugnado por entender não ser possível ao Presidente da República denunciar tratados sem o consentimento do Congresso Nacional. Afirmou que a 116 PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 80-82. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 769-770. 118 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit. p. 747. 117 71 Constituição de 1988 fortaleceu extremamente o papel do Poder Legislativo em várias áreas, e que, por isso, seria inviável levar adiante um argumento de natureza constitucional que pretendesse dele retirar uma função relevante na denúncia de tratados, ante a ausência total de normas a respeito. Concluiu, por fim, não ser possível sua denúncia pelo Poder Executivo sem a intervenção do Congresso Nacional. Do contrário, permitir-se-ia que uma norma de grau hierárquico bastante privilegiado pudesse ser retirada do mundo jurídico sem a intervenção de um órgão legislativo, e, ainda, que o Poder Executivo, por vontade exclusiva, reduzisse de maneira arbitrária o nível de proteção de direitos humanos garantido aos indivíduos no ordenamento jurídico nacional119. Importante destacar que, na ADI 1625, não fora discutida a denúncia de tratados de direitos humanos aprovados na sistemática do § 3º do art. 5º da CF. Como se observa, de acordo com o entendimento do STF, encaminha-se para a possibilidade de denúncia dos tratados de direitos humanos, desde que haja participação do Legislativo. No entanto, tal possibilidade de denúncia é irrelevante para Dirley da Cunha Junior, ou seja, para ele os tratados de direitos humanos, mesmo denunciados, continuarão em plena vigência, devido terem sido absorvidos pelo texto constitucional: [...] e se o tratado internacional for denunciado? Como resposta sustentamos que isso é irrelevante, uma vez que o direito fundamental já terá sido absorvido pela Constituição e tornado indispensável e inseparável dela, isto é, insuscetível a ser suprimido, em face da cláusula de irredutibilidade ou eternidade do inciso IV, §4º do art. 60 da Constituição Brasileira, que consagrou no direito constitucional brasileiro o princípio da irreversibilidade ou irrevogabilidade dos direitos fundamentais. Ademais disso, está-se, aqui, lançando os olhos para outro horizonte: o da dignidade e prevalência dos direitos humanos fundamentais, expressamente reconhecidos pela Constituição (art. 1°, III e art. 4°, II), para além do consagrado conceito materialmente aberto desses direitos, o que significa afirmar que é indiferente se a fonte que lhe concedeu publicidade foi extinta. Assim, não compartilhamos com o entendimento corrente de que os direitos fundamentais deixam de existir se o tratado que os reconheceu for denunciado pelo Estado signatário[...]120. Tal entendimento é o que se espera que seja consagrado tanto pela doutrina como pela jurisprudência. Ora, se os tratados de direitos humanos devem ter status de norma constitucional, seja material ou formal (ou tanto material como formal), outra interpretação não há, senão a de considerar tais tratados como cláusulas pétreas, por se tratarem de direitos fundamentais e, consequentemente, serem insuscetíveis de denúncia e de retirada do ordenamento jurídico brasileiro. 119 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo 549. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 13 out. 2013. 120 CUNHA JUNIOR. Dirley da, op. cit., p. 679. 72 3 CONFLITO ENTRE TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS E A ORDEM INTERNA BRASILEIRA: A PRIMAZIA DA NORMA MAIS FAVORÁVEL AO SER HUMANO Os tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, além de terem aplicação imediata, conforme interpretação do art. 5, § 1° da CF, devem ser considerados como normas constitucionais, no sentido material, conforme art. 5º, § 2° da CF. Tal interpretação, que até então não encontra posição majoritária no STF, mas é seguida pela melhor doutrina, bem como por alguns julgados da própria Suprema Corte brasileira, traz alguns possíveis impactos jurídicos no ordenamento interno brasileiro. Flávia Piovesan menciona três possíveis impactos jurídicos no ordenamento brasileiro ocasionados pela incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos, quais sejam: I – coincidir com o direito assegurado pela Constituição; II – integrar, complementar e ampliar o universo de direitos constitucionalmente previstos; ou III – contrariar preceito de Direito interno121. O primeiro possível impacto fica bem demonstrado em algumas disposições constitucionais que apenas copiam ou reproduzem preceitos constantes em tratados internacionais de direitos humanos, por exemplo, o art. 5º, III da CF, ao prever que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento cruel desumano ou degradante”, reproduz fielmente o art. 5º (2) da Convenção Americana, bem como o art. 7º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Vários são os outros dispositivos constitucionais que apenas reproduzem o texto de tratados de direitos humanos, dentre eles, o art. 5º, caput da CF (todos são iguais perante a lei), e o inciso LVII do art. 5º da CF (princípio da inocência presumida). O segundo impacto possível ocorre quando há disposições em tratados de direitos humanos que não estão expressamente previstos na ordem interna. Tal possibilidade poderá ocorrer devido a não-exaustividade de direitos fundamentais prevista na própria Carta Constitucional brasileira, em seu art. 5º, § 2°. O exemplo mais conhecido é o direito do duplo grau de jurisdição como garantia mínima, não previsto expressamente no ordenamento brasileiro, mas reconhecido na prática jurídica, estando expressamente assegurado no art. 8º, h e art. 25(1) da Convenção Americana122. 121 122 PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 97. Cf. PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 98-103. 73 O terceiro possível impacto diz respeito à possibilidade de conflito entre o tratado de proteção aos direitos humanos e a ordem interna. Neste caso, considerando os tratados de direitos humanos como norma constitucional, como resolver tal conflito? Os tratados se sobressaem à ordem interna ou esta deve prevalecer perante os tratados? Em tais casos, devese aplicar o critério cronológico ou da especialidade para solucionar o conflito? Como se observa, a questão sobre possíveis conflitos entre a ordem interna brasileira e os tratados de direitos humanos é polêmica. Tanto que, há muitos anos, a doutrina clássica discute sobre a primazia do direito interno sobre o direito internacional ou vice-versa, refletindo a clássica discussão entre monismo e dualismo. Tal discussão, como já analisada anteriormente, está ultrapassada, visto que tais teorias abordam apenas aspectos formais e acabam por deixar de lado aspectos materiais, ou seja, não discute a essência das normas em conflito, sequer pondera qual valor deve prevalecer, apenas seguem uma linha formal de pensamento preestabelecido. Justamente por conta de tal formalismo excessivo em detrimento dos aspectos materiais, é que Antonio Augusto Cançado Trindade, mencionando que as posições monista e dualista são irreconciliáveis, afirma que a proposta de diferença entre os dois ordenamentos (interno e internacional), dificilmente poderia fornecer uma resposta satisfatória à questão da proteção internacional dos direitos humanos. Para tal autor, no presente domínio de proteção, o direito internacional e o direito interno conformam um todo harmônico, apontando na mesma direção, sendo que as normas jurídicas, seja ela interna ou internacional, devem procurar socorrer os seres humanos, formando um ordenamento jurídico de proteção, mostrando-se, assim, o direito internacional e o direito interno, em constante interação, em benefício dos seres humanos protegidos123. Tal argumento demonstra que não há que se discutir as teorias monista e dualista quando o assunto é tratados de direitos humanos, visto que, tanto a norma interna como a internacional, devem ter um único fim, qual seja: a proteção ao ser humano, utilizando-se da primazia da norma mais favorável ao ser humano em caso de conflito entre lei interna e lei internacional. É o que assegura Antônio Augusto Cançado Trindade: No presente domínio de proteção, não mais há pretensão de primazia do direito internacional ou do direito interno, como ocorria na polêmica clássica e superada entre monistas e dualistas. No presente contexto, a primazia é a da norma mais 123 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p. 506. 