tratados internacionais de direitos humanos no

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ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA DO ESTADO DO CEARÁ
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM DIREITO
CONSTITUCIONAL
CLAUDIO DE ALMEIDA MARTINS
TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS
NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E A
PRIMAZIA DA NORMA MAIS FAVORÁVEL AO SER
HUMANO
Fortaleza
2014
2
CLAUDIO DE ALMEIDA MARTINS
TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS
NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E A
PRIMAZIA DA NORMA MAIS FAVORÁVEL AO SER
HUMANO
Monografia apresentada ao Curso de
Especialização em Direito Constitucional da
Escola Superior da Magistratura do Estado do
Ceará (ESMEC), como requisito parcial para a
obtenção do Título de Especialista em Direito
Constitucional.
Orientador: Ms Bruno Cunha Weyne.
Fortaleza
2014
3
4
A Deus.
Aos meus pais, que sempre me
escutam e em tudo me apoiam.
A minha adorável avó Júlia, exemplo
de ser humano, sempre justa e
companheira, que sempre estará viva
em nossos corações.
A minha esposa Shirly, companheira
em todos os momentos.
Aos meus familiares, que sempre
acreditam e confiam em mim.
Aos meus verdadeiros amigos, que
considero extensão de minha família.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, criador de tudo, pois, sem ele, nada seria.
A minha mãe, exemplo de mulher, por sempre me incentivar e me acompanhar
nos estudos.
Ao professor Bruno Cunha Weyne, por aceitar a tarefa de orientação e pelo apoio
prestado na realização deste trabalho.
A Assessoria Pedagógica da ESMEC, por estar sempre presente e por orientar em
todas as dúvidas.
Ao professor Gustavo César Machado Cabral e à professora Ana Cristina Batista
Luz, por aceitarem participar da banca examinadora desta monografia.
6
Ages de tal maneira que uses a humanidade, tanto
na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro,
sempre e simultaneamente como fim e nunca
simplesmente como meio.
Immanuel Kant
7
RESUMO
Os tratados internacionais surgiram como forma de estreitar as relações entre os Estados
soberanos, dentre eles o Brasil que, por sua vez, ainda tem um ordenamento jurídico que
causa dúvidas no momento de incorporação de tais tratados ao ordenamento interno,
principalmente quando se refere à tratados de direitos humanos. Grande parte das discussões
e polêmicas em torno do tema abordado diz respeito, justamente, a forma de incorporação e
ao status hierárquico dado à norma internacional e, consequentemente, qual norma deverá
prevalecer em caso de conflito, se a interna ou a proveniente do tratado internacional. A
doutrina e a jurisprudência brasileira ainda não chegaram a um consenso, daí a importância da
presente pesquisa, a qual tem como objetivo geral demonstrar a interpretação que se deve dar
aos tratados de direitos humanos incorporados ao direito interno e, como objetivos
específicos, demonstrar os pontos controversos e a discussão atual sobre o tema, tanto na
doutrina como na jurisprudência, apontando a primazia da norma mais favorável ao ser
humano, em prol da dignidade da pessoa humana, como solução para tal polêmica. Para
atingir tais objetivos, o primeiro capítulo retratará os tratados internacionais de modo
genérico, dando ênfase à incorporação ao ordenamento interno, bem como sua hierarquia
normativa, abordando a clássica divisão teórica entre o dualismo e o monismo. No segundo
capítulo serão retratadas as questões gerais sobre direitos humanos e, em maior profundidade,
a incorporação dos tratados de direitos humanos, além da discussão a respeito do status
normativo de tais tratados. No terceiro e último capítulo serão analisados os possíveis casos
de conflitos entre a Constituição Federal e referidos tratados especiais, apontando a primazia
da norma mais favorável ao ser humano como solução para tais possíveis conflitos.
Palavras-chave: Tratados Internacionais. Direitos Humanos. Primazia da Norma mais
Favorável ao Ser Humano.
8
ABSTRACT
The international treaties have emerged as a way to strengthen the relations between
sovereign states, including Brazil which, by its turn, still has a legal system that causes doubts
at the time of incorporation of such treaties to domestic law, especially when it refers to the
human rights treaties. Much of the discussions and controversies around the addressed theme
concerns rightly to the form of incorporation and the hierarchical status given to the
international standard and consequently, which rule shall prevail in case of conflict, whether
internal or from the international treaty. The Brazilian doctrine and jurisprudence have not
reached a consensus yet, hence the importance of this research, which has as its general
objective to demonstrate the interpretation that should be given to human rights treaties
incorporated into domestic law and, as specific objectives, to demonstrate the controversial
points and the current discussion about the theme, both in doctrine and jurisprudence, pointing
the primacy of the rule more favorable to the human being, in favor of the dignity of the
human person, as a solution to this controversy. To achieve these goals, the first chapter will
portray the international treaties in general terms, emphasizing the incorporation into
domestic law as well as its normative hierarchy, addressing the classical theoretical division
between dualism and monism. In the second chapter will be portrayed general questions about
human rights and, in greater depth, the incorporation of human rights treaties, including
discussions about the normative status treaties. In the third and final chapter will be analyzed
the possible cases of conflicts between the Federal Constitution and mentioned special
treaties, pointing the primacy of the rule more favorable to human being as solution to the
potential conflicts.
Keywords: International Treaties. Human Rights. Primacy of the Standard More Favorable
to the Human Being.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................
10
1 TRATADOS INTERNACIONAIS................................................................................ 15
1.1 Conceito .....................................................................................................................
15
1.2 Relações do Direito Internacional com o Direito Interno...........................................
17
1.2.1 Dualismo..................................................................................................................
18
1.2.2 Monismo .................................................................................................................. 20
1.2.3 Sistema misto de incorporação dos tratados............................................................
23
1.2.4 Primazia da norma mais favorável ao indivíduo (ser humano)................................ 25
1.3 Incorporação e Hierarquia dos Tratados ao Ordenamento Interno
Brasileiro...........................................................................................................................
28
2 TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO...................................................................................................................
35
2.1 Direitos Humanos: Aspectos Gerais...........................................................................
36
2.2 Incorporação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ao Ordenamento
Jurídico Brasileiro.............................................................................................................
40
2.3 Hierarquia Normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no
Ordenamento Jurídico Brasileiro......................................................................................
45
2.4 Efeitos do art. 5º, § 3° da Constituição Federal e a Denúncia dos Tratados de
Direitos Humanos.............................................................................................................. 63
3 CONFLITO ENTRE TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS
HUMANOS E A ORDEM INTERNA BRASILEIRA: A PRIMAZIA DA NORMA
MAIS FAVORÁVEL AO SER HUMANO...................................................................... 72
3.1 Tribunal Penal Internacional (TPI) e o Ordenamento Jurídico brasileiro................... 83
CONCLUSÃO..................................................................................................................
93
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 97
10
INTRODUÇÃO
Os tratados internacionais de direitos humanos, no modelo atual, surgiram como
um legado da Declaração Universal de 1948. Por sua vez, tal Declaração Universal surgiu no
pós Segunda Guerra Mundial como forma de consolidação e de verdadeiro reconhecimento
dos direitos humanos, até mesmo em detrimento do velho conceito da soberania estatal
absoluta, visto que, até então, apenas os Estados eram reconhecidos como sujeitos de direito
internacional.
Assim é que os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos passaram
a ser genericamente e globalmente utilizados, para que tais direitos conquistados não ficassem
ao bel prazer da soberania de cada Estado, uma vez que tais tratados passaram a ser dotados
de mecanismos para a salvaguarda dos direitos humanos internacionalmente protegidos,
dentre eles a própria relativização da soberania estatal, visto serem admitidas intervenções no
plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos.
Apesar de a Declaração Universal datar de 1948, somente a partir 1985, com a
deflagração do processo de democratização do país, é que o Estado brasileiro passou a
ratificar tratados de direitos humanos. Assim, em 1989, já sob a égide da atual Constituição
brasileira, é que houve a ratificação do primeiro tratado de direitos humanos, qual seja: a
Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes. A partir
de então, vários outros tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo
Brasil.
Não obstante a Constituição da República de 1988 já assegurar, como princípio
orientador das relações internacionais, o primado da prevalência dos direitos humanos, bem
como já estabelecer a chamada “cláusula aberta” dos direitos fundamentais, a prática
brasileira da época, como forma de hierarquização das normas de qualquer tratado
incorporado ao ordenamento interno, seja de direitos humanos ou não, considerava-os como
norma ordinária, infraconstitucional, ou seja, de hierarquia inferior à Constituição.
Assim, os tratados internacionais, sejam de direitos humanos ou não, foram
considerados como lei ordinária, por grande parte da doutrina e da jurisprudência, até a
aprovação da chamada “Reforma do Judiciário”, oportunidade em que a emenda
constitucional n.º 45/2004 incluiu o § 3º ao artigo 5° do texto constitucional, conferindo status
de emenda constitucional aos tratados de direitos humanos, caso fossem aprovados com
quórum especial de emenda.
11
Com tal modificação, a discussão a respeito da hierarquia dos tratados de direitos
humanos aprovados antes da EC 45/2004 ganhou mais força, em vez de ser sanada, visto que
várias dúvidas surgiram a respeito, dentre elas, a questão do status normativo dos tratados de
direitos humanos aprovados antes da referida emenda. Outra dúvida diz respeito ao caso de
conflito entre tratados de direitos humanos aprovados na forma do artigo 5º, § 3º, da CF e
normas internas anteriormente já inseridas no ordenamento jurídico brasileiro: continuar-seiam se utilizando os critérios da especialidade ou cronológico?
Como exemplo prático, tem-se o Pacto São José da Costa Rica, ao qual o Brasil
aderiu em 1992. Em tal tratado, que é de direitos humanos, há menção apenas da prisão civil
por dívida alimentar, não prevendo, contudo, a prisão civil do depositário infiel, como
estabelece a Constituição brasileira. Pois bem, diante do caso concreto, tal tratado, anterior à
EC 45/2004, poderia ser aplicado em detrimento do texto constitucional, tendo em vista se
tratar de norma que privilegia os direitos humanos?
Desde o ano de 2007, o Supremo Tribunal Federal já decidiu de três formas
diferentes: primeiro equiparando os tratados de direitos humanos à lei ordinária; depois
considerando tais tratados como norma supralegal; e, ainda, equiparando-o à constituição
(constitucionalidade material).
Até 2007, o STF entendia majoritariamente que os tratados de direitos humanos
tinham status de lei ordinária, fundamentando-se, principalmente, no artigo 102, III, b da
Constituição Federal.
No entanto, com tal entendimento, o Brasil estaria sujeito a ser responsabilizado
internacionalmente pelo descumprimento de tratados de direitos humanos e por violar o
princípio da primazia de tais direitos nas relações internacionais. Assim, muito provavelmente
por pressão internacional, o STF passou a repensar seu posicionamento tradicional e,
buscando orientações no primado da proteção da dignidade humana, a nova visão da Corte
passou a ter dois novos posicionamentos: a supralegalidade, até então posição majoritária, e a
constitucionalidade das normas internacionais de direitos humanos, entendimento ainda
minoritário.
A tese da supralegalidade, capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes, fica bem
caracterizada em alguns julgamentos da Suprema Corte, dentre eles o paradigmático
julgamento do Recurso Extraordinário 466.343, de 03 de dezembro de 2008, no qual se
discute a possibilidade da prisão civil do depositário infiel em face do Pacto de São José, que
12
não alberga tal prisão. Com tal entendimento, o STF passou a considerar os tratados
internacionais com três hierarquias distintas. Os tratados de direitos humanos, aprovados na
forma de emenda, serão equivalentes às emendas constitucionais (CF, art. 5º, § 3º); os tratados
de direitos humanos, aprovados pelo procedimento ordinário (CF, art. 47), terão status
supralegal, situando-se em hierarquia inferior à Constituição e superior à legislação ordinária;
e, os tratados e convenções internacionais que não versem sobre direitos humanos ingressarão
no ordenamento jurídico brasileiro com força de lei ordinária. Este também é o entendimento
de grande parte da doutrina.
Apesar de tal entendimento ainda ser majoritário no STF e na doutrina
constitucionalista, outra corrente, capitaneada por vários autores internacionalistas e pelo
Ministro do STF Celso de Mello, entende que todos os tratados de direitos humanos seriam
materialmente constitucionais, ou seja, independentemente da forma de aprovação de tal
tratado internacional, apenas pelo fato de tratar sobre direitos humanos, de acordo com uma
interpretação sistemática do texto constitucional brasileiro, com a incorporação ao
ordenamento jurídico brasileiro, os tratados de direitos humanos passam a ter status
constitucional, não necessitando de quórum específico para atingir referido status. Tal
entendimento, bem caracterizado no habeas corpus 87.858-8/TO, de 26 de junho de 2009, já
foi parâmetro de algumas decisões no STF, no entanto, ainda em posição minoritária.
Diante de toda a discussão, dúvidas e polêmicas, a pesquisa sobre o assunto
poderá amadurecer ainda mais o debate, lembrando, ainda, de outros pontos pouco utilizados
e mencionados pela atual doutrina e pela jurisprudência, dentre eles o primado dos direitos
humanos nas relações internacionais, princípio este expressamente previsto no art. 4º, II do
texto constitucional brasileiro, bem como a própria dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da
CF), dentre outros princípios constitucionais implícitos que poderão ajudar a solucionar os
seguintes questionamentos: A posição majoritária atual a respeito da forma de incorporação
dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, bem como
a sua hierarquia normativa corresponde aos princípios garantidos pela Constituição da
República de 1988? Qual a posição do STF e da doutrina sobre o assunto atualmente? Como
a primazia da norma mais favorável ao ser humano poderá ser utilizada como regra
hermenêutica?
A justificativa do presente trabalho fica demonstrada pelo próprio assunto, haja
vista tratar de direitos humanos, tema que, por si só, tem seu grande valor de importância.
Ademais, será abordada uma das principais discussões atuais da Suprema Corte brasileira,
13
qual seja: o debate sobre a incorporação e hierarquia dos tratados de direitos humanos no
ordenamento jurídico brasileiro. Ainda assim, serão analisados, mesmo que brevemente, os
principais aspectos dos direitos humanos perante a comunidade internacional, bem como seus
reflexos no ordenamento jurídico do Brasil, procurando-se, ao final, debelar as principais
dúvidas sobre o assunto e afastar qualquer interpretação que desfavoreça a dignidade humana.
Tem-se, como objetivo geral, demonstrar a correta interpretação que se deve dar
aos tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao direito interno, qual seja:
status de norma constitucional, apontando a primazia da norma mais favorável ao ser humano
como regra hermenêutica para possíveis conflitos jurídicos. Como objetivos específicos têmse os seguintes: demonstrar a forma de incorporação dos tratados internacionais comuns e dos
tratados de proteção aos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, bem como a
hierarquia normativa de tais tratados; demonstrar os pontos controversos e a discussão atual
sobre o tema, demonstrando a correta interpretação que se deve dar ao assunto, de acordo com
uma interpretação sistemática do texto constitucional; demonstrar o entendimento sobre a
primazia da norma mais favorável ao ser humano como regra hermenêutica em prol da
dignidade da pessoa humana.
Em relação aos aspectos metodológicos, as hipóteses são investigadas através de
pesquisa bibliográfica e documental. No que tange à tipologia da pesquisa, esta é, segundo a
utilização dos resultados, pura, visto que é realizada apenas com o intuito de aumentar o
conhecimento, sem transformação da realidade. Segundo a abordagem, é qualitativa, com a
observação intensiva de determinados fenômenos sociais, até porque o critério não é
numérico. Quanto aos objetivos, a pesquisa é exploratória, definindo objetivos e buscando
maiores informações sobre o tema em questão, e descritiva, descrevendo fatos, natureza,
características, causas e relações com outros fatos.
Assim, de início, no primeiro capítulo serão analisados os tratados internacionais
de modo genérico, seu conceito, sua forma de incorporação ao ordenamento interno, bem
como sua hierarquia normativa, abordando-se, ainda, as principais teorias que rodeiam o
assunto, dentre elas a clássica divisão teórica entre o dualismo e o monismo.
No segundo capítulo, serão retratadas, inicialmente, as questões gerais sobre os
direitos humanos, dentre elas sua conceituação e características. Em seguida, será analisada a
incorporação dos tratados de direitos humanos, além da discussão a respeito do status
normativo de tais tratados, bem como sobre a correta interpretação que se deve dar ao novo §
3º do artigo 5º da Constituição Federal.
14
No terceiro e último capítulo, será confirmada a hierarquia normativa que se deve
dar aos tratados de direitos humanos, sendo analisados os possíveis casos de conflitos entre a
Constituição Federal e os tratados de direitos humanos, apontando-se como solução para tal
conflito a primazia da norma mais favorável ao ser humano.
O ponto alto e principal do presente trabalho é, então, demonstrar que a primazia
da norma mais favorável ao ser humano deve ser utilizada como método hermenêutico para a
solução dos possíveis conflitos entre a norma interna e a norma internacional, fazendo
prevalecer, no caso concreto, a norma que mais favoreça e dignifique o homem, seja ela
interna ou internacional.
15
1 TRATADOS INTERNACIONAIS
Os tratados internacionais são a principal fonte de obrigação do direito
internacional, tanto que houve a chamada Convenção de Viena de 1969, que dispõe sobre
métodos para elaboração de tratados. Daí se poder afirmar que tratado é fonte do Direito, até
mesmo porque deverá ser respeitado pelos Estados signatários, não apenas no âmbito
internacional, mas também internamente.
Justamente devido a tal obrigação de respeito aos tratados aderidos pelos
respectivos Estados signatários, seja internamente ou internacionalmente, é que se visualizam
grandes polêmicas sobre o estudo de tal instituto, principalmente quando o tema é tratados
internacionais de proteção aos direitos humanos.
Assim, neste capítulo, até mesmo para uma melhor investigação do trabalho, fazse necessário conceituar os tratados internacionais, bem como verificar, de maneira sucinta, a
relação entre o direito internacional e direito interno, juntamente com sua incorporação e
hierarquia no ordenamento jurídico brasileiro.
1.1 Conceito
Classicamente, o conceito de tratados parte da definição dada pela Convenção de
Viena de 1969, que começou a vigorar internacionalmente apenas em 27 de janeiro de 1980,
quando, nos termos de seu artigo 84, atingiu-se o quórum mínimo de trinta e cinco Estadospartes. Segundo o artigo 2º, § 1º, a, de tal Convenção, tratado “significa um acordo
internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer
conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que
seja sua denominação específica”1.
É importante salientar que a Convenção de Viena foi ratificada pelo Brasil no dia
14 de dezembro de 2009, por meio do Decreto Executivo n.º 7.030/2009, ato que promulgou,
com reservas ao artigo 25 e 66, o Decreto Legislativo n.º 496/2009, no qual já havia aprovado
a incorporação de tal Convenção desde 17 de julho de 2009. Eis uma grande vitória do Direito
1
BRASIL. Decreto Presidencial n.° 7.030 de 14 de dezembro de 2009. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7030.htm>. Acesso em 23 set. 2013.
16
Internacional, visto que a aprovação da Convenção de Viena já estava na “ordem do dia” do
Congresso Nacional para a devida apreciação desde outubro de 1995.
Apesar da demora na ratificação da Convenção de Viena, esta consagra várias
normas costumeiras, por isso, mesmo sem a devida ratificação pelo Brasil, até então, sua
aplicação no ordenamento interno brasileiro não era tida como problema.
Pois bem, para o professor Paulo Henrique Gonçalves Portela, “os tratados são
acordos escritos, firmados por Estados e organizações internacionais dentro dos parâmetros
estabelecidos pelo Direito Internacional Público, com o objetivo de produzir efeitos jurídicos
no tocante a temas de interesse comum”2.
Na definição de Louis Henkin, lembrando ainda de outras denominações dada aos
tratados:
O termo ‘tratado’ é geralmente usado para se referir aos acordos obrigatórios
celebrados entre sujeitos de Direito Internacional, que são regulados pelo Direito
Internacional. Além do termo ‘tratado’, diversas outras denominações são usadas
para se referir aos acordos internacionais. As mais comuns são Convenção, Pacto,
Protocolo, Carta, Convênio, como também Tratado ou Acordo Internacional. Alguns
termos são usados para denotar solenidade (por exemplo, Pacto ou Carta) ou a
natureza suplementar do acordo (Protocolo)3.
De acordo com as definições acima mencionadas, conclui-se que tratado é
instrumento regido pelas normas de Direito Internacional Público, sendo um acordo formal,
por ser escrito, entre dois ou mais Estados, ou seja, podendo ser bilateral ou multilateral,
sendo hábil para produzir efeitos jurídicos.
Diante dessas conclusões e em decorrência da própria natureza jurídica do tratado
é que se visualiza tal instituto não apenas como fonte de Direito Internacional, mas também
como fonte do próprio Direito positivo interno, haja vista sua possibilidade de ingresso no
ordenamento interno do Estado. Ademais, é importante lembrar que os tratados internacionais
geram efeitos jurídicos, podendo criar ou extinguir direitos e obrigações, ensejando, inclusive,
responsabilização internacional pelo seu descumprimento.
2
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado. 2. ed. Salvador: Juspodivm,
2010, p. 83.
3
HENKIN, Louis apud PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11.
ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 44.
17
1.2 Relações do Direito Internacional com o Direito Interno
As controvérsias e discussões a respeito dos reflexos do Direito Internacional no
Direito Interno de cada Estado soberano parece não ter fim. Tais controvérsias surgem,
principalmente, a partir das discussões sobre tratados internacionais.
Pois bem, após a assinatura do tratado perante a comunidade internacional, tal ato
passa a ter reflexo no Direito interno do respectivo Estado. É nesta relação entre direito
interno e internacional que pode surgir um conflito entre os preceitos de Direito Internacional
e de Direito interno.
A referida relação é tradicionalmente analisada pela doutrina sob o aspecto de
duas grandes teorias, o dualismo e o monismo. Lembra, ainda, o professor Paulo Henrique
Gonçalves Portela, que, devido à emergência de certos ramos do Direito das Gentes, surgem
outras possibilidades de solução de conflitos, como a primazia da norma mais favorável ao
indivíduo, que prevalece dentro do Direito Internacional de Direitos Humanos4.
Valerio de Oliveira Mazzuoli demonstra bem tal problemática quando afirma:
A grande discussão que ainda se trava consiste em saber se, após a ratificação de um
tratado, seria necessária a edição de ato com força de lei materializando
internamente o conteúdo do instrumento ratificado, ou se seria dispensável a
sistemática de incorporação legislativa para a efetiva execução interna do tratado
internacional. Tormentosa fica também a questão relativa ao conflito entre tratados
internacionais e leis internas, bem como qual das normas deverá prevalecer em caso
de confronto5.
Importante ressaltar que há doutrinadores, dentre eles, Flávia Piovesan, André
Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, que defendem que o Brasil haveria adotado um
sistema misto de incorporação dos tratados, por adotar critérios diferentes na incorporação dos
tratados tradicionais com relação aos tratados de direitos humanos6. Valerio de Oliveira
Mazzuoli, também concorda com tal entendimento, no entanto, passou a chamar tal sistema
de “sistema único diferenciado”7.
4
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 50.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito Internacional Público: Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008, p.72.
6
Cf. PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 93.
7
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos e sua
Incorporação no Ordenamento Brasileiro. Disponível em: <http://www.mt.trf1.gov.br>. Acesso em 15 de
ago. 2013, p. 11.
5
18
Demonstrando o quando é polêmico o assunto, Pedro Baptista Martins afirmou:
“Nenhum dos problemas jurídicos da atualidade avantaja-se em importância teórica ou
política ao das relações entre o direito interno e o direito internacional”8.
Observa-se que, devido às discussões e teorias sobre a relação entre direito
internacional e direito interno, realmente, o assunto gera muitas controvérsias, não se
chegando a um consenso na doutrina internacionalista até a atualidade. Em seguida serão
verificadas as teorias sobre o assunto, acima apontadas.
1.2.1
Dualismo
Para a corrente dualista, o Direito Internacional e o Direito Interno são duas
ordens legais distintas, totalmente independentes uma da outra, visto que uma trata da ordem
externa, e a outra, da interna. Por conta da independência entre referidas normas, estas não
teriam como conflitar uma com a outra.
De acordo com tal corrente, o Direito Internacional e o Direito Interno nunca
entrariam em conflito, visto que o Direito Internacional apenas poderia ingressar no
ordenamento doméstico caso seja incorporado ao mesmo, sendo “transformado” em lei
nacional, mediante um procedimento específico que o adapte à norma interna do respectivo
Estado. Ademais, o Direito Internacional regularia as relações entre os Estados, enquanto o
Direito Interno se destinaria a regular a conduta com os indivíduos.
Celso D. de Albuquerque Mello lembra que o primeiro estudo sobre o dualismo
fora realizado por Heinrich Triepel, em 1899. Segundo tal autor, Triepel afirmava que o
Direito Internacional e o Direito Interno seriam noções diferentes e independentes, não
possuindo qualquer área em comum, havendo três diferenças entre as duas ordens jurídicas. A
primeira seria “as relações sociais”, argumentando que, na ordem internacional, o Estado seria
o único sujeito de direito, enquanto, na ordem interna aparece, o homem também como sujeito
de direito. A segunda diferença estaria relacionada às fontes nas duas ordens jurídicas, sendo
que o Direito Interno seria o resultado da vontade de um Estado, enquanto o Direito
Internacional teria como fonte a vontade coletiva dos Estados, manifestando-se nos tratados e
8
MARTINS, Pedro Baptista apud MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais (com
comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 206.
19
costumes internacionais. A última diferença estaria relacionada à estrutura, a interna estaria
baseada em um sistema de subordinação e a internacional na coordenação9.
Sintetizando bem a concepção dualista, Valerio de Oliveira Mazzuoli afirma:
Esta concepção dualista de que o direito internacional e do direito interno são ordens
jurídicas distintas e independentes uma da outra emana do entendimento de que os
tratados internacionais representam apenas compromissos exteriores do Estado,
assumidos por Governos na sua representação, sem que isso possa influir no
ordenamento interno desse Estado, gerando conflitos insolúveis dentro dele. Ou seja,
os dois sistemas são mutuamente excludentes, não podendo um interferir no outro
por qualquer motivo.[...]
Por esse motivo é que, para os dualistas, esses compromissos internacionalmente
assumidos não podem gerar efeitos automáticos na ordem jurídica interna, se todo o
pactuado não se materializar na forma de diploma normativo típico interno com uma
lei, um decreto, um regulamento, ou algo do tipo. É dizer, a norma internacional só
vale quando recebida pelo direito interno, não operando a simples ratificação essa
transformação. Neste caso, havendo conflito de normas, já não mais se trata de
contrariedade entre o tratado e a norma de direito interno, mas entre duas
disposições nacionais, uma das quais internalizou a norma convencional10.
Pois bem, observa-se que, de acordo com tal teoria, não há como haver conflitos
entre o Direito Internacional e Direito Interno. Na verdade, segundo o dualismo, não há que se
falar em conflito de norma internacional e doméstica, mas sim de conflito apenas de normas
nacionais, pois tal norma deve ser “internalizada” formalmente pelo Direito Interno por meio
de lei interna e distinta.
Valerio Mazzuoli lembra, ainda, que no Brasil, há dois modelos de dualismo, o
radical e o moderado. No primeiro, haveria a necessidade de edição de uma lei distinta para a
incorporação do tratado à ordem interna. No segundo modelo, a incorporação não necessitaria
de lei, apesar de necessitar de um procedimento complexo, com aprovação do Congresso
Nacional e promulgação executiva11.
A teoria do dualismo moderado, como se observa, assemelha-se bastante ao atual
modelo brasileiro, pelo menos no caso dos tratados internacionais comuns (que não dizem
respeito à proteção dos direitos humanos), visto que, após a aceitação do tratado comum no
âmbito internacional, para que tal ato seja incorporado, deverá haver aprovação pelo
Congresso Nacional e, posteriormente, o Presidente da República deverá promulgar um
9
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 12. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2000, p.109-110.
10
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito Internacional Público: Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008, p.73.
11
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de
1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 212.
20
decreto. Na prática brasileira, até então, não é necessário um projeto de lei interna discutindo
o conteúdo do tratado internacional comum, bastando apenas sua incorporação ao
ordenamento interno por meio de procedimento específico que, normalmente, inclui apenas a
aprovação do parlamento e, em seguida, a ratificação do Chefe de Estado.
