A INFLUÊNCIA DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS. Leila Eliana Hoffmann Ritt1 RESUMO A noção de contrato, oriunda do liberalismo, vem sendo superada pela funcionalização do contrato, em que os princípios clássicos do individualismo e da autonomia de vontade vêm sendo revistos pela moderna teoria contratual, que estabelece uma leitura constitucional, a fim de evitar abusos, desigualdade e injustiça social. Portanto, o objetivo é o de verificar as relações contratuais à época do Estado liberal-individualista e patrimonialista, as dimensões dos direitos fundamentais, os modernos princípios contratuais: a rebus sic stantibus ou teoria da imprevisão (art. 478, 479 e 480), a boa-fé (art. 113, 187 e 422) e a função social do contrato (art. 421). Assim, a efetivação e concretização dos direitos fundamentais deve ser um objetivo tanto das relações horizontais (entre os particulares), quanto das relações verticais (entre Estado e particulares). Desta forma, são diluídas as barreiras existentes entre o direito público e o direito privado, tornando únicos os seus objetivos, ou seja, a dignidade da pessoa humana passa a ser o vértice do ordenamento jurídico, constituindo-se no elemento central das relações jurídicas, e base do Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição Federal de 1988, que, aliás, influenciou em todas as esferas do Direito, através de princípios éticos e morais. Palavras-chave: constitucionalização – Direito privado – princípios – direitos fundamentais. 1 Advogada. Especialista em Direito Processual Civil, pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC; Mestranda em Direito, pela mesma Universidade; pesquisadora-membro do Grupo de pesquisa: “A constitucionalização do Direito privado”. 3 INTRODUÇÃO O presente estudo consiste em verificar as perspectivas hermenêuticas contemporâneas das relações contratuais, em face do fenômeno da constitucionalização do Direito privado, cujo tema é de interesse não só dos operadores do direito, mas da sociedade em geral. Sem embargo, os princípios constitucionais influenciaram nos três institutos do Direito Civil: a família, a propriedade e o contrato, os quais receberam uma nova roupagem, atribuindo-lhes uma função social, devido à sua importância no processo de concretização e efetivação dos direitos fundamentais. O contrato propriamente dito, por ser um instrumento muito utilizado diariamente, exerce relevante influência no contexto social, sendo o grande responsável pela caracterização do capitalismo, ainda, nos dias atuais, face à sua finalidade precípua de ser instrumento jurídico que se destina a realizar a transferência de riquezas entre as partes contratantes. Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana é o vértice do ordenamento jurídico, constituindo-se no elemento central das relações jurídicas, e base do Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição Federal de 1988, que, aliás, influenciou em todas as esferas do Direito, através de princípios éticos e morais. Neste estudo, far-se-á necessária uma abordagem inicial acerca das relações contratuais à época do liberalismo clássico das codificações oitocentistas, bem como no que concerne à dicotomia entre o direito público e o direito privado. No 4 segundo capítulo, analisar-se-á o fenômeno da constitucionalização do Direito privado – decorrente do princípio a supremacia da Constituição Federal. Por derradeiro, no terceiro capítulo, serão analisados os modernos princípios contratuais, notadamente a pacta sunt servanda e a rebus sic standibus (ou teoria da imprevisão), a boa-fé objetiva e a função social do contrato. Ressalte-se que todos esses princípios têm a finalidade de alcançar o princípio máximo da justiça: a dignidade da pessoa humana. Ressalte-se que o presente estudo tem a finalidade de colaborar com as discussões das conseqüências decorrentes do fenômeno da constitucionalização do direito privado nas relações contratuais. Importante destacar que após a Constituição Federal de 1988, os operadores do direito passaram a contar com um instrumental hermenêutico mais amplo, principalmente com o advento de princípios no âmbito privado, que refletem a força vinculante e axiológica da lei máxima. 1 As relações contratuais à época do Estado liberalindividualista e patrimonialista. Historicamente, constata-se que o Código de Napoleão (1804), bem como os demais códigos que se seguiram, destinavam-se a consolidar os direitos fundamentais reconhecidos pela Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão, de 26 de agosto de 1789.2 Sem embargo, a teoria contratual clássica iniciou-se numa época marcada pelo liberalismo na economia e individualismo nas relações jurídicas, baseada no absolutismo da autonomia da vontade, que predominou no Código Napoleônico. Sob essa inspiração surgiu o Code Napoléon em 1804, tendo como princípios fundamentais a propriedade individual e a autonomia da vontade, onde o indivíduo era livre para agir conforme sua vontade. Estavam representados na 2 FINGER, Julio César. Constituição e direito privado: algumas notas sobre a chamada constitucionalização do direito civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A Constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 86. 5 lei os valores liberais de uma sociedade extremamente individualista, sendo a propriedade um direito absoluto e quase ilimitado3. Na verdade, a revolução francesa trouxe valores e princípios que influenciaram as demais codificações - chamadas oitocentistas – eis que elaboradas precipuamente nos anos de 1.800. Essa revolução inaugurou uma nova fase, qual seja, a do Estado liberal, baseado na igualdade formal4, reflexo de uma conquista do povo, expressa no ditado segundo o qual “todos são iguais perante a lei”. Neste contexto é que surgem os direitos fundamentais de primeira dimensão5 (igualdade, liberdade, etc), que consubstanciavam uma obrigação negativa do Estado, qual seja, a de não intervir nas relações privadas, como forma de preservar a autonomia da vontade, o consensualismo (acordo de vontades), a força obrigatória dos pactos, a relatividades dos efeitos (que vinculavam apenas as partes contratantes), na medida em que a boa-fé sempre foi pouco aplicada nas relações contratuais. Os direitos fundamentais de primeira dimensão surgem, nas primeiras constituições, com o objetivo de proteger o indivíduo frente ao Estado. Tem sua origem no pensamento liberal-individualista-burguês do direito francês, caracterizado como um direito de defesa, determinando a não-intervenção do Estado.6 As premissas do Código de Napoleão influenciaram diretamente no Código Civil brasileiro de 1916, que, apesar de ter sido promulgado somente em 3 4 5 6 TUTIKIAN, Cristiano. Sistema e codificação: o Código Civil e as cláusulas gerais. In: ARONE, Ricardo. (Organizador). Estudos de direito Civil – Constitucional. V. I. