UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU FILOSOFIA SAULO NUNES MORILO DA SILVA HANS KELSEN E A ‘FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES’: A VALORAÇÃO E A CIÊNCIA JURÍDICA SÃO PAULO 2013 UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU FILOSOFIA SAULO NUNES MORILO DA SILVA HANS KELSEN E A ‘FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES’: A VALORAÇÃO E A CIÊNCIA JURÍDICA Dissertação apresentada ao curso de PósGraduação Stricto Sensu da Universidade São Judas Tadeu, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Gilberto Tedeia. SÃO PAULO 2013 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Universidade São Judas Tadeu Bibliotecário: Ricardo de Lima - CRB 8/7464 Silva, Saulo Nunes Morilo da S586h Hans Kelsen e a fundamentação da metafísica dos costumes : a valoração e a ciência jurídica / Saulo Nunes Morilo da Silva. - São Paulo, 2013. 90 f. : il. ; 30 cm. Orientador: Gilberto Tedeia. Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2013. 1. Kelsen, Hans, 1881-1973 - Filosofia. 2. Filosofia do direito. 3. Metafísica. I. Tedeia, Gilberto. II. Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título CDD 22 – 110 UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU FILOSOFIA SAULO NUNES MORILO DA SILVA HANS KELSEN E A ‘FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES’: A VALORAÇÃO E A CIÊNCIA JURÍDICA Dissertação apresentada ao curso de PósGraduação Stricto Sensu da Universidade São Judas Tadeu, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Aprovada em __________________ de 2013. _________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Gilberto Tedeia _________________________________________ Examinador(a): Prof. Dr. Paulo Jonas de Lima Piva _________________________________________ Examinador(a): Profª. Drª. Monique Hulshof Aos meus pais (Edson e Maria Lúcia), minha família (Midori e Gabriel Yuki), meu irmão Caio e aos amigos e colegas, pela paciência e incentivo, cada um à sua forma. AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Gilberto Tedeia, atual orientador, pela compreensão e suporte inspiradores nesta reta final. À Profª. Drª. Marília Melo Pisani, primeira orientadora, pela atenção e pelas sugestões motivadoras. Ao Prof. Dr. Floriano Jonas Cesar, por acreditar na ideia de um aluno inexperiente, mas que dedica todo o seu esforço e comprometimento neste trabalho. À Profª. Drª. Monique Hulshof, pelas orientações esclarecedoras e pontuais acerca de Immanuel Kant. “O ahimsa é a base da busca da Verdade. Todos os dias, percebo que a busca é vã, a menos que seja apoiada no ahimsa. É apropriado oferecer resistência e atacar um sistema, mas oferecer resistência e atacar seu autor é equivalente a oferecer resistência e atacar a si próprio. Pois somos todos farinha do mesmo saco, e filhos do mesmo Criador, e portanto os poderes divinos em nós são infinitos. Menosprezar um único ser humano é menosprezar aqueles pobres, e assim prejudicar não apenas aquele ser, mas também o mundo inteiro.” (Mohandas K. Gandhi). RESUMO SILVA, Saulo Nunes Morilo da. Hans Kelsen e a ‘Fundamentação da Metafísica dos Costumes’: a valoração e a ciência jurídica. Dissertação. Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia da Universidade São Judas Tadeu. São Paulo; p. 90, 2013. Esta dissertação apresenta uma descrição da interpretação kelseniana da obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes ([1785], 1960), de Kant. Começa descrevendo a forma pela qual Hans Kelsen expõe sua Teoria Pura do Direito ([1960], 1996), objetivando alcançar neutralidade para a ciência do direito, que até então via-se influenciada pela psicologia, sociologia, política e moral. Sob análise mais detida, verifica-se que na obra de Hans Kelsen aparecem inúmeras menções aos textos kantianos de filosofia prática, predominantemente sob a forma de objeções. Escolhidas duas dessas objeções, primeiro a relação das inclinações para a ação moral em Kant e depois a análise do imperativo categórico, a investigação passou a concentrar-se em demonstrar que a interpretação kelseniana configura uma leitura literal dos textos kantianos e que, de forma concomitante, empreende evidente esforço para enaltecer a ciência jurídica. As réplicas às duas questões de Kelsen foram dadas, respectivamente, pelo método de isolamento das inclinações de Kant e pela demonstração de que Kelsen não compreendeu de forma correta o sentido de máxima usado para o imperativo categórico. Resultou que a proposta da moral e por consequência, do direito kantianos poderiam contribuir de algum modo ao direito atual, de modo a permitir sua valoração sem que a jurisprudência perca sua característica de ciência. Para isso serviu a leitura contemporânea de Kant a partir do uso público da razão, onde valores universalmente válidos, compartilháveis e adotáveis por todos os seres racionais, possam constituir princípios determinantes do pensamento e da ação. Palavras-chave: Kant, Kelsen, direito, moral. ABSTRACT SILVA, Saulo Nunes Morilo da. Hans Kelsen and the ‘Groundwork of the Metaphysics of Morals’: the assessment and the legal science. Dissertation. Postgraduation Course Stricto Sensu in Philosophy from the São Judas Tadeu University. São Paulo; p. 90, 2013. This dissertation presents a description of Kelsen’s interpretation from the kantian’s work Groundwork of the Metaphysics of Morals (1785). It starts describing the way in which Hans Kelsen explains his theory, aiming to achieve neutrality for the science of law, which until then was itself influenced by psychology, sociology, politics and morality. Under closer analysis, it seems that in Hans Kelsen’s work appear many references to the Kant's practical philosophy texts, predominantly under objections. Having chosen two of these objections, first the relation of the inclinations to the moral action in Kant and afterwards the analysis of the categorical imperative, the research have concentrated on demonstrating that the kelsenian interpretation configures a literal reading of the kantian texts and that, concomitantly, undertakes apparent effort to enhance the legal science. The answers to both Kelsen’s questions were given, respectively, by the Kant’s method of isolation from the inclinations and the demonstration that Kelsen did not understand correctly the meaning of maxim used to the categorical imperative. The result is that the kantian proposal of morality and in consequence, of the law, could contribute in some way to the current law, allowing its valuation without the jurisprudence losing its characteristic of science. For this purpose, a contemporary reading of Kant starting of the public use of reason served, where standards with universal validity, shareable and adoptable by all rational beings, may constitute determinants principles of thought and action. Keywords: Kant, Kelsen, law, moral. SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................. 9 1. A TEORIA PURA DO DIREITO (1960) DE HANS KELSEN .................. 12 1.1. Teoria Pura do Direito (1960): linhas gerais da obra ........................... 12 1.1.1. Direito e Natureza............................................................................. 15 1.1.2. Direito e Ciência ............................................................................... 24 2. KELSEN, UM LEITOR DE KANT ........................................................... 32 2.1. Direito e Moral na Teoria Pura do Direito............................................. 32 2.2. O papel das inclinações para a ação moral segundo Hans Kelsen...... 35 2.3. O imperativo categórico de Kant: Kelsen e o problema das máximas 39 3. KELSEN À LUZ DE KANT....................................................................... 44 3.1. A Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785): valor moral da ação .................................................................................................................. 44 3.1.1. As inclinações e o método de isolamento de Immanuel Kant........ 47 3.1.2. O imperativo categórico kantiano e a máxima .............................. 52 3.2. Uma leitura contemporânea de Kant: Onora O’Neill e a importância do uso público da razão................................................................................... 68 3.3. O direito e a ciência jurídica: uma valoração ponderada ................... 74 CONCLUSÃO ................................................................................................. 85 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................... 88 9 INTRODUÇÃO Há muito tempo discute-se sobre a moralidade, enquanto ligada aos temas direito e justiça. Nosso foco é procurar entender o posicionamento desse pensador e jurista austríaco do período de transição dos séculos XIX e XX, chamado Hans Kelsen, acerca da interpretação que faz da Fundamentação da Metafísica dos Costumes ([1785], 1960). O problema é de difícil abordagem, uma vez que trata da argumentação sobre a existência (ou inexistência) de uma separação entre o direito e a moral. Com o fim de localizar um ponto específico dentro de todos os temas desenvolvidos por Hans Kelsen, a análise principal seguirá uma obra específica - a Teoria Pura do Direito sob sua útima edição, 1960 - porque Kelsen, em constante amadurecimento de suas posições, reviu alguns pontos de sua teoria nesta edição. A Teoria Pura do Direito ([1960], 1996) é uma obra de grande importância tanto para os filósofos do direito quanto para os juristas, pois o principal objetivo de Hans Kelsen era criar uma teoria do direito que tivesse sua própria metodologia, que fosse capaz de estudar seu objeto – o direito, sob a forma das normas jurídicas - sem a interferência de nenhuma outra área do conhecimento. Ele procurava dar autonomia à ciência jurídica.1 O pensamento kelseniano foi estudado por diversos autores2 e sua teoria jurídica, inovadora para a época, foi muito divulgada, contando até com a publicação de diversos artigos sobre direito internacional, uma matéria jurídica que foi a dedicação de Hans Kelsen até antes de falecer, em 1973. Para a construção da análise a que nos propusemos, procuramos trabalhar com três capítulos, baseados no diálogo entre o raciocínio jusfilosófico de Hans Kelsen e a teoria moral Immanuel Kant. 1 Eis uma breve passagem nas palavras do autor: “Quando a si própria se designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental (KELSEN, Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado, 5ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 1).” 2 Exemplos: Norberto Bobbio, Mario Giuseppe Losano (ambos italianos); Miguel Reale, Fábio Ulhôa Coelho e Tércio Sampaio Ferraz Junior (brasileiros), Eric Engle (jurista alemão contemporâneo), Luís Recaséns Siches (jurista espanhol naturalizado mexicano). 10 O nosso primeiro capítulo destaca a estrutura teórica de Kelsen e sua argumentação em torno da necessidade de firmar a ciência jurídica sob uma pureza metodológica, extraindo seu conhecimento a partir das normas jurídicas, que têm um fundamento de validade no ordenamento chamado “norma fundamental”. A Teoria Pura do Direito surgiu num contexto científico em que a pureza metodológica era posta em questão, doravante será demonstrado que Kelsen adotou o pensamento de Weber sobre a neutralidade científica como influência para elaborar sua teoria do Direito (cf. LOSANO, 1998, p. X e XI). Hans Kelsen trata de direito e de moral descrevendo suas relações a partir de uma análise sobre a valoração das normas jurídicas e sobre a relatividade da moral. Partindo de uma consideração maior, que é a relação entre o direito e a moral, ele começa a reduzir a investigação até chegar a alguns problemas que impedem uma análise objetiva do direito. Em diversas passagens, é diretamente com a moral kantiana que Kelsen dialoga, procurando afastar a plausibilidade da teoria criada por Immanuel Kant. É precisamente em torno desse diálogo que esta pesquisa se detém. Tomado como pressuposto que a ciência jurídica possui seu próprio objeto e não admite interferências políticas, sociológicas e nem da psicologia, a consequência foi Kelsen esforçar-se para afastar o direito da moral - dedicou um capítulo inteiro e um apêndice à obra para este fim. Desta discussão extraímos assunto para nosso segundo capítulo, em que apresentamos como Kelsen interpreta a Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Optamos por duas passagens em que Kelsen traça objeções relacionadas à moral kantiana: a necessidade de contrariar as inclinações para o homem agir moralmente e a análise do imperativo categórico kantiano, considerado uma fórmula vazia de conteúdo. A suspeita gira em torno da literalidade da interpretação kelseniana, sem a correta correspondência com os conceitos kantianos de filosofia prática. O terceiro capítulo divide-se em dois objetivos, ligados aos desdobramentos da análise kelseniana, onde propomos inicialmente explicar onde Kelsen equivocou-se fazendo uso da literalidade sobre os temas apontados, detalhando o significado de máxima na filosofia prática de Kant e mostrando o papel das inclinações no momento de o ser racional determinar seu princípio de ação. Posteriormente, trazemos para debate uma possibilidade de leitura kantiana que se adequa às exigências da ciência jurídica, criando um meio de considerá-la sem que fique restrita à Teoria Pura do Direito, ou seja, que tenha por objeto as normas jurídicas e que permita a valoração sobre este objeto de estudo, a fim de adequá-la ao meio empírico, ao convívio social, pois sua função, segundo Kant, consiste em regular as liberdades de todos os 11 indivíduos. Por fim, tentaremos adiante concluir com um posicionamento sobre esta "leitura" que Kelsen faz da moral. No entanto, de antemão, pode-se observar que apesar das suas contribuições teóricas, a teoria kelseniana restou superada igualmente a teoria de Kant, porém agora elas agregam novos valores à ciência jurídica, na condição de a ciência ser revista sob um objetivo mais operante no aprimoramento da regulação do convívio social, seu fim primordial. 12 1. A TEORIA PURA DO DIREITO (1960) DE HANS KELSEN 1.1. Teoria Pura do Direito (1960): linhas gerais da obra A apresentação procurará situar nosso problema filosófico dentro da extensa obra Teoria Pura do Direito. Inicialmente, as ideias serão apresentadas a partir dos capítulos Direito e Natureza (Capítulo I) e Direito e Ciência (Capítulo III), estes suficientes para entender as linhas gerais da obra e o motivo de Kelsen fazer a separação entre o direito e a moral. A exposição de Direito e Moral (Capítulo II) será feita em nosso segundo capítulo, juntamente com a discussão levantada por Kelsen sobre o imperativo categórico kantiano.3 Torna-se necessário, no entanto, alertar que os demais capítulos da obra - quais sejam: dinâmica e estática jurídicas, da relação entre direito e estado, da relação entre estado e direito internacional e da teoria de interpretação das normas jurídicas -, contêm outros temas que não serão estudados agora.4 Nosso objetivo é voltar a atenção para a separação entre direito e moral feita por Kelsen diante da teoria kantiana, incluindo especificamente as interpretações feitas por ele sobre algumas citações de Kant, propondo adiante alguns desdobramentos. A análise dos dois prefácios da Teoria Pura do Direito possibilitará identificarmos preliminarmente as intenções do autor e como ele apresenta seu pensamento relacionando-o ao conceito de “pureza” da sua teoria. O primeiro prefácio, à primeira edição, foi escrito em Genebra, em 1934. Aqui há a exposição do resultado de duas décadas de um empreendimento pessoal do autor para criação de uma ciência jurídica. Sustenta ele que seu intento foi “elevar a jurisprudência” e tentar buscar nesta ciência “objetividade e exatidão” (cf. KELSEN, 1996, p. XI). Kelsen faz também um relato acerca de oposições à sua teoria e atribui isso 3 O fato de não seguirmos a sequência original da obra e apartarmos a exposição de Direito e Moral foi pensado para possibilitar uma análise detalhada dos argumentos. 4 Caso entrássemos no estudo daqueles demais capítulos da Teoria Pura do Direito tudo tornar-se-ia uma mera exposição da obra. 13 principalmente à existência de um sincretismo entre política e direito, o que dificulta torná-lo objeto da ciência. Em suas palavras: A luta não se trava na verdade – como as aparências sugerem – pela posição da Jurisprudência dentro da ciência e pelas consequências que daí resultam, mas pela relação entre a ciência jurídica e a política, pela rigorosa separação entre uma e outra, pela renúncia ao enraizado costume de, em nome da ciência do Direito e, portanto, fazendo apelo a uma instância objetiva, advogar postulados políticos que apenas podem ter um caráter altamente subjetivo, mesmo que surjam, com a melhor das boas fés, como ideal de uma religião, de uma nação ou de uma classe (Ibidem, p. XII). Como demonstração da “pureza” de sua teoria, ele elenca uma série de críticas recebidas, estas formuladas por posicionamentos até antagônicos: Os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu espírito é – asseguram muitos – aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros crêem reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do Estado e do Direito. E não falta também quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta. Em suma, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não se tenha ainda tornado suspeita (Ibidem, p. XIII). O objetivo de Hans Kelsen era criar uma teoria científica do direito, com sua própria metodologia e princípios. A discussão científica (quanto às ciências sociais) da época girava em torno de duas correntes filosóficas alemãs em oposição: a primeira, liderada por Gustav Schmoller5, admitia a emissão e a fundamentação de juízos de valor sobre as ciências, enquanto a segunda corrente, guiada por Max Weber6, empregava esforço para distanciar-se da valoração e aplicar-se apenas na descrição científica de forma objetiva. O pensamento kelseniano criou uma forma de explicar a organização e a relação hierárquica das normas jurídicas. Segundo Miguel Reale (1985, p. 26): [...] O que caracteriza a ciência, segundo Kelsen, é a neutralidade objetiva. [ ] Nesse ponto, Kelsen ia coincidir com outro grande seu contemporâneo que foi Max Weber, também pregador de um conhecimento científico ‘a-valorativo’, até mesmo no plano das ciências humanas (grifo do autor). 5 6 Gustav Friedrich von Schmoller (1838-1917), economista alemão. Karl Emil Maximilian Weber (1864-1920), jurista e economista alemão, ícone da sociologia. 