Teatro Carlos Alberto ESTREIA ABSOLUTA 5-14 Abr 2013 GERTRUDE a partir de Hamlet de William Shakespeare tradução interpretação António M. Feijó Fiammetta Bellone (português) Simão Do Vale Agostino Lombardo (italiano) coprodução TNSJ dramaturgia e encenação Simão Do Vale música original A Turma e sonoplastia Francisco Pessanha dur. aprox. 1:20 de Meneses M/12 anos cenografia e figurinos Bernardo Monteiro qua-sáb 21:30 desenho de luz dom 16:00 Rui Simão coreografia Né Barros assistência de encenação Manuel Tur Espetáculo em língua portuguesa e língua italiana, legendado em português. Na legendagem, a tradução foi objeto de ligeiras reformulações e acertos. O espetáculo contou com o apoio do Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas (Teatro/Novos Encenadores) da Fundação Calouste Gulbenkian. UMA RAINHA FORA DE PORTAS simão do vale Criar uma nova dramaturgia a partir de Hamlet e desenvolvê­‑la a partir da personagem feminina de Gertrude foi um desafio que não pretendeu resolver o que o autor não resolveu (ou optou por mistificar?) relativamente à mãe do protagonista, mas que não quis escapar à curiosidade em aprofundar as intrincadas relações que uma peça de génio nos deixou como legado. A personagem de Gertrude, devido às incertezas que gravitam em seu redor e à curiosidade gerada pela hipótese de explorar uma “mulher de Shakespeare”, foi usada como motivo de estudo e reflexão, acabando por se tornar numa rede complexa de verdades e/ou simples suposições. Este trabalho de dramaturgia parte de um princípio de impossibilidade de compactação da obra, ou seja, impossibilidade de alcançar uma total fidelidade à história. A resolução prática das dúvidas que Gertrude gera na sua análise/observação pode servir apenas como exercício de interpretação e representação cénicas, e não como trabalho de interpretação literária. Para mim, como criador teatral, a ausência de problemas dramatúrgicos é a ausência simultânea do estímulo de criação (até 2 mesmo de interpretação), o que significa que o “problema Gertrude” representa em si mesmo a urgência da existência deste espectáculo. As analogias, que o texto original esconde e expõe com uma habilidade notável, vão sendo reveladas na sua relação descritiva com as personagens, numa espécie de reinterpretação repetitiva e exaustiva da existência de Gertrude. Esta Rainha tenta vir à tona através da verdadeira incorporação de outras personagens e através da adopção de palavras que não lhe pertencem originalmente, revelando uma verdade cénica que serpenteia entre as várias vivências, que se entrecruzam dentro de uma matriz familiar e “política” que progressivamente vai fugindo ao controle de cada um. Esta “nova” Rainha está sujeita a muitos dos estímulos sensoriais “sofridos” pelo filho na obra original, mas para ela a presença de outras personagens funciona como uma onda atlântica que a subjuga àquela intensidade emocional, da qual Hamlet é vítima e autor na obra de Shakespeare. Gertrude é uma Rainha estrangeira (interpretada pela actriz italiana Fiammetta Bellone) numa corte que fala português (aquele que precede o novo Acordo Ortográfico) como língua oficial. O seu isolamento e a sua solidão, agravados por uma viuvez da qual não sabemos se foi observadora inocente, cúmplice ou artífice, são lentamente exacerbados pela intrusão de factores corrosivos, como o uso da língua portuguesa ou o contacto com cenas às quais ela, na obra original, não assiste. Ao contrário do que acontece no Hamlet de Shakespeare, Gertrude apresenta­‑se agora diluída numa presença constante no desenrolar da peça e nas transformações de personagens a que esta nova narração impeliu. Hamlet, por sua vez, é uma grande ferramenta dramatúrgica no desenrolar desta versão: a voz e corpo duma consciência materna abafada pelos sentidos, voz essa que é usada como ponte de ligação entre a narração e o significado interior das personagens. Este espectáculo não se apresenta como um quadro descritivo/naturalístico; as personagens existem mais como presenças corporais e sonoras (numa tentativa de conduzir uma linha narrativa) do que como “normais” seres humanos. A participação de dois actores de nacionalidades diferentes desencadeia naturalmente a curiosidade pelo contacto/confronto entre duas línguas muito semelhantes. Ou melhor, essa curiosidade desencadeou o desejo de fazer este espectáculo com um português e uma italiana. Estes dois povos têm, na minha opinião, um profundo desconhecimento das semelhanças entre as suas línguas; semelhanças essas que não só são evidentes a quem conheça bem os dois idiomas, como advêm de vários intercâmbios (portuários, por exemplo) mantidos ao longo dos séculos entre as duas nações (os dialectos genovês e veneziano, por exemplo, apresentam muitas semelhanças de vocabulário com a língua portuguesa). Portugal e Itália têm hoje um reduzido conhecimento mútuo, sobretudo a nível cultural e linguístico, e a possibilidade de contribuir para um possível alargamento deste conhecimento é particularmente gratificante. P.S. Um agradecimento especial ao Nuno Carinhas, director artístico do TNSJ, que neste projecto depositou confiança e esperança inesperadas. Um obrigado a toda a estrutura do TNSJ que, na sua hospitalidade e generosidade, não deixou espaço ao medo. Um agradecimento ao António M. Feijó, por nos permitir o uso e abuso da sua tradução do Hamlet de W. Shakespeare. Um muito obrigado ao João Reis, ao Jacinto Lucas Pires e ao Pedro Sobrado, pela paciência em encontrarem palavras lá onde nós já as não tínhamos. Obrigado também ao António Lagarto, por nos permitir uma revisitação de um seu objecto de cena. E ao António Durães, pela sua mãozinha. Texto escrito de acordo com a antiga ortografia. 3 UMA PEÇA SOBERANA jacinto lucas pires Um ator e uma atriz fazendo em italiano e português um texto de Shakespeare. Se isto não é a Europa, o que é a Europa? Numa sala de ensaios do Teatro Carlos Alberto, no Porto, Fiammetta Bellone e Simão Do Vale trabalham cenas de Gertrude – uma peça a partir de Hamlet; um Hamlet pelo ponto de vista da mãe. Mexem­‑se dentro das palavras, como se o pano negro que lhes serve de chão e a roupa negra que é um chão­‑de­‑vestir fossem a própria tinta shakespeariana. 