74 favorável às vítimas, que melhor as proteja, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno124. Mesmo com o esvaziamento de tal discussão (entre monismo e dualismo), por muitos anos a jurisprudência brasileira considerou todos os tratados internacionais com status de leis ordinárias, aplicando, em caso de conflito, os critérios de soluções de antinomias tradicionais (hierarquia, cronológico e especialidade). Tal entendimento passou a ser “reanalisado” no julgamento do RE 466.343 – conforme citado no capítulo 2 – oportunidade em que o Ministro Gilmar Mendes defendeu a tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos, ocasionando um “efeito paralisante” nas normas em sentido contrário, muito embora, no mesmo voto, também tenha reconhecido a força argumentativa da doutrina defensora dos tratados de direitos humanos como normas constitucionais. Pois bem, após paradigmático julgamento, o STF realmente passou a reanalisar sua jurisprudência, tanto que a tese da supralegalidade, apesar de majoritária, está longe de ser unânime, visto que há Ministros, dentre eles Celso de Mello e Joaquim Barbosa, que defendem a tese da constitucionalidade de tratados de direitos humanos, reconhecendo a primazia da norma mais favorável à vítima como solução em caso de conflitos. É justamente tal solução que se propõe em caso de conflito entre o direito interno e os tratados de direitos humanos incorporados. A referida solução não é nova na doutrina, muito embora, somente em tempos atuais, passou a ser mais defendida e efetivamente utilizada, isto devido aos recentes julgamentos do STF em tal sentido. Mesmo antes da emenda constitucional 45/2004 que, apesar das críticas, talvez tenha sido o principal pivô para a rediscussão sobre o sistema de incorporação e hierarquia normativa dos tratados de direitos humanos no Brasil, Valerio de Oliveira Mazzuoli já criticava o tradicional método utilizado pela jurisprudência brasileira, como se observa: [...] estamos convictos de que as soluções dadas até então para o problema da hierarquia entre tratados internacionais e a lei interna, não são das melhores. Aliás, são das piores. A falta de lógica-jurídica que assola, neste campo, os nossos tribunais, é assustadora. As soluções que precisamos, no mais das vezes, se fez presente bem em frente dos nossos olhos. A solução para o nosso problema é simples e não requer quase que nenhum esforço do intérprete. Tal solução vêm justamente do estudo mais acurado dos direitos humanos. Atualmente, o que se vem percebendo é o surgimento gradual de uma nova mentalidade, mais aberta e otimista, em relação aos Direitos Humanos, principalmente dessa nova geração de 124 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p. 542. 75 juristas. Não mais se cogita, para esse novo grupo, em monismo e dualismo, o que já estaria (e efetivamente está!) por demais superado. O que pretendem, ao que nos parece, é que seja dado às normas de direitos humanos provenientes de tratados internacionais, o seu devido valor. Não admitem essa igualização dos tratados com a legislação interna do país. Ao contrário: desejam ver aqueles compromissos internacionais igualados à Constituição do Estado125. A solução mencionada por tal autor não é outra senão a primazia da norma mais favorável à vítima ou ao ser humano. O referido princípio decorre da própria dignidade da pessoa humana e encontra guarida no art. 4º, II da Constituição Federal, ao estabelecer: “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: II - prevalência dos direitos humanos”126. Ademais, segundo o art. 5, § 2º da CF, os tratados internacionais ingressam no ordenamento jurídico brasileiro como normas materialmente constitucionais, desta maneira, em caso de conflito entre o texto constitucional já vigente e os tratados internacionais de direitos humanos incorporados, não há que se falar em soluções tradicionais para o conflito, como a utilização de critérios da especialidade, hierarquia ou cronológico. É necessário, ainda, considerar o princípio da dignidade da pessoa humana, também expressamente previsto no texto constitucional brasileiro (art. 1°, III da CF), assegurando a todo e qualquer ser humano, uma posição central no ordenamento jurídico pátrio. Portanto, não há teses ou explicações “mirabolantes” para colocar a primazia da norma mais favorável ao ser humano como solução para possíveis conflitos entre a Constituição da República brasileira e tratados internacionais de direitos humanos, visto que é a própria Constituição Federal que fundamenta tal primazia, isto porque prevê o princípio da prevalência dos direitos humanos, conforme dispõe o seu art. 4º, II. Assim, sendo a prevalência dos direitos humanos princípio explícito da República Federativa do Brasil nas relações internacionais, os tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao ordenamento pátrio poderão prevalecer frente ao texto constitucional em caso de conflito com este, caso forem mais benéficos. Tal possibilidade, como se obseva claramente, tem fundamento na própria Constituição brasileira. Desta maneira, não há como simplesmente desconsiderar todas as disposições constitucionais previstas acima. Disposições estas que tornam a Constituição brasileira 125 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. A influência dos tratados internacionais de direitos humanos no direito interno. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 37, 1 dez. 1999. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/1608/a-influencia-dos-tratados-internacionais-de-direitos-humanos-no-direitointerno>. Acesso em 21 ago. 2013. 126 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado, 1988. 76 legítima e democrática, até mesmo porque a dignidade da pessoa humana é anterior ao próprio Direito e ao próprio Estado, como bem menciona o professor Elimar Szaniawski: A ideia de que todo o ser humano é possuidor de dignidade é anterior ao direito, não necessitando, por conseguinte, ser reconhecida juridicamente para existir. Sua existência e eficácia prescinde de legitimação, mediante reconhecimento expresso pelo ordenamento jurídico. No entanto, dada a importância da dignidade, como princípio basilar que fundamenta o Estado Democrático de Direito, esta vem sendo reconhecida, de longa data, pelo ordenamento jurídico dos povos civilizados e democráticos, como um princípio jurídico fundamental, como valor unificador dos demais direitos fundamentais, inserido nas Constituições, como um princípio jurídico fundamental127. Dada a fundamentalidade da dignidade da pessoa humana e a consequente proteção que se deve dar ao ser humano, seja na ordem interna, seja na ordem internacional, Flávia Piovesan sintetiza bem o que foi mencionado neste trabalho, utilizando-se da primazia da norma mais favorável, para demonstrar a devida proteção ao ser humano: Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Nesta ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. O propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos - garantindo os mesmos direitos - é, pois, no sentido de ampliar e fortalecer a proteção dos direitos humanos. O que importa é o grau de eficácia da proteção, e, por isso, deve ser aplicada a norma que, no caso concreto, melhor proteja a vítima. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam, interagindo com o sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive a lógica e principiologia próprias do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Vale dizer, a lógica do Direito dos Direitos Humanos é, sobretudo, uma lógica material, inspirada no valor da dignidade humana. São aqui afastados os critérios da temporalidade (lei posterior revoga lei anterior com ela incompatível) e da especialidade (lei especial revoga a lei geral no que ela tem de especial). A lógica é exclusivamente material: merece prevalência a norma mais benéfica, mais protetiva e mais favorável (independentemente se anterior ou posterior, se geral ou especial). Nesta perspectiva, em que a primazia é da pessoa humana, o ser humano é concebido como um fim em si mesmo e jamais como um meio, como já explicava Kant. É um ser essencialmente moral, dotado de unicidade e de integridade, sob o manto da dignidade humana, valor fonte da experiência jurídica. [...] A condição humana é requisito único e exclusivo, reitere-se, para a titularidade de direitos. Isto porque todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano128. 127 SZANIAWSKI, Elimar apud VAZ, Wanderson Lago; REIS, Clayton. Dignidade da Pessoa Humana. Revista Jurídica Cesumar. v. 7, n. 1, p. 181-196, jan/jun. 2007, p. 190. 128 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, o Princípio da Dignidade Humana e a Constituição Brasileira de 1988. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 94, n. 833, p. 41-53, mar. 2005, p. 46-47. 