14 Fazendo suas observações quanto à posição metodológica kelseniana, Machado (2009, p. 12) resume: É evidente que, para KELSEN, além da <<Teoria Pura do Direito>> e do sociologismo jurídico, não pode haver qualquer outra forma de conhecimento <<científico>> do Direito. Logo, também para ele, como para os sequazes da escola sociológica, a dogmática tradicional mais não poderá ser do que uma arte ou técnica sem valor científico. A refutação deste ponto de vista exigirá a prova da <<cientificidade>> de outros modos possíveis de conhecimento além do das ciências exactas – ou a refutação do conceito de <<ciência>> em que ele se funda (grifos do autor). Kelsen esclarece, por fim, que o postulado metodológico (ciência isenta de juízos de valor) exposto em sua teoria não pode ser posto em dúvida, mas sim a possibilidade da sua realização. Diante do momento turbulento em que sua obra foi publicada, exatamente no período entre as duas guerras mundiais, o direito servia-se de justificativa para atrocidades e manobras políticas legalmente autorizadas, vê-se que esta passagem corrobora suas ideias: [...] E isto sucede particularmente na nossa época, que a guerra mundial e suas consequências fizeram verdadeiramente saltar dos eixos, em que as bases da vida social foram profundamente abaladas e, por isso, as oposições dentro dos Estados se aguçaram até o extremo limite. O ideal de uma ciência objetiva do Direito e do Estado só num período de equilíbrio social pode aspirar a um reconhecimento generalizado. Assim, pois, nada parece hoje mais extemporâneo que uma teoria do Direito que quer manter sua pureza [...] (KELSEN, 1996, p. XIV). À época da segunda edição (de 1960), Kelsen escreve um prefácio onde logo esclarece que seu propósito é resolver os problemas da pureza metodológica propostos na primeira edição e tentar de forma mais acurada posicionar a ciência jurídica dentre as outras ciências. Ciente das limitações da sua teoria, o autor aqui reconhece que, diante da multiplicidade dos fenômenos jurídicos, com uma diversidade de ordenamentos positivos, os conceitos apresentados pela Teoria Pura do Direito podem ser “demasiado estreitos, outros demasiado latos”; Kelsen demonstra a humilde posição de agradecimento diante das críticas sobre a sua tentativa de desenvolver a sua teoria, que reconhece não ser definitiva. Afirma ainda que mesmo depois da segunda guerra mundial, a ciência jurídica: [...] esbarra com a pertinaz oposição de todos aqueles que, desprezando os limites entre ciência e política, prescrevem ao Direito, em nome daquela, um determinado conteúdo, quer dizer, crêem poder definir um Direito justo e, conseqüentemente, um critério de valor para o Direito positivo. É especialmente a renascida metafísica do Direito natural que, com esta pretensão, sai a opor-se ao positivismo jurídico (Ibidem, p. XVIII). 15 A discussão mais aprofundada entre justiça e direito foi desenvolvida no apêndice à Teoria Pura do Direito que, reiteramos, embora constasse da edição alemã, foi publicado em separado na língua portuguesa, com duas traduções mais conhecidas: A Justiça e o Direito Natural ([1960], 2009) e O Problema da Justiça ([1960], 1998), cujas referências constam em nossa bibliografia. Partiremos agora para a análise dos capítulos inicialmente indicados para um melhor entendimento das questões a serem levantadas. 1.1.1. Direito e Natureza O capítulo I da Teoria Pura o Direito inicia-se com a explicação das intenções da obra; trabalha também com diversos conceitos, tais como: “norma”, “ordem social” e “ordem jurídica”. Nosso objetivo é apresentar a distinção feita entre direito, moral (que estudam o dever-ser), ciências sociais e naturais (que estudam o ser) e, por fim, introduzir na discussão o conceito de norma fundamental, que ao longo do texto será uma referência para entender a Teoria Pura do Direito. Os desdobramentos que traremos para discussão advirão da metodologia aplicada por Kelsen relativa à neutralidade ou “pureza” do direito. Kelsen denomina sua Teoria Pura do Direito uma teoria do direito positivo, que não leva em consideração as normas ou o direito em suas particularidades, e sim a sua forma geral. Seu objetivo primeiro é a identificação do seu objeto – o direito, preocupando-se não em como ele deve ser e sim no que consiste (o que é o direito e como ele se apresenta). Quando faz uso do termo “teoria pura”, estabelece a metodologia utilizada. Isso significa que procura antes de tudo determinar o objeto da ciência jurídica e, para estudá-lo, evita qualquer interferência de elementos de outras áreas do conhecimento - algo que, segundo Kelsen, não se realizava porque a ciência jurídica tradicional (desenvolvida entre os séculos XIX e XX) confundia seu objeto de estudo com os da psicologia, da sociologia, da ética e da teoria política. Por isso diz: “É ciência jurídica e não política do Direito (KELSEN, 1996, p. 1).” Para entender o que é o objeto da ciência jurídica - a ciência que estuda o direito, sendo este um sistema de normas reguladoras da conduta dos homens -, Kelsen explica as características de uma norma jurídica. Para isso, norma é tomada como “atos humanos que intencionalmente se dirigem à conduta de outrem”, ou seja, um ato que estipula que alguém 16 deve agir de determinada maneira. Este dever, porém, não é considerado apenas como uma ordem ou comando: para que seja uma norma jurídica, dever também significa “permitir ou conferir poder (competência), inclusive o de ele próprio estabelecer normas” para determinado ato humano. Daí concluímos que norma “[...] é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém (Ibidem, p. 5 e 6).” Sendo assim, é importante distinguir que o dever-ser da norma, em outras palavras, a conduta prescrita pela norma, não se confunde com o fato, pois este é um ser. A relação que pode haver entre ambos é somente a de correspondência. São dois campos diferentes de análise. Continua explicando: [...] A expressão “conduta devida” é ambígua. Tanto pode designar a conduta que, na norma, enquanto conteúdo da norma, é posta como devida, e que deve ser mesmo quando se não ponha em ser ou realize; como também a conduta que de fato é ou se realiza e corresponde ao conteúdo da norma. Quando se diz que o dever-ser é “dirigido” a um ser, a norma a uma conduta fática (efetiva), quer-se significar a conduta de fato que corresponde ao conteúdo da norma, o conteúdo do ser que equivale ao conteúdo do dever-ser, a conduta em ser que equivale à conduta posta na norma como devida (devendo ser) – mas que se não identifica com ela, por força da diversidade do modus: ser, num caso, dever-ser, no outro (Ibidem, p. 7). Em suma, o que vincula este dever-ser a uma obrigatoriedade não é o ato de vontade de quem a elaborou, porque até o processo de elaboração de normas é regulado por outras normas, mas sim uma norma superior chamada de norma fundamental, que atribui a alguém a competência ou poder para tanto. Assim, uma norma provém de um ato legislativo; esse ato é um dever-ser - subjetiva e objetivamente - correspondente a uma norma fundamental que estabelece que devemos nos conduzir conforme os preceitos de uma constituição que, por derradeiro, regula (normatiza) o processo legislativo. Para uma melhor compreensão, Kelsen traz o exemplo da diferença entre a exigência de um pagamento de uma soma em dinheiro por um gângster e por um funcionário de finanças. Subjetivamente, ambos são atos de indivíduos que intencionalmente visam a conduta de outro, mas objetivamente, só a ordem do funcionário de finanças é fundada numa norma válida. A norma fundamental é um pressuposto que funda a validade objetiva das normas e da ordem jurídica (Ibidem, p. 9). Norberto Bobbio, estudioso da teoria kelseniana, traz diversos esclarecimentos acerca da norma fundamental. Para ele a norma fundamental auxilia na definição do escalonamento 17 das normas e na unidade do ordenamento jurídico: “A norma fundamental é o termo unificador das normas que compõem um ordenamento jurídico. Sem uma norma fundamental, as normas de que falamos até agora constituiriam um amontoado, não um ordenamento (BOBBIO, 1997, p. 49).”. Seu conceito de norma fundamental é relacionado diretamente com o poder constituinte, através da seguinte construção: a norma jurídica, por impor obrigações, pressupõe um poder (poder normativo) - no escalonamento hierárquico do ordenamento jurídico as normas constitucionais estão no topo e derivam do poder constituinte (o poder último) -, por sua vez, a norma fundamental atribui competência ao poder constituinte para produzir normas jurídicas e dá validade a todas as normas do sistema. No entanto, a norma fundamental é um pressuposto para fundar o sistema normativo, assim, é uma norma última, não expressa, de onde deriva o poder constituinte. Justificando seu posicionamento: “O fato de essa norma não ser expressa não significa que não exista: a ela nos referimos como o fundamento subentendido da legitimidade de todo o sistema (Ibidem, p. 60).” Ele ainda assevera que a função que a norma fundamental exerce é a mesma de um postulado científico: [...] Os postulados são colocados por convenção ou por uma pretensa evidência destes; o mesmo se pode dizer da norma fundamental: ela é uma convenção ou, se quisermos, uma proposição evidente que é posta no vértice do sistema para que a ela se possam reconduzir todas as demais normas (Ibidem, p. 62). Em conclusão, Bobbio (op. cit., p. 63 e 64) afirma que tentar descobrir o que está além da norma fundamental (descobrir seu fundamento) é um problema estéril e entrar nessa polêmica é sair do sistema jurídico, portanto não cabe à ciência jurídica. Prosseguindo sobre a norma fundamental, retomamos o pensamento de Hans Kelsen (1996, p. 9), que segue dizendo: [...] Se o ato legislativo, que subjetivamente tem o sentido de dever-ser, tem também objetivamente este sentido, quer dizer, tem o sentido de uma norma válida, é porque a Constituição empresta ao ato legislativo este sentido objetivo. O ato criador da Constituição, por seu turno, tem sentido normativo, não só subjetiva como objetivamente, desde que se pressuponha que nos devemos conduzir como o autor da Constituição preceitua. Se um homem que se encontra em estado de necessidade exige de um outro que lhe preste auxílio, o sentido subjetivo da sua pretensão é que o outro lhe deve prestar auxílio. Porém, uma norma objetivamente válida que vincule ou obrigue o outro só existe, nesta hipótese, se vale a norma geral do amor do próximo, eventualmente estabelecida pelo fundador de uma religião. E esta, por seu turno, apenas vale como objetivamente vinculante quando se pressupõe que nos devemos conduzir como o fundador da religião preceituou. 18 Para Kelsen, os costumes podem também estabelecer normas jurídicas, ou seja, são fonte de normas jurídicas e, desta forma, uma norma superior assume o costume como fato produtor de normas. Assim, o sentido subjetivo7 dos atos constitutivos do costume é tomado como uma norma objetivamente válida. Ainda seguindo este raciocínio, subjetivamente, tanto as normas postas (e, neste sentido, positivas8) do costume quanto as normas do processo legislativo são idênticas. Do costume pode-se extrair tanto normas morais como normas jurídicas. “[...] As normas jurídicas são produzidas pelo costume se a Constituição da comunidade assume o costume – um costume qualificado – como fato criador de Direito (Ibidem, p. 10).” Conclui-se, seguindo este raciocínio, que a norma fundamental é o que valida objetivamente o sistema de normas jurídicas. Mas qual a relação das normas jurídicas com as condutas que elas prescrevem? Entramos aqui a relação da norma com o valor, ou melhor, da correspondência (ou não) da norma com a eventualidade do acontecimento de um fato que ela prescreva. De início, devemos tomar como base a norma fundamental, a medida de valor para que uma conduta seja considerada correspondente a uma norma jurídica. Utilizar a medida da norma fundamental para formulação de um juízo é dizer que a conduta correspondente a essa medida é uma conduta boa e que uma conduta contrária a esta medida é má, portanto, isso é um juízo relativo (para uns, diante das condutas, as normas legisladas pelos homens podem ser boas, para outros não). Isso é diferente de um juízo de valor sem se considerar uma norma objetivamente válida, porque se trata aí de um juízo sobre um fato da ordem do ser, existente no tempo e no espaço. Para Kelsen, só um fato da ordem do ser pode considerar-se positivo ou negativo (valioso ou desvalioso), pois é a realidade que se avalia9. As normas estabelecidas por ato de vontade humana, como o direito, são distintas de normas estabelecidas por ato de uma vontade supra-humana (procedentes de Deus, por exemplo), pois aquelas têm valor relativo, enquanto estas têm valor absoluto: [...] as normas legisladas pelos homens – e não por uma autoridade supra-humana – apenas constituem valores relativos. Quer isto dizer que a vigência de uma norma desta espécie que prescreva uma determinada conduta como obrigatória, bem como 7 Neste caso, o sentido subjetivo é a vontade do grupo em que os indivíduos conduzam-se de uma determinada maneira. 8 A norma efetivamente posta, ou positiva, é distinta da norma pensada, ou pressuposta no pensamento (cf. KELSEN, 1996, p. 9). 9 Para melhor entendimento da discussão travada sobre a incidência de juízos de valor sobre a norma jurídica e a conduta correspondente, vide bibliografia: A Justiça e o Direito Natural ([1960], 2009) e O Problema da Justiça ([1960], 1998). 19 a do valor por ela constituído, não exclui a possibilidade de vigência de uma outra norma que prescreva a conduta oposta e constitua um valor oposto. Assim, a norma que proíbe o suicídio ou a mentira em todas e quaisquer circunstâncias pode valer o mesmo que a norma que, em certas circunstâncias, permita ou até prescreva o suicídio ou a mentira, sem que seja possível demonstrar, por via racional, que apenas uma pode ser considerada como válida e não a outra. Podemos considerar como válida quer uma quer outra – mas não as duas ao mesmo tempo. [ ] Quando, porém, nos representamos a norma constitutiva de certo valor e que prescreve determinada conduta como procedente de uma autoridade supra-humana, de Deus ou da natureza criada por Deus, ela apresenta-se-nos com a pretensão de excluir a possibilidade de vigência (validade) de uma norma que prescreva a conduta oposta. Qualifica-se de absoluto o valor constituído por uma tal norma, em contraposição ao valor constituído através de uma norma legislada por um ato de vontade humana. Uma teoria científica dos valores apenas toma em consideração, no entanto, as normas estabelecidas por atos de vontade humana e os valores por ela constituídos (Ibidem, p. 19 e 20). Desta forma, um juízo sobre uma norma (que é um dever-ser) é de validade ou invalidade e não de verdade ou falsidade, haja vista que este último tipo de juízo é sobre um ser (realidade). Ainda: para julgarmos algo como “bom” ou “mau” há dois tipos de valor - em sentido subjetivo, o objeto relaciona-se com o desejo ou vontade de uma pessoa; em sentido objetivo, uma conduta relaciona-se com uma norma objetivamente válida (Ibidem, p. 21 e 22). Engle (2008, p. 47) tem um entendimento sobre este fundamento jurídico apresentado por Kelsen e sustenta, em oposição, que de fato existem princípios morais universais: Desta forma, diferentemente de Kelsen, percebo o elemento fundamental da lei não como ‘normas’ hieraquicamente ordenadas. Em vez disso, vejo proposições condicionais potencialmente em conflito com imperativos de execução contingente, como dois átomos da lei. Entretanto estas proposições condicionais e imperativas são apenas lei acadêmica – lei nos livros. Elas são previsões teóricas. Para serem consideradas ‘lei prática’ – lei positiva efetiva – elas têm de ser executáveis. Isto esclarece a distinção entre lei natural, que nada mais é do que a lei do mais forte, e lei positiva, que são proposições arbitrárias do legislador. [...] [ ] [...] Este artigo funda-se na premissa de que há de fato princípios morais universais: assim, pode haver justiça natural, entretanto, ele também considera a visão de que não há contudo uma conexão inevitável entre direito natural e justiça natural – princípios da justiça natural são normativos, não nomotéticos (tradução nossa).10 10 “Thus, unlike Kelsen, I see the fundamental element of law not as hierarchically ordered ‘norms’. Instead I see potentially conflicting conditional statements with contingent enforcement imperatives as two atoms of law. However those conditional and imperative statements are only scholarly law – law in the books. They are theoretical predictions. To be considered ‘practical law’ – effective positive law – they must be enforced. This highlights the distinction between natural law, which is nothing more or less than the law of the strongest, and positive law, which is the arbitrary statements of a legislator. […] [ ] […] This paper is founded on the premise that there are indeed universal moral principles: thus, there can be a natural justice; however, it also takes the view that there is nonetheless no inevitable connection between natural law and natural justice – principles of natural justice are normative, not nomothetic (ENGLE, Eric. Law as Lex 20 Para Kelsen (1996) o direito e a moral são considerados ordens sociais que regulam a conduta dos homens na medida em que esta conduta está em relação com outras pessoas, mediata (contra seu patrimônio) ou imediatamente (contra a pessoa). A forma pela qual as ordens sociais regulam as condutas humanas é ligar um prêmio ou um castigo a determinadas condutas prescritas ou proibidas. O prêmio ou castigo denominam-se sanção em sentido amplo e, quando considerado isoladamente, o castigo (ou pena) denomina-se sanção em sentido estrito. A pena, não obstante, deve ser aplicada independentemente da vontade do atingido e, em existindo resistência, recorre-se à força física - o que dá à sanção um caráter coercitivo, do qual o direito se utiliza. Nessa ligação entre a conduta e a atribuição de uma consequência extraímos o conceito do princípio retributivo: “[...] O princípio que conduz a reagir a uma determinada conduta com um prêmio ou uma pena é o princípio retributivo. (Ibidem, p. 26)”. Bobbio (1997, p. 66), considerando o direito fundado sobre o poder coercitivo (em última instância) e, sendo este impensável sem o exercício da força, reconhece que ela é necessária para a sua realização; por isso, conceitua direito como um “conjunto de regras com eficácia reforçada”. Kelsen (1996, p. 30 e 31) conclui que para distinção das ordens sociais não devemos levar em conta se elas estatuem sanções ou não, mas sim os tipos de sanções que são estatuídas. Essas podem ser transcendentes ou socialmente imanentes. As primeiras provêm de uma instância supra-humana. As segundas são realizadas e executadas por homens, membros de uma sociedade. É esse o tipo de sanção que o direito contém. O direito, conceitualmente, trata-se de uma ordem de conduta humana: [...] Uma “ordem” é um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade. O fundamento de validade de uma ordem normativa é – como veremos – uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem. Uma norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence a uma determinada ordem jurídica quando a sua validade se funda na norma fundamental dessa ordem (Ibidem, p. 33). v. Ius. In: The Journal Jurisprudence, Volume One, “What is Law?”. Austrália, Melbourne: The Elias Clark Group, 2008, p. 47, tradução nossa).” 