Ferrovias, capitalismo e história econômica

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Ferrovias, capitalismo e história econômica
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Alexandre Macchione Saes
Gian Carlo M. Guimarães Hespanhol2
O debate sobre a construção das estradas de ferro e seu papel no desenvolvimento da
sociedade brasileira suscita a nostalgia de uma memória já esvanecida. Memória essa que
pode nos trazer toda sorte de sentimentos à tona: uns se recordam das histórias de seus
antepassados, outros de suas próprias histórias e há, ainda, aqueles cuja simples elucubração
de como poderia ter sido a vida naquele tempo áureo de expansão ferroviária os faz imaginar
uma memória inexistente. Entretanto não podemos deixar que os sentimentos advindos dessa
memória nublem nossa compreensão sobre o presente.
A introdução das ferrovias no Brasil, portanto, de sua rápida expansão na transição do
século XIX ao XX e sua crise em meados do século XX não pode ser compreendida apenas
pelas determinações internas a esse projeto. Avaliar quem lutou por sua introdução, quem
defendeu outros modelos viários ou mesmo como se deu as disputas em torno dos projetos de
transporte no Brasil, revela-se apenas como parte das causas dessa trajetória. Assim, para
entendermos o processo de expansão das estradas de ferro no Brasil, devemos nos voltar
também para um todo mais complexo, avaliando o sentido destas ferrovias brasileiras num
contexto de capitalismo mundial. Nas palavras de Caio Prado Junior (2010, p.18):
Os pormenores mais ou menos complexos, que constituem a trama de
sua história e que ameaçam por vezes nublar o que verdadeiramente
forma a linha mestra que a define, passam para segundo plano; e só
então nos é dado alcançar o sentido daquela evolução, compreendê-la,
explicá-la.
Como resultado da segunda fase da Revolução Industrial, ainda na primeira metade do
século XIX, uma rápida expansão da construção ferroviária partiu da Inglaterra para outros
países da Europa e para os Estados Unidos. Com as ferrovias, o capitalismo se espraiava para
o globo, promovendo uma maior integração dos países quanto ao comércio de mercadorias e
de capital. O Brasil, que não pretendia perder o “trem” da história, logo criou sua primeira
legislação – ainda genérica – de incentivo à construção de vias de transportes em 1828. Anos
mais tarde, em 1835, o Padre e Regente Diogo Antonio Feijó promulgou a primeira concessão
para estrada de ferro no país, no intuito de implementar uma ligação entre o Norte e o Sul do
país. Essa idealização, finalmente, foi sistematizada com o Plano Rebelo de 1838. De medidas
efetivas, entretanto, somente em 1852 o Império promulgaria a lei de garantia de juros de 5%
sobre o capital investido para os concessionários de estradas de ferro, mas ainda assim, a
construção das estradas de ferro manteve-se tímida até a década de 1870.
A verdade é que ainda o projeto ferroviário brasileiro não estava amadurecido – e não
por questões internas aos interesses dos políticos brasileiros, afinal, nada menos que o
Imperador D.Pedro II era um dos maiores entusiastas deste projeto. Contudo, externamente os
interesses comerciais e financeiros para um investimento de tamanha monta e num país
periférico como o Brasil não estavam disponíveis. O amadurecimento desse capital em direção
a periferia, como para a América Latina e mesmo para a Ásia, somente teria início com
mudanças bastante profundas da economia mundial da década de 1870.
A Revolução Industrial Inglesa, a qual as estradas de ferro são herdeiras, teve início
quase um século antes desse amadurecimento deste capital internacional. Nos primórdios da
revolução industrial, como ensina Adam Smith em A Riqueza das Nações, o processo de
produção era extremamente simples. A introdução de novas máquinas, de novas fontes de
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Professor do Departamento de Economia – FEA/USP
Discente do curso de Economia – FEA/USP
energia (da fonte motriz humana ou animal para a inanimada a vapor, por exemplo), iam
reduzindo a necessidade de trabalho humano e ampliando em muito a produtividade das
empresas. Naquela fase, como lembra Adam Smith, a livre concorrência permitia gigantes
saltos de produção em pouco tempo por impor aos produtores a competição como
sobrevivência no mercado.
