Elemar Kleber Favreto

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Modelo, cópia e simulacro: Uma perspectiva deleuziana ao
problema platônico
Elemar Kleber Favreto∗
RESUMO
Este artigo tem por objetivo esclarecer alguns aspectos mais gerais da crítica que
Deleuze faz à Platão, tentando, a partir daí, conceituar a filosofia ontológica
deleuziana. Sabemos que a grande maioria das críticas à filosofia platônica se direciona
especificamente à diferença entre o mundo sensível e o mundo inteligível, porém, o
autor francês observa que o maior problema não está na fundamentação desta
diferença, mas na subordinação destes dois mundos à identidade, ou melhor, a
redução da Diferença (multiplicidade) à Identidade (unidade), através da similitude
entre Ideia e Cópia. Assim, Deleuze considera ser o simulacro a expressão da própria
Diferença e, enquanto expressão desta, manifestação do Ser. Entretanto, devemos ter
em mente que a concepção deleuziana de Ser se dá a partir da univocidade. Esta
univocidade em nada se iguala ao modelo platônico, já que ser unívoco não quer
necessariamente ser idêntico; ser unívoco é possuir um mesmo sentido, e, diria nosso
autor, o Ser só possui um sentido, qual seja: a própria Diferença. É nesta perspectiva
que o simulacro não corresponde nem à Cópia, como reprodução, e nem à Ideia, como
modelo, já que não traz vinculado em seu âmago a representação. Outro ponto a ser
ressaltado é a identificação deleuziana entre simulacro e “eterno retorno”. A ideia de
“eterno retorno” consiste em uma repetição eterna do mesmo, como em Nietzsche;
mas, o que seria este mesmo? Retornamos aqui à Diferença. Poderíamos, assim, dizer
que o que há é um “eterno retorno da Diferença”, já que é a Diferença que sempre
retorna como multiplicidade, que sempre se repete singularmente. O simulacro pode
ser, assim, concebido como a própria Diferença, pois se reconhece nele uma potência
capaz de se manifestar como acontecimento. O Acontecimento se compreende como
a manifestação da singularidade, já que nenhum acontecimento é igual ou semelhante
ao outro, tudo o que acontece é novo e único.
PALAVRAS-CHAVE: Simulacro. Representação. Acontecimento. Identidade. Diferença.
1 Introdução
Esta comunicação tem por objetivo apresentar alguns aspectos da “reversão
do platonismo” empreendida por Deleuze em Diferença e Repetição e Lógica do
∗
Licenciado e Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Professor
assistente do curso de Filosofia da Universidade Estadual de Roraima – UERR. E-mail:
[email protected]
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Sentido. Nestas duas obras, ambas publicadas em 1969, Deleuze resgata a crítica
empreendida por Nietzsche ao platonismo em geral, ou acerca da transcendência e da
representação, da identidade e da semelhança. Assim, devemos deixar claro que as
acusações ao platonismo são muito mais nietzschianas do que propriamente
deleuzianas. Deleuze, na verdade, se apropria destas críticas.
Se esta é, entretanto, uma de suas tarefas, principalmente nestas duas obras,
devemos verificar o que Deleuze entende por platonismo. Platonismo, para o autor
francês, não é unicamente a filosofia de Platão, mas o postulado de uma filosofia da
representação. Isto é, na história da filosofia, Platão não seria o único que buscou,
mesmo que indiretamente, a transcendência e a representação (modelo da
recognição); muitos outros, mesmo apontando críticas ao discípulo de Sócrates,
levaram a cabo a sua tarefa, já que ainda estiveram presos, de uma forma ou de outra,
a certos postulados da ontologia platônica. Alguns exemplos mais marcantes, a que
Deleuze nos convida também a postulá-los como platônicos, são: Aristóteles, que
mesmo apontando os supostos “erros platônicos” quanto a sua dialética seletiva,
ainda acaba se utilizando e ampliando o leque de uma filosofia representativa; São
Tomás de Aquino, que ao interpretar Aristóteles funda com maior grau a analogia do
juízo; e tantos outros que Deleuze cita ou comenta em suas obras. Mas, excetuando-se
os exemplos e a corrente de filósofos que ainda estiveram presos a uma configuração
socrático-platônica, ficaremos aqui unicamente neste âmbito da filosofia de Platão.