A teoria dualista é bastante criticada. A principal crítica que se faz a tal corrente é
que esta simplesmente despreza o indivíduo como sujeito internacional. Além desta crítica,
Celso D. de Albuquerque Mello aponta várias outras:
É o dualismo passível de uma série de críticas: a) o homem é também sujeito
internacional, uma vez que tem direitos e deveres outorgados diretamente pela
ordem internacional; b) o direito não é produto da vontade nem de um Estado, nem
de vários Estados [...]; c) Kelsen observa que coordenar é subordinar a uma terceira
ordem; assim sendo, a diferença entre as duas ordens não é de natureza, mas de
estrutura, isto é, uma simples ‘diferença de grau’; d) o DI consuetudinário é
normalmente aplicado pelos tribunais internos sem que haja qualquer transformação
ou incorporação; e) quanto à escola italiana, que sustenta que o DI se dirige apenas
ao Estado e não ao seus direito interno, podemos endossar a opinião de Rolando
Quadri, que observa não ser ‘possível dissociar o Estado do seu ordenamento’; f)
pode-se acrescentar a observação de P. Paone de que o dualismo no DI está sempre
ligado à sua concepção como sistema privatístico12.
Outro crítico de renome à teoria dualista é Hans Kelsen, afirmando ser esta
insustentável. Primeiro porque o direito interno também é plural; segundo, porque tanto as
normas de direito internacional como as das ordens jurídicas internas devem ser consideradas
como normas simultaneamente válidas, e válidas de igual modo como normas jurídicas e, por
conta disso, não pode haver conflitos entre tais ordens, visto que ambas se apoiam sobre a
vontade de um mesmo Estado, gerador de uma unidade jurídica entre si13.
Apesar da teoria dualista moderada, aparentemente, ser aplicada ao ordenamento
jurídico brasileiro, mais parece que ela, por si só, é insuficiente à realidade atual do Direito
pátrio, como será analisado no decorrer do presente trabalho.
1.2.2
Monismo
A concepção monista é justamente o contraponto da teoria dualista, ou seja, tem
como principal fundamento a unidade das normas jurídicas. A referida teoria sustenta a tese
12
MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., p. 110-111.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998, p. 230-231.
13
21
que há apenas uma ordem jurídica, com normas interligadas na ordem externa e interna. Desta
forma, não seria necessária a elaboração de uma nova norma para que o tratado fosse
incorporado.
Valerio Mazzuoli afirma que, segundo a teoria monista, não se faz necessário um
novo diploma legal que transforme a norma internacional em regra a ser aplicada
internamente, visto que, se um Estado assina e ratifica um tratado internacional, é porque está
se comprometendo juridicamente a assumir um compromisso que envolve direitos e
obrigações que podem ser exigidos no âmbito interno14.
Assim, de acordo com a doutrina monista, as ordens jurídicas interna e externa
coexistem, no entanto, tal teoria deixa margem às dúvidas sobre qual ordem normativa
deveria prevalecer para o caso de conflito entre as normas. Diante disso, a teoria monista se
subdividiu em duas vertentes: o monismo internacionalista e o monismo nacionalista.
No monismo internacionalista, há a sustentação de uma unicidade da ordem
jurídica com o primado do direito externo, ou seja, o direito interno deriva do direito
internacional, sendo este último com hierarquia jurídica superior ao direito interno. Celso D.
de Albuquerque Mello lembra que a referida teoria foi desenvolvida, principalmente por
Kelsen, ao formular a teoria pura do direito, oportunidade em que enunciou a pirâmide de
normas. Segundo o referido autor, Kelsen, inicialmente chegou a sustentar a inexistência de
conflitos entre as normas interna e internacional, em seguida, passou a admitir a possibilidade
de conflitos entre as duas ordens jurídicas, no entanto, tal possibilidade não quebra a unidade
do sistema jurídico, da mesma forma que um conflito entre a lei e a Constituição não quebra a
unidade do direito estatal15.
Celso D. de Albuquerque Mello completa, assegurando a primazia do direito
internacional:
O importante é a predominância do DI, que ocorre na prática internacional, como se
pode demonstrar com duas hipóteses: a) uma lei contrária ao DI dá ao Estado
prejudicado o direito de iniciar um ‘processo’ de responsabilidade internacional; b)
uma norma internacional contrária à lei interna não dá ao Estado direito análogo ao
da hipótese anterior.
Podemos citar ainda em favor do monismo com primazia do DI a formação de uma
nova fonte formal na nossa matéria: a lei internacional. Esta, muitas vezes, se dirige
diretamente ao indivíduo sem que haja transformação em lei interna16.
14
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p.73.
MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., p.112.
16
Idem, Ibidem,, p.112.
15
22
Na vertente monista, há ainda a teoria do monismo moderado, sustentando que
caso haja norma interna contraria à norma internacional, aquela terá sua validade no âmbito
interno, no entanto, o Estado signatário será responsabilizado internacionalmente pelo
descumprimento da norma Internacional. Assim, no caso concreto, de acordo com tal
vertente, deve-se aplicar tanto o direito internacional como o direito interno, mas de acordo
com o que está expresso no ordenamento interno, aplicando-se o critério cronológico no caso
de conflito entre as normas interna e externa.
Celso D. de Albuquerque Mello lembra que a principal crítica que se faz ao
monismo internacional é que tal teoria não corresponde à História, que ensina ser o Estado
anterior ao Direito Internacional. Logo em seguida, o referido autor destaca a defesa de tal
teoria:
Os monistas respondem que sua teoria é ‘lógica’ e não histórica. Realmente, negar a
superioridade do DI é negar a sua existência, uma vez que os Estados seriam
soberanos absolutos e não estariam subordinados a qualquer ordem jurídica que lhes
fosse superior.
O argumento invocado pelos dualistas, em favor da independência das duas ordens
jurídicas, dizendo que uma norma interna só pode ser revogada por um
procedimento de Direito Interno, cai por terra ao observarmos que isto ocorre porque
o contencioso internacional é de reparação e não de anulação. Tal fato se dá em
virtude do próprio DI e não por causa de uma completa independência ou autonomia
do ordenamento interno17.
Segundo Valerio Mazzuoli, o Brasil, no que diz respeito aos tratados
internacionais de direitos humanos, de acordo com o § 2°, do art. 5° da Constituição Federal,
adotou o monismo internacionalista, visto que a Constituição brasileira contém um preceito
que assegura o direito internacional de direitos humanos como parte integrante do direito
interno, com status de norma constitucional18.
Para a vertente do monismo nacionalista, o Direito Interno prevalece, em razão do
valor absoluto da soberania de cada Estado. Assim, as normas internas seriam superiores às
normas externas, além disso, os Estados apenas se vinculariam às normas que fossem
anteriormente consentidas. Deste feita, tal teoria aceita a integração da norma externa à norma
interna, mas apenas com o primado da ordem interna, valendo tal integração apenas em grau
17
MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., p.112-113
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de
1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 224.
18
23
hierárquico inferior à norma interna. Tal teoria tem poucos adeptos, talvez por estar
influenciada pela filosofia de Hegel, que é fundada em uma soberania absoluta do Estado.
Por fim, Valerio Mazzuoli lembra que a questão envolvendo a doutrina dualista e
monista é importante na prática, visto que, através de tal discussão, pode-se saber se o Estado
deve ou não invocar o seu ordenamento jurídico interno para deixar de aplicar o que foi
acordado internacionalmente. Segundo o referido autor, a resposta a tal questão prática é
negativa, pois, conforme o art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, bem
como pelos reiterados pronunciamentos da Corte Internacional de Justiça, o Estado não pode
invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado19.
1.2.3
Sistema misto de incorporação dos tratados
Para o professor Paulo Portela, cada Estado é livre para aderir qualquer teoria
(monista ou dualista), de acordo com sua ordem constitucional ou jurisprudencial, podendo,
inclusive, inovar ou mesclar o entendimento de tais teorias20.
Pois bem, é exatamente a partir de tal possibilidade, que se afirma existir uma
teoria mista, mesclando a teoria dualista e a monista. No entanto, é importante observar que
tal sistema misto não se encaixa em uma concepção nova na relação entre direito interno e
direito internacional. Na verdade, o que há é apenas uma observação feita por autores
internacionalistas brasileiros que afirmam que o Brasil teria adotado um sistema misto, haja
vista se utilizar de parâmetros da teoria monista internacionalista e da teoria dualista.
Valerio Mazzuoli, apesar de se filiar à doutrina monista internacional, menciona
que o Brasil teria adota um sistema único diferenciado (sistema misto), visto que, conforme
interpretação constitucional (artigo 5º, § 1º da CF), não haveria a necessidade de decreto de
execução presidencial para que os tratados de direitos humanos sejam incorporados ao
ordenamento brasileiro, bastando apenas a aprovação congressual, diferentemente dos
19
Cf. Ibid. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2004, p. 228; Ibid. Direito Internacional Público: Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008, p.76.
20
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 53.
24
tratados comuns, que além da aprovação do congresso, necessitam de uma ratificação
presidencial feita por meio de decreto21.
Flávia Piovesan, da mesma forma, afirma que o Direito brasileiro optou por um
sistema misto de incorporação de tratados. A referida autora, explica tal sistema misto de
acordo com os ensinamentos de André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros. Segundo estes
últimos, no sistema misto, o Estado não reconhece a vigência automática de todo o Direito
Internacional, mas apenas para certas matérias, umas vigorando no direito interno
independentemente de “transformação” e outras apenas mediante “transformação”. Por fim,
tais autores afirmam que o referido sistema é conhecido como sistema da cláusula geral da
recepção semiplena, tendo em vista ser resultado da adoção cumulativa das concepções
monistas e dualistas22.
A partir de então, afirma Flávia Piovesan:
[...] conclui-se que o Direito brasileiro faz opção por um sistema misto, no qual os
tratados internacionais de proteção dos direitos humanos – por força do art. 5°, §1° –
aplica-se a sistema de incorporação automática, enquanto aos demais tratados
internacionais se aplica a sistemática de incorporação legislativa, na medida em que
se tem exigido a intermediação de um ato normativo para tornar o tratado
obrigatório na ordem interna. Com efeito, salvo na hipótese de tratado de direitos
humanos, no Texto Constitucional não há dispositivo que enfrente a questão da
relação entre o Direito Internacional e o interno. Isto é, não há menção expressa a
qualquer das correntes, seja à monista, seja à dualista. Por isso, a doutrina
predominante tem entendido que, em face do silêncio constitucional, o Brasil adota a
corrente dualista [...]. Embora seja essa a doutrina predominante, este trabalho
sustenta que tal interpretação não se aplica aos tratados de direitos humanos, que,
por força do art. 5º, §1°, têm aplicabilidade imediata. [...]. Logo, defende-se que a
Constituição adota um sistema jurídico misto, já que, para os tratados de direitos
humanos, acolhe a sistemática da incorporação automática, enquanto para os
tratados tradicionais acolhe a sistemática da incorporação não automática23.
Tayara Talita Lemos explica que tal sistema misto não é adotado pelo Judiciário
brasileiro, uma vez que este não reconhece, até então, a incorporação automática e
aplicabilidade imediata dos tratados de direitos humanos24.
De fato, até o momento, a jurisprudência brasileira adota entendimento de
incorporação de tratados internacionais semelhante ao entendimento da autora acima
21
Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos e
sua Incorporação no Ordenamento Brasileiro. Disponível em: <http://www.mt.trf1.gov.br>. Acesso em 15
ago. 2013, p. 11.
22
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 93.
23
Idem, Ibidem, p. 91-92.
24
LEMOS, Tayara Talita, A emenda constitucional 45/04 e as alterações na recepção dos tratados
internacionais de direitos humanos. Disponível em: <http://www.cedin.com.br>. Acesso em 22 ago. 2013, p.
16.
25
mencionada, haja vista não reconhecer a incorporação automática dos tratados de proteção aos
direitos humanos, exigindo que tais tratados sejam incorporados mediante decreto
presidencial.
1.2.4
Primazia da norma mais favorável ao indivíduo (ser humano)
A primazia da norma mais favorável surgiu como caminho alternativo às teorias
dualista e monista, visto que a doutrina não é totalmente satisfeita com a clássica divisão, pois
tais teorias abordam apenas aspectos formais e acabam por deixar de lado aspectos materiais,
ou seja, não discutem o conteúdo das normas em conflito, sequer ponderam qual valor deve
prevalecer, apenas seguem uma linha formal de pensamento preestabelecido.
O professor Paulo Portela25 menciona que o dualismo e o monismo enfatizam
apenas questões formais, desconsiderando a relevância do valor que a norma pretende
proteger, possibilitando que um preceito legal possa deixar de ser aplicado simplesmente por
não se adequar ao entendimento de uma determinada teoria.
A partir de tal entendimento é que se defende cada vez mais o princípio da
primazia da norma mais favorável ao indivíduo, tendo como principal fundamento a
dignidade da pessoa humana, valor este consagrado pela Constituição brasileira. Devido a tal
proteção constitucional é que muitos doutrinadores, fazendo interpretação sistemática da
Constituição de 1988, defendem que a primazia da norma favorável deve prevalecer quando
houver conflitos entre tratados de direitos humanos e a norma interna.
Antônio Augusto Cançado Trindade sintetiza bem a questão ao afirmar:
No presente domínio de proteção, não mais há pretensão de primazia do direito
internacional ou do direito interno, como ocorria na polêmica clássica e superada
entre monistas e dualistas. No presente contexto, a primazia é a da norma mais
favorável às vítimas, que melhor as proteja, seja ela norma de direito internacional
ou de direito interno26.
25
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 53.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional de Direitos Humanos. 2. ed.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, v. 1, p. 542.
26
26
Assim, o princípio da primazia da norma favorável não discute qual norma deve
prevalecer, se a nacional ou a internacional, mas sim qual norma protegerá mais a pessoa
humana.
André de Carvalho Ramos explica que a primazia da norma mais favorável foi
desenvolvida pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, justamente como forma de
solucionar eventual conflito entre a norma interna e a norma internacional27. O referido autor
explicar que a primazia da norma mais favorável é aplicada no ordenamento interno devido
haver previsão internacional em tratados de direitos humanos:
A chamada primazia da norma mais favorável significa que deve ser aplicada pelo
intérprete necessariamente a norma que mais favoreça o indivíduo. Assim, a
primazia da norma mais favorável nos leva a aplicar quer a norma internacional,
quer a norma interna, a depender de qual seja mais favorável ao indivíduo.
Cabe lembrar que tal princípio é verdadeiro dispositivo convencional internacional,
ou seja, é cláusula prevista em tratado internacional. Com efeito, o princípio da
norma mais favorável é regra tradicional insculpida nos tratados internacionais de
Direitos Humanos e consiste na impossibilidade de se invocar uma norma
internacional para reduzir direitos já garantidos em outros tratados ou mesmo na
legislação interna. [...]
É o próprio Direito Internacional, por meio de cláusulas previstas em tratados
internacionais, que possibilita a aplicação de norma interna, desde que mais
favorável ao indivíduo. De fato, essa cláusula de ‘primazia da norma mais favorável’
é assaz comum em tratados de Direitos Humanos, nos quais firma-se, em geral, que
as disposições da referida convenção não poderão ser utilizadas como justificativa
para a diminuição ou eliminação de maior proteção oferecida por outro tratado.
Como exemplo, lembro que tal cláusula é encontrada no art. 5. 2 do Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), no art. 5.o do Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no art. 60 da
Convenção Europeia de Direitos Humanos e no art. 29, b da Convenção Americana
de Direitos Humanos28.
Segundo o entendimento de tal autor, a aplicação da primazia da norma mais
favorável encontra seu principal fundamento no próprio Direito Internacional, uma vez que o
sistema de proteção aos direitos humanos não possibilita que tratados ou leis posteriores
sejam utilizadas como justificativa para a diminuição ou eliminação de um direito já
consagrado ou de maior proteção conferida por outro tratado.
No ordenamento brasileiro, a primazia da norma mais favorável encontra guarida
no art. 4º, II da CF, ao estabelecer, como princípio, a prevalência dos direitos humanos nas
relações internacionais. Ademais a aplicação de referido princípio também se justifica pela
previsão constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Assim, o próprio texto
27
RAMOS, André de Carvalho. Supremo Tribunal Federal Brasileiro e o Controle de Convencionalidade:
Levando a Sério os Tratados de Direitos Humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo. v. 104, p. 241-286, jan./dez. 2009, p. 254.
28
RAMOS, André de Carvalho, op. cit., p. 255.
27
constitucional estabelece a aplicação da primazia da norma mais favorável, como bem explica
Valério de Oliveira Mazzuoli:
Um dos princípios constitucionais expressamente consagrados pela Magna Carta, o
qual, inclusive, é norteador da República Federativa do Brasil, é o princípio
da prevalência dos direitos humanos (CF, art. 4.º, II), que, aliás, aparece pela
primeira vez em uma Constituição brasileira, como princípio fundamental a reger as
relações internacionais do Estado brasileiro. Ora, se é princípio da República
Federativa do Brasil a prevalência dos direitos humanos, a outro entendimento não
se pode chegar, senão o de que todos tratados internacionais de direitos
humanos terão prevalência, no que forem mais benéficos, às normas constitucionais
em vigor. [...]
Dessa forma, com base na própria Carta da República, deve-se entender que, em se
tratando de direitos humanos provenientes de tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte, há de ser sempre aplicado, no caso de
conflito entre o produto normativo convencional e à Lei Magna Fundamental, o
princípio da primazia da norma mais favorável às vítimas, princípio este defendido
com veemência pelo Professor Cançado Trindade, e expressamente assegurado pelo
artigo 4º, II da Constituição Federal. Em outras palavras, a primazia é da norma que,
no caso, mas protege os direitos da pessoa humana29.
Desta maneira, verifica-se que a primazia da norma mais favorável ao ser humano
advém tanto de cláusulas de tratados internacionais de direitos humanos, bem como, no caso
do Brasil, do próprio texto constitucional. Tal previsão constitucional reflete a necessária
interação entre direito interno e direito internacional quando se trata de proteção aos direitos
humanos.
Diante disso, o presente trabalho tentará demonstrar que tal princípio deve ser
aplicado independentemente de qualquer teoria, até mesmo porque a teoria dualista e a teoria
monista ensejam muitas controvérsias e polêmicas, mas com pouco efeito prático na realidade
atual. Por isso é que se faz necessário que a primazia da norma mais favorável ao indivíduo
seja aplicada, quer seja a norma interna ou internacional, e não apenas devido a fundamentos
doutrinários “mirabolantes”, mas devido ao próprio fundamento constitucional brasileiro
vigente.
29
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. A influência dos tratados internacionais de proteção aos direitos
humanos no direito interno brasileiro e a primazia da norma mais favorável como regra de hermenêutica
internacional. Disponível em: <www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista53/influencia.htm>.
Acesso em 21 ago. 2013.
28
1.3 Incorporação e Hierarquia dos Tratados Internacionais no Ordenamento Interno
Brasileiro
O presente trabalho não pretende detalhar todo o processo de formação e
incorporação dos tratados internacionais comuns, no entanto, para um melhor entendimento
sobre as peculiaridades dos tratados de proteção aos direitos humanos e, em consequência,
possibilitar uma melhor análise sobre a aplicação da primazia da norma mais favorável ao ser
humano, é importante mencionar breves comentários sobre a forma de incorporação dos
tratados internacionais (tradicionais ou comuns) ao ordenamento brasileiro, bem como qual
seus status normativo na ordem interna brasileira.
Importante destacar que a incorporação dos tratados no ordenamento interno do
país signatário poderá variar de acordo o modelo adotado pelo respectivo Estado, sendo que,
em alguns países, a mera assinatura do tratado já o insere como norma a ser seguida no
ordenamento interno e, em outros países, é necessário um procedimento mais burocrático,
com a participação do Executivo e do Legislativo.
Não obstante, o problema do ingresso do tratado como norma jurídica interna
passa a ser a definição do status hierárquico que tal norma terá na ordem interna. Eis a grande
polêmica sobre tratados, principalmente quando versam sobre direitos humanos.
Pois bem, a prática brasileira exige um processo formal no qual tanto o Poder
Executivo como o Poder Legislativo participem para a devida aprovação e posterior
promulgação do tratado internacional.
Três dispositivos constitucionais abordam sobre a aprovação de tratados
internacionais. O artigo 21, I da Constituição Federal prevê que compete a União manter
relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais. Por sua vez, o
artigo 84, VIII da CF afirma que cabe, privativamente, ao Presidente da República celebrar
tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional. Por
último, o artigo 49, I da CF dispõe que cabe ao Congresso Nacional resolver definitivamente
sobre tratados, acordos ou atos internacionais30.
30
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado, 1988.
29
Como se verifica, tais dispositivos constitucionais não deixam bem claro todo o
procedimento de aprovação dos tratados internacionais, apenas cravam a obrigatoriedade de
participação do Executivo e do Legislativo.
Com a falta de clareza de tais dispositivos, o STF acabou tendo que se manifestar
sobre o assunto. Assim, conforme a ADI-1480/DF, reconheceu-se que o procedimento de
internalização do tratado no Brasil é ato complexo:
O exame da vigente Constituição Federal permite constatar que a execução dos
tratados internacionais e sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no
sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da
conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve,
definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos
internacionais (CF, art. 49, I) e a do Presidente da República, que, além de poder
celebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe –
enquanto Chefe de Estado que é – da competência da promulgá-los mediante
decreto31.
Portanto, de acordo com o STF e de acordo com a prática brasileira de
incorporação dos tratados, após o cumprimento de todas as fases e procedimentos
internacionais para a elaboração de um tratado, dentre eles a negociação e assinatura – ato
este que compete ao Presidente da República ou a outras autoridades relacionadas às relações
exteriores ou ainda às autoridades delegadas pelo Presidente da República – tal tratado é
encaminhado ao Congresso Nacional para a devida aprovação – ou não – e, somente
posteriormente, com a devida aprovação pelo Congresso, é que tal tratado, novamente retorna
à Presidência da República para a devida ratificação.
De forma resumida, Fernando Cesar Novaes Galhano aborda muito bem todo o
procedimento acima mencionado:
[...] O consenso é exigência essencial para a celebração dos tratados internacionais.
Na hipótese da incorporação legislativa, o chefe do Poder Executivo, no uso de suas
atribuições constitucionalmente previstas, inicia o processo de formação dos tratados
com atos de negociação.
Na fase seguinte, após sua assinatura, o tratado deve ser levado à apreciação do
Poder Legislativo, para discussão e votação nas duas casas do Congresso Nacional,
com início na Câmara dos Deputados, antecedida a votação em plenário pela análise
das respectivas comissões. [...]
O decreto legislativo materializa a concordância do Poder Legislativo. Na fase
posterior, que é a ratificação pelo chefe do Poder Executivo, momento em que o
tratado, em nível internacional, passa a ocasionar efeitos jurídicos. Com o fito de
que sejam dadas executoriedade e aplicabilidade em âmbito interno, efetuada a
ratificação, por ato do presidente da República, será editado um decreto de
promulgação.
31
SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, Tribunal Pleno, ADI 1480/DF, Relator: Celso de Mello. DJ n. 140,
08/08/2001. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 25 set. 2013.
30
A exigência final é o depósito do instrumento no órgão guardião; é certo que, na
constância do processo de formação dos tratados, poderão acontecer reservas e
adesões. Portanto, com a ratificação, tornam-se vigentes as obrigações decorrentes
dos tratados internacionais, produzindo-se efeitos jurídicos, gerando-se
responsabilidades, especialmente, em cumprimento ao princípio do pacta sunt
servanda, da parte contratante inadimplente32.
Importante destacar, para não deixar dúvidas, que o art. 49, I da CF ao determinar
que cabe ao Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados”, tal dispositivo não
significa que caiba ao Congresso ratificar o tratado ou decidir, literalmente, de maneira
definitiva sobre a celebração ou não de um tratado pelo Estado brasileiro. A decisão definitiva
caberá ao parlamento brasileiro apenas no caso de rejeição do tratado internacional. Caso o
tratado seja aprovado pelo Poder Legislativo, a decisão final cabe, discricionariamente, ao
Presidente da República33.
Incorporado o tratado internacional ao ordenamento jurídico brasileiro, o
problema passa a ser o status hierárquico de tal tratado no ordenamento interno e, em
decorrência, quais os meios de solução caso haja possíveis conflitos entre a lei já vigente no
Brasil e o tratado internacional inserido posteriormente. Sobre tal problema, destaca Valerio
de Oliveira Mazzuoli:
A Constituição brasileira de 1988, em nenhum de seus dispositivos, estatuiu de
forma clara qual a posição hierárquica dos tratados comuns perante o nosso Direito
interno. Deixou esta incumbência para a opinião, necessariamente falível, da
doutrina e da jurisprudência pátrias, legando a estas um problema que competia ao
legislador constituinte evitar34.
O referido autor completa, ainda, mencionando que o problema da posição
hierárquica dos tratados internacionais comuns pode ser resolvido, em princípio, de duas
maneiras. A primeira,
dando prevalência aos tratados sobre o
direito interno
infraconstitucional, como ocorre nas Constituições francesa de 1958 (art. 55), grega de 1975
(art.28, §1°) e peruana de 1979 (art. 101), garantindo ao tratado internacional plena vigência,
independentemente de leis internas posteriores que o contradigam. Na segunda maneira, o
problema é resolvido garantindo aos tratados internacionais apenas tratamento paritário,
32
GALHANO, Fernando César Novaes. Incorporação de Tratados de Direitos Humanos pelo Brasil. Revista do
Curso de Direito da Faculdade de Humanidades e Direito. v. 6, n. 6, p. 93-105, 2009, p. 97-98. Disponível
em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/RFD/article/viewFile/944/1001>. Acesso em 24
set. 2013, p. 11.
33
Cf. PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 123; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de
Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 312-314.
34
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008, p. 332.
31
tornando-os equivalentes as leis nacionais, ou seja, em caso de conflito, aplica-se o critério da
lex posterior derogat priori (critério cronológico)35.
A segunda solução apresentada pelo autor acima referido é o modelo adotado pelo
Supremo Tribunal Federal desde 1977, sendo reafirmado na ADI 1480/DF36, já mencionada
anteriormente. Assim, de acordo com o STF, o tratado, ao ser incorporado ao ordenamento
brasileiro, passar a ter força de lei ordinária. Consequentemente, tal tratado (com exceção dos
tratados de direitos humanos) tanto pode revogar leis anteriores como ser revogado por leis
internas posteriores, perdendo sua eficácia.
Desta maneira, de acordo com o atual posicionamento do STF, o Estado
brasileiro, mesmo após se comprometendo internacionalmente em um tratado, poderá, em
caso de conflito com uma lei interna posterior, deixar de ser aplicado, haja vista que, de
acordo com tal entendimento, os tratados internacionais e as leis infraconstitucionais estão no
mesmo grau hierárquico.
Tal entendimento da Suprema Corte brasileira simplesmente despreza o
compromisso internacional realizado pelo Brasil, não se preocupando em possível
responsabilidade internacional, sequer levando em conta a possibilidade de denúncia do
tratado internacional, que seria sua forma correta de revogação ou de não aceitação do tratado
pelo ordenamento interno. Este é o ensinamento de Valerio Mazzuoli:
Não se ateve o Tribunal ao fato de que os tratados internacionais têm sua forma
própria de revogação, que é a denúncia, nem mesmo de que o descumprimento
interno de um compromisso assumido externamente acarreta a responsabilidade
internacional do Estado, além de outras graves consequências no plano político
internacional37.
Apesar da observação feita pelo autor acima, o STF vem entendendo pelo status
de lei ordinária dos tratados internacionais desde o ano de 1977, com o julgamento do
35
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 332.
“[...]
PARIDADE
NORMATIVA
ENTRE
ATOS
INTERNACIONAIS
E
NORMAS
INFRACONSTITUCIONAIS DE DIREITO INTERNO. – Os tratados ou convenções internacionais, uma vez
regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de
validade, de eficiência e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em consequência, entre
estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa. Precedentes.
No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de
direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as regras
infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento
doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (“Lex posterior
derogat priori”) ou, quando cabível, do critério de especialidade. Precedentes. [...].” Cf. SUPREMO
TIRBUNAL FEDERAL, Tribunal Pleno, ADI 1480/DF, Relator: Celso de Mello. DJ n. 140, 08/08/2001.
Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 25 set. 2013.
37
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 333.
36
32
Recurso Extraordinário 80.004-SE38, até os dias atuais, passando inclusive pela ADI 1480/DF,
já mencionada acima. Ademais, a Suprema Corte brasileira se apega a tal entendimento
também com fundamento no art. 102, III, b da CF, no qual se admite o controle da
constitucionalidade dos tratados, afirmando-se que a hierarquia estaria ínsita em preceitos da
Constituição como o próprio art. 102, III, b e nos dispositivos que submetem a aprovação e a
promulgação dos tratados a um processo legislativo menos exigente que o das emendas
constitucionais39.
De acordo com tal linha de entendimento, é que o professor Paulo Portela chama a
atenção dispondo que, como os tratados estão sujeitos à controle de constitucionalidade e são
considerados com status de lei ordinária, a eles não seria possível regulamentar matéria
reservada a lei complementar40.