Grande parte das máquinas utilizadas nas manufaturas em que o
trabalho está mais subdividido constituiu originalmente invenções de
operários comuns, os quais, com naturalidade, se preocuparam em
concentrar sua atenção na procura de métodos para executar sua
função com maior facilidade e rapidez, estando cada um deles
empregado em alguma operação muito simples. Quem quer que esteja
habituado a visitar tais manufaturas deve ter visto muitas vezes
máquinas excelentes que eram invenção desses operários, a fim de
facilitar e apressar a sua própria tarefa no trabalho. Nas primeiras
bombas de incêndio um rapaz estava constantemente entretido em abrir
e fechar alternadamente a comunicação existente entre a caldeira e o
cilindro, conforme o pistão subia ou descia. Um desses rapazes, que
gostava de brincar com seus companheiros, observou que, puxando
com um barbante a partir da alavanca da válvula que abria essa
comunicação com um outro componente da máquina, a válvula poderia
abrir e fechar sem ajuda dele, deixando-o livre para divertir-se com seus
colegas. Assim, um dos maiores aperfeiçoamentos introduzidos nessa
máquina, desde que ela foi inventada, foi descoberto por um rapaz que
queria poupar-se no próprio trabalho. (SMITH, 1996, p.69-70).
Foi neste contexto que as primeiras experiências de controle das máquinas como meio
de transporte foram colocados em funcionamento. James Watt, nesta altura, já tinha
disseminado a energia a vapor pela Grã-Bretanha, e o ferro e o carvão eram duas grandes
indústrias na região. Finalmente, em 1825 entrava em funcionamento a primeira ferrovia no
mundo ligando os 60 km entre as cidades de Darlington e Stockton na Inglaterra. Era uma
grande revolução e que chegava em boa hora. Conforme defende Eric Hobsbawm no livro Da
revolução industrial inglesa ao Imperialismo, estava chegando a “segunda fase” da revolução
industrial: a profunda acumulação de capital resultante da expansão da indústria têxtil inglesa
tinha limitado os investimentos dos empresários ingleses que não sabiam mais onde investir.
As estradas de ferro surgem, desta forma, como um grande solução não somente para o
desenvolvimento do transporte, mas para a reprodução do capital.
E seria essa a tônica dos investimentos ingleses na primeira metade do século XIX:
buscando traçados vantajosos para a construção de novas ferrovias, como por exemplo, nas
duas manias ferroviárias inglesas de meados de 1830 e de 1840, o capital acumulado
precisava de grandes investimentos para se realizar. Todavia, o território inglês é limitado.
Logo tais investimentos precisariam buscar novas localidades para atender seu ímpeto
expansionista. Neste sentido, a partir da década de 1840 as ferrovias começariam a chegar em
países como França, Alemanha e, inclusive, os Estados Unidos. Ao mesmo tempo em que a
expansão das técnicas e do capital se deslocavam da Grã-Bretanha para outros países da
Europa e para os Estados Unidos, deslocava-se também as potencialidade do capitalismo.
Em pouco tempo o mundo se aproximou: o transporte ferroviário e, inclusive o marítimo
realizado pelos barcos à vapor, reduziam as distâncias e o tempo de comunicação entre
regiões. Com a aceleração do relógio, mais rápida, foi a introdução de novas potências
econômicas entre aquelas com técnicas industriais.
O ponto de inflexão deste processo de expansão do capital, personificado pelas
estradas de ferro, se deu com a mudança da fase de livre concorrência para a fase
monopolística do capitalismo, que pode ser marcada em meados da década de 1870. A
questão na qual se encontrava o mundo também mudou. Não existia mais capital industrial e
capital bancário. Houve uma mescla, na qual não se distinguia mais o que ia para a indústria e
o que ficava para realizar e facilitar transações. Os bancos necessitavam da indústria para
poder tornar produtivo seu capital, e por outro lado as indústrias necessitavam dos bancos para
poderem ajuntar enormes quantias de capital. Seja para comprar outras empresas, e assim
aumentar o monopólio, seja para garantir um poder de barganha com outras empresas quando
se trata de definir quanto produzir, em um processo de cartelização. Surge então o capital
financeiro.
É claro que essa mudança no centro do capitalismo refletiu na periferia. Essa nova fase
do capitalismo – a monopólica -, mudou a lógica com a qual se realizavam empréstimos para
lugares mais arriscados. Se antes, difícil era conseguir um empréstimo, no momento da
cartelização estes eram necessários para realizar o capital financeiro. O banco emprestava
para garantir a venda de suas empresas associadas. Principalmente as grandes empresas: ora
produtoras de bens de capital, ora atuantes nos setores de construção e infraestrutura. Como
era o caso das indústrias viárias. Às maiores empresas, associavam-se os maiores bancos.