21 Quanto à coação, há ainda esclarecimentos pontuais onde, resumidamente: o direito não é ordem coativa no sentido psíquico (coação psíquica para agir), pois esse critério não o distingue da religião ou da moral e sim, é uma ordem coativa no sentido de privar os indivíduos dos seus direitos (com emprego da força física quando necessário); a função essencial do direito é a segurança coletiva, visando garantir a ordem social. Apesar de que podem também existir atos coercitivos que não têm o caráter de sanções; como exemplo: a prisão preventiva, onde o ato de coação não é uma reação a um ato ilícito, mas sim a uma suspeita de tal conduta; o internamento compulsivo de doentes mentais em asilos ou hospitais psiquiátricos; o extermínio de animais domésticos portadores de doenças contagiosas; a implosão de edifícios ameaçados de ruína e os atos de Estados totalitários que optam por negar certos direitos (como o direito à vida) a determinadas pessoas simplesmente por pertencerem a um grupo ou a uma etnia considerada indesejável – atos pertencentes às ordens jurídicas desses Estados, sendo, no entanto, condenáveis moralmente. Extrinsecamente tais atos são restritivos de liberdade, contudo seu pressuposto não é um ato ilícito ou delito juridicamente prefixado, por isso são considerados atos coercitivos sem o caráter de sanções (Ibidem, p. 40 a 45).11 Como uma ordem coativa, há espaço para liberdade no Direito? Segundo Kelsen, a liberdade é juridicamente garantida. As condutas dos indivíduos são juridicamente permitidas quando não são juridicamente proibidas; melhor dizendo, quando o direito não liga a uma determinada conduta uma sanção e também não proíbe a conduta oposta, o indivíduo é livre para exercer sua liberdade onde a lei não regulamentou - a conduta é permitida num sentido negativo. Há também as liberdades constitucionalmente garantidas, existentes quando a ordem jurídica proíbe intrusões neste tipo de liberdade: [...] Trata-se de preceitos de Direito constitucional através dos quais a competência do órgão legislativo é limitada por forma a não lhe ser permitido – ou apenas o ser sob condições muito especiais – editar normas que prescrevam ou proíbam aos indivíduos uma conduta de determinada espécie, como a prática da religião, a expressão de opiniões e outras condutas análogas (Ibidem, p. 48). O direito é tomado como uma ordem normativa de coação. A questão decisiva, segundo Kelsen, é saber qual o fundamento de validade considerado como o sentido objetivo de um ato, em outras palavras, o que diferencia uma ordem da norma jurídica da ordem de um 11 Nestas discussões o autor esmiuça ainda mais as diferenças entre as sanções e fundamenta o Direito como uma ordem coativa. Por considerarmos que os conceitos apresentados até aqui cumprem a finalidade de dar uma ideia básica sobre estes assuntos, justificamos que tais temas não serão aprofundados nesta exposição. 22 bando de salteadores de estrada12. Afinal, os dois representam um dever-ser subjetivamente (ambas as ordens têm como escopo fazer com que um ou mais indivíduos conduzam-se de uma determinada maneira), contudo, só a ordem jurídica “vincula” (é uma norma objetivamente válida): [...] Tratando-se de uma Constituição que é historicamente a primeira, tal só é possível se pressupusermos que os indivíduos se devem conduzir de acordo com o sentido subjetivo deste ato, que devem ser executados atos de coerção sob os pressupostos fixados e pela forma estabelecida nas normas que caracterizamos como Constituição, quer dizer, desde que pressuponhamos uma norma por força da qual o ato a interpretar como ato constituinte seja de considerar como um ato criador de normas objetivamente válidas e os indivíduos que põem este ato como autoridade constitucional. Esta norma é – como mais tarde se verá melhor – a norma fundamental de uma ordem jurídica estadual. Esta não é uma norma posta através de um ato jurídico positivo, mas – como o revela uma análise dos nosso juízos jurídicos – uma norma pressuposta, pressuposta sempre que o ato em questão seja de entender como ato constituinte, como ato criador da Constituição, e os atos postos com fundamento nesta Constituição como atos jurídicos. Constatar esta pressuposição é uma função essencial da ciência jurídica. Em tal pressuposição reside o último fundamento da validade da ordem jurídica, fundamento esse que, no entanto, pela sua mesma essência, é um fundamento tão-somente condicional e, neste sentido, hipotético (Ibidem, p. 51, grifos do autor). Se não tomarmos como pressuposto a norma fundamental, o direito prende-se ao conceito de justiça, o que para Kelsen é equivocado, porque o juízo de que uma ordem social é justa tem um caráter relativo. O direito ser justo para um capitalista não implica no direito ser justo para um socialista e vice-versa. Sob a ótica da Teoria Pura do Direito, uma ordem jurídica coercitiva “injusta” é válida, desde que esteja sob um fundamento de validade objetiva - a norma fundamental. Importante ressaltar que o direito é uma ordem de coação. Partindo desta ideia, a fórmula para traduzir a norma fundamental de uma norma jurídica estadual é: [...] a coação de um indivíduo por outro deve ser praticada pela forma e sob os pressupostos fixados pela primeira Constituição histórica. A norma fundamental delega na primeira Constituição histórica a determinação do processo pelo qual se devem estabelecer as normas estatuidoras de atos de coação. Uma norma, para ser interpretada objetivamente como norma jurídica, tem de ser o sentido subjetivo de um ato posto por este processo – pelo processo conforme à norma fundamental – e tem de estatuir um ato de coação ou estar em essencial ligação com uma norma que o estatua (Ibidem, p. 56). 12 Este foi o exemplo utilizado pelo autor para ilustrar as características da ordem normativa de coação, (conforme notas 32 e 37 do capítulo I Direito e Natureza). A única diferença que Kelsen aponta é a de que, para Agostinho, o que diferencia a ordem jurídica da ordem de um bando de salteadores é o reconhecimento de um valor de Justiça, enquanto para ele é a norma fundamental (AGOSTINHO, Civitas Dei, IV, 4 apud KELSEN, 1996, p. 54). 23 A consequência de não se definir o direito como ordem de coação é um sincretismo das normas jurídicas com as morais. Se as ordens jurídicas modernas suprimissem o caráter coercitivo, o direito perderia a sua característica jurídica e “morreria”, portanto: [...] Se o Direito não fosse definido como ordem de coação mas apenas como ordem posta em conformidade com a norma fundamental e esta fosse formulada com o sentido de que as pessoas se devem conduzir, nas condições fixadas pela primeira Constituição histórica, tal como esta mesma Constituição determina, então poderiam existir normas jurídicas desprovidas de sanção, isto é, normas jurídicas que, sob determinados pressupostos, prescrevessem uma determinada conduta humana, sem que uma outra norma estatuísse uma sanção para a hipótese de a primeira não ser respeitada. Nessa hipótese, o sentido subjetivo de um ato posto em conformidade com a norma fundamental [...] seria juridicamente irrelevante. Nessa hipótese ainda, uma norma posta pelo legislador constitucional que prescrevesse uma determinada conduta humana sem ligar à conduta oposta um ato coercitivo – a título de sanção – só poderia ser distinguida de uma norma moral pela sua origem, e uma norma jurídica produzida pela via consuetudinária nem sequer poderia ser distinguida de uma norma de moral também produzida consuetudinariamente. Se o costume é considerado pela Constituição como fato produtor de normas jurídicas, então toda a Moral constituiria parte integrante da ordem jurídica, na medida em que as suas normas são efetivamente produzidas pela via consuetudinária (Ibidem, p. 59 e 60). As normas jurídicas que contenham a prescrição para produção de normas ou contenham uma permissão positiva são consideradas normas não-autônomas, porque têm validade apenas se consideradas em sua ligação com uma norma estatuidora de um ato de coerção. A finalidade da ciência jurídica é, por consequência, formular as proposições acerca das normas jurídicas: [...] Visto que uma ordem jurídica é uma ordem de coação no sentido que acaba de ser definido, pode ela ser descrita em proposições enunciando que, sob pressupostos determinados (determinados pela ordem jurídica), devem ser aplicados certos atos de coerção (determinados igualmente pela ordem jurídica) (Ibidem, p. 65). Percebe-se que Kelsen, em Direito e Natureza, busca alocar o estudo do direito num campo próprio, afastado do direito natural e da sociologia, estabelecendo o objeto de estudo da ciência jurídica – a norma jurídica – e seu fundamento de validade: a norma fundamental. Esta discussão parte de um pressuposto de debate que Kelsen coloca no início deste capítulo, relacionado à tentativa de situar melhor o direito no campo das ciências sociais – mas a delimitação ainda será definida pelo autor no Capítulo III Direito e Ciência e aqui é sutilmente anunciada: [...] põe-se logo a questão de saber se a ciência jurídica é uma ciência da natureza ou uma ciência social. Mas esta contraposição de natureza e sociedade não é possível sem mais, pois a sociedade, quando entendida como a real ou efetiva convivência 24 entre os homens, pode ser pensada como parte da vida em geral e, portanto, parte da natureza.[...] Se analisarmos qualquer do fatos que classificamos de jurídicos ou que têm qualquer conexão com o Direito [...], poderemos distinguir dois elementos: primeiro, um ato que se realiza no espaço e no tempo, sensorialmente perceptível, ou uma série de tais atos, uma manifestação externa de conduta humana; segundo, a sua significação jurídica, isto é, a significação que o ato tem do ponto de vista do Direito (KELSEN, op.cit., p. 2). Kelsen procura primeiro estabelecer que o ato jurídico tem seu próprio significado, ou seja, se auto-explica. Essa auto-explicação auxilia a entender que um ato pode significar subjetivamente algo, enquanto objetivamente - sob a ótica do direito – pode não ter o mesmo sentido. Com isso ele quer dizer que um ato jurídico diferencia-se de um fato da natureza pelo seu significado e não pela sua facticidade. Isso acontece através de uma interpretação normativa da realidade (o autor refere-se aqui à realidade como um fato da natureza, determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza), assim, tanto uma execução penal quanto um homicídio são o mesmo fato; não obstante, pela interpretação normativa, um homicídio pode ser diferenciado de uma execução penal por um exercício mental que interpreta a realidade em comparação com uma norma considerada válida (cf. KELSEN, op. cit., p. 4). Seguiremos agora ao estudo do capítulo Direito e Ciência, o que nos permite introduzir mais conceitos da teoria jurídica kelseniana e evitar digressões especialmente durante a exposição do capítulo Direito e Moral (alvo principal da investigação), que ficou por isso destacado para discussão posterior. 1.1.2. Direito e Ciência O capítulo III da Teoria Pura o Direito defende que a ciência jurídica possui um princípio próprio (princípio da imputação), que é diferente dos princípios das demais ciências sociais e das ciências naturais (princípio da causalidade), relacionando a isso temas como ideologia, história e liberdade. Desenvolve a estruturação das normas apresentando a “estática” e “dinâmica” jurídicas, e distingue também a “norma jurídica” da “proposição jurídica”, evitando confundir a atuação da ciência jurídica fora da sua dimensão lógica. Kelsen começa afirmando que o objeto da ciência jurídica é o direito, formado pelas normas jurídicas. Estas, por consequência, têm como conteúdo as condutas humanas; pode-se portanto afirmar que as condutas humanas só são objeto da ciência jurídica, enquanto relações 25 determinadas através de relações jurídicas. Com base no argumento acima, há duas teorias do direito, uma estática e uma dinâmica. O objeto da teoria estática é o direito enquanto “um sistema de normas em vigor” e o objeto da teoria dinâmica é o direito em movimento, em outras palavras, é o processo jurídico de produção e aplicação das normas jurídicas (Ibidem, p. 79). A ciência jurídica faz uma interpretação normativa das condutas humanas, pois elas são o conteúdo das normas jurídicas. A descrição científica é feita por meio de enunciados denominados proposições jurídicas; há a necessidade de distingui-las das normas jurídicas, que são mandamentos, ou imperativos: [...] Proposições jurídicas são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o sentido de uma ordem jurídica – nacional ou internacional – dada ao conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por esse ordenamento, devem intervir certas consequências pelo mesmo ordenamento determinadas. As normas jurídicas, por seu lado, não são juízos, isto é, enunciados sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas são antes, de açodo com o seu sentido, mandamentos e, como tais, comandos, imperativos. Mas não são apenas comandos, pois também são permissões e atribuições de poder ou competência (Ibidem, p. 80, grifos do autor). Os órgãos jurídicos (ou autoridades jurídicas) produzem as normas jurídicas, que são objeto das proposições (descritivas) da ciência jurídica, feitas pelo jurista (ou cientista jurídico). Percebendo assim que a norma jurídica (imperativo) prescreve condutas ligando às condutas opostas uma sanção, entende-se que a proposição jurídica apenas descreve o Direito, sem a prescrição de condutas tal como a norma jurídica. Infere-se deste raciocínio que uma norma jurídica pode assim ser válida ou inválida, enquanto a proposição jurídica pode ser verídica ou inverídica, ou mais: verdadeira ou falsa. Por seu caráter lógico, as proposições jurídicas, longe de serem supérfluas, auxiliam a ciência jurídica com a aplicação do princípio da não-contradição e com as regras de concludência de raciocínio quanto às normas jurídicas: [...] os princípios lógicos podem ser, se não direta, indiretamente, aplicados às normas jurídicas, na medida em que podem ser aplicados às proposições jurídicas que descrevem estas normas e que, por sua vez, podem ser verdadeiras ou falsas. Duas normas jurídicas contradizem-se e não podem, por isso, ser afirmadas simultaneamente como válidas quando as proposições jurídicas que as descrevem se contradizem; e uma norma jurídica pode ser deduzida de uma outra quando as proposições jurídicas que as descrevem podem entrar num silogismo lógico (Ibidem, p. 84). O direito pode ser delimitado diante das ciências naturais através do conceito de norma. A ciência jurídica é uma ciência normativa. As relações entre as condutas humanas 26 numa ciência normativa também são diferentes da sociologia e de outras ciências sociais, que descrevem as condutas humanas sob o princípio da causalidade, ligando as relações como causa e efeito de forma similar às ciências naturais. A ciência normativa, diversamente das ciências causais, descreve as normas jurídicas e suas relações sem ter como base o princípio da causalidade. O princípio delimitador e específico é o princípio da imputação, que é a ligação, feita pela norma jurídica, de um ilícito à sua consequência: Na descrição de uma ordem normativa da conduta dos homens entre si é aplicado aquele outro princípio ordenador, diferente da causalidade, que podemos designar como imputação. Pela via da análise do pensamento jurídico pode mostrar-se que, nas proposições jurídicas, isto é, nas proposições através das quais a ciência jurídica descreve o seu objeto, o Direito – quer seja um Direito nacional ou internacional -, é aplicado efetivamente um princípio que, embora análogo ao da causalidade, no entanto se distingue dele por maneira característica. [...] Tal-qualmente uma lei natural, também uma proposição jurídica liga entre si dois elementos. Porém a ligação que se exprime na proposição jurídica tem um significado completamente diferente daquela que a lei natural descreve, ou seja, a da causalidade. [...] O ser o significado da cópula ou ligação dos elementos na proposição jurídica diferente do da ligação dos elementos na lei natural resulta da circunstância de a ligação na proposição jurídica ser produzida através de uma norma estabelecida pela autoridade jurídica – através de um ato de vontade, portanto -, enquanto que a ligação de causa e efeito, que na lei natural se afirma, é independente de qualquer intervenção dessa espécie (Ibidem, p. 86 e 87, grifo do autor). Evitando deixar dúvidas quanto à definição de proposição jurídica, Kelsen esclarece que ela se trata de uma afirmação ou um juízo sobre um objeto dado ao conhecimento e não se confunde um imperativo, haja vista este ser sim a norma jurídica. A especificidade das proposições jurídicas vem fixada de forma reiterada na seguinte passagem: Se bem que a ciência jurídica tenha por objeto normas jurídicas e, portanto, os valores jurídicos através delas constituídos, as suas proposições são, no entanto – tal como as leis naturais da ciência da natureza – uma descrição do seu objeto alheia a valores (wertfreie). Quer dizer: esta descrição realiza-se sem qualquer referência a um valor metajurídico e sem qualquer aprovação ou desaprovação emocional (Ibidem, p. 89). Para fundamentar o princípio da imputação Kelsen remete-se historicamente à sua origem, afirmando que ao investigar sociedades primitivas, verifica-se que o homem primitivo interpreta os fatos naturais segundo normas sociais, isto é, seguindo os mesmo princípios que regem suas relações com seus semelhantes. Para Kelsen, provavelmente as normas mais antigas da humanidade são as que buscam deter os impulsos sexuais e de agressividade - essas normas têm como base uma regra que permeia toda a vida social primitiva, que compreende tanto a pena quanto o prêmio - a regra da retaliação (retribuição). Nesta regra basilar residem, 27 ligados um ao outro, o pressuposto e a consequência, segundo o princípio da imputação, e não o da causalidade (Ibidem, p. 92). A má colheita ou a chuva em excesso, por exemplo, eram interpretadas como resultados de uma má conduta de um grupo, aldeia ou atribuída à má atitude de um de seus indivíduos. Kelsen diz que o indivíduo primitivo não questionava qual era a causa de um infortúnio e sim quem era o responsável pelo fato. A conduta recíproca dos homens sob a regra da retribuição reflete numa forma de interpretação da natureza designada: interpretação sócio-normativa. O animismo, uma concepção de que todas as coisas na natureza, inclusive as inanimadas, têm alma, é uma forma de interpretação sócio-normativa da natureza. O princípio da causalidade, característico das ciências naturais contemporâneas, é o instrumento de uma emancipação do animismo - de emancipação da interpretação social da natureza. Descrevendo esse processo de emancipação: [...] O passo decisivo nesta transição de uma interpretação normativa para uma interpretação causal da natureza, do princípio da imputação para o princípio da causalidade, reside no fato de o homem se tornar consciente de que as relações entre as coisas – diferentemente das relações entre os homens – são determinadas inependentemente de uma vontade humana ou supra-humana ou, o que vem a dar no mesmo, não são determinadas por normas, de que o comportamento das coisas não é prescrito ou permitido por qualquer autoridade (Ibidem, p. 95). As ciências que têm como princípio a causalidade são: Psicologia, Etnologia, História e Sociologia. Estas não se distinguem das ciências naturais como a Física, ou a Biologia. Por outro lado, as ciências que têm como princípio a imputação são: a ética e a ciência jurídica, também chamada de jurisprudência. Estas últimas são ciências normativas, devido a terem base no princípio da imputação; o que possuem de similitude é o fato de ambas descreverem normas postas por atos humanos e as relações decorrentes dessas normas (Ibidem, p. 96). As diferenças entre os princípios da causalidade e da imputação são examinadas de forma mais detalhada por Kelsen.13 De início, as fórmulas pelas quais são apresentados os juízos hipotéticos de ambos são expressas de modo a ligar a um pressuposto uma determinada consequência. A diferença consiste na ligação que há entre o pressuposto e a consequência nos dois casos, pois no princípio da causalidade, quando A é, B também é (por exemplo, 13 Uma vez que o princípio da causalidade cria proposições com base na observação emprírica, trabalha com uma previsibilidade (da ordem do ser), que permite afirmar que algo acontecerá sob um determinado pressuposto. Já o princípio da imputação cria proposições com base nas normas (jurídicas ou morais) e sua consequência é sempre um dever-ser, pois não é possível afirmar que sob um determinado pressuposto realmente a consequência prevista na norma acontecerá. Portanto não há previsibilidade (cf. KELSEN, op. cit., p. 98 e 99). 