Entretanto, Flávia Piovesan lembra que, anteriormente a 1977, o STF decidiu
diversas vezes consagrando o primado do Direito Internacional, dentre eles, a referida autora
cita o caso da União Federal c. Cia Rádio Internacional do Brasil, em 1951, em que o STF
decidiu unanimemente que um tratado revogava as leis anteriores (Apelação Cível 9.587); o
acórdão do STF, em 1914, no Pedido de Extradição nº 7 de 1913, em que se declarou está em
vigor e aplicável um tratado, mesmo havendo uma lei posterior contrária a ele; A apelação
Cível 7.872 de 1943, em que, com base no voto de Philadelpho de Azevedo, também afirma
que a lei não revoga o tratado. Por último, lembra, ainda, da Lei n.º 5.172/66 que estabelece
que os tratados internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna e serão
observadas pela que lhe sobrevenha41.
Em que pese o atual entendimento jurisprudencial da Suprema Corte brasileira,
não se pode concordar com o mesmo, pelos seguintes motivos: primeiro, os tratados
internacionais possuem modelo próprio de revogação ou de não aceitação pelo Estado de
maneira unilateral, que é a denúncia, ou seja, caso o Brasil verifique que, de alguma forma, o
tratado internacional esteja conflitando e prejudicando a lei interna, tal tratado internacional
poderá ser denunciado – o tratado comum, é bom que se diga, visto que os tratados de
proteção aos direitos humanos não poderão ser denunciados, como será analisado mais
38
Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 333; PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 128;
PIOVESAN, Flávia. Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: Jurisprudência do STF.
Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_tratados_sip_stf.pdf>.
Acesso em 25 ago. 2013, p. 11.
39
SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, Tribunal Pleno, RHC 79.785/RJ, Relator: Sepúlveda Pertence, Brasília,
DF, 29 mar. 2000. DJ 22/11/2002, p. 57.
40
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 128-129.
41
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 12-13.
33
adiante –, sob pena de responsabilização internacional; segundo, não sendo o tratado
denunciado, está o mesmo vigente no ordenamento jurídico pátrio e, por conta do art. 27 da
Convenção de Viena42, incorporado ao ordenamento interno e ratificado pelo Presidente, o
Estado signatário não poderá justificar a não aplicação do tratado internacional por razões de
direito interno; por último, deve o tratado internacional ser interpretado de boa-fé, como
também determina o art. 31 da Convenção de Viena, assim, caso o Estado brasileiro
simplesmente promulgue uma lei com intenção de não respeitar um tratado internacional, não
estará agindo de boa-fé.
Concordando com o que foi afirmado acima, Flávia Piovesan esclarece:
Sustenta-se, assim, que os tratados tradicionais têm hierarquia infraconstitucional,
mas supralegal. Esse posicionamento se coaduna com o princípio da boa-fé, vigente
no direito internacional (o pacta sunt servanda), e que tem como reflexo o art. 27 da
Convenção de Viena, segundo o qual não cabe ao Estado invocar disposições de seu
direito interno como justificativa para o não-cumprimento de tratado.
À luz do mencionado dispositivo constitucional, uma tendência da doutrina
brasileira, contudo, passou a acolher a concepção de que os tratados internacionais e
as leis federais apresentavam a mesma hierarquia jurídica, sendo portanto aplicável
o princípio “lei posterior revoga lei anterior que seja com ela incompatível”. Essa
concepção não apenas compromete o princípio da boa-fé, mas constitui afronta à
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados43.
Diante disso, não há como admitir o entendimento jurisprudencial majoritário
sobre o assunto, até mesmo porque, desde 1940, o legislador brasileiro vem aprovando leis no
sentido de dar primazia aos tratados internacionais, primeiro com o Código Penal, que
ressalva os tratados internacionais, em seu artigo 5° (“Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de
convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território
nacional”), depois o Código de Processo Penal em seu art. 1º, I (“O processo penal reger-se-á,
em todo o território brasileiro, por este Código, ressalvados os tratados, as convenções e regras
de direito internacional”) e, por último, pode-se citar o Código de Defesa do Consumidor em
seu art. 7° (“os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou
convenções internacionais de que o Brasil seja signatário”). Assim, Valerio Mazzuoli
menciona:
Em suma, quiseram tais normas (art. 5º do CP e art. 1º, inc. I do CPP) atribuir
expressamente aos tratados internacionais firmados pelo Estado brasileiro um status
42
Art. 27 “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento
de um tratado. Esta regra não prejudica o artigo 46” – Convenção de Viena. Decreto Presidencial n.° 7.030 de
14 de dezembro de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Decreto/D7030.htm>. Acesso em 23 set. 2013
43
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 11.
34
de supralegalidade, eis que prevalecem sobre as legislações penal e processsual
penal ordinárias, respectivamente.
Há entretanto, outro dispositivo na legislação brasileira, a respeito do status
supralegal dos tratados comuns, que merece ser lembrado. Trata-se do art.7º da Lei
8.078, de 11 de setembro de 1990[...]
Como se pode notar facilmente, o referido dispositivo separa os tratados
internacionais de que o Brasil seja signatário da legislação interna ordinária, o que
reflete claramente a vontade do legislador pátrio em ver os compromissos
internacionalmente assumidos alçados a um grau superior ao da legislação ordinária
infraconstitucional. Se a intenção do legislador fosse a de equiparar os tratados
internacionais à legislação interna ordinária, não teria ele, certamente, feito a
distinção que fez. Bastava ter feito referência apenas à legislação ordinária, onde já
se incluiriam os tratados internacionais, se esta fosse sua vontade44.
Portanto, não há como se filiar ao entendimento do STF, visto que é claro o
entendimento de que o ordenamento brasileiro considera os tratados internacionais (comuns)
com grau hierárquico superior a lei ordinária e apenas inferior à Constituição, lhe conferindo
status supralegal. Grau hierárquico este que, como será demonstrado adiante, é defendido, até
o momento, pela maioria dos Ministros do STF, quando se trata de tratados de direitos
humanos. Posição com a qual, também, discordar-se-á, de acordo com a análise feita nos
capítulos seguintes.
44
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 343.
35
2
TRATADOS
INTERNACIONAIS
DE
DIREITOS
HUMANOS
NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos passaram a ser
efetivamente utilizados após a 2ª Guerra Mundial, haja vista que foi justamente nesta época –
pós 2ª Guerra Mundial – que o ser humano passou a ser considerado, verdadeiramente, como
prioridade. Em tal época, mais precisamente em 1945, houve a criação da Organização das
Nações Unidas (ONU), e, em 1948, houve a proclamação da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, que, apesar de, tecnicamente, não ser um “tratado internacional”, é
considerada pela comunidade internacional de proteção aos direitos humanos, a principal
fonte dos tratados de proteção ao ser humano.
Desta maneira, a Declaração Universal de 1948 é verdadeiro legado que serve
como fonte para todos os tratados internacionais de direitos humanos. Consequentemente, os
tratados internacionais de proteção aos direitos humanos passaram a ser genericamente e
globalmente utilizados, para que tais direitos conquistados não ficassem ao bel prazer da
soberania de cada Estado.
No decorrer do século XX, vários foram os tratados de direitos humanos
promulgados pelo mundo, no entanto, no Brasil, em 1989, já sob a égide da atual Constituição
da República, é que houve a ratificação do primeiro tratado de direitos humanos, qual seja: a
Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes. A partir
de então, com o processo de democratização, vários outros tratados internacionais de direitos
humanos foram ratificados pelo Brasil.
Importante destacar que a Constituição da República de 1988 já assegurava – e
ainda assegura – como princípio orientador das relações internacionais, o primado da
prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II), bem como estabelece a chamada “cláusula
aberta” dos direitos fundamentais (art. 5º, § 2º). No entanto, a prática brasileira da época em
que a Constituição atual foi promulgada, como forma de hierarquização das normas de
quaisquer tratados incorporados ao ordenamento interno, seja de direitos humanos ou não,
considerava-os como norma ordinária, infraconstitucional, ou seja, hierarquicamente inferior
à Constituição.
36
Tal sistemática efetivada durante anos pela “prática brasileira” (por muito tempo
com apoio da jurisprudência do STF, que parece caminhar para uma “evolução”), é umas das
principais polêmicas atuais no campo jurídico.
Antes de iniciar, efetivamente, comentários sobre os efeitos práticos do sistema de
incorporação e a problemática da hierarquia normativa dos tratados internacionais de direitos
humanos ratificados pelo Brasil – principalmente após o advento da emenda constitucional
45/2004, chamada de “Reforma do Judiciário” –, é importante tecer breves considerações
sobre algumas concepções e características dos direitos humanos, além de observar como tais
“direitos” foram sendo inseridos na prática internacional de proteção ao ser humano.
2.1 Direitos Humanos: aspectos gerais
A doutrina mais tradicional costuma diferenciar a definição entre “Direitos
Fundamentais” e “Direitos Humanos”. Para J. J. Gomes Canotilho45, os direitos fundamentais
são aqueles objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta, enquanto os direitos
humanos são aqueles válidos para todos os povos e em todos os tempos.
Desta maneira, a doutrina considera direitos fundamentais os direitos já
incorporados ao ordenamento interno, enquanto que os direitos humanos estariam dispostos
em documentos de ordem internacional e válidos universalmente que, caso cheguem a ser
incorporados pela ordem interna, passam a ser considerados como direitos fundamentais. Tal
diferenciação parece trazer mais controvérsias que soluções, principalmente quando há
conflitos entre o ordenamento interno e a ordem internacional.
Valerio de Oliveira Mazzuoli, ao explicar a diferenciação que a doutrina faz entre
os termos “direitos do homem”, “direitos fundamentais” e “direitos humanos”, menciona que
o que realmente importa é admitir a interação de tais “direitos” (do homem, fundamentais e
humanos) a fim de que todas as pessoas – pertencentes ou não pertencentes ao Estado onde se
encontrem – estejam efetivamente protegidas. Explica, ainda, que há pontos de divergência
entre tais termos, principalmente quando se leva em conta que nem todos os direitos
fundamentais previstos nos textos constitucionais modernos são exercitáveis por todas as
pessoas indistintamente (como por exemplo, o direito de voto, que não pode ser exercido
45
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina,
2002, p. 391.
37
pelos estrangeiros e por conscritos, durante o período de serviço militar, art. 14,§2° da CF), ao
passo que os direitos humanos podem ser vindicados por todo cidadão do planeta e em
quaisquer condições, bastando a violação de um direito seu, reconhecido em tratado
internacional do qual seu país seja parte. Por fim, o referido autor, menciona que, por isso,
alguns autores tenham preferido utilizar a expressão direitos humanos fundamentais, como
forma de união material da proteção constitucional com a salvaguarda internacional de tais
direitos46.
O professor Paulo Henrique Gonçalves Portela também aborda a utilização do
termo direitos humanos fundamentais pela doutrina. O referido professor trata sobre a
polêmica que é a noção de direitos humanos, visto haver muitas acepções sobre tal termo,
muitas delas influenciadas por pontos de vista de cunho político e ideológico. No entanto,
segundo ele, não se pode atribuir aos direitos humanos noção que afaste seu caráter de
prerrogativas a serem efetivamente resguardas47.
Preocupado com uma definição adequada aos direitos humanos, o professor Bruno
Cunha Weyne afirma que “a falta de uma elucidação da noção de direitos humanos abre
caminho para que eles sejam utilizados de modo inflacionário, servindo, muitas vezes, de
instrumental retórico a serviço de interesses particulares e arbitrários daqueles que os
invocam”48. Diante disso, segundo o referido professor, é necessário se entender o alcance da
expressão “direitos humanos” para que esta não seja utilizada apenas emotivamente, sendo
importante um conceito de direitos humanos baseado em argumentos plausíveis e de
relevância prática para teoria dos direitos humanos49.
Como se observa, não é tarefa fácil definir a expressão “direitos humanos”, tanto
que a doutrina confere a tal termo diversas concepções, definições e comparações. No
entanto, é importante destacar uma concepção contemporânea de direitos humanos lembrada
por Flávia Piovesan50.
A referida autora se fundamenta na Declaração Universal de Direitos Humanos de
1948, conferindo o real valor da dignidade humana como ponto alto do sistema de proteção
46
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008, p. 737-738.
47
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 615.
48
WEYNE, Bruno Cunha. A concepção dos direitos humanos como direitos morais. Revista Direitos
Fundamentais
e
Democracia.
Curitiba,
v.
06,
2009,
p.
2.
Disponível
em:
<http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/17>. Acesso em 18 set. 2013.
49
WEYNE, Bruno Cunha, op. cit., p. 2.
50
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, o Princípio da Dignidade Humana e a Constituição Brasileira de 1988.
Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 94, n. 833, p. 41-53, mar. 2005, p. 42-48.
38
internacional de direitos humanos. Segundo tal autora, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos é o maior marco do processo de reconstrução dos direitos humanos, por introduzir
uma concepção contemporânea, caracterizada pela universalidade e indivisibilidade. A
primeira devido à extensão universal dos direitos humanos, visto que a condição de pessoa é o
requisito único para a dignidade e titularidade de direitos. A segunda, devido à garantia dos
direitos civis e políticos em conjunto com os direitos sociais, econômicos e culturais. Assim, a
referida autora afirma que, quando qualquer um deles é violado, os demais também o são, por
isso, os direitos humanos compõem uma unidade indivisível, interdependente e interrelacionada51.
Importante mencionar, ainda, as consequências da concepção contemporânea dos
direitos humanos:
[...] a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado ao
Estado, isto é não deve se restringir à competência nacional exclusiva ou à jurisdição
doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Por sua
vez, esta concepção inovadora aponta a duas importantes consequências:
1. a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer
um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no
plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos[...]
2. a cristalização da ideia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera
internacional, na condição de sujeito de Direito.
Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava
seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica,
decorrência de sua soberania52.
Como se observa, a concepção mencionada pela autora se encaixa perfeitamente
no atual sistema de proteção internacional de direitos humanos, haja vista colocar o ser
humano antes de tudo, até mesmo do próprio Estado soberano, reconhecendo o ser humano
como sujeito de direito internacional. Em decorrência de tal concepção, vários tratados
internacionais de proteção aos direitos humanos foram adotados procurando tornar concreto o
sistema de proteção a tais direitos.
A concepção acima mencionada sobre direitos humanos pode ser interpretada de
acordo com cinco características peculiares a tal direito, apontadas por Robert Alexy e muito
51
52
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p.43.
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 44.
39
bem lembradas pelo professor Bruno Cunha Weyne, quais sejam: universalidade,
fundamentalidade, abstratividade, moralidade e prioridade53.
A universalidade, como o próprio nome diz e como já foi mencionado acima,
garante que todos os seres humanos, sem qualquer distinção, poderá vindicar seus devidos
direitos em caso de violação. A fundamentalidade diz respeito aos interesses e direitos
fundamentais do ser humano, ou seja, não são todos os direitos abarcados pelos direitos
humanos, somente os fundamentais ao homem. A abstratividade, juntamente com as duas
primeiras características, garante que os direitos humanos não possam ser violados em
hipótese alguma. A moralidade deve assegurar que os direitos morais independem de qualquer
recepção ou incorporação jurídica, ou seja, mesmo em sistemas jurídicos que não os
reconheça, tais direitos poderão ser reivindicados. Por último, a característica da prioridade, é
decorrência da moralidade, visto que os direitos humanos devem ser respeitados, podendo ser
vindicados, mesmo quando o direito positivo não garanta tais direitos, ou seja, os direitos
humanos têm prioridade frente ao direito positivo54.
A partir de tais características é que Bruno Weyne define a expressão “direitos
humanos”:
[...] a expressão ‘direitos humanos’ diz respeito àqueles direitos que sejam válidos
moral e universalmente e, ao mesmo tempo, protejam os interesses e as carências
mais fundamentais do ser humano, devendo, em razão disso, comportar um
conteúdo com uma mesma importância abstrata e ser prioritários em relação aos
demais direitos jurídico-positivos. Isso sem esquecer, é claro, que a sua incorporação
ao ordenamento jurídico positivo, na forma de direitos fundamentais, como visto
acima, é uma condição necessária para que tais direitos possam gozar de
reconhecimento e proteção55.
A definição de direitos humanos acima mencionada não poderia estar mais
completa. Ademais, tal professor menciona, ainda, sobre a necessidade de incorporação de
tais direitos ao ordenamento jurídico positivo na forma de “direitos fundamentais”. É
justamente sobre tal ponto – incorporação de direitos humanos – que se passará a discutir em
seguida, levando-se em consideração o status normativo que se deve dar a tais normas, não
somente se baseando nos preceitos da comunidade internacional, mas, principalmente, de
acordo com o texto constitucional brasileiro.
53
Cf. WEYNE, Bruno Cunha, op. cit., p. 3.
Cf. WEYNE, Bruno Cunha, op. cit., p. 3-5.
55
WEYNE, Bruno Cunha, op. cit., p. 6.
54
40
2.2 Incorporação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ao Ordenamento
Jurídico Brasileiro
A discussão a respeito da incorporação dos tratados internacionais não é nova,
principalmente quando relacionadas aos tratados de proteção aos direitos humanos. Grande
parte da doutrina entende que a incorporação de tais tratados ocorrem de maneira imediata, ou
seja, sem a necessidade de decreto presidencial. Tais doutrinadores se fundamentam no que
determina o § 1° do Art. 5º da CF: “as normas definidoras de direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata”56.
Flávia Piovesan, defensora da aplicabilidade imediata dos tratados internacionais
de direitos humanos, afirma que “se as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais demandam aplicação imediata e, se por sua vez, os tratados de direitos humanos
têm por objeto justamente a definição de direitos e garantias, conclui-se que tais normas
merecem aplicação imediata”57.
No entanto, tal posição não é acolhida pelo STF, como bem lembra Paulo
Henrique Gonçalves Portela:
Decerto que a ideia de dispensar o Decreto presidencial está em consonância com
princípios como o da máxima efetividade das normas constitucionais e o da
interpretação sistemática, pelos quais a maior celeridade na entrada em vigor no
Brasil do tratado de direitos humanos estaria em conformidade com o valor da
dignidade humana dentro da Carta Magna. Entretanto, essa não é a posição acolhida
pelo STF, que continua entendendo que a emissão do Decreto Presidencial é o ato
final do processo de incorporação do tratado ao ordenamento jurídico interno, que
assegura sua promulgação e publicidade e lhe confere, portanto, a devida
executoriedade58.
Como se observa, com relação à incorporação de tratados, o STF não diferencia os
tratados de direitos humanos dos tratados comuns, exigindo para incorporação de ambos,
tanto a ratificação do Presidente (após a devida aprovação do Congresso Nacional) como a
emissão de Decreto Presidencial. Este último “detalhe” – Decreto Presidencial – exigido pelo
STF é que se contrapõe com a doutrina majoritária.
56
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 85.
58
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit., p. 739-740.
57
41
Valerio de Oliveira Mazzuoli, concordando com o entendimento de Flávia
Piovesan (acima mencionado), discordando do entendimento do STF e mencionando sobre o
status constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, explica:
[...] Ora, se as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicabilidade imediata, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos,
uma vez ratificados, por também conterem normas que dispõem sobre direitos e
garantias fundamentais, terão, dentro do contexto constitucional brasileiro, idêntica
aplicação imediata. [...]
Atribuindo-lhes a Constituição a natureza de ‘normas constitucionais’, passam os
tratados de proteção dos direitos humanos, pelo mandamento do citado § 1º do seu
art. 5º, a ter aplicabilidade imediata, dispensando-se, dessa forma, a edição de
decreto de execução para que irradiem seus efeitos tanto no plano interno como no
plano internacional. Já nos casos de tratados internacionais que não versem sobre
direitos humanos, este decreto, materializando-os internamente, faz necessário.[...]
Como se já não bastasse, é ainda de se ressaltar que todos os direitos inseridos nos
referidos tratados, incorporando-se imediatamente no ordenamento interno brasileiro
(CF, art. 5º, § 1º), por serem normas também definidoras dos direitos e garantias
fundamentais, passam a ser cláusulas pétreas, não podendo ser suprimidos nem
mesmo por emenda à Constituição (CF, art. 60, § 1º, IV). É o que se extrai do
resultado da interpretação dos §§ 1º e 2º, do art. 5º da Lei Fundamental, em cotejo
com o art. 60, § 4º, IV, da mesma Carta. Isso porque o §1º do art. 5º da Constituição
da República, como se viu, dispõe expressamente que ‘as normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata’59.
Não é outro o entendimento de Ingo Sarlet sobre o assunto:
À luz dos argumentos esgrimidos, verifica-se que a tese da equiparação (por força
do disposto no art. 5º, § 2º, da CF) entre os direitos fundamentais localizados em
tratados internacionais e os com sede na Constituição formal é a que mais se
harmoniza com a especial dignidade jurídica e axiológica dos direitos fundamentais
na ordem jurídica interna e internacional, constituindo, ademais, pressuposto
indispensável à construção e consolidação de um autêntico direito constitucional
internacional dos direitos humanos, resultado da interpenetração cada vez maior
entre os direitos fundamentais constitucionais e os direitos humanos dos
instrumentos jurídicos internacionais. Ainda no que concerne à força dos direitos
fundamentais extraídos dos tratados internacionais, impende considerar que, em se
aderindo à tese da paridade com os demais direitos fundamentais da Constituição,
incide também o princípio da aplicabilidade direta destas normas pelos poderes
públicos (art. 5º, §1º da CF). Além disso, é de cogitar-se do fato de estes direitos
fundamentais de matriz internacional estarem sujeitos à proteção das assim
denominadas ‘cláusulas pétreas’ de nossa Constituição, posição esta que já havíamos
sustentado em outra ocasião e que também encontra respaldo na mais recente
doutrina60.
59
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de
1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 371-374.
60
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais, Reforma do Judiciário e Tratados Internacionais de Direitos
Humanos. In: CLÈVE, Merlin Clève; SARLET, Ingo Wolfgang e PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Direitos
Humanos e Democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 345-346.
42
Pelo vasto entendimento doutrinário, não há como pensar de maneira diferente. O
texto constitucional brasileiro (§ 1°, art. 5°) é claro ao prever a aplicabilidade imediata dos
direitos fundamentais e, em consequência, dos tratados internacionais de direitos humanos, ou
seja, tais tratados são incorporados automaticamente ao ordenamento jurídico brasileiro –
sendo materialmente constitucionais, como será demonstrado mais adiante – não necessitando
de Decreto Presidencial para gerar efeitos no ordenamento interno, bem como para gerar
direitos subjetivos para os indivíduos, garantindo a qualquer indivíduo do território brasileiro,
a devida vindicação ao Judiciário em caso de desrespeito aos tratados internacionais de
direitos humanos ratificados pelo Brasil.
Outro argumento que se expõe a favor da autoaplicabilidade dos tratados
internacionais de direitos humanos é que estes advém das próprias normas de direito
internacional, ou seja, se um Estado se compromete com os preceitos de um tratado é porque
deseja que suas normas sejam imediatamente exigíveis61.
Antonio Augusto Cançado Trindade também admite uma presunção em favor da
aplicabilidade imediata dos tratados de direitos humanos, a não ser que contenha regras
expressas que condicionem, por meio de leis subsequentes, o cumprimento das obrigações do
respectivo tratado62.
Importante esclarecer que a ratificação presidencial não se confunde com o
Decreto Presidencial. Na prática brasileira, adotada pelo STF, há a exigência de um ato
jurídico complementar – Decreto Presidencial –, dando publicidade e executoriedade aos
tratados já ratificados pelo Brasil no âmbito interno, ou seja, em regra, após a negociação e
assinatura do tratado internacional, este passa pelo crivo do Congresso Nacional que,
aprovando tal tratado, deixa a cargo discricionário do Presidente da República para posterior
ratificação. Após a ratificação e devida comunicação à comunidade internacional é que, no
Brasil, exige-se um Decreto Presidencial com força de incorporar o texto do tratado ao
ordenamento jurídico brasileiro.
Esta prática, de acordo com o entendimento doutrinário acima mencionado,
aplica-se apenas aos tratados tradicionais, visto que para o tratados de direitos humanos, basta
apenas a ratificação presidencial, não necessitando de Decreto do Executivo.
61
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 372.
CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Direito Internacional e Direito Interno: Sua Interação na
Proteção
dos
Direitos
Humanos.
Disponível
em:
<http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/introd.htm>. Acesso em 18 de set.
2013.
62
43
Flávia Piovesan resume bem o assunto e ainda diferencia o sistema de
“incorporação automática” do sistema de “incorporação legislativa”:
[...] não será mais possível a sustentação da tese segundo a qual, com a ratificação,
os tratados obrigam diretamente aos Estados, mas não geram direitos subjetivos para
os particulares, enquanto não advém a referida intermediação legislativa. Vale dizer,
torna-se possível a invocação imediata dos tratados e convenções de direitos
humanos, dos quais o Brasil seja signatário, sem a necessidade de edição de ato com
força de lei, voltado à outorga de vigência interna aos acordos internacionais.
A incorporação automática do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelo
direito brasileiro – sem que se faça necessário um ato jurídico complementar para
sua exigibilidade e implementação – traduz relevantes consequências no plano
jurídico. [...] permite ao particular a invocação direta dos direitos e liberdades
internacionalmente assegurados, e [...], proíbe condutas a atos violadores a esses
mesmos direitos [...].
Importa esclarecer que, ao lado da sistemática da ‘incorporação automática’ do
Direito Internacional, existe a sistemática da ‘incorporação legislativa’ do Direito
Internacional. Isto é, se em face da incorporação automática, os tratados
internacionais incorporam-se de imediato ao Direito nacional em virtude do ato de
ratificação, no caso da incorporação legislativa os enunciados dos tratados
ratificados não são incorporados de plano pelo Direito nacional; ao contrário,
dependem necessariamente de legislação que os implemente. Essa legislação,
reitere-se, é ato inteiramente distinto do ato da ratificação do tratado63.
Mais adiante, Flávia Piovesan adapta tais tipos de incorporação aos tratados de
direitos humanos e aos tratados comuns, com a devida diferenciação, afirmando que o Brasil
teria adotado um sistema misto:
Diante dessas duas sistemáticas diversas, conclui-se que o Direito brasileiro faz
opção por um sistema misto, no qual os tratados internacionais de proteção dos
direitos humanos – por força do art. 5°, §1° – aplica-se o sistema de incorporação
automática, enquanto aos demais tratados internacionais se aplica a sistemática de
incorporação legislativa, na medida em que se tem exigido a intermediação de um
ato normativo para tornar o tratado obrigatório na ordem interna. Com efeito, salvo
na hipótese de tratado de direitos humanos, no Texto Constitucional não há
dispositivo que enfrente a questão da relação entre o Direito Internacional e o
interno. Isto é, não há menção expressa a qualquer das correntes, seja à monista, seja
à dualista. Por isso, a doutrina predominante tem entendido que, em face do silêncio
constitucional, o Brasil adota a corrente dualista, pela qual há duas ordens jurídicas
diversas (a ordem interna e a ordem internacional). Para que o tratado ratificado
produza efeitos no ordenamento jurídico interno, faz-se necessário a edição de um
ato normativo nacional – no caso brasileiro, esse ato tem sido um decreto de
execução, expedido pelo Presidente da República [...]. Embora seja essa a doutrina
predominante, este trabalho sustenta que tal interpretação não se aplica aos tratados
de direitos humanos, que, por força do art. 5º, §1°, têm aplicabilidade imediata. Isto
é, diante do princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e
garantias fundamentais, os tratados de direitos humanos, assim que ratificados,
devem irradiar efeitos na ordem jurídica internacional e interna, dispensando a
edição de decreto de execução. Logo, defende-se que a Constituição adota um
63
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 86-87.
44
sistema jurídico misto, já que, para os tratados de direitos humanos, acolhe a
sistemática da incorporação automática, enquanto para os tratados tradicionais
acolhe a sistemática da incorporação não automática64.
Tal “sistema misto” de incorporação dos tratados internacionais é chamado de
“sistema semipleno” por Artur Cortez Bonifácio65, e de “sistema único diferenciado”, por
Valerio de Oliveira Mazzuoli66.
No entanto, Valerio Mazzuoli67, apesar de defender uma diferença entre a
incorporação dos tratados comuns e dos tratados de direitos humanos, afirma que tal modelo
não se trata de “sistema de misto”, visto não existir mistura ou fusão de sistemas distintos.
Para o referido autor, tal sistemática é única para ambos os tratados porque, tanto para os
tratados comuns quanto para os tratados de direitos humanos, faz-se necessário da assinatura
do Presidente da República, da aprovação congressual e da subsequente ratificação, mas com
a diferenciação de que os tratados de proteção dos direitos humanos dispensam a edição de
decreto de execução presidencial, exigido pela prática brasileira para a incorporação de
tratados comuns.