Desta maneira, devemos deixar claro que o filósofo francês, num primeiro momento,
critica Platão por ter inserido, na história da filosofia, conceitos que mais tarde
culminariam numa certa “imagem dogmática do pensamento”. Entretanto, ele
também celebra Platão. E o celebra pela sua posição dialética ao problema do ser; isto
é, segundo Deleuze, através da dialética platônica, ou a partir dela, podemos pensar o
ser não como uma instância negativa, mas como algo puramente problemático.
2 As dualidades platônicas
Postuladas estas perspectivas deleuzianas, devemos ressaltar como ele,
Deleuze, verifica uma dupla dualidade em Platão, pois é através desta interrogação
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sobre as dualidades platônicas que poderíamos pensar numa primeira definição do
que seria o próprio platonismo que daí se seguiu. A primeira dualidade, “dualidade
manifesta”, se caracteriza pela divisão entre os dois mundos platônicos, ou os dois
planos de existência: o mundo sensível, mundo da aparência; e o mundo inteligível,
mundo das formas, das ideias. Esta divisão é caracterizada pela transcendência, já que
o plano sensível se remete, num certo sentido, ao plano inteligível, pois, para o
ateniense, os objetos sensíveis são apenas cópias imperfeitas dos objetos inteligíveis,
ou das ideias puras. Haveria uma distinção, assim, entre aqueles que buscam a
verdade, o conhecimento do mundo inteligível, e aqueles que buscam o espetáculo, a
aparente beleza do conhecimento sensível. Claro que ambos estariam num mesmo
plano, já que se encontrariam sempre neste mundo aparente, mas se distinguiriam
pela busca, pela intenção de conhecer. Encontramos aqui, nesta distinção entre
aqueles que possuem a intenção de copiar o modelo e aqueles que não possuem esta
intenção, a segunda dualidade de Platão, “dualidade latente”. Esta dualidade se
caracteriza não mais pela distinção entre os dois planos do conhecimento, mas entre
as duas espécies de imagens que se inserem, desde sempre, neste plano da aparência:
a boa imagem, a imagem do filósofo, a cópia legítima; e a má imagem, a imagem do
sofista, o simulacro imperfeito. Esta distinção nos mostra a superioridade da cópia
sobre o simulacro, mesmo estando ambas colocadas num mundo aparente.
Devemos ressaltar que é nesta última distinção, distinção cópia/simulacro,
que Platão utiliza toda a sua “astúcia filosófica”, já que ao privilegiar a cópia, aquela
que detém a semelhança perante o modelo, coloca a identidade e a unidade do
modelo como instâncias primeiras, fazendo do simulacro um fantasma, que é, desta
maneira, exorcizado, justamente por não trazer consigo o âmago da semelhança e,
portanto, a necessidade de uma unidade e uma identidade. O grande trunfo platônico
foi agarrar a cópia como única possibilidade de se chegar ao verdadeiro conhecimento
através de sua similitude com a essência, jogando ao sofista a culpa do erro, já que
este se mostraria como a expressão do próprio falso, através da busca pelo simulacro.
Nas duas obras, já citadas, Deleuze nos mostra que para uma verdadeira
reversão do platonismo precisamos pensar não numa instauração da superioridade da
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imagem sobre o modelo, ou num abandono da distinção entre imagem e modelo,
entre fundamento e fundado; seguindo Nietzsche, Deleuze (1998, p. 271) procura “[...]
destruir os modelos e as cópias para instaurar o caos que cria, que faz marchar os
simulacros e levantar um fantasma [...]”. Mas, como podemos destruir esta “dualidade
manifesta” e instaurar o resquício de uma “dualidade latente” como aquilo que circula
no devir? Como podemos destruir a dualidade Modelo/Imagem e resgatar o simulacro
como expressão da diferença?
Talvez precisemos, antes de tudo, resgatar certos valores “pregados” por
Heráclito (e, em certa medida, pelos sofistas e mais tarde por Nietzsche) e esquecidos
de alguma forma pela tradição, ou melhor, postulados por ela como parte de um
mundo de imagens, quais sejam: o devir, o movimento e a diferença. Assim, uma das
principais críticas deleuzianas (advindas da leitura de Nietzsche) ao platonismo é a
questão da “negação” da diferença, e de certos pressupostos que ainda persistiam
nesta imagem do pensamento. No terceiro capítulo de Diferença e Repetição,
intitulado “A imagem do pensamento”, Deleuze nos traz oito postulados que
expressam os pressupostos do platonismo, ou desta forma dogmática de pensar (Cf.