28 quando chove, a terra fica molhada), enquanto no princípio da imputação - quando A é, B deve ser (por exemplo, quando alguém comete um crime, deve ser punido). A imputação, expressa na palavra “dever-ser”, designa uma relação normativa. Outra distinção importante é relacionada à cadeia de causa e efeito que, no princípio da causalidade, é constituído por causas intermináveis (um elo de causas ilimitado, onde tudo na ordem do ser pode ser explicado se for remetido a uma causa anterior), enquanto no princípio da imputação a relação entre pressuposto e consequência é limitada - existe um ponto terminal na cadeia de causas (Ibidem, p. 100 e 101). Matos (2006, p. 197) é esclarecedor com relação à diferença entre o princípio da causalidade e o princípio da imputação: [...] O princípio da causalidade se rege por fatos, ou seja, caso haja algum fato que a lei natural-causal não consiga explicar, deve a mesma ser reformulada. Ao contrário, o princípio da imputação pretende reger comportamentos. Se, v.g., em um caso particular não for aplicada uma norma jurídica, tal não é razão suficiente para que a proposição que descreve cientificamente essa relação seja substituída [...] (grifo do autor). Esta discussão sobre o elo de causa e efeito nos princípios da causalidade e imputação está, segundo o texto da obra kelseniana, em estrita ligação com o conceito de liberdade, existente em ordens sociais e normativas como as ordens jurídica e moral: [...] Decisivo é que a conduta que constitui o ponto terminal da imputação – que, de acordo com uma ordem moral ou jurídica, apenas representa a responsabilidade segundo essa ordem existente -, de acordo com a causalidade da ordem da natureza não é, nem como causa nem como efeito, um ponto terminal, mas apenas um elo numa série sem fim (KELSEN, op. cit., p. 104). Acrescenta Kelsen que considerar a liberdade do homem apartada da lei da causalidade torna a responsabilização ou imputação impossível, portanto deve-se tomar como pressuposto que a vontade dos indivíduos seja causalmente determinada. Assim, a função da ordem normativa é ser um elo nessa cadeia causal para criar a vontade nos indivíduos de se conduzirem conforme suas normas: “[...] Só através do fato de a ordem normativa se inserir, como conteúdo das representações dos indivíduos cuja conduta ela regula, no processo causal, no fluxo de causas e efeitos, é que esta ordem preenche a sua função social (Ibidem, p. 105).” Assegura ainda que é um equívoco pressupor, por resultado, que o homem não se sujeite à via causal, considerando-se neste sentido livre para agir, pois esse pensamento 29 necessariamente exige pressupor também que diante de uma conduta jurídica ou moralmente má, ele terá remorso ou arrependimento, algo que não é unânime a todos os homens. Isso somente demonstra que esta é uma liberdade fictícia, que não dá lugar para a existência da imputação. Se a liberdade fosse tomada no sentido de uma vontade livre de uma causalidade determinante, seria admitida como uma justificativa razoável para explicar porque somente os homens são imputáveis e não os fenômenos naturais ou os animais. Contudo, somente os humanos são imputáveis porque as ordens jurídicas e morais prescrevem apenas normas de conduta humanas: “[...] A explicação não está, portanto, na liberdade mas, inversamente, na determinação causal da vontade humana (Ibidem, p. 108).” O intuito do autor nos parece ser aqui o de explicar que a imputação, em verdade, procura inserir-se na linha causal, uma vez que a vontade do homem é causalmente determinada. Inserindo-se como um dos elos da causalidade14, a imputação representa uma norma que, por ligar à conduta oposta uma sanção, causa no indivíduo a vontade de agir conforme o prescrito, sob a condição de ser responsabilizado pela conduta contrária à norma. Segundo seu raciocínio, é um erro pensar que a causalidade exclui a imputação. Kelsen resume seu posicionamento com relação à liberdade: [...] O homem é livre porque e enquanto são imputadas a uma determinada conduta humana, como ao seu pressuposto a recompensa, a penitência ou a pena – não porque esta conduta não seja causalmente determinada, ou até: por ela ser causalmente determinada. O homem é livre porque esta sua conduta é um ponto terminal da imputação, embora seja causalmente determinada (Ibidem, p. 110). Faz-se na obra também um cotejo entre normas hipotéticas e categóricas. As normas hipotéticas ligam condicionalmente uma consequência a um pressuposto, aplica-se sobre estas normas o princípio da imputação. Quanto às normas categóricas, sob uma primeira perspectiva, pode parecer haver mesmo normas que, sob todas e quaisquer circunstâncias, sem nenhum pressuposto, prescrevam de forma omissiva certas condutas, tais como não matar, não mentir, não roubar etc., sendo que estas normas não se traduziriam pelo princípio da imputação por não conectarem um pressuposto a uma consequência. Entretanto, sob uma análise mais detida, o autor ressalta que tais normas não podem ser categóricas, haja vista numa sociedade empírica não ser possível prescrever ações incondicionalmente, sem quaisquer exceções, nem mesmo de forma omissiva: 14 Leia-se: “inserindo um ponto terminal entre pressuposto e consequência”. 30 [...] Também isto mostra que todas as normas gerais de uma ordem social empírica, incluindo as normas gerais de omissão, apenas podem prescrever uma determinada conduta sob condições ou pressupostos bem determinados, e que, por isso, toda norma geral produz uma conexão entre dois fatos, [...] É esta, como se mostrou, a expressão verbal do princípio da imputação [...] (Ibidem, p. 112). Não obstante, acrescente-se que normas individuais (entendidas como as decisões proferidas pelos tribunais direcionadas a um ou mais indivíduos) podem ter caráter categórico, por prescreverem, autorizarem ou darem permissão15 positivamente a um indivíduo ou órgão estatal sem vinculação a nenhum pressuposto. Kelsen adverte para o problema de interpretar o dever-ser (a norma) como uma ideologia. Essa interpretação conduz à conclusão de que não é possível uma ciência jurídica, existindo apenas uma sociologia jurídica. Nega-se o conceito do dever-ser e conclui-se que os atos de produção das normas jurídicas são meios para provocar nos indivíduos certa conduta: [...] Vê-se no Direito – como relação entre os que fazem e os que executam as leis – um empreendimento da mesma espécie que, v.g., o de um caçador que põe um engodo à caça para assim a atrair para uma armadilha. Tal confronto é válido não só enquanto o complexo motivatório é o mesmo, mas ainda na medida em que, segundo a visualização do Direito em apreço, à apresentação do Direito como norma (pelo legislador ou pela jurisprudência) subjaz um embuste ou ilusão. Deste ponto de vista não “há” qualquer espécie de “normas”, e a afirmação de que isto ou aquilo “deve ser” não tem qualquer sentido, nem mesmo qualquer específico sentido jurídico-positivo diferente do sentido moral. Esta visualização apenas considera o acontecer natural, inserto num nexo causal, toma os atos jurídicos apenas na sua facticidade, mas já não toma em conta o específico teor de sentido com que eles nos aparecem (Ibidem, p. 114). Continuando, o autor diz que os juízos jurídicos não podem se reduzir a afirmar fatos presentes ou futuros, nem mesmo o fato de que certas pessoas queiram que nos conduzamos de determinada maneira; tais fatos são da ordem do ser e ultrapassam a função da ciência jurídica: [...] a Teoria Pura do Direito tem uma pronunciada tendência antiideológica. Comprova-se esta sua tendência pelo fato de, na sua descrição do Direito positivo, manter este isento de qualquer confusão com um Direito “ideal” ou “justo”. Quer representar o Direito tal como ele é, e não como ele deve ser: pergunta pelo Direito real e possível, não pelo Direito “ideal” ou ”justo”. Neste sentido é uma teoria do Direito radicalmente realista, isto é, uma teoria do positivismo jurídico. Recusa-se a valorar o Direito positivo. Como ciência, ela não se considera obrigada senão a conceber o Direito positivo de acordo com a sua própria essência e a compreendê-lo através de uma análise da sua estrutura. Recusa-se, particularmente, a servir quaisquer interesses políticos, fornecendo-lhes as “ideologias” por intermédio das quais a ordem social vigente é legitimada ou desqualificada. Assim, impede que, em 15 Como exemplo, a competência e dever conferidos ao Poder Judiciário para julgar os litígios. 31 nome da ciência jurídica, se confira ao Direito positivo um valor mais elevado do que o que ele de fato possui, identificando-o com um Direito ideal, com um Direito justo; ou que lhe seja recusado qualquer valor e, consequentemente, qualquer vigência, por se entender que está em contradição com um Direito ideal, um Direito justo. Por tal fato, a Teoria Pura do Direito surge em aguda contradição com a ciência jurídica tradicional que – conscientemente ou inconscientemente, ora em maior ora em menor grau – tem um caráter “ideológico”, no sentido que acaba de ser explicitado. Precisamente através desta sua tendência antiideológica se revela a Teoria Pura do Direito como verdadeira ciência do Direito (Ibidem, p. 118). Neste capítulo III da Teoria Pura do Direito há determinadas passagens que consideramos mais pertinentes à investigação proposta, reunindo vários conceitos já trabalhados em Direito e Natureza, aplicados de uma forma mais aprofundada: Kelsen, após ter alocado o direito diante das outras ciências, diferencia direito positivo de ciência jurídica um é o objeto de estudo do outro - e explica que a ciência jurídica possui um princípio próprio, o princípio da imputação; salienta ainda a forma como o princípio da imputação surgiu historicamente e desenvolveu-se a partir da regra de retribuição. Esse histórico permitiu entender porque a ciência do direito é diferente das ciências regidas pelo princípio da causalidade. Observa-se também uma diferença entre o ser e o dever-ser e os seus reflexos sobre o esclarecimento dos métodos da ciência jurídica, que não se confundem com valores sociológicos ou de justiça. A diferença de proposição jurídica para norma jurídica consiste na separação dos conceitos do objeto de estudo (norma) e da ciência jurídica descritiva (proposição). Por fim, a impossibilidade de considerar o direito positivo como uma forma de ideologia foi um reforço final em defesa às suas ideias. Feita esta apresentação, traremos em nosso segundo capítulo citações previamente escolhidas para fazermos uma análise mais pontual. Como foi possível perceber, Kelsen trava diálogo com a moral kantiana para além das páginas do capítulo Direito e Moral na Teoria Pura do Direito. Embora o desejo de levantar todos os possíveis diálogos entre Kelsen e Kant seja motivante, na presente dissertação procuraremos estritamente estudar as passagens da Fundamentação da Metafísica dos Costumes citadas por Kelsen em Direito e Moral e do apêndice à obra Teoria Pura do Direito, delimitadas à questão das inclinações e às páginas relacionadas ao imperativo categórico kantiano. 32 2. KELSEN, UM LEITOR DE KANT 2.1. Direito e Moral na Teoria Pura do Direito O capítulo II da Teoria Pura o Direito tem uma perspectiva mais estrita de discussão, tanto que um de seus desdobramentos, a discussão entre direito e justiça, tornou-se o apêndice à obra. O autor define aqui o que entende por “moral”, “direito”, “ética” e “ciência jurídica”. Embora seja um capítulo curto em comparação aos demais, contém o objeto da nossa investigação. Hans Kelsen é considerado um neokantiano. Portanto, pode parecer incoerente ao leitor ver adiante cotejos entre Kelsen e Kant, mas salientamos que ele não segue o pensamento de Kant por completo. Em esclarecimento, seguem as seguintes palavras: Kelsen pretendeu construir um conhecimento antimetafísico do direito assim como Kant fizera no campo das ciências naturais. Mas não se pode confundir – retornaremos a este ponto – a filosofia pura kantiana, seu criticismo transcendental assumido por Kelsen, com sua filosofia jurídica, amplamente jusnaturalista e metafísica. O Kant da Crítica da razão pura é peça fundamental para a Teoria Pura do Direito, todavia o Kant da Crítica da razão prática, da Fundamentação da metafísica dos costumes e da Metafísica dos costumes é, para Kelsen, apenas mais um teórico jusnaturalista a ser criticado [...] (MATOS, 2006, p. 62, grifos do autor). Esta discussão envereda-se pelas convergências e divergências existentes entre jusnaturalismo e positivismo jurídicos. Em convergência, a obra kelseniana prevê que tanto o jusnaturalismo quanto o positivismo têm um único aspecto em comum: a validade do direito radica-se num elemento exógeno ao sistema jurídico. O jusnaturalismo fundamenta sua validade em Deus, na natureza, na razão etc. e o positivismo fundamenta sua validade na “grundnorm” – a norma fundamental. A divergência entre ambos é basilar: a norma 33 fundamental é jurídica16, diferentemente dos fundamentos de validade jusnaturalistas (Ibidem, p. 244 e 246). Gomes (2004, p. 277) também observa esta semelhança e afastamento paradoxais entre as teorias kelseniana e kantiana e, em seguida, descreve: Para Kelsen, a descrição que a Ciência do Direito opera é avalorativa, e por não emitir juízos de valor acerca do conteúdo das normas ela considera, em sua descrição, o valor jurídico, isto é, o valor contido na norma. O valor jurídico vem da norma jurídica, e não de um ordenamento moral ou de uma idéia de justiça. Kelsen separou os “valores de direito” dos “valores de justiça”. Os primeiros qualificam a conduta dos “súditos” como jurídicas ou antijurídicas de acordo com as normas postas. Os segundos referem-se às normas ou às pessoas que produzem as normas, qualificando-as como justas ou injustas. [...] [ ] A concepção relativista de Kelsen tem seu oposto no idealismo kantiano. Kant acredita ser a moral universal, independentemente da experiência, dada a priori para todos os homens. Se a moral é universal, ou em outros termos, absoluta, ela pode muito bem servir, como de fato, em Kant, serve, como critério de validade do direito posto. Kelsen, que se filia ao pensamento kantiano em tantos pontos, neste momento se afasta dele completamente (grifos do autor). A pretensão do jusnaturalismo de conseguir uma legislação clara e precisa através da reprodução do direito natural conduziu ao positivismo jurídico. O pressuposto histórico deste processo está no fato de que o legislador não devia fazer mais do que traduzir em leis os preceitos da razão, e a lei positiva não seria outra coisa além de declaração pública e segurança coativa do direito natural. Em troca, sua conclusão foi que se entendera como fonte de direito a própria vontade do legislador e, o direito natural, que durante algum tempo fora entendido como a essência própria do Código, fora prontamente esquecido e depois rechaçado e escarnecido (cf. FASSÒ, 1996, p. 24). A teoria de Kelsen, por sua vez, veio para fortalecer o positivismo jurídico - a justificação do direito com base na norma jurídica escrita. O positivismo (“lato sensu”) iniciou-se com a vertente filosófica liderada por Augusto Comte, que considerava “ciência” apenas o conhecimento proveniente das ciências naturais (empirismo) e das ciências formais hipotético-dedutivas (a matemática e a lógica). Em seguida, passou-se a usar o termo 16 Jurídica, porém não positiva, pois não faz parte das leis escritas postas por um ordenamento jurídico. Pressuposto lógico-condicional, que possibilita reconhecer uma ordem jurídica válida. Trata-se de condição, diferente de um fundamento: tal como o nascimento é condição para viver. Este entendimento, contudo, não é pacífico - há menção sobre pensadores contrários - Mario Losano e Jean Francois-Perrin (cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do Direito e Justiça na Obra de Hans Kelsen. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 69 e seguintes). 34 “positivismo” como um exemplo de uma postura epistemológica rigorosa; esta expressão foi adotada abertamente pelo “Círculo de Viena”17 (cf. COELHO, 2000, p. 32 e 33). Esse “positivismo” num primeiro momento, aplicado ao direito, suscitou a reivindicação de legitimidade por parte da sociologia do direito como a autêntica ciência jurídica, porque somente ela tinha como base fatos sociais verificáveis empiricamente. Kelsen reagiu a este movimento sociológico-positivista, buscando firmar o positivismo jurídico no âmbito hipotético-dedutivo. Para abstrair o aspecto factual e sociológico na criação do conhecimento jurídico positivo ele teve que, metodológica e obrigatoriamente, partir da norma jurídica: assim criou sua teoria (cf. MACHADO, 2009, p. 7 e 8). Na Teoria Pura do Direito, tanto a moral quanto o direito são normas (ou ordens) sociais. Essas normas sociais têm disciplinas específicas voltadas ao seu estudo: a ética e a ciência jurídica, respectivamente. Faz-se importante não confundir o estudo da moral com o estudo do direito porque a justiça é, segundo Kelsen, uma exigência da moral e, ao confundir os conceitos, a pureza de método da ciência jurídica fica prejudicada. Em resumo, para uma possível distinção entre moral e direito, segundo o autor, não se pode levar em consideração os tipos de condutas a que ambos obrigam, pois estes podem coincidir - deveres morais podem ser também deveres jurídicos. Não podemos também afirmar que a moral prescreve uma conduta interna e o direito uma conduta externa - pois o direito pode proibir com base na conduta interna, ou seja, na intenção de produzir um resultado; por exemplo: dolo ou culpa. A produção ou aplicação das normas também não são critérios de distinção entre o direito e a moral. Ambos podem ser elaborados por uma produção consciente (como a moral religiosa, criada por um fundador) ou pelo costume. O conteúdo das condutas também não deve ser levado em conta nesta distinção (cf. KELSEN, 1996, p. 67). 17 Em 1918 Hans Kelsen tornou-se professor associado da Universidade de Viena e no ano seguinte titulou-se professor de Direito Público e Administrativo. Teve sucesso ao criar um círculo de acadêmicos (colegas e alunos) com pensamentos em comum, pois o modernismo vienense desenvolvia-se em círculos como este descrito. O círculo criado por Hans Kelsen ficou conhecido como a Escola de Viena (Escola de Teoria Legal de Viena), que co-existia com outros grupos, dentre eles o Círculo de Viena (neo-positivista), formada por economistas políticos neoliberais. A Escola de Viena pregava que não era possível entender as normas jurídicas – pertencentes ao reino do “dever” - por meios empíricos, sendo considerada assim uma Escola “normativista”. Já o Círculo de Viena, no entanto, focava o desenvolvimento de uma “ciência unificada”, modelada sobre o empirismo lógico, onde as normas ou proposições sobre fatos sociais seriam permitidos, porém teriam a natureza de predições que poderiam ser constatadas pela observação. (cf. CLEMENS, Jaboner. Kelsen and his Circle: The Viennense Years. In: European Journal of International Law, vol. 9, nº 2, Symposium: The Changing Structure of International Law Revisited [Part 4], 1998 e LAVADAC, Nicoletta Bersier. Hans Kelsen [1881 – 1973] Biographical Note and Bibliography. In: European Journal of International Law, vol. 9, nº 2, Symposium: The Changing Structure of International Law Revisited [Part 4], 1998, compilação e traduções nossas). 35 Destacaremos adiante dois argumentos kelsenianos da Teoria Pura do Direito: um do seu próprio texto – que traz a ideia da ação realizada por inclinação -, e outro - que discorre sobre o imperativo categórico kantiano – extraído do apêndice à obra. O primeiro argumento kelseniano atribui a Kant a ideia de que uma ação moral só se realiza quando contraria uma inclinação natural e o segundo argumento apresenta o imperativo categórico kantiano como uma fórmula vazia, sem conteúdo - ambos serão pormenorizados adiante. 