50 Cenários, Porto Alegre, n.11, 1° semestre 2015 DO CORPO AO PENSAMENTO: A PERSPECTIVA VIGOTSKIANA THE BODY AND THOUGHT AS PER THE PERSPECTIVE OF LEV S. VYGOTSKY Prof. Me. Luis Alberto Flores Lucini Prof. Me. Renata Santos de Morales Prof. Dra. Noeli Reck Maggi Resumo: O presente artigo propõe esboçar reflexões sobre a interação entre corpo, linguagem e pensamento na perspectiva de Lev S. Vygotsky. Partimos da ideia que perpassa a teoria de Vygotsky de que o pensamento humano se desenvolve a partir do envolvimento físico com o mundo e do envolvimento social com outras pessoas. Quando adultos, somos capazes de dissociar a relação com o físico, conseguimos sair do concreto e abstrair. Nossos pensamentos são desanexados das coisas, dos “artefatos físicos”. No entanto, na criança a questão do concreto na interação corpo-pensamento é latente. Há uma relação com os objetos que estão no mundo através do corpo: a criança interage e controla o ambiente fisicamente e sensorialmente. A criança, na medida em que passa pelo processo de aquisição da linguagem, faz uso dos signos para viabilizar sua inserção no mundo cultural. Este mecanismo de mediação semiótica possibilita a comunicação da criança com os outros e faz com que os signos sejam conversores da significação, de forma que a criança se aproprie do que lhe é alheio. Assim, a partir da hipótese de que todo este processo tem vínculo com o corpo da criança e por meio de reflexões sobre os conceitos de instrumento, signo, internalização e mediação perguntamo-nos, neste estudo: qual o papel do corpo no movimento de inserção do sujeito do mundo cultural e de que forma a interação da criança com o outro, fazendo uso do seu corpo, auxilia nesse processo. Palavras-chave: Corpo. Instrumento. Internalização. Mediação. Cultura. Abstract: This article proposes to cast reflections on the interaction of the body, speech and thought as per the perspective of Lev S. Vygotsky. The starting point is the idea that permeates Vygotsky's theory that human thought is developed from the physical engagement with the world and social engagement with others. As adults, we are able to dissociate the relationship with the physical, we part from the concrete and abstract. Our thoughts are detached from things, from "physical artifacts." However, for children the question of concreteness in the body-thinking interaction is latent. There is a relationship with the objects that are in the world through the body: the child interacts and controls the environment in a phisycal and sensorial way. The child, going through the language acquisition process uses signs to facilitate its insertion into the cultural world. This semiotic mediation mechanism enables the child's communication with others and turns signs into significance converters, so that the child takes ownership of what is alien to them. Assuming that this entire process bonds with the child's body, and from reflections on the concepts of intrument, sign, internalization and mediation, we ask ourselves in this study: what is the body's role in the movement of integration of the subject in the cultural world and how the child's interaction with each other, making use of their body, contributes to this process. Keywords: Body. Instrument. Internalization. Mediation. Culture. INTRODUÇÃO Com raras exceções, nenhuma teoria psicogenética clássica abordou a questão do corpo no desenvolvimento humano com ênfase. Encontramos estudos mais modernos, Cenários, Porto Alegre, n.11, 1° semestre 2015 51 como a escola cognitiva do embodiment, que abarcam as questões corporais como fundamentais ou primeiras no desenvolvimento cognitivo humano. No entanto, parece-nos que estas teorias tendem a considerar o aspecto físico independentemente do aspecto psicológico, e o desenvolvimento se daria exclusivamente através do contato físico com o mundo. Por outro lado, percebemos que as questões relacionadas ao corpo e sua participação no desenvolvimento psicológico do humano não foram exatamente negligenciadas pela teoria psicogenética de Vygotsky. Parece-nos que o papel exercido pelo corpo na teoria vigotskiana é maior do que percebe-se