DELEUZE, 2006, p. 239-240). Estes oito postulados nos mostram, em um âmbito geral,
o que é o platonismo, ou melhor, quais são, para nosso filósofo, os seus princípios e
pressupostos. Entretanto, segundo o próprio Deleuze, a imagem dogmática do
pensamento se resumiria num pensamento acerca do Mesmo e do Semelhante; a
“reversão do platonismo”, assim, se resumiria na dissipação destes dois princípios
fortes do pensamento. Os postulados elencados por ele seriam apenas
desdobramentos da imagem que evoca o Mesmo, o Semelhante e a sua
representação:
Os postulados não têm necessidade de ser ditos: eles agem muito
melhor em silêncio, no pressuposto da essência como na escolha dos
exemplos; todos eles formam a imagem dogmática do pensamento.
Eles esmagam o pensamento sob uma imagem que é a do Mesmo e
do Semelhante na representação, mas que trai profundamente o que
significa pensar, alienando as duas potências da diferença e da
repetição, do começo e do recomeço filosóficos. (DELEUZE, 2006, p.
240).
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Apesar de criticar Platão quanto à questão do Mesmo e do Semelhante, ou da
fundação da filosofia da representação, Deleuze também exalta a filosofia platônica;
pois, já nos dizia Deleuze, em um apêndice à Lógica do Sentido: não parece ser irônico
ser o próprio Platão o primeiro a indicar a reversão do platonismo? (Cf. DELEUZE,
1998, p. 262). É isso que parece se afigurar no diálogo O Sofista, já que o método de
divisão de Platão, de uma forma ou de outra, não se remete somente a “[...] dividir um
gênero em espécies contrárias para subsumir a coisa buscada sob a espécie adequada
[...]” (DELEUZE, 1998, p. 259); ou seja, o método da divisão de Platão não necessita da
mediação, este conceito empregado como crítica por Aristóteles à filosofia platônica. A
mediação, segundo Aristóteles, traria “[...] a identidade de um conceito capaz de servir
de meio-termo” (DELEUZE, 2006, p. 98). No entanto, segundo a interpretação
deleuziana, o método da divisão platônica não se propõe a uma especificação, mas a
uma espécie de seleção, onde “[...] não se trata de dividir um gênero determinado em
espécies definidas, mas de dividir uma espécie confusa em linhas puras ou de
selecionar uma linhagem pura a partir de um material que não o é” (DELEUZE, 2006, p.
99). Assim, Platão seria o primeiro a indicar a reversão de sua própria filosofia por
colocar em questão os próprios conceitos de modelo e de cópia, na medida em que
procura definir o que vem a ser o simulacro. Essa tentativa se dá através da utilização
de uma seleção de linhagens, estabelecendo, por fim, uma “dialética da diferença”.
O que se mostra, nesta seleção é um encurralamento do sofista, já que é ele,
segundo Platão, que se caracterizaria como o ser do próprio simulacro. Neste sentido,
Platão, na obra O Sofista, buscou definir a ocupação do sofista e, de certo modo, o que
ele (o sofista) seria; por este motivo se demorou em intrincados paradoxos, pois o
simulador parecia fugir a toda a tentativa de capturá-lo, se mostrando, deste modo,
como o próprio paradoxo. Tais paradoxos colocavam em dúvida, de certa forma, aquilo
que é e o que não-é, colocando igualmente em dúvida a própria fundamentação de um
modelo e de uma imagem. Pois, ao analisá-los, o ateniense se lançou numa
fundamentação daquilo que se caracterizaria como ilusório, daquilo que seria, para
ele, no fim das contas, cópia de cópia (simulacro).
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[...] é possível que o fim do Sofista contenha a mais extraordinária
aventura do platonismo: à força de buscar do lado do simulacro e de
se debruçar sobre seu abismo, Platão, no clarão de um instante,
descobre que não é simplesmente uma falsa cópia, mas que põe em
questão as próprias noções de cópia... e de modelo. (DELEUZE, 1998,
p. 261).
Platão estaria, portanto, nesta obra (e em outras obras de velhice), apontando
questões fundamentais para o que hoje consideramos ser uma filosofia da diferença.
Isso contraria a “imagem do pensamento” que ele, Platão, estaria criando nas suas
obras de juventude e maturidade, já que nestas estaria direcionando o pensamento
para um mundo da identidade (mundo das ideias) e desprezando o mundo da
diferença (mundo sensível).