Assim, segundo tal autor, o sistema é único e geral porque para ambas as
modalidades de tratados, o procedimento a ser seguido é o mesmo, de acordo com o artigo 84,
VIII e artigo 49, I da CF, com a única “diferença” para os tratados de proteção aos direitos
humanos, visto que estes, devido a sua autoaplicabilidade, incorporam-se ao ordenamento
brasileiro sem a necessidade de decreto presidencial, condição necessária apenas para a
incorporação dos tratados comuns. Diante disso é que tal autor, de maneira pioneira, chama de
“diferenciado” o sistema adotado pela Constituição brasileira com relação aos tratados de
direitos humanos e, ao fim, denominando tal sistema de “único diferenciado”, justamente por
ser um “único” e geral sistema de incorporação, mas com uma “diferença” com relação aos
tratados de direitos humanos.
64
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 91-92.
QUIXADÁ, Letícia Antonio. O Supremo e os Tratados Internacionais de Direito Humanos: debate
jurisprudencial em relação ao nível hierárquico normativo dos tratados internacionais. Monografia
apresentada à Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP. São Paulo, 2009, p. 23.
Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/monografia/148_Monografia%20Leticia%20Quixada.pdf>.
Acesso em 18 de set. 2013.
66
Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos e sua
Incorporação no Ordenamento Brasileiro. Disponível em: <http://www.mt.trf1.gov.br>. Acesso em 15 ago.
2013, p. 11; Ibid. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São
Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 385-389.
67
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de
1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 385-388.
65
45
A denominação acima mencionada é original e sintetiza bem o modelo de
incorporação adotado pelo Brasil, uma vez que a exigência procedimental para a incorporação
de ambas as modalidades de tratados internacionais é a mesma, sendo diferenciada apenas
com relação aos tratados de direitos humanos. É bem verdade que não há “mistura de
sistemas” quanto à incorporação de tratados, no entanto, há “mistura” de sistemas com relação
à hierarquia dos tratados internacionais, haja vista que os tratados de direitos humanos, de
acordo com o art. 5º, § 2º da CF, têm status de norma constitucional – como será analisado
neste capítulo – e os tratados internacionais comuns têm status infraconstitucional, mas
supralegal, como já foi destacado, mesmo em contraponto ao entendimento atual do STF. Este
também é o entendimento do próprio Valerio Mazzuoli:
O que se poderia denominar de misto, ao nosso ver, é o sistema adotado pela
Constituição de 1988 no que tange à hierarquia dos tratados internacionais, e não no
que se refere ao procedimento de incorporação desses mesmos tratados.
Hierarquicamente, no direito brasileiro, bem como em outros ordenamentos
jurídicos, a exemplo do ordenamento argentino, os tratados internacionais diferemse uns dos outros pelo grau hierárquico que o texto constitucional a eles confere: os
tratados tradicionais têm hierarquia infraconstitucional (mas supralegal), e os de
proteção dos direitos humanos, hierarquia constitucional, em face do art. 5º, §2º da
Carta de 1988. [...]
Esse caráter especial passa a justificar, assim o status constitucional atribuído aos
tratados internacionais de proteção aos direitos humanos. Dessa forma, o ser
humano, nessa escala de valores, passa a ocupar posição central, já de há muito
merecida, consagrada, agora, pela própria Constituição da República68.
Diante do exposto, verifica-se que não há outro entendimento a ser seguido senão
o da autoaplicabilidade dos tratados internacionais de direitos humanos. Outra polêmica,
talvez uma das mais acirradas da atual doutrina, principalmente após o advento da emenda
constitucional 45/2004, diz respeito à hierarquia normativa dos tratados internacionais de
direitos humanos após incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro.
2.3 Hierarquia Normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no
Ordenamento Jurídico Brasileiro
A questão da hierarquia normativa dos tratados internacionais de direitos humanos
sempre foi questão polêmica na doutrina brasileira, ainda mais após o advento da emenda
constitucional n.° 45/2004, que, dentre várias modificações, incluiu o § 3º ao art. 5º da CF.
68
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 388-389.
46
De início, pode-se afirmar que existem quatro posicionamentos sobre o status
normativo dos tratados de direitos humanos incorporados ao ordenamento brasileiro. O
primeiro, e mais tradicional deles, que foi acolhido pelo Supremo Tribunal Federal por muitos
anos, é o que reconhece status de lei ordinária a todo e qualquer tratado internacional,
inclusive os de proteção aos direitos humanos; O segundo posicionamento, atualmente
majoritário no STF, reconhece o status supralegal dos tratados internacionais de direitos
humanos, ou seja, tais tratados seriam normas inferiores à Constituição, mas superior às leis
ordinárias; O terceiro posicionamento, defendido por Valerio Mazzuoli, Flávia Piovesan e
Antonio Augusto Cançado Trindade, entende que os tratados de direitos humanos possuem
status de norma constitucional, principalmente com base na interpretação do § 2° do art. 5° da
CF; O quarto posicionamento, defendido por Ceslo D. Albuquerque de Mello, reconhece o
status supraconstitucional dos tratados de direitos humanos, atribuindo a primazia do direito
internacional sobre o direito interno69.
Na atualidade, apesar da tese que reconhece os tratados de direitos humanos como
leis ordinárias ter sido majoritária no STF durante muitos anos, a discussão mais acirrada
sobre a hierarquia normativa dos tratados de proteção aos direitos humanos gira em torno do
reconhecimento do status constitucional e do status supralegal de tais tratados, não somente
na doutrina, mas até mesmo no próprio STF, visto haver decisões acolhendo tanto uma como
a outra tese.
Apesar de a tese da constitucionalidade dos tratados de direitos humanos ser um
pouco mais antiga, a discussão sobre o status normativos dos tratados de direitos humanos
ganhou mais força após o advento da EC 45/2004, visto esta inserir o parágrafo § 3º ao art. 5º
da CF, que assim dispõe: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos
que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos
dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”70.
Como se observa, a EC 45/2004, possibilita que os tratados de direitos humanos
sejam equivalentes às emendas constitucionais, caso respeitem o quórum específico para
aprovação de emendas constitucionais.
69
Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito Internacional Público: Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2008, p.99-100.; EMERIQUE, Lilian Balmant; GUERRA, Sidney. A incorporação dos tratados
internacionais de direitos humanos na ordem jurídica brasileira. Revista Jurídica. Brasília, v. 10, n. 90, ed. Esp.,
p.
01-34,
abr./maio,
2008,
p.
3.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_90/Artigos/PDF/SidneyGuerra_Rev90.pdf>. Acesso em 17
set. 2013.
70
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
47
Por sua vez, o § 2° do art. 5º da CF, dispõe: “Os direitos e garantias expressos
nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”71.
Segundo este dispositivo é que alguns doutrinadores defendem a hierarquia
constitucional dos tratados de direitos humanos, haja vista a “cláusula aberta” de direitos
fundamentais, admitindo que outros direitos, além daqueles que prevê, possam existir, seja em
razão de decorrerem do regime e de princípios que adota, seja em razão de decorrerem dos
tratados internacionais em que o Brasil seja parte72.
Pois bem, a discussão atual sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos
parte deste aparente contraponto: os tratados internacionais de direitos humanos incorporados
ao ordenamento brasileiro somente teriam status constitucional se aprovados pelo Congresso
Nacional de acordo com a disposição do § 3º do Art. 5º, CF? Como fica a situação dos
tratados de direitos humanos anteriores à EC 45/2004? A Constituição Federal, em seu art. 5º,
§ 2°, por si só, já não assegura a constitucionalidade dos tratados de direitos humanos?
Vários são os outros contrapontos com relação à questão, o que será tratado, ao
máximo, de acordo com a melhor doutrina e de acordo com as tendências jurisprudências do
Brasil e, principalmente, de acordo com os princípios constitucionais.
Entre 1977 e 2007, o STF, de maneira majoritária, filiou-se a tese que todos os
tratados internacionais, inclusive os de proteção aos direitos humanos tinham status de lei
ordinária, fundamentando-se, principalmente, no artigo 102, III, b da Constituição Federal.
Tal posicionamento foi confirmado na ADI 1480-DF, oportunidade em que o STF entendeu
que todo tratado internacional era equivalente à lei ordinária e, caso houvesse conflito entre as
normas internas e externas, o intérprete deveria se utilizar dos critérios cronológicos ou da
especialidade.
Importante destacar que a discussão sobre a hierarquia normativa dos tratados
internacionais de direitos humanos ganhou mais força após a ratificação pelo Brasil do Pacto
de São José da Costa Rica em 1992, visto que o referido tratado (art. 7, VII) autoriza apenas
prisão por dívida de alimentos, nada dispondo sobre o depositário infiel, como dispõe o inciso
LXVII do art. 5º da CF.
71
72
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
CUNHA JUNIOR. Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 669.
48
Pois bem, em 22 de novembro de 1995, por meio do HC 72.131-RJ, o STF foi
acionado para se manifestar sobre o assunto. Prevaleceu a tese que confere aos tratados de
direitos humanos status de lei ordinária, sendo vencido o voto dos Ministros Marco Aurélio,
Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence, o que demonstra o quanto é antiga a polêmica sobre o
assunto. Partes do voto do Ministro Celso de Mello, à época defensor da hierarquia ordinária
dos tratados de direitos humanos, retrata bem a situação:
É inquestionável, dentro do sistema jurídico brasileiro, que a normatividade
emergente dos tratados internacionais permite situar tais atos de direito internacional
público, no que concerne à hierarquia das fontes, no mesmo plano e grau de eficácia
em que se posicionem as leis internas, como reconhece a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal (RTJ 58/70 – RTJ 83/809) e acentua o magistério da doutrina [...]
Na realidade, inexiste, na perspectiva do modelo constitucional vigente no Brasil,
qualquer precedência ou primazia hierárquico-normativo dos tratados ou convenções
internacionais sobre o direito positivo interno, sobretudo em face das cláusulas
inscritas no texto da Constituição da República, eis que a ordem normativa externa
não se superpõe, em hipótese alguma, ao que prescreve a Lei Fundamental da
República. [...] a ordem constitucional vigente no Brasil não pode sofrer
interpretação que conduza ao reconhecimento de que o Estado brasileiro, mediante
convenção internacional, ter-se-ia interditado a possibilidade de exercer, no plano
interno, a competência institucional que lhe foi outorgada expressamente pela
própria Constituição da República. A circunstância do Brasil haver aderido ao Pacto
de São José da Costa Rica – cuja posição, no plano da hierarquia das fontes
jurídicas, situa-se no mesmo nível de eficácia e autoridade das leis ordinárias
internas – não impede que o Congresso Nacional, em tema de prisão civil por dívida,
aprove legislação comum instituidora desse meio excepcional de coerção processual
[...]. Os tratados internacionais não podem transgredir a normatividade emergente da
Constituição, pois, além de não disporem de autoridade para restringir a eficácia
jurídica das cláusulas constitucionais, não possuem força para conter ou para
delimitar a esfera da abrangência normativa dos preceitos inscritos no texto da Lei
Fundamental. [...] Parece-me irrecusável, no exame da questão concernente à
primazia das normas de direito internacional público sobre a legislação interna ou
doméstica do Estado brasileiro, que não cabe atribuir, por efeito do que prescreve o
art. 5º, parágrafo 2º, da Carta Política, um inexistente grau hierárquico das
convenções internacionais sobre o direito positivo interno vigente no Brasil,
especialmente sobre o direito positivo interno vigente no Brasil, especialmente sobre
as prescrições fundadas em texto constitucional, sob pena de essa interpretação
inviabilizar, com manifesta ofensa à supremacia da Constituição – que
expressamente autoriza a instituição da prisão civil por dívida em duas hipóteses
extraordinárias (CF, art. 5º, LXVII) – o próprio exercício, pelo Congresso Nacional,
de sua típica atividade político-jurídica consistente no desempenho da função de
legislar[...] 73.
73
BRASIL. SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, HC 72.131/RJ, Relator: Min. Marco Aurélio. Plenário.
23/11/1995. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013.
49
O entendimento majoritário no HC 72.131/RJ foi reiterado pelo STF em vários
outros julgamentos, dentre eles no RE 206.482-SP, HC 76.561-SP, RE 243.163 e na ADI
1480-3/DF74.
Não há como concordar com tal posicionamento. O entendimento acima
mencionado simplesmente despreza a cláusula de abertura dos direitos fundamentais,
claramente estabelecida no § 2º do art. 5º da CF. Ademais, posiciona a supremacia da
Constituição à frente de tudo, até mesmo do ser humano, chegando a lembrar do formalismo
excessivo da “era Hitler”, que se utilizou das normas apenas para os Estados e não para os
indivíduos, até mesmo em detrimento da liberdade e vida digna destes últimos.
Pois bem, no caso da Constituição Federal de 1988, não há como negar o texto do
§ 2º do art. 5º. Ademais, segundo Flavia Piovesan, deve-se:
[...] conferir hierarquia constitucional aos tratados de direitos humanos, com a
observância do princípio da prevalência da norma mais favorável, é interpretação
que se situa em absoluta consonância com a ordem constitucional de 1988, bem
como sua racionalidade e principiologia. Trata-se de interpretação que está em
harmonia com os valores prestigiados pelo sistema jurídico de 1988, em especial
com o valor da dignidade humana – que é o valor fundante do sistema
constitucional75.
Especificamente sobre o art. 5º, § 2° da CF, Valerio de Oliveira Mazzuoli
esclarece que a cláusula de abertura dos direitos fundamentais assegurada em tal dispositivo é
resultado da proposta de Antonio Augusto Cançado Trindade à Subcomissão dos Direitos e
Garantias Individuais da Assembleia Nacional Constituinte, em 29 de abril de 198776.
Esclarece, ainda, o referido autor:
[...] se a Constituição estabelece que os direitos e garantias nela elencados ‘não
excluem’ outros provenientes dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte, é porque ela própria está a autorizar que esses
direitos e garantias internacionais constantes dos tratados internacionais de direitos
humanos ratificados pelo Brasil ‘se incluem’ no nosso ordenamento jurídico interno,
passando a ser considerados como se escritos na Constituição estivessem. É dizer, se
os direitos e garantias expressos no texto constitucional ‘não excluem’ outros
provenientes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, é porque, pela
lógica, na medida em que tais instrumentos passam a assegurar outros direitos e
74
Cf. BRASIL. SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out.
2013; PIOVESAN, Flávia, op. cit., p.64.
75
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p.64.
76
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008, p. 750.
50
garantias, a Constituição ‘os inclui’ no seu catágolo de direitos protegidos,
ampliando seu ‘bloco de constitucionalidade’77.
Flávia Piovesan segue o mesmo raciocínio do autor acima mencionado,
complementando que a Constituição brasileira atribui aos direitos enunciados nos tratados de
direitos humanos ratificados pelo Brasil, uma natureza especial e diferenciada, integrando os
direitos constitucionalmente consagrados. Segundo tal autora, tal conclusão advém de uma
interpretação sistemática e teleológica do texto constitucional, especialmente devido à força
expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros
axiológicos a orientar a compreensão do texto constitucional78.
Tal raciocínio decorre da interpretação material que se deve dar à Constituição
Federal, ou seja, toda e qualquer Constituição não pode se reduzir apenas ao texto formal e
positivado. Deve-se, assim, alargar o seu bloco de constitucionalidade por meio de princípios
não escritos, como bem menciona Canotilho:
O programa normativo-constitucional não pode se reduzir, de forma positivística, ao
‘texto’ da Constituição. Há que densificar, em profundidade, as normas e princípios
não escritos, mais ainda reconduzíveis ao programa normativo-constitucional, como
formas de densificação ou revelação específicas de princípios ou regras
constitucionais positivamente plasmadas79.
O referido autor mencionando, ainda, a questão do direito internacional na ordem
interna:
Apesar da notável amplitude do elenco constitucional dos direitos fundamentais, é
natural que não se encontrem aí todos os direitos ou dimensões de direitos
contemplados pelas muitas convenções internacionais de direitos, bem como pela lei
interna. [...] De resto, a referida cláusula constitucional traduz não apenas o
acolhimento dos direitos já dotados de reconhecimento infraconstitucional, mas
também uma expressa abertura aos que vierem a encontrar sedimentação no futuro,
no direito internacional ou na lei interna. Trata-se de uma cláusula de abertura a
novos direitos, reveladora do caráter não fechado e não taxativo do elenco
constitucional dos direitos fundamentais80.
Em decorrência da abertura do catálogo de direitos previstos na constituição, seja
de maneira explícita, implícita ou ratificada por meios de tratados internacionais, é que Flávia
Piovesan e Valerio Mazzuoli passaram a classificar os direitos e garantias individuais,
77
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 750.
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p.52.
79
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 982.
80
CANOTILHO, J.J. Gomes. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p.115-116.
78
51
dividindo-os em três grupos: os dos direitos expressos no texto constitucional, por exemplo,
todos os incisos do art. 5º da CF; o dos direitos implícitos, decorrentes dos princípios
adotados pela Constituição; e o dos direitos expressos em tratados internacionais de que o
Brasil seja parte81.
Apesar dos fortes argumentos acima mencionados, a jurisprudência majoritária
pátria, bem como grande parte dos constitucionalistas, não aceita tal raciocínio sob o
argumento da soberania estatal absoluta e, mais modernamente, apegando-se ao princípio da
supremacia da Constituição. Ademais, argumentam no sentido de que reconhecer a
constitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos seria o mesmo que
mitigar a ação de poder constituinte, uma vez que anularia a participação dos órgãos do poder
constituído no processo de formação das leis82. Devido a tal entendimento é que o STF, por
muitos anos, equiparou os tratados de direitos humanos às leis ordinárias, como demonstram a
ADI 1480-3/DF e o HC 72.131/RJ83.
No entanto, mesmo quando a equiparação à lei ordinária dos tratados de direitos
humanos era entendimento majoritário no STF, há casos em que se visualiza um
entendimento diverso, como, por exemplo, a tese da supralegalidade defendida pelo Ministro
Sepúlveda Pertence no RHC 79.789/RJ, em maio de 2000, e a tese da constitucionalidade
defendida pelo Ministro Carlos Velloso no HC 82424-2/RS – “caso Ellwanger”84 – bem como
na ADI 1480-3/DF.
Sobre a tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos, o Ministro
Sepúlveda Pertence assim se manifestou no RHC 79.789/RJ:
[...] Certo, com o alinhar-me ao consenso em torno da estatura infraconstitucional,
na ordem positiva brasileira, dos tratados a ela incorporados, não assumo
81
Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008, p. 751; Ibid. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2.
ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p.359; PIOVESAN, Flávia, op. cit., p.58.
82
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de
1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 369.
83
HC 72.731/RJ – Voto do Ministro Celso de Mello:[...] Parece-me irrecusável, no exame da questão
concernente à primazia das normas de direito internacional público sobre a legislação interna ou doméstica do
Estado brasileiro, que não cabe atribuir, por efeito do que prescreve o art. 5º, parágrafo 2º, da Carta Política, um
inexistente grau hierárquico das convenções internacionais sobre o direito positivo interno vigente no Brasil,
especialmente sobre o direito positivo interno vigente no Brasil, especialmente sobre as prescrições fundadas em
texto constitucional, sob pena de essa interpretação inviabilizar, com manifesta ofensa à supremacia da
Constituição – que expressamente autoriza a instituição da prisão civil por dívida em duas hipóteses
extraordinárias (CF, art. 5º, LXVII). Relator: Min. Marco Aurélio. Plenário. 23/11/1995. Disponível em:
<www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013.
84
Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008, p. 752, nota 27.
52
compromisso de logo — como creio ter deixado expresso no voto proferido na
ADInMc 1.480 — com o entendimento, então majoritário — que, também em
relação às convenções internacionais de proteção de direitos fundamentais —
preserva a jurisprudência que a todos equipara hierarquicamente às leis.
Na ordem interna, direitos e garantias fundamentais o são, com grande frequência,
precisamente porque — alçados ao texto constitucional — se erigem em limitações
positivas ou negativas ao conteúdo das leis futuras, assim como à recepção das
anteriores à Constituição (cf. Hans Kelsen, Teoria Geral, cit, p. 255).
Se assim é, à primeira vista, parificar às leis ordinárias os tratados a que alude o art.
5º, § 2º, da Constituição, seria esvaziar de muito do seu sentido útil a inovação, que,
malgrado os termos equívocos do seu enunciado, traduziu uma abertura significativa
ao movimento de internacionalização dos direitos humanos.
Ainda sem certezas suficientemente amadurecidas, tendo assim — aproximando-me,
creio, da linha desenvolvida no Brasil por Cançado Trindade (e.q., Memorial cit.,
ibidem, p. 43) e pela ilustrada Flávia Piovesan (A Constituição Brasileira de 1988 e
os Tratado Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, em E. Boucault e N.
Araújo (órgão), Os Direitos Humanos e o Direito Internos) — a aceitar a outorga
de força supra-legal às convenções de direitos humanos, de modo a dar
aplicação direta às suas normas — até, se necessário, contra a lei ordinária —
sempre que, sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou
ampliando os direitos e garantias dela constantes85. (grifo nosso)
A tese da constitucionalidade dos tratados de direitos humanos defendida pelo
Ministro Carlos Velloso fica bem caracterizada quando fala sobre o assunto em artigo
desenvolvido por referido Ministro, remontando a algumas decisões suas no STF sobre a
questão:
Em votos proferidos no Supremo Tribunal Federal, tenho sustentado que são três as
vertentes, na Constituição da República, dos direitos e garantias: a) direitos e
garantias expressos na Constituição; b) direitos e garantias decorrentes do regime e
dos princípios adotados pela Constituição; c) direitos e garantias inscritos nos
tratados internacionais firmados pelo Brasil (Constituição Federal, art. 5o, § 2o). Se
é certo que, na visualização dos direitos e garantias, é preciso distinguir, mediante o
estudo da teoria geral dos direitos fundamentais, os direitos fundamentais materiais
dos direitos fundamentais puramente formais, conforme deixei expresso em voto que
proferi na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.497/DF e em trabalho doutrinário
que escrevi (VELLOSO, 1997a, p. 162), se é certo, repito, que é preciso
distinguirmos direitos fundamentais materiais dos direitos fundamentais puramente
formais, não é menos certo, entretanto, que, diante de direito fundamental material,
que diz respeito à liberdade, inscrito em Tratado firmado pelo Brasil, como, por
exemplo, o que está expresso na Convenção de São José da Costa Rica, art. 7 o, item
7, que limitou a prisão por dívida à hipótese de inadimplemento de obrigação
alimentícia, força é reconhecer que se tem, em tal caso, direito fundamental com
status constitucional. É dizer, o art. 7o, item 7 do citado Pacto de São José da Costa
Rica, é direito fundamental em pé de igualdade com os direitos fundamentais
expressos na Constituição (Constituição, art. 5o, § 2o). Nesse caso, no caso de
tratar-se de direito e garantia decorrente de Tratado firmado pelo Brasil, a
incorporação desse direito e garantia, ao direito interno, dá-se com status
constitucional, assim com primazia sobre o direito comum. É o que deflui,
claramente, do disposto no mencionado § 2o do art. 5o da Constituição da
85
BRASIL. SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, RHC 79.785/RJ, Relator: Min. Sepúlveda Pertence. In
Informativo STF 187 de 29.03.2000. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013.
53
República. O Supremo Tribunal Federal, todavia, não acolheu essa tese86. (grifo
nosso)
Tal posicionamento resume bem o que foi abordado até o momento, visto que
trata os direitos humanos como norma constitucional sob o argumento do dispositivo do § 2º
do art. 5º da CF, diferenciando os direitos fundamentais formais e materiais.
Apesar de tal posicionamento parecer o mais coerente, uma vez que garante ao
texto constitucional uma interpretação que lhe conceda máxima efetividade, somente após o
advento da EC 45/2004, é que a jurisprudência do STF passou, efetivamente, a se preocupar
com a hierarquia que se deve dar aos tratados de direitos humanos. Tal preocupação se deve
ao fato de, com a EC 45/2004, ser inserido o § 3º ao art. 5º da CF, passando a prevê que os
tratados internacionais de direitos humanos, caso aprovados pelo Congresso Nacional em dois
turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, equivaler-se-ão às emendas
constitucionais, ou seja, com a EC 45/2004, possibilitou-se uma equiparação dos tratados
internacionais com a Constituição, daí a maior preocupação sobre o assunto.
O Ministro Gilmar Ferreira Mendes, no julgamento do RE 466.343, de 03 de
dezembro de 2008, de maneira bastante didática, explicou sobre as quatro vertentes dos status
normativo dos tratados de direitos humanos (supraconstitucionalidade, constitucionalidade,
supralegalidade e status de lei ordinária). Em referido voto, o Ministro, apesar de considerar
interessantes as argumentações dos que defendem a hierarquia constitucional dos tratados de
direitos humanos, entende que o novo § 3º do art. 5º da CF esvazia a discussão à respeito do
status constitucional, uma vez que, somente caso seja seguido o quórum de votação
estabelecido em tal parágrafo, é que os tratados de direitos humanos passam a ter status
constitucional.
Em tal voto, Gilmar Mendes mencionou a impossibilidade de se filiar a antiga
corrente que equiparava os tratados de direitos humanos às leis ordinárias, sendo necessária
uma mudança crítica na jurisprudência do STF sobre o assunto. Ao fim, o referido Ministro,
defende o status supralegal dos tratados de direitos humanos, assegurando-se na interpretação
do novo § 3º do art. 5º da CF e, principalmente, sob o argumento da supremacia da
Constituição, visto que os tratados internacionais não podem afrontar a Constituição, mas
86
VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Os tratados na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, ano 41, n.162, p. 35-46, abr/jun. 2004, p. 38-39.
54
devem ter lugar especial no ordenamento interno, superior à lei ordinária87. Veja excertos de
paradigmática decisão:
Apesar da interessante argumentação proposta por essa tese, parece que a discussão
em torno do status constitucional dos tratados de direitos humanos foi, de certa
forma, esvaziada pela promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, a
Reforma do Judiciário (oriunda do Projeto de Emenda Constitucional nº 29/2000),
a qual trouxe como um de seus estandartes a incorporação do § 3º ao art. 5º[...]. Em
termos práticos, trata-se de uma declaração eloquente de que os tratados já
ratificados pelo Brasil, anteriormente à mudança constitucional, e não
submetidos ao processo legislativo especial de aprovação no Congresso
Nacional, não podem ser comparados às normas constitucionais. Não se pode
negar, por outro lado, que a reforma também acabou por ressaltar o caráter
especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de
reciprocidade entre os Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado
no ordenamento jurídico. Em outros termos, solucionando a questão para o futuro
- em que os tratados de direitos humanos, para ingressarem no ordenamento jurídico
na qualidade de emendas constitucionais, terão que ser aprovados em quórum
especial nas duas Casas do Congresso Nacional -, a mudança constitucional ao
menos acena para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos tratados e
convenções internacionais já ratificados pelo Brasil, a qual tem sido
preconizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o remoto
julgamento do RE n° 80.004/SE, de relatoria do Ministro Xavier de Albuquerque
(julgado em 1o.6.1977; DJ 29.12.1977) e encontra respaldo em um largo repertório
de casos julgados após o advento da Constituição de 1988. Após a reforma, ficou
ainda mais difícil defender a terceira das teses acima enunciadas, que prega a ideia
de que os tratados de direitos humanos, como quaisquer outros instrumentos
convencionais de caráter internacional, poderiam ser concebidos como equivalentes
às leis ordinárias.[...]Posteriormente, no importante julgamento da medida cautelar
na ADI n° 1.480-3/DF, Rel. Min. Celso de Mello (em 4.9.1997), o Tribunal voltou a
afirmar que entre os tratados internacionais e as leis internas brasileiras existe mera
relação de paridade normativa, entendendo-se as "leis internas" no sentido de
simples leis ordinárias e não de leis complementares. A tese da legalidade ordinária
dos tratados internacionais foi reafirmada em julgados posteriores (RE n° 206.4823/SP, Rel. Min. Mauricio Corrêa, julgado em 27.5.1998, DJ 5.9.2003; HC n°81.3194/GO, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 24.4.2002, DJ 19. 8. 2005) e mantémse firme na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. É preciso ponderar, no
entanto, se, no contexto atual, em que se pode observar a abertura cada vez
maior do Estado constitucional a ordens jurídicas supranacionais de proteção
de direitos humanos, essa jurisprudência não teria se tornado completamente
defasada.[...] Tudo indica, portanto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, sem sombra de dúvidas, tem de ser revisitada criticamente. [...]
Importante deixar claro, também, que a tese da legalidade ordinária, na medida em
que permite ao Estado brasileiro, ao fim e ao cabo, o descumprimento unilateral de
um acordo internacional, vai de encontro aos princípios internacionais fixados pela
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, a qual, em seu art. 27,
determina que nenhum Estado pactuante "pode invocar as disposições de seu direito
interno para justificar o inadimplemento de um tratado". Por conseguinte, parece
mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos
tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que
os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu
caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também
seriam dotados de um atributo de supralegalidade. Em outros termos, os tratados
sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas
teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação
87
BRASIL. SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, RE 466.343-SP, Pleno. Relator: Min. Cezar Peluso. DJ 104,
publicado em 05.06.2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013.