77 De acordo com tais ensinamentos, o ser humano sempre deve vir em primeiro plano, podendo ser aplicada ao caso concreto tanto a norma de origem interna como a norma proveniente de tratados internacionais de direitos humanos. No caso brasileiro, há expressa previsão constitucional da primazia do ser humano. Ademais, o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica), que estabelece regras interpretativas, mais precisamente em seu artigo 29, dispondo que "nenhuma disposição da Convenção pode ser interpretada no sentido de: limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis que qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados"129. Assim, de acordo com tal dispositivo, a própria Convenção, ou qualquer outro tratado internacional, não poderá limitar o direito ou liberdade de qualquer cidadão já assegurado pelo Estado-membro, ou seja, segundo tal regra interpretativa, o próprio tratado reconhece que pode não ser aplicado, caso limite um direito já consagrado. É exatamente o que afirma Antonio Augusto Cançado Trindade: [...] No presente contexto, a primazia é a da norma mais favorável às vítimas, que melhor as proteja, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno. Este e aquele aqui interagem em benefício dos seres protegidos. É a solução expressamente consagrada em diversos tratados de direitos humanos, da maior relevância por suas implicações práticas. [...] No plano global, o Pacto de Direitos Civis e Políticos proíbe expressamente qualquer restrição ou derrogação aos direitos humanos reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte, em virtude de outras convenções, ou de leis, regulamentos ou costumes, 'sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau' (artigo 5(2)). Tanto a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (artigo 5) quanto a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (artigo 5), prevêem igualmente que nenhuma de suas disposições prejudicará os outros direitos e vantagens concedidos respectivamente aos refugiados e apátridas, independentemente delas. [...] No plano regional, a mesma ressalva se encontra na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que proíbe a interpretação de qualquer de suas disposições no sentido de limitar o gozo e exercício de quaisquer direitos que 'possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja Parte um dos referidos Estados' (artigo 29(b)); proíbe, ademais, a interpretação de qualquer de suas disposições no sentido de excluir ou limitar 'o efeito que possam 129 Artigo 29 - “Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de: a) permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados; c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza”.- Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Decreto Presidencial n.° 678 de 06 de novembro de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em 23 out. 2013. 78 produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos 130 internacionais de mesma natureza' (artigo 29(d)) . De maneira bem didática, ensina Flávia Piovesan: [...] Como solucionar eventual conflito entre a Constituição e determinado tratado internacional de proteção dos direitos humanos? Poder-se-ia imaginar, como primeira alternativa, a adoção do critério ‘lei posterior revoga lei anterior com ela incompatível’, considerando a natureza constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. Contudo, exame mais cauteloso da matéria aponta para um critério de solução diferenciado, absolutamente peculiar ao conflito em tela, que se situa no plano dos direitos fundamentais. E o critério a ser adotado se orienta pela escolha da norma mais favorável à vítima. Vale dizer, prevalece a norma mais benéfica ao indivíduo, titular do direito. O critério ou princípio da aplicação do dispositivo mais favorável à vítima não é apenas consagrado pelos próprios tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, mas também encontra apoio na prática ou jurisprudência dos órgãos de supervisão internacionais. [...] Isto é, no plano de proteção dos direitos humanos interagem o Direito Internacional e o Direito interno movidos pelas mesmas necessidades de proteção, prevalecendo as normas que melhor protejam o ser humano, tendo em vista que a primazia é da pessoa humana. Os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional131. Portanto, tanto a Constituição brasileira como o mais abrangente tratado de direitos humanos incorporado pelo Brasil, asseguram a aplicação da norma mais benéfica ao ser humano em caso de eventual conflito entre a ordem interna e os tratados internacionais. Vale lembrar que na prática jurídica brasileira, se discutiu durante muitos anos, o conflito entre o Pacto de São José da Costa Rica e o art. 5°, LXVII da CF, uma vez que, no Pacto de São José, em seu art. 7, VII, não é admissível a prisão do depositário infiel, permitindo a prisão civil apenas no caso de dívida alimentar, diferentemente da previsão constitucional que possibilita a prisão do depositário infiel e do devedor de pensão alimentícia por ato voluntário e inescusável. De início, de acordo com o entendimento do STF e da maioria dos Tribunais, era perfeitamente possível a prisão do depositário infiel, uma vez que o Pacto de São José era considerado como lei ordinária, assim, não poderia simplesmente desrespeitar o texto da Constituição. No entanto, a partir do ano de 2007, a discussão sobre a prisão do depositário infiel retornou ao STF, ocasião em que, por unanimidade, a Suprema Corte entendeu pela impossibilidade de prisão em tais casos. Os fundamentos da decisão do Supremo Tribunal 130 131 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p. 542-544. PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 103-104. 79 Federal é que foram divergentes. Uma corrente (a majoritária), liderada por Gilmar Mendes, entendeu que os tratados de direitos humanos têm valor supralegal, prevalecendo sobre a lei ordinária, mas hierarquicamente inferior à Constituição. A outra corrente, liderada por Celso de Mello, assegurou o status constitucional dos tratados de direitos humanos132. Gilmar Mendes explica a tese da supralegalidade se assegurando no “efeito paralisante” das normas infraconstitucionais que conflitem com os tratados internacionais de direitos humanos, ou seja, para o Ministro, toda norma infraconstitucional que conflite com tais tratados, tem o seu efeito paralisado, sendo que o texto constitucional deixa de ter aplicabilidade devido ao efeito paralisante dado às normas infraconstitucionais decorrentes da Constituição. Não há como concordar com a explicação do Ministro Gilmar Mendes, muito menos, sequer, consegue-se entender o raciocínio do "efeito paralisante" sob o ponto de vista lógico-jurídico, isto simplesmente porque, primeiro, desconsidera a força normativa da Constituição, ou seja, sendo assim, qualquer outro tratado de direitos humanos – mesmo tendo hierarquia inferior à Constituição – que conflite com a Constituição brasileira poderá fazer com que esta não seja aplicada, fazendo com que qualquer lei ordinária decorrente do texto constitucional fique “paralisada” devido ao contraponto trazido por um tratado internacional. Ademais, o texto constitucional não estaria sendo respeitado de maneira sistemática, haja vista que existem outros argumentos mais coerentes e de simples entendimento para explicar a impossibilidade da prisão do depositário infiel. Tal argumento é justamente a primazia da norma mais favorável ao ser humano. A explicação é simples: como os tratados de direitos humanos (no caso em questão, a Convenção Americana de Direitos Humanos) é norma materialmente constitucional devido à cláusula de abertura dos direitos fundamentais disposta no § 2° do art. 5° da CF, não há como, simplesmente, deixar de aplicar uma norma constitucional fundamental em detrimento de outra norma constitucional. Neste caso, como a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso LXVII, possibilita a prisão do depositário infiel e a Convenção Americana não permite tal possibilidade, deve-se aplicar a norma mais benéfica, respeitando o preceito constitucional assegurado no art. 4º, II da CF, bem como, em respeito à própria dignidade da pessoa humana, princípio previsto no art. 1º, III da CF, não havendo que se falar em hierarquia de normas ou de critérios cronológico ou da especialidade para solucionar a 132 Cf. RE 466.343-SP, Pleno. Relator: Min. Cezar Peluso. DJ 104, publicado em 05.06.2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013. 80 antinomia. Ainda assim, há as disposições interpretativas dispostas na própria Convenção Americana, que assegura em seu art. 29, a impossibilidade de limitação de direitos fundamentais previstos em tratados internacionais ou no direito interno. É exatamente este o entendimento de Valerio Mazzuoli: O raciocínio é simples: abstraindo-se a referência aos tratados internacionais, o texto constitucional dispõe que os direitos e garantias expressos na Constituição, não excluem outros ‘decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados’. Um dos princípios constitucionais expressamente consagrados pela Magna Carta, o qual, inclusive, é norteador da República Federativa do Brasil, é o princípio da prevalência dos direitos humanos (CF, art. 4.