2.2. O papel das inclinações para a ação moral segundo Hans Kelsen Uma vez exposto não ser possível estabelecer uma diferença entre direito e moral com base na prescrição de uma conduta interna, Kelsen passa a aprofundar a discussão, afirmando que: [...] A conduta “interna”, que a Moral, diferentemente do Direito – segundo o ponto de vista de muitos filósofos moralistas -, exige, deverá consistir em uma conduta que, para ser moral, terá de ser realizada contra a inclinação ou – o que é o mesmo – contra o interesse egoístico (Ibidem, p. 68). Kelsen atribui este conceito (agir contra a inclinação) a Kant, inserindo duas notas no final do livro que transcreveremos a seguir: 3. Esta é, como se sabe, a doutrina ética de Kant. Cf. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Obras completas de Kant, editadas pela Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften, vol. IV, pp. 397 e ss. (Ibidem, p. 405, grifo do autor). 4. Kant, op. cit., p. 398: “Eu afirmo, porém, que, na hipótese de uma ação desta espécie (quando é realizada por inclinação), por mais que tal ação seja conforme ao dever, por mais que ela seja merecedora de estima, não tem, no entanto, qualquer verdadeiro valor moral...” (IBIDEM, KANT apud KELSEN, op. cit., p. 405). Alguns autores pensam sobre esse ponto de maneira idêntica à kelseniana. Um exemplo disso é Pascal (2007, p. 143), que concorre com essa interpretação, chegando a afirmar o efeito da lei moral consiste também em contrariar as inclinações: Não nos é dado saber de que modo a lei moral é, em si mesma e imediatamente, princípio determinante da vontade, mas, pelo menos, podemos saber o que se passa ou deveria passar-se no espírito quando a vontade é assim determinada pela lei. As análises de Kant, apoiadas em grande número de exemplos, são aqui de uma 36 penetração e de uma riqueza psicológicas notáveis. Só podemos destacar-lhes o tema essencial. [ ] O efeito da lei moral, enquanto móvel, é antes de tudo de natureza negativa: consiste em contrariar as inclinações de nossa sensibilidade, dando origem a um sentimento de dor [...] (grifo nosso). Gomes (2004, p. 122), não obstante, ao explicar quais são os tipos de imperativos, refere-se às inclinações na ação moral seguindo o mesmo sentido kelseniano: “[...] O imperativo categórico é, pois, o mandamento da moralidade, que traz consigo a necessidade incondicionada de obediência, mesmo contra as inclinações [...] (grifo nosso).” Não nos parece suficiente, todavia, apenas afirmar que a ação moral kantiana resumese a contrariar as inclinações. Por isso apresentamos acima as citações feitas por Kelsen e trouxemos a sua interpretação para discussão. Nosso próximo capítulo será então dedicado a demonstrar que o fator determinante da ação moral kantiana não é essa contrariedade ditada por Kelsen, e o faremos seguindo inicialmente o estudo da Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Kelsen, embora considerando psicologicamente impossível a exigência de uma ação que não se relacione com as inclinações ou interesses egoísticos, concebe a possível existência de uma distinção entre direito e moral. Ele explica que uma ordem social não tem como obstar as inclinações ou interesses egoísticos dos homens, mas pode, para ser eficaz, provocar intencionalmente certas inclinações nos homens para que ajam em harmonia com os seus preceitos. Agir contra o interesse egoístico ou inclinação é, portanto, um tipo de norma moral que se refere aos motivos da conduta, só que isso tudo requer outra ordem social que regule a conduta externa – o direito. Coelho (2000, p. 44), interpretando esta colocação, a descreve da seguinte forma: A antropologia kelseniana considera o homem naturalmente inclinado a perseguir apenas a satisfação de interesses egoístas. O estabelecimento de uma ordem social não altera esta realidade natural. Ou seja, a vontade de alguns homens, os responsáveis pela definição das normas jurídicas ou mesmo morais, não pode mudar a natureza humana. É necessário que as consequências, normativamente estabelecida para as condutas indesejadas, levem o homem a considerar menos vantajoso, sob o seu individual ponto de vista, a transgressão à norma. Desse modo, evitaria se comportar de acordo com a sua primeira inclinação natural, para ponderar as vantagens e desvantagens da obediência à ordem social. [...] 37 Um critério essencial para distinguir direito e moral é a forma de prescrever ou proibir certas condutas, pois a moral proíbe apenas aprovando ou desaprovando determinadas condutas humanas, sem nem levar em conta empregar a força física. O direito, por seu turno, é uma ordem de coação – visando “[...] obter uma determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado [...] (KELSEN, op. cit., p. 71)”. O autor nos traz duas questões que surgem ao relacionarmos direito e moral. Segundo ele, a confusão entre as duas pode conduzir a equívocos. A primeira questão diz respeito à relação que de fato existe entre as duas ordens; aqui nos referimos ao direito como sendo por sua essência moral, ou seja, as condutas prescritas pelo direito correspondem exatamente às prescrições das condutas morais (neste caso o direito é considerado justo ou injusto conforme sua correspondência com a moral). Já a segunda questão refere-se à relação que deve existir entre direito e moral – o direito pode ser moral, não tem necessariamente de o ser – admitindo-se a exigência de que o direito deva ser moral. Kelsen atribui à primeira possibilidade desta relação uma justificação do direito pela moral, isso identifica direito e justiça, pois se considera o direito através de seu conteúdo moral, ou ainda: [...] Na medida em que uma tal tese vise uma justificação do Direito – e é este o seu sentido próprio -, tem de pressupor que apenas uma Moral que é a única válida, ou seja, uma Moral absoluta, fornece um valor moral absoluto e que só as normas que correspondam a esta Moral absoluta e, portanto, constituam o valor moral absoluto, podem ser consideradas “Direito”. Quer dizer: parte-se de uma definição do Direito que o determina como parte da Moral, que identifica Direito e Justiça (Ibidem, p. 72, grifo do autor). Diante da exposição feita, percebe-se que um valor moral absoluto, que exclua qualquer outro, só pode ser concebido se for baseado numa crença religiosa fundada na autoridade transcendente e absoluta divina. Dentro de diversos setores de um mesmo povo há sistemas morais diferentes e contraditórios entre si. Impõe-se, outrossim, um valor moral relativo. Não há, portanto, como identificar um elemento moral comum a todos os diferentes povos, épocas e lugares: [...] Em vista, porém, da grande diversidade daquilo que os homens efetivamente consideram como bom e mau, justo e injusto, e diferentes épocas e nos diferentes lugares, não se pode determinar qualquer elemento comum aos conteúdos das diferentes ordens morais. [...] Com efeito, quando não se pressupõe qualquer a priori como dado, isto é, quando se não pressupõe qualquer valor moral absoluto, não se tem qualquer possibilidade de determinar o que é que tem de ser havido, em todas as circunstâncias, por bom e mau, justo e injusto (Ibidem, p. 73, grifo do autor). 38 Dentre os diversos sistemas de moral, a forma é o que há de necessariamente comum entre eles. A forma é o dever-ser, o caráter de norma. A conduta será moralmente boa ou má conforme sua correspondência com uma norma moral: “[...] o valor moral relativo é constituído por uma norma social que estabelece um determinado comportamento como devido (devendo-ser). Norma e valor são conceitos correlativos (Idem, p. 74).” A questão da relação entre o direito e a moral é, sob os pressupostos anteriores, uma questão de forma e não de conteúdo. Todo o direito constitui um valor moral que é relativo (dever-ser moral). Desta forma, o direito constitui um valor jurídico18 ao mesmo tempo em que corporiza um valor moral que é relativo. As citações acima demonstram a relatividade e o caráter empírico da moral em Kelsen. Com base na relatividade da moral, Kelsen diferencia que, ter o direito, supostamente, um caráter moral ou ser moral (ter conteúdo essencialmente moral), não é dizer o mesmo que o direito deva-ser moral. Afirmar que o direito deve-ser moral significa, conforme já exposto, ter como pressuposto um valor moral relativo: [...] Quando uma teoria do Direito positivo propõe distinguir Direito e Moral em geral e Direito e Justiça em particular, para não os confundir entre si, ela volta-se contra a concepção tradicional, tida como indiscutível pela maioria dos juristas, que pressupõe que apenas existe uma única Moral válida – que é, portanto, absoluta – da qual resulta uma Justiça absoluta. [...] Se, pressupondo a existência de valores meramente relativos, se pretende distinguir o Direito da Moral em geral e, em particular, distinguir o Direito da Justiça, tal pretensão não significa que o Direito nada tenha a ver com a Moral e com a Justiça, que o conceito de Direito não caiba no conceito de bom. Na verdade, o conceito de “bom” não pode ser determinado senão como “o que deve ser”, o que corresponde a uma norma. Ora, se definimos Direito como norma, isto implica que o que é conforme-ao-Direito (das Rechtmässige) é um bem (Ibidem, p. 75, grifo do autor). Para ilustrar esta colocação, ele sugere que seja feita uma separação entre direito e moral e direito e justiça; essa separação possibilita haver um direito válido, que não se submete ao dever-ser justo, independentemente de sua concordância ou discordância a uma moral absoluta. Assim, ao afirmarmos que o direito é imoral ou mau é o mesmo que constatar que ele não é compatível com um ou mais dos sistemas morais válidos. Assim, o direito pode ser julgado como justo por um sistema moral enquanto pode, ao mesmo tempo, ser julgado como injusto por outro, sendo ambos os sistemas morais válidos (Ibidem, p. 76). 18 Tomemos este conceito de valor jurídico como um valor constituído através de uma norma legislada por um ato de vontade humana em conformidade com uma norma objetivamente válida (norma fundamental). 39 A legitimação do direito por outra ordem social (leia-se moral) é irrelevante para Kelsen, porque a ciência jurídica não se aplica neste mérito, ela somente busca conhecer e descrever as normas jurídicas, de forma alheia aos valores. O cientista do direito não pode nem mesmo identificar-se com o valor jurídico que descreve em seu estudo. Esta é a importância de diferenciar a ética - que se volta a conhecer e descrever as normas morais – da ciência jurídica. Isso permite à ciência jurídica chegar à conclusão que uma norma jurídica pode ser válida ainda que contrarie a ordem moral, pois esta é relativa. Em uma síntese, o autor descreve os motivos da rejeição do valor moral para uma justificação do direito: A tese de que o Direito é, segundo a sua própria essência, moral, isto é, de que somente uma ordem social moral é Direito, é rejeitada pela Teoria Pura do Direito, não apenas porque ela na sua efetiva aplicação pela jurisprudência dominante numa determinada comunidade jurídica, conduz a uma legitimação acrítica da ordem coercitiva estadual que constitui tal comunidade. Com efeito, pressupõe-se como evidente que a ordem coercitiva estadual própria é Direito. O problemático critério de medida da Moral absoluta apenas é utilizado para apreciar as ordens coercitivas de outros Estados. Somente estas são desqualificadas como imorais [...] Como, porém, a nossa própria ordem coercitiva é Direito, ela tem de ser, de acordo com a dita tese, também moral. Uma tal legitimação do Direito positivo pode, apesar da insuficiência lógica, prestar bons serviços. Do ponto de vista da ciência jurídica ela é insustentável (Ibidem, p.78). Apontados os argumentos kelsenianos que afrontam a moral kantiana na Teoria Pura do Direito, seguiremos para a análise detalhada que Kelsen faz sobre o imperativo categórico de Kant em seu apêndice à obra. 2.3. O imperativo categórico de Kant: Kelsen e o problema das máximas Neste apêndice à Teoria Pura do Direito, cujo nome é A Justiça e o Direito Natural, Kelsen faz uma análise mais detida sobre o imperativo categórico de Kant. Inicia com uma classificação das normas de justiça em dois grandes grupos: do tipo racional e do tipo metafísico. É importante entendermos esta classificação para sabermos porque Kelsen insere a moral kantiana no tipo racional: As normas de justiça do tipo metafísico caracterizam-se pelo facto de se apresentarem, pela sua própria natureza, como procedentes de uma instância transcendente, existente para além de todo o conhecimento humano experimental 40 (baseado sobre a experiência), pelo que pressupõem essencialmente a crença na existência de uma tal instância transcendente. Estas normas são metafísicas não só pelo que toca à sua proveniência, mas ainda pelo que respeita ao seu conteúdo, na medida em que não podem ser compreendidas pela razão humana. [...] As normas de justiça do tipo aqui designado como <<racional>> – por contraposição ao <<metafísico>> - são caracterizadas pelo facto de não pressuporem como essencial qualquer crença na existência de uma instância transcendente, pelo facto de poderem ser pensadas como estatuídas através de actos humanos postos no mundo da experiência e poderem ser entendidas pela razão humana, isto é, ser concebidas racionalmente [...] (KELSEN, 2009, p. 52, grifos do autor). Antes de expor sua leitura e interpretação do imperativo categórico, Kelsen apresenta duas fórmulas de justiça, que funcionam como uma introdução ao raciocínio. A primeira delas é a fórmula do “suum cuique”, que é a de “dar a cada um o que é seu”. Para o autor, tal fórmula conduz a uma tautologia, pois a questão de saber o que é de cada um não é determinada pela própria norma, mas sim uma ordem normativa que estabeleça o que é de cada um por direito. A ordem normativa, neste caso, utiliza-se da fórmula “suum cuique” apenas como norma (ou princípio) norteadora (or) de justiça (Ibidem, p. 53). A segunda é a fórmula da “regra de ouro” (ou “regra de oiro”): “tratarmos os outros tal como queremos ser tratados”. A falha desta fórmula, cuja natureza Kelsen diz ser semelhante à anterior, é a existência de um critério subjetivo (“- Como quero ser tratado?”) que é imposto aos demais; em outras palavras, as pessoas não têm um consenso sobre uma mesma forma de tratamento. O que é considerado bom para um pode não ser bom para outro, gerando conflitos. A sugestão seria tomar a fórmula não ao pé da letra, mas sim: tratar os outros como “devemos querer” ser tratados, segundo uma norma geral aplicável não somente a nós, como também aos demais. O problema torna-se determinar qual seria o conteúdo desta norma geral, o que a fórmula não explica (Ibidem, p. 54). Kelsen passa então à fórmula de Kant e começa asseverando que o imperativo categórico é semelhante à regra de ouro: não fazer ao outro o que não quer que te façam a ti. Diz ainda que no imperativo categórico (princípio geral e supremo da moral) há implícito o princípio da justiça e, que através deste princípio, o imperativo categórico responderia à questão de como devemos nos conduzir para agir moralmente bem: [...] Esta resposta diz: ages moralmente bem quando actuas segundo uma máxima da qual possas querer que ela se transforme numa lei universal. Aqui <<máxima>> é a regra segundo a qual se propõe ou se predispõe a agir, é a <<lei universal>>, a norma geral segundo a qual ele deve agir (Ibidem, p. 57, grifos do autor). 41 Objetando essa concepção kantiana ele afirma que, se o verbo que rege tal ação é o “poder”, o resultado nem sempre seria uma ação moralmente boa, pois um homem “pode” querer que toda e qualquer máxima se torne uma lei universal. Assegura ser isso possível, embora seja censurável; para ele, Kant crê poder demonstrar que uma máxima imoral seria contraditória em si mesma, mas Kelsen diz que, em verdade, há contradição entre duas máximas e não da máxima imoral consigo mesma. Sob esta interpretação kelseniana, uma máxima imoral não poderia ser elevada a uma lei universal porque pressuporia outra máxima, que é moral, e que deve ser obedecida (Ibidem, p. 58). Para ilustrar, Kelsen traz os exemplos kantianos: de querer o suicídio quando a vida tornar-se insuportável; de fazer uma promessa com a intenção de não cumpri-la; de tomar dinheiro emprestado sabendo que não se pode restituí-lo; de buscar o prazer ao invés de aperfeiçoar as disposições naturais humanas; e o de contribuir com o próprio bem-estar e não importar-se com o bem estar alheio. Para ele o erro em que Kant incorre consiste em afirmar que estas máximas se contradiriam, quando na realidade são pressupostas outras máximas ocultas que consideram os exemplos anteriores como imorais: a conservação da vida diante do suicídio; a obrigação de cumprir promessas diante da quebra de promessas; a obrigação de devolver dinheiro emprestado diante do empréstimo; a necessidade de desenvolver as faculdades naturais ou pessoais diante da busca exclusiva do prazer e, por fim, a obrigação de importar-se com os outros diante do egoísmo. Segue abaixo um dos exemplos: [...] É patente que um egoísta pode querer uma lei universal do egoísmo e, simultânea e consequentemente, renunciar à ajuda dos outros, podendo, portanto, querer sem contradição que a sua máxima se torne uma lei universal. A contradição que aqui surge é a contradição entre a máxima e a uma lei moral pressuposta por KANT, por força da qual devemos contribuir para o bem estar dos outros. Só desta pressuposição, e não do imperativo categórico, se segue que o homem não <<pode>> querer, ou seja, afinal, não deve querer, que o princípio do egoísmo se torne uma lei universal (Ibidem, p. 60). Façamos um complemento: Kelsen acredita que Kant estabelece valores morais préconcebidos que entram em conflito imediato com outros valores considerados imorais e que, por não dar-se conta desta oposição, afirma que os valores imorais se contradizem por si mesmos. A conclusão a que chega Kelsen é que a locução verbal “poder querer” que a máxima se torne lei universal, na verdade é “dever querer”, porquanto pressupõe um dever moral oculto, que é outra máxima que se contrapõe a uma máxima considerada imoral: 42 É, assim, patente que, com o <<poder querer>> do imperativo categórico, se quer significar um <<dever querer>>, que o verdadeiro sentido do imperativo categórico é: Actua segundo uma máxima da qual devas querer que ela se transforme numa lei universal. Mas, de que máxima devo eu querer e de que máxima devo eu não querer que ela se torne numa lei universal? A esta questão não dá o imperativo categórico qualquer resposta (Idem, Ibidem, grifos do autor). Deste problema indicado resulta que, como o imperativo categórico não determina qual máxima pode ser elevada a uma lei universal, ele só reconduz à fórmula e, outrossim, nada mais é senão uma conformidade da ação com a lei universal, esta que exprime uma “forma de lei”, ou seja, um dever-ser que toda norma possui. Assim, a questão decisiva – saber qual o conteúdo da lei universal – não é respondida. Isso apenas demonstra que o imperativo categórico possui uma vacuidade (ou seja, não pressupõe um conteúdo) como característica intrínseca, o que Kant, pelo menos indiretamente, assume: Isto não só resulta dos exemplos que o próprio Kant aponta, como também é por ele reconhecido – pelo menos indirectamente – quando declara <<que não é, pois, necessária qualquer ciência ou filosofia para sabermos o que temos a fazer, para sermos honrados e bons, para sermos até sábios e virtuosos >>, << que o conhecimento daquilo que se deve fazer compete, portanto, a qualquer homem, mesmo ao mais vulgar>>; quando pergunta a sério se não seria mais aconselhável <<deixar as coisas morais ao comum juízo da razão (ao senso comum) e apenas utilizar a filosofia, quando muito, para ... descrever o sistema moral (System der Sitten) por maneira mais acabada e compreensível>>. Por outras palavras: o que é bom e o que é mau compreende-se de per si (é de per si evidente). Esta questão não precisa de ser respondida por uma ciência da moral (KANT, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Obras completas de Kant, editadas pela Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften, vol IV, p. 421 e 404, respectivamente apud KELSEN, op. cit., p. 62, grifos do autor). Esta apresentação de Direito e Moral na Teoria Pura do Direito e seu apêndice sobre a justiça buscou criar as bases para nossa discussão, onde incluímos as citações necessárias à nossa investigação, especificamente. O intuito foi tentar demonstrar como Kelsen explica as relações entre direito e moral. Percebemos que uma moral absoluta é incompatível com a existência de um direito isento de interferências, o que confunde o objeto da ciência jurídica. Pudemos também auferir os conceitos e as diferenças entre ciência jurídica e ética. Vimos que a discussão sobre uma justificação ou valoração do direito pela moral leva a uma discussão sobre a justiça e o direito, o que segundo o autor é o caminho que a jurisprudência (doutrina jurídica) de sua época considerava como método de análise. Denota-se como evidente que Kelsen toma como mais apropriado e legítimo um juízo relativo de valor moral (moral relativa), porém destacamos possibilidades de se entender a 43 moral, ainda que atualmente, dentro das questões levantadas, sob uma ótica kantiana: procuraremos demonstrar primeiramente que, diferente do que afirma Kelsen, Kant propõe uma abstração das inclinações para considerar se a ação é ou não moral através do uso da razão, sem levar em consideração a contrariedade das inclinações e; pretendemos trazer argumentos suficientes para provar também que a interpretação feita por Kelsen do conceito e do papel da máxima no imperativo categórico kantiano é superficial, fazendo-o incorrer na suposição de que toda e qualquer máxima possa ser elevada a uma lei universal. Assim, criamos a possibilidade de conceber uma ciência jurídica que não se submeta exclusivamente à metodologia kelseniana, abrindo campo para uma valoração do direito. 