Em defesa de Piaget: porque o Construtivismo é - Início

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Revista Eletrónica de Educação e Psicologia
Ano 1, Volume 1, 2014, pp. 29-38
ISSN 2183-3990
edupsi.utad.pt
Em defesa de Piaget: porque o Construtivismo é
(quase) incompatível com a educação
In defense of Piaget’s theory: Why Constructivism is (almost) incompatible with Education
Cilene Chakur1
* Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Brasil
…
RESUMO
O artigo pretende recolocar a teoria piagetiana em seus espaços próprios – os da Epistemologia
e Psicologia –, mostrando como o Construtivismo tem sido “desconstruído” na área educacional
e por que ele é (quase) incompatível com a Educação.
Após comentar o início dos estudos de Piaget na área da Psicologia, conceitos-chave da teoria
piagetiana são esclarecidos, contrapondo-os a elementos conceituais que podem confundir seus
significados. Em seguida, são abordadas algumas ideias que se tornaram slogans na área
educacional, fazendo parte do “ideário pedagógico construtivista” de professores. Por fim, são
expostos vários argumentos que contestam as tentativas de “aplicação de Piaget” nas escolas
e a concepção de que existe em funcionamento uma “pedagogia construtivista”.
Palavras-chave: Construtivismo piagetiano; ideias construtivistas propagaas nas escolas.
ABSTRACT
The paper intends to replace the Piagetian theory in their own places – the Epistemology and
Psychology – showing how constructivism has been "deconstructed" in education and why it is
(almost) incompatible with Education.
After commenting on Piaget’s early studies in psychology, key concepts of Piagetian theory are
clarified, contrasting them to conceptual elements that might confuse their meanings. Then
some ideas that have become slogans in education and forming part of the teachers’
“constructivist pedagogical ideals” are addressed. Finally, several arguments challenging the
attempts of “applying Piaget” in schools and the idea that there is a “constructivist pedagogy”
in operation are exposed.
Keywords: Piagetian Constructivism; constructivist
Constructivism in Education: incompatibilities
ideas
disseminated
in
schools;
INTRODUÇÃO
A comunhão entre Piaget e a educação sempre foi defendida no Brasil, seja em pesquisas, seja
em propostas educacionais do governo federal ou estadual, ou mesmo em escolas. Pelo menos
em duas ocasiões – 1971 com a Lei 5692/71 e 1996 com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN 9394/96) –, a legislação educacional brasileira legitimou a teoria piagetiana
como fundamento para a prática pedagógica nas escolas (Chakur, 1995; Carraro & Andrade,
2009; Carvalho, 2001). Os professores, como sempre, foram pegos de surpresa, pois poucos
conheciam a teoria de Piaget.
As tentativas dos legisladores de “aplicar Piaget” na educação sempre me pareceram estar
desvirtuando as ideias piagetianas. Assim sendo, é com o intuito de recolocar a teoria
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piagetiana em seus espaços próprios – os da Epistemologia e Psicologia –, que pretendo mostrar
como o Construtivismo tem sido “desconstruído” na área educacional e por que ele é (quase)
incompatível com a Educação.
Durante muitos anos, Piaget dedicou-se a pesquisar a inteligência e os conhecimentos humanos.
Foi com o trabalho de padronização de testes intelectuais de Cyril Burt para crianças francesas,
no laboratório de Binet e Simon, que Piaget mudou a direção dos seus estudos iniciais, centrados
na Biologia e, em seguida, na Filosofia. Seu interesse pela pesquisa psicológica foi despertado
quando observou que crianças de certas idades cometiam os mesmos tipos de erro diante de
questões que ele próprio havia elaborado.
A preocupação com os fatos objetivos e o interesse pela pesquisa e pela experimentação, antes
que pelos problemas metafísicos e pela reflexão especulativa, levaram Piaget a se
“desconverter” da Filosofia, para proveito da Psicologia e da Epistemologia, que ganharam um
grande pensador em seus campos respectivos.