55
ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção
dos direitos da pessoa humana. Essa tese foi aventada, em sessão de 29 de março de
2000, no julgamento do RHC n° 79.785-RJ, pelo voto do eminente Relator, Min.
Sepúlveda Pertence, que acenou com a possibilidade da consideração dos tratados
sobre direitos humanos como documentos supralegais. [...] Assim, a premente
necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos
interno e internacional torna imperiosa uma mudança de posição quanto ao
papel dos tratados internacionais sobre direitos na ordem jurídica nacional. É
necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades
emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção
do ser humano88. (grifo original)
Tal decisão demonstra a preocupação não apenas do Ministro Gilmar Mendes,
mas do próprio STF, em atualizar sua jurisprudência sobre tratados de direitos humanos,
principalmente porque no referido julgamento (apertado), houve quatro Ministros vencidos –
Celso de Mello, que mudou seu entendimento sobre o assunto, visto que antes apoiava a tese
da “legalidade” dos tratados, Cezar Peluso, Ellen Grace e Eros Grau – , que defenderam a tese
da constitucionalidade. Diante disso, o STF passou a repensar seu posicionamento tradicional
(que conferia aos tratados de direitos humanos status de lei ordinária) e, buscando orientações
no primado da proteção da dignidade humana, a nova visão da Corte passou a ter dois novos
posicionamentos: a supralegalidade, até então posição majoritária, e a constitucionalidade das
normas internacionais de direitos humanos, entendimento ainda minoritário.
Pois bem, como se percebe no voto do Ministro Gilmar Mendes visto acima, a
tese da supralegalidade reconhece que se deve dar tratamento diferenciado aos tratados de
direitos humanos, desde que não desrespeite o princípio da supremacia da Constituição.
Assim, segundo tal tese, os tratados de direitos humanos não podem ser considerados em pé
de igualdade com a Constituição, bem como não podem ser revogados por leis ordinárias,
cabendo-lhes, dentro da hierarquia normativa brasileira, grau superior às leis ordinárias, mas
inferior à Constituição. Ademais, após a inclusão do § 3° ao art. 5º da CF, os tratados
internacionais de proteção aos direitos humanos somente poderão ser equivalentes às emendas
constitucionais, caso sejam aprovados com o respectivo quórum de emenda constitucional,
ficando esvaziada, de acordo com Gilmar Mendes, a discussão a respeito do § 2º do art. 5º da
CF, no qual conferiria constitucionalidade aos tratados de direitos humanos.
É importante destacar que a discussão sobre o assunto existe mesmo antes da EC
45/04, apesar de tal emenda ter dado maior força a polêmica. Na verdade, na prática
jurisprudencial, a discussão em torno da hierarquia dos tratados de direitos humanos no STF,
88
Voto do Ministro Gilmar Mendes no RE 466.343-SP, Pleno. Relator: Min. Cezar Peluso. DJ 104, publicado
em 05.06.2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013.
56
deu-se, principalmente, devido à não previsão, no Pacto de São José da Costa Rica, da prisão
civil do depositário infiel, ou seja, o art. 5º, LXVII da CF prevê a possibilidade de prisão por
dívida alimentar e do depositário infiel, diferentemente do art. 7, VII do Pacto de São José da
Costa Rica que admite a prisão civil apenas no caso de dívida alimentar. Assim, a partir da
tese da supralegalidade capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes, tal possibilidade passou a
não ter aplicação na Constituição brasileira, ou seja, apesar da previsão da prisão civil do
depositário infiel, esta não teria aplicação no ordenamento brasileiro.
Tal posicionamento parece ser bastante confuso e com muitas contradições. Como
se pode afirmar que os tratados de direitos humanos são hierarquicamente inferiores à
Constituição e, mesmo assim, ser aplicado em detrimento de uma clara disposição
constitucional? É isso que ocorre no conflito entre o Pacto de São José da Costa Rica –
ratificado pelo Brasil desde 1992 – e com o inciso LXVII do art. 5º da CF, haja vista que, de
acordo com o novo entendimento do STF, inclusive objeto de súmula vinculante89, não é
possível a prisão do depositário infiel, mesmo havendo disposição constitucional que autorize
tal prisão.
Gilmar Mendes explica tal possibilidade devido ao chamado “efeito paralisante”
das normas infraconstitucionais que conflitem com os tratados internacionais de direitos
humanos, ou seja, para o Ministro, toda norma infraconstitucional que conflite com tais
tratados, tem o seu efeito paralisado, afirmando, ainda, que o texto constitucional deixou de
ter aplicabilidade devido ao efeito paralisante dado às normas infraconstitucionais
decorrentes:
Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que
cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua
internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação
previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e
qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse
sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos
normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário
infiel (art. 5o, inciso LXVII) não foi revogada pelo ato de adesão do Brasil ao Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7o, 7), mas deixou de ter
aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à
legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, [...]. Tendo em vista o
caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação
infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua
eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código
Civil (Lei n° 10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao art. 1.287 do
89
Súmula Vinculante n. 25: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do
depósito” Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 07 out. 2013.
57
Código Civil de 1916. Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7o, 7), não há base legal
para aplicação da parte final do art. 5o, inciso LXVII, da Constituição, ou seja,
para a prisão civil do depositário infiel90. (Grifo Original)
Ao fim, o referido Ministro afirma que o Pacto de São José da Costa Rica, bem
como quaisquer outros tratados de direitos humanos, deverão se submeter ao procedimento
especial de aprovação previsto no art. 5ª, § 3º da Constituição Federal, caso contrário, a estes
não será conferido o status de emenda constitucional91.
Com tal posicionamento, o Ministro simplesmente desconsidera a força normativa
da Constituição, ou seja, em sendo assim, qualquer outro tratado de direitos humanos –
mesmo tendo hierarquia inferior à Constituição – que conflite com a Constituição brasileira
poderá fazer com que esta não seja aplicada, fazendo com que qualquer lei ordinária
decorrente do texto constitucional fique “paralisada” devido ao contraponto trazido por um
tratado internacional.
Ora, tal posicionamento acaba por ofender não apenas a força normativa da
Constituição, mas sua própria supremacia – principal argumento utilizado na defesa dos que
negam a constitucionalidade dos tratados de direitos humanos –, haja vista que possibilita que
um tratado internacional de direitos humanos paralise tanto a norma expressa do texto
constitucional como a norma decorrente de tal texto.
Sobre tal “efeito paralisante”, afirma Carlos Augusto Maliska:
Na questão da prisão civil por dívida, o efeito paralisante provocado pelo Tratado
internacional em razão de sua hierarquia supralegal produz, na prática, situação
jurídica equivalente ao de uma emenda constitucional. A rigor, a prisão civil por
dívida, nesses casos, está vedada, o dispositivo constitucional não possui condições
de produzir efeitos jurídicos. Esse entendimento firmado no voto necessita ser
analisado sob o ponto de vista da força normativa da Constituição, uma vez que ele
propõe uma interpretação da Constituição conforme os Tratados, o que, por certo,
retiraria da Constituição sua força normativa e a colocaria à disposição de
instrumentos normativos infraconstitucionais. (...) Se formalmente o Tratado está
subordinado à Constituição, não há que se falar em efeitos impeditivo, mas em
inconstitucionalidade do Tratado, ou o Tratado está em nível constitucional, assim a
interpretação favorável a ele é dada pela maior deferência aos direitos humanos que
confere o documento internacional se comparado como texto interno, ou o Tratado
está em nível infraconstitucional, sendo inconstitucional por violação ao disposto na
Constituição. Aqui a hierarquia tem preferência sobre a regra da aplicação mais
benéfica. A tese do efeito impeditivo somente é possível nas hipóteses de cláusulas
90
RE 466.343-SP, Pleno. Relator: Min. Cezar Peluso. DJ 104, publicado em 05.06.2009. Disponível em:
<www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013.
91
RE 466.343-SP, Pleno. Relator: Min. Cezar Peluso. DJ 104, publicado em 05.06.2009. Disponível em:
<www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013.
58
abertas da Constituição, em que o contudo é dado pela legislação infraconstitucional,
pois estando o tratado em hierarquia superior à da lei, o legislador ordinário estaria
vinculado ao disposto no documento internacional. Quando o texto do Tratado se
confronta com o texto da Constituição, está diante de uma inconstitucionalidade92.
Como se observa, não há como concordar com tal “efeito paralisante”. A
interpretação dada por Gilmar Mendes em seu voto no RE 466.343, não condiz com o próprio
texto constitucional, como será demonstrado no capítulo seguinte ao abordar, mais
especificamente, sobre a questão dos conflitos entre o ordenamento interno brasileiro e os
tratados internacionais de direitos humanos.
Apesar de todas as considerações colacionadas acima levarem a assegurar a
hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos, o professor Marcelo Novelino
afirma que os tratados internacionais passaram a ter três hierarquias distintas após o
majoritário entendimento do STF. Assim, segundo tal professor, os tratados de direitos
humanos, aprovados na forma de emenda, serão equivalentes às emendas constitucionais (CF,
art. 5º, § 3º); os tratados de direitos humanos, aprovados pelo procedimento ordinário (CF, art.
47), terão status supralegal, situando-se em grau hierárquico inferior à Constituição e superior
à legislação ordinária; e, tratados e convenções internacionais que não versem sobre direitos
humanos, ingressarão no ordenamento jurídico brasileiro com força de lei ordinária93.
Com relação aos tratados internacionais de direitos humanos aprovados
anteriormente à EC 45/2004, o professor Marcelo Novelino, alguns constitucionalistas94, e o
próprio Gilmar Mendes, entendem que, para serem equiparados à norma constitucional, tais
tratados devem ser submetidos a uma nova votação no Congresso Nacional e aprovados nos
termos do art. 5º, § 3° da CF, devendo, tal iniciativa, por analogia, ser provocada pelos
legitimados para propor emenda constitucional (art. 60, I a III / CF)95.
A tese da supralegalidade juntamente com a interpretação distinta entre os tratados
de direitos humanos aprovados antes e depois da EC 45/2004 é completamente incongruente.
Não há como fazer tal diferenciação sob pena de, simplesmente, supervalorizar um direito
formal em detrimento do que a norma pretende passar verdadeiramente. Sobre tal assunto,
Flávia Piovesan adverte:
92
MALISKA, Marcos Augusto. Constituição e cooperação normativa no plano internacional: reflexões sobre o
voto do Ministro Gilmar Mendes no Recurso Extraordinário n. 466.343-1. Espaço Jurídico, Joaçaba, v. 9, n. 2,
p. 113-124, jul./dez. 2008, p. 117-119.
93
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Método, 2009, p. 383-384.
94
Cf. SCORSAFAVA, Francisco Eduardo Torquato, op. cit. p. 30-31; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira.
Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 362.
95
NOVELINO, Marcelo, op. cit., p. 384.
59
Reitere-se que, por força do art. 5º, §2º, todos os tratados de direitos humanos,
independentemente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais,
compondo o bloco de constitucionalidade. O quorum qualificado está tão somente a
reforçar tal natureza, ao adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados
ratificados, propiciando a ‘constitucionalização formal’ dos tratados de direitos
humanos no âmbito jurídico interno. Como já defendido por este trabalho, na
hermenêutica emancipatória dos direitos há que impetrar uma lógica material e não
formal, orientada por valores, a celebrar o valor fundante da prevalência da
dignidade humana. À hierarquia de valores deve corresponder uma hierarquia de
normas e não o oposto. Vale dizer, a preponderância material de um bem jurídico,
como é o caso de um direito fundamental, deve condicionar a forma no plano
jurídico-normativo, e não condicionado por ela96.
No mesmo sentido, Valerio Mazzuoli:
[...] na inteligência do art. 5º, §2º, da Constituição Federal, que o status do produto
normativo convencional, no que tange à proteção dos direitos humanos, não pode ser
outro que não o de verdadeira norma materialmente constitucional. Diz-se
‘materialmente constitucional’, tendo em vista não integrarem tais tratados,
formalmente, a Carta Política, o que demandaria um procedimento de emenda à
Constituição, previsto no art. 60, §2º, o qual prevê que tal proposta “será discutida e
votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se
aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros”.
Integram os tratados de proteção dos direitos humanos, entretanto, o conteúdo
material da Constituição, o ‘bloco de constitucionalidade’ [...]97.
Ademais, deve-se dar ao texto constitucional, uma interpretação que lhe garanta a
máxima efetividade e, no caso de dúvidas, deve-se preferir a interpretação que mais garanta
eficácia aos direitos fundamentais, como bem resume Flávia Piovesan, citando Jorge Miranda,
Konrad Hesse e Canotilho em seus argumentos:
Tal interpretação é consoante com o princípio da máxima efetividade das normas
constitucionais, pela qual, no dizer de Jorge Miranda, ‘a uma norma fundamental
tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional
é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de
regulamentação. Interpretar a Constituição é ainda realizar a Constituição’. Na lição
de Konrad Hesse: ‘a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e
preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está
submetida ao princípio da ótima concretização da norma. [...] A interpretação
adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido da
proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada
situação. [...] A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição
fundamental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua
estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se-á inevitável, cedo ou tarde, a ruptura
da situação jurídica vigente’.
Vale dizer, todas as normas constitucionais são verdadeiras normas jurídicas e
desempenham uma função útil no ordenamento. A nenhuma norma constitucional se
pode dar interpretação que lhe retire ou diminua a razão de ser. Considerando os
96
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 72.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de
1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p.363.
97
60
princípios da força normativa da Constituição e da ótima concretização da norma, à
norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê,
especialmente quando se trata de norma instituidora de direitos e garantias
fundamentais. Como observa Canotilho, o princípio da máxima efetividade das
normas constitucionais ‘é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos
fundamentais – no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça
maior eficácia aos direitos fundamentais’. Está-se assim a conferir máxima
efetividade aos princípios constitucionais, em especial ao princípio do art. 5º, §2º, ao
entender que os direitos constantes dos tratados internacionais passam a integrar o
catálogo dos direitos constitucionalmente previstos98.
Antonio Augusto Cançado Trindade destaca que falta vontade do Judiciário
brasileiro em aplicar § 2º do art. 5° da CF corretamente. O referido autor assevera:
A tese da equiparação dos tratados de direitos humanos à legislação
infraconstitucional – tal como ainda seguida por alguns setores em nossa prática
jurídica – não só representa um apego sem reflexão a uma postura anacrônica, já
abandonada em vários países, mas também contraria o disposto no artigo 5º (2) da
Constituição Federal brasileira. Se se encontrar uma formulação mais adequada – e
com o mesmo propósito – do disposto no artigo 5º (2) da Constituição Federal, tanto
melhor; mas enquanto não for encontrada, nem por isso está o Poder Judiciário
eximido de aplicar o artigo 5º (2) da Constituição. Muito ao contrário, se alguma
incerteza houver, encontra-se no dever de dar-lhe a interpretação correta, para
assegurar sua aplicação imediata; não se pode deixar de aplicar uma disposição
constitucional sob o pretexto de que não parece clara99.
Novamente, Antonio Augusto Cançado Trindade, agora criticando o § 3º do art. 5º
da CF e resumindo bem a resignação da melhor doutrina sobre o assunto, desabafa:
Esta última outorga status constitucional, no âmbito do direito interno brasileiro
(novo artigo 5(3)), tão só aos tratados de direitos humanos que sejam aprovados por
maioria de 3/5 dos membros tanto da Câmara dos Deputados como do Senado
Federal (passando assim a ser equivalentes a emendas constitucionais). Mal
concebida, mal redigida e mal formulada, representa um lamentável retrocesso em
relação ao modelo aberto consagrado pelo artigo 5(2) da Constituição Federal de
1988. No tocante aos tratados anteriormente aprovados, cria um imbroglio tão a
gosto de nossos publicistas estatocêntricos, insensíveis às necessidades de proteção
do ser humano. Em relação aos tratados a aprovar, cria a possibilidade de uma
diferenciação tão a gosto de nossos publicistas míopes, tão pouco familiarizados, assim como os parlamentares que lhes dão ouvidos, - com as conquistas do Direito
Internacional dos Direitos Humanos. Este retrocesso provinciano põe em risco a
interrelação ou indivisibilidade dos direitos protegidos em nosso país (previstos nos
tratados que o vinculam), ameaçando-os de fragmentação ou atomização, em favor
dos excessos de um formalismo e hermetismo jurídicos eivados de obscurantismo.
Os triunfalistas da recente emenda constitucional n. 45/2004, não se dão conta de
que, do prisma do Direito Internacional, um tratado ratificado por um Estado o
vincula ipso jure, aplicando-se de imediato, quer tenha ele previamente obtido
aprovação parlamentar por maioria simples ou qualificada. Tais providências de
ordem interna, - ou, ainda menos, de interna corporis, - são simples fatos do ponto
de vista do ordenamento jurídico internacional, ou seja, são, do ponto de vista
98
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 58-59.
CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Tratado de Direito Internacional de Direitos Humanos,
volume III. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 624, nota 73.
99
61
jurídico internacional, inteiramente irrelevantes. A responsabilidade internacional do
Estado por violações comprovadas de direitos humanas permanece intangível,
independentemente dos malabarismos pseudo-jurídicos de certos publicistas (como a
criação de distintas modalidades de prévia aprovação parlamentar de determinados
tratados, a previsão de pré-requisitos para a aplicabilidade direta de tratados no
direito interno, dentre outros), que nada mais fazem do que oferecer subterfúgios
vazios aos Estados para tentar evadir-se de seus compromissos de proteção do ser
humano no âmbito do contencioso internacional dos direitos humanos. Em
definitivo, a proteção internacional dos direitos humanos constitui uma conquista
humana irreversível, e não se deixará abalar por estes melancólicos acidentes de
percurso100.
Apesar de o § 2º do art. 5º da CF ainda não ser interpretado de maneira correta
pela jurisprudência, é possível, embora que muito tardiamente, que tanto a jurisprudência
pátria como o entendimento do STF passem a entender, de maneira majoritária, a hierarquia
constitucional dos tratados de proteção aos direitos humanos. Primeiro porque o julgamento
que tutelou a supralegalidade dos tratados de direitos humanos em detrimento da tese da
constitucionalidade dos tratados de direitos humanos não foi unânime, visto que venceu por
maioria apertada, com diferença de apenas um voto. Depois porque o próprio STF já
reconheceu que sua jurisprudência deve ser “revisitada criticamente” (nas palavras de Gilmar
Mendes), o que direciona para uma mudança que, realmente, garanta efetividade aos direitos
fundamentais e a dignidade da pessoa humana. Por último já existem algumas decisões tanto
no STF, como em outros Tribunais101, que reconhecem o posicionamento aqui defendido.
A título de exemplo, pode-se citar a mudança de posicionamento do Ministro
Celso de Mello, antes defensor da tese da equiparação com as leis ordinárias dos tratados de
direitos humanos, e hoje ferrenho defensor da equiparação constitucional dos mesmos
tratados. Tal modificação de posicionamento resume bem tudo o que foi explanado. Observe
excertos do voto de referido Ministro no HC 87.585-8:
Vê-se, daí, considerado esse quadro normativo em que preponderam declarações
constitucionais e internacionais de direitos, que o Supremo Tribunal Federal se
defronta com um grande desafio, consistente em extrair, dessas mesmas declarações
internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, a sua máxima eficácia,
em ordem a tornar possível o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais a sistemas
institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob
pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se
palavras vãs.[...] O Poder Judiciário constitui o instrumento concretizador das
liberdades constitucionais e dos direitos fundamentais assegurados pelos tratados e
100
CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Desafios e conquistas do direito internacional dos Direitos
humanos
no
início
do
século
XXI.
Disponível
em:
<http://www.oas.org/dil/esp/407490%20cancado%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.def.pdf>. Acesso em 25 set. 2013, p. 410, nota 4.
101
TRT 15ª – 3ª T, n. 31599/01, Ac. 8046/02-PATR, rel. Juíza Luciane Storel da Silva, DOE de 04.07.2002, p.
28 In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena
de 1969). 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 361, nota 718.
62
convenções internacionais subscritos pelo Brasil. Essa alta missão, que foi confiada
aos juízes e Tribunais, qualifica-se como uma das mais expressivas funções políticas
do Poder Judiciário. [...] É dever dos órgãos do Poder Público – e notadamente dos
juízes e Tribunais – respeitar e promover a efetivação dos direitos humanos
garantidos pelas Constituições dos Estados nacionais e assegurados pelas
declarações internacionais, em ordem a permitir a prática de um constitucionalismo
democrático aberto ao processo de crescente internacionalização dos direitos básicos
da pessoa humana. [...] Após longa reflexão sobre o tema,[...] julguei necessário
reavaliar certas formulações e premissas teóricas que me conduziram a conferir aos
tratados internacionais em geral (qualquer que fosse a matéria neles veiculadas),
posição equivalente à das leis ordinárias. As razões invocadas neste julgamento, no
entanto, convencem-me da necessidade de se distinguir, para efeito de definição de
sua posição hierárquica em face do ordenamento positivo interno, entre as
convenções internacionais sobre direitos humanos (revestidas de ‘supralegalidade’,
como sustenta o eminente Ministro Gilmar Mendes, ou impregnadas de natureza
constitucional, como me inclino a reconhecer) e tratados internacionais sobre as
demais matérias (compreendidos estes numa estrita perspectiva de paridade
normativa com as leis ordinárias). [...] Tenho para mim que uma abordagem
hermenêutica fundada em premissas axiológicas que dão significativo realce a
expressão ao valor ético-jurídico – constitucionalmente consagrado (CF, art. 4°, II) –
da ‘prevalência dos direitos humanos’ permitirá, a esta Suprema Corte, rever a sua
posição jurisprudencial quanto ao relevantíssimo papel, à influência e à eficácia
(derrogatória e inibitória) das convenções internacionais de direitos humanos. [...]
Em decorrência dessa reforma constitucional, e ressalvados as hipóteses a ela
anteriores (considerando quanto a estas, o disposto no §2º do art. 5º da
Constituição), tornou-se possível, agora, atribuir, formal e materialmente, às
convenções internacionais sobre direitos humanos, hierarquia jurídico-constitucional
desde que observado, quanto ao processo de incorporação de tais convenções ao
‘iter’ procedimental concernente ao rito de apreciação e de aprovação das propostas
de Emenda à Constituição, consoante prescreve o §3º do art. 5º da Constituição [...].
É preciso ressalvar, no entanto, como precedentemente já enfatizado, as convenções
internacionais de direitos humanos celebradas antes do advento da EC n. 45/2004,
pois, quanto a elas, incide o §2º do art. 5º da Constituição, que lhes confere natureza
materialmente constitucional, promovendo sua integração e fazendo com que se
subsumam à noção mesma de bloco de constitucionalidade102.
Tal voto bem que poderia servir de parâmetro para os futuros julgamentos da
Suprema Corte brasileira sobre o assunto.
Letícia Quixadá menciona que o julgamento do HC 87.858-8 fora realizado de
maneira conjunta com o RE 349.703 e RE 466.343, este último já demonstrado acima com
relação ao voto do Ministro Gilmar Mendes. A referida autora lembra, ainda, que em tal
julgamento, os ministros Eros Grau e Ellen Gracie, assim como o Ministro Celso de Mello,
passaram a entender que os tratados internacionais de direitos humanos devem ser
recepcionados pelo ordenamento pátrio como norma constitucional. Segundo tal autora, o
Ministro Ilmar Galvão, mudando seu posicionamento anterior no Tribunal, pela hierarquia
constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, argumentou no sentido de
102
BRASIL. SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, HC 87858-8/TO, Pleno. Relator: Min. Marco Aurélio. DJ
118, publicado em 26.06.2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013.
63
reconhecer o bloco de constitucionalidade do art. 5º, parágrafo 2º da Constituição,
interpretação que inviabiliza a prisão civil do depositário infiel103.
Parece bem clara a tendência de mudança tanto na jurisprudência como na
doutrina. É um alento para a efetividade dos direitos fundamentais. No entanto, considerando
os tratados internacionais de direitos humanos equivalentes às normas constitucionais: como
se deve interpretar caso haja conflito entre ambos? Deve-se primar o direito internacional
sobre o direito interno? A Constituição não perderia força com tal interpretação? Eis o ponto
alto do trabalho, que será analisado no capítulo final.
Antes, porém, é importante que se destaque os efeitos e a correta interpretação que
se deve dar ao § 3º do art. 5º da CF, principalmente no que se refere à possível denúncia de
tratados de direitos humanos.
2.4 Efeitos do art. 5º, § 3° da Constituição Federal e a Denúncia dos Tratados de Direitos
Humanos
Apesar das pertinentes críticas ao § 3º do art. 5º da CF, como fazem Valerio
Mazzuoli104 e Antonio Augusto Cançado Trindade105, tal dispositivo constitucional é
realidade no ordenamento jurídico brasileiro, por isso é importante que seja dada ao § 3º do
art. 5º, CF uma interpretação que não retire a eficácia já consagrada pelo § 2º do art. 5º da CF,
visto que, este último dispositivo, estabelece a cláusula de abertura dos direitos fundamentais
e, em consequência, possibilita que os tratados de direitos humanos tenham status de norma
constitucional. Assim, os dois dispositivos devem conviver dentro do texto constitucional, não
sendo necessário que se interprete tais dispositivos a ponto de torná-los esvaziados ou que se
contradigam. É necessário, portanto, que se procure uma argumentação lógica que, além de
conferir máxima eficácia ao texto constitucional, não torne nenhum dos dispositivos
ineficazes.
Não se pode deixar de destacar, ainda que brevemente, os efeitos trazidos pelo o
novo parágrafo do artigo 5º, principalmente com relação à questão da denúncia dos tratados
103
Cf. QUIXADÁ, Letícia Antonio, op. cit., p.55-58.
Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2008, p. 754-758.
105
Cf. CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Desafios e conquistas do direito internacional dos Direitos
humanos
no
início
do
século
XXI.
Disponível
em:
<http://www.oas.org/dil/esp/407490%20cancado%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.def.pdf>. Acesso em 25 set. 2013, p. 410, nota 4.
104
64
de direitos humanos, isto porque há dúvidas com relação a tal possibilidade, haja vista que,
uma vez incorporados ao ordenamento jurídico pelo mecanismo do § 3º, art. 5º da CF, tais
tratados internacionais passariam a ser equivalentes às emendas constitucionais e, em tese,
não poderiam ser retirados do ordenamento jurídico por meio de denúncia.
Como já mencionado, inclusive com entendimento jurisprudencial do STF neste
sentido (posição do Ministro Gilmar Mendes), a redação do dispositivo constitucional sob
análise induz a concluir que, somente se os tratados de direitos humanos forem aprovados no
quórum mencionado pelo parágrafo, é que passariam a ter grau hierárquico constitucional,
levando a crer que os tratados de direitos humanos anteriores a tal dispositivo não teriam
status constitucional, somente se colocado a nova votação e a aprovação ocorresse de acordo
com o quórum estabelecido pelo § 3°106.
O entendimento acima não é o que se deve conferir ao novo dispositivo
constitucional. Como já averiguado no item anterior, o § 3º do art. 5º da CF possibilitou que
os tratados internacionais de direitos humanos sejam, além de materialmente constitucionais –
como já prescreve o § 2º do art. 5º – também sejam formalmente constitucionais, ou seja, com
a aprovação do tratado de direitos humanos de acordo com o quórum do § 3º, aquele passa a
integrar formalmente à Constituição, uma vez que equivale às emendas constitucionais,
enquanto por força do § 2º – sem aprovação do quórum do § 3º – o tratado de direitos
humanos passa a fazer parte do bloco de constitucionalidade, não integrando o texto
constitucional propriamente dito, mas tendo status de norma constitucional por força da
cláusula de abertura dos direitos fundamentais. Este é o entendimento de Valerio Mazzuoli:
Tecnicamente, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos
ratificados pelo Brasil já têm ‘status’ de norma constitucional, em virtude do
disposto no §2º do art. 5º da Constituição, segundo o qual os direitos e garantias
expressos no texto constitucional ‘não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte’, pois, na medida em que a Constituição ‘não exclui’
os direitos humanos provenientes de tratados, é porque ela própria ‘os inclui’ no seu
catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu ‘bloco de constitucionalidade’ e
atribuindo-lhes hierarquia de norma constitucional [...]. Portanto, já se exclui, desde
logo, o entendimento de que os tratados de direitos humanos não aprovados pela
maioria qualificada do §3º do art. 5º equivaleriam hierarquicamente à lei ordinária
federal, uma vez que os mesmos teriam sido aprovados apenas por maioria simples
(nos termos do art. 49, inc. I, da Constituição) e não pelo ‘quorum’ que lhes impõe o
referido parágrafo. Aliás, o §3º do art. 5º em nenhum momento atribui ‘status’ de lei
ordinária aos tratados não aprovados pela maioria qualificada por ele estabelecida.