em uma leitura superficial de seus escritos. Consideramos pertinente a proposição de Vygotsky de que o pensamento do humano se desenvolve, primeiramente, a partir de seu envolvimento físico (corporal e sensorial) com o seu meio, de onde decorre a função de internalização, e das relações sociais com outras pessoas, relações que oferecem modelos de mediação. Enquanto adultos, somos capazes de dissociar a relação com o físico, conseguimos sair do concreto e abstrair. Nossos pensamentos são desanexados das coisas, dos “artefatos físicos”. No entanto, na criança a questão do concreto na interação corpo-pensamento é latente. Há uma relação com os objetos que estão no mundo através do corpo: a criança interage e controla o ambiente fisicamente e sensorialmente. Assim, argumentaremos, ao longo deste artigo, que as questões de corpo estão presentes nos aspectos mais fundamentais da teoria de Vygotsky, como por exemplo na sua abordagem sobre as funções psicológicas superiores, sobre os processos de mediação e na função de internalização. 2 DO CORPO AO PENSAMENTO: BREVES APONTAMENTOS Conforme mencionamos, a obra de Vygotsky não é reconhecida por evidenciar um estudo persecutório ao que se refere à temática do corpo, mas isso não quer dizer que este teórico não considerasse ou atribuísse devida importância à materialidade orgânica do homem. O reconhecimento sobre as questões corporais, na obra do psicólogo russo, pode ser interpretado em sua abordagem ao corpo humano como desenvolvimento orgânico e, também, na interação entre matéria (corpo) e realidade física enquanto construção dos signos que forjam e desenvolvem a linguagem na criança. Cenários, Porto Alegre, n.11, 1° semestre 2015 52 Com estudos enraizados principalmente nas questões da linguagem conscientes como uma construção social, Vygotsky objetivou teoricamente encerrar com qualquer proposta de divisão da psicologia em dois segmentos propostos como incompatíveis: um de ordem natural, que abarca os reflexos e elementos sensoriais, e outro de ordem mental, cognitivo que abrange os processos mais elaborados, as funções psicológicas superiores do pensamento. Estas funções conjugam com o ambiente em que o sujeito pertence e, nele, pela apropriação de diferentes linguagens se inscreve. Nesse sentido, toda a atividade humana é simbolizada por instrumentos, que interferem na interpretação daquilo que é natural em favorecimento do homem, que, nesse processo, também se modifica. Por essa perspectiva, a teoria de Vygotsky elucida que as interiorizações dos conteúdos históricos e culturais se processam de uma ordem externa para um plano interno, isto é, partem de natureza social das pessoas tornando-se uma natureza psicológica individual. Os questionamentos referentes a uma comunicação interna consciente do sujeito – no que tange a relação entre pensamento e a fala – nas investigações de Vygotsky, apontam que não existe de forma prévia nenhuma relação intrínseca, logo, pensamento e fala são processos distintos, mas intercambiáveis, em determinada etapa do desenvolvimento. O corpo se apresenta como elemento fundamental no desenvolvimento da linguagem. A criança, em seus primeiros meses de vida, tenta chamar a atenção de seus cuidadores por intermédio – mediada – pelo corpo: sons variados, gestos desordenados de ordem das suas necessidades vitais. Esse comportamento pode ser considerado, à luz do pensamento vigotskyano, como um período pré-linguístico dotado de uma linguagem pré-intelectual. Um momento pontual dá-se mais adiante no desenvolvimento, próximo aos dois anos de idade, quando as estruturas do pensamento pré-linguístico e da linguagem pré-intelectual se encontram e se unem, dando início a um novo processo de pensamento e organização da linguagem. Nessa articulação, o pensamento torna-se racional e a fala verbal, sendo apoiada no corpo como plataforma de ação. Pino (2005) refere-se à essa junção como um segundo nascimento, isto é, à criança é atribuído um duplo nascimento: um de ordem biológica e outro de ordem cultural. Evidencia esse autor (2005) que a criança e suas ações, também são linguagem na perspectiva de um Outro (social), pois