Além disso, para Deleuze, apesar de a filosofia platônica se apresentar, muitas
vezes, como um sepultamento da diferença, ela ainda a reivindicava como Outro,
ainda que subordinado ao Mesmo; desta maneira, a caracterização dialética se
mostrava, de alguma forma, como a rivalização do Mesmo e do Outro dentro da Ideia,
do ser e do não-ser dentro da unidade do conceito Ideal. No entanto, o Outro não era
visto pelo ateniense como um não-ser completo, um nada (nihil), mas como um
problema no próprio questionamento pelo ser, ou melhor, como algo que se mostrava
como “problemático”. Assim, em Platão, o não-ser não é o mesmo que o negativo do
ser, pelo contrário, o “não” do não-ser, antes de ser o negativo do ser, ou a negação
dele, é o positivo da questão-problema; ele representa outra coisa que a negação de
ser, representa o próprio problema da questão do ser: o indeterminado, ou ainda, a
diferença. Todavia, a diferença nunca deve ser vista, pelo menos em Deleuze, como
negação de ser, mas sempre como afirmação dele; não há negação determinada,
apenas negação indeterminada, diferença pura. Entretanto, a instauração desta
diferença, para Platão, deste não-ser que se mostra como problema, ainda se afirmava
como a instauração de um “critério de verdade” para a existência do idêntico, através
da mediação desta diferença ao Mesmo.
Na verdade, a distinção do mesmo e do idêntico só é proveitosa se
levarmos o Mesmo a submeter-se a uma conversão que o remeta ao
diferente, ao mesmo tempo em que as coisas e os seres que se
distinguem no diferente sofram de modo correspondente uma
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destruição radical de sua identidade. É somente sob esta condição
que a diferença é pensada em si mesma e não representada,
mediatizada. Todo o platonismo, ao contrário, é dominado pela idéia
de uma distinção a ser feita entre “a coisa mesma” e os simulacros.
Em vez de pensar a diferença em si mesma, ele já a remete a um
fundamento, subordina-a ao mesmo e introduz a mediação sob uma
forma mítica. Subverter o platonismo significa o seguinte: recusar o
primado de um original sobre a cópia, de um modelo sobre a
imagem. Glorificar o reino dos simulacros e dos reflexos. (DELEUZE,
2006, p. 105-106).
Deleuze nos aponta aqui novamente o caminho da “reversão do platonismo”,
e esta reversão se daria, como ele mesmo expõe, através da superação da dualidade
“manifesta”. Não havendo mais modelo, não havendo mais fundamento, o que
restaria seria apenas a superfície de uma imagem, e como a cópia, na dualidade
“latente”, só é exaltada através da sua semelhança com o modelo, não haveria mais
razão de sua superioridade sobre o simulacro. Este último, portanto, se mostraria
como a expressão da diferença esquecida, como um fundo que se mostra sempre na
superfície, pois o fundamento perde a sua força subindo à superfície e se mostrando
na suposta “má linhagem” colocada por Platão, o simulacro-fantasma.
O autor francês considera ser, assim, o simulacro a expressão da própria
diferença e, enquanto expressão desta, manifestação do ser (diferença) no ente, ou
dele como diferente. Sendo desta maneira, o simulacro não corresponderia nem à
Cópia, como reprodução, e nem à Forma, como modelo, já que não traria vinculado
em seu âmago a ideia de semelhança e de representação. Mas, como ele, o simulacro,
pode ser pensado como esta expressão da diferença?
3 O eterno retorno da diferença
O simulacro, para Deleuze, seria a expressão pura de um devir-louco, de um
caos criador que não representaria nada, justamente por não estar em vista de um
modelo; e que também não se assemelharia a nada, já que ele, pelo contrário, apenas
diferenciaria, apenas se daria a repetir num “Eterno Retorno”. O simulacro negaria
tanto o modelo quanto a cópia, tanto aquele que se auto-identifica através da forma
do Mesmo, quanto àquele que se assemelha com este idêntico, através da
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Semelhança. Deleuze, deste modo, tenta destruir os modelos e as cópias, destruindo,
assim, a primeira das duas dualidades platônicas, acabando com a dualidade, pois
exaltaria o mundo das imagens. Tudo o que ainda restaria, o único resquício da
segunda dualidade, seria aquilo que antes foi desprezado por Platão como a imagem
que não se assemelha ao modelo, a expressão do falso, o simulacro. E este inclui tanto
o observador das impressões que se postam, como o próprio ponto de vista que se
forma, portanto, “[...] há no simulacro um devir-louco, [...] um devir sempre outro, um
devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o
Semelhante: sempre mais e menos ao mesmo tempo, mas nunca igual” (DELEUZE,
1998, 264). Por este motivo a imagem dogmática do pensamento não poderia aceitálo, não poderia exaltá-lo, já que colocaria a diferença como produtora e não mais
como mero produto.