4 Tinta antiga, tanta sombra, sangue novo. Umberto Eco terá dito que a língua oficial da Europa se chamava Tradução. Outra hipótese era chamar­‑se Shakespeare. Herberto Helder escreve: “No sorriso louco das mães batem as leves/ gotas de chuva. Nas amadas/ caras loucas batem e batem/ os dedos amarelos das candeias./ Que balouçam. Que são puras./ Gotas e candeias puras. E as mães/ aproximam­‑se soprando os dedos frios./ Seu corpo move­‑se/ pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões/ e órgãos mergulhados,/ e as calmas mães intrínsecas sentam­‑se/ nas cabeças filiais./ Sentam­‑se e estão ali num silêncio demorado e apressado,/ vendo tudo,/ e queimando as imagens, alimentando as imagens,/ enquanto o amor é cada vez mais forte” (Ofício Cantante, ed. Assírio & Alvim). É uma verdadeira blasfémia pôr este poema entre aspas, deixá­‑lo atravessado de barras inclinadas no museu das citações, e blasfémia ainda maior é interrompê­‑lo a seguir. Perdoem­‑me, por favor. Mas, para falar deste Gertrude, era aqui que eu queria chegar. Do ensaio que vi (era manhã nesse dia portuense mas na minha memória, que estranho, é noite e noite alta), o que mais me impressionou traduz­‑se exatamente assim: “Pelo meio dos ossos filiais”, “calmas mães intrínsecas”, “enquanto o amor é cada vez mais forte”. Os atores andavam sobre um quadrado preto, pensando com o corpo, com a voz, com os olhos. Manuel Tur fazia de ponto quando era preciso e, de vez em quando, lançava música. Dava a impressão que estavam os três a resolver uma questão muito específica, uma equação matemática, a estrutura de um edifício. Porque, claro, eles sabiam onde é que aquilo ia dar. Como uma máquina de almas que ainda precisasse de uma afinaçãozita aqui e ali. “gertrude: Depois, tão paciente como a fêmea do pombo/ Quando os gémeos dourados lhe saem da casca/ Se há­‑de pôr a chocar o silêncio.” As mães levam­‑nos mais perto do mistério. Mas o mistério é mais denso quanto mais perto dele estamos. E, pelo que vi, este Gertrude quer arriscar isso, ir assim perto: um teatro íntimo onde as palavras são deixadas com tamanha delicadeza que se tornam respiração, coisa física, outras palavras. Nesta versão bilingue, editada pelo olhar da mulher, o não­‑dito – cortes, elipses, ações solitárias e simples pausas – ganha um peso valiosíssimo. Mesmo só com o relance de umas horas de ensaio (uma manhã vestida de noite), deu para ver como esse silêncio era combustível e não apenas tralha. Modesta hipótese jacíntica: se Hamlet é “palavras, palavras, palavras”, Gertrude será “os gémeos dourados do silêncio”? Claro que o Príncipe de Shakespeare é muito mais do que um simples “filho da mãe”. Mas Gertrude também é mais do que a mãe da personagem célebre. O que nos leva a outro ponto deste teatro com nome de mulher: isto é uma peça nova, “soberana”, não é um “anexo” de Hamlet. É isso, digo eu, o primeiro grande achado desta ideia de Simão Do Vale e companhia. Não construir uma pecinha como “explicação ilustrada” da peça grande. Muito inteligentemente, Gertrude usa o formato de peça de câmara para nos dar a ver toda a música calada, tanto silêncio de tinta negra, da Rainha de Shakespeare. Como um retrato a preto e branco, em chiaroscuro. Mas um retrato rasgado por um movimento primeiro muito subtil, lento­ ‑lento, e depois cada vez mais veloz e forte e terrível. Uma tela que de repente se pusesse em chamas – a língua do mundo devia era chamar­‑se Herberto: “Queimando as imagens, alimentando as imagens”. Parabéns, Simão. Bravo, Fiammetta. Muita merda, William. 5 GERTRUDE SONO IO! joão reis ofélia: Talvez esta cena condense o argumento da peça. hamlet: Ficaremos a saber por este. Os actores não sabem guardar segredo: contam tudo. Hamlet (Acto III, cena 2) Poder­‑se­‑ia pensar que a afirmação de uma pequena constelação poética e dramatúrgica, de um ponto de vista que pareça desfocado do eixo central de Hamlet, não conseguiria sobreviver durante muito tempo, até como simples enunciado. Sobretudo porque na ausência dos solilóquios, ou de grande parte do seu conteúdo, a peça perde uma parte substancial da sua significância e do seu brilho. Mas a autonomia forasteira de Gertrude (nesta versão de Simão Do Vale) torna­ ‑se tão imprevisível como a do próprio Hamlet. Eis um belo combustível para o espectador que julga conhecer o drama. Escondido numa tragédia que já não é a sua, o rapaz melancólico e suicida, apanhado repetidamente em excesso de pensamento e tráfico de versos corrosivos, aparece aqui à mercê das suas virtudes e do seu desejo de vingança, mas de uma forma aparentemente mais despojada e descomprometida. Hamlet apaga­‑se para iluminar Gertrude. 6 Mais do que ampliar a dimensão de Hamlet, a propósito da possibilidade e do caminho que ele abre às mais diversas fantasias, ou a partir de uma qualquer teoria sobre a sua importância na expansão do teatro moderno e do pensamento ocidental (há centenas de obras, citações e apropriações de estilo bem mais pertinentes e objectivas do que tudo o que eu possa escrever), interessa­‑me explorar particularmente o fio invisível que parece tecer­‑se à volta do Príncipe da Dinamarca nesta sobre­‑exposição de Gertrude enquanto figura materna e objecto do desejo. E faço­‑o a partir da minha experiência de intérprete – é essa, aliás, a única forma de legitimar a minha leitura, construída na obscuridade de um ensaio breve e como simples observador de capacete azul, em missão de paz e sem grandes pretensões. Lembro­‑me de um pormenor, referenciado perspicazmente pelo Jacinto Lucas Pires (observador do mesmo ensaio), dizendo da necessidade de se criar um foco inicial, uma luz que incidisse no rosto de Gertrude, como que a mostrar que é a partir dela que se vai pôr o ouvido a jeito, dado que a tentação de seguirmos e ouvirmos Hamlet, mesmo que amputado na sua demanda, é ainda muito desviante e nada periférica. Assim sendo, é Gertrude que parece trazer agora a carga melancólica do Príncipe, as suas hesitações metafísicas, a sua autocomplacência perante a tragédia que se anuncia e que a coloca no centro de toda a acção e de todas as dúvidas. Se na versão ou na visão mais canónica da peça Hamlet consegue resgatar facilmente a cumplicidade do público, tanto nos propósitos que o animam como nos que justificam os sucessivos artifícios que conduzem à morte, aqui, o registo e o tom sacrificial de Gertrude é também a sua oportunidade de emancipação, como acontecera já com Ofélia (talvez a mais enigmática