cada atitude do infante – chorar, sorrir, apontar – é revestida por uma significação cultural. Vygostky, também numa interpretação sobre o gesto da criança, considera todo movimento gestual como sedutor, carregado de 53 Cenários, Porto Alegre, n.11, 1° semestre 2015 significação e linguagem para quem o percebe. Além disso, considera que existe um sistema dialógico nesse processo, pois a criança também se nutri com o resultado da ação, sempre reorganizando e reforçando a linguagem social. Esse modelo dialógico ilustra claramente a teoria sociointeracionista de Vygotsky e permite explicar a passagem do biológico ao cultural e do cultural ao biológico como defende esse pensador. O corpo, nessa perspectiva, também pode ser analisado e estudado nestas duas esferas: a biológica, ou natural; e a cultural, ou social. Independentemente do percurso que se encontra o sujeito, temos, em um plano, as questões biológicas, as quais estão vinculadas ao corpo, que sente e expressa suas necessidades básicas. E, em um outro plano, está o aspecto social, que, ancorado no corpo, participa intencionalmente e acomoda as linguagens acordadas culturalmente que reverberam novamente no corpo. Constitui-se assim a linguagem de forma mais sedimentada, mas sempre dinâmica e dialógica entre homem e seu fazer, sempre corporal. 3 CONCEITOS CHAVE: INTERNALIZAÇÃO, MEDIAÇÃO E O EXEMPLO PROTOTÍPICO DO APONTAR Quando Vygostky se propôs a estudar o desenvolvimento, direcionou sua pesquisa para as funções psicológicas superiores, que imprimem no ser humano características exclusivas, diferenciando-o de outras espécies. Grande parte de seus estudos foi realizada a partir do estudo do desenvolvimento infantil, mas pretendia dar conta de muito mais do que apenas os estudos psicológicos da criança. Do ponto de partida do desenvolvimento infantil e da observação da existência de funções mentais superiores, Vygotsky e seus colegas sugeriram a presença de três linhas genéticas distintas: a linha evolucionária, a linha histórica e a linha ontogenética. São três caminhos, três estradas percorridas pelo ser humano na busca do seu desenvolvimento. Uma das linhas fundamentais de análise foi, para o psicólogo, o uso de signos. Ao buscar explicações sobre a relação entre pensamento e fala, e também nos estudos sobre o uso de signos como auxiliares para a memória, Vygotsky encontrou um dos mais relevantes princípios que fazem parte do desenvolvimento humano, um princípio que veio para substituir, ou complementar, o princípio Darwiniano da evolução. Vygotsky trabalhou com o princípio da mediação, através do qual os significados dos signos utilizados desprendem-se cada vez mais do contexto espacial e temporal em que são utilizados. Cenários, Porto Alegre, n.11, 1° semestre 2015 54 Podemos vincular o início desse processo a uma ação que inicia no corpo da criança, com o corpo, através dele. Para Vygotsky, na criança, a linha natural de desenvolvimento pode operar de forma relativamente isolada nas primeiras fases da infância, mas logo são integradas com a linha cultural em um processo de interação. Afirma o teórico: No desenvolvimento da criança, encontramos representados (mas não repetidos), ambos os tipos de desenvolvimento psicológico, dentre os quais encontramos a filogênese de forma isolada: o biológico e o histórico. Na ontogênese ambos os processos tem suas analogias (e não paralelismos). Este é um fato fundamental e central... A partir disto nós certamente não queremos dizer que a ontogênese em qualquer forma ou grau repete ou reproduz a filogênese ou corre paralelamente a * ela. (VYGOTSKY apud SCRIBNER, 1986, p. 130, tradução nossa ) Para compreendermos esse enlace entre o desenvolvimento natural e o desenvolvimento cultural, precisamos nos remeter ao conceito de ferramentas mentais. As ferramentas mentais decorrem, em analogia, das ferramentas físicas que auxiliam o ser humano em suas habilidades materiais. As ferramentas da mente são uma forma de extensão ou de mediação das nossas habilidades mentais. É o uso das ferramentas que permite ao homem resolver problemas e organizar o pensamento. O sujeito, para desenvolver-se, necessita