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 42. A igualdade formal difere bastante da igualdade material/real, visto que é fonte de injustiça, desequilíbrio e desigualdade social, como ocorre, por exemplo, no contrato de adesão, caso em que a parte hipossuficiente aparentemente está em pé de igualdade com a parte mais forte, porém, na realidade, sofre maiores prejuízos, visto que leva desvantagem em função da necessidade de contratar. É importante que se esclareça que é utilizado o termo “dimensão”, em razão das críticas que vêm sendo feitas pela doutrina pátria, sob o argumento que o termo antes utilizado – “geração” – desencadeava uma falsa idéia de substituição, de alternância. Portanto, a “dimensão dos direitos fundamentais” é mais propícia, pois significa cumulação e quantificação. REIS, Jorge Renato dos. A concretização e a efetivação dos direitos fundamentais no direito privado. In: LEAL, R G., REIS, J. R. (Organizadores). Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Tomo 4. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004, p. 995. 6 1917, estava amparado no princípio da liberdade e da igualdade formal7 de um período de estabilidade social, política e econômica. O contrato, inegavelmente, foi, nessa época, fundamental ao grande progresso econômico mundial, em especial dos países ocidentais, ao possibilitar mais segurança nos negócios, incrementando a lei da oferta e da procura, embora não tivesse protegido os socialmente mais fracos, o que se verifica das acentuadas diferenças sociais e econômicas. O liberalismo do século passado fez do contrato o mais importante dos negócios jurídicos realizados entre pessoas, vinculando as partes juridicamente, mas nem sempre de forma equânime, justa e ética.8 A noção desses direitos teve origem na garantia de liberdade do indivíduo frente ao Estado, com uma “eficácia vertical”, em que o Estado era superior e, portanto, os direitos fundamentais eram exercidos contra um ente que se colocava em posição de superioridade em relação aos titulares dos direitos a ele subordinados, mas que possuíam uma autonomia ou liberdade intangível pelo Estado. No âmbito das relações privadas, pode-se falar de uma eficácia de natureza “vertical” dos direitos fundamentais no âmbito do Direito Privado, sempre que estiver em questão a vinculação das entidades estatais (públicas) aos direitos fundamentais, sempre que estivermos falando da vinculação do legislador privado, mas também dos órgãos do Poder Judiciário, no exercício da atividade jurisdicional (aplicação das normas do Direito privado) e a solução dos conflitos entre particulares.9 7 8 9 Cf. Reis: a liberdade formal culminou, em verdade, com a ‘exploração do mais fraco pelo mais forte. Estando o Estado ausente da regulação econômica e possuindo as pessoas, consideradas iguais, aqui considerado unicamente o seu caráter formal, ampla liberdade de contratar. [...] Consumou-se, em conseqüência aquilo que Lôbo chama de darwinismo jurídico, com a hegemonia dos economicamente mais fortes, até porque as constituições deste período limitavam-se a determinar o Estado mínimo, sem maiores interferências no plano econômico e nada regulando sobre as relações privadas.’ REIS, Jorge Renato dos. A constitucionalização do direito privado e o novo código civil. In: LEAL, Rogério Gesta. (Organizador). Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Tomo 3. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2003, p. 775-776. DONNINI, Rogério Ferraz. A Constituição Federal e a concepção social do contrato. In: VIANA, Rui Geraldo Camargo e NERY, Rosa Maria de Andrade.(Organizadores). Temas atuais de Direito Civil na Constituição Federal. São Paulo: RT, 2000, p. 70. SARLET, Ingo Wolfgang. In: A constituição concretizada: construindo pontes entre o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2000, p. 109. 7 Nota-se que os direitos fundamentais também possuem eficácia horizontal, via de regra, nas relações entre particulares, mas nem sempre as partes encontram-se no mesmo grau de igualdade, pois uma pode ser mais forte economicamente que a outro, motivo que pode gerar abusos, exploração e desigualdade social. Logo, mesmo nessas relações, pode-se verificar uma eficácia vertical.10 1.1 A dicotomia entre o Direito público e o Direito privado A época liberal-individualista-patrimonialista foi caracterizada pela dicotomia existente entre o Direito público e o Direito privado, pois o primeiro é o ramo que disciplinava o Estado, sua estruturação e funcionamento, ao passo que o Direito privado é compreendido como o ramo que disciplina as relações entre as pessoas privadas, a sua capacidade, estado, família, propriedade, sob o signo da liberdade. Numa época em que o individualismo era concebido isoladamente no espaço social e político e a sociedade e o Estado eram considerados dois mundos separados e estanques, cada um governado por uma lógica de interesses própria e obedecendo, por isso, respectivamente, ao direito privado ou ao direito público, não admira que os direitos fundamentais pudessem ser e fossem exclusivamente concebidos como direitos do indivíduo contra o Estado.11 Este era o denominado “modelo da incomunicabilidade”, ou seja, Constituição e Código Civil andavam paralelos, como mundos que não se tocavam senão sob o aspecto formal. Afora esses pontos de contato formais, os dois principais estatutos normativos da vida na cives pouco se relacionavam: configuravam campos diversos (um, o estatuto do Estado e do homem político, outro, o estatuto da sociedade 10 Para fins deste estudo, utiliza-se as expressões “eficácia vertical” – para definir as relações entre o cidadão e o Estado, como ente superior; e “eficácia horizontal” – para denominar as relações entre os particulares. Mas, segundo SARLET, a eficácia “vertical” dos direitos fundamentais não se restringe unicamente às relações entre o cidadão e o Estado, porque esta eficácia também pode estabecer-se entre os particulares, quando houver manifesta desigualdade, caso em que se estabelece uma relação similar a que se estabelece entre o indivíduo e o Estado. (SARLET, 2000, p. 128). 11 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Reflexões histórico evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Organizador) Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 271. 