Entrando, assim, em um círculo vicioso.
Com esse pano de fundo podemos entender o processo de expansão viária no Brasil.
Muito mais como parte de um todo – de um contexto – do que pela empreita de alguns poucos
personagens. Brasileiros ou não. E, neste contexto, sedimentava-se o sentido a ser dado ao
modelo do sistema de transportes brasileiro: o projeto político se subordinava ao econômico; os
interesses internos, por sua vez, se subordinavam aos determinantes externos. Como atestam
trabalhos clássicos como de Celso Furtado (1959) e Ana Célia Castro (1979), as condições
econômicas – fosse por determinantes internos como a reintegração do Brasil no mercado
internacional por meio da economia cafeeira, fosse por determinantes externos, da maior
exportação de capitais das economias centrais para a periferia – impulsionariam novo ritmo à
economia brasileira na segunda metade do século XIX.
Um ritmo que a princípio parecia destoar do resto da música, aos poucos foi tornandose a tônica principal: um processo de integração socioeconômica, aumento do mercado interno
e início da industrialização. Aos poucos e lentamente vão-se transformando a realidade
brasileira. Entretanto, se o ritmo mudara, a ópera continuava a mesma. A dinâmica de
construção das estradas ainda encontrava-se sob o jugo do capital externo. Fácil era de
perceber: as estradas de ferro eram construídas longitudinalmente, partindo do interior, das
plantações de café, por exemplo, e desembocando no litoral, nos seus portos de exportação.
Com essa lupa, podemos analisar melhor a famigerada personagem do Barão de
Mauá, famosa por construir a primeira ferrovia brasileira em 1858 (D. Pedro II), e depois,
idealizar a estrada de ferro mais rentável da história do Brasil, mesmo que sem concluir o
projeto: a São Paulo Railway foi inaugurada pelos ingleses em 1867. Ambas possibilitadas com
o know-how, e capitais britânicos. Ambas para facilitar o escoamento do café para os portos.
Ou seja: sua venda para o mercado externo. Houve, porém, alguns planos de integração
brasileira que não respondiam necessariamente às demandas dos cafeicultores. O plano
Rebelo, por exemplo, idealizado em 1838, visava a integração de todas as províncias (exceto o
Amazonas) com aquilo que ficou conhecido de “Estradas reais”. Ainda não era propriamente
um plano ferroviário, mas era um plano cujo sentido era de integração nacional: mas não se
efetivou.
Essas experiências da formulação dos sistemas de transportes regionais são
emblemáticas na caracterização desta economia brasileira na transição do século XIX para o
XX – período de transição para um sistema de transportes modernos, baseado na integração
ferroviária. Período de construção que reforça o argumento de que as tentativas de integração
regional somente ocorreriam quando, de um lado a tecnologia necessária para essa integração
estivesse disponível e, de outro lado, quando internamente cada localidade buscasse se
integrar economicamente com outros mercados - principalmente mercados externos. Como
toda regra possui sua exceção, vale destacar que em casos muito particulares, como a
construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, ligando o Estado de São Paulo com a
fronteira boliviana, o sentido da construção ferroviária teria sido estratégico e militar. Mas no
geral, as ferrovias seguiam as produções rentáveis – como por exemplo o café –, e com isso,
reforçavam a desigualdade regional (tabela 1).
Tabela 1. Quilometragem e porcentagem da malha ferroviária dos principais estados
produtores de café (1873-1919)
UF
1873
1883
1905
São Paulo
254
22
1.457
26
3.790
23
Minas Gerais
662
12
3.843
23
Rio de Janeiro
510
45
1.706
30
2.661
16
Espírito Santo
336
2
Brasil
1.129
5.708
16.782
Fonte: Estatísticas Históricas do Brasil. IBGE. Rio de Janeiro, 1987.