aprender, apreender e internalizar uma série de ferramentas mentais, a partir de signos e símbolos e recursos internos, que após a internalização e a apropriação de dispositivos culturais instrumentalizam o homem a operar sobre a realidade. Até que a criança entenda que existem ferramentas mentais à sua disposição, o seu aprendizado restringe-se ao que está disponível a ela no ambiente em seu entorno. O que chama a sua atenção é o que está imediatamente ao seu alcance visual e auditivo. Repetições são importantes, e o que fica na memória é apenas o que foi dito várias vezes. Após adquirir as ferramentas mentais, o sujeito é o seu próprio mestre, retendo e aplicando o que aprende de forma mais objetiva e seletiva, transformando o seu comportamento cognitivo. E assim, ao aproveitar do meio externo e do meio social o que lhe interessa, e trazer para seu plano interno, o sujeito desenvolve suas funções psicológicas superiores. * In the child’s development, we find represented (but not repeated) both types of psychological development which we find in phylogenesis in isolated form: the biological and the historic. In ontogenesis both processes have their analogies (not parallels). This is a fundamental and central fact… By this we certainly do not wish to say that ontogenesis in any form or degree repeats or reproduces phylogenesis or runs parallel to it. (VYGOTSKY apud SCRIBNER, 1986, p. 130) Cenários, Porto Alegre, n.11, 1° semestre 2015 55 Ao estudar a forma pela qual as crianças solucionam problemas, Vygotsky concluiu que a linguagem, enquanto capacidade exclusivamente humana, auxilia a criança na solução de tarefas difíceis, levando-a a superar impulsos, a planejar e a controlar seu próprio comportamento. A linguagem, na forma da fala, apresenta-se para a criança como meio de contato com o mundo, como forma de inserção na realidade social e mediadora da relação entre a criança e as outras pessoas. No estudo do instrumento e do símbolo como agentes mediadores, Vygotsky elabora conceito de extrema importância para corroborar a sua teoria: a internalização das funções psicológicas superiores, a partir da qual o autor demonstra a função dos signos e de que forma eles contribuem para a formação social do homem. O ato de solucionar problemas a partir do uso de signos está, para o âmbito psicológico, no mesmo patamar dos instrumentos para o âmbito do trabalho (Vygotsky, 1998). As raízes do pensamento marxista influenciaram-no para a utilização de tal analogia. Nesse ponto, Vygotsky (1998) faz questão de apontar que instrumento e que signo são distintos, criticando a abordagem do pragmatismo de Dewey que trata da língua como instrumento, e justificando a necessidade de entender que ambos compartilham de função mediadora no desenvolvimento da criança, e, embora estejam ligados por essa característica comum, são entidades diferentes, com funções diferentes na orientação do comportamento humano. Veja-se a explicação esclarecedora do próprio autor: A função do instrumento é servir como um condutor da experiência humana sobre o objeto da atividade [...] Constitui um meio pelo qual a atividade humana externa é dirigida para o controle e domínio da natureza. O signo, por outro lado, não modifica em nada o objeto da operação psicológica. Constitui um meio da atividade interna dirigido para o controle do próprio indivíduo; o signo é controlado internamente. (VYGOTSKY, 1998, p. 73, grifo do autor). A criança, na medida em que passa pelo processo de aquisição da linguagem, faz uso dos signos para viabilizar sua inserção no mundo cultural. O conceito de internalização, portanto, é o aspecto de fechamento, de consolidação do aprendizado, conceituado por Vygostki como “a reconstrução interna de uma operação interna” (2007, p. 56) e ocorre a partir de uma série de transformações, se constituindo em: a) Uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente [...] b) Um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal [...] c) A transformação de um processo interpessoal num processo intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento [...] (VIGOTSKY, 2007, p. 58, grifos do