44 3. KELSEN À LUZ DE KANT No presente capítulo procuraremos desenvolver alguns apontamentos dentro dos limites temáticos levantados por Kelsen (a questão das inclinações e do imperativo categórico), introduzindo na discussão a teoria moral de Kant, com o auxílio de alguns comentadores. Em seguida, apresentaremos uma interpretação contemporânea da moral kantiana que enfatiza o uso público da razão (O’Neill, 1989, 2004), para assim sugerir uma possibilidade de concebermos a ciência jurídica mais afastada do âmbito hipotético-dedutivo, permitindo assim uma razoável valoração sobre o direito. 3.1. A Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785): valor moral da ação Iniciaremos com o prefácio da obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, onde Kant expõe a necessidade indispensável de haver uma Metafísica dos Costumes: [...] não só por motivos de ordem especulativa para investigar a fonte dos princípios práticos que residem a priori na nossa razão, mas também porque os próprios costumes ficam sujeitos a toda sorte de perversão enquanto lhes faltar aquele fio condutor e norma suprema do seu exacto julgamento. Pois que aquilo que deve ser moralmente bom não basta que seja conforme à lei moral, mas tem também que cumprir-se por amor dessa mesma lei; caso contrário, aquela conformidade será apenas muito contingente e incerta, porque o princípio imoral produzirá na verdade de vez em quando acções conforme à lei moral, mas mais vezes ainda acções contrárias a essa lei. Ora a lei moral, na sua pureza e autenticidade (e é exactamente isto que mais importa na prática), não se deve buscar em nenhuma outra parte senão numa filosofia pura, e esta (Metafísica) tem que vir portanto em primeiro lugar, e sem ela não pode haver em parte alguma uma Filosofia moral; e aquela que mistura os princípios puros com os empíricos não merece mesmo o nome de filosofia [...] (KANT, 1960, p. 16, grifos do autor). O objetivo de Kant expresso no prefácio é a busca e a fixação do princípio supremo da moralidade, partindo da Transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico, em seguida de uma Transição da filosofia moral popular para a 45 Metafísica dos Costumes e por fim a Transição da Metafísica dos Costumes para a Crítica da Razão Pura Prática (Ibidem, p. 19). Kant começa sua exposição com o conceito de boa vontade (uma vontade boa em si mesma, não relacionada a fins ou inclinações naturais, incondicionada)19, um conceito que ele afirma já residir na razão vulgar, e que precisa apenas ser esclarecido, não ensinado. Para tanto, surge a necessidade de trabalhar o conceito de dever, que contém em si o conceito de boa vontade e que facilita seu entendimento. A afirmação que o incondicionalmente bom é a boa vontade tem implicitamente uma definição: o “moralmente bom” significa “incondicionalmente bom”. O problema que surge é que os conceitos de boa vontade e de dever não têm o mesmo conteúdo. A boa vontade só inclui o conceito de dever condicionada a certas limitações e impedimentos subjetivos. Só cabe falar em dever quando, além de um querer bom, há também um querer mal – algo que se dá em todo ser racional (neste caso, o homem) que também tem motivações sensíveis. Não basta cumprir o dever moral por qualquer motivação e a moral não consiste na mera conformidade com o dever (que Kant chama legalidade). A moralidade, a bondade incondicional, só se realiza quando se faz o que é justo por ser moralmente correto e porque se quer o próprio dever e se cumpre este como tal (cf. HÖFFE, 1986, p. 167). Paton (1971, p. 46) entende que Kant, no lugar de esclarecer a natureza da boa vontade, se propõe a examinar o conceito de dever. Uma boa vontade é a que age sob respeito ao dever. A própria ideia de dever traz consigo o pensamento de superação de desejos e inclinações. Uma vontade perfeita (ou divina, segundo Kant) se manifesta propriamente em atitudes boas, sem a necessidade de reprimir, superar ou refrear inclinações naturais: a vontade de Deus é divina e Ele não age por dever. Mas Kant se dirige às criaturas finitas (seres racionais, homens), que possuem influências de inclinações e desejos que podem ser obstáculos ou impedimentos para a boa vontade que neles existe. A boa vontade sob condições humanas é aquela que age, portanto, por dever. Segue abaixo mais alguns esclarecimentos acerca do termo “vontade” em Kant, de acordo com Höffe (op. cit., p. 164): 19 Vontade é: “[...] a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Coimbra, Portugal: Edições 70, 1960, p. 67, grifo do autor).” 46 [...] É verdade que às vezes entendemos a palavra <<vontade>> em outro sentido, como impulso procedente de dentro, diferente do impulso ou pressão que vem de fora. Em tal sentido também os seres naturais têm uma vontade enquanto seguem seus próprios impulsos e necessidades. Mas Kant entende o termo vontade em um sentido mais estrito, e isto por boas razões. [ ] Os impulsos e necessidades têm de fato nos seres naturais o significado de pautas que regem a conduta necessariamente. Como seu impulso é uma exigência interna, os seres naturais só possuem vontade em um sentido metafórico. Seguem seus próprios impulsos, não uma vontade própria, mas a <<vontade da natureza>>. Apenas a capacidade de agir segundo leis autopropostas permite falar de uma verdadeira vontade (grifos do autor).20 Para Kant, como veremos abaixo, somente a ação realizada por dever é moral. É exatamente neste ponto que surge a passagem destacada por Kelsen, em que a ação caridosa ou compassiva é realizada por um sujeito que tem inclinação imediata a fazê-la, quer seja pelo prazer que busca na ação ou pelas honrarias (prêmios, elogios, status) que auferirá diante da comunidade ou da sociedade. Kant afirma não ter valor moral tal ação, por mais conforme ao dever que seja. Na Fundamentação da Metafsica dos Costumes, em sua primeira seção, três proposições apresentam-se relacionadas ao dever: a primeira proposição, obtida com base em exemplos como os que Kelsen utilizou, é a de que numa ação com conteúdo moral faz-se o bem não por inclinação, mas por dever. A segunda proposição tem relação com o valor moral de uma ação, este que não depende da intenção ou do fim a ser alcançado, mas da máxima (princípio subjetivo do querer21) que o determina. Daqui extraímos uma orientação mais detalhada: a vontade do sujeito que age fica entre seu princípio “a priori” (formal)22 e seu 20 “[...] Es verdad que a veces entendemos la palabra <<voluntad>> en otro sentido, como impulso procedente de dentro, a diferencia del impulso o presión que viene de fuera. En tal sentido también los seres naturales tienen una voluntad en cuanto que siguen sus proprios impulsos y necessidades. Pero kant entiende el término voluntad en un sentido más estricto, y esto por buenas razones. [ ] Los impulsos y necesidades tienen en efecto en los seres naturales el significado de pautas que rigen la conducta necesariamente. Como su impulso es una urgencia interna, los seres naturales sólo poseen voluntad en un sentido metafórico. Siguen sus proprios impulsos, mas no una voluntad propia, sino la <<voluntad de la naturaleza>>. Sólo la capacidad de obrar según leyes autopropuestas permite hablar de una verdadera voluntad (HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Trad. (espanhol) Diorki. Espanha, Barcelona: Editorial Herder, 1986, p. 164, tradução - para o português - nossa, grifos do autor).” 21 Vale destacar que na filosofia prática kantiana a máxima é o princípio subjetivo do querer e na filosofia teórica as máximas da razão são os princípios subjetivos inferidos do interesse da razão por certa perfeição possível do conhecimento de um objeto. 22 Sobre os termos “a priori” e “a posteriori”: “Mas embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da experiência. [...] Portanto, é pelo menos uma questão que requer uma investigação mais pormenorizada e que não pode ser logo despachada devido aos ares que ostenta, a saber se há um tal conhecimento independente da experiência e mesmo de todas as impressões dos sentidos. Tais conhecimentos denominam-se a priori e distinguem-se dos empíricos, que possuem suas fontes a 47 móbil (ou inclinação) “a posteriori” (material)23 e, para ser moral, terá de ser determinada especificamente pelo seu princípio formal (“a priori”) do querer; abstrai-se, assim, o princípio material (sensível ou empírico - subsistindo o princípio formal) do fundamento de determinação da ação para que ela tenha o conteúdo moral (cf. KANT, 1960, p. 29 e 30). Já a terceira proposição kantiana refere-se ao dever como a necessidade de uma ação por respeito à lei (princípio objetivo do querer), segundo suas palavras: [...] Só pode ser objecto de respeito e portanto mandamento aquilo que está ligado à minha vontade somente como princípio e nunca como efeito, não aquilo que serve à minha inclinação mas o que a domina ou que, pelo menos, a exclui do cálculo na escolha, quer dizer a simples lei por si mesma. Ora, se uma acção realizada por dever deve eliminar totalmente a influência da inclinação e com ela todo o objecto da vontade, nada mais resta à vontade que a possa determinar do que a lei objectivamente, e subjectivamente, o puro respeito por esta lei prática, e por conseguinte a máxima que manda obedecer a essa lei, mesmo com prejuízo de todas as minhas inclinações (Ibidem, p. 31). Ora, onde reside então o valor moral da ação? Certamente não consiste no efeito esperado dessa ação, nem em um móbil ou inclinação, pois estes valores seriam alcançados por outras causas (naturais ou instintivas, por exemplo) e sob essas circunstâncias o homem ser racional - não precisaria valer-se da lei que ele próprio representa para determinar a sua vontade e encontrar o bem supremo e incondicionado. Assim o valor moral da ação, contido nesta lei que o homem se representa através da razão para determinação da sua vontade, consiste em: “[...] devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal. [...] (Ibidem, p. 33, grifo do autor).” Feita a introdução à boa vontade, ao dever e ao valor moral, além de já termos apresentado a fórmula do imperativo categórico, seguiremos para os conceitos da moral kantiana relativos aos pontos debatidos por Kelsen, especificamente os apresentados no capítulo anterior: a questão das inclinações na ação moral e das máximas no imperativo categórico, respectivamente. 3.1.1. As inclinações e o método de isolamento de Immanuel Kant posteriori, ou seja, na experiência (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 53, grifos do autor).” 23 Ibidem. 48 O primeiro ponto apontado por Kelsen, conforme destacamos em nosso segundo capítulo, refere-se às motivações (ou inclinações sensíveis) e suas influências sobre a ação moral em Kant. Reiteremos sua posição: para Kelsen, uma ação no sentido kantiano só teria valor moral quando realizada contra as inclinações (sensíveis, ou naturais) do sujeito. O trecho em questão segue agora transcrito abaixo, porém tivemos o cuidado de inserilo em seu respectivo parágrafo da Fundamentação da Metafísica dos Costumes24: Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas de disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo porém que neste caso uma tal acção, por conforme ao dever, por amável que ela seja, não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral (grifo nosso), mas vai emparelhar com outras inclinações, por exemplo o amor das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo que efectivamente é de interesse geral e conforme ao dever, é consequentemente honroso e merece louvor e estímulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que tais acções se pratiquem, não por inclinação, mas por dever [...] (KANT, 1960, p. 28, grifo do tradutor, tradução de Paulo Quintela).25 Tendo sido apresentada a citação em sua respectiva localização no texto de Kant - que faz parte da primeira seção da obra: Transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico - urge argumentarmos contra a interpretação kelseniana. Precisamos salientar que quando Kant afirma que as ações são praticadas não por inclinação, mas por dever, a expressão “não por inclinação” não indica necessariamente uma contrariedade, nem nos permite deduzir deste trecho que a contrariedade às inclinações seja um elemento da ação moral. 24 Informamos que optamos por utilizar a mesma edição indicada por Kelsen (publicada em Berlim) nesta passagem, em língua alemã, sendo que as outras citações da Fundamentação da Metafísica dos Costumes serão oriundas da tradução de Paulo Quintela, que consta também de nossas referências bibliográficas (para reler as citações kelsenianas, vide item 2.2. supra). 25 “Wohltätig sein, wo man kann, ist Pflicht, und überdem gießt es manche so teilnehmend gestimmte Seelen, das sie auch ohne einen andern Bewegunggrund der Eitelkeit oder des Eigennutzes ein inneres Bergungen daran finden, Freude um sich zu verbreiten, und die sich an der Zufriedenheit anderer, so fern sie ihr Werk ist, ergötzen können. Aber ich behaupte, das in solchem Falle dergleichen Handlung, so Pflichtmäßig, so liebenswürdig sie auch ist, dennoch keinen wahren sittlichen Wehrt habe (grifo nosso), sondern mit andern Neigungen zu gleichen Paaren gehe, z. E. der Neigung nach Ehre, die, wenn sie glücklicherweise auf das trifft, was in der Tat gemeinnützig und Pflichtmäßig, mithin ehrenwert ist, Lob und Aufmunterung, aber nicht Hochschätzung verdient; denn der Maxime fehlt der sittliche Gehalt, nämlich solche Handlungen nicht aus Neigung, sondern aus Pflicht zu tun [...] (KANT, 1911, p. 398, tradução nossa).” 49 O fato de uma boa vontade (na ação moral) contrariar ou não as inclinações, tem uma estrita relação com o conceito de dever: então vejamos como esclarecer esse aparente problema levantado por Kelsen. De início convém explicar de onde vêm os juízos morais.26 Eles não são originários da experiência sensível, mas são “a priori”. Isso não significa contudo afirmar que façamos os juízos morais antes da experiência começar e nem que as crianças já nasçam sabendo julgar “a priori” sem nem antes saberem distinguir as cores ou os sons. Esses são absurdos atribuídos a Kant. O conhecimento, por isso, não é apriorístico no tempo e se constrói com a experiência. Além disso, “a priori” significa serem os juízos morais necessários e universais. Exemplificando com outros tipos de juízos necessários e universais, podemos dizer que: “- Todo triângulo tem que ter três lados” ou “– Um evento tem que ter uma causa”; o que é diferente de dizer: -“ Todos os gansos são pretos”, pois neste último não há uma conexão necessária e universal entre as palavras “preto” e “ganso”, sendo esta uma generalização empírica que pode vir abaixo com a possibilidade de se encontrar um ganso branco (cf. PATON, 1971, p. 20 e 21). Kant considera o dever como um tipo de necessidade e, por isso, conecta dois tipos de julgamentos (ou juízos) “a priori”: o moral (ou prático) e o teorético (ou científico). Daqui segue a importância de uma distinção com relação ao dever, seguindo estes exemplos: “- O homem deve dizer a verdade” e “- O homem tem de dizer a verdade”27; o primeiro é algo no presente (é um dever moral no sentido kantiano) enquanto o segundo é algo que pode ou não estar no presente, gerando uma opção ao agente (Ibidem, p. 22). Kant tenta esclarecer quando uma ação é realizada por dever, quando é realizada por intenção egoísta ou quando é realizada conforme ao dever (onde há o cálculo de meios e fins) - esta última modalidade pode também ser realizada por uma inclinação imediata -, o que torna difícil diferenciar se uma ação foi realizada por dever ou não (cf. KANT, 1960, p. 27). Paton (op. cit., p. 47) considera que, de início, deve-se entender essa distinção das ações conforme ao dever, das quais Kant reconhece três tipos: as feitas por inclinação 26 Utilizaremos como referência as lições dadas por Paton (1971), por entendermos que os seus esclarecimentos são os mais adequados à nossa proposta e por eles possuírem a profundidade suficiente para deslindar de forma razoável diversas objeções quanto ao assunto debatido, tornando-o acessível. 27 Procuramos seguir o mesmo raciocínio do autor, embora tenhamos trabalhado na língua pátria, portanto a distinção com relação ao dever é a mesma em inglês entre “ought” e “must” (cf. PATON, Herbert James. The Categorical Imperative: A study in Kant’s moral philosophy. Philadelphia, EUA: University of Pennsylvania Press, 1971, p. 22). 50 imediata; as feitas por interesse próprio e as feitas pelo dever. Para termos certeza de que estamos julgando os valores das ações feitas pelo dever, o que Paton sustenta é que Kant propõe um método de isolamento através do qual remove-se a inclinação imediata e avalia-se então o valor da ação em sua ausência (ausência da inclinação). Fica desta forma claro um outro exemplo apresentado por Kant (op. cit.): [...] Os homens conservam a sua vida conforme ao dever, sem dúvida, mas não por dever. Em contraposição, quando as contrariedades e o desgosto sem esperança roubaram totalmente o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, mais enfadado do que desalentado ou abatido, deseja a morte, e conserva contudo a vida sem a amar, não por inclinação ou medo, mas por dever, então a sua máxima tem conteúdo moral (p. 28, grifos do autor). Höffe (1986, p. 64) tem uma descrição semelhante com relação à vontade: “[...] O termo <<vontade>> não significa a capacidade de destruir os impulsos naturais, mas de distanciar-se deles e suspendê-los como motivação última do agir (grifo do autor, tradução nossa).28” O método de isolamento não significa que uma ação não tenha valor moral só porque com a presença da vontade coexista uma inclinação. Detalhando mais esse método Paton (op.cit., p. 49) explica: [...] A doutrina de Kant diz que o motivo do dever deve estar presente ao mesmo tempo que a inclinação e ele deve ser o fator determinante, para que nossa ação seja boa. É, por consequência, uma distorção da visão kantiana dizer que para ele uma ação não pode ser boa se a inclinação for presente ao mesmo tempo que o motivo do dever. Por outro lado, ele certamente defende que, determinando nosso dever, nós não devemos levar em conta nossas inclinações ou até nossa felicidade (que é a máxima satisfação das nossas inclinações). Sobre isso, entretanto, ele quer dizer que nós não podemos afirmar que uma ação seja um dever meramente porque temos uma inclinação para realizá-la ou porque pensamos que ela iria fazer-nos felizes [...]