das criaturas, depois de Hamlet) ou mesmo Rosencrantz e Guildenstern. Todos eles com argumento, consistência e território suficientes para partirem para outras aventuras, tal a inspiração e a riqueza do legado do Príncipe e das suas motivações. Mas Gertrude é feita de uma outra matéria. Traz consigo o lastro pecaminoso (a mão que segura o batom em cena é a imagem do seu santuário), e a evocação da carne que Hamlet rejeita e despreza sucessivamente em todos os seus dilemas parece encontrar em Fiammetta Bellone (e na sonoridade que a língua italiana empresta à cena) um doce veneno que torna idiomática a expressão “Inconstância, o teu nome é mulher!” Não podemos ignorar que a apropriação de alguns versos roubados a Cláudio e a Hamlet por parte da Rainha lhe acrescentam uma nobreza carismática. Mais do que reforçar um ponto de vista, este bordado dramatúrgico é um mecanismo para nos acercarmos da condição feminina na peça, da sua grandeza, tantas vezes sombra, contornando assim a culpa e as sobras das acusações do Príncipe 7 e dos seus fantasmas. A Rainha teme pela sua vida, mais do que pelo seu reinado, e ainda que ambos se misturem habilmente no desfile da consciência, é como se a partir de agora Gertrude assumisse por uma vez o seu nome (Inconstância) e a sua condição. Gertrude sono io! Um dos grandes fascínios da natureza de Hamlet e do seu fulgor é a sua paixão pelo teatro e pelos actores. É um exorcismo para a sua cabeça infernal e um presente para quem o interpreta. Dito de outro modo: sem teatro, sem espectadores, mesmo que inventados a partir da sua demência prodigiosa, Hamlet ficaria reduzido a um espectro eloquente e em fuga. E é também pelo teatro, pela seta apontada à consciência na célebre cena do Assassínio de Gonzaga, que Gertrude vê parte da razão introspectiva do filho, ou pelo menos a sua representação forjada. Talvez possamos especular sobre o possível desconhecimento da mãe em relação ao assassínio do marido. Quando o Rei interrompe a famigerada cena, a pergunta da Rainha “Que se passa, senhor?” sempre me causou espanto. Mais tarde, na também célebre closet scene, Gertrude diz: “Hamlet, muito ofendeste teu pai”. Será o assassinato do Rei pior ofensa do que a história que se conta ao ouvido da nação, a de ter sido mordido por uma serpente enquanto dormia no jardim, no seu repouso de guerreiro? Uma história com ares de delírio romântico só pode ser invenção hábil de mulher, de Gertrude, talvez. Porque cheira a “veneno faz­‑de­‑conta”. Ou, quem sabe, ofender o pai possa ser ofender Cláudio, e aí teríamos mais um apetecível e dinâmico centro de acção e 8 introspecção, ou mais um pretexto para uma lição de psicanálise. Seja lá o que for, Gertrude encerra em si um mistério difícil de pronunciar. Sabemos pouco do que ela sabe, e é nessa penumbra que vamos andando como bons melancólicos. Mas eu queria chegar um pouco mais longe – e mais uma vez ao teatro. Este dispositivo montado por Simão Do Vale não é mero exercício de economia, é um gesto inteligente que Hamlet, ele próprio, não desdenharia. Digamos que a tentação da hipérbole interpretativa, da sua manipulação em cena, é também o grande sonho e o maior desejo de Hamlet. Ou como ele dirá a Ofélia, ainda que noutro contexto: “Pudesse eu ver de cima a bonecada a mexer”. Texto escrito de acordo com a antiga ortografia. UMA MULHER SOB INFLUÊNCIA pedro sobrado hamlet: Vá, vá, sentai­‑vos, que daqui não saireis./ Não ireis até que vos ponha um espelho à frente/ Em que possais ver o vosso recesso mais íntimo. No primeiro ensaio a que assisti, tomei apenas quatro notas no meu caderninho. A coisa resumia­‑se a isto: Underground, Rosebud, The Night of The Hunter e Lost in Translation. Nada mais. Achei­‑lhes graça por se tratar de quatro referências do cinema, sobretudo tendo em conta (1.º) que não sou propriamente um cinéfilo e (2.º) que – a despeito do filmezinho que, no final, talvez denuncie uma vontade de cinema – o espectáculo não contém citações, reminiscências ou piscadelas­‑de­‑olho cinematográficas. Só depois tomei consciência que, na sala de ensaios do TeCA, me sentara numa desconchavada “cadeira de realizador”. Se, como professa a epistemologia moderna, o lugar de onde vemos condiciona a nossa percepção da realidade, então isto não se aplicará apenas à condição e circunstância do observador (memória, ideologia, etc.), mas também, muito prosaicamente, à própria cadeira a que destinamos o traseiro. O assento cinéfilo explica, creio, o que se segue: um pequeno mas variegado patchwork de filmes, cujos títulos ou imagens comentam o que vejo. Calharam estes, poderiam ser outros, pois todo o zapping tem qualquer coisa de caprichoso e arbitrário. No início do ensaio, Simão e Fiammetta estão sentados, de costas voltadas para a plateia, em bancos que, informam­‑me no final, se chamam “parideiras”. Que tropológico! Gertrude versa a mãe de Hamlet, tratado ou tratante misógino que da progenitora diz que seria melhor não o ter parido e à noiva dedica a seguinte mesura: “Põe­‑te a mexer para um convento. Ou preferes andar a parir pecadores?” Underground “Debaixo dos paralelepípedos, a praia”, rezava um dos slogans do Maio de 68. Na formulação de Michel Foucault: “Debaixo dos paralelepípedos, a natureza em festa”. Gertrude começa por ser um Hamlet sem palavras: duas breves cenas concentram, silenciosamente, tudo o que precisamos de saber. À encenada solenidade do protocolo de Estado, interrompida pela queda de um rei, segue­‑se a coreografia subterrânea de dois vermes que ascendem ao trono. Outra forma de pôr as coisas: sob o salão nobre, a cave; sob a passadeira vermelha, o subterrâneo. São abundantes e espantosamente diversas as bichezas que se alojam e prosperam no subsolo: térmitas, vermes, ácaros, fungos, bactérias, protozoários… Mal imaginamos as relações bióticas – apetece dizer: biopolíticas – de predação, parasitismo, comensalismo, mutualismo ou competição que pulsam sob o chão que pisamos. Se pudéssemos escutar o labor incessante dessa luxuriante 9 população subterrânea, não mais nos sentiríamos em segurança. No Underground de Kusturica, toda uma urbe fervilha sob o pavimento da História. Sob o chão da intriga de Hamlet, perdão, Gertrude, vermes e larvas progridem, conquistando terreno: uma marcha imparável. Nem poderia ser de outro modo, numa peça que fala tanto em sepulturas