O Construtivismo se origina, portanto, do interesse de Piaget pelo problema
do conhecimento, ou seja, pela Epistemologia. Insatisfeito com as grandes
questões filosóficas dominantes até então, voltadas para a natureza do
conhecimento (“O que é o conhecimento?”) e para a sua possibilidade
(“Como ele é possível?”), ele começou a se interessar pela formação e
desenvolvimento dos conhecimentos, perguntando-se “como aumentam os
(e não o) conhecimentos? Por quais processos uma ciência passa de um
conhecimento determinado, julgado depois insuficiente, a outro
conhecimento determinado julgado depois superior pela consciência comum
dos adeptos fiéis desta disciplina [a Filosofia]?” (Piaget, 1978, p. 33).
Para realizar seus estudos, Piaget afastou-se do Apriorismo e do Empirismo, considerando o
desenvolvimento como um processo de organização e reorganização contínuas de estruturas
cognitivas, processo este que ocorre em uma sequência hierárquica de estádios independentes
de idades cronológicas fixas. A essa concepção de desenvolvimento como gênese do
conhecimento Piaget (1973) deu o nome de “construtivismo”.
Tendo em vista as confusões que envolvem a teoria piagetiana, tentarei elucidar seus conceitoschave, muito mal compreendidos não apenas por professores do ensino fundamental e médio,
mas também por alguns intérpretes da teoria e por seus críticos. Em seguida, abordarei algumas
ideias que se tornaram slogans na área educacional, fazendo parte do “ideário pedagógico
construtivista” de professores. Por fim, reunirei argumentos que contestam as tentativas de
“aplicação de Piaget” nas escolas.
CONSTRUTIVISMO E CONSTRUÇÃO: CONCEITOS MAL COMPREENDIDOS
Construtivismo e construção são termos tão exaustivamente empregados na área educacional
(e fora dela) que atualmente estão quase esvaziados de sentido. Legisladores, autores,
professores, formadores e mesmo a grande mídia constantemente usam o termo construção.
Será que falam da mesma coisa?
Segundo Coll (1998, p. 136), “pelo menos no âmbito da educação, é ilusório e falso falar do
construtivismo no singular”. Mas os termos construção e construtivismo são especialmente
conceituados por Piaget e essencialmente ligados à noção de desenvolvimento. Para precisar
tais conceitos, recorrerei a algumas palavras-chave, comumente utilizadas por autores
construtivistas, levantando seus inconvenientes e contrapondo seus significados aos conceitos
propriamente piagetianos.
Certos autores se referem a construção como algo que tem a ver com descoberta (Hernández,
1998, por exemplo). Mas a descoberta pode significar que o conhecimento está lá fora e que o
sujeito não tem papel nesse processo. Além disso, a descoberta pode ocorrer para alguns e não
para outros, o que denota, portanto, seu caráter aleatório e individual.
Lembro, contudo, que o pensamento lógico-matemático, próprio da inteligência humana e
principal objeto de estudo de Piaget, é marcado essencialmente pelo caráter de necessidade e
nada tem de aleatório. Chegar a uma conclusão lógica partindo de certas premissas ou concluir
que o todo é igual à soma de suas partes, não são casuais; cada conclusão se faz necessária.
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Há também autores que concebem construção como mudança ou movimento. Na área
educacional, o exemplo mais contundente é o que se refere à aprendizagem como mudança
conceitual, concepção encontrada predominantemente na área do ensino de ciências. Segundo
comenta Pozo (1998, p. 193), “a idéia central do enfoque construtivista no ensino das ciências
é que aprender ciências significa mudar os conhecimentos prévios dos alunos por conhecimentos
científicos”, caso em que “desempenha papel fundamental a tomada de consciência ou reflexão
sobre o próprio conhecimento” (p. 196).
Cabe ressaltar que a noção de desenvolvimento, para Piaget, se refere a um processo de
organização e reorganização estrutural. Não se trata, portanto, de mudança local ou pontual,
sendo esse processo regulado por mecanismos adaptativos ou funcionais (assimilação e
acomodação). É um processo que se apresenta em níveis qualitativamente distintos que seguem
uma ordem constante, cada um dos quais expressando uma nova organização cognitiva.