autor). Cenários, Porto Alegre, n.11, 1° semestre 2015 56 Esses processos de consolidação do aprendizado são mecanismos de mediação semiótica por meio dos quais a criança se comunica com os outros e faz com que os signos sejam conversores da significação, de forma que ela se aproprie do que lhe é alheio (PINO, 2005). Nesse processo, a criança vai se apropriando tanto das significações dos adultos com quem convive, quanto das suas ações, e esse procedimento de apropriação tem início com movimentos corporais exercidos pela criança. Inicialmente, esses movimentos são um tanto instintivos, mas aos poucos os movimentos corporais são menos instintivos e a criança aprende a vivenciar o seu ambiente. Em seu famoso exemplo sobre o gesto da criança de apontar (um exemplo prototípico), como uma forma de carregar sentido no mundo físico, Vygotsky mostra como a criança vai, a partir do uso de seu corpo, aos poucos, se modificando, e influenciando o meio e o outro. São processos de mediação semiótica como esses que fazem com que as crianças iniciem uma tentativa de comunicação com os outros e fazem dos artefatos e/ou signos conversores da significação, de forma que ela se aproprie do que lhe é alheio (PINO, 2005). Nesse processo, a criança vai se apropriando tanto das significações dos adultos com quem convive, quanto das suas ações. O teórico demonstra esse processo ao descrever a tentativa da criança, ou o gesto, de pegar um objeto: [...] A criança tenta pegar um objeto colocado além de seu alcance; suas mãos, esticadas em direção àquele objeto, permanecem paradas no ar. Seus dedos fazem movimentos que lembram o pegar. Nesse estágio inicial, o apontar é representado pelo movimento da criança, movimento esse que faz parecer que a criança está apontando um objeto. [...] Quando a mãe vem em ajuda da criança, e nota que o seu movimento indica alguma coisa, a situação muda fundamentalmente. O apontar torna-se um gesto para os outros. A tentativa malsucedida da criança engendra uma reação [...] de uma outra pessoa. Consequentemente, o significado primário daquele movimento mal-sucedido de pegar é estabelecido por outros. (VYGOTSKY, 1998, p. 74 - grifo nosso) No caso citado acima, podemos seguir o pensamento de Vygotsky ao observar uma criança que está ativamente envolvida com objetos à sua volta através de seu corpo, de forma física e sensorial. A criança interage instintivamente para alcançar seus objetivos e ter suas necessidades atendidas. É o seu corpo o principal meio de ação. Ela aprende a alcançar e pegar objetos, e se mover de forma a mostrar seus objetivos. Inicialmente, conforme mencionamos, esses gestos, movimentos, ações são movidos pelo instinto biológico que escapa à compreensão da criança. Nesse ponto, a criança Cenários, Porto Alegre, n.11, 1° semestre 2015 57 ainda não diferencia a si do ambiente – a noção de self ainda não está desenvolvida. Aos poucos, ao encontrar dificuldades e problemas impostos pelo meio em que está, o infante aprende a controlar melhor seu ambiente, e a si. A análise do estudo de caso oferecido por Vygotsky nos garante um olhar sobre um caso prototípico de um bebê que exerce influência sobre outras pessoas. Há a descrição de um novo estágio do desenvolvimento cognitivo, em que significados são atribuídos pela criança em um formato de reconhecimento mútuo. Ao observarmos a descrição do caso, acima citado, percebemos a origem do gesto de apontar, as primeiras instâncias do uso do corpo em prol da tentativa de comunicação. O gesto é uma ferramenta: adquire significado no mundo físico da criança. O significado está vinculado ao que a criança está apontando: a criança volta sua atenção a algum objeto, e aponta; a mãe reconhece que o gesto de apontar está direcionado a tal objeto; a criança percebe que a mãe entendeu seu gesto. Aqui está o reconhecimento mútuo, mãe e filho captam mutuamente o gesto e a resposta um do outro. Esse é o início de uma caminhada que irá se deslocar da interação com o mundo físico para o âmbito psicológico ou mental. É um primeiro sinal de que a criança irá utilizar mais e mais o seu ambiente, fisicamente, para seu próprio desenvolvimento, para