Ao destruir as duas dualidades platônicas, Deleuze acaba destruindo também
a própria fundamentação da representação, já que, não havendo mais um modelo que
expressaria a unidade e a identidade, haveria unicamente aquilo que expressaria a
própria diferença nos entes. Porém, a representação não é totalmente descartada por
nosso filósofo, mas colocada como um produto da diferença, e não mais como um dos
fatores que causam a mesma.
É desta maneira que o simulacro deleuziano se remete ao “eterno retorno”
nietzschiano, já que não estaria preso ao conceito mesmo de representação.
Entretanto, devemos esclarecer aqui a caracterização de Deleuze sobre duas espécies
de “eterno retorno”. O primeiro seria, segundo a denominação de nosso filósofo, o
“eterno retorno manifesto”, que se refere à imagem dogmática do pensamento, ou
seja, onde a simulação estaria diretamente ligada à identidade e à semelhança; onde
“[...] ele representa então a maneira pela qual o caos é organizado sob a ação do
demiurgo e sobre o modelo da Idéia que lhe impõe o mesmo e o semelhante. O eterno
retorno, neste sentido, é o devir-louco controlado, monocentrado, determinado a
copiar o eterno” (DELEUZE, 1998, p. 269). Neste sentido é que a diferença se
subordinaria, pois, nesta imagem do pensamento ainda se pensava o eterno retorno
através da ideia de representação, de uma repetição que copiava, que imitava o
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eterno, isto é, de um re-apresentar do Mesmo através da Semelhança. Foi com
Nietzsche que encontramos a significação “latente” do eterno retorno, e com ele a
filosofia encontrou um novo recomeço, passando a pensá-lo (eterno-retorno) como
um retornar do próprio simulacro, um retornar da própria diferença, e não um mero
re-apresentar. A esta forma de retornar, aqui exposta de uma maneira mais
simplificada, Deleuze designa Repetição.
4 Conclusão
A repetição deleuziana se caracteriza também como uma “[...] potência de
afirmar o caos” (DELEUZE, 1998, p. 269). O caos é aquilo que se repete e se afirma, já
que é ele a própria diferença que expressa tudo aquilo que difere nos entes. O
simulacro deleuziano, portanto, se manifesta como a diferença que se apresenta nas
coisas, ou como aquilo que a própria coisa se mostra em seu retornar, não há uma
identidade na coisa que volta, não há nem mesmo um modelo para que esta
identidade se efetive, desta forma, também não há uma cópia que se assemelhe; o
que há é apenas a coisa que aparece, como aquilo que se manifesta no devir, no
eterno vir-a-ser.
O simulacro é o verdadeiro caráter ou a forma do que é – ‘o ente’ –
quando o eterno retorno é a potência do Ser (o informal). Quando a
identidade das coisas é dissolvida, o ser escapa, atinge a univocidade
e se põe a girar em torno do diferente. O que é ou retorna não tem
qualquer identidade prévia e constituída: a coisa é reduzida à
diferença que a esquarteja e a todas as diferenças implicadas nesta e
pelas quais ela passa. É neste sentido que o simulacro é o próprio
símbolo, isto é, o signo na medida em que ele interioriza as
condições de sua própria repetição. (DELEUZE, 1006, p. 106).
O eterno retorno, assim, seria aquilo que coloca os simulacros em marcha,
aquilo que estabelece a diferença do ente em si mesmo. Se a identidade ou a
semelhança surgem desta marcha, não passarão de fenômenos secundários, pois a
diferença é a primeira manifestação da repetição perante o simulacro. No entanto, ela
(repetição) contém em si diversos outros aspectos relevantes a serem destacados,
mas, ficaremos aqui unicamente com esta questão, aqui exposta, do simulacro
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deleuziano, sendo este aquilo que desvanece a representação e estabelece o retornar
do “eterno retorno”, entretanto, sempre um retornar do diferente e não mais do
idêntico.
Referências Bibliográficas:
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado.
2º ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
_______. Lógica do Sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas. 4º ed. São Paulo:
Perspectiva, 1998.
MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
PLATÃO. A República. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
(Os Pensadores).
_______. O Sofista. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Nova
Cultural, 1991. (Os Pensadores).
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