Pode-se, enfim, identificar construção simplesmente com progresso. Mas progresso não deve
ser confundido com simples adição cumulativa de conhecimentos ou conteúdos, nem concebido
sem considerar o nível de desenvolvimento alcançado pelo sujeito em determinada esfera de
conhecimento. Como afirma Ferreiro (2001), o progresso cognitivo é construtivo no sentido de
que as reorganizações parciais conduzem, em certos momentos, a reestruturações totais.
O princípio fundamental em que se assenta a noção de construção é o da continuidade funcional
dos processos construtivos (García, 2002, p. 39), tais como os de abstração reflexiva e
generalização. Comuns a todas as etapas de desenvolvimento, salientam-se a assimilação e a
acomodação, as diferenciações e integrações, mecanismos por excelência de aquisição de
conhecimento.
IDEIAS “CONSTRUTIVISTAS” PROPAGADAS NAS ESCOLAS: DE ONDE VÊM?
Estudos e descobertas de Piaget acabaram por se repercutir enormemente na esfera da
educação, mas convém salientar, como afirma Ferreiro (2001, p. 27), que “as relações entre a
teoria de Piaget e a instituição escolar e/ou a pedagogia quase sempre foram confusas (é o
mínimo que se pode dizer)”. Segundo esta autora (Ferreiro, 2001, p. 27),
Realmente, uma série de problemas foi mal colocada e pior analisada quando se acreditou que
a teoria de Piaget era a chave de todos os problemas de aprendizagem na escola, que bastava
inspirar-se nos temas estudados por Piaget para decidir o currículo escolar, ou que era preciso
considerar as idades médias do desenvolvimento cognitivo para decidir em que momento
ensinar este ou aquele conteúdo.
Assim também, Castorina (2011, p. 188) afirma ter havido um “trabalho de interpretação
deformante dos textos originais por parte de psicólogos e educadores” e enfatiza que “o traço
principal do aplicacionismo é haver tratado como óbvias as relações entre psicologia e didática,
na suposição de que se poderiam extrair diretamente conseqüências educativas de uma teoria
psicológica” (p. 189).
No Brasil, várias pesquisas atestam o quanto as idéias e considerações de Piaget chegaram à
escola de forma descontextualizada, muitas vezes desvirtuando os seus significados originais.
Quim (2009) e Torres (2004), por exemplo, pesquisaram concepções de professoras do I Ciclo
(antigas 1ª a 4ª séries do ensino fundamental), mediante entrevista semiestruturada e, embora
o tenham feito em cidades tão distintas como Alto Araguaia (Estado de Mato Grosso) e Ribeirão
Preto (Estado de São Paulo), encontraram idéias bastante semelhantes sobre o Construtivismo.
As professoras pesquisadas por Torres (2004) mostraram certa resistência ao Construtivismo,
mencionando a indisciplina daí decorrente, o fato de não poder corrigir os erros dos alunos, o
caráter impositivo da reforma e a falta de informação responsável pela insegurança que
sentiam.
As professoras que participaram do estudo de Quim (2009) mostraram preocupação com a
necessidade de respeitar as fases de desenvolvimento infantil durante o processo de ensinoaprendizagem, tal como recomendavam as orientações recebidas. Os resultados também
apontam “confusão, despreparo, deformações” nas concepções construtivistas das professoras.
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Massabni (2009), por sua vez, investigou concepções e observou práticas de professores de
Ciências que lecionavam em classes do 2º Ciclo (antigas 5ª a 8ª séries) de Araraquara (São
Paulo). Para eles, construtivismo significava, entre outras coisas, possibilitar o contato do aluno
com o “concreto”, relacionar os conteúdos escolares ao cotidiano, “partir do aluno”, “não dar
nada pronto” e incentivar a participação do aluno nas aulas.