º, II). Ora, se é princípio da República Federativa do Brasil a prevalência dos direitos humanos, a outro entendimento não se pode chegar, senão o de que todo tratado internacional de direitos humanos terão prevalência, no que forem mais benéficos, às normas constitucionais em vigor. A conclusão, aqui, mais uma vez, decorre da própria lógica jurídica, que não pode ser afastada, interpretando-se corretamente aqueles preceitos. Fazendo-se uma interpretação sistemática da Constituição, que proclama em seu art. 4.º, II, que o Brasil se rege em suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos, e em seu art. 1.º, III, que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, tendo como fundamento, inter alia, a dignidade da pessoa humana, a outra conclusão não se chega, senão a de que a vontade do legislador, no art. 5.º, § 2.º da Carta da República, foi realmente aquela apontada pelo ilustre professor Antônio Augusto Cançado Trindade. Assim, quando a Constituição dispõe em seu art. 4.º, II, que a República Federativa do Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, dentre outros, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos, está, ela própria, a autorizar a incorporação do produto normativo convencional mais benéfico, pela porta de entrada do seu art. 5.º, § 2.º, que como já foi visto, tem o caráter de cláusula aberta à inclusão de novos direitos e garantias individuais provenientes de tratados. [...] Por sua vez, a dignidade da pessoa humana, como leciona o Prof. José Afonso da Silva, ‘é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida’, concepção da qual também se filia Canotilho quando diz ser a dignidade da pessoa humana ‘a raiz fundamentante dos direitos humanos’133. A interpretação que melhor representa uma proteção dos direitos humanos e que chega mais próximo de garantir a dignidade da pessoa humana é a que foi exposta acima. A título de exemplo, pode-se mencionar outro conflito entre o Pacto de São José e a Constituição Federal, pouco lembrado na doutrina e na própria jurisprudência, qual seja: a Convenção Americana (art. 7º, VII) diz que ninguém deve ser detido por dívidas e que este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Por sua vez, o inciso LXVII do art. 5º da CF, possibilita a prisão civil em decorrência de dívida alimentar, mas desde que haja inadimplemento voluntário e inescusável. Ou seja, neste ponto, a Constituição brasileira é mais exigente que a Convenção Americana, pois, esta última, possibilita a prisão civil em 133 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/1608/a-influenciados-tratados-internacionais-de-direitos-humanos-no-direito-interno>. Acesso em 21 ago. 2013. 81 decorrência de dívida alimentar sem fazer qualquer ressalva, enquanto a Constituição brasileira admite tal prisão, desde que haja inadimplemento voluntário e inescusável134. Em tal situação, há um conflito de normas e, como solução, deve-se interpretar de acordo com a norma mais favorável ao indivíduo e, no caso concreto acima exposto, a norma mais favorável é a Constituição brasileira e não a Convenção Americana, diferentemente do caso do depositário infiel. O referido exemplo demonstra exatamente a aplicação da primazia da norma mais favorável ao ser humano. Tal interpretação não pode apenas ser aplicada na teoria, deve ser aplicada na prática, diante de um caso concreto conflituoso entre Constituição Federal e tratados de direitos humanos. É o que explica Flávia Piovesan: Ressalte-se que o Direito Internacional dos Direitos Humanos apenas vem aprimorar e fortalecer o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo interno. A escolha da norma mais benéfica ao indivíduo é tarefa que caberá fundamentalmente aos Tribunais nacionais e a outros órgãos aplicadores do Direito, no sentido de assegurar a melhor proteção possível ao ser humano135. O Ministro Celso de Mello, conforme já demonstrado, repensou seu posicionamento sobre a questão dos tratados de direitos humanos, pois, antes conferia a tais tratados, status de lei ordinária e, atualmente, entende que todos os tratados de direitos humanos são materialmente constitucionais. E mais, referido Ministro passou a consagrar o princípio da primazia da norma mais favorável ao ser humano no ordenamento jurídico brasileiro, visto que coloca tal princípio como critério que deve reger a interpretação do Poder Judiciário, como forma de maior proteção dos direitos humanos. É possível constatar tal posicionamento em seu voto no HC 96.772/SP: [...] TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: AS SUAS RELAÇÕES COM O DIREITO INTERNO BRASILEIRO E A QUESTÃO DE SUA POSIÇÃO HIERÁRQUICA. –[...]. - Relações entre o direito interno brasileiro e as convenções internacionais de direitos humanos (CF, art. 5º e §§ 2º e 3º). Precedentes. - Posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento positivo interno do Brasil: natureza constitucional ou caráter de supralegalidade? - Entendimento do Relator, Min. CELSO DE MELLO, que atribui hierarquia constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos humanos. A INTERPRETAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFORMAL DA CONSTITUIÇÃO. - A questão dos processos informais de mutação constitucional e o papel do Poder Judiciário: a interpretação 134 Cf. GOMES, Luiz Flávio. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Constituição brasileira e os tratados de direitos humanos: conflito e critério de solução. Disponível em: <http://www.lfg.com.br>. Acesso em 21 ago. 2013. 135 PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 105. 82 judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal da Constituição. A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea. HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: A NORMA MAIS FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A INTERPRETAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. - Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico [...] consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. - O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs136. Tal decisão é um alento para a efetiva proteção ao ser humano, pois reflete o posicionamento da mais lúcida doutrina sobre a questão. Ademais, é importante destacar que tal decisão não é única no STF. Há outras decisões no mesmo sentido, consagrando e efetivamente aplicando a primazia da norma mais favorável ao ser humano, dentre tais decisões há o HC 90450/MG, HC 91361/SP e HC 94695/RS137, bem como no próprio RE 466.343/SP, já mencionado antes, sendo que, neste último, tal princípio foi aplicado pelo Ministro Joaquim Barbosa: É patente a situação de conflituosidade entre a norma do Pacto de San José da Costa Rica e a norma doméstica de 1969. [...]Para mim, porém, o essencial é que a primazia conferida em nosso sistema constitucional à proteção à dignidade da pessoa humana faz com que, na hipótese de eventual conflito entre regras domésticas e normas emergentes de tratados internacionais, a prevalência, sem sombra de dúvidas, há de ser outorgada à norma mais favorável ao indivíduo138. Importante mencionar, em que pese o entendimento atualmente majoritário do STF e do entendimento doutrinário de renomados constitucionalistas, que não há como, simplesmente, desconsiderar o princípio da primazia da norma mais favorável que tem seu fundamento no primado da dignidade da pessoa humana, princípio este que é supremo e 136 SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, HC 96.972/SP, Relator: Min. Celso de Mello. DJ 21/08/2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 24 out. 2013. 137 Cf. <www.stf.jus.br>. Acesso em 23 out. 2013. 138 Voto do Ministro Joaquim Barbosa no RE 466.343-SP. Pleno. Relator: Min. Cezar Peluso. DJ 104, publicado em 05.06.2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013. 83 anterior ao próprio Estado, ou seja, uma Constituição apenas se legitima democraticamente no seio de uma sociedade caso consagre em seu texto o primado da dignidade humana. Ademais, a tese da supralegalidade parece contradizer a própria hierarquia do ordenamento brasileiro, visto que, conforme defende a posição majoritária do STF, a norma supralegal seria hierarquicamente inferior à Constituição Federal, no entanto, tem força de tornar não aplicável uma norma consagrada no texto constitucional, como é o caso da não aplicabilidade da prisão do depositário infiel, que é permitida no texto constitucional, mas vedada no Pacto de São José da Costa Rica. Diante disso, se indaga: é possível uma norma inferior modificar a interpretação de um texto constitucional? No ordenamento brasileiro não é a Constituição que deve limitar e guiar as normas inferiores a esta? Talvez, o entendimento majoritário do STF tenha consagrado o princípio da primazia da norma mais favorável sem querer ou sem saber, visto não ser possível no ordenamento brasileiro uma norma inferior ter aplicabilidade superior à Constituição. 