8 civil e do cidadão-proprietário. Os objetivos eram diversos, como diversas eram as matérias que continham; conformavam dois mundos apartados, e apartados eram também valorativamente, à constituição cabendo tratar de interesse do Estado, ao Código Civil, cuidar dos interesses do indivíduo.12 Neste cenário, surge a Revolução Industrial (século XVIII), que se constitui num fato histórico e social que influenciou em todos os setores da sociedade, e principalmente, no Direito. Houve um incremento nas relações de trabalho (empregado e empregador) e das relações comerciais, gerando uma cultura massificada, com grande circulação de bens, muitos deles dissociados da propriedade imobiliária clássica regulada na codificação. Neste sentido, a igualdade e a liberdade meramente formais, constituíram-se num terreno propício para exploração, motivo pelo qual houve a necessidade de uma intervenção maior do Estado nas relações privadas, no sentido de intervir toda vez que forem constatados abusos de uma parte em relação à outra. Surgem, assim, os direito fundamentais de segunda dimensão, os quais exigem uma postura ativa do estado, no sentido de garantir direitos sociais, econômicos e culturais.13 A valorização de princípios como o da dignidade da pessoa humana - que recebeu, inclusive, tutela constitucional, da igualdade (real) entre os sujeitos, da boa-fé objetiva, por meio da intervenção estatal, fez com que desaparecesse a dicotomia existente entre o público e o privado. Com o aumento da atividade governamental reduziu a área dominada pela autonomia privada e, em conseqüência, houve a modificação dos conceitos fundamentais do Direito privado, influenciado pelas incorporação de elementos sociais ou públicos. Portanto, o objetivo do público e do privado é único, ou seja, ambos institutos visam a efetivação dos princípios constitucionais, notadamente a pessoa humana – dotada de dignidade e de 12 COSTA, Judith Martins. Os direitos fundamentais e a opção culturalista do novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Organizador). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 65-66. 13 No Brasil, esses direitos prestacionais foram reconhecidos pela primeira vez, na Constituição Federal de 1934. O Estado, neste período, passou a ser devedor de direitos sociais. 9 necessidades – recebe destaque no vértice do ordenamento jurídico, no lugar da racionalidade liberal-individualista. Esta nova realidade contratual se distancia do individualismo e da grande valoração patrimonial que marcava o Código civil de 1916 e que ainda se encontra presente no atual Código civil, buscando adequar os contratos atuais aos princípios e direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. É através desta nova visão dos contratos que se busca estabelecer o conceito de contrato pós-moderno. Contrato este que deve ser funcionalizado e permeado pela ótica solidarista da Carta Magna.14 Com a necessidade de uma maior intervenção do Estado no ordenamento jurídico pátrio, foram introduzidos vários microssistemas, que é um dos assuntos do no próximo capítulo. 2 O fenômeno da Constitucionalização do Direito privado Num primeiro momento, cabe mencionar que, apesar de serem tratados como sinônimos, os conceitos de constitucionalização do Direito privado e de publicização do Direito Civil não são sinônimos. A segunda expressão é o processo de intervenção estatal, caracterizada também pelo dirigismo contratual, principalmente no âmbito do Poder Legislativo, limitando a autonomia privada, a fim de proteger a parte hipossuficiente da relação, enquanto que a constitucionalização do Direito Civil é mais do que um critério hermenêutico, pois constitui-se na etapa mais importante do processo de transformação ou de mudanças de paradigmas do Estado Liberal para o Estado Social.15 Neste sentido, a Constituição passou a ser a lei máxima do Estado, que vincula o Direito infraconstitucional a observar os seus ditames. O princípio máximo a ser obedecido por todos os ramos do direito é o da dignidade da pessoa 14 ZINN, Rafael Wainstein. O contrato em perspectiva principiológica. In: ARONE, Ricardo. (Organizador). Estudos de direito civil – constitucional. Vol I. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 88. 15 Cf. LOBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. http;//www.jus.com.br. 2000. Acesso em 17 de outubro de 2005. 10 humana, diante de uma mudança de concepção do homem-proprietário, passando a receber a efetiva tutela do Estado o homem detentor de dignidade. Assim, houve uma mudança de paradigma, passando-se de uma concepção de Estado Liberal para uma dimensão de Estado Social, por meio da implementação de princípios constitucionais no ordenamento privado. Ao invés da autonomia da vontade e da igualdade formal, sobrepõem-se os interesses de proteção de uma população que aguarda providências e prestações estatais. Estes valores, que estavam centrados no direito civil, passam a constar nas Constituições. Dessa forma opera-se uma mudança de paradigma do Direito privado: ao invés da proteção patrimonial ditada pelo ideal burguês, do sistema liberal, passa-se a proteger a pessoa humana. Ocorre o fenômeno da despatrimonialização do Direito privado, em obediência à sua constitucionalização, com a predominância do o princípio da dignidade humana. Nesta esteira, norteia-se uma nova proposta hermenêutica de modo a viabilizar a concretização dos direitos fundamentais constitucionais. Porém, como caminho desta realização, a Constituição assume o caráter de “princípio maior”. Ao mesmo tempo, surge outra expressão: a repersonalização do Direito Civil16, no sentido de repor o indivíduo e seus direitos no topo da regulação jurídica. Assim, o direito civil constitucionalizado passa a ter um fundamento ético, que não exclua o homem de seus interesses não-patrimoniais, na regulação patrimonial que sempre pretendeu ser. Contraponto necessário, como bem lembra Luiz Edson Fachin, é o aprofundamento de uma revisão crítica principiada e não determinada acerca das hodiernas modificações sociais. ‘Não se trata de uma crise de formulação, eis que o 16 Note-se que com o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil surgiram inúmeras novas expressões analisadas no presente artigo. 