Cito uma pesquisa que desenvolvi em escolas do Ensino Fundamental (antigas 1ª a 8ª séries) de
Araraquara, que mostrou a mesma tendência encontrada nos estudos acima: apelo a slogans e
desvirtuamento da teoria piagetiana. Para os professores investigados, “a aula construtivista
sempre parte do concreto”; “todo conhecimento que o aluno traz de casa deve ser
aproveitado”; “no Construtivismo, o principal papel do professor é motivar, despertar o
interesse do aluno”; e “em uma avaliação construtivista, o professor deve considerar tudo o
que o aluno fizer” (Chakur, 2009).
De onde vêm esses slogans? São os próprios professores que criam esses significados e crenças?
Buscando respostas, fiz um pequeno levantamento de textos nacionais e estrangeiros
destinados a professores e estudiosos da teoria, e notei que as noções do Construtivismo
piagetiano são bastante deformadas quando se trata de educação, escola, ensino,
aprendizagem e temas afins.
A começar pela figura do “professor construtivista”, muitas vezes é apresentado como alguém
que não tem papel definido ou, se o tem, assemelha-se ou se identifica com o de não
profissionais (mãe, pai, tio, tia), como no exemplo a seguir:
A professora que for meiga, carinhosa, alegre, serena, espontânea,
comunicativa, criativa, firme, metódica, organizada, que goste realmente
de cuidar de crianças, ajudará a criança a passar com tranqüilidade pelo
processo de transferência das relações afetivas do lar para a escola
(Andrade, 2001, p. 35).
Lima (2000, p. 117), por sua vez, defende que “O papel do professor é questionar (dinâmica de
grupo) as interpretações dadas pelas crianças”. Segundo Lima, o professor deveria se limitar a
criar situações de complexidade crescente e a própria criança resolveria o problema segundo o
seu nível de desenvolvimento. Lima chega mesmo a afirmar que “exagerando-se, poder-se-ia
dizer que o ideal seria que os professores de crianças fossem mudos” (p. 114).
Outro tema comum a autores construtivistas e professores é a valorização do saber do
cotidiano. Parte-se do princípio de que a escola deve “partir do cotidiano” do aluno, daquilo
que está próximo a ele; ou, então, deve-se tentar integrar de algum modo o saber cotidiano ao
conteúdo escolar que está sendo abordado.
Como salienta Delval (1998, p. 152), “o ensino deve partir dos problemas do próprio sujeito e
dos assuntos do seu meio, e não tratar de lhe ensinar conhecimentos que não o afetam de
nenhuma forma”.
Neste caso, não se considera que o cotidiano das pessoas já lhes é bastante familiar e
conhecido. O cotidiano, na verdade, caracteriza-se justamente por sua natureza pragmática e
imediatista, o aqui e agora, diferentemente do papel da escola, que deve tentar ultrapassar
esse imediatismo e pragmatismo, presentes no contexto de um cotidiano que aprisiona o
significado das coisas em representações concretas. É ao saber escolar, que transita pelos
conhecimentos fornecidos pelas ciências, que cabe fornecer condições aos alunos para
interpretar de forma racional as situações do cotidiano, compreender o mundo que os cerca e
chegar a generalizações para situações possíveis.
Alguns autores insistem em identificar o construtivismo como um método pedagógico. Para
Burke (2003, p. 24), por exemplo, o termo construtivismo se refere tanto a uma “teoria
científica” quanto a “métodos e técnicas didático-pedagógicas baseados nessa teoria”. No
entanto, embora considere a existência de um “método construtivista” (afirmação reiterada às
páginas 75, 86 e 87), em nenhum momento o autor fornece uma descrição sistematizada de
como ele é.
Grossi (2001, p. 135), por sua vez, afirma que a “aprendizagem se efetiva a partir dos desejos
dos alunos e, para tanto, o professor deve provocar uma falta, mediante um problema que
toque realmente cada aluno.”
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Cabe, então, perguntar: será necessário, ou mesmo possível, problematizar um conteúdo em
que o aluno, por exemplo, precisa, simplesmente, nomear as regiões geográficas brasileiras ou
apontá-las em um mapa? E quanto a identificar os vários tipos de triângulo? E se é solicitado a
nomear as cores quentes e as frias?