3.1 Tribunal Penal Internacional (TPI) e o Ordenamento Jurídico brasileiro A Reforma do Judiciário também incluiu o § 4º ao artigo 5º da CF, estabelecendo a adesão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional. Ressalte-se que, antes da aprovação da EC 45/2004, o Brasil já havia promovido a assinatura do tratado referente ao Estatuto de Roma no ano 2000, posteriormente aprovado pelo Congresso Nacional e, depois, promulgado pelo Presidente da República. Assim, é importante comentar, ainda que brevemente, sobre os possíveis conflitos entre as normas do Estatuto de Roma e o ordenamento brasileiro. Salienta-se, contudo, que não se pretende esvaziar o assunto sobre o Tribunal Penal Internacional e o Estatuto de Roma, mas é importante que se faça algumas considerações, possibilitando verificar qual o posicionamento da doutrina, até porque o Estatuto de Roma é tratado de direitos humanos e como já foi ratificado pelo Brasil, deve ser considerado como norma constitucional, muito embora, com base no entendimento majoritário do STF, as normas referentes no Estatuto de Roma tenham status supralegal, visto sua adesão ser anterior à Reforma do Judiciário e não ter sido incorporado ao ordenamento brasileiro como emenda constitucional. Pois bem, o Estatuto de Roma estabelece um Tribunal Penal Internacional de caráter permanente, com jurisdição sobre os crimes de maior gravidade. Segundo o referido 84 Estatuto, o TPI será competente para julgar os crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. Ademais, o TPI tem competência complementar à competência dos Estados signatários, não admitindo reservas e tendo competência apenas para os crimes praticados após a adesão do Estado ao Estatuto. Com exceção da polêmica sobre o caráter supralegal ou constitucional do Estatuto de Roma, a adesão do Brasil ao TPI, aparentemente, não ensejaria nenhum tipo discussão. No entanto, alguns dispositivos de tal Estatuto internacional parecem ser incompatíveis com alguns preceitos da Constituição brasileira, visto que o TPI estabelece o princípio da imprescritibilidade, ou seja, seu poder punitivo jamais será extinto pelo decurso do tempo. Além disso, referido Estatuto prevê a entrega de nacionais ao TPI e a possibilidade de pena em caráter perpétuo, o que é expressamente vedado na Constituição brasileira. Eis as três principais polêmicas sobre o assunto, justamente devido ao possível conflito entre o TPI e a Constituição Federal. Valerio de Oliveira Mazzuoli, dentre vários outros autores afirmam que tais conflitos são apenas aparentes, ou seja, segundo eles, não há que se falar em conflitos, pois a Constituição brasileira, ao aderir o TPI, concordou com todos os seus termos139. A primeira questão polêmica é a possibilidade de entrega de brasileiros natos ao TPI, prevista pelo art. 89 do Estatuto de Roma. Como se sabe, a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso LI, veda a extradição de seus nacionais, com exceção do naturalizado, em caso de crime comum praticado antes da naturalização ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes. Desta maneira, surge o conflito: brasileiro nato poderá ser entregue ao TPI? Entrega e extradição são institutos iguais? A decisão proferida pelo Ministro Celso de Melo na Petição 4628/República do Sudão, retrata bem as indagações feitas acima, haja vista sintetizar as dúvidas sobre o conflito acima mencionado, entre o Estatuto de Roma e o ordenamento brasileiro, demonstrando, ainda, que não há consensos na jurisprudência brasileira sobre o caso: ESTATUTO DE ROMA. INCORPORAÇÃO DESSA CONVENÇÃO MULTILATERAL AO ORDENAMENTO JURÍDICO INTERNO BRASILEIRO (DECRETO Nº 4.388/2002). INSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. CARÁTER SUPRA-ESTATAL DESSE ORGANISMO JUDICIÁRIO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA COMPLEMENTARIDADE (OU DA SUBSIDIARIEDADE) SOBRE O EXERCÍCIO, PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, DE SUA JURISDIÇÃO. COOPERAÇÃO 139 Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 847-856. 85 INTERNACIONAL E AUXÍLIO JUDICIÁRIO: OBRIGAÇÃO GERAL QUE SE IMPÕE AOS ESTADOS PARTES DO ESTATUTO DE ROMA (ARTIGO 86). PEDIDO DE DETENÇÃO DE CHEFE DE ESTADO ESTRANGEIRO E DE SUA ULTERIOR ENTREGA AO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, PARA SER JULGADO PELA SUPOSTA PRÁTICA DE CRIMES CONTRA A HUMANIDADE E DE GUERRA. SOLICITAÇÃO FORMALMENTE DIRIGIDA, PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, AO GOVERNO BRASILEIRO. DISTINÇÃO ENTRE OS INSTITUTOS DA ENTREGA (“SURRENDER”) E DA EXTRADIÇÃO. QUESTÃO PREJUDICIAL PERTINENTE AO RECONHECIMENTO, OU NÃO, DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA EXAMINAR ESTE PEDIDO DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL. CONTROVÉRSIAS JURÍDICAS EM TORNO DA COMPATIBILIDADE DE DETERMINADAS CLÁUSULAS DO ESTATUTO DE ROMA EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O § 4º DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO, INTRODUZIDO PELA EC Nº 45/2004: CLÁUSULA CONSTITUCIONAL ABERTA DESTINADA A LEGITIMAR, INTEGRALMENTE, O ESTATUTO DE ROMA? A EXPERIÊNCIA DO DIREITO COMPARADO NA BUSCA DA SUPERAÇÃO DOS CONFLITOS ENTRE O ESTATUTO DE ROMA E AS CONSTITUIÇÕES NACIONAIS140. (grifo original) O Estatuto de Roma teve a preocupação de diferenciar os institutos da extradição e da entrega, talvez devido à vedação de extradição de nacionais em grande parte dos países. Assim, segundo o Estatuto de Roma, a entrega (ou surrender) deve ser entendida como a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal Penal Internacional, diferentemente da extradição, que é a entrega de uma pessoa por um Estado ao outro Estado. Além disso, referido Estatuto estabelece que, diferentemente da extradição, é possível que a execução da pena seja cumprida no próprio Estado que fez a entrega. Esse é o entendimento de quem defende a entrega de brasileiros natos para serem julgados pelo TPI, ou seja, para a maioria dos internacionalistas, é possível tal entrega, baseando-se, principalmente, nas diferenciações feitas pelo próprio Estatuto de Roma141. Seguindo tal entendimento, Valerio Mazzuoli afirma que o TPI é uma jurisdição internacional do qual o Brasil faz parte e a qual manifestou sua adesão, não se tratando, assim, da entrega a uma jurisdição estrangeira, mas sim a uma jurisdição internacional da qual o Brasil também é titular e contribuiu para a construção142. André Ramos Tavares ataca tal diferenciação afirmando que “entrega” e “extradição” não possuem diferenças materiais, sendo a diferenciação apenas grafológica, não 140 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo 554. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013. 141 Cf. SCORSAFAVA, Francisco Eduardo Torquato, op. cit., p. 39-41. 142 MAZUOLLI, Valerio de Oliveira. O Tribunal Penal Internacional: integração ao direito brasileiro e sua importância para a justiça penal internacional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 41, n.164, p. 157-178, out/dez. 2004, p. 162. 86 sendo, assim, possível a “entrega” de nacionais, visto haver vedação constitucional143. O referido autor, ainda completa: Interpretações que visem a conceder (contornando) sentido diverso à vedação constitucional que ora se comenta, afastando-a da hipótese de entrega, não poderão prevalecer, uma vez que, [...] a única diferença entre o presente instituto e o da extradição, além da terminológica, reside no ente que a solicita. Sendo assim, qualquer elucubração exegética nesse sentido produzirá o único efeito da sustentação do ridículo hermenêutico. A única forma de se admitir a extradição, entrega, ou qualquer outro nome que pretenda conferir a este único e idêntico fenômeno, será por meio da criação de uma nova Constituição via constituinte originário, ou deturpação da cláusula pétrea constante do art. 60, §4°, IV, da CB, compreendendo como não tendente a abolir esses delicados direitos fundamentais a entrega de indivíduos para serem submetidos a jurisdição outra que não a nacional144. O entendimento acima referido é bem coerente, afinal, trata-se de direitos humanos e, caso se faça diferenciações meramente formais (ou meramente “grafológica”), pode-se colocar em risco a própria proteção dos direitos humanos. Assim, parece ser mais coerente, neste ponto, entender que há conflito entre a Constituição brasileira e o Estatuto de Roma, devendo ser aplicada a norma mais favorável ao ser humano no caso concreto, impedindo, assim, a entrega de brasileiros natos ao TPI. Outro ponto de conflito é sobre a possibilidade de pena de caráter perpétuo. O TPI estabelece tal possibilidade caso o elevado grau da ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado a justificarem. Em contrapartida, o art. 5º, XLVII, b da CF veda tal tipo de pena. Assim, caso se aceitasse tal possibilidade, juntamente com a possibilidade de entrega de brasileiro ao TPI, um brasileiro nato poderia ser julgado por referido Tribunal internacional e ser condenado a pena perpétua. Tal situação parece ser insustentável no ordenamento brasileiro, visto desrespeitar direitos e garantias fundamentais e a própria dignidade humana, valores supremos no ordenamento brasileiro, tanto que o próprio STF já decidiu no sentido de apenas extraditar estrangeiro mediante o compromisso do Estado requerente em comutar a pena perpétua em pena privativa de liberdade não superior a trinta anos de prisão, pena máxima admitida no Brasil145. 