11 desafio de um novo ou renovado Direito Civil está além de apenas reconhecer o envelhecimento da dogmática.’17 Assim, a ação intervencionista do legislador nas questões privadas, faz com que algumas matérias sejam reguladas por leis especiais, como é o caso do Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Terra, a Lei de locações, o Estatuto da Criança e do adolescente, o Direito do Trabalho (que utiliza os ditames do direito Civil de forma subsidiária). Esse longo percurso histórico, cujo itinerário não se poderia aqui palmilhar, caracteriza o que se convencionou chamar de processo de descodificação do direito civil, com o deslocamento do centro de gravidade do direito privado, do Código Civil, antes um corpo legislativo monolítico, por isso mesmo chamado de monossistema, para uma realidade fragmentada pela pluralidade de estatutos autônomos. Em relação a estes o Código Civil perdeu qualquer capacidade de influência normativa, configurando-se um polissistema, caracterizado por um conjunto crescente de leis tidas como centros de gravidade autônomos e chamados, por conhecida corrente doutrinária, de microssistemas.18 Com a fragmentação do Direito privado, passa-se de um sistema monolítico (monossistema), representado pelos códigos totalizantes do séc. XIX, para um polissistema ou plurissistema, também conhecido com “era dos estatutos”, demonstrando a insuficiência do Código Civil para regular determinadas relações jurídicas do âmbito privado, que passam a exigir uma disciplina especial. Isto é reflexo do Welfare State ou Estado do Bem Estar Social, que desencadeou uma forte intervenção estatal, comprimindo a autonomia da vontade. Esta nova normatividade impôs a proteção de uma das partes envolvidas na relação jurídica, considerada hipossuficiente, de modo a reequilibrar a igualdade no sentido material.19 17 FACHIN, Luiz Edson. ‘Virada de Copérnico’: um convite à reflexão sobre o Direito Civil brasileiro contemporâneo. In: ______ (Coordenador). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 323. 18 TEPEDINO, Gustavo. Problemas de Direito Civil – Constitucional. In: ___ (coordenador). O Código civil, os chamados microssitemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa. Renovar: Rio de Janeiro, 2001, p. 5. 19 FINGER, Julio César. Constituição e direito privado: algumas notas sobre a chamada constitucionalização do direito civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A Constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 91. 12 O fenômeno da Constitucionalização do Direito privado resulta de superação da conhecida dicotomia entre o público e o privado. A história testemunhou a cíclica alternância da preponderância de um sobre o outro (público/privado), sem, no entanto, verificar a integração desta clássica divisão.20 Contudo, como esclarece Eugênio Facchini Neto, em um primeiro momento, determinados institutos que eram tratados apenas nas codificações civis (e que tiveram atenção específica do Estado, através da criação dos microssistemas), passaram a ter destaque especial nas constituições contemporâneas, cujo fenômeno (de transformação) foi nominado de relevância constitucional das relações privadas; numa segunda concepção, ligando-se às aquisições culturais da hermenêutica contemporânea, como a força normativa dos princípios, a interpretação conforme a Constituição, a distinção entre princípios e regras; alcançando, assim, ambos os postulados, a moderna concepção da Constitucionalização do Direito Privado.21 O sentido da norma Civil brasileira deve ser buscado junto à Carta política de 1988, que é a norma máxima do Estado, a qual vincula todas as demais normas infraconstitucionais. É o chamado princípio da supremacia da Constituição Federal. A superioridade hierárquico-normativa do Direito Constitucional impede que o Direito Civil seja tido como um ramo jurídico autônomo. Assim, a toda interpretação constitucional, bem como a interpretação da legislação ordinária conforme a Constituição, leva à concretização dos direitos fundamentais, admitindo-se sua eficácia nas relações interprivadas [...]22 20 FACCHINI NETO. Eugênio. Reflexões histórico evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Organizador). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 13-15. 21 ‘Esse segundo aspecto é mais amplo do que o primeiro, pois implica analisar as conseqüências, no âmbito do direito privado, de determinados princípios constitucionais, especialmente na área dos direitos fundamentais, individuais e sociais. Assim o fenômeno pode ser compreendido sob determinada ótica hermenêutica, aquela da interpretação conforme a Constituição. Desta forma, o fato de o constituinte ter incluído na Carta Magna vários princípios (mas também algumas regras) tipicamente de direito privado faz com que todo o direito privado, naquilo que é atingido potencialmente por tais princípios, deva ser interpretado em conformidade com a Constituição.’ Idem. Ibidem. p. 36-38. 22 TUTIKIAN, Op. Cit. p. 21. 13 Conforme o disposto no Art. 2º, §1º da Lei de Introdução ao Código Civil: “a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível”. Isto significa que as normas infraconstitucionais – como, por exemplo, a legislação civil – que for incompatível com o texto constitucional são automaticamente revogadas; as compatíveis são recepcionadas, continuam em vigor. Esta observação se faz necessária, a fim de que sejam concretizados, de forma eficaz, os princípios constitucionais. Não restam dúvidas de que as cláusulas gerais e os conceitos indeterminados, como os que configuram os princípios, é que possibilitam a abertura do direito civil à inserção dos direitos fundamentais. Este será o objeto de análise do próximo capítulo, em que serão analisados os modernos princípios contratuais. 3 OS MODERNOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS Antes de mais nada, faz-se necessário conceituar o que é o contrato. Nas palavras de Sílvio Rodrigues, dentro da teoria dos negócios jurídicos, há distinção entre os atos unilaterais e os bilaterais. Aqueles se aperfeiçoam pela manifestação da vontade de uma das partes, enquanto estes dependem da coincidência de dois ou mais consentimentos. Os negócios bilaterais são os que decorrem de acordo de mais de uma vontade, são os contratos. Portanto, o contrato é espécie do gênero negócio jurídico. Para complementar, “o contrato é o acordo de vontades para o fim de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direitos”.23 Com a constitucionalização do direito privado, as três principais bases do direito civil: a família, a propriedade e o contrato, recebem uma nova roupagem, qual seja, a de corresponder a uma função social. Neste sentido, a 23 RODRIGUES, Sílvio. Dos contratos e das declarações unilaterais da vontade. 26. ed. 3. vol. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 9. 