Muito comum entre autores construtivistas, a valorização da atividade do sujeito também está
presente em documentos oficiais e propostas pedagógicas governamentais, de onde vem o
slogan “o aluno é um ser ativo”, bastante freqüente também entre professores.
Referindo-se ao processo de alfabetização, Lima (2000, p. 108) deixa claro que “Basicamente,
a professora deve convencer-se de que não deve ‘dar aula’ (sic), deixando a atividade [...] por
conta da criança (resolver situações-problema propostas)” (grifos meus).
Na verdade, a atividade é um princípio básico da teoria piagetiana do desenvolvimento
cognitivo e deve ser respeitado. Sem atividade (e há vários tipos e níveis de atividade), a
inteligência não funciona, não há desenvolvimento, não há aprendizagem. Mas levantar a
bandeira da atividade como central no processo escolar do aprendiz não pode significar que
deva ser anulada a ação/atuação/intervenção do professor.
Examinando mais de perto as concepções de certos autores construtivistas, muitas vezes, a
relação pedagógica, por exemplo, é percebida como uma relação entre iguais. Para Goulart
(2001, p. 63), “quem observa e quem ensina não se posiciona acima de quem é observado ou
de quem aprende”. Esta é, portanto, uma visão pedagógica que “elimina a verticalidade de
uma relação, substituindo-a por uma igualdade”.
Burke (2003, p. 87) “desprofissionaliza” igualmente o professor, quando lhe nega o papel de
intervir deliberadamente na aprendizagem do aluno. Para ele, “professor e aluno devem se
tornar parceiros, cúmplices na construção de seus conhecimentos e de suas noções morais”.
Vale lembrar, tal como analisa Carvalho (2001, p. 66 e seguintes), que a relação professoraluno não é uma relação qualquer entre um adulto e uma criança ou adolescente. A atividade
do professor se distingue da dos outros adultos “pelo caráter deliberado e intencional de seu
ensino [...] é exatamente o caráter sistemático e institucional dessa relação que o constitui
como professor, ao mesmo tempo que somente dentro desse contexto particular a criança se
constitui como aluno”.
Outra idéia bastante comum nas escolas, possivelmente advinda de autores construtivistas e de
propostas governamentais, é a de que o ensino deve partir das necessidades e interesses do
aluno.
Esta é a opinião de Delval (1998, p. 59), por exemplo, quando afirma que “uma escola baseada
no desenvolvimento é uma escola que tem que partir das necessidades do sujeito a cada idade
e facilitar a construção a partir desse ponto”. Assim sendo, “o ensino deve partir dos problemas
do próprio sujeito e dos assuntos do seu meio”. Se as condições de vida determinam qual o tipo
de interesse da criança, “falar de formação de geleiras a crianças que vivem às margens do
Mediterrâneo despertará pouco interesse” (Delval, 1998, p. 152). Desse modo, pode-se inferir
que tal conteúdo deverá estar ausente do currículo escolar da clientela que resida distante de
locais onde se formam geleiras...
Para Grossi (2001, p. 135), ensinar equivale à proposição de resolução de problemas; mas “só
cabem desafios que levem em conta vivências e interesse dos alunos, o que exige do professor
a valorização dos saberes de suas turmas”.
Segundo penso, focalizar os interesses do aluno significa priorizar o que é individual, particular
a cada um, mas é, também, desconsiderar a função social da escola. Assim, embora a
aprendizagem escolar seja tarefa do indivíduo, seu significado foge ao âmbito individual, pois
sua natureza está comprometida com o que a sociedade considera importante transmitir e ser
assimilado no âmbito escolar. Conceber o desejo, a necessidade ou o interesse do indivíduo
como ponto de partida, fundamento, ou mesmo como conteúdo para o ensino-aprendizagem
nas escolas significa confundir as dimensões individual/particular e social/coletiva.