e covas como em leitos e divãs infectos. O filme de Kusturica começa num jardim zoológico, talvez para nos dizer que um país (Jugoslávia, lembram­‑se?) estava entregue às feras – um pouco como esta european house designada reino da Dinamarca. Mas a fauna que retém a nossa atenção é aquela formada pelos diligentes e festivos inquilinos do subsolo. O Hamlet que, no original de Shakespeare, já 10 instruía Polónio sobre como o Sol pode engendrar vermes num cão morto, refere­‑se ao conselheiro de Estado já defunto como menu de degustação para larvas omnívoras – criaturas que não são esquisitas de boca. Diz o herói, elucubrando metempsicoses fágicas: “Pelas vísceras de um verme pode desfilar um rei”. Citizen Kane Para além deste viveiro de larvas ladinas, há um pequeno zoológico. Por lá se move a serpente da Bíblia e uma ratazana de esgoto: alta e baixa cultura. O espírito de Cláudio é um canil e o leito real, uma pocilga (“cortelho imundo” são as palavras exactas). A seu tempo, os figurinos de Bernardo Monteiro hão­‑de representar o contingente das aves – raras, de rapina ou mau agouro. Há também um “capitoso bezerro” e, a dada altura, é mencionado um “cavalo pressago”. O ginete é evocado num exercício de rememoração, quando Hamlet e um actor se empenham em recuperar um determinado passo de uma peça. Muito antes de escutarmos tal fragmento, um cavalinho de baloiço é introduzido em cena, no exacto momento em que o fantasma do velho Hamlet impõe ao filho o dever da memória – “Lembra­‑te de mim” –, enquanto toda a corte (viúva aí incluída) se precipita na pronta rasura do passado. O cavalinho em que talvez o infante Hamlet se imaginou a atravessar as estepes adquire aqui o valor de uma sinédoque – a parte exposta de uma coisa muito maior do que ela e a que não nos é dado aceder: a infância, esse espaço­‑tempo da feliz indivisão de si. Num dos vários ensaios que dedicou aos brinquedos, Walter Benjamin lança a seguinte interrogação: “Se, como diz um poeta moderno, há para cada um de nós uma imagem que nos faz esquecer tudo o resto, para quantos não surgirá ela de uma velha caixa de brinquedos?” Enquanto destroço de um paraíso perdido, o cavalinho de baloiço deste Hamlet faz lembrar o trenó da criança que um dia o magnata Charles Foster Kane fora. É nesse brinquedo que está gravada a palavra rosebud, sussurro de moribundo que abre o filme (e a cinematografia) de Welles e que explicaria a índole da personagem bigger than life que é Kane. Apenas nós, espectadores, ficamos a saber que a palavra­‑enigma está afinal inscrita nesse objeto da infância que, no plano final, arde num fogo destruidor e purificador, enquanto a investigação jornalística que serve de expediente narrativo redunda num desolador fracasso. “Talvez rosebud seja alguma coisa que ele nunca conseguiu ter, ou que perdeu”, diz o repórter. O mesmo se aplica, creio, ao cavalinho de Hamlet, ou ao que tal brinquedo representa em Gertrude. Uma indecorosa revelação de Gore Vidal permite prosseguir (inflectindo) a leitura do achado que este cavalo de baloiço representa do ponto de vista teatral: ao arrepio das múltiplas especulações mais ou menos elevadas dos cinéfilos (um deles classificou rosebud como “o maior segredo do cinema”), o escritor norte­‑americano anunciou nas respeitáveis páginas do New York Review of Books que rosebud seria, afinal, o nickname que William Randolph Hearst – o magnata da imprensa em cuja história e personalidade Welles se teria inspirado para construir o seu Kane – atribuíra ao clítoris da sua amante, a actriz Marion Davies. Deixa perfeita para considerarmos o carácter inquietantemente lúbrico que o brinquedo infantil também adquire em Gertrude. No momento em que o fantasma do pai denuncia a corrupção da virtude da sua Rainha, vemo­‑la a cavalgar, com trejeitos lascivos e vagamente embriagada, o cavalinho de baloiço, como que desentranhando dele antigos desejos ou terrores do pequeno Hamlet. Sintetizando uma série de energias psíquicas, a cena acciona o mecanismo interno das perturbações edipianas, que terá depois a expressão que se sabe na closet scene. Mas o incesto a que tal cena alude é de atribuição problemática, porque Cláudio é, nesse mesmo episódio, definido pelo fantasma 11 como uma “besta incestuosa e adúltera”, detentora de um “cio impudico”, merecendo posteriormente, da parte de Hamlet, alguns epítetos zoológicos: não o do nobre cavalo, é certo, mas, um pouco mais modestamente, o de cão e ratazana… Em ambos os cenários, Gertrude afigura­‑se uma mãe ciosa – no sentido terrivelmente literal da palavra. The Night of the Hunter Em Hamlet, o teatro surge­‑nos como um instrumento de caça furtiva: “A peça é a coisa com que vou enlaçar a consciência do Rei”. Em conformidade, no decurso da própria récita, O Assassínio de Gonzaga passa a chamar­‑se A Ratoeira e, após a abrupta interrupção da representação, o Rei já é só uma ratazana enfronhada no cortinado dos aposentos da Rainha. (Para decepção do Príncipe da Dinamarca, trata­‑se afinal da diplomática lombriga que dá pelo nome de Polónio.) Se considerarmos que, no momento em que cai na armadilha, Cláudio pede “luzes”, reconheceremos também que se trata de uma caçada nocturna. Na noite da representação, antes de franquear os cómodos da mãe – aquela que verdadeiramente deseja “enlaçar” –, Hamlet indica: “É agora aquela bruxuleante hora da noite…” (Um enunciado que a dramaturgia desloca para Fiammetta.) Em The Night of the Hunter, filme único de Charles Laughton, Robert Mitchum é um falso profeta, serial killer de viúvas abastadas, que se lança no encalço de um dinheiro cujo paradeiro só duas crianças conhecem. Assassinado o pai, casa com a mãe (que acabará morta nas águas de um rio…), mas o filho jurou fidelidade ao pai morto e recusa 12 a paternidade maléfica do pregador. Segue­‑se uma perseguição sem tréguas: a long night’s journey into day. À parte as coincidências de que só agora, ao escrever, tomo consciência, ao ver a cena em que Hamlet confronta a mãe, recordo a espantosa mímica da luta entre o bem e o mal de Mitchum: nos dedos da mão esquerda estão tatuadas as letras H­‑A­‑T­‑E; nos da mão direita, as letras L­‑O­‑V­‑E. É a luta de dois irmãos, Abel e Caim. Quando Hamlet confronta a mãe com os retratos de dois irmãos tão absurdamente dissemelhantes, serve­ ‑se das mãos: acostando­‑se por detrás de