Dizer que os tratados de direitos humanos aprovados por este procedimento especial
passam a ser ‘equivalentes às emendas constitucionais’ não significa
106
Cf. NOVELINO, Marcelo, op. cit. p. 382-384.
65
obrigatoriamente dizer que os demais tratados terão valor de lei ordinária, ou de lei
complementar, ou o que quer que seja. O que se deve entender é que o ‘quorum’ que
o § 3º do art. 5º estabelece serve tão-somente para atribuir eficácia formal a esses
tratados no nosso ordenamento jurídico ‘materialmente’ constitucionais que eles já
têm em virtude do §2º do art. 5º da Constituição. [...] A diferença entre o §2º, in
fine, e o §3º, ambos do art. 5º da Constituição, é bastante sutil: nos termos da parte
final do §2º do art. 5º, os tratados internacionais (de direitos humanos) em que a
República Federativa do Brasil seja parte, são, a ‘contrario sensu’, incluídos pela
Constituição, passando consequentemente a deter o ‘status’ de norma constitucional
e a ampliar o rol dos direitos e garantias fundamentais (‘bloco de
constitucionalidade’); já nos termos do §3º do mesmo art. 5º da Constituição, uma
vez aprovados tais tratados de direitos humanos pelo ‘quorum’ qualificado ali
estabelecido, esses instrumentos internacionais, uma vez ratificados pelo Brasil,
passam a ser ‘equivalentes às emendas constitucionais'. [...] Falar que um tratado
tem ‘status de norma constitucional’ é o mesmo que dizer que ele integra o bloco de
constitucionalidade material (e não formal) da nossa Carta Magna, o que é menos
amplo que dizer que ele é ‘equivalente a uma emenda constitucional’, o que
significa que nesse mesmo tratado já integra formalmente (além de materialmente) o
texto constitucional. Assim, o que se quer dizer é que o regime ‘material’ (menos
amplo) dos tratados de direitos humanos não pode ser confundido com o regime
‘formal’ (mais amplo) que esses mesmos tratados podem ter, se aprovados pela
maioria qualificada ali estabelecida. Perceba-se que, neste último caso, o tratado
assim aprovado será, além de materialmente constitucional, também formalmente
constitucional. Assim, fazendo-se uma interpretação sistemática do texto
constitucional em vigor, à luz dos princípios constitucionais e internacionais de
garantismo jurídico e de proteção à dignidade humana, chega-se à seguinte
conclusão: o que o texto constitucional reformado quis dizer é que esses tratados de
direitos humanos ratificados pelo Brasil, já têm ‘status’ de norma constitucional, nos
termos do §2º do art. 5º, poderão ainda ser formalmente constitucionais (ou seja, ser
‘equivalentes às emendas constitucionais’), desde que, a qualquer momento, depois
de sua entrada em vigor, sejam aprovados pelo ‘quorum’ do §3º do mesmo art. 5º,
da Constituição107.
Tal entendimento também pode ser visualizado no voto do Ministro Celso de
Mello no HC 87.585-8108, como já citado anteriormente. Outro não é o entendimento de
Flávia Piovesan sobre o assunto:
Desde logo, há que afastar o entendimento segundo o qual, em face do §3º do art. 5º,
todos os tratados de direitos humanos já ratificados seriam recepcionados como lei
federal, pois não teriam obtido o quorum qualificado de três quintos, demandado
pelo aludido parágrafo. [...] Esse entendimento decorre de quatro argumentos: a) a
interpretação sistemática da Constituição, de forma a dialogar os §§ 2º e 3º do art.
5º, já que o último não revogou o primeiro, mas deve, ao revés, ser interpretado à luz
107
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 764-765.
Em decorrência dessa reforma constitucional, e ressalvados as hipóteses a ela anteriores (considerando quanto
a estas, o disposto no §2º do art. 5º da Constituição), tornou-se possível, agora, atribuir, formal e materialmente,
às convenções internacionais sobre direitos humanos, hierarquia jurídico-constitucional desde que observado,
quanto ao processo de incorporação de tais convenções ao ‘iter’ procedimental concernente ao rito de apreciação
e de aprovação das propostas de Emenda à Constituição, consoante prescreve o §3º do art. 5º da Constituição
[...]. É preciso ressalvar, no entanto, como precedentemente já enfatizado, as convenções internacionais de
direitos humanos celebradas antes do advento da EC n. 45/2004, pois, quanto a elas, incide o §2º do art. 5º da
Constituição, que lhes confere natureza materialmente constitucional, promovendo sua integração e fazendo com
que se subsumam à noção mesma de bloco de constitucionalidade. Voto do Ministro Celso de Mello, HC
87858-8/TO, Pleno. Relator: Min. Marco Aurélio. DJ 118, publicado em 26.06.2009. Disponível em:
<www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013.
108
66
do sistema constitucional; b) a lógica e racionalidade material devem orientar a
hermenêutica dos direitos humanos; c) a necessidade de evitar interpretações que
apontem a agudos anacronismos da ordem jurídica; e d) a teoria geral da recepção
do direito brasileiro. Sustenta-se que essa interpretação é absolutamente compatível
com o princípio da interpretação conforme a Constituição. Isto é, se a interpretação
do §3º do art. 5º aponta a uma abertura envolvendo várias possibilidades
interpretativas, acredita-se que a interpretação mais consoante e harmoniosa com a
racionalidade e teleologia constitucional é a que confere ao §3º do art. 5º, fruto da
atividade do Poder Constituinte Reformador, o efeito de permitir a
'constitucionalização formal' dos tratados de proteção de direitos humanos
ratificados pelo Brasil109.
Não há outra interpretação que garanta máxima efetividade ao texto constitucional
brasileiro senão a proposta acima. Desconsiderar o caráter materialmente constitucional dos
tratados de direitos humanos aprovados antes da EC 45/2004, é simplesmente desconsiderar a
própria dignidade da pessoa humana, atributo este também assegurado pelo texto
constitucional brasileiro como ponto central de todos os outros direitos fundamentais. Uma
interpretação em sentido contrário, além de não condizer com os direitos assegurados (e que
devem ser efetivados) pela Constituição Federal, poderá ser contraditória por si só, haja vista
que um tratado de direitos humanos aprovado de acordo com a EC 45/2004, em caso de
conflito com outro tratado de direitos humanos ratificado anterior a tal emenda (não sendo
considerado como norma constitucional) poderá, de acordo com uma lógica de interpretação,
não ser aplicado em relação ao tratado que fora aprovado com o quórum específico. Ora, tal
interpretação não seria a mais correta, visto tratar-se de direitos humanos e, em tais casos, não
é a norma mais formal que deve prevalecer, e sim a norma que mais favoreça ao ser humano.
Outra possibilidade de contradição é mencionada por Flávia Piovesan quando
afirma não ser razoável sustentar que os tratados de direitos humanos já ratificados fossem
recepcionados como lei federal, enquanto os demais adquirissem hierarquia constitucional
exclusivamente em virtude de seu ‘quórum’ de aprovação, pois, por exemplo, o Brasil é parte
da Convenção contra a Tortura de outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes desde 1989 (muito antes da EC 45/2004), estando próximo de ratificar Protocolo
Facultativo de tal Convenção, assim, não seria razoável se a este último – um tratamento
complementar e subsidiário ao principal – fosse conferida hierarquia constitucional, e ao
instrumento principal fosse conferida hierarquia meramente legal, pois, desta maneira
importaria em anacronismo do sistema jurídico, afrontando, ainda, a teoria geral da recepção
acolhida no direito brasileiro110.
109
110
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 72-73.
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 72-73.
67
Observa-se que tais autores propõem uma interpretação que acabam por conciliar
ambos os parágrafos (§ 2º e o § 3º do art. 5º da CF), visto que considera todos os tratados de
direitos humanos com status de norma constitucional, seja ratificado antes ou depois da EC
45/2004, com a única diferença que os tratados de direitos humanos aprovados de acordo com
o quórum do § 3º, além de serem materialmente constitucional, também serão formalmente
constitucionais, pois serão equivalentes à emenda constitucional. Essa é a diferença muito
bem proposta por Flávia Piovesan:
Se os tratados de direitos humanos ratificados anteriormente à Emenda n. 45/2004,
por força dos §§2º e 3º do art. 5º da Constituição, são normas material e
formalmente constitucionais, com relação aos novos tratados de direitos humanos a
serem ratificados, por força do §2° do mesmo art. 5°, independentemente de seu
quorum de aprovação, serão normas materialmente constitucionais. Contudo para
converterem-se em normas também formalmente constitucionais deverão percorrer o
procedimento demandado pelo §3°. [...] Isto porque, a partir de um reconhecimento
explícito da natureza materialmente constitucional dos tratados de direitos humanos,
o §3º do art. 5º permite atribuir o status de norma formalmente constitucional aos
tratados de direitos humanos que obedecerem ao procedimento nele contemplado.
Logo, para que os tratados de direitos humanos a serem ratificados obtenham
assento formal na Constituição, requer-se a observância de quorum qualificado de
três quintos dos votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional, em dois
turnos – que é justamente o quorum exigido para a aprovação de emendas à
Constituição, nos termos do art. 60, §2°, da Carta de 1988. Nessa hipótese, os
tratados de direitos humanos formalmente constitucionais são equiparados às
emendas à Constituição, isto é, passam a integrar formalmente o Texto
Constitucional. [...] Vale dizer, com o advento do §3° do art. 5° surgem duas
categorias de tratados internacionais de proteção de direitos humanos: a) os
materialmente constitucionais; e b) os material e formalmente constitucionais. Frisese: todos os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente
constitucionais, por força do §2° do art. 5°. Para além de serem materialmente
constitucionais, poderão, a partir do § 3° do mesmo dispositivo, acrescer a qualidade
de formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à Constituição, no
âmbito formal111.
A diferença mencionada acima reflete um dos efeitos do § 3° do art. 5º da CF
que é justamente de reformar a constituição, o que não é possível no caso do § 2º do art. 5º da
CF, visto que, neste caso, há apenas um status de norma constitucional, no sentido material, e
não de norma constitucional no sentido formal (e material). Esse é o raciocínio de Valerio
Mazzuoli:
A primeira consequência de se atribuir equivalência de emenda constitucional a um
tratado de direitos humanos[...], é a de que eles passarão a reformar a constituição, o
que não é possível quando se tem apenas o status de norma constitucional. Ou seja,
uma vez aprovado certo tratado pelo quorum previsto pelo §3°, opera-se a imediata
reforma do texto constitucional conflitante, o que não ocorre pela sistemática do §2º
111
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 78-79.
68
do art. 5º, onde os tratados de direitos humanos (que têm nível de normas
constitucionais, sem contudo serem equivalentes às emendas constitucionais) [...]. E
isto significa que, na inteligência do art. 5, §2° da Constituição Federal, que o status
do produto normativo convencional, no que tange à proteção dos direitos humanos,
não pode ser outro que não o de verdadeira norma materialmente constitucional.
Diz-se ‘materialmente constitucional’, tendo em vista não integrarem os tratados,
formalmente, a Carta Política, o que demandaria um procedimento de emenda à
Constituição, previsto no art. 60, § 2º [...]112.
É importante destacar, para que não haja quaisquer dúvidas, que o procedimento
de incorporação dos tratados de direitos humanos, seja antes ou depois do novo parágrafo,
continua o mesmo, ou seja, assinatura do presidente, aprovação congressual e posterior
ratificação presidencial. O que muda é apenas o quórum de votação no Congresso que, para
tornar o tratado de direitos humanos formalmente constitucional, é necessário que a aprovação
seja de acordo com quórum previsto no § 3º, caso contrário, tal tratado será considerado
“apenas” materialmente constitucional, como os demais aprovados antes da EC 45/2004. Esse
também é o entendimento de Valerio Mazzuoli:
[...] Não há que se confundir a equivalência às emendas, de que trata o art. 5°, §3°,
com as próprias emendas constitucionais previstas no art. 60 da Constituição. A
Constituição não diz que estará aprovando uma emenda, mas um ato (neste caso, um
decreto legislativo) que terá equivalência de emenda constitucional. Tudo continua
da mesma forma como antes da EC 45/04, devendo o tratado ser aprovado pelo
Congresso por decreto legislativo, mas podendo o Parlamento decidir se com o
quorum (e somente com o quorum...) de emenda constitucional ou sem ele. Aliás,
foi exatamente dessa forma que agiu o Congresso Nacional brasileiro ao aprovar o
primeiro tratado de direitos humanos com equivalência de emenda constitucional
depois da EC 45/2004, que foi a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência [...] Não é porque o Presidente da República não sanciona as emendas
constitucionais que ele não irá ratificar um tratado internacional aprovado nos
termos do §3° do art. 5° da Constituição. Uma coisa não tem nada a ver com a outra:
a aprovação parlamentar do tratado de direitos humanos (com ou sem o quorum de
emenda) é uma coisa, totalmente diferente dos atos posteriores de ratificação,
promulgação e publicação do mesmo113.
André Ramos Tavares não entende desta maneira. Para ele, após aprovação do
Congresso Nacional com o quórum de emenda constitucional, justamente por tal motivo, não
será mais necessário a ratificação presidencial, haja vista que no procedimento para a
aprovação de emenda constitucional não há a participação do Presidente da República114.
Não se pode concordar com tal entendimento. O entendimento de Valerio
Mazzuoli parece ser o correto, visto que o § 3° do art. 5º da CF estabelece o mesmo quórum
112
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 765-766.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 759-760.
114
TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário no Brasil pós-88 – (Des) estruturando a Justiça. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 46-47.
113
69
de emenda constitucional, não dispondo que os tratados de direitos humanos assim aprovados,
serão emendas constitucionais, mas apenas serão equivalentes às emendas constitucionais.
Ademais, o art. 84, VII da CF estaria sendo desrespeitado, tendo em vista que em tal
dispositivo há menção expressa de competência privativa do Presidente da República para
celebração de tratados, cabendo ao Congresso apenas referendar tal celebração. Ainda assim,
após a aprovação pelo Congresso do tratado, seja de direitos humanos ou não, como já
demonstrado anteriormente, caberá ao Presidente da República ratificá-lo, sendo tal ato
discricionário, ou seja, caso o Presidente não ratifique o tratado, este não terá efeitos no
ordenamento jurídico pátrio115.
Assim, o procedimento de incorporação dos tratados de direitos humanos continua
o mesmo, independentemente do texto do § 3º. O que tal parágrafo estabeleceu foi apenas a
possibilidade do Congresso Nacional equivaler o tratado de direitos humanos às emendas
constitucionais, caso a aprovação seja de acordo com o quórum especial mencionado em tal
dispositivo.
Por último, outra consequência do novo parágrafo trazido pela EC 45/2004 é a
impossibilidade de denúncia dos tratados de direitos humanos aprovados de acordo com o
quórum especial, visto que, neste caso, os tratados internacionais, como mencionado
anteriormente, agora integram formalmente o texto constitucional, ou seja, tais tratados
passam a integrar a Constituição e por se tratar de direitos humanos e, consequentemente, de
direitos fundamentais, serão considerados cláusulas pétreas, não podendo, assim, serem
retirados do ordenamento jurídico mediante denúncia ou qualquer outro ato, inclusive,
emenda à Constituição.
Desta maneira, Flávia Piovesan entende que os tratados internacionais de direitos
humanos aprovados com o quórum especial do § 3º são insuscetíveis de denúncia, pois,
diferentemente dos tratados de direitos humanos aprovados sem a observância de tal quórum,
passaram a compor o quadro constitucional não apenas no campo material, mas também no
formal, não sendo admissível que um ato isolado e unilateral do Poder Executivo retire os
direitos consagrados em tais tratados, mesmo quando em tais tratados esteja prevista a
possibilidade de denúncia. No entanto, a referida autora, lembra que seria mais coerente se o
ato de denúncia, no caso dos tratados de direitos humanos aprovados na forma do § 2º do art.
5º da CF, ocorresse do mesmo modo que fosse ratificado, ou seja, seria necessário a
115
Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 762-763.
70
participação do Legislativo referendando tal denúncia, o que não ocorre na prática
brasileira116.
Valerio de Oliveira Mazzuoli também concorda com tal entendimento,
mencionando, ainda, que, caso o Presidente denuncie os tratados de direitos humanos
aprovados na sistemática do § 3º, poderá ser responsabilizado, visto que, de acordo com o art.
85, III da CF, “são crimes de responsabilidade atos presidências que atentem contra a
Constituição Federal e, especialmente, contra o exercício dos direitos políticos, individuais e
sociais”. Assim, segundo tal autor, justamente por ser equivalerem às emendas constitucionais
e, portanto, cláusulas pétreas do texto constitucional, é que tais tratados de direitos humanos
não poderão ser denunciados nem mesmo por Projeto de Denúncia do Congresso Nacional. O
referido autor completa, ainda, que tecnicamente é possível a denúncia de tratados de direitos
humanos aprovados sem a observância do quórum especial, no entanto, é totalmente ineficaz
sob o ponto de vista prático, “uma vez que os efeitos do tratado denunciado continuam a
operar dentro do nosso ordenamento jurídico, pelo fato de eles serem cláusulas pétreas do
texto constitucional”117.
Paulo Henrique Gonçalves Portela, com o raciocínio conciliador, afirma que
“deve ser mantida a possibilidade de o Estado brasileiro denunciar um tratado de direitos
humanos, mas apenas para que seja substituído por outro ato internacional que amplie a
proteção da pessoa”. No entanto, o referido autor afirma que, mesmo assim, tal denúncia não
poderia ser exercida exclusivamente pelo Poder Executivo, sem a participação do
Legislativo118.
Importante mencionar que tal problemática está sendo discutida no STF por meio
da ADI 1625, proposta por conta da denúncia da Convenção 158 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), tratado este que traz em seu bojo, normas de direitos
humanos. Na referida ADI, apesar de estar sem andamento desde 2009, parece sinalizar no
sentido de reconhecer a participação do Congresso Nacional nos atos de denúncia.
Aliás, este foi entendimento do Ministro Joaquim Barbosa em seu voto-vista na
ADI 1625, oportunidade em que julgou o pedido integralmente procedente para declarar a
inconstitucionalidade do decreto impugnado por entender não ser possível ao Presidente da
República denunciar tratados sem o consentimento do Congresso Nacional. Afirmou que a
116
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 80-82.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 769-770.
118
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, op. cit. p. 747.
117
71
Constituição de 1988 fortaleceu extremamente o papel do Poder Legislativo em várias áreas, e
que, por isso, seria inviável levar adiante um argumento de natureza constitucional que
pretendesse dele retirar uma função relevante na denúncia de tratados, ante a ausência total de
normas a respeito. Concluiu, por fim, não ser possível sua denúncia pelo Poder Executivo sem
a intervenção do Congresso Nacional. Do contrário, permitir-se-ia que uma norma de grau
hierárquico bastante privilegiado pudesse ser retirada do mundo jurídico sem a intervenção de
um órgão legislativo, e, ainda, que o Poder Executivo, por vontade exclusiva, reduzisse de
maneira arbitrária o nível de proteção de direitos humanos garantido aos indivíduos no
ordenamento jurídico nacional119. Importante destacar que, na ADI 1625, não fora discutida a
denúncia de tratados de direitos humanos aprovados na sistemática do § 3º do art. 5º da CF.
Como se observa, de acordo com o entendimento do STF, encaminha-se para a
possibilidade de denúncia dos tratados de direitos humanos, desde que haja participação do
Legislativo. No entanto, tal possibilidade de denúncia é irrelevante para Dirley da Cunha
Junior, ou seja, para ele os tratados de direitos humanos, mesmo denunciados, continuarão em
plena vigência, devido terem sido absorvidos pelo texto constitucional:
[...] e se o tratado internacional for denunciado? Como resposta sustentamos que isso
é irrelevante, uma vez que o direito fundamental já terá sido absorvido pela
Constituição e tornado indispensável e inseparável dela, isto é, insuscetível a ser
suprimido, em face da cláusula de irredutibilidade ou eternidade do inciso IV, §4º do
art. 60 da Constituição Brasileira, que consagrou no direito constitucional brasileiro
o princípio da irreversibilidade ou irrevogabilidade dos direitos fundamentais.
Ademais disso, está-se, aqui, lançando os olhos para outro horizonte: o da dignidade
e prevalência dos direitos humanos fundamentais, expressamente reconhecidos pela
Constituição (art. 1°, III e art. 4°, II), para além do consagrado conceito
materialmente aberto desses direitos, o que significa afirmar que é indiferente se a
fonte que lhe concedeu publicidade foi extinta. Assim, não compartilhamos com o
entendimento corrente de que os direitos fundamentais deixam de existir se o tratado
que os reconheceu for denunciado pelo Estado signatário[...]120.
Tal entendimento é o que se espera que seja consagrado tanto pela doutrina como
pela jurisprudência. Ora, se os tratados de direitos humanos devem ter status de norma
constitucional, seja material ou formal (ou tanto material como formal), outra interpretação
não há, senão a de considerar tais tratados como cláusulas pétreas, por se tratarem de direitos
fundamentais e, consequentemente, serem insuscetíveis de denúncia e de retirada do
ordenamento jurídico brasileiro.
119
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo 549. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 13 out.
2013.
120
CUNHA JUNIOR. Dirley da, op. cit., p. 679.
72
3
CONFLITO ENTRE TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS
E A ORDEM INTERNA BRASILEIRA: A PRIMAZIA DA NORMA MAIS
FAVORÁVEL AO SER HUMANO
Os tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao ordenamento
jurídico brasileiro, além de terem aplicação imediata, conforme interpretação do art. 5, § 1° da
CF, devem ser considerados como normas constitucionais, no sentido material, conforme art.
5º, § 2° da CF. Tal interpretação, que até então não encontra posição majoritária no STF, mas
é seguida pela melhor doutrina, bem como por alguns julgados da própria Suprema Corte
brasileira, traz alguns possíveis impactos jurídicos no ordenamento interno brasileiro.
Flávia Piovesan menciona três possíveis impactos jurídicos no ordenamento
brasileiro ocasionados pela incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos,
quais sejam: I – coincidir com o direito assegurado pela Constituição; II – integrar,
complementar e ampliar o universo de direitos constitucionalmente previstos; ou III –
contrariar preceito de Direito interno121.
O primeiro possível impacto fica bem demonstrado em algumas disposições
constitucionais que apenas copiam ou reproduzem preceitos constantes em tratados
internacionais de direitos humanos, por exemplo, o art. 5º, III da CF, ao prever que “ninguém
será submetido à tortura nem a tratamento cruel desumano ou degradante”, reproduz fielmente
o art. 5º (2) da Convenção Americana, bem como o art. 7º do Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos. Vários são os outros dispositivos constitucionais que apenas reproduzem o
texto de tratados de direitos humanos, dentre eles, o art. 5º, caput da CF (todos são iguais
perante a lei), e o inciso LVII do art. 5º da CF (princípio da inocência presumida).
O segundo impacto possível ocorre quando há disposições em tratados de direitos
humanos que não estão expressamente previstos na ordem interna. Tal possibilidade poderá
ocorrer devido a não-exaustividade de direitos fundamentais prevista na própria Carta
Constitucional brasileira, em seu art. 5º, § 2°. O exemplo mais conhecido é o direito do duplo
grau de jurisdição como garantia mínima, não previsto expressamente no ordenamento
brasileiro, mas reconhecido na prática jurídica, estando expressamente assegurado no art. 8º, h
e art. 25(1) da Convenção Americana122.
121
122
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 97.
Cf. PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 98-103.
73
O terceiro possível impacto diz respeito à possibilidade de conflito entre o tratado
de proteção aos direitos humanos e a ordem interna. Neste caso, considerando os tratados de
direitos humanos como norma constitucional, como resolver tal conflito? Os tratados se
sobressaem à ordem interna ou esta deve prevalecer perante os tratados? Em tais casos, devese aplicar o critério cronológico ou da especialidade para solucionar o conflito?
Como se observa, a questão sobre possíveis conflitos entre a ordem interna
brasileira e os tratados de direitos humanos é polêmica. Tanto que, há muitos anos, a doutrina
clássica discute sobre a primazia do direito interno sobre o direito internacional ou vice-versa,
refletindo a clássica discussão entre monismo e dualismo. Tal discussão, como já analisada
anteriormente, está ultrapassada, visto que tais teorias abordam apenas aspectos formais e
acabam por deixar de lado aspectos materiais, ou seja, não discute a essência das normas em
conflito, sequer pondera qual valor deve prevalecer, apenas seguem uma linha formal de
pensamento preestabelecido.
Justamente por conta de tal formalismo excessivo em detrimento dos aspectos
materiais, é que Antonio Augusto Cançado Trindade, mencionando que as posições monista e
dualista são irreconciliáveis, afirma que a proposta de diferença entre os dois ordenamentos
(interno e internacional), dificilmente poderia fornecer uma resposta satisfatória à questão da
proteção internacional dos direitos humanos. Para tal autor, no presente domínio de proteção,
o direito internacional e o direito interno conformam um todo harmônico, apontando na
mesma direção, sendo que as normas jurídicas, seja ela interna ou internacional, devem
procurar socorrer os seres humanos, formando um ordenamento jurídico de proteção,
mostrando-se, assim, o direito internacional e o direito interno, em constante interação, em
benefício dos seres humanos protegidos123.
Tal argumento demonstra que não há que se discutir as teorias monista e dualista
quando o assunto é tratados de direitos humanos, visto que, tanto a norma interna como a
internacional, devem ter um único fim, qual seja: a proteção ao ser humano, utilizando-se da
primazia da norma mais favorável ao ser humano em caso de conflito entre lei interna e lei
internacional. É o que assegura Antônio Augusto Cançado Trindade:
No presente domínio de proteção, não mais há pretensão de primazia do direito
internacional ou do direito interno, como ocorria na polêmica clássica e superada
entre monistas e dualistas. No presente contexto, a primazia é a da norma mais
123
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p. 506.
74
favorável às vítimas, que melhor as proteja, seja ela norma de direito internacional
ou de direito interno124.
Mesmo com o esvaziamento de tal discussão (entre monismo e dualismo), por
muitos anos a jurisprudência brasileira considerou todos os tratados internacionais com status
de leis ordinárias, aplicando, em caso de conflito, os critérios de soluções de antinomias
tradicionais (hierarquia, cronológico e especialidade).
Tal entendimento passou a ser “reanalisado” no julgamento do RE 466.343 –
conforme citado no capítulo 2 – oportunidade em que o Ministro Gilmar Mendes defendeu a
tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos, ocasionando um “efeito paralisante”
nas normas em sentido contrário, muito embora, no mesmo voto, também tenha reconhecido a
força argumentativa da doutrina defensora dos tratados de direitos humanos como normas
constitucionais.
Pois bem, após paradigmático julgamento, o STF realmente passou a reanalisar
sua jurisprudência, tanto que a tese da supralegalidade, apesar de majoritária, está longe de ser
unânime, visto que há Ministros, dentre eles Celso de Mello e Joaquim Barbosa, que
defendem a tese da constitucionalidade de tratados de direitos humanos, reconhecendo a
primazia da norma mais favorável à vítima como solução em caso de conflitos.
É justamente tal solução que se propõe em caso de conflito entre o direito interno
e os tratados de direitos humanos incorporados. A referida solução não é nova na doutrina,
muito embora, somente em tempos atuais, passou a ser mais defendida e efetivamente
utilizada, isto devido aos recentes julgamentos do STF em tal sentido.
Mesmo antes da emenda constitucional 45/2004 que, apesar das críticas, talvez
tenha sido o principal pivô para a rediscussão sobre o sistema de incorporação e hierarquia
normativa dos tratados de direitos humanos no Brasil, Valerio de Oliveira Mazzuoli já
criticava o tradicional método utilizado pela jurisprudência brasileira, como se observa:
[...] estamos convictos de que as soluções dadas até então para o problema da
hierarquia entre tratados internacionais e a lei interna, não são das melhores. Aliás,
são das piores. A falta de lógica-jurídica que assola, neste campo, os nossos
tribunais, é assustadora. As soluções que precisamos, no mais das vezes, se fez
presente bem em frente dos nossos olhos. A solução para o nosso problema é
simples e não requer quase que nenhum esforço do intérprete. Tal solução vêm
justamente do estudo mais acurado dos direitos humanos. Atualmente, o que se vem
percebendo é o surgimento gradual de uma nova mentalidade, mais aberta e
otimista, em relação aos Direitos Humanos, principalmente dessa nova geração de
124
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p. 542.
75
juristas. Não mais se cogita, para esse novo grupo, em monismo e dualismo, o que já
estaria (e efetivamente está!) por demais superado. O que pretendem, ao que nos
parece, é que seja dado às normas de direitos humanos provenientes de tratados
internacionais, o seu devido valor. Não admitem essa igualização dos tratados com a
legislação interna do país. Ao contrário: desejam ver aqueles compromissos
internacionais igualados à Constituição do Estado125.