Por fim, cabe abordar uma idéia que perpassa, muitas vezes, as propostas pedagógicas de
autores e também as concepções de seus críticos. Trata-se da relação entre a Psicologia e a
Pedagogia ou a Educação em sentido amplo. Muitas vezes, Psicologia e Educação não aparecem
como áreas distintas, tornando a relação entre as duas áreas ora de subordinação da Educação
à Psicologia, ora de simbiose, em que não ficam claras as diferenças entre ambas.
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Goulart (2001) é uma autora que parece defender a subordinação. Sugere que o professor deve
identificar “o momento do desenvolvimento que a criança está vivendo”, a estrutura cognitiva
do aprendiz, mediante a utilização das tarefas piagetianas, que “pode funcionar como
sondagem das condições do aluno para resolver um problema” (p. 18).
Assim também, Moretto (2006, p. 112) acredita que o professor deve “detectar o contexto de
vivência de seus alunos [...] para que seu ensino seja eficiente e eficaz”.
Sugestão análoga é oferecida por Lima (2000, p. 120), quando afirma que o professor, “ao
propor qualquer atividade ao educando, terá obrigatoriamente de avaliar primeiro o nível do
desenvolvimento do aprendiz e o nível de complexidade operatória da atividade proposta ou as
variáveis da compreensão do fenômeno (causalidade)”.
Tais sugestões conferem, portanto, ao professor a função de expert no diagnóstico operatório,
tendo até que renunciar ao próprio papel de corrigir e indicar formas corretas, ou socialmente
aceitas, ou cientificamente válidas de explicação do conteúdo.
Considero válida a idéia de que se deve respeitar a psicogênese. Mas outra coisa é submeter
uma dimensão estritamente educacional e institucional, como é o caso do currículo escolar, à
esfera individual. É importante compreender que o desenvolvimento segue um processo que
pode limitar a aprendizagem escolar, contanto que isto não signifique sonegar aos alunos
informações e conceitos social e culturalmente relevantes na situação de ensino-aprendizagem.
É igualmente saudável e desejável que os professores sejam bem formados em teorias
psicológicas, entre as quais a Psicologia Genética. E o conhecimento do “contexto de vivência”
dos alunos é sempre útil para a compreensão de suas condições sociais e dificuldades de
aprendizagem na escola. Mas será viável identificar as estruturas cognitivas de cada aluno
individualmente para que sejam adequados objetivos, conteúdos, materiais e atividades de
ensino-aprendizagem? O professor teria tempo (e competência) caso se dispusesse a fazer um
diagnóstico das condições cognitivas de cada aluno diante de cada problema? Não haveria aí
confusão da função do professor com a de psicólogo?
Carretero (1997, p. 92) observa com propriedade que “nem todas as polêmicas psicológicas
sobre o desenvolvimento cognitivo, ou qualquer outro aspecto do desenvolvimento, têm sentido
para a educação”. Segundo o autor, mesmo se compartilham pressupostos construtivistas
semelhantes, um professor e um psicólogo do desenvolvimento têm objetivos e preocupações
muito diferentes.
PORQUE NÃO SE PODE “APLICAR PIAGET” NA EDUCAÇÃO
Nosso autor dedicou a maior parte de sua vida à Epistemologia e à Psicologia, mas manteve
ligações prolongadas também com a área educacional: por um lado, por ter trabalhado
inicialmente em uma instituição genebrina voltada à educação e à pesquisa psicológica e
educacional (Instituto Jean-Jacques Rousseau); e, por outro, por ter sido, por quase quarenta
anos (de 1929 a 1967), diretor do Bureau International d’Éducation, que funcionava como um
centro de educação comparada. Segundo informam Parrat-Dayan e Tryphon (1998, p. 7-8),
Piaget “sempre pretendeu situar-se fora da pedagogia”, mas a reflexão pedagógica “sempre
existiu em Piaget e acompanhou sua reflexão epistemológica”.