Fiammetta, Simão expõe­‑lhe a palma da mão direita e, em seguida, a da esquerda: “Este foi vosso marido. Olhai agora o que se segue”. A mão é ícone em Gertrude, o que se torna manifesto na cena em que a “mão dourada do dolo” se ergue para maquilhar (e esborratar) a culpa na boca da Rainha. Se é verdade que, como propõe Baudelaire em O Pintor da Vida Moderna, a toilette e a maquilhagem são manifestações de “alta espiritualidade” que visam corrigir a natureza, essa conselheira do crime e de toda a sorte de ignomínias, então o fracasso cosmético de Gertrude expõe uma virtude aviltada e um espírito corrompido. Tanto o episódio da mão dourada como a cena em que Hamlet mostra o bem e o mal na palma das duas mãos recuperam para nós aquela ancestral conexão entre mão e espírito: biblicamente, a mão é um prolongamento do espírito, o gesto exterior daquela exprime o movimento interior deste. Daí que, no Antigo Testamento, a pureza de espírito seja descrita como pureza de mãos, ou que a manifestação de Yahweh (para salvação ou condenação, bênção ou punição) seja tão recorrentemente designada pela força da Sua dextra. Não deixa, por isso, de ser intrigante que, quando Simão transita da personagem de Hamlet para a do fantasma, logo na segunda cena, cubra o rosto com as mãos. Nas mãos do filho, o espírito do pai. Lost in Translation rainha: Su, su, mi rispondi con lingua sciocca. hamlet: Ora, ora, questionais com língua malévola. A adopção de duas línguas não é em Gertrude um puro constrangimento. É certo que Simão e Fiammetta vivem e trabalham em Itália, e que a realização do projecto em Portugal, nos termos em que se apresenta, estaria sempre dependente da língua italiana, uma vez que a actriz não fala o português. Mas para lá do prazer sensorial que este comércio idiomático possa produzir – “As palavras são corpos tocáveis, sereias invisíveis, sensualidades incorporadas”, como diz o Bernardo Soares que Fiammetta tanto aprecia (o excerto do Livro do Desassossego que publicamos neste programa foi­‑nos sugerido por ela) –, há uma irrecusável teatralidade na convivência das duas línguas. Indício desse facto é o passo supracitado: nele, é como se a língua italiana desdenhasse da portuguesa, cunhando­‑a de “ociosa”, e levasse o devido troco (o epíteto de “malévola”). O que se segue revela­‑se, contudo, bem mais pertinente, pois a incompreensão que se instala entre mãe (“Cosa, Hamlet? Che dici?”) e filho (“Que quereis dizer?”) ganha novo sentido e expressão pela introdução de uma língua estranha que vem perturbar o entendimento possível. A comunicação é uma improbabilidade, como professa o sociólogo Niklas Luhmann? Ou “para o que não ama, o amor é uma língua bárbara”, como prega o cisterciense Bernardo de Claraval? Ou, mesmo para o que ama, o amor é uma língua estranha, de que apenas podemos conhecer os rudimentos? Outro ponto em que a dualidade idiomática adquire significado teatral ocorre no colóquio entre Polónio e a Rainha. O diálogo processa­‑se em italiano, excepto quando o conselheiro taralhouco lê a carta de Hamlet a Ofélia, pretensamente escrita em português. O espectáculo tira partido do bilinguismo em favor da coexistência de discursos de proveniência vária que a dramaturgia arregimenta para compor esta Gertrude. A variação linguística no interior de uma mesma fala de Hamlet permite inclusive que uma determinada expressão funcione como aparte, como se o português constituísse uma língua privada do herói e dos seus fantasmas. É certo que o vaivém idiomático e o recurso à legendagem acarretam potenciais perdas, sobretudo quando a intensidade dramática exige a aceleração do débito discursivo. Mas não há só perdidos, há também achados. Há mesmo coisas que se perdem de uma maneira para se acharem de outra, tal como sucede com as personagens de Lost in Translation. No final, há qualquer coisa que Bob diz a Charlotte ao ouvido, e que nos escapa. Essa perda revela­‑se um ganho. Texto escrito de acordo com a antiga ortografia. 13 “ Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, folheio­‑os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ler mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas antigas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio. Em todos os meus sonhos ou apareces, sonho, ou, realidade falsa, me acompanhas. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade, o teu corpo essencial descontornado para planície calma e monte de perfil frio em jardim de palácio oculto. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam 14 a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos não são o meu modo de não te sonhar? Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? Sei eu o que é sonhar para que saiba o que vale o chamar­‑te o meu sonho? Sei eu se não és uma parte, quem sabe se a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um Sonho que eu sonhe? Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil? Nunca é o mesmo, mas não muda nunca. E eu digo isto porque sei, ainda que não saiba que o sei. Teu corpo? Nu é o mesmo que vestido, sentado está na mesma atitude do que quando deitado ou de pé. Que significa isto, que não significa nada? bernardo soares “Nossa Senhora do Silêncio”. In Livro do Desassossego. Ed. Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998. p. 458­‑459. 15 “A GERTRUDE QUE O ESPECTADOR VÊ NÃO É EXATAMENTE A GERTRUDE QUE ELES VEEM” janet adelman* Dada a sua centralidade na peça, é surpreendente o pouco que sabemos de Gertrude; até mesmo o seu grau de envolvimento no assassinato do primeiro marido permanece pouco claro. Podemos sentir­‑nos tentados a interpretar o seu choque perante a acusação de Hamlet – “Quase tão mau, querida mãe,/ Como matar um rei e casar com o irmão” [III.4] – como a prova da sua inocência; porém, o texto permite­‑nos entender alternativamente esse choque como uma reação ao facto de ter sido desmascarada ou à própria brutalidade das palavras de Hamlet. O fantasma acusa­‑a, pelo menos indiretamente, de adultério e incesto – Cláudio é “essa besta incestuosa e adúltera” [I.5] –, mas não a inculpa nem a exonera do assassínio. Para o fantasma, assim como para Hamlet, o principal crime de Gertrude é a sua sexualidade desenfreada; é esse o objeto da repugnância moral de ambos, uma repugnância tão intensa quanto aquela que lhes provoca Cláudio, o assassino. Porém, a