então se tornar cada vez mais consciente de si mesmo e de questões de intencionalidades, e do outro. E esse fluxo inicia-se com esses primeiros passos, com a percepção de que o gesto de apontar, assim como outros movimentos corporais, funciona como um artefato, como ferramenta. O gesto é uma faceta física do ato de significar. O ato de apontar, além de prenunciar a função de significação, também estabelece uma ligação com o meio, uma conexão com o social e uma interação com o outro, representados no exemplo de Vygotsky pela figura materna. Assim, um movimento corporal é ferramenta, é significação (física) e o início de formas de agir em colaboração. Para Vygotsky, esse simples gesto de apontar mostra para a criança duas funções que servirão para toda a sua vida, para que siga seu desenvolvimento cognitivo de forma completa: a mediação e a internalização. Vygotsky conclui seu capítulo sobre internalização afirmando que A internalização de formas culturais de comportamento envolve a construção da atividade psicológica tendo como base as operações com signos. Os processos psicológicos, tal como aparecem nos animais realmente deixam de existir, são incorporados nesse sistema de comportamento e são culturalmente reconstituídos e desenvolvidos para formar uma nova entidade psicológica [...] A internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente Cenários, Porto Alegre, n.11, 1° semestre 2015 58 desenvolvidas constitui o aspecto característico da psicologia humana; é a base do salto quantitativo da psicologia animal para a psicologia humana. (VIGOTSKY, 2007, p. 58). É a partir do processo de internalização (via mediação) que as funções psicológicas superiores se consolidam. Uma vez internalizada uma função, uma operação, a criança “passa a assimilar algum princípio estrutural cuja esfera de aplicação é outra que não unicamente a das operações do tipo daquela usada como base para assimilação do princípio” (VIGOTSKY, 2007, p. 94). Os processos de mediação e internalização não ocorreriam sem o primeiro estágio, sem a passagem pelo corpo. Em apenas um exemplo prototípico, Vygotsky nos mostra como se tramam diversos fatores, desencadeados por uma ação que passa primeiramente pelo corpo da criança, para então atingirem outras instâncias. CONSIDERAÇÕES FINAIS O desenvolvimento cognitivo, o pensamento, está inegavelmente ligado à linguagem. E a linguagem provém do gesto. O movimento do corpo, o gesto, o apontar, são referências de significação. Inicialmente, com apenas um gesto de apontar a criança domina amplamente seu meio, aprende a controlar seu comportamento e resolve problemas. Nesse ponto, apenas o corpo é responsável por desencadear funções que posteriormente serão fundamentais para o ser humano e para sua existência cultural. Não queremos dizer aqui que a linguagem depende unicamente do corpo, a linguagem vai muito além dos gestos e movimentos corporais. Mas aí está sua gênese. Há todo um desenvolvimento que ocorre após esse período inicial. Há uma evolução a partir do corpo. A criança passa desse estágio para outros de muita importância. É uma evolução em que gestos se transformam gradualmente em fala, e fala em pensamento. Significados e referências às coisas do mundo são internalizados mentalmente, mas sempre agregam algumas das funções que originalmente se deram no mundo físico a partir de ferramentas e do corpo. Finalmente, podemos afirmar que o corpo exerce papel fundamental para o ser humano. O corpo desencadeia o desenvolvimento cognitivo, leva ao pensamento, o que se dá com o desenrolar de um processo histórico, em que o acúmulo de experiências – físicas e sensoriais, internalizadas –, são a tessitura da existência do homem como ser cultural. Cenários, Porto Alegre, n.11, 1° semestre 2015 59 REFERÊNCIAS PINO, A. As Marcas do Humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005. SCRIBNER, S. Culture, Communication and Cognition. New York: Cambridge University Press, 1986. VIGOTSKY, L. S. Formacao Social Da Mente, a. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. VYGOTSKIĬ, L. S. The Collected Works of L. S. Vygotsky: Child Psychology. [s.l.] Springer, 1998.