Vale salientar que, no contexto educacional da primeira metade do século XX, Piaget apoiava
certos temas caros ao movimento da Escola Nova, tais como os métodos ativos, a atividade e o
interesse da criança, o trabalho em equipe e o autogoverno. Concordava, igualmente, que a
Pedagogia deveria basear-se na Ciência e que a educação deveria libertar-se do excessivo
verbalismo e da centração na figura do mestre.
O que se pode concluir, então? Se Piaget dedicou tanto tempo de sua vida intelectual à esfera
educacional, sua teoria pode muito bem aplicar-se à educação, verdade?
Não é bem assim. Afinal, o trabalho que ele empreendeu durante o tempo em que trabalhou
no Instituto Jean Jacques Rousseau e no Bureau era fora da sala de aula e de caráter não
pedagógico.
Pode-se afirmar, também, que Piaget realmente tinha alguma preocupação com a educação.
Só que, infeliz (para a Educação) ou felizmente (para a Psicologia), não se dedicou com
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profundidade a esta área tão difícil e complexa como é a Educação. Os escritos de Piaget na
área educacional são, portanto, periféricos e de menor importância no conjunto de sua vasta
obra.
Quais são, então, os pontos que afastam da Educação o Construtivismo piagetiano?
Primeiro ponto: As pesquisas de Piaget mostram que nem todas as funções intelectuais se
desenvolvem à maneira de uma construção, mas apenas a inteligência lógico-matemática.
Como muitas vezes afirmam os professores, em entrevistas ou em conversas informais, deve-se
deixar a criança “descobrir” ou “construir por si mesma” os conhecimentos. Na escola, porém,
a criança fatalmente adquire conteúdos em que se salienta o aspecto figurativo do
conhecimento, ou seja, “tudo o que se dirige às configurações como tais, em oposição às
transformações” (Piaget, 1973, p. 71-72); percepção, imitação e imagem mental lhe servem de
instrumentos, pois focalizam estados ou tratam as transformações como sucessão de estados.
Tais são os casos do simples saber-fazer de que trata a aprendizagem de hábitos (como saber
pegar no lápis para escrever), a aquisição de normas convencionais (por exemplo, a
aprendizagem de regras escolares institucionalizadas, como a freqüência às aulas e a
obediência a horários) e a aprendizagem de conteúdos que devem ser simplesmente
memorizados (como certas partes da gramática, a ortografia e a tabuada). Seguramente, esses
não são conteúdos a serem construídos, mas são adquiridos apenas na educação escolar, o que
torna extremamente importante sua transmissão pela escola. E, nesses casos, o professor deve,
sim, interferir, sob pena de estar sonegando instruções importantes para a boa convivência
escolar e progresso cultural dos alunos.
Segundo ponto: Conforme a teoria piagetiana, as estruturas lógico-matemáticas se
desenvolvem de modo espontâneo, ou seja, sem que haja intervenção deliberada. Portanto,
não podem ser ensinadas, como o são, por exemplo, o nome dos continentes ou dos pontos
cardeais. Aqui está, portanto, o segundo ponto a afastar o Construtivismo piagetiano com
relação à educação.
Não é demais salientar que Piaget privilegiou o estudo da inteligência lógico-matemática,
considerada a “essência” da inteligência propriamente humana. Segundo o próprio Piaget, em
nenhuma outra área encontramos um desenvolvimento tão uniforme, completo, coerente, com
uma tendência à formação de estruturas cada vez mais equilibradas, no sentido de um “melhor
equilíbrio” (tendência chamada por Piaget, 1975, de equilibração majorante).
Por outro lado, deve ser lembrado que a inteligência humana não se reduz à lógica. No contexto
da educação escolar, é evidente (mas muitas vezes desconsiderado) que a criança não vem à
escola apenas com as operações lógicas (ou pré-lógicas) que conseguiu desenvolver até então,
nem tampouco vem apenas com a sua inteligência (em sentido amplo). A criança apresenta-se
integralmente na escola, com todas as funções intelectuais e também com funções de outros
domínios, como o da afetividade e o da sociabilidade, que devem ser igualmente consideradas.