. Kant reconhece que as inclinações têm, por sua vez, um papel na vida moral [...]. O que nós temos que evitar é a substituição do motivo do dever pelos motivos de felicidade ou vantagem pessoal. Fazer isso seria corroer a moralidade [...] (grifos do autor).29 28 “El término <<voluntad>> no significa la capacidad de destruir los impulsos naturales, sino de distanciarse de ellos y suspenderlos como motivación última del obrar (HÖFFE, op. cit., p. 64, tradução nossa, grifo do autor).” 29 “Kant’s doctrine is that the motive of duty must be present at the same time as inclination and must be the determining factor, if our action is to be good. It is, therefore a distortion of his view to say that for him an action cannot be good if inclination is present at the same time as the motive of duty. On the other hand he certainly holds that in determining our duty we must take no account of our inclinations or even of our happiness (which is the maximum satisfaction of our inclinations). By this, however, he means that we cannot affirm an action to be a duty merely because we happen to have an inclination to do it or because we think it would make us happy [...]. Kant recognizes that inclinations have a part to play in the moral life [...]. What we have to avoid is the substitution of the motive of personal happiness or personal advantage for the motive of duty. To do this is to undermine the morality [...] (PATON, Herbert James. The Categorical Imperative: A study in Kant’s moral philosophy. Philadelphia, EUA: University of Pennsylvania Press, 1971, p. 49, tradução nossa, grifos do autor).” 51 Há ainda a necessidade de alguns esclarecimentos pontuais diante da interpretação feita por Kelsen a respeito das inclinações: pode parecer num primeiro momento que Kant expõe a sua teoria da moral como se o homem racional desejasse ser livre das inclinações30, mas somente a vontade perfeita (não humana, divina) não é impelida pelo dever e vê-se livre de inclinações, que são inerentes aos seres racionais. Como exemplo, a própria inclinação de ser feliz, nós já seguimos naturalmente (pelos instintos) - portanto, ao menos indiretamente, temos o dever de assegurar nossa própria felicidade - para evitarmos entrar num estado de descontentamento que seria favorável à transgressão dos deveres (cf. KANT, 1960, p. 24 e 29). A razão pura prática31 não exige que renunciemos aos nossos chamados pela felicidade, mas sim que não os levemos em conta no momento do dever. O bom homem age somente sob máximas que ele pode ao mesmo tempo desejar que sejam leis universais. Além do mais, uma inclinação natural que tenha concordância com o dever (a benevolência, por exemplo) pode facilitar grandemente a efetividade da máxima moral, embora ela (a inclinação), por si, não possa produzi-la (cf. PATON, op. cit., p. 55 e 56). Fica evidente diante das colocações feitas que agir moralmente não significa apenas contrariar as inclinações, agir moralmente significa, em vez disso, não tomar as inclinações como fator determinante da vontade. Isso porque, se tomado esse critério como regra, incorrese num erro grosseiro: identificar sempre uma contrariedade perante a inclinação para uma possível afirmação da moralidade (o que não foi o que Kant propôs), afinal não basta termos a convicção de que pelo fato de termos contrariado uma inclinação a nossa ação será precisamente moral. Esse critério errôneo, aliás, dificulta entender as diferenças entre os tipos de ações: as realizadas por dever (autônomas, feitas pelo ser racional e livre); das ações conforme ao dever (heterônomas, por exemplo, as ações normatizadas pelo direito) e das ações totalmente contrárias ao dever (objetivamente imorais). Para um juízo mais acurado, basta utilizar o método de isolamento exposto acima e identificar o fator dominante – o dever ou a inclinação – para saber se a ação será considerada moral ou não. 30 Reafirmemos: a vontade perfeita (ou divina) é a que está livre de todas as influências das inclinações, enquanto a vontade influenciada pelas inclinações (ou, em outros termos, patologicamente determinada) é a própria vontade humana. 31 Consideramos necessário relacionar este conceito de razão pura prática a uma vontade incondicionada (ou ainda: autonomia da vontade, conforme definição infra). 52 3.1.2. O imperativo categórico kantiano e a máxima O segundo ponto levantado por Kelsen como problema em Kant refere-se à análise do imperativo categórico e a sua relação com as máximas morais. Cumpre uma prévia exposição do imperativo categórico para posteriormente entrarmos na discussão. Para expor o imperativo categórico, Kant inicia uma explicação preliminar sobre em que consistem os imperativos, por que eles existem e qual a sua relação com a vontade do ser racional: Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as acções das leis é necessária a razão, a vontade não é outra senão razão prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, as acções de um tal ser, que são conhecidas como objectivamente necessárias, são também subjectivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer como bom. Mas se a razão só por si não determina suficientemente a vontade, se esta está ainda sujeita a condições subjectivas (a certos móbiles) que não coincidem sempre com as objectivas; numa palavra, se a vontade não é em si plenamente conforme à razão (como acontece realmente entre os homens), então as acções, que objectivamente são reconhecidas como necessárias, são subjectivamente contingentes, e a determinação de uma tal vontade, conforme a leis objectivas, é obrigação (Nötigung); quer dizer, a relação das leis objectivas para uma vontade não absolutamente boa representa-se como a determinação da vontade de um ser racional por princípios da razão, sim, princípios esses porém a que esta vontade, pela sua natureza, não obedece necessariamente. [ ] A representação de um princípio objectivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se imperativo (KANT, 1960, p. 47, grifos do autor). A classificação que Kant estabelece para os imperativos resume-se em uma ordenação hipotética ou categórica, ambos os tipos determinam a ação, relacionando-a com a boa vontade (já explicada anteriormente), mas de formas diferentes. Os imperativos hipotéticos subdividem-se em dois princípios: o problemático e o assertórico-prático, e relacionam a ação com uma intenção possível ou real. Os imperativos hipotéticos problemáticos podem ser chamados de imperativos de destreza ou técnicos (ex.: “- Se quer correr, aprenda antes a andar.”) e os imperativos hipotéticos assertórico-práticos podem ser chamados imperativos de prudência ou pragmáticos (ex.: “- Se quer ser feliz, seja honesto.”). Já o imperativo 53 categórico, também chamado de o imperativo da moralidade (valendo como um princípio apodíctico), declara a ação como objetivamente necessária por si, não tendo condição como base e nem visando nenhuma intenção; relaciona-se com a forma e o princípio da ação e não com a sua matéria, por isso não pode ser extraído pela forma empírica ou de exemplos, mas funda-se somente na razão pura32 (Ibidem, p. 50 a 53). A principal questão levantada na Fundamentação da Metafísica dos Costumes foi a da possibilidade do imperativo categórico, decerto que ele não pode apoiar-se em exemplos (não pode ser demonstrado empiricamente), pois nenhum exemplo nos assegura que a vontade é determinada exclusivamente pela lei prática. O imperativo categórico é uma proposição sintética-prática-“a priori”, logo sua possibilidade tem de ser buscada totalmente “a priori”33: Teremos pois que buscar totalmente a priori a possibilidade de um imperativo categórico, uma vez que aqui nos não assiste a vantagem de a sua realidade nos ser dada na experiência, de modo que não seria precisa a possibilidade para o estabelecermos, mas somente para o explicarmos. Notemos no entanto provisoriamente que só o imperativo categórico tem o carácter de uma lei prática, ao passo que todos os outros se podem chamar em verdade princípios da vontade, mas não leis; porque o que é somente necessário para alcançar qualquer fim pode ser considerado em si como contingente, e podemos a todo o tempo libertar-nos da prescrição renunciando à intenção, ao passo que o mandamento incondicional não deixa à vontade a liberdade de escolha relativamente ao contrário do que ordena, só ele tendo portanto em si aquela necessidade que exigimos na lei (KANT, 1960, p. 57, grifos do autor). O imperativo categórico se apresenta sob três formulações34 (porém, ele é um só, diferentemente dos hipotéticos), sendo a primeira formulação: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”. Já a segunda formulação tem uma analogia com uma lei da natureza: “Age como se a máxima da tua acção 32 Segundo a definição do próprio autor: “[...] Pois a razão é a faculdade que fornece os princípios do conhecimento a priori. Por isso a razão pura é aquela que contém os princípios para conhecer algo absolutamente a priori [...] (KANT, 1999, p. 65, grifos do autor)”. 33 “Eu ligo à vontade, sem condição pressuposta de qualquer inclinação, o acto ‘a priori’, e portanto necessariamente (posto que só objectivamente, quer dizer partindo da idéia de uma razão que teria pleno poder sobre todos os móbiles subjectivos). Isto é pois uma proposição prática que não deriva analiticamente o querer de uma acção de um outro querer já pressuposto (pois nós não possuímos uma vontade tão perfeita), mas que o liga imediatamente com o conceito da vontade de um ser racional, como qualquer coisa que nele não está contida (KANT, 1960, nota de rodapé, p. 57, grifos do autor).” 34 Paton (op. cit.) divide o imperativo em cinco fórmulas, desmembrando a primeira em I - “Age apenas naquela máxima através da qual possas querer ao mesmo tempo que ela se torne uma lei universal” e Ia - “Age como se a máxima da tua ação fosse se tornar através da tua vontade uma lei universal da natureza”; enquanto a terceira fica desmembrada em III – “Então age de forma que tua vontade possa considerar-se ao mesmo tempo como legislando universalmente através da tua máxima” e IIIa – “Então age como se fosses sempre através das tuas máximas um legislador e membro num reino dos fins universal” (p. 129, traduções nossas), sendo que a segunda fórmula restou intacta. Nossa preferência, no entanto, foi seguir o texto kantiano trabalhando apenas com três fórmulas, que atendem ao nosso propósito. 54 se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza (Ibidem, p. 59, grifo do autor).” A terceira formulação do imperativo categórico é extraída somente mediante a descoberta do nexo entre a lei necessária a todos os seres racionais e o conceito de vontade de um ser racional em geral. Para chegar até esta terceira formulação, Kant adentra o campo da metafísica, traçando a diferença: das coisas ou seres irracionais que têm valor relativo (são meios) e que não dependem da nossa vontade, mas sim da vontade da natureza, e dos homens, fins em si mesmos, que têm valor objetivo e absoluto, que não podem ser empregados como meios e que limitam assim a vontade (alheia), sendo um objeto de respeito. Depreende-se então que sendo a vontade humana (ou do ser racional) autodeterminada pela razão para agir segundo a representação de certas leis, pode-se admitir que o ser racional (homem), existe como um fim em si mesmo, ou seja, ele não é apenas um meio para uso arbitrário da vontade alheia. Partindo desta conclusão Kant chega a um princípio subjetivo das ações humanas - “A natureza racional existe como fim em si” –, e chega também a uma terceira formulação35 do imperativo categórico tendo como base o conceito de “fim em si mesmo” - “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio (Ibidem, p. 68, grifos do autor).” Em suma, entendemos do imperativo categórico que quando o ser racional vai agir, deve observar se a máxima (princípio subjetivo) que rege sua ação pode tornar-se ou não uma lei universal (princípio objetivo), levando em conta os outros seres racionais em uma mesma situação, para assim saber se age ou não moralmente. A relação do princípio objetivo - a universalidade da lei prática - com o princípio subjetivo, - o fim (os homens, fins em si mesmos) -, gera como resultado a vontade de todo ser racional como uma vontade legisladora universal. O ser racional, enquanto sujeito à legislação universal emanada da sua própria vontade incondicionada é autônomo e, o ser racional que tenha a sua vontade obrigada por qualquer outra coisa é heterônomo. O conceito 35 Kant (op. cit., p. 79) justifica: “As três maneiras indicadas de apresentar o princípio da moralidade são no fundo apenas outras tantas fórmulas dessa mesma lei, cada uma das quais reúne em si, por si mesma as outras duas [...].” 55 de autonomia36 tem conexão com outro conceito empregado por Kant na obra, que é o de “reino dos fins”. O reino dos fins é um ideal e consiste numa ligação sistemática de seres racionais por meio de leis objetivas comuns, onde todos estão submetidos à lei que manda que cada um jamais trate os outros ou a si mesmo simplesmente como meios e sempre como fins em si. Neste reino o ser racional é, ao mesmo tempo, membro e chefe: enquanto submete-se à lei, é membro e enquanto legislador universal com base numa vontade livre, também é chefe (Ibidem, p. 73 a 76). Para pontuar a interligação de diversos conceitos esparsos, tais como moralidade, vontade e dever, utilizaremos as palavras de Kant (op. cit. p, 84): [...] A moralidade é pois a relação das acções com a autonomia da vontade, isto é, com a legislação universal possível por meio das suas máximas. A acção que possa concordar com a autonomia da vontade é permitida; a que com ela não concorde é proibida. A vontade, cujas máximas concordem necessariamente com as leis da autonomia, é uma vontade santa, absolutamente boa. A dependência em que uma vontade não absolutamente boa se acha em face do princípio da autonomia (a necessidade moral) é a obrigação. Esta não pode, portanto, referir-se a um ser santo. A necessidade objectiva de uma acção por obrigação chama-se dever (grifos do autor). A terceira seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes - a Transição da Metafísica dos Costumes para a Crítica da Razão Pura Prática - apresenta a liberdade como um conceito chave para a explicação da autonomia da vontade. Kant (op. cit., p. 93 a 95) anuncia a vontade dos seres racionais como uma espécie de causalidade, que tem como uma propriedade a liberdade, esta que pode ser eficiente independentemente das causas estranhas que a determinem. Em comparação, a necessidade natural é a propriedade da causalidade dos seres irracionais determinados a agir por influência de causas estranhas (ou alheias). Kant, além disso, classifica a liberdade sob a forma negativa, que é a saída da causalidade natural pela razão e também sob a forma positiva (uma ideia da razão), que é a autodeterminação da vontade pela lei moral, ou ainda, a autonomia. 36 “Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objectos do querer). O princípio da autonomia é portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal (Ibidem, p. 85).” 56 Bittner (2008) observa que a heteronomia37 tem como base a dependência a um objeto da vontade, enquanto a autonomia equivale a uma determinação pela máxima a ser aceita e não por determinação do objeto de um querer a ela correspondente, logo: “[...] há autonomia quando a forma de uma legislação universal possível pertencente à máxima determina a vontade para sua aceitação (p. 23)”. Ademais, para Bittner (op. cit.) o sentido kantiano de autonomia, não repousa sobre o: [...] fato de que uma vontade tenha em geral máximas, mas que tenha aquelas máximas cuja aceitação é determinada não pela ‘constituição dos objetos do querer’, e sim por sua forma, que elas sejam concebidas simultaneamente no mesmo querer como lei universal. O problema é como essa determinação da vontade pela forma da lei significa autonomia (p. 22, grifo do autor). Voltando para o texto da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant expõe na terceira seção duas colocações regressivas e retributivas entre si: o ser racional é livre porque se submete à lei moral e, ao mesmo tempo, submete-se à lei moral por que é livre. Isso se apresenta como um aparente problema que relaciona a liberdade do ser racional e a sua autonomia da vontade, onde inclusive parece haver um círculo vicioso do qual não seria possível evadir-se, mas a sua saída para o problema foi diferenciar o ser racional enquanto pertencente aos mundos inteligível e sensível: Por tudo isto é que um ser racional deve considerar-se a si mesmo, como inteligência (portanto não pelo lado das suas forças inferiores), não como pertencendo ao mundo sensível, mas como pertencendo ao mundo inteligível; tem por conseguinte dois pontos de vista dos quais pode considerar-se a si mesmo e reconhecer leis do uso das suas forças, e portanto de todas as suas acções: o primeiro, enquanto pertencente ao mundo sensível, sob leis naturais (heteronomia); o segundo, como pertencente ao mundo inteligível, sob leis que, independentes da natureza, não são empíricas, mas fundadas somente na razão. [ ] Como ser racional e, portanto, pertencente ao mundo inteligível, o homem não pode pensar nunca a causalidade da sua própria vontade senão sob a ideia da liberdade, pois que independência das causas determinantes do mundo sensível (independência que a razão tem sempre de atribuir-se) é liberdade. Ora à ideia da liberdade está inseparavelmente ligado o conceito de autonomia, e a este o princípio universal da moralidade, o qual na ideia [ou idealmente] está na base de todas as acções de seres racionais como a lei natural está na base de todos os fenômenos (KANT, 1960, p. 102, grifos do autor). Para tentar tornar clara esta mesma questão, Bittner (op. cit.) divide a autonomia em moral e natural, destacando as suas diferenças: 37 si. Seguiremos o entendimento de que heterônomo é o ser racional sujeito às leis que ele próprio não legislou para 57 [...] Autonomia natural significa querer, para minha vida, o princípio da ação no querer da ação particular e, em contrapartida, querer o particular devido ao princípio. Isso deve agora ser deslocado à autonomia moral. Ela não diz respeito à relação da ação com a máxima, mas à escolha da própria máxima. Nessa resolução, autonomia significa, analogamente, que a vontade, conciliando-se consigo mesma, quer ao mesmo tempo a máxima particular e a regra universal da mesma, e aquela devido a esta; portanto quer a máxima enquanto regra universal e com vistas a ela. Segundo seu conteúdo, a máxima é já da mais alta universalidade, a saber, princípio de toda uma vida. Ela é um particular apenas por intermédio de sua forma – de valer apenas em razão de minha decisão para minha vida, portanto por intermédio de sua subjetividade. [...] Por isso, a legalidade possível não é um critério acrescentado à máxima, mas de acordo com a expressão de Kant, sua forma: a saber, como aquilo que é querido. [ ] [...] A vontade determina-se para uma lei, da máxima, em virtude de sua autonomia natural; a [autonomia] moral exige dela exatamente compreender e querer essa autodeterminação novamente como lei. O que a moralidade (Sittlichkeit) exige da vontade é, assim, apenas sua reflexão, que se refira novamente ao exercício de sua autonomia natural como vontade autônoma.