14 autonomia privada é superada para o surgimento de um sistema de relações no qual prevalece o interesse público, a fim de se preservar os direitos fundamentais. Assim sendo, o princípio da autonomia da vontade perdeu parte de seu prestígio, em face de anseios e preocupações novas. Além disso, a teoria contratual clássica preconizava a igualdade formal por meio do liberalismo, mas essa igualdade nem sempre era condizente à realidade, ou seja, a igualdade meramente formal era instrumento, muitas vezes, de injustiça. Com efeito, o princípio da autonomia da vontade parte do pressuposto de que os contratantes se encontram em pé de igualdade, e que, portanto, são livres de aceitar ou rejeitar os termos do contrato. Mas isso nem sempre é verdadeiro, pois a igualdade que reina no contrato é puramente teórica e, via de regra, enquanto o contratante mais fraco no mais das vezes não pode fugir à necessidade de contratar, o contratante mais forte leva uma sensível vantagem no negócio, pois é ele quem dita as condições do ajuste. A mudança nas relações contratuais fez com que surgissem pactos que não reflitam o real pensamento de um contratante. Um caso como este pode ser decorrência da necessidade econômica ou da situação de inferioridade em que se encontra determinado contratante, não realizando, assim, um pacto por livre e espontânea vontade.24 A teoria tradicional, mesmo com a igualdade das partes, permitia vantagens a favor da parte mais forte da relação contra a parte hipossuficiente, gerando um flagrante desequilíbrio contratual. Cumpre observar que o individualismo contratual ou formalismo entrou em decadência, porque não correspondeu às expectativas da sociedade, e tampouco conferiu a segurança necessária às relações jurídicas, visto que preconizou a igualdade formal (idealizada pela teoria do absolutismo da vontade nas relações contratuais), a qual difere bastante da igualdade real/material. Por isso, o contrato não estava em extinção, mas a sua concepção clássica, que passou a dar lugar ao direito social, pois havia abuso de direito 24 ZINN, Op. Cit. p. 114. 15 no momento em que apenas um dos contratantes, o mais forte, propunha cláusulas ao outro mais fraco. Com a inegável limitação da autonomia privada, em face da livre fixação do conteúdo das cláusulas, houve uma crise do contrato e, conseqüentemente, o Estado passou a intervir nas relações privadas, a fim de proteger os direitos sociais, os quais são mais importantes que a mera pretensão dos contratantes. Não podemos afirmar que o contrato esteja em crise, estritamente falando, nem que a crise seja de direito privado. A crise situa-se na própria evolução da sociedade, nas transformações sociais que exigem do jurista respostas mais rápidas. O sectarismo do direito das obrigações tradicionais é colocado em choque. O novo direito privado exige do jurista e do juiz soluções prontas e adequadas aos novos desafios da sociedade. E o direito das obrigações, e em especial o direito dos contratos, que durante tantos séculos se manteve avesso a modificações de seus princípios, está a exigir reflexões que refogem aos dogmas clássicos. 25 Com a introdução de normas de ordem pública, limitando-se a liberdade contratual26, buscou-se impedir a exploração daquele que se encontra em condição de inferioridade27. Essa idéia dos limites impostos à liberdade contratual resulta do próprio fenômeno da publicização do direito Privado, por meio, então, da interferência estatal nas relações havidas entre particulares, em atenção às exigências do bem comum e do interesse coletivo.28 Passamos a analisar os modernos princípios contratuais oriundos do fenômeno da constitucionalização do direito privado, que são elementos de concretização da função social do contrato. 25 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil- teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 332. 26 Note-se que a liberdade de contratar é um dos pressupostos para a consecução da dignidade da pessoa humana, é a liberdade ilimitada, que cada um possui de realizar contratos, ou de não os realizar, de acordo com a sua vontade e necessidade. Porém, a liberdade contratual, é o poder de livremente discutir as cláusulas do contrato, mas devem ser restringidas às normas de ordem pública, limitadas à dignidade da pessoa humana, à igualdade, à justiça e à boa-fé. 27 Como exemplo, tem-se o contrato de cartão de crédito, linhas de financiamento junto a bancos, e os demais contratos que se tornam impossíveis de execução. 28 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Contrato: estrutura milenar de fundação do direito privado. Jus Navegando. http://www.jus.com.br. Acesso em 17 outubro de 2005. 16 3.1 A pacta sunt servanda e o princípio da rebus sic stantibus ou teoria da imprevisão Um exemplo claro da racionalidade liberal-individualista é o princípio da pacta sunt servanda, o qual também é conhecido como princípio da força obrigatória dos contratos ou da vinculatividade do contrato. Convém ressaltar que este princípio considera que as disposições contratuais devem ser cumpridas, porque são conseqüências da vontade das partes: “Assim, o direito natural, através dos séculos, vem ensinando que o contrato, porque é voluntário, é conforme a lei moral, e a moral ordena o respeito à palavra empenhada.”29 Contrariamente à teoria clássica surgiu a moderna teoria contratual preconiza, sobretudo, a função social do contrato, dentro de uma concepção social. Todavia, a nova organização principiológica não exclui princípios clássicos do direito contratual, como, por exemplo, o da liberdade de contratar, a pacta sunt servanda, mas, sim, permite que os princípios convivam, porém, com uma feição contemporânea do contrato, sob a influência de uma visão constitucional. “O contrato deve ser justo, mas sem se afastar de sua utilidade específica.30” A dogmática contratual tem como princípios básicos a autonomia privada, o consensualismo e a pacta sunt servanda. A própria Constituição Federal, em seu art. 3º, elenca como um dos objetivos da República a construção de uma sociedade livre. No entanto, para que a autonomia privada e a liberdade sejam justificadas e preservadas, se faz necessário intervenção no âmbito interprivado e contratual, a fim de assegurar, em certa medida, o respeito aos direitos fundamentais.31 Fundamenta-se, pois, na segurança das relações jurídicas e na idéia de que o contrato faz lei entre as partes, já que no momento em que for declarada essa vontade, não mais é permitido escusar o seu cumprimento. O próprio Estado cria leis, a fim de tornar obrigatório o cumprimento daquilo que foi acordado entre as partes, 29 ELESBÃO, Elsita Collor. Princípios informativos das obrigações contratuais civis. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p.151. 30 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 5. 31 TUTIKIAN, Op. Cit. p. 50. 