1919
6.615
6.619
2.794
609
28.128
24
24
10
2
Quando observado de maneira individualizada, por sua vez, cada estrada de ferro
podia construir potencialidades regionais: esses variados sistemas de transporte tendiam a dar
ênfase para um caráter particular e completo do seu próprio sistema de comunicação; rompese com a interpretação de um sentido disperso e exportador, por exemplo, pensado por Caio
Prado Jr. (2010). Essa divergência está na base dos debates recentes da historiografia
brasileira, do papel do mercado interno na construção de uma economia nacional. Se cada
localidade consegue internamente se reproduzir e constituir seu próprio sistema de transporte
de uma maneira plena – calcado por suas atividades econômicas internas e pelos interesses
das elites locais –, em suma, por meio de uma dinâmica endógena de acumulação, reforçasse
que o mercado interno brasileiro poderia ser considerado como pujante e possivelmente
permitiria a construção de um projeto de economia nacional com maior autonomia.
Entretanto, o que se observa não é bem esse cenário. Podemos observar que as
regiões menos dinâmicas da economia teriam dificuldade de sustentar suas próprias ferrovias.
A verdade é que respondendo aos interesses políticos e econômicos locais, o sistema de
transporte nem sempre conseguia se mostrar rentável para se sustentar por meio das
atividades ligadas ao mercado interno ou comunicação regional – tais como os casos de Minas
Gerais e do Nordeste brasileiro respectivamente. O que se verifica historicamente é, por outro
lado, que mesmo a produção cafeeira não tendo a capacidade de impedir a disseminação de
outras atividades econômicas – muito pelo contrário, tinha a capacidade de estimulá-las – o
fato é que a existência de uma atividade estreitamente ligada ao mercado externo era o que
garantia a sobrevivência econômica das ferrovias (SAES, 1981).
Em suma, a história dos transportes no Brasil foi marcada por essa forte prevalência
das atividades regionais, sem que a proposição de uma integração nacional pudesse ser
efetivamente colocada em prática. Ademais, seu sentido é dado pela ligação com o exterior,
com a exportação de nossas matérias-primas. Ainda hoje, portanto, as cinco maiores
companhias ferrovias do país respondem por 95% da Tonelagem-Quilômetro Útil, na ligação
das produções voltadas ao mercado externo com os portos brasileiros. Em suma, o projeto
Rebelo de 1838 que pretendia fazer a efetiva integração econômica nacional por meio das
ferrovias, não somente não se realizou, como o sentido da economia brasileira pouco se
transformou nestas longas décadas de história.
As ferrovias ajudaram o país no desenvolvimento do capitalismo, introduzindo o
sistema moderno de transportes e todos os hábitos de uma sociedade industrial. Mas, ainda
assim, era produto de um desenvolvimento maior. Periférico e, portanto, contraditório por sua
própria natureza. O sentido não estava voltado para a formação da nação. É neste sentido que,
lançar questões sobre o desenvolvimento ferroviário brasileiro é passar pelo entendimento da
dificuldade histórica de romper as dispersas dinâmicas regionais para a formação de um
projeto nacional e de nossa subordinação econômica ao comércio internacional: os transportes
brasileiros personificam os próprios dilemas da economia brasileira.
Referências:
CASTRO, Ana Célia. As empresas estrangeiras no Brasil: 1860-1913. Rio de Janeiro: Zahar,
1979.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora
Nacional, 1959.
HOBSBAWM, Eric. Da revolução industrial inglesa ao Imperialismo. São Paulo: Forense
Universitária, 1968.
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense, 2010
(1942).
SAES, Flávio. As ferrovias de São Paulo, 1870-1940. São Paulo: Hucitec, 1981.
SMITH, Adam. A riqueza das nações. Coleção os economistas. São Paulo: Editora Nova
Cultural, 1996 (1776).
Imagens:
Barão de Mauá. Construtor da primeira ferrovia brasileira.
Estação da Luz em São Paulo, São Paulo Railway, 1920.
Fonte: http://www.abpfsp.com.br/ferrovias/ferrovias20.htm
Fonte: http://madcap.com.br/2008/publicidade/sao-paulo-railway-company
Inauguração da Estrada de Ferro D. Pedro II, em 29 de Março de 1858, com a presença do
Imperador D. Pedro II e toda a Côrte. Após a cerimônia, todos foram convidados para um
"esplêndido copo d'água", oferecido pelo Imperador, como relatou um cronista da época.
Foto do Acervo RFFSA-Preserfe. Publicada no Livro A Ferrovia e Sua História - Estrada de
Ferro Central do Brasil, de Eduardo Gonçalves David.
FONTE: www.anpf.com.br/histnostrilhos/historianostrilhos18_marco2004.htm
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