Gertrude que o espectador vê não é exatamente a Gertrude que eles veem. Quando a consideramos 16 em si mesma, independente das caracterizações que pai e filho dela fazem, tendemos a ver uma mulher confusa mais do que deliberadamente perversa; até mesmo a sua célebre sensualidade é menos aparente do que a sua solicitude dividida entre o novo marido e o filho. Desde o início, Gertrude mostra­‑se capaz de uma certa compreensão culposa perante o sofrimento de Hamlet (“Duvido que outra coisa de tão magna possa ser/ Que não a morte do pai e o nosso tão célere casamento” [II.2]). Na medida em que segue as instruções de Hamlet para informar Cláudio da loucura dele [III.4; IV.1], Gertrude parece desempenhar cabalmente o papel de boa mãe, colocando os interesses do filho acima dos do marido. Contudo, é também possível que ela o creia realmente louco e julgue estar a transmitir ao marido uma informação verdadeira; não há dúvida de que a sua corajosa defesa do marido no encontro seguinte entre ambos – em que refreia fisicamente Laertes, como especificado em IV.5 – sugere que Gertrude não adotou inteiramente a visão que Hamlet tem de Cláudio. Aqui, como noutras passagens, o texto deixa em aberto aspetos cruciais da ação e das motivações da Rainha. Nem mesmo a sua morte a define por completo. É realmente um suicídio destinado a proteger Hamlet, morrendo em vez dele? Gertrude sabe que Cláudio preparou a taça para Hamlet e dá mostras de uma invulgar determinação ao desobedecer à ordem do marido para não beber (“Não bebas, Gertrude./ Apetece­‑me, senhor” [V.2]). Nos seus últimos instantes, todos os seus pensamentos parecem ser para Hamlet; não dispensa a Cláudio sequer a atenção necessária para o acusar (“Não, não, o vinho, o vinho! Ah, meu querido Hamlet!” [V.2]). Confusa, falível, inteiramente humana, Gertrude parece fazer por fim a escolha que Hamlet desejaria que fizesse. Mas, mesmo aqui, as suas palavras não são claras; a sua personagem permanece relativamente fechada ao espectador. A primeira mãe a reaparecer nas peças de Shakespeare é uma mulher adúltera porque, creio eu, a origem materna é em si mesma sentida como equivalente à traição adúltera do homem, tanto do pai como do filho. Hamlet marca o início do período das grandes tragédias de Shakespeare, já que representa de facto uma reescrita da história de Abel e Caim enquanto história de Adão e Eva, revendo a identidade masculina à luz da figura da mulher adúltera. Esta reescrita explica, a meu ver, a estranheza da posição de Gertrude na peça, que decorre sobretudo do facto de não sabermos até que ponto ela foi cúmplice do assassinato do primeiro marido. Menos forte como personagem independente do que como objeto de fantasias que a ultrapassam, Gertrude é sobretudo mãe enquanto outra, a figura íntima desconhecida em torno da qual essas fantasias se tecem. Mantendo uma inocência ambígua enquanto personagem, ela desempenha, na fantasia profunda que estrutura a imagética da peça, o papel da Eva desaparecida: o seu corpo é o jardim onde o marido morre, a sua sexualidade a erva venenosa que o mata e que envenena o mundo – e a identidade – do filho. É esta a fantasia psicológica que se reflete na simultaneidade do funeral e do casamento: em Hamlet, o reaparecimento da mãe equivale à morte do pai idealizado, já que a presença dela assinala a ausência dele e, assim, a impossibilidade de defesa do filho contra o seu veneno, a sua capacidade de aniquilar ou contaminar; tal como na fantasia purificadora de Marcelo, o pai idealizado representa, em última instância, uma proteção contra os perigosos poderes femininos da noite. É em parte através da sua identificação com o pai, essa presença que inicialmente o ajudou a emancipar­‑se da mãe, que o pequeno Hamlet domina o medo que tais poderes lhe inspiram; porém, se o pai falta – ou se ele próprio parece subjugado por ela –, então essa identificação protetora desaparece também. É precisamente esta a situação psicológica no início da peça, quando o pai se torna inacessível ao filho, não apenas pelo facto de ter sucumbido, mas também devido à vulnerabilidade complexa que a sua morte evidencia. Este pai revela­‑se incapaz de proteger o filho; e o seu desaparecimento coloca Hamlet sob o domínio da mãe devoradora, despertando todos os medos próprios ao laço primordial entre mãe e filho. Aqui, como nas últimas peças de Shakespeare, a perda do pai representa efetivamente um símbolo do domínio psíquico da mãe: no final, é o espectro da mãe, e não o do tio­‑pai, que paralisa a vontade de Hamlet. A culpa é da Rainha. Esta transferência de capacidade de ação e de perigo do masculino para o feminino parece­‑me ser característica da estrutura fantástica de Hamlet e da imaginação de Shakespeare nas peças seguintes. A injunção inicial do fantasma estabelece como principal propósito do enredo a execução de Cláudio; de 17 18 facto, o espectro pede especificamente a Hamlet que deixe a mãe em paz, atormentada apenas pela sua própria consciência [I.5]. Contudo, se a culpa é de Gertrude e não de Cláudio, a tarefa fundamental de Hamlet é, afinal, outra; o que está aqui em jogo já não é uma simples história de vingança. Assim, não obstante uma ostensiva intenção de vingança, a principal missão psicológica a que Hamlet parece propor­‑se não é vingar o pai, mas antes recriar a mãe: recriá­‑la à imagem da Virgem Mãe, para garantir a pureza do pai e do próprio Hamlet, reparando as fronteiras da identidade deste. Ao longo de toda a peça, o drama secreto da reabilitação compete com o drama manifesto da vingança, substituindo­‑o de facto, tanto pelo que nos é dado a ver da consciência de Hamlet, como pela ação central da peça: quando se censura a si próprio de falta de propósito [III,4] e de esquecer a vingança do pai [IV.4], Hamlet pode estar parcialmente certo. Mesmo enquanto vingador, Hamlet parece mais motivado pela mãe do que pelo pai: ao descrever Cláudio a Horácio como “ele que me matou o Rei e prostituiu a mãe” [V.2], a segunda expressão encerra claramente um peso emocional íntimo mais forte do que a primeira. E Hamlet apenas logra cumprir a sua missão quando vinga a morte da mãe, e não a do pai; de facto, quando esperaríamos ouvir uma versão de “descansa, espírito perturbado” que relacionasse a execução de Cláudio com a injunção inicial do fantasma, aquilo que ouvimos é: “Está aqui a tua única pérola?