17 pois dentro da visão clássica ou liberal do contrato, a força obrigatória é reconhecida pelo direito e impõe-se frente à tutela jurisdicional, ou seja, as cláusulas contratuais não podem ser alteradas pelo juiz. Caso ocorram motivos que determine a apreciação do contrato pelo juiz, este deve limitar-se à determinação de sua nulidade ou de sua resolução, jamais à modificação do seu conteúdo. Eventual intervenção judicial no contrato feriria a própria liberdade de contratar. A regra era o cumprimento daquilo que foi acordado, sob pena de acarretar sanção de ordem patrimonial (perdas e danos), contra o inadimplente. Esse princípio tinha fundamento na liberdade de contratar: Há um velho aforisma jurídico que se constitui em um dos fundamentos do direito: pacta sunt servanda. Essa regra emana da própria essência da relação contratual e justifica o próprio liberalismo do século XX, pois, se as partes optaram por se vincularem livremente, devem honrar o que pactuaram. Ou seja, a força vinculante do contrato tem seu cerne em duas importantes combinações: na expressão da liberdade de os indivíduos regularem seus próprios interesses e na boa fé que impõe o cumprimento do acordo de vontades.32 Em determinados casos, o conteúdo contratual pode ser discutido, pois há normas mínimas de proteção aos contratantes, podendo o Estado interferir toda vez que as normas cogentes ou imperativas forem descumpridas. Portanto, a revisão contratual é instrumento necessário e eficaz para trazer o equilíbrio, a igualdade e a proteção da parte hipossuficiente. Desta forma, o Estado, por meio das normas constitucionais, encontrou um meio de satisfazer os interesses sociais, lançando normas cogentes, a fim de proteger o mais fraco diante do liberalismo jurídico. É inegável que o contrato modificou-se ao longo do tempo, seja no seu conteúdo, seja nas suas funções, em razão da própria transformação da sociedade, a partir da Revolução industrial. A autonomia privada, diante do rigor excessivo da força obrigatória dos pactos, no final do século XIX e início deste, foi contida pela interferência do Estado nas relações contratuais, fato esse que já havia se iniciado antes, com a Revolução Industrial. Contudo, tornou-se mais evidente essa interferência 32 ELESBÃO, op. cit. p. 155. 18 estatal entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, surgindo, destarte, o que se denominou dirigismo contratual, limitando-se a liberdade de contratar, para que fossem evitados abusos em algumas relações contratuais.33 Portanto, esse princípio é atual, mas já foi aplicado na I e II Guerras Mundiais, quando foi necessária a revisão dos contratos realizados antes desse evento, pois as condições se agravaram bastante após a sua eclosão. Esse foi um fato extraordinário, que veio agravar a posição do devedor de prestações sucessivas, derivadas de contratos ultimados antes da guerra, a qual efetivamente tornou pesadíssimo e impossível o cumprimento dos contratos concluídos anteriormente, ameaçando, desse modo, conduzir à ruína os devedores. Diante do avanço da massificação da sociedade, foram instituídas novas formas de contratação, como os contratos de adesão, os padronizados e os eletrônicos e, em conseqüência, o modelo clássico para as modernas relações contratuais não mais foi eficaz. Essa crise no sistema contratual da sociedade moderna fez com que se chegasse a proclamar a morte do contrato. No entanto, o que houve foi sua transformação, que se deu pela interferência direta do Direito Público sobre o Direito Privado, com a criação de normas cogentes para regular algumas avenças. Conseqüentemente, a legislação contemporânea implementou a rebus sic stantibus, a qual é apresentada modernamente sob o nome de “teoria da imprevisão”, recepcionada pelo Código Civil de 2002, nos artigos 47834, 47935 e 48036. Todavia, para se utilizar esta teoria, há necessidade de que em razão de um fato imprevisto e superveniente, a obrigação, de trato sucessivo, tenha se tornado excessivamente onerosa, porém, a sua aplicação deve ser moderada. 33 DONNINI, Rogério Ferraz. A Constituição Federal e a concepção social do contrato. In: VIANA, Rui Geraldo Camargo e NERY, Rosa Maria de Andrade.(Organizadores) Temas atuais de Direito Civil na Constituição Federal. São Paulo: RT, 2000, p. 71. 34 Art. 478- Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. 35 Art. 479- A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato. 36 Art. 480 – Se no contrato as obrigações couberem apenas a uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterando o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva. 19 O atual Código Civil determina que o juiz pode intervir nas relações contratuais, mas restringe esta possibilidade aos casos de clara desproporção entre o que foi ajustado quando da celebração do contrato e o valor da prestação na época da execução. Além disso, é imprescindível que a causa da desproporção tenha sido realmente imprevisível e que tenha sido havido pedido expresso de uma das partes, sendo vedado ao juiz determinar a correção de ofício37. Desta forma, em razão da evolução da sociedade e das relações jurídicas, a realidade social sofreu mutações, passando a dar lugar à nova teoria contratual, baseada na função social do contrato e no princípio da boa-fé. 3.2 O princípio da boa-fé objetiva No Código Civil de 1916 prevaleceu a boa-fé subjetiva, que está voltada ao sujeito da relação jurídica. Tem essa denominação subjetiva porque para o exegeta é levado em consideração o intuito, a convicção, o estado psicológico desse sujeito. Trata-se do convencimento do indivíduo de que está a agir de acordo com o direito. Ao intérprete cabe a análise do estado psicológico, da convicção de um princípio geral, do exame se existia ou não o desconhecimento, a ignorância do vício.38 O princípio da boa-fé39 sempre fez parte da teoria clássica dos contratos, mais precisamente dos princípios fundamentais, juntamente com os princípios da autonomia da vontade, do consensualismo (em que o acordo de vontades 37 ZINN, Op. Cit. p. 115. DONNINI, Op. Cit. p. 67. 39 O Código Civil de 1916 não previu regra geral de boa-fé, embora tenha constado em vários dispositivos, como por exemplo, nos arts. 112 (fraude contra redores), 221 (casamento nulo e anulável), 255, parágrafo único (direitos e deveres da mulher), 490, 491, 514, 516 (posse), 549 (construções e plantações), 551 (usucapião ordinário), 612 (especificação), 622 (tradição), 935 (pagamento), 968 (pagamento indevido, 1272 (depósito, 1318 (extinção de mandato), 1382 (contrato de sociedade), 1404 (dissolução da sociedade), 1443 (contrato de seguro), 1477 (dívidas de jogo) e 1507 (títulos ao portador). 