Terceiro ponto: A teoria de Piaget que se pretende “aplicar na educação” é psicológica. Como
visto acima, muitos intérpretes do Construtivismo tentam “aplicar” diretamente esta teoria à
prática educativa nas escolas, como se se tratasse de áreas idênticas e sem considerar a
especificidade da instituição escolar. Nota-se, também, que predomina a concepção de que
existe uma “pedagogia construtivista” na educação brasileira e, mais ainda, dizem os críticos
(Arce, 2000; Duarte, 2010), esta é uma pedagogia perniciosa em vários sentidos.
Penso, no entanto, não ser possível transplantar diretamente uma teoria psicológica para o
campo educacional sem a mediação de uma teoria pedagógica, com seus princípios, diretrizes
e métodos sistematizados. Daí decorre que, dificilmente, esses princípios e diretrizes serão
operacionalizados na prática; mais que isso, tendem a ser distorcidos quando o professor tenta
assimilá-los.
E tudo indica que não foi ainda formulada uma teoria pedagógica construtivista, não havendo,
portanto, uma “pedagogia construtivista” – convicção que partilho com alguns autores
importantes e bastante conhecidos, como Becker (2001), Coll (1998), Ferreiro (2001),
Lajonquière (1997) e Macedo (1996). Em consequência, não existe um “método pedagógico
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construtivista” a ser aplicado nas escolas, pois um método se define como uma “teoria em
funcionamento”.
Penso, portanto, que o Construtivismo piagetiano está longe de ser “aplicável” ao ensino e à
aprendizagem escolar. Isto significa que a teoria piagetiana é em boa parte incompatível com
os objetivos, com os interesses e com a própria natureza da educação. Significa, também, que
a proposta de um Construtivismo Educacional, ou de uma teoria pedagógica construtivista, a
que se referem alguns autores (Arce, 2000; Carvalho, 2001; Duarte, 2010; Goulart, 2001; Lima,
2000; Silva, 1998), é inadequada.
Outras razões para essa inadequação/incompatibilidade foram identificadas por Macedo (1994),
como segue.
O foco dos estudos de Piaget era o sujeito epistêmico e seu interesse era de natureza
epistemológica: traçar a gênese de noções e conceitos científicos. A educação, por sua vez,
lida com o sujeito individual e seu interesse é de natureza social e pedagógica: promover a
socialização da criança e a aprendizagem dos bens culturais.
Assim também, os objetivos de Piaget eram teóricos: descrever e explicar como se desenvolvem
os conhecimentos; ao estudar a inteligência infantil, sua intenção primordial era compreender
o conhecimento científico adulto. Os objetivos da educação são de caráter prático: transmitir
a cultura organizada, formar o cidadão.
Na concepção piagetiana, o desenvolvimento da inteligência é de natureza espontânea, em que
se salientam as trocas com o meio. A educação, por sua vez, supõe intervenção planejada e
sistematizada realizada na escola; trocas, objetivos e meios não são espontâneos, mas
deliberados.
Tudo isso, enfim, afasta a teoria piagetiana, tal como se encontra elaborada, da proposta de
um Construtivismo Educacional ou Pedagógico a que muitos autores pretendem dar vida.
Ademais, insistir em uma improvável “aplicação de Piaget” só pode produzir tentativas
frustradas do professor que se sente pressionado a “ser construtivista”, em função das
instruções oficiais que recebe, o que gera insegurança e, muitas vezes, resistência até à própria
denominação “Construtivismo”. E não é raro encontrar professores convivendo diariamente
com a angústia de mesclar procedimentos que consideram “construtivistas” com aqueles ditos
“tradicionais”, seguindo, para tanto, o que lhes sugere a intuição.
Concluindo, os professores têm razão em resistir a orientações de uma pretensa teoria
construtivista que lhes nega o papel de ensinar, transmitir, avaliar, corrigir. E têm razão
quando, intuitivamente, tentam “mesclar” procedimentos, em função do conteúdo a ser
transmitido e das condições de assimilação do aluno.
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