/ Vai a correr atrás da minha mãe” [V.2]. Esta inflexão – da vingança do pai para a salvação da mãe – explica em parte certas peculiaridades de Hamlet enquanto drama de vingança. Por exemplo, porque é que o assassino recebe tão pouca atenção durante o estratagema ostensivamente concebido para lhe causar um rebate de consciência; porque é que o confronto de Hamlet e Gertrude na cena da antecâmara nos parece muito mais importante, muito mais vital, do que qualquer confronto entre Hamlet e Cláudio? Assim que olhamos para O Assassínio de Gonzaga por aquilo que é, mais do que por aquilo que Hamlet nos diz que é, torna­‑se evidente que a pequena peça visa de facto abanar a consciência da Rainha – a provocação é sempre lançada contra a sua posição enquanto amante, e a acusação é clara: “Sangue de meu marido outra vez derramo/ Se um segundo marido me beija na cama” [III.2]. O confronto com Gertrude [III.4] segue­‑se tão naturalmente a esta tentativa de sacudir a sua consciência que o encontro inesperado de Hamlet com Cláudio [III.3] parece ser apenas a interrupção de um propósito mais fundamental. Em grande medida, de facto, Shakespeare concebe a quarta cena do Ato III como uma interrupção: a caminho da antecâmara da mãe, e enquanto se pergunta se será capaz de repudiar o Nero que existe em si, Hamlet encontra Cláudio a rezar; e este encontro é tão inesperado para ele como para os espectadores. Ou seja: o momento que deveria ser o clímax do enredo de vingança – o potencial confronto a sós entre o vingador e o seu alvo – surge, para a audiência e para o próprio vingador, como um lapso, um interlúdio que tem de ser tolerado antes de se poder passar à verdadeira tarefa. Não nos surpreende, 19 pois, que Hamlet não possa matar Cláudio nessa ocasião: isso seria fazer do interlúdio a interrupção definitiva do seu mais fundamental propósito. De facto, nem mesmo Hamlet poderia com razoabilidade esperar realizar a reforma moral da mãe imediatamente após ter assassinado o marido dela. Por outro lado, uma tal morte vingadora também não poderia ajudá­‑lo a recuperar a mãe de que ele necessita: uma vez denunciada como jardim violado e fruído, a mãe só poderá ser purificada se for despojada da sua sexualidade. E é esta, de facto, a intenção de Hamlet na quarta cena do Ato III. Nesse confronto, Hamlet começa por insistir que Gertrude reconheça a diferença entre Cláudio e o Velho Hamlet, diferença essa que o adultério e o segundo casamento minaram. Mas após esta comparação preliminar de retratos, Hamlet tenta induzir nela um sentimento de repugnância, não pela escolha do homem errado, mas pela sua própria sexualidade, esse fogo rebelde que lhe consome os ossos de matrona, o “ranço pútrido, tudo minando por dentro” [III.4]. Aqui, tal como na peça dentro da peça, Hamlet recria de modo obsessivo, voyeurístico, os atos que corromperam o leito real, ainda que, para tanto, tenha de recorrer a uma lógica e a uma sintaxe bastante tortuosas: gertrude: Que hei­‑de fazer? hamlet: De modo nenhum isto que ora vos mando fazer:/ Deixai que o Rei untuoso vos puxe para a cama,/ Arisco belisque a face, vos chame minha ratinha,/ E deixai­‑o, por um par de beijos com baba,/ E palpões no pescoço com os dedos atrozes,/ Levar­‑vos a confessar todo este enredo/ De que não 20 estou verdadeiramente louco,/ Antes louco por ardil. [III.4] Haveria certamente uma forma mais fácil de pedir à mãe que não revelasse a falsidade da sua loucura. “De modo nenhum isto que ora vos mando fazer”: Hamlet não consegue parar de imaginar, e até de ordenar, o ato sexual a que pretende pôr fim. Além disso, o corpo “untuoso” do rei em questão não lhe é particular – trata­‑se do corpo masculino sexualizado, do ato sexual de qualquer um. O leito real da Dinamarca foi já corrompido, é já uma cama de luxúria, como a própria presença de Hamlet testemunha. “Furtai­‑vos à cama do meu tio” [III.4], diz ele à mãe, mas a sua repugnância perante a ligação incestuosa representa a racionalização de uma anterior repugnância perante toda e qualquer relação sexual, tal como a sua tentativa de pôr fim à união especificamente incestuosa é a racionalização de uma tentativa de purificar a mãe ao divorciá­‑la da sua sexualidade. A quarta cena do Ato III regista a sua tentativa de concretizar este divórcio, de recuperar a fantasia da mãe assexuada da infância, a mãe capaz de devolver um sentido de santidade ao mundo que a sua sexualidade corrompeu: nesta cena, a primeira e a última palavra de Hamlet é “mãe”. E, pelo menos no seu próprio espírito, Hamlet parece conseguir realizar tal tarefa. Começa por exprimir o desejo de que Gertrude não fosse sua mãe (“E, ah!, quem dera que assim não fora, sois minha mãe”); contudo, perto do final da cena, consegue já imaginá­‑la como a mãe a quem pediria – e de quem receberia – a bênção: hamlet: […] De novo, boa noite./ E quando estiverdes desejosa de ser abençoada/ A bênção vos hei­‑de pedir. Esta mãe pode abençoar Hamlet apenas na medida em que ela própria peça a bênção dele, assinalando a sua conversão do marido para o filho e invertendo a relação entre progenitor e criança; Hamlet domina por completo a situação, mesmo quando se imagina a pedir a bênção materna. Ainda assim, ao surgir no final da longa cena de raiva e repulsa, esta passagem parece­‑me extremamente comovente na sua evocação do desejo de uma presença materna que possa restaurar a bem­‑aventurança do mundo e do eu. E essa desejada bem­‑aventurança reside especificamente na relação do mundo com o eu: quando mãe e filho se espelham mutuamente, abençoando­‑se um ao outro, Shakespeare realiza a reabertura da zona de confiança anteriormente impossibilitada pela mãe aniquiladora. Pela primeira vez, Hamlet imagina­‑se tocado por algo de exterior a si próprio que não o invadirá nem contaminará: a recuperação de uma presença materna benigna repara por momentos os danos da Queda, tornando segura essa permeabilidade de fronteiras que tinha constituído uma fonte de terror. Perto do final da cena, todos os terrores nocturnos se desvanecem. As repetidas variações de Hamlet em torno da expressão convencional “boa noite” assinalam a sua mudança: partindo de um sentimento de raiva contra a sexualidade da mãe, ele recupera agora a boa mãe que tinha perdido. Hamlet começara a cena com um “Boa noite. Furtai­‑vos à cama do meu tio. […] Refreai­‑vos esta noite”, procurando separar Gertrude do seu horrífico corpo nocturno; mas, no final, mediante a sua própria versão da fantasia purificadora de Marcelo, ele logra imaginar como benévolas tanto a mãe como a noite. Começando por desejar que Gertrude não fosse sua mãe, Hamlet termina com a pungente e repetida despedida de uma criança relutante em deixar a mãe, que representa agora a garantia da sua segurança: “De novo, boa noite. […] Boa noite, outra vez. […] Mãe, muito boa noite. […] Boa noite, mãe”. * Excertos de Suffocating Mothers: Fantasies of Maternal Origin in Shakespeare’s Plays, Hamlet to The Tempest. New York: Routledge, 1992. p. 15­‑16, 30­‑34. Trad. Rui Pires Cabral. 