143 TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário no Brasil pós-88 – (Des) estruturando a Justiça. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 57. 144 TAVARES, André Ramos, op. cit., p. 58. 145 Cf. Extradição 633, rel. Ministro Celso de Mello (DJ 06.04.2001); Extradição 855, rel. Ministro Celso de Mello (DJ 01.07.2005). Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013. 87 Da mesma forma, praticamente os mesmos internacionalistas que entendem ser possível a entrega de nacionais ao TPI, também defendem a possibilidade de prisão perpétua. Sammy Barbosa Lopes retrata bem a questão: Quanto à esta questão, Antônio Paulo Cachapuz Medeiros (2000, p. 14/15) afirma que o STF tem, tradicionalmente, deferido pedidos de extradição em que a pena será a perpétua, entendendo que a limitação constitucional somente diz respeito à esfera da lei penal interna, não podendo haver limitação que atinja o direito internacional decorrente de norma nacional. Desta forma, o conflito entre o ETPI e a CF seria apenas ‘aparente’, não só porque aquele visa reforçar o princípio da dignidade da pessoa humana, mas porque a proibição prescrita pela Lei Maior é dirigida ao legislador interno para os crimes reprimidos pela ordem jurídica pátria, e não aos crimes contra o Direito das Gentes, reprimidos pela jurisdição internacional146. Sylvia Helena Steiner, juíza do TPI, entende da mesma forma, pois afirma que tal previsão não é inconciliável com a Constituição brasileira, visto que a vedação imposta por ela dirige-se apenas ao legislador interno, não impedindo a submissão do Brasil e de seus nacionais às previsões de uma Corte supranacional147. É importante destacar que o STF já não tem mais entendido sobre a possibilidade de extradição sem o compromisso de comutação da pena, ou seja, a Suprema Corte, em seus últimos julgamentos de extradição, tem exigido o compromisso do país requerente em comutar a pena de morte ou de caráter perpétuo de acordo com a pena máxima da legislação brasileira148. Ademais, não há como aceitar tal possibilidade, até mesmo porque, de acordo com as normas interpretativas de alguns tratados internacionais, como por exemplo, o artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos, não se poderá limitar o direito ou liberdade de qualquer cidadão já assegurado pelo Estado-membro, ou seja, de acordo com tal regra interpretativa, o próprio tratado (ou qualquer outro) reconhece que pode não ser aplicado, caso limite um direito já consagrado. Tal observação também é feita por Antonio Augusto Cançado Trindade, como já citado anteriormente: 146 LOPES, Sammy Barbosa. O Tribunal Penal Internacional sob a ótica da Constituição Federal, do Código Penal e do Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.ampac.org.br/antigo/artigos/O%20Tribunal%20Penal%20Internacional%20sob%20a%20%C3%B3 tica%20da%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20Federal,%20do%20C%C3%B3digo%20Penal%20e%20do%2 0C%C3%B3digo%20de%20Processo%20Penal.pdf>. Acesso em 24 out. 2013, p. 6. 147 STEINER, Sylvia Helena apud NOVELINO, Marcelo, op. cit. p., 388. 148 Cf. Extradição 1041; Extradição 1103; Extradição 1104; Extradição 1151; Extradição 1201; e Extradição 1214. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013. 88 No plano global, o Pacto de Direitos Civis e Políticos proíbe expressamente qualquer restrição ou derrogação aos direitos humanos reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte, em virtude de outras convenções, ou de leis, regulamentos ou costumes, 'sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau' (artigo 5(2)). Tanto a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (artigo 5) quanto a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (artigo 5), prevêem igualmente que nenhuma de suas disposições prejudicará os outros direitos e vantagens concedidos respectivamente aos refugiados e apátridas, independentemente delas. [...] No plano regional, a mesma ressalva se encontra na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que proíbe a interpretação de qualquer de suas disposições no sentido de limitar o gozo e exercício de quaisquer direitos que 'possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja Parte um dos referidos Estados' (artigo 29(b)); proíbe, ademais, a interpretação de qualquer de suas disposições no sentido de excluir ou limitar 'o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos 149 internacionais de mesma natureza' (artigo 29(d)) . A possibilidade de prisão perpétua prevista no Estatuto de Roma é um verdadeiro contrassenso com o próprio sistema de proteção dos direitos humanos, uma vez que desrespeita direitos já consagrados. Assim, mais uma vez, o presente trabalho se inclina no sentido de entender que há conflito entre o Estatuto de Roma e a ordem interna brasileira, devendo prevalecer, no caso concreto, a norma que mais dignifique o homem, impedindo, desta maneira, a possibilidade de prisão perpétua no território brasileiro ou a possível entrega de brasileiro nato ao TPI para cumprir prisão perpétua em outro Estado internacional. Por fim, outro conflito com o ordenamento brasileiro é a punibilidade imprescritível do TPI. Sabe-se que, no Brasil, apenas o crime de racismo e ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático é que são imprescritíveis (art. 5º, XLII da CF). É importante destacar, para que não haja quaisquer dúvidas que, segundo entendimento do STF, nem mesmo o legislador constituinte derivado poderia prever novas hipóteses de imprescritibilidade, por se tratar de cláusula pétrea150. Contrariamente, o argumento é o mesmo de Sylvia Steiner, ou seja, os direitos consagrados pelo Poder Constituinte estariam voltados apenas às relações internas, não se projeta para outros sistemas aos quais o Brasil se vincule por força de compromissos internacionais151. 149 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p. 543-544. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – AC 504/SP, rel. Ministro Marco Aurélio (DJ 24.11.2004) In: NOVELINO, Marcelo, op. cit., p. 389. 151 NOVELINO, Marcelo, op. cit., p. 389. 150 89 Em que pese o argumento acima, como se poderia admitir que um crime já prescrito no Brasil, portanto, com sua punibilidade extinta, seja julgado pelo TPI? Para isso, seria primeiro necessário a entrega do nacional? Tal possibilidade não estaria em desacordo com a dupla punibilidade no caso de extradição? Justamente de acordo com o princípio da dupla punibilidade, adotado pelo STF, apenas será possível a extradição se o fato for punível tanto no Brasil, quanto no Estado requerente152. O professor Marcelo Novelino entende que, caso haja a prescrição do crime no Brasil, como este não seria mais punível de acordo com o ordenamento brasileiro, ficaria inviabilizada, nesta situação, a entrega ao TPI e, consequentemente, se inviabilizaria o julgamento perante tal Tribunal153. Diante de tantos conflitos, percebe-se que a adesão do Brasil ao TPI parece não estar bem definida internamente, visto o excessivo número de críticas e polêmicas em torno do assunto. Talvez o Estatuto de Roma tenha escolhido uma forma de proteção aos direitos humanos “mais repressiva”, sacrificando direitos e garantias individuais, quando, principalmente, estabelece a imprescritibilidade e a possibilidade de pena em caráter perpétuo, diferentemente da Constituição brasileira que, por sua vez, verdadeiramente prima pela dignidade da pessoa humana e pela real defesa dos direitos e garantias fundamentais. Por conta de tais incongruências é que Dimitri Dimoulis aponta os casos acima mencionados não apenas como conflitos, mas até mesmo como possíveis inconstitucionalidades a serem sanadas154. O referido autor critica veementemente a forma como ocorreu a adesão do Brasil ao TPI, criticando, inclusive, os argumentos daqueles que defendem o TPI: [...] na tentativa de compatibilizar as previsões do Estatuto de Roma com as normas constitucionais, alguns autores não hesitam em incidir em contradições lógicas. Assim sendo, para justificar a entrega ao TPI, alega-se que não se trata de verdadeira extradição a tribunal estrangeiro, mas tão somente de entrega a um tribunal internacional que faz parte da jurisdição nacional. Quando se trata, porém de justificar a pena da prisão perpétua prevista no Estatuto de Roma, afirma-se exatamente o contrário. A prisão perpétua seria agora aplicada por uma autoridade estrangeira, ao passo que a referida vedação constitucional só vincularia a lei penal 152 Cf. NOVELINO, Marcelo, op. cit., p. 389. Idem, Ibidem, p. 390. 