38 20 é suficiente para a perfeição dos contratos), da força obrigatória dos pactos (princípio da intangibilidade contratual), além do princípio da relatividade dos efeitos dos contratos (efeitos que vinculam apenas as partes). Mas a ausência de uma regra específica sobre a boa-fé serviu, infelizmente, de justificativa para a sua inaplicabilidade, embora esse argumentos seja infundado.40 Por óbvio que a falta de previsão expressa no Código Civil não é motivo para a sua inutilização. Na verdade, o princípio da força obrigatória dos pactos (pacta sunt servanda), também não foi inserido expressamente, mas foi utilizado com absoluto rigor, ao longo de muitas décadas em nosso país, como se fosse o único da teoria contratual.41 O fato é que antes da entrada em vigor do Código Civil, prevaleceu um pensamento capitalista, centrado na segurança dos negócios e sua circulação, inexistindo, assim, uma preocupação acentuada com relação à justiça nas relações jurídicas. No modelo liberal de contrato a idéia de comutatividade (equilíbrio entre as prestações42) e o princípio da boa-fé foram relegados ao abandono, por isso, é inadmissível pactuar com a máxima “quem diz contratual, diz justo”, do direito francês, pois avenças firmadas contrariamente à noção de eqüidade e respeito à dignidade humana não podem ser consideradas lícitas. Ao lado dos vínculos criados pelo acordo de vontades, há deveres paralelos criados pelo acordo de vontade, que a doutrina chama de deveres acessórios. No caso, a lei civil refere-se à boa-fé objetiva, a qual desliga-se do elemento vontade. 40 DONNINI, Op. Cit. p. 75. Ibid. p. 75-76. 42 Pela hermenêutica do Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078/90 - parte-se do pressuposto de que o consumidor é a parte hipossuficiente, fraca e vulnerável. No Código Civil não há vestígio de desequilíbrio e pode ser que a parte mais forte tenha imposta condições imorais ou abusivas. 41 21 Este princípio é considerado uma cláusula geral, isto é, preceito genérico e aberto43, eis que a lei não define uma padrão de conduta ou determina o que é a boa-fé, cujo conteúdo haverá de ser completado e definido casuisticamente pelo juiz, exigindo-lhe um trabalho de adaptação a ser cumprido por meio da hermenêutica, da interpretação.44 Nesse contexto, o princípio da boa-fé45 passa a ter um papel importante na efetivação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o qual não estava previsto no Código Civil de 1916. A legislação civil de 2002 prevê esse princípio nos artigos 11346, 18747 e 42248. A análise do Código português leva a concluir que a boa-fé está presente e deve ser observada durante todas as fases do relacionamento negocial: a preparatória, a integrativa e a de cumprimento da obrigação. Nestes mesmos moldes é o tratamento dispensado pelo novo código Civil brasileiro ao tema.49 A boa-fé é o dever de conduta do homem médio, exigível no âmbito do direito das obrigações, que não se confunde pela situação ou fato psicológico da boa-fé. Portanto, este princípio deve ser dividido em boa-fé objetiva e subjetiva. É um dever de conduta que deve estar presente em todas as fases do contrato, desde as contratações preliminares, passando pela formação e execução do contrato, até mesmo após a sua extinção, caso em que deve prevalecer a lealdade, a honestidade e a confiança recíproca entre o credor e o devedor, a fim de que seja almejada a justiça 43 Por ser considerado um conceito genérico, a aplicação poderia gerar uma certa incerteza, haja vista que a possibilidade de o magistrado estabelecer uma norma ao caso concreto, de forma autoritária e discricionária. 44 THEODORO JÚNIOR, Op. Cit. p. 17. 45 Deve-se ressaltar que a boa-fé objetiva não teve sua estréia no código Civil, mas no Código de Defesa do consumidor – Lei 8.078/90, que, além deste, ainda traz muito outros princípios constitucionais. 46 Art. 113- Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme e boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. 47 Art. 187- Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 48 Art. 422- Os contratantes são obrigados a guardar, assim, na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 49 ZINN, Op. Cit, p. 110. 22 contratual, evitando, dessa forma, o enriquecimento injusto. Nesse sentido, Elsita Collor Elesbão considera que: [...] o princípio da boa-fé, exigindo comportamento leal e tendo por objetivo proporcionar aos sujeitos de qualquer relação obrigacional aquela confiança que é necessária à relações sociais de intercâmbio de bens e serviços, já é uma antecipação do princípio da justiça contratual, que prevê, substancialmente, o equilíbrio entre os compromissos assumidos e beneficentes esperados.50 Referido princípio também pode ser definido como fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, os chamados deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, os chamados deveres anexos, e como causa limitadora do exercício, antes lícito, hoje abusivo, dos direitos subjetivos.51 Trata-se, pois, de um princípio ético, fundamental para proporcionar a segurança das relações jurídicas e a reciprocidade entre as partes. O dever de agir de acordo com a boa-fé está presente em todas as fases da vida do contrato. Ela tem uma primeira manifestação logo nas negociações que precedem o contrato, resultando da sua violação a responsabilidade pré-contratual, mas a sua importância só revelada, em plenitude, na conclusão do pacto, na sua interpretação e execução. É justa causa para justificar a extinção de obrigações, com resolução de contratos.52 Nos contratos há uma imposição ética que domina toda a matéria contratual, impondo a observância da boa-fé e lealdade, tanto na manifestação da vontade (criação do negócio jurídico), como principalmente na interpretação e execução do contrato. Em outras palavras, com a Carta Magna surgiram princípios norteadores dos atos jurídicos, vistos como garantidores de direitos, como a igualdade material e a dignidade da pessoa humana53. Para tanto, é imprescindível que se tenha o texto 50 ELESBÃO, op. cit. p. 158-9. MARQUES, Op. Cit. p.107. 52 ELESBÃO, op. cit. p. 160. 53 Cf. MORAES: O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, 51 23 constitucional, como norma inserida no mundo jurídico, como norma auto-aplicável, e não somente como um ideário. É necessário, assim, que se tenha as normas constitucionais como jurídicas e não somente como morais, tendo total eficácia normativa.54 Cumpre ratificar que as normas constitucionais são soberanas, e, por conseqüência, quando seus princípios são violados, há a inconstitucionalidade. O Estado Democrático de Direito, ao lado do núcleo liberal agregado à questão social, tem como questão fundamental a incorporação efetiva da questão da igualdade como um conteúdo próprio a ser buscado garantir através do asseguramento mínimo de condições mínimas de vida ao cidadão e à comunidade.55 Por fim, cumpre destacar que o contrato não caiu em desuso; muito pelo contrário: é um indispensável instrumento no trato das relações jurídicas, e necessário à segurança dos negócios. O fato é que a realidade social e jurídica é dinâmica, alterando-se os valores, motivo pelo qual o contrato deve se readequar e cumprir com a sua finalidade social, ou seja, deve ele ser visto como instrumento para a efetivação dos princípios constitucionais, principalmente num Estado Democrático de Direito. 