A solução mencionada por tal autor não é outra senão a primazia da norma mais
favorável à vítima ou ao ser humano. O referido princípio decorre da própria dignidade da
pessoa humana e encontra guarida no art. 4º, II da Constituição Federal, ao estabelecer: “A
República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes
princípios: II - prevalência dos direitos humanos”126. Ademais, segundo o art. 5, § 2º da CF,
os tratados internacionais ingressam no ordenamento jurídico brasileiro como normas
materialmente constitucionais, desta maneira, em caso de conflito entre o texto constitucional
já vigente e os tratados internacionais de direitos humanos incorporados, não há que se falar
em soluções tradicionais para o conflito, como a utilização de critérios da especialidade,
hierarquia ou cronológico. É necessário, ainda, considerar o princípio da dignidade da pessoa
humana, também expressamente previsto no texto constitucional brasileiro (art. 1°, III da CF),
assegurando a todo e qualquer ser humano, uma posição central no ordenamento jurídico
pátrio.
Portanto, não há teses ou explicações “mirabolantes” para colocar a primazia da
norma mais favorável ao ser humano como solução para possíveis conflitos entre a
Constituição da República brasileira e tratados internacionais de direitos humanos, visto que é
a própria Constituição Federal que fundamenta tal primazia, isto porque prevê o princípio da
prevalência dos direitos humanos, conforme dispõe o seu art. 4º, II. Assim, sendo a
prevalência dos direitos humanos princípio explícito da República Federativa do Brasil nas
relações internacionais, os tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao
ordenamento pátrio poderão prevalecer frente ao texto constitucional em caso de conflito com
este, caso forem mais benéficos. Tal possibilidade, como se obseva claramente, tem
fundamento na própria Constituição brasileira.
Desta maneira, não há como simplesmente desconsiderar todas as disposições
constitucionais previstas acima. Disposições estas que tornam a Constituição brasileira
125
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. A influência dos tratados internacionais de direitos humanos no direito
interno.
Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 37, 1 dez. 1999. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/1608/a-influencia-dos-tratados-internacionais-de-direitos-humanos-no-direitointerno>. Acesso em 21 ago. 2013.
126
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado,
1988.
76
legítima e democrática, até mesmo porque a dignidade da pessoa humana é anterior ao próprio
Direito e ao próprio Estado, como bem menciona o professor Elimar Szaniawski:
A ideia de que todo o ser humano é possuidor de dignidade é anterior ao direito, não
necessitando, por conseguinte, ser reconhecida juridicamente para existir. Sua
existência e eficácia prescinde de legitimação, mediante reconhecimento expresso
pelo ordenamento jurídico. No entanto, dada a importância da dignidade, como
princípio basilar que fundamenta o Estado Democrático de Direito, esta vem sendo
reconhecida, de longa data, pelo ordenamento jurídico dos povos civilizados e
democráticos, como um princípio jurídico fundamental, como valor unificador dos
demais direitos fundamentais, inserido nas Constituições, como um princípio
jurídico fundamental127.
Dada a fundamentalidade da dignidade da pessoa humana e a consequente
proteção que se deve dar ao ser humano, seja na ordem interna, seja na ordem internacional,
Flávia Piovesan sintetiza bem o que foi mencionado neste trabalho, utilizando-se da primazia
da norma mais favorável, para demonstrar a devida proteção ao ser humano:
Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados
pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo
instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Nesta ótica,
os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos
indivíduos protegidos. O propósito da coexistência de distintos instrumentos
jurídicos - garantindo os mesmos direitos - é, pois, no sentido de ampliar e fortalecer
a proteção dos direitos humanos. O que importa é o grau de eficácia da proteção, e,
por isso, deve ser aplicada a norma que, no caso concreto, melhor proteja a vítima.
Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam,
interagindo com o sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior
efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive
a lógica e principiologia próprias do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Vale dizer, a lógica do Direito dos Direitos Humanos é, sobretudo, uma lógica
material, inspirada no valor da dignidade humana. São aqui afastados os critérios da
temporalidade (lei posterior revoga lei anterior com ela incompatível) e da
especialidade (lei especial revoga a lei geral no que ela tem de especial). A lógica é
exclusivamente material: merece prevalência a norma mais benéfica, mais protetiva
e mais favorável (independentemente se anterior ou posterior, se geral ou especial).
Nesta perspectiva, em que a primazia é da pessoa humana, o ser humano é concebido
como um fim em si mesmo e jamais como um meio, como já explicava Kant. É um
ser essencialmente moral, dotado de unicidade e de integridade, sob o manto da
dignidade humana, valor fonte da experiência jurídica. [...] A condição humana é
requisito único e exclusivo, reitere-se, para a titularidade de direitos. Isto porque
todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não
dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano128.
127
SZANIAWSKI, Elimar apud VAZ, Wanderson Lago; REIS, Clayton. Dignidade da Pessoa Humana. Revista
Jurídica Cesumar. v. 7, n. 1, p. 181-196, jan/jun. 2007, p. 190.
128
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, o Princípio da Dignidade Humana e a Constituição Brasileira de
1988. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 94, n. 833, p. 41-53, mar. 2005, p. 46-47.
77
De acordo com tais ensinamentos, o ser humano sempre deve vir em primeiro
plano, podendo ser aplicada ao caso concreto tanto a norma de origem interna como a norma
proveniente de tratados internacionais de direitos humanos.
No caso brasileiro, há expressa previsão constitucional da primazia do ser
humano. Ademais, o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos
(Pacto São José da Costa Rica), que estabelece regras interpretativas, mais precisamente em
seu artigo 29, dispondo que "nenhuma disposição da Convenção pode ser interpretada no
sentido de: limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser
reconhecidos em virtude de leis que qualquer dos Estados-partes ou em virtude de
Convenções em que seja parte um dos referidos Estados"129. Assim, de acordo com tal
dispositivo, a própria Convenção, ou qualquer outro tratado internacional, não poderá limitar
o direito ou liberdade de qualquer cidadão já assegurado pelo Estado-membro, ou seja,
segundo tal regra interpretativa, o próprio tratado reconhece que pode não ser aplicado, caso
limite um direito já consagrado. É exatamente o que afirma Antonio Augusto Cançado
Trindade:
[...] No presente contexto, a primazia é a da norma mais favorável às vítimas, que
melhor as proteja, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno. Este
e aquele aqui interagem em benefício dos seres protegidos. É a solução
expressamente consagrada em diversos tratados de direitos humanos, da maior
relevância por suas implicações práticas. [...] No plano global, o Pacto de Direitos
Civis e Políticos proíbe expressamente qualquer restrição ou derrogação aos direitos
humanos reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte, em virtude de outras
convenções, ou de leis, regulamentos ou costumes, 'sob pretexto de que o presente
Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau' (artigo 5(2)). Tanto a
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (artigo 5) quanto a Convenção
sobre o Estatuto dos Apátridas (artigo 5), prevêem igualmente que nenhuma de suas
disposições prejudicará os outros direitos e vantagens concedidos respectivamente
aos refugiados e apátridas, independentemente delas. [...] No plano regional, a
mesma ressalva se encontra na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que
proíbe a interpretação de qualquer de suas disposições no sentido de limitar o gozo e
exercício de quaisquer direitos que 'possam ser reconhecidos de acordo com as leis
de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja Parte
um dos referidos Estados' (artigo 29(b)); proíbe, ademais, a interpretação de
qualquer de suas disposições no sentido de excluir ou limitar 'o efeito que possam
129
Artigo 29 - “Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de:
a) permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e
liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; b) limitar o gozo
e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos
Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados; c) excluir outros
direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de
governo; d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem e outros atos internacionais da mesma natureza”.- Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto
de San José da Costa Rica). Decreto Presidencial n.° 678 de 06 de novembro de 1992. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em 23 out. 2013.
78
produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos
130
internacionais de mesma natureza' (artigo 29(d)) .
De maneira bem didática, ensina Flávia Piovesan:
[...] Como solucionar eventual conflito entre a Constituição e determinado tratado
internacional de proteção dos direitos humanos? Poder-se-ia imaginar, como
primeira alternativa, a adoção do critério ‘lei posterior revoga lei anterior com ela
incompatível’, considerando a natureza constitucional dos tratados internacionais de
direitos humanos. Contudo, exame mais cauteloso da matéria aponta para um
critério de solução diferenciado, absolutamente peculiar ao conflito em tela, que se
situa no plano dos direitos fundamentais. E o critério a ser adotado se orienta pela
escolha da norma mais favorável à vítima. Vale dizer, prevalece a norma mais
benéfica ao indivíduo, titular do direito. O critério ou princípio da aplicação do
dispositivo mais favorável à vítima não é apenas consagrado pelos próprios tratados
internacionais de proteção dos direitos humanos, mas também encontra apoio na
prática ou jurisprudência dos órgãos de supervisão internacionais. [...] Isto é, no
plano de proteção dos direitos humanos interagem o Direito Internacional e o Direito
interno movidos pelas mesmas necessidades de proteção, prevalecendo as normas
que melhor protejam o ser humano, tendo em vista que a primazia é da pessoa
humana. Os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos
apenas vêm a aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de
proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional131.
Portanto, tanto a Constituição brasileira como o mais abrangente tratado de
direitos humanos incorporado pelo Brasil, asseguram a aplicação da norma mais benéfica ao
ser humano em caso de eventual conflito entre a ordem interna e os tratados internacionais.
Vale lembrar que na prática jurídica brasileira, se discutiu durante muitos anos, o
conflito entre o Pacto de São José da Costa Rica e o art. 5°, LXVII da CF, uma vez que, no
Pacto de São José, em seu art. 7, VII, não é admissível a prisão do depositário infiel,
permitindo a prisão civil apenas no caso de dívida alimentar, diferentemente da previsão
constitucional que possibilita a prisão do depositário infiel e do devedor de pensão alimentícia
por ato voluntário e inescusável.
De início, de acordo com o entendimento do STF e da maioria dos Tribunais, era
perfeitamente possível a prisão do depositário infiel, uma vez que o Pacto de São José era
considerado como lei ordinária, assim, não poderia simplesmente desrespeitar o texto da
Constituição. No entanto, a partir do ano de 2007, a discussão sobre a prisão do depositário
infiel retornou ao STF, ocasião em que, por unanimidade, a Suprema Corte entendeu pela
impossibilidade de prisão em tais casos. Os fundamentos da decisão do Supremo Tribunal
130
131
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p. 542-544.
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 103-104.
79
Federal é que foram divergentes. Uma corrente (a majoritária), liderada por Gilmar Mendes,
entendeu que os tratados de direitos humanos têm valor supralegal, prevalecendo sobre a lei
ordinária, mas hierarquicamente inferior à Constituição. A outra corrente, liderada por Celso
de Mello, assegurou o status constitucional dos tratados de direitos humanos132.
Gilmar Mendes explica a tese da supralegalidade se assegurando no “efeito
paralisante” das normas infraconstitucionais que conflitem com os tratados internacionais de
direitos humanos, ou seja, para o Ministro, toda norma infraconstitucional que conflite com
tais tratados, tem o seu efeito paralisado, sendo que o texto constitucional deixa de ter
aplicabilidade devido ao efeito paralisante dado às normas infraconstitucionais decorrentes da
Constituição.
Não há como concordar com a explicação do Ministro Gilmar Mendes, muito
menos, sequer, consegue-se entender o raciocínio do "efeito paralisante" sob o ponto de vista
lógico-jurídico, isto simplesmente porque, primeiro, desconsidera a força normativa da
Constituição, ou seja, sendo assim, qualquer outro tratado de direitos humanos – mesmo tendo
hierarquia inferior à Constituição – que conflite com a Constituição brasileira poderá fazer
com que esta não seja aplicada, fazendo com que qualquer lei ordinária decorrente do texto
constitucional fique “paralisada” devido ao contraponto trazido por um tratado internacional.
Ademais, o texto constitucional não estaria sendo respeitado de maneira sistemática, haja
vista que existem outros argumentos mais coerentes e de simples entendimento para explicar a
impossibilidade da prisão do depositário infiel. Tal argumento é justamente a primazia da
norma mais favorável ao ser humano.
A explicação é simples: como os tratados de direitos humanos (no caso em
questão, a Convenção Americana de Direitos Humanos) é norma materialmente constitucional
devido à cláusula de abertura dos direitos fundamentais disposta no § 2° do art. 5° da CF, não
há como, simplesmente, deixar de aplicar uma norma constitucional fundamental em
detrimento de outra norma constitucional. Neste caso, como a Constituição Federal, em seu
art. 5º, inciso LXVII, possibilita a prisão do depositário infiel e a Convenção Americana não
permite tal possibilidade, deve-se aplicar a norma mais benéfica, respeitando o preceito
constitucional assegurado no art. 4º, II da CF, bem como, em respeito à própria dignidade da
pessoa humana, princípio previsto no art. 1º, III da CF, não havendo que se falar em
hierarquia de normas ou de critérios cronológico ou da especialidade para solucionar a
132
Cf. RE 466.343-SP, Pleno. Relator: Min. Cezar Peluso. DJ 104, publicado em 05.06.2009. Disponível em:
<www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013.
80
antinomia. Ainda assim, há as disposições interpretativas dispostas na própria Convenção
Americana, que assegura em seu art. 29, a impossibilidade de limitação de direitos
fundamentais previstos em tratados internacionais ou no direito interno.
É exatamente este o entendimento de Valerio Mazzuoli:
O raciocínio é simples: abstraindo-se a referência aos tratados internacionais, o texto
constitucional dispõe que os direitos e garantias expressos na Constituição, não
excluem outros ‘decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados’. Um
dos princípios constitucionais expressamente consagrados pela Magna Carta, o qual,
inclusive, é norteador da República Federativa do Brasil, é o princípio
da prevalência dos direitos humanos (CF, art. 4.º, II). Ora, se é princípio da
República Federativa do Brasil a prevalência dos direitos humanos, a outro
entendimento não se pode chegar, senão o de que todo tratado internacional
de direitos humanos terão prevalência, no que forem mais benéficos, às normas
constitucionais em vigor. A conclusão, aqui, mais uma vez, decorre da própria
lógica jurídica, que não pode ser afastada, interpretando-se corretamente aqueles
preceitos. Fazendo-se uma interpretação sistemática da Constituição, que proclama
em seu art. 4.º, II, que o Brasil se rege em suas relações internacionais pelo princípio
da prevalência dos direitos humanos, e em seu art. 1.º, III, que o Brasil constitui-se
em Estado Democrático de Direito, tendo como fundamento, inter alia, a dignidade
da pessoa humana, a outra conclusão não se chega, senão a de que a vontade do
legislador, no art. 5.º, § 2.º da Carta da República, foi realmente aquela apontada
pelo ilustre professor Antônio Augusto Cançado Trindade. Assim, quando a
Constituição dispõe em seu art. 4.º, II, que a República Federativa do Brasil rege-se,
nas suas relações internacionais, dentre outros, pelo princípio da prevalência dos
direitos humanos, está, ela própria, a autorizar a incorporação do produto normativo
convencional mais benéfico, pela porta de entrada do seu art. 5.º, § 2.º, que como já
foi visto, tem o caráter de cláusula aberta à inclusão de novos direitos e garantias
individuais provenientes de tratados. [...] Por sua vez, a dignidade da pessoa
humana, como leciona o Prof. José Afonso da Silva, ‘é um valor supremo que atrai o
conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida’,
concepção da qual também se filia Canotilho quando diz ser a dignidade da pessoa
humana ‘a raiz fundamentante dos direitos humanos’133.
A interpretação que melhor representa uma proteção dos direitos humanos e que
chega mais próximo de garantir a dignidade da pessoa humana é a que foi exposta acima. A
título de exemplo, pode-se mencionar outro conflito entre o Pacto de São José e a
Constituição Federal, pouco lembrado na doutrina e na própria jurisprudência, qual seja: a
Convenção Americana (art. 7º, VII) diz que ninguém deve ser detido por dívidas e que este
princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude
de inadimplemento de obrigação alimentar. Por sua vez, o inciso LXVII do art. 5º da CF,
possibilita a prisão civil em decorrência de dívida alimentar, mas desde que haja
inadimplemento voluntário e inescusável. Ou seja, neste ponto, a Constituição brasileira é
mais exigente que a Convenção Americana, pois, esta última, possibilita a prisão civil em
133
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/1608/a-influenciados-tratados-internacionais-de-direitos-humanos-no-direito-interno>. Acesso em 21 ago. 2013.
81
decorrência de dívida alimentar sem fazer qualquer ressalva, enquanto a Constituição
brasileira admite tal prisão, desde que haja inadimplemento voluntário e inescusável134.
Em tal situação, há um conflito de normas e, como solução, deve-se interpretar de
acordo com a norma mais favorável ao indivíduo e, no caso concreto acima exposto, a norma
mais favorável é a Constituição brasileira e não a Convenção Americana, diferentemente do
caso do depositário infiel.
O referido exemplo demonstra exatamente a aplicação da primazia da norma mais
favorável ao ser humano. Tal interpretação não pode apenas ser aplicada na teoria, deve ser
aplicada na prática, diante de um caso concreto conflituoso entre Constituição Federal e
tratados de direitos humanos. É o que explica Flávia Piovesan:
Ressalte-se que o Direito Internacional dos Direitos Humanos apenas vem aprimorar
e fortalecer o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo interno.
A escolha da norma mais benéfica ao indivíduo é tarefa que caberá
fundamentalmente aos Tribunais nacionais e a outros órgãos aplicadores do Direito,
no sentido de assegurar a melhor proteção possível ao ser humano135.
O Ministro Celso de Mello, conforme já demonstrado, repensou seu
posicionamento sobre a questão dos tratados de direitos humanos, pois, antes conferia a tais
tratados, status de lei ordinária e, atualmente, entende que todos os tratados de direitos
humanos são materialmente constitucionais. E mais, referido Ministro passou a consagrar o
princípio da primazia da norma mais favorável ao ser humano no ordenamento jurídico
brasileiro, visto que coloca tal princípio como critério que deve reger a interpretação do
Poder Judiciário, como forma de maior proteção dos direitos humanos. É possível constatar
tal posicionamento em seu voto no HC 96.772/SP:
[...] TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: AS SUAS
RELAÇÕES COM O DIREITO INTERNO BRASILEIRO E A QUESTÃO DE
SUA POSIÇÃO HIERÁRQUICA. –[...]. - Relações entre o direito interno brasileiro
e as convenções internacionais de direitos humanos (CF, art. 5º e §§ 2º e 3º).
Precedentes. - Posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos
no ordenamento positivo interno do Brasil: natureza constitucional ou caráter de
supralegalidade? - Entendimento do Relator, Min. CELSO DE MELLO, que atribui
hierarquia constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos
humanos. A INTERPRETAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE
MUTAÇÃO INFORMAL DA CONSTITUIÇÃO. - A questão dos processos
informais de mutação constitucional e o papel do Poder Judiciário: a interpretação
134
Cf. GOMES, Luiz Flávio. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Constituição brasileira e os tratados de
direitos humanos: conflito e critério de solução. Disponível em: <http://www.lfg.com.br>. Acesso em 21 ago.
2013.
135
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 105.
82
judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal da
Constituição. A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder
Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso
compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências,
necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e
políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade
contemporânea. HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: A NORMA MAIS
FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A INTERPRETAÇÃO
DO PODER JUDICIÁRIO. - Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua
atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de
direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico [...] consistente
em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em
ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. - O Poder Judiciário, nesse
processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto
pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no
próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações
internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de
viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais
vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da
pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade
humana tornarem-se palavras vãs136.
Tal decisão é um alento para a efetiva proteção ao ser humano, pois reflete o
posicionamento da mais lúcida doutrina sobre a questão. Ademais, é importante destacar que
tal decisão não é única no STF. Há outras decisões no mesmo sentido, consagrando e
efetivamente aplicando a primazia da norma mais favorável ao ser humano, dentre tais
decisões há o HC 90450/MG, HC 91361/SP e HC 94695/RS137, bem como no próprio RE
466.343/SP, já mencionado antes, sendo que, neste último, tal princípio foi aplicado pelo
Ministro Joaquim Barbosa:
É patente a situação de conflituosidade entre a norma do Pacto de San José da Costa
Rica e a norma doméstica de 1969. [...]Para mim, porém, o essencial é que a
primazia conferida em nosso sistema constitucional à proteção à dignidade da pessoa
humana faz com que, na hipótese de eventual conflito entre regras domésticas e
normas emergentes de tratados internacionais, a prevalência, sem sombra de
dúvidas, há de ser outorgada à norma mais favorável ao indivíduo138.
Importante mencionar, em que pese o entendimento atualmente majoritário do
STF e do entendimento doutrinário de renomados constitucionalistas, que não há como,
simplesmente, desconsiderar o princípio da primazia da norma mais favorável que tem seu
fundamento no primado da dignidade da pessoa humana, princípio este que é supremo e
136
SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL, HC 96.972/SP, Relator: Min. Celso de Mello. DJ 21/08/2009.
Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 24 out. 2013.
137
Cf. <www.stf.jus.br>. Acesso em 23 out. 2013.
138
Voto do Ministro Joaquim Barbosa no RE 466.343-SP. Pleno. Relator: Min. Cezar Peluso. DJ 104, publicado
em 05.06.2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013.
83
anterior ao próprio Estado, ou seja, uma Constituição apenas se legitima democraticamente no
seio de uma sociedade caso consagre em seu texto o primado da dignidade humana.
Ademais, a tese da supralegalidade parece contradizer a própria hierarquia do
ordenamento brasileiro, visto que, conforme defende a posição majoritária do STF, a norma
supralegal seria hierarquicamente inferior à Constituição Federal, no entanto, tem força de
tornar não aplicável uma norma consagrada no texto constitucional, como é o caso da não
aplicabilidade da prisão do depositário infiel, que é permitida no texto constitucional, mas
vedada no Pacto de São José da Costa Rica. Diante disso, se indaga: é possível uma norma
inferior modificar a interpretação de um texto constitucional? No ordenamento brasileiro não
é a Constituição que deve limitar e guiar as normas inferiores a esta?
Talvez, o entendimento majoritário do STF tenha consagrado o princípio da
primazia da norma mais favorável sem querer ou sem saber, visto não ser possível no
ordenamento brasileiro uma norma inferior ter aplicabilidade superior à Constituição.
3.1 Tribunal Penal Internacional (TPI) e o Ordenamento Jurídico brasileiro
A Reforma do Judiciário também incluiu o § 4º ao artigo 5º da CF, estabelecendo
a adesão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional. Ressalte-se que, antes da aprovação da EC
45/2004, o Brasil já havia promovido a assinatura do tratado referente ao Estatuto de Roma no
ano 2000, posteriormente aprovado pelo Congresso Nacional e, depois, promulgado pelo
Presidente da República.
Assim, é importante comentar, ainda que brevemente, sobre os possíveis conflitos
entre as normas do Estatuto de Roma e o ordenamento brasileiro. Salienta-se, contudo, que
não se pretende esvaziar o assunto sobre o Tribunal Penal Internacional e o Estatuto de Roma,
mas é importante que se faça algumas considerações, possibilitando verificar qual o
posicionamento da doutrina, até porque o Estatuto de Roma é tratado de direitos humanos e
como já foi ratificado pelo Brasil, deve ser considerado como norma constitucional, muito
embora, com base no entendimento majoritário do STF, as normas referentes no Estatuto de
Roma tenham status supralegal, visto sua adesão ser anterior à Reforma do Judiciário e não
ter sido incorporado ao ordenamento brasileiro como emenda constitucional.
Pois bem, o Estatuto de Roma estabelece um Tribunal Penal Internacional de
caráter permanente, com jurisdição sobre os crimes de maior gravidade. Segundo o referido
84
Estatuto, o TPI será competente para julgar os crimes de genocídio, crimes contra a
humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. Ademais, o TPI tem competência
complementar à competência dos Estados signatários, não admitindo reservas e tendo
competência apenas para os crimes praticados após a adesão do Estado ao Estatuto.
Com exceção da polêmica sobre o caráter supralegal ou constitucional do Estatuto
de Roma, a adesão do Brasil ao TPI, aparentemente, não ensejaria nenhum tipo discussão. No
entanto, alguns dispositivos de tal Estatuto internacional parecem ser incompatíveis com
alguns preceitos da Constituição brasileira, visto que o TPI estabelece o princípio da
imprescritibilidade, ou seja, seu poder punitivo jamais será extinto pelo decurso do tempo.
Além disso, referido Estatuto prevê a entrega de nacionais ao TPI e a possibilidade de pena
em caráter perpétuo, o que é expressamente vedado na Constituição brasileira. Eis as três
principais polêmicas sobre o assunto, justamente devido ao possível conflito entre o TPI e a
Constituição Federal.
Valerio de Oliveira Mazzuoli, dentre vários outros autores afirmam que tais
conflitos são apenas aparentes, ou seja, segundo eles, não há que se falar em conflitos, pois a
Constituição brasileira, ao aderir o TPI, concordou com todos os seus termos139.
A primeira questão polêmica é a possibilidade de entrega de brasileiros natos ao
TPI, prevista pelo art. 89 do Estatuto de Roma. Como se sabe, a Constituição Federal, em seu
art. 5º, inciso LI, veda a extradição de seus nacionais, com exceção do naturalizado, em caso
de crime comum praticado antes da naturalização ou de comprovado envolvimento em tráfico
ilícito de entorpecentes. Desta maneira, surge o conflito: brasileiro nato poderá ser entregue
ao TPI? Entrega e extradição são institutos iguais?
A decisão proferida pelo Ministro Celso de Melo na Petição 4628/República do
Sudão, retrata bem as indagações feitas acima, haja vista sintetizar as dúvidas sobre o conflito
acima mencionado, entre o Estatuto de Roma e o ordenamento brasileiro, demonstrando,
ainda, que não há consensos na jurisprudência brasileira sobre o caso:
ESTATUTO DE ROMA. INCORPORAÇÃO DESSA CONVENÇÃO
MULTILATERAL AO ORDENAMENTO JURÍDICO INTERNO BRASILEIRO
(DECRETO Nº 4.388/2002). INSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL PENAL
INTERNACIONAL. CARÁTER SUPRA-ESTATAL DESSE ORGANISMO
JUDICIÁRIO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA COMPLEMENTARIDADE
(OU DA SUBSIDIARIEDADE) SOBRE O EXERCÍCIO, PELO TRIBUNAL
PENAL INTERNACIONAL, DE SUA JURISDIÇÃO. COOPERAÇÃO
139
Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 847-856.
85
INTERNACIONAL E AUXÍLIO JUDICIÁRIO: OBRIGAÇÃO GERAL QUE
SE IMPÕE AOS ESTADOS PARTES DO ESTATUTO DE ROMA (ARTIGO 86).
PEDIDO DE DETENÇÃO DE CHEFE DE ESTADO ESTRANGEIRO E DE
SUA ULTERIOR ENTREGA AO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL,
PARA SER JULGADO PELA SUPOSTA PRÁTICA DE CRIMES CONTRA A
HUMANIDADE E DE GUERRA. SOLICITAÇÃO FORMALMENTE
DIRIGIDA, PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, AO GOVERNO
BRASILEIRO. DISTINÇÃO ENTRE OS INSTITUTOS DA ENTREGA
(“SURRENDER”) E DA EXTRADIÇÃO. QUESTÃO PREJUDICIAL
PERTINENTE AO RECONHECIMENTO, OU NÃO, DA COMPETÊNCIA
ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA EXAMINAR
ESTE PEDIDO DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL. CONTROVÉRSIAS
JURÍDICAS EM TORNO DA COMPATIBILIDADE DE DETERMINADAS
CLÁUSULAS DO ESTATUTO DE ROMA EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DO
BRASIL. O § 4º DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO, INTRODUZIDO PELA EC
Nº 45/2004: CLÁUSULA CONSTITUCIONAL ABERTA DESTINADA A
LEGITIMAR, INTEGRALMENTE, O ESTATUTO DE ROMA? A
EXPERIÊNCIA DO DIREITO COMPARADO NA BUSCA DA SUPERAÇÃO
DOS CONFLITOS ENTRE O ESTATUTO DE ROMA E AS CONSTITUIÇÕES
NACIONAIS140. (grifo original)
O Estatuto de Roma teve a preocupação de diferenciar os institutos da extradição
e da entrega, talvez devido à vedação de extradição de nacionais em grande parte dos países.
Assim, segundo o Estatuto de Roma, a entrega (ou surrender) deve ser entendida como a
entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal Penal Internacional, diferentemente da
extradição, que é a entrega de uma pessoa por um Estado ao outro Estado. Além disso,
referido Estatuto estabelece que, diferentemente da extradição, é possível que a execução da
pena seja cumprida no próprio Estado que fez a entrega.
Esse é o entendimento de quem defende a entrega de brasileiros natos para serem
julgados pelo TPI, ou seja, para a maioria dos internacionalistas, é possível tal entrega,
baseando-se, principalmente, nas diferenciações feitas pelo próprio Estatuto de Roma141.