154 DIMOULIS, Dimitri. O Art. 5º, §4°, da CF: dois retrocessos políticos e um fracasso normativo.In: TAVARES. André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. Reforma do Judiciário. Analisada e Comentada. São Paulo: Método, 2005, p. 107-119, p. 113. 153 90 nacional, não permitindo que tribunais brasileiros censurem penas impostas por autoridades estrangeiras!155 Por sua vez, André Ramos Tavares afirma que o TPI terá diminuto alcance prático, justamente devido ao desrespeito de direitos fundamentais já consagrados: [...] enquanto houver a previsão de direitos fundamentas como a prescritibilidade dos crimes, impossibilidade de extradição de certas pessoas e em certas situações, garantia da legalidade, e outras, a novel redação do §4°, do mesmo art. 5° da CB, adentrará, numa previsão otimista, no rol das normas constitucionais com diminuto alcance prático. E nem se poderia invocar o disposto no art. 7° do ADCT, que estabelece que o ‘Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos’, e no art. 4° da CB, que propugna pela prevalência dos direitos humanos (inciso II), cooperação entre os povos (inciso IX) e integração internacional (parágrafo único), porque não há, nesses dispositivos, que autorize a submissão do país a tribunal de natureza penal, para entregar pessoas que se encontrem sob sua jurisdição, independentemente de sua nacionalidade ou do tipo de crime por elas supostamente praticado. O dispositivo constitucional mais próximo do art. 7° do ADCT, apenas propugna pela formação de um tribunal internacional de direitos humanos. A formação de um tribunal internacional de tal natureza não requer, necessariamente, a formação de outro com caráter punitivo, nos termos em que foi firmado o Estatuto de Roma156. Portanto, de acordo com o que foi abordado, verifica-se que ainda não há um consenso na doutrina, muito menos na jurisprudência. No entanto, a solução para tais conflitos continua no princípio da primazia da norma mais favorável. Com todo o respeito aos autores que defendem o TPI e o Estatuto de Roma em todos os seus termos, afirmando que, sequer, há conflitos com a Constituição Federal, na verdade, estes levam em consideração apenas aspectos formais, visto que apenas se fundamentam, na ratificação do Brasil ao TPI, bem como no § 4º do art. 5º da CF, não levando em consideração o possível caso concreto como, também, não levam em consideração os próprios direitos humanos. Flávia Piovesan ensina que os tratados de direitos humanos apenas vêm aprimorar a proteção de tais direitos: [...] no plano de proteção dos direitos humanos interagem o Direito Internacional e o Direito interno movidos pelas mesmas necessidades de proteção, prevalecendo as normas que melhor protejam o ser humano, tendo em vista que a primazia é da pessoa humana. Os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, 155 156 DIMOULIS, Dimitri, op. cit., p. 115. TAVARES, André Ramos, op. cit., p. 60-61. 91 o grau de proteção dos direitos consagrados constitucional157. (grifo nosso) no plano normativo É o que também ensina Antonio Augusto Cançado Trindade, assegurando a primazia da norma mais favorável ao ser humano: O critério da primazia na norma mais favorável às pessoas protegidas, consagrado expressamente em tantos tratados de direitos humanos, contribui em primeiro lugar parar reduzir ou minimizar consideravelmente as pretensas possibilidades de ‘conflitos’ entre instrumentos legais em seus aspectos normativos. Contribui, em segundo lugar, para obter maior coordenação entre tais instrumentos, em dimensão tanto vertical (tratados e instrumentos de direito interno) quanto horizontal (dois ou mais tratados). No tocante a esta última, o critério da primazia da disposição mais favorável às vítimas já em fins da década de cinqüenta era aplicado pela Comissão Européia de Direitos Humanos [...] e recebeu reconhecimento judicial na Corte Interamericana de Direitos Humanos no Parecer de 1985 [...]. Contribui, em terceiro lugar, [...] para demonstrar que a tendência e o propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos – garantindo os mesmos direitos – são no sentido de ampliar e fortalecer a proteção. O que importa em última análise é o grau de eficácia da proteção, e por conseguinte há de impor-se a norma que no caso concreto melhor proteja, seja ela de direito internacional ou de direito interno158. Assim, aplicando a primazia da norma mais favorável, não se estará desrespeitando qualquer lei, tratado ou outra norma internacional ou nacional, pelo contrário, a própria Constituição brasileira possibilita tal aplicação em caso de conflito, conforme interpretação do art. 4º, II da CF (prevalência dos direitos humanos na ordem internacional) e art. 1º, III da CF (dignidade da pessoa humana), bem como a própria Convenção Americana prevê tal possibilidade, em caso de surgir algum tratado que restrinja quaisquer direitos já consagrados em tratados de direitos humanos anteriores. Ademais, não se deve simplesmente desconsiderar todos os direitos já consagrados pela Constituição Federal ou por quaisquer outros tratados de direitos humanos já ratificados. Entender que o TPI não conflita com a Constituição brasileira e possibilitando, assim, a entrega (extradição) de brasileiros natos e uma possível prisão perpétua, estar-se-ia, supostamente, defendendo os direitos da humanidade em detrimento dos direitos humanos de uma pessoa. Com isso, tal pessoa serviria como meio (como um objeto) para se atingir um fim, que seria a “suposta” aplicação da lei penal internacional, desvirtuando o próprio sistema de proteção dos direitos humanos, possibilitando que a proteção dos direitos humanos fosse pouco a pouco sendo diminuída. 157 158 PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 104-105. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p. 544-545. 92 Dimitri Dimoulis também critica as incongruências do Estatuto de Roma: Ora, em matéria de direitos fundamentais, não devemos assumir uma perspectiva quantitativa e sim qualitativa. O caso estatístico e moralmente desprezível não perde sua importância na perspectiva de tutela de todas as minorias contra o poder estatal. O direito fundamental de uma pessoa não vale menos que o direito de um milhão de pessoas e o Estado nunca deveria violar direitos fundamentais sob o pretexto de proteger a maioria. Caso contrário, deveríamos também admitir a tortura e a pena de morte para ‘proteger a sociedade’!159 Não há outro caminho, a solução para tais conflitos deve ser o que privilegia a dignidade humana, qual seja: primazia da norma mais favorável. Não importa se tal princípio faça prevalecer a ordem interna ou a internacional. A dignidade humana vem em primeiro plano, antes de qualquer conflito! E entre os conflitos mencionados acima, qual prima pelo ser humano? O Estatuto de Roma parece não privilegiar os direitos humanos, assim, não há, de acordo com tudo que foi abordado, como compactuar com as possibilidades de desrespeito aos direitos humanos reguladas pelo próprio Estatuto de Roma, muito menos com a visão da doutrina internacionalista que afirma que o Poder Constituinte brasileiro guia apenas sua ordem interna, devendo se submeter totalmente ao TPI, caso contrário, estar-se-ia colocando em risco até mesmo toda a conquista de proteção aos direitos humanos garimpada ao longo das últimas décadas. 159 DIMOULIS, Dimitri, op. cit., p. 117. 93 CONCLUSÃO Os tratados internacionais são as principais fontes do direito internacional, uma vez que possibilitam a integração de diferentes Estados e Nações em prol de um único e universal objetivo. Por sua vez, os tratados de direitos humanos passaram a ser utilizados como resposta as atrocidades ocorridas na Segunda Guerra Mundial, época em que diversos direitos fundamentais foram desconsiderados em nome de um positivismo e formalismo excessivo que apenas assegurava a soberania dos Estados, tudo em detrimento do ser humano. Com o passar dos anos, um maior número de Estados aderiram aos tratados de direitos humanos, reconhecendo, pelo menos em tese, o real valor do ser humano, elevando-o à posição central de todo o ordenamento jurídico, seja no âmbito interno, seja no âmbito internacional. O Estado brasileiro, pouco a pouco, passou a procurar formalizar e materializar as normas internacionais de direitos humanos no ordenamento interno, inicialmente muito mais preocupado em estreitar relações internacionais do que com a própria defesa ao ser humano. Em decorrência de tal preocupação, que passou a refletir diretamente no ordenamento interno pátrio, a Corte Suprema do Brasil foi convocada a analisar vários casos sobre o assunto. Assim, por muitos anos, a jurisprudência brasileira e a doutrina dominante reconheceram todos os tratados internacionais como normas equivalentes à lei ordinária, ou seja, todos os tratados internacionais, de direitos humanos ou comuns, após incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, poderiam perfeitamente serem revogados por leis internas posteriores, bem como não poderiam