21 SIMÃO DO VALE FIAMMETTA BELLONE Nasceu nas terras do demo, em data a revelar. Nasceu e vive em Génova, Itália. Formou­‑se em (Acha que o idadismo – preconceito baseado Letras Modernas na Università degli Studi di na pertença a um determinado grupo etário Pavia, enquanto, simultaneamente, iniciava a sua – é um dos maiores e menos discutidos formação teatral. Estudou representação com problemas sociais…) Formou­‑se em Psicologia Geraldine Baron, Cristina Pezzoli, Maria Consagra, pela Universidade do Porto e a sua primeira Marcello Bartoli e Ambra D’Amico. Em 2002, ligação a Itália surge com a estadia de um ano diplomou­‑se em interpretação teatral na Scuola em Florença, ao abrigo do (agora moribundo) di Recitazione del Teatro Stabile di Genova. programa Erasmus. Após a conclusão dos seus Trabalhou no Teatro Stabile di Genova, estudos em Psicologia, estudou representação participando em espetáculos como Aiace de na Scuola di Recitazione del Teatro Stabile di Sófocles (2004) e Svet – La luce splende nelle Genova, com Anna Laura Messeri e Massimo tenebre de Tolstoi (2007), com encenação de Mesciulam. Ainda em Itália, e desde que se Marco Sciaccaluga; Death Valley Junction (2001) mudou para Turim (onde atualmente vive), de Albert Ostermaier, La morte di Danton de Georg trabalhou com encenadores como Pierpaolo Büchner (2002), Un posto luminoso chiamato Congiu e Antonio Villella, tendo representado giorno de Tony Kushner (2006), com encenação textos de William Shakespeare, Molière, de Massimo Mesciulam; e La donna e il colonnello Carlo Goldoni e Luigi Pirandello. Tem vindo a de Emmanuel Dongala (2005), com encenação desenvolver projetos independentes, nos quais de Flavio Parenti. Integrou também o elenco de encena e representa. Atualmente, está ligado espetáculos da companhia Gank de Génova: ao coletivo de criação poética InControVerso. Otello (2004) e La Bisbetica Domata (2005) de Regressa agora a Portugal para explorar um Shakespeare, enc. Alberto Giusta; e Anfitrione de dos seus textos (Hamlet), um dos seus autores Molière (2006), enc. Antonio Zavatteri. Participou (Shakespeare) e uma das suas personagens em Riccardo III de Shakespeare (2006), com favoritas (Gertrude). Nutre pelo Teatro uma encenação de Filippo Dini e produção da Fattore paixão assolapada, mas acha que um bom K, companhia de Giorgio Barberio Corsetti. Com rancho melhorado à moda de Viseu pode o Teatro Del Carretto de Lucca, participou nos resolver muita coisa. Quem lhe dera poder espetáculos Odissea (2002) e Pinocchio (2006), rebolar sobre prados verdes e sentar­‑se depois, encenações de Maria Grazia Cipriani. Trabalha a olhar o céu bascular sobre a sua cabeça. há vários anos com o Teatro Cargo de Génova, integrando o elenco de espetáculos como La Strega, Raccolta Indifferenziata, Sudore e Donne in Guerra, escritos e encenados pela diretora artística, Laura Sicignano. Adaptou para a cena o romance Medeia – Vozes de Christa Wolf, assegurando a interpretação do espetáculo L’Altra Medea, com encenação de Massimo Mesciulam (2013). Em 2008, encenou Daewoo de François Bon, uma produção do Teatro Stabile di Genova. Trabalhou ainda em produções televisivas e cinematográficas em Itália. Ensina representação. 22 A TURMA Coletivo artístico fundado em 2008, no Porto, na sequência de um percurso académico nas áreas do teatro, partilhado pelos seus membros. Tu Acreditas no que Quiseres (2008), a partir de Loucos por Amor, de Sam Shepard, enc. Manuel Tur, foi o seu espetáculo inaugural. Seguiram­‑se criações como Os que Sucedem, de Luís Mestre, enc. Manuel Tur, em coprodução com As Boas Raparigas… (2009); História de Amor (Últimos Capítulos), de Jean­‑Luc Lagarce, enc. Tiago Correia (2011); e os dois primeiros “fragmentos” do projeto Do Discurso Amoroso, encenações de Tiago Correia (2012). No âmbito do ciclo Novos Encenadores, promovido por Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura, Manuel Tur encenou O Amor é um Franco­‑Atirador, de Lola Arias, e Tiago Correia encenou Gaspar, a partir de Kaspar, de Peter Handke, espetáculos apresentados no CAAA – Centro para os Assuntos da Arte e Arquitetura e, no caso do segundo, no Teatro Helena Sá e Costa. 23 ficha técnica tnsj agradecimentos coordenação de produção Polícia de Segurança Pública Maria João Teixeira Mr. Piano/Pianos – Rui Macedo assistência de produção Eunice Basto A Turma direção de palco (adjunto) http://aturma­‑ac.blogspot.pt Emanuel Pina [email protected] direção de cena Cátia Esteves Teatro Nacional São João maquinaria de cena Praça da Batalha António Quaresma 4000­‑102 Porto Carlos Barbosa T 22 340 19 00 Joel Santos luz Teatro Carlos Alberto Filipe Pinheiro Rua das Oliveiras, 43 Abílio Vinhas 4050­‑449 Porto Nuno Gonçalves T 22 340 19 00 José Rodrigues som Mosteiro de São Bento da Vitória João Oliveira Rua de São Bento da Vitória guarda­‑roupa e adereços 4050­‑543 Porto Elisabete Leão (coordenação) T 22 340 19 00 Teresa Batista (assistência) Nazaré Fernandes www.tnsj.pt Virgínia Pereira [email protected] Esperança Sousa (costureiras) Suzanne Veiga Gomes (estagiária) EDIÇÃO Isabel Pereira (aderecista Departamento de Edições do TNSJ de guarda­‑roupa) coordenação Dora Pereira Pedro Sobrado Guilherme Monteiro capa e modelo gráfico Nuno Guedes (aderecistas) Joana Monteiro operação de legendagem paginação Sofia Barbosa João Guedes fotografia APOIOS tnsj João Tuna impressão LiderGraf, Artes Gráficas, SA apoios à divulgação 24 Não é permitido filmar, gravar ou fotografar durante o espetáculo. O uso de telemóveis ou relógios com sinal sonoro é incómodo, tanto para os intérpretes como para os espectadores. 25