3.3 Princípio da função social do contrato Com efeito, função quer dizer "papel a desempenhar", "obrigação a cumprir, pelo indivíduo ou por uma instituição”. E social qualifica o que é "concernente seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria. A noção de dever fundamental resume-se a três princípios de direito romano: honestere vivere (viver honestamente), alterum non laedere (não prejudique ninguém) e suum cuique tribuere (dê a cada um o que lhe é devido). MORAES, Alexandre de. Direito Humanos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 60-61. 54 REIS, 2001. p. 128. 55 STRECK. Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 39. 24 à sociedade", "relativo à comunidade, ao conjunto dos cidadãos de um país". Logo só se pode pensar em função social do contrato, quando este instituto jurídico interfere no domínio exterior aos contratantes, isto é, no meio social em que estes realizam o negócio de seu interesse privado.56 A partir da implementação deste princípio no Código Civil, constata-se que nas relações contratuais interessa não somente a situação das partes, mas também à coletividade (terceiros). Se uma das partes for prejudicada com uma cláusula que torne o cumprimento do contrato excessivamente onerosa, levando a parte ao empobrecimento, a lei determina a resolução do contrato ou a revisão de seus termos, a fim de restabelecer o equilíbrio contratual. Neste caso, podem ser aplicados os princípios da boa-fé objetiva e/ou a teoria da imprevisão. Na realidade, o negócio jurídico tem relevante papel na ordem econômica indispensável ao desenvolvimento e aprimoramento da sociedade. Têm, também os terceiros direito de evitar reflexos danosos e injustos que o contrato, desviado de sua natural função econômica e jurídica, possa ter na esfera de quem não participou de sua pactuação.57 A função social que se atribui ao contrato não pode ignorar sua função primária e natural, que é a econômica. Ao contrato cabe uma função social, mas não uma função de "assistência social". Por mais que o indivíduo mereça assistência social, não será no contrato que se encontrará remédio para tal carência. O instituto é econômico e tem fins econômicos a realizar, que não podem ser ignorados pela lei e muito menos pelo aplicador da lei.58 Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a função social não se apresenta como meta do contrato, mas como limite da liberdade do contratante de promover a circulação dos bens patrimoniais (Código Civil, art. 421). Mas como um 56 57 58 THEODORO JÚNIOR, Op. Cit. p. 13. Idem. Ibidem. p. 30. Idem. Ibidem. p. 98. 25 limite que interfere profundamente no conteúdo do negócio, pelo papel importante que o contrato tem de desempenhar na sociedade.59 Para que o contrato atinja a sua função social deve haver uma ponderação de valores, através do princípio da proporcionalidade, a ser realizada pelo juiz. A função social do contrato deve ser extraída do caput do art. 170 da Constituição Federal60, de modo que os contratos devem estabelecer-se numa ordem social harmônica, visando inibir qualquer prejuízo à coletividade. Isso porque os contratos, como principal instrumento de circulação de riquezas, exercem influência em dois níveis, ou seja, no intrínseco (entre as partes), e no extrínseco (em face da coletividade/bem comum). Assim, tem a função de promover a igualdade, o equilíbrio e a justiça contratual. CONSIDERAÇÕES FINAIS Pode-se constatar que a noção de contrato, oriunda do liberalismo, vem sendo superada pela funcionalização do contrato. O patrimonialismo, o individualismo e a autonomia de vontade vêm sendo revistas pela moderna teoria contratual, em que os contratos passam a ter uma leitura constitucional. Nessa esfera, a efetivação e concretização dos direitos fundamentais deve ser um objetivo tanto das relações horizontais quanto das relações verticais, tornando comuns os objetivos do direito público e do Direito privado: alcançar a dignidade da pessoa humana e a aplicação dos direitos fundamentais. 59 THEODORO JÚNIOR, Op. Cit. p. 99-100. Cf. Art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: III – a função social do contrato; 60 26 A concretização dos direitos fundamentais demanda atividade interpretativa: a verdadeira eficácia dos direitos fundamentais somente será alcançada através do abandono dos métodos interpretativos da hermenêutica clássica. Tal acepção há que ser também adotada nas relações contratuais, sob pena de tornar inócuo todo o debate da constitucionalização do direito privado. Assim, não há o desaparecimento do direito civil e dos contratos, pois o que desapareceu foi a concepção de direito civil próprio do Estado liberal, e em seu lugar, a concepção social. Neste sentido, a lei civil implementou modernos mecanismo de efetivação da função social do contrato, que são os princípios da boa-fé objetiva, da rebus sic stantibus e a função social do contrato. Assim, por meio da interpretação das cláusulas gerais e de conceitos abertos e indeterminados é possível a efetivação dos direitos fundamentais nas relações privadas. Além disso, há a vantagem de adaptar o Código Civil à realidade social, com vistas a ensejar a formação de modelos jurídicos inovadores, abertos, contínuos e flexíveis. Recupera-se, pois, o papel da doutrina e da jurisprudência diante do fenômeno da Constitucionalização do direito privado, que tem o objetivo de submeter o direito privado aos princípios constitucionais, como o da solidariedade social, da dignidade da pessoa humana, da função social da propriedade, função social do contrato, da boa-fé objetiva, aos quais se tem assegurado eficácia imediata, de forma a interpretar o Direito Civil conforme a Lei Maior. O presente estudo não teve a pretensão de enunciar uma única conclusão a respeito do tema, tampouco esgotou o tema em todas as suas facetas, mas pretendeu-se apenas lançar alguns questionamentos e considerações de caráter genérico e introdutório a respeito do assunto, que é extremamente importante, e que, portanto, não pode ficar adstrito a um artigo. 27 Este estudo apenas contribuiu para reflexão acerca do tema, sendo necessário seu desenvolvimento, para que sejam trazidos à discussão novas e mais fundamentações acerca das questões, o que vem a contribuir para o fortalecimento da teoria da constitucionalização do direito privado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. A função social da dogmática jurídica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002. ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2001. ALVIM, Arruda. Aspectos controvertidos do novo Código Civil. São Paulo: RT, 2003. ANDRADE, José Carlos Vieira de. 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