ter interpretação que, pelo menos em tese, fossem de encontro à Constituição Federal, uma vez que os critérios adotados para a solução de antinomias eram os critérios da hierarquia, cronológico e o da especialidade. Tal entendimento poderia ser capaz de responsabilizar o Brasil internacionalmente, haja vista que os compromissos firmados internacionalmente poderiam, simplesmente, serem desrespeitados por leis internas posteriores. Diante disso, a doutrina mais sensata passou a criticar tal posição, baseando-se, primeiramente, nos princípios constitucionais vigentes, bem como no próprio texto da legislação infraconstitucional brasileira, dentre eles, o Código Penal, o Código de Processo Penal e o Código de Defesa do Consumidor. Por último, fundamentou-se nos próprios 94 compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, dentre eles, na Convenção de Viena, tratado internacional que regula a elaboração de tratados internacionais. Com relação aos tratados internacionais comuns, foi demonstrado que tais compromissos internacionais têm status supralegal, diferentemente do que entende o STF e a maioria da doutrina, ou seja, de acordo com o trabalho, os tratados internacionais comuns estão em hierarquia normativa superior às leis ordinárias e inferior à Constituição Federal, haja vista que, primeiramente, os tratados internacionais possuem modelo próprio de revogação ou não aceitação pelo Estado de maneira unilateral, que é a denúncia. Assim, caso o Brasil verifique que, de alguma forma, o tratado internacional comum esteja conflitando e prejudicando a lei interna, tal tratado internacional poderá ser denunciado. Depois, não sendo o tratado denunciado, estará o mesmo vigente no ordenamento jurídico pátrio e, por conta do art. 27 da Convenção de Viena, o Estado signatário não poderá justificar a não aplicação do tratado internacional por razões de direito interno. Por último, deve o tratado internacional ser interpretado de boa-fé, como também determina o art. 31 da Convenção de Viena, assim, caso o Estado brasileiro simplesmente promulgue uma lei com intenção de não respeitar um tratado internacional, não estará agindo de boa-fé. Portanto, não há como concordar com o entendimento do STF (que entende que os tratados comuns têm força de lei ordinária), uma vez que fica claro o entendimento de que o ordenamento brasileiro considera os tratados internacionais comuns com grau hierárquico superior à lei ordinária e apenas inferior à Constituição, conferindo-lhe status supralegal. Por sua vez, os tratados internacionais de direitos humanos devem ter interpretação diferenciada dos tratados internacionais comuns, uma vez que a cláusula de abertura de direitos fundamentais prevista no § 2º do art. 5º da CF possibilita que os tratados de direitos humanos, considerados direitos fundamentais, tenham status de norma constitucional. Apesar de tal entendimento não ser considerado pela jurisprudência por muitos anos, a EC 45/2004 possibilitou às normas internacionais de direitos humanos uma equiparação constitucional, caso fossem incorporados de acordo com o quórum específico de emenda constitucional. Tal previsão gerou mais polêmica, em vez de solucionar a questão definitivamente, isto porque nada falou à respeito dos tratados de direitos humanos aprovados antes da emenda 45/2004, bem como não mencionou sobre a possibilidade de aprovação dos tratados de direitos humanos sem a observância do quórum especial. 95 Com isso, o STF passou a discutir com mais frequência o status normativo dos tratados de direitos humanos, até mesmo porque há um conflito entre a Constituição Federal e a Convenção Americana de Direitos Humanos, uma vez que esta última não autoriza a prisão civil do depositário infiel, o que é permitido pela Constituição Federal. Após algumas decisões defendendo a tese da equiparação à lei ordinária e, consequentemente, possibilitando a prisão do depositário infiel, o Supremo Tribunal Federal passou a reanalisar sua jurisprudência, decidindo, por unanimidade, a impossibilidade da prisão do depositário infiel. Os fundamentos de tal entendimento é que foram diferentes. Enquanto o Ministro Gilmar Mendes defende a tese da supralegalidade, afirmando que a Convenção Americana possui “efeito paralisante” nas normas inferiores que o contradigam, o Ministro Celso de Mello defende a tese da constitucionalidade dos tratados de direitos humanos, de acordo com o § 2º do art. 5º da CF, bem como de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana e da primazia da norma mais favorável, também previstos constitucionalmente. A tese da supralegalidade e do “efeito paralisante” do Ministro Gilmar Mendes é bastante confusa sob o ponto de vista lógico-jurídico, não havendo como concordar com tal entendimento, isto porque, primeiro, desconsidera a força normativa da Constituição, depois porque não interpreta o texto constitucional de maneira sistemática, haja vista que existem outros argumentos mais coerentes e de simples entendimento para explicar a impossibilidade da prisão do depositário infiel, dentre eles a primazia da norma mais favorável ao ser humano. Assim, além de propor a tese do Ministro Celso de Mello sobre a constitucionalidade dos tratados de direitos humanos como a mais coerente, o presente trabalho defende, também, como o referido Ministro, a primazia da norma mais favorável ao ser humano, seja ela de direito interno ou de direito internacional. Desta maneira, como os tratados de direitos humanos são normas materialmente constitucionais devido à cláusula de abertura dos direitos fundamentais disposta no § 2° do art. 5° da CF, não há como, simplesmente, deixar de aplicar uma norma constitucional fundamental em detrimento de outra norma constitucional. Neste caso, especificamente com relação ao conflito entre a Convenção Americana e a Constituição Federal, como esta última, em seu art. 5º, inciso LXVII, possibilita a prisão do depositário infiel e a Convenção Americana não permite tal possibilidade, deve-se aplicar a norma mais benéfica, respeitando o preceito constitucional assegurado no art. 4º, II da CF, bem como em respeito à própria dignidade da pessoa humana, 96 princípio previsto no art. 1º, III da CF, não havendo que se falar em hierarquia de normas ou em critérios cronológico ou da especialidade para solucionar a antinomia. A interpretação que melhor representa a proteção dos direitos humanos e que, sem dúvidas, chega mais próximo de garantir a dignidade da pessoa humana é a que prima pela norma mais favorável ao ser humano. Pouco a pouco, tal entendimento vem se concretizando tanto na doutrina como na jurisprudência, apesar de ainda não ser majoritário, mas já é um verdadeiro alento para a efetiva proteção ao ser humano. Portanto, em que pese o entendimento majoritário do STF e do entendimento doutrinário de renomados constitucionalistas, não há como, simplesmente, desconsiderar o princípio da primazia da norma mais favorável que tem seu fundamento no primado da dignidade da pessoa humana, princípio este que é supremo e anterior ao próprio Estado. Outro exemplo de conflito, que para alguns é apenas aparente, é o conflito entre as normas do Estatuto de Roma e as normas constitucionais. Há doutrinadores que afirmam que as normas do Estatuto de Roma prevalecem mesmo quando a Constituição brasileira disponha de modo diverso, o que desrespeita os princípios supremos da Carta Magna brasileira. Dentre os principais conflitos, destaca-se o da entrega brasileiros natos ao TPI, o da prisão perpétua e o da imprescritibilidade, possibilidades todas previstas no Estatuto de Roma. Ora, não há como deixar de observar o que dispõe o texto constitucional que proíbe expressamente a extradição (ou entrega, como queiram) dos nacionais, que proíbe a prisão perpétua e que faz poucas ressalvas a crimes imprescritíveis, simplesmente, porque o Brasil se “submeteu” ao TPI. Não adianta afirmar que o conflito é apenas aparente. Pelo contrário, em uma situação concreta, o conflito salta aos olhos e, diante de tal possibilidade, deve-se respeitar o que dispõe a Constituição Federal, isto porque prevê expressamente o princípio da dignidade da pessoa humana e, em caso de conflito, prevê que a norma a ser aplicada deve ser a que assegure a primazia aos direitos humanos, seja norma interna ou internacional. Entender o contrário é retornar ao entendimento formalista clássico que apenas se preocupava com qual teoria deveria prevalecer. A valorização do ser humano está acima de qualquer formalidade. O ser humano é anterior a qualquer ordenamento seja nacional ou internacional, não podendo, assim, haver normas que não proporcionem dignidade para o ser humano, que o torne simplesmente um meio, quando, na verdade, sempre deverá ser considerado como um fim, como enunciou Kant no século XVIII. 97 REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988. ________. 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