Seguindo tal entendimento, Valerio Mazzuoli afirma que o TPI é uma jurisdição internacional
do qual o Brasil faz parte e a qual manifestou sua adesão, não se tratando, assim, da entrega a
uma jurisdição estrangeira, mas sim a uma jurisdição internacional da qual o Brasil também é
titular e contribuiu para a construção142.
André Ramos Tavares ataca tal diferenciação afirmando que “entrega” e
“extradição” não possuem diferenças materiais, sendo a diferenciação apenas grafológica, não
140
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo 554. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out.
2013.
141
Cf. SCORSAFAVA, Francisco Eduardo Torquato, op. cit., p. 39-41.
142
MAZUOLLI, Valerio de Oliveira. O Tribunal Penal Internacional: integração ao direito brasileiro e sua
importância para a justiça penal internacional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 41, n.164, p.
157-178, out/dez. 2004, p. 162.
86
sendo, assim, possível a “entrega” de nacionais, visto haver vedação constitucional143. O
referido autor, ainda completa:
Interpretações que visem a conceder (contornando) sentido diverso à vedação
constitucional que ora se comenta, afastando-a da hipótese de entrega, não poderão
prevalecer, uma vez que, [...] a única diferença entre o presente instituto e o da
extradição, além da terminológica, reside no ente que a solicita. Sendo assim,
qualquer elucubração exegética nesse sentido produzirá o único efeito da
sustentação do ridículo hermenêutico. A única forma de se admitir a extradição,
entrega, ou qualquer outro nome que pretenda conferir a este único e idêntico
fenômeno, será por meio da criação de uma nova Constituição via constituinte
originário, ou deturpação da cláusula pétrea constante do art. 60, §4°, IV, da CB,
compreendendo como não tendente a abolir esses delicados direitos fundamentais a
entrega de indivíduos para serem submetidos a jurisdição outra que não a
nacional144.
O entendimento acima referido é bem coerente, afinal, trata-se de direitos
humanos e, caso se faça diferenciações meramente formais (ou meramente “grafológica”),
pode-se colocar em risco a própria proteção dos direitos humanos. Assim, parece ser mais
coerente, neste ponto, entender que há conflito entre a Constituição brasileira e o Estatuto de
Roma, devendo ser aplicada a norma mais favorável ao ser humano no caso concreto,
impedindo, assim, a entrega de brasileiros natos ao TPI.
Outro ponto de conflito é sobre a possibilidade de pena de caráter perpétuo. O TPI
estabelece tal possibilidade caso o elevado grau da ilicitude do fato e as condições pessoais do
condenado a justificarem. Em contrapartida, o art. 5º, XLVII, b da CF veda tal tipo de pena.
Assim, caso se aceitasse tal possibilidade, juntamente com a possibilidade de entrega de
brasileiro ao TPI, um brasileiro nato poderia ser julgado por referido Tribunal internacional e
ser condenado a pena perpétua.
Tal situação parece ser insustentável no ordenamento brasileiro, visto desrespeitar
direitos e garantias fundamentais e a própria dignidade humana, valores supremos no
ordenamento brasileiro, tanto que o próprio STF já decidiu no sentido de apenas extraditar
estrangeiro mediante o compromisso do Estado requerente em comutar a pena perpétua em
pena privativa de liberdade não superior a trinta anos de prisão, pena máxima admitida no
Brasil145.
143
TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário no Brasil pós-88 – (Des) estruturando a Justiça. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 57.
144
TAVARES, André Ramos, op. cit., p. 58.
145
Cf. Extradição 633, rel. Ministro Celso de Mello (DJ 06.04.2001); Extradição 855, rel. Ministro Celso de
Mello (DJ 01.07.2005). Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013.
87
Da mesma forma, praticamente os mesmos internacionalistas que entendem ser
possível a entrega de nacionais ao TPI, também defendem a possibilidade de prisão perpétua.
Sammy Barbosa Lopes retrata bem a questão:
Quanto à esta questão, Antônio Paulo Cachapuz Medeiros (2000, p. 14/15) afirma
que o STF tem, tradicionalmente, deferido pedidos de extradição em que a pena será
a perpétua, entendendo que a limitação constitucional somente diz respeito à esfera
da lei penal interna, não podendo haver limitação que atinja o direito internacional
decorrente de norma nacional. Desta forma, o conflito entre o ETPI e a CF seria
apenas ‘aparente’, não só porque aquele visa reforçar o princípio da dignidade da
pessoa humana, mas porque a proibição prescrita pela Lei Maior é dirigida ao
legislador interno para os crimes reprimidos pela ordem jurídica pátria, e não aos
crimes contra o Direito das Gentes, reprimidos pela jurisdição internacional146.
Sylvia Helena Steiner, juíza do TPI, entende da mesma forma, pois afirma que tal
previsão não é inconciliável com a Constituição brasileira, visto que a vedação imposta por
ela dirige-se apenas ao legislador interno, não impedindo a submissão do Brasil e de seus
nacionais às previsões de uma Corte supranacional147.
É importante destacar que o STF já não tem mais entendido sobre a possibilidade
de extradição sem o compromisso de comutação da pena, ou seja, a Suprema Corte, em seus
últimos julgamentos de extradição, tem exigido o compromisso do país requerente em
comutar a pena de morte ou de caráter perpétuo de acordo com a pena máxima da legislação
brasileira148.
Ademais, não há como aceitar tal possibilidade, até mesmo porque, de acordo com
as normas interpretativas de alguns tratados internacionais, como por exemplo, o artigo 29 da
Convenção Americana de Direitos Humanos, não se poderá limitar o direito ou liberdade de
qualquer cidadão já assegurado pelo Estado-membro, ou seja, de acordo com tal regra
interpretativa, o próprio tratado (ou qualquer outro) reconhece que pode não ser aplicado, caso
limite um direito já consagrado. Tal observação também é feita por Antonio Augusto Cançado
Trindade, como já citado anteriormente:
146
LOPES, Sammy Barbosa. O Tribunal Penal Internacional sob a ótica da Constituição Federal, do
Código
Penal
e
do
Código
de
Processo
Penal.
Disponível
em:
<http://www.ampac.org.br/antigo/artigos/O%20Tribunal%20Penal%20Internacional%20sob%20a%20%C3%B3
tica%20da%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20Federal,%20do%20C%C3%B3digo%20Penal%20e%20do%2
0C%C3%B3digo%20de%20Processo%20Penal.pdf>. Acesso em 24 out. 2013, p. 6.
147
STEINER, Sylvia Helena apud NOVELINO, Marcelo, op. cit. p., 388.
148
Cf. Extradição 1041; Extradição 1103; Extradição 1104; Extradição 1151; Extradição 1201; e Extradição
1214. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 08 out. 2013.
88
No plano global, o Pacto de Direitos Civis e Políticos proíbe expressamente
qualquer restrição ou derrogação aos direitos humanos reconhecidos ou vigentes em
qualquer Estado Parte, em virtude de outras convenções, ou de leis, regulamentos ou
costumes, 'sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça
em menor grau' (artigo 5(2)). Tanto a Convenção Relativa ao Estatuto dos
Refugiados (artigo 5) quanto a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (artigo 5),
prevêem igualmente que nenhuma de suas disposições prejudicará os outros direitos
e vantagens concedidos respectivamente aos refugiados e apátridas,
independentemente delas. [...] No plano regional, a mesma ressalva se encontra na
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que proíbe a interpretação de
qualquer de suas disposições no sentido de limitar o gozo e exercício de quaisquer
direitos que 'possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados
Partes ou de acordo com outra convenção em que seja Parte um dos referidos
Estados' (artigo 29(b)); proíbe, ademais, a interpretação de qualquer de suas
disposições no sentido de excluir ou limitar 'o efeito que possam produzir a
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos
149
internacionais de mesma natureza' (artigo 29(d)) .
A possibilidade de prisão perpétua prevista no Estatuto de Roma é um verdadeiro
contrassenso com o próprio sistema de proteção dos direitos humanos, uma vez que
desrespeita direitos já consagrados. Assim, mais uma vez, o presente trabalho se inclina no
sentido de entender que há conflito entre o Estatuto de Roma e a ordem interna brasileira,
devendo prevalecer, no caso concreto, a norma que mais dignifique o homem, impedindo,
desta maneira, a possibilidade de prisão perpétua no território brasileiro ou a possível entrega
de brasileiro nato ao TPI para cumprir prisão perpétua em outro Estado internacional.
Por fim, outro conflito com o ordenamento brasileiro é a punibilidade
imprescritível do TPI. Sabe-se que, no Brasil, apenas o crime de racismo e ação de grupos
armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático é que são
imprescritíveis (art. 5º, XLII da CF).
É importante destacar, para que não haja quaisquer dúvidas que, segundo
entendimento do STF, nem mesmo o legislador constituinte derivado poderia prever novas
hipóteses de imprescritibilidade, por se tratar de cláusula pétrea150.
Contrariamente, o argumento é o mesmo de Sylvia Steiner, ou seja, os direitos
consagrados pelo Poder Constituinte estariam voltados apenas às relações internas, não se
projeta para outros sistemas aos quais o Brasil se vincule por força de compromissos
internacionais151.
149
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p. 543-544.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – AC 504/SP, rel. Ministro Marco Aurélio (DJ 24.11.2004) In:
NOVELINO, Marcelo, op. cit., p. 389.
151
NOVELINO, Marcelo, op. cit., p. 389.
150
89
Em que pese o argumento acima, como se poderia admitir que um crime já
prescrito no Brasil, portanto, com sua punibilidade extinta, seja julgado pelo TPI? Para isso,
seria primeiro necessário a entrega do nacional? Tal possibilidade não estaria em desacordo
com a dupla punibilidade no caso de extradição?
Justamente de acordo com o princípio da dupla punibilidade, adotado pelo STF,
apenas será possível a extradição se o fato for punível tanto no Brasil, quanto no Estado
requerente152.
O professor Marcelo Novelino entende que, caso haja a prescrição do crime no
Brasil, como este não seria mais punível de acordo com o ordenamento brasileiro, ficaria
inviabilizada, nesta situação, a entrega ao TPI e, consequentemente, se inviabilizaria o
julgamento perante tal Tribunal153.
Diante de tantos conflitos, percebe-se que a adesão do Brasil ao TPI parece não
estar bem definida internamente, visto o excessivo número de críticas e polêmicas em torno
do assunto. Talvez o Estatuto de Roma tenha escolhido uma forma de proteção aos direitos
humanos “mais repressiva”, sacrificando direitos e garantias individuais, quando,
principalmente, estabelece a imprescritibilidade e a possibilidade de pena em caráter perpétuo,
diferentemente da Constituição brasileira que, por sua vez, verdadeiramente prima pela
dignidade da pessoa humana e pela real defesa dos direitos e garantias fundamentais.
Por conta de tais incongruências é que Dimitri Dimoulis aponta os casos acima
mencionados
não
apenas
como
conflitos,
mas
até
mesmo
como
possíveis
inconstitucionalidades a serem sanadas154. O referido autor critica veementemente a forma
como ocorreu a adesão do Brasil ao TPI, criticando, inclusive, os argumentos daqueles que
defendem o TPI:
[...] na tentativa de compatibilizar as previsões do Estatuto de Roma com as normas
constitucionais, alguns autores não hesitam em incidir em contradições lógicas.
Assim sendo, para justificar a entrega ao TPI, alega-se que não se trata de verdadeira
extradição a tribunal estrangeiro, mas tão somente de entrega a um tribunal
internacional que faz parte da jurisdição nacional. Quando se trata, porém de
justificar a pena da prisão perpétua prevista no Estatuto de Roma, afirma-se
exatamente o contrário. A prisão perpétua seria agora aplicada por uma autoridade
estrangeira, ao passo que a referida vedação constitucional só vincularia a lei penal
152
Cf. NOVELINO, Marcelo, op. cit., p. 389.
Idem, Ibidem, p. 390.
154
DIMOULIS, Dimitri. O Art. 5º, §4°, da CF: dois retrocessos políticos e um fracasso normativo.In:
TAVARES. André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. Reforma do Judiciário.
Analisada e Comentada. São Paulo: Método, 2005, p. 107-119, p. 113.
153
90
nacional, não permitindo que tribunais brasileiros censurem penas impostas por
autoridades estrangeiras!155
Por sua vez, André Ramos Tavares afirma que o TPI terá diminuto alcance
prático, justamente devido ao desrespeito de direitos fundamentais já consagrados:
[...] enquanto houver a previsão de direitos fundamentas como a prescritibilidade
dos crimes, impossibilidade de extradição de certas pessoas e em certas situações,
garantia da legalidade, e outras, a novel redação do §4°, do mesmo art. 5° da CB,
adentrará, numa previsão otimista, no rol das normas constitucionais com diminuto
alcance prático. E nem se poderia invocar o disposto no art. 7° do ADCT, que
estabelece que o ‘Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos
direitos humanos’, e no art. 4° da CB, que propugna pela prevalência dos direitos
humanos (inciso II), cooperação entre os povos (inciso IX) e integração
internacional (parágrafo único), porque não há, nesses dispositivos, que autorize a
submissão do país a tribunal de natureza penal, para entregar pessoas que se
encontrem sob sua jurisdição, independentemente de sua nacionalidade ou do tipo de
crime por elas supostamente praticado. O dispositivo constitucional mais próximo
do art. 7° do ADCT, apenas propugna pela formação de um tribunal internacional de
direitos humanos. A formação de um tribunal internacional de tal natureza não
requer, necessariamente, a formação de outro com caráter punitivo, nos termos em
que foi firmado o Estatuto de Roma156.
Portanto, de acordo com o que foi abordado, verifica-se que ainda não há um
consenso na doutrina, muito menos na jurisprudência. No entanto, a solução para tais
conflitos continua no princípio da primazia da norma mais favorável.
Com todo o respeito aos autores que defendem o TPI e o Estatuto de Roma em
todos os seus termos, afirmando que, sequer, há conflitos com a Constituição Federal, na
verdade, estes levam em consideração apenas aspectos formais, visto que apenas se
fundamentam, na ratificação do Brasil ao TPI, bem como no § 4º do art. 5º da CF, não
levando em consideração o possível caso concreto como, também, não levam em
consideração os próprios direitos humanos.
Flávia Piovesan ensina que os tratados de direitos humanos apenas vêm aprimorar
a proteção de tais direitos:
[...] no plano de proteção dos direitos humanos interagem o Direito Internacional e o
Direito interno movidos pelas mesmas necessidades de proteção, prevalecendo as
normas que melhor protejam o ser humano, tendo em vista que a primazia é da
pessoa humana. Os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos
humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou debilitar,
155
156
DIMOULIS, Dimitri, op. cit., p. 115.
TAVARES, André Ramos, op. cit., p. 60-61.
91
o grau de proteção dos direitos consagrados
constitucional157. (grifo nosso)
no
plano
normativo
É o que também ensina Antonio Augusto Cançado Trindade, assegurando a
primazia da norma mais favorável ao ser humano:
O critério da primazia na norma mais favorável às pessoas protegidas, consagrado
expressamente em tantos tratados de direitos humanos, contribui em primeiro lugar
parar reduzir ou minimizar consideravelmente as pretensas possibilidades de
‘conflitos’ entre instrumentos legais em seus aspectos normativos. Contribui, em
segundo lugar, para obter maior coordenação entre tais instrumentos, em dimensão
tanto vertical (tratados e instrumentos de direito interno) quanto horizontal (dois ou
mais tratados). No tocante a esta última, o critério da primazia da disposição mais
favorável às vítimas já em fins da década de cinqüenta era aplicado pela Comissão
Européia de Direitos Humanos [...] e recebeu reconhecimento judicial na Corte
Interamericana de Direitos Humanos no Parecer de 1985 [...]. Contribui, em terceiro
lugar, [...] para demonstrar que a tendência e o propósito da coexistência de distintos
instrumentos jurídicos – garantindo os mesmos direitos – são no sentido de ampliar
e fortalecer a proteção. O que importa em última análise é o grau de eficácia da
proteção, e por conseguinte há de impor-se a norma que no caso concreto melhor
proteja, seja ela de direito internacional ou de direito interno158.
Assim, aplicando a primazia da norma mais favorável, não se estará
desrespeitando qualquer lei, tratado ou outra norma internacional ou nacional, pelo contrário,
a própria Constituição brasileira possibilita tal aplicação em caso de conflito, conforme
interpretação do art. 4º, II da CF (prevalência dos direitos humanos na ordem internacional) e
art. 1º, III da CF (dignidade da pessoa humana), bem como a própria Convenção Americana
prevê tal possibilidade, em caso de surgir algum tratado que restrinja quaisquer direitos já
consagrados em tratados de direitos humanos anteriores.
Ademais, não se deve simplesmente desconsiderar todos os direitos já
consagrados pela Constituição Federal ou por quaisquer outros tratados de direitos humanos
já ratificados. Entender que o TPI não conflita com a Constituição brasileira e possibilitando,
assim, a entrega (extradição) de brasileiros natos e uma possível prisão perpétua, estar-se-ia,
supostamente, defendendo os direitos da humanidade em detrimento dos direitos humanos de
uma pessoa. Com isso, tal pessoa serviria como meio (como um objeto) para se atingir um
fim, que seria a “suposta” aplicação da lei penal internacional, desvirtuando o próprio sistema
de proteção dos direitos humanos, possibilitando que a proteção dos direitos humanos fosse
pouco a pouco sendo diminuída.
157
158
PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 104-105.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p. 544-545.
92
Dimitri Dimoulis também critica as incongruências do Estatuto de Roma:
Ora, em matéria de direitos fundamentais, não devemos assumir uma perspectiva
quantitativa e sim qualitativa. O caso estatístico e moralmente desprezível não perde
sua importância na perspectiva de tutela de todas as minorias contra o poder estatal.
O direito fundamental de uma pessoa não vale menos que o direito de um milhão de
pessoas e o Estado nunca deveria violar direitos fundamentais sob o pretexto de
proteger a maioria. Caso contrário, deveríamos também admitir a tortura e a pena de
morte para ‘proteger a sociedade’!159
Não há outro caminho, a solução para tais conflitos deve ser o que privilegia a
dignidade humana, qual seja: primazia da norma mais favorável. Não importa se tal princípio
faça prevalecer a ordem interna ou a internacional. A dignidade humana vem em primeiro
plano, antes de qualquer conflito! E entre os conflitos mencionados acima, qual prima pelo ser
humano? O Estatuto de Roma parece não privilegiar os direitos humanos, assim, não há, de
acordo com tudo que foi abordado, como compactuar com as possibilidades de desrespeito
aos direitos humanos reguladas pelo próprio Estatuto de Roma, muito menos com a visão da
doutrina internacionalista que afirma que o Poder Constituinte brasileiro guia apenas sua
ordem interna, devendo se submeter totalmente ao TPI, caso contrário, estar-se-ia colocando
em risco até mesmo toda a conquista de proteção aos direitos humanos garimpada ao longo
das últimas décadas.
159
DIMOULIS, Dimitri, op. cit., p. 117.
93
CONCLUSÃO
Os tratados internacionais são as principais fontes do direito internacional, uma
vez que possibilitam a integração de diferentes Estados e Nações em prol de um único e
universal objetivo. Por sua vez, os tratados de direitos humanos passaram a ser utilizados
como resposta as atrocidades ocorridas na Segunda Guerra Mundial, época em que diversos
direitos fundamentais foram desconsiderados em nome de um positivismo e formalismo
excessivo que apenas assegurava a soberania dos Estados, tudo em detrimento do ser humano.
Com o passar dos anos, um maior número de Estados aderiram aos tratados de
direitos humanos, reconhecendo, pelo menos em tese, o real valor do ser humano, elevando-o
à posição central de todo o ordenamento jurídico, seja no âmbito interno, seja no âmbito
internacional.
O Estado brasileiro, pouco a pouco, passou a procurar formalizar e materializar as
normas internacionais de direitos humanos no ordenamento interno, inicialmente muito mais
preocupado em estreitar relações internacionais do que com a própria defesa ao ser humano.
Em decorrência de tal preocupação, que passou a refletir diretamente no ordenamento interno
pátrio, a Corte Suprema do Brasil foi convocada a analisar vários casos sobre o assunto.
Assim, por muitos anos, a jurisprudência brasileira e a doutrina dominante
reconheceram todos os tratados internacionais como normas equivalentes à lei ordinária, ou
seja, todos os tratados internacionais, de direitos humanos ou comuns, após incorporados ao
ordenamento jurídico brasileiro, poderiam perfeitamente serem revogados por leis internas
posteriores, bem como não poderiam ter interpretação que, pelo menos em tese, fossem de
encontro à Constituição Federal, uma vez que os critérios adotados para a solução de
antinomias eram os critérios da hierarquia, cronológico e o da especialidade.
Tal
entendimento
poderia
ser
capaz
de
responsabilizar
o
Brasil
internacionalmente, haja vista que os compromissos firmados internacionalmente poderiam,
simplesmente, serem desrespeitados por leis internas posteriores.
Diante disso, a doutrina mais sensata passou a criticar tal posição, baseando-se,
primeiramente, nos princípios constitucionais vigentes, bem como no próprio texto da
legislação infraconstitucional brasileira, dentre eles, o Código Penal, o Código de Processo
Penal e o Código de Defesa do Consumidor. Por último, fundamentou-se nos próprios
94
compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, dentre eles, na Convenção de Viena,
tratado internacional que regula a elaboração de tratados internacionais.
Com relação aos tratados internacionais comuns, foi demonstrado que tais
compromissos internacionais têm status supralegal, diferentemente do que entende o STF e a
maioria da doutrina, ou seja, de acordo com o trabalho, os tratados internacionais comuns
estão em hierarquia normativa superior às leis ordinárias e inferior à Constituição Federal,
haja vista que, primeiramente, os tratados internacionais possuem modelo próprio de
revogação ou não aceitação pelo Estado de maneira unilateral, que é a denúncia. Assim, caso
o Brasil verifique que, de alguma forma, o tratado internacional comum esteja conflitando e
prejudicando a lei interna, tal tratado internacional poderá ser denunciado.
Depois, não sendo o tratado denunciado, estará o mesmo vigente no ordenamento
jurídico pátrio e, por conta do art. 27 da Convenção de Viena, o Estado signatário não poderá
justificar a não aplicação do tratado internacional por razões de direito interno. Por último,
deve o tratado internacional ser interpretado de boa-fé, como também determina o art. 31 da
Convenção de Viena, assim, caso o Estado brasileiro simplesmente promulgue uma lei com
intenção de não respeitar um tratado internacional, não estará agindo de boa-fé.
Portanto, não há como concordar com o entendimento do STF (que entende que
os tratados comuns têm força de lei ordinária), uma vez que fica claro o entendimento de que
o ordenamento brasileiro considera os tratados internacionais comuns com grau hierárquico
superior à lei ordinária e apenas inferior à Constituição, conferindo-lhe status supralegal.
Por sua vez, os tratados internacionais de direitos humanos devem ter
interpretação diferenciada dos tratados internacionais comuns, uma vez que a cláusula de
abertura de direitos fundamentais prevista no § 2º do art. 5º da CF possibilita que os tratados
de direitos humanos, considerados direitos fundamentais, tenham status de norma
constitucional.
Apesar de tal entendimento não ser considerado pela jurisprudência por muitos
anos, a EC 45/2004 possibilitou às normas internacionais de direitos humanos uma
equiparação constitucional, caso fossem incorporados de acordo com o quórum específico de
emenda constitucional. Tal previsão gerou mais polêmica, em vez de solucionar a questão
definitivamente, isto porque nada falou à respeito dos tratados de direitos humanos aprovados
antes da emenda 45/2004, bem como não mencionou sobre a possibilidade de aprovação dos
tratados de direitos humanos sem a observância do quórum especial.
95
Com isso, o STF passou a discutir com mais frequência o status normativo dos
tratados de direitos humanos, até mesmo porque há um conflito entre a Constituição Federal e
a Convenção Americana de Direitos Humanos, uma vez que esta última não autoriza a prisão
civil do depositário infiel, o que é permitido pela Constituição Federal. Após algumas
decisões defendendo a tese da equiparação à lei ordinária e, consequentemente, possibilitando
a prisão do depositário infiel, o Supremo Tribunal Federal passou a reanalisar sua
jurisprudência, decidindo, por unanimidade, a impossibilidade da prisão do depositário infiel.
Os fundamentos de tal entendimento é que foram diferentes. Enquanto o Ministro
Gilmar Mendes defende a tese da supralegalidade, afirmando que a Convenção Americana
possui “efeito paralisante” nas normas inferiores que o contradigam, o Ministro Celso de
Mello defende a tese da constitucionalidade dos tratados de direitos humanos, de acordo com
o § 2º do art. 5º da CF, bem como de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana
e da primazia da norma mais favorável, também previstos constitucionalmente.
A tese da supralegalidade e do “efeito paralisante” do Ministro Gilmar Mendes é
bastante confusa sob o ponto de vista lógico-jurídico, não havendo como concordar com tal
entendimento, isto porque, primeiro, desconsidera a força normativa da Constituição, depois
porque não interpreta o texto constitucional de maneira sistemática, haja vista que existem
outros argumentos mais coerentes e de simples entendimento para explicar a impossibilidade
da prisão do depositário infiel, dentre eles a primazia da norma mais favorável ao ser humano.
Assim, além de propor a tese do Ministro Celso de Mello sobre a
constitucionalidade dos tratados de direitos humanos como a mais coerente, o presente
trabalho defende, também, como o referido Ministro, a primazia da norma mais favorável ao
ser humano, seja ela de direito interno ou de direito internacional.
Desta maneira, como os tratados de direitos humanos são normas materialmente
constitucionais devido à cláusula de abertura dos direitos fundamentais disposta no § 2° do
art. 5° da CF, não há como, simplesmente, deixar de aplicar uma norma constitucional
fundamental em detrimento de outra norma constitucional.
Neste caso, especificamente com relação ao conflito entre a Convenção
Americana e a Constituição Federal, como esta última, em seu art. 5º, inciso LXVII,
possibilita a prisão do depositário infiel e a Convenção Americana não permite tal
possibilidade, deve-se aplicar a norma mais benéfica, respeitando o preceito constitucional
assegurado no art. 4º, II da CF, bem como em respeito à própria dignidade da pessoa humana,
96
princípio previsto no art. 1º, III da CF, não havendo que se falar em hierarquia de normas ou
em critérios cronológico ou da especialidade para solucionar a antinomia.
A interpretação que melhor representa a proteção dos direitos humanos e que, sem
dúvidas, chega mais próximo de garantir a dignidade da pessoa humana é a que prima pela
norma mais favorável ao ser humano. Pouco a pouco, tal entendimento vem se concretizando
tanto na doutrina como na jurisprudência, apesar de ainda não ser majoritário, mas já é um
verdadeiro alento para a efetiva proteção ao ser humano.
Portanto, em que pese o entendimento majoritário do STF e do entendimento
doutrinário de renomados constitucionalistas, não há como, simplesmente, desconsiderar o
princípio da primazia da norma mais favorável que tem seu fundamento no primado da
dignidade da pessoa humana, princípio este que é supremo e anterior ao próprio Estado.
Outro exemplo de conflito, que para alguns é apenas aparente, é o conflito entre as
normas do Estatuto de Roma e as normas constitucionais. Há doutrinadores que afirmam que
as normas do Estatuto de Roma prevalecem mesmo quando a Constituição brasileira disponha
de modo diverso, o que desrespeita os princípios supremos da Carta Magna brasileira. Dentre
os principais conflitos, destaca-se o da entrega brasileiros natos ao TPI, o da prisão perpétua e
o da imprescritibilidade, possibilidades todas previstas no Estatuto de Roma. Ora, não há
como deixar de observar o que dispõe o texto constitucional que proíbe expressamente a
extradição (ou entrega, como queiram) dos nacionais, que proíbe a prisão perpétua e que faz
poucas ressalvas a crimes imprescritíveis, simplesmente, porque o Brasil se “submeteu” ao
TPI.
Não adianta afirmar que o conflito é apenas aparente. Pelo contrário, em uma
situação concreta, o conflito salta aos olhos e, diante de tal possibilidade, deve-se respeitar o
que dispõe a Constituição Federal, isto porque prevê expressamente o princípio da dignidade
da pessoa humana e, em caso de conflito, prevê que a norma a ser aplicada deve ser a que
assegure a primazia aos direitos humanos, seja norma interna ou internacional.
Entender o contrário é retornar ao entendimento formalista clássico que apenas se
preocupava com qual teoria deveria prevalecer. A valorização do ser humano está acima de
qualquer formalidade. O ser humano é anterior a qualquer ordenamento seja nacional ou
internacional, não podendo, assim, haver normas que não proporcionem dignidade para o ser
humano, que o torne simplesmente um meio, quando, na verdade, sempre deverá ser
considerado como um fim, como enunciou Kant no século XVIII.
97
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