[...] A autonomia realiza-se somente enquanto autonomia moral, na qual a vontade determina como autônomos os princípios de seu querer autônomo. A “forma da máxima” de Kant – que está apreendida no próprio querer, ao mesmo tempo, como lei universal – pertencente a uma vontade cuja autonomia legitima-se exatamente com isso como dotada de conteúdo (p. 24, grifos do autor). Podemos ainda elucidar esta solução kantiana em outros termos: pelo seu caráter empírico, o homem faz parte da natureza e os seus atos sujeitam-se ao determinismo universal, por outro lado, pelo seu caráter inteligível, o homem escapa ao mundo dos fenômenos e é livre. Eis que há a seguinte diferença quando nos deparamos com o plano dos fenômenos (onde o determinismo encadeia os acontecimentos) e com o plano das coisas em si (onde se pode conceber uma causalidade livre): os nossos atos, enquanto manifestam-se no mundo dos fenômenos, regem-se pelas leis desse mundo, todavia são livres na medida em que emanam de um eu que está além do mundo dos fenômenos; concilia-se, assim, a liberdade humana e o determinismo físico com base na distinção entre os fenômenos e os númenos (cf. PASCAL, op. cit., p. 102). Em conclusão, a saída encontrada por Kant (1960, p. 104) para finalmente estabelecer o imperativo categórico como uma proposição sintética “a priori” fica detalhada a seguir: E assim são possíveis os imperativos categóricos [apesar de que seja um só38], porque a ideia da liberdade faz de mim um membro do mundo inteligível; pelo que, se eu fosse só isto, todas as minhas acções seriam sempre conformes à autonomia da vontade; mas como ao mesmo tempo me vejo como membro do mundo sensível, 38 Nesta exposição preferimos nos filiar às palavras de Kant (1960, p. 59) constantes da segunda seção “Transição da filosofia moral popular para a Metafísica dos costumes”: “O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal (grifo do autor).” 58 essas minhas acções devem ser conformes a essa autonomia. E esse dever categórico representa uma proposição sintética a priori, porque acima da minha vontade afectada por apetites sensíveis sobrevém ainda a ideia dessa mesma vontade, mas como pertencente ao mundo inteligível, pura, prática, por si mesma, que contém a condição suprema da primeira, segundo a razão; mais ou menos como às intuições do mundo sensível se juntam conceitos do entendimento, os quais por si mesmos nada mais significam senão a forma e lei em geral, e assim tornam possíveis proposições sintéticas a priori sobre as quais repousa todo o conhecimento de uma natureza (grifos do autor). O imperativo categórico retomado a partir da leitura de Kant nos fornece a base necessária para retornarmos a analisar a interpretação kelseniana, pois dela salta a dúvida colocada sobre a máxima, um dos elementos da fórmula do princípio supremo da moralidade: Kelsen vislumbra uma fragilidade no imperativo categórico dizendo que qualquer tipo de máxima (moral ou imoral) pode ser elevada a uma lei universal39, o que descaracteriza o imperativo categórico como fórmula da moral, tornando-o assim uma fórmula vazia de conteúdo. Diz também que o verbo “poder” ([...] querer que uma máxima torne-se uma lei universal), utilizado por Kant no imperativo categórico traduz-se implicitamente em um “dever” ([...] querer que uma máxima torne-se uma lei universal), porque é um erro afirmar que uma máxima imoral se contradiz por si própria, havendo um valor de justiça préconcebido e implícito em contraposição à máxima considerada imoral (cf. seção 2.3 supra). Não podemos concordar com esta análise de Kelsen, pois parece ter ele subtraído o imperativo categórico do seu objetivo e não ter levado em consideração o percurso traçado por Kant em sua obra, na medida em que ele objetivava a investigação do princípio supremo da moral. Os autores que serão citados adiante também têm restrições com relação à teoria de Kelsen e, em especial, quanto ao relativismo kelseniano: primeiramente Siches (2008), que foca seus comentários na metodologia interpretativa kelseniana; em seguida Reale (1983), que tece uma crítica mais dura à teoria kelseniana como um todo e, por fim, Matos (2006), que identificou a literalidade interpretativa de Kelsen relacionada ao imperativo categórico kantiano. Apresentamos também o pensamento de O’Neill (1989), que embora não se refira diretamente a Kelsen, expõe um entendimento da teoria de Kant oposto ao trazido pela Teoria Pura do Direito. 39 Relembrando alguns exemplos: de querer o suicídio; fazer uma promessa com a intenção de não cumpri-la; emprestar dinheiro sabendo não poder restituí-lo; buscar o prazer no lugar de aperfeiçoar as disposições naturais humanas; e contribuir com o próprio bem-estar sem importar-se com o bem estar alheio (cf. seção supra 2.3). 59 Para Siches (2008, p. 406), apesar dessa primeira aparência de total agnosticismo quanto aos valores, o pensamento kelseniano não renuncia a uma valoração do Direito. Segundo ele, o que Kelsen considera é que, embora tenha uma central importância, o problema axiológico não pode ser levantado em um plano estritamente científico ou objetivo, devendo sim ser julgado conforme o ponto de vista subjetivo. Entendamos o termo “subjetivo” não como se cada indivíduo tivesse o seu próprio sistema axiológico, pelo contrário, esse sistema é resultado da ação recíproca entre os indivíduos que integram um grupo social (denominamos costume, ou nos termos de Kelsen, sistemas de moral). Vê-se que Siches (op. cit.) também considera perspicaz, embora temerária, a atitude kelseniana de encontrar na teoria moral kantiana uma lacuna e examiná-la em apartado, de uma forma a-histórica. Consideramos ser este método kelseniano de interpretação o fator facilitador na desqualificação do imperativo categórico na obra A Justiça e o Direito Natural. Descrevendo o método de interpretação de Kelsen ao expor as teorias de justiça, ele revela: [...] Kelsen intenta uma crítica de algumas das principais doutrinas da justiça em relação aos valores implicados por esta ideia. Tal crítica mostra a habitual agudeza e brilhantismo de Kelsen; mas está determinada por seus preconceitos, os quais operam como uma espécie de rede, que, dos pensamentos criticados, deixa passar somente aquelas partes nas quais é fácil cravar objeções, sobretudo quando essas partes ficam desmembradas de seu contexto total. [...] Considera que o imperativo categórico de Kant não esclarece quais são os princípios que desejamos estabelecer a todos os homens, e supõe os preceitos tradicionais da moral e do Direito do seu tempo (p. 410, tradução nossa).40 Siches prossegue dizendo que Kelsen busca dar uma valoração positiva ao seu relativismo axiológico, o que não implica numa posição amoral, mas, pelo contrário, atribui ao seu relativismo um nível moral superior ao das éticas41 objetivas por causa da enorme responsabilidade que recai sobre o indivíduo quando decide por si mesmo sobre o que é justo e o que é injusto. Ademais, Kelsen considera seu sistema de valores superior a qualquer outro pelo fato de o relativismo incluir a tolerância, diferentemente dos modelos morais que ele considera absolutistas ou totalitários, que não deixam margem para a expressão de 40 “[...] Kelsen intenta una crítica de algunas de las principales doctrinas de la justicia en relación con los valores implicados por esta idea. Tal crítica muestra la habitual agudeza y brillantez de Kelsen; pero está determinada por sus prejuicios, los cuales operan como una especie de red, que, de los pensamientos criticados, deja pasar solamente aquellas partes en las que es fácil clavar objeciones, sobre todo cuando esas partes quedan desmembradas de su contexto total. [...] Considera que el imperativo categórico de Kant no aclara cuáles son los princípios que deseamos liguen a todos los hombres, y supone los preceptos tradicionales de la moral y del Derecho de su tiempo (SICHES, Luis Recaséns. Tratado General de Filosofia del Derecho. 19ª ed. México, Cidade do México: Editorial Porrúa, 2008, p. 410, tradução nossa).” 41 Leia-se também: “aos tipos, ou aos modelos de moral”. 60 pensamentos dissidentes e diferentes. Por outro lado, a responsabilidade moral que Kelsen atribui ao indivíduo tem que ter um critério objetivo para ser determinada, para que assim não seja tomada como um mero capricho ou acaso. Eis que ele observa que Kelsen, mesmo considerando seu sistema moral melhor, não consegue justificá-lo (trazer evidências) do ponto de vista científico-racional, ou seja, trata-se de uma justificação inefável, mas que não deveria fundamentar da parte de Kelsen a geração de desconfiança para com as possibilidades da mente em encontrar uma saída (Idem, Ibidem). A posição de Reale, por seu turno, (1983) é a de que Kelsen manteve, com sua teoria “rigorosamente travada”, um apego às construções lógico-formais correspondente a um relativismo filosófico, com um caráter de abstração ou a-historicidade, parecendo ter sido sentida por ele em suas últimas pesquisas. Todavia, não deixa de classificar sua teoria como “unilateral”: Empenhado na determinação das estruturas e categorias lógicas da Ciência Jurídica, Hans Kelsen superou, com reconhecida genialidade, certas concepções estreitas da Jurisprudência anterior, depurando-a de resíduos jusnaturalistas. A primeira contribuição inestimável de Kelsen, não obstante a unilateralidade de sua concepção (grifo nosso), foi no sentido de determinar melhor a natureza lógica da norma jurídica (p. 457, grifo do autor). O’Neill (1989, p. 64) não faz uma crítica direta a Kelsen em seu texto, mas podemos identificar uma clara oposição relacionada à afirmação kelseniana de que Kant estivesse supondo um valor moral pré-concebido e implícito ao dizer que uma máxima imoral se contradiz. Quando a autora expressa seu entendimento da teoria kantiana revela que a razão diferencia-se dos desejos por não ser uma causa externa para a vontade. Os desejos vêm e vão de forma contingente e só afetam as deliberações do ser racional enquanto duram; a razão, por sua vez, é fundamentada na autonomia e apresenta-se como um imperativo porque somos finitos e não porque sua autoridade é externa. Além disso, ela sustenta que ser livre no sentido moral kantiano significa não fazer nada arbitrário e ininteligível para os outros, nem significa uma liberdade existencialista radical (fazer tudo o que se quer quando e onde se quer), mas sim criar valores ou padrões próprios, que sejam válidos para todos os seres racionais, sem submeter-se à vontade alheia: [...] A autonomia kantiana não é uma liberdade existencialista radical; nem é uma versão moderada da liberdade existencialista. No entendimento de Kant tal liberdade, se encontrada, seria uma liberdade ‘sem lei’, meramente ‘negativa’ e a antítese da autonomia. 61 [ ] [...] Segundo Kant, autonomia no pensamento ou na ação é uma questão de submissão apenas àqueles padrões necessários quando não há submissão a padrões externos. Por isso, a máxima fundamental da autonomia, como também da moralidade, é agir apenas sob máximas através das quais se possa ao mesmo tempo querer que sejam leis universais. Esse pequeno princípio é meramente um compromisso a não basear a ação em nada contingente ou arbitrário que possa limitar a sua inteligibilidade 42 (O’NEILL, ibidem, p. 76, tradução nossa). Com o fim de corroborar nossa objeção, utilizaremos também as palavras de Matos (2006, p. 156) que constam de uma nota de rodapé cujo número é 47, onde há discordância quanto ao sentido conferido por Kelsen ao imperativo categórico em sua interpretação: Não concordamos totalmente com a argumentação de Kelsen na crítica à filosofia moral kantiana, já que ele parte da análise meramente verbal da expressão poder querer transformar uma máxima em lei universal. Ele entende, por meio de sua análise, que todos podem querer que suas ações se tornem leis universais. Por fim, sustenta que Kant pressupõe uma moral que excluiria certas máximas, enxergandoas como imorais, portanto não aptas a se consubstanciarem em leis universais. Na verdade, Kant, não pressupõe uma moral, mas antes uma idéia de razão, pois a verdadeira função do imperativo categórico, conforme o concebe Kant, é garantir a moralidade das ações humanas. O homem, como sujeito pertencente ao mundo do ser (Sein) e do dever-ser (Sollen) – natureza e cultura, necessidade e liberdade – precisa de um guia que o auxilie a deixar o determinismo natural de lado, para que assim suas ações sejam totalmente morais (livres), o que em Kant somente pode significar: racionais. Se o homem não estivesse sujeito às afecções sensíveis não haveria necessidade do imperativo categórico: sua conduta seria totalmente moral. Mas a realidade é diversa. Faz-se necessário o imperativo categórico para que o ser humano seja livre e possa construir uma sociedade de justiça (a paz perpétua kantiana). A verdadeira formulação do imperativo categórico é: ages de tal modo que a máxima de tuas condutas possa ser sempre querida por ti e por todos como a lei universal válida para os seres livres (livres por que racionais). Em última instância, a razão – elemento diferenciador e base primordial do mundo da cultura – é que será o fundamento da justiça em Kant [...]. Para Kant, justiça é distribuir de forma igualitária o maior bem da humanidade: a liberdade. Discutir o que é liberdade e igualdade, elementos centrais da definição acima explicitada, é uma tarefa à qual Kant dedicou toda a sua existência, chegando a resultados que, entretanto, não podem ser cientificamente considerados absolutos, imutáveis e inquestionáveis. Cabe, aqui sim, a crítica kelseniana, pois os conceitos kantianos de liberdade e igualdade – e principalmente as consequências práticas da aplicação dos mesmos – podem variar enormemente de pessoa a pessoa e de sociedade a sociedade. E mais: no momento de concretização da justiça, será um ordenamento jurídico positivo que determinará explícita ou implicitamente o que é igualdade, o que é liberdade e as respectivas consequências normativas da utilização de tais conceitos no mundo do direito (grifos do autor). 42 “[...] Kantian autonomy is not existentialist radical freedom; it is not even a diluted version of existentialist freedom. On Kant’s understanding such freedom, if found, would be a ‘lawless’, merely ‘negative’ freedom and the antithesis of autonomy. [ ] […] On Kant’s account autonomy, in thought or in action, is a matter of submitting only those standards that are required if there is not to be submission to alien standards. Hence the fundamental maxim of autonomy, as of morality, is to act only on maxims through which one can at the same time will that they be universal laws. This meager principle is merely a commitment not to base action on anything contingent or arbitrary that would limit its intelligibility (O’NEILL, Onora. Constructions of Reason: Exploration of Kant’s Practical Philosophy. EUA, New York: Cambridge University Press, 1989, p. 76, tradução nossa).” 62 A importante questão a ser esclarecida é qual o sentido de máxima que seguiremos para dar uma melhor interpretação ao imperativo categórico. A máxima, consoante a definição de Kant, é o “princípio subjetivo do querer” e, o ser racional, ao agir, deve verificar se sua máxima no momento da ação pode se tornar uma lei universal válida para os outros seres racionais. Chamemos daqui em diante este exercício racional do agente de “teste de universalização” da máxima, para facilitar o entendimento. Temos agora que identificar qual é esse sentido de máxima no imperativo categórico, pois a interpretação literal (“princípio subjetivo do querer”) possibilitou a Kelsen entender que qualquer máxima pode ser alçada a uma lei universal. Se levarmos em consideração a máxima como uma “conduta ou regra de vida”, no sentido de expressar o ser humano que queremos ser no mundo, veremos que o imperativo categórico não pode ser resultado de máximas imorais e nem ser considerado vazio: A máxima que se forma como sabedoria de vida a partir da experiência concreta do mundo apresenta, com isso, a “moral natural” de um ser humano, em oposição àquela determinada a partir da razão pura. Pois nela expressa-se a representação subjetiva de uma boa vida. Máximas são regras de vida: elas expressam que tipo de ser humano eu quero ser – alguém que ninguém pode insultar impunemente; ou alguém a quem não interessa nenhuma necessidade alheia; uma vida de avareza, ou uma vida de gozo. Elas contêm o sentido de minha vida; nomeadamente quando “sentido” não é entendido como realização transcendente, mas simplesmente como a maneira pela qual penso a vida como um todo, “sentido” entendido não como fim, mas orientação. [...] Que os seres humanos já estejam sempre em relações morais (sittlichen) concretas, e no seu contexto compreendam e determinem suas vidas, como Aristóteles sabia, não é tampouco esquecido em Kant, está antes na base da reflexão moral: suas máximas são essa autodeterminação do indivíduo a partir da experiência de seu mundo (BITTNER, op. cit., p. 13, grifos do autor). A universalidade da máxima relaciona-se com o sentido de regra de vida, englobando as diversas ações em situações distintas, sendo este o meio pelo qual se expressa. Uma universalização demasiada desqualifica a máxima (como exemplo: “- Quero ser feliz”), porque esse tipo de regra tem sob si projetos (de vida) distintos e não pode ser um princípio determinante de vida. Para agir de acordo com a máxima é preciso compreender as situações sua aplicação considera a situação particular e seu intento geral, ela não diz como se age de cada vez -, pois seu emprego não consiste em uma mera subsunção. Importa destacar uma marca distintiva entre as máximas e os simples propósitos: como máximas são regras de vida, se acontecer de o homem se conduzir de modo a mudar a regra que tomou para si devido a uma melhor compreensão das suas condutas, a consequência será que a mudança terá como 63 objeto a orientação da sua vida como um todo, pois máximas repousam em conhecimentos que têm sentido de experiência de vida; ao passo que a substituição de meros propósitos não exige o mesmo tipo de consideração que as máximas, pois ela pode acontecer por meros fatos exteriores e bem particulares (exemplo: quero acordar cedo todos os dias, mas por um certo motivo não consigo, então resolvo mudar meu propósito) (cf. BITTNER, op. cit., p. 15). Höffe (1986) mantém conformidade com o conceito de máxima dado por Bittner, utilizando-se da expressão “âmbito geral da vida”: As máximas estabelecem para um âmbito vital, por exemplo para todos os casos de necessidade, o princípio orientador: a disponibilidade ou a indiferença. As normas de ação contidas em uma máxima especificam por outro lado o princípio orientador com situações típicas dentro do âmbito geral da vida.[...] [ ] [...] Como as máximas versam sobre princípios gerais da vida, evitam que a biografia de uma pessoa se desagregue em uma série interminável de normas ou em inumeráveis ações concretas. Elas permitem integrar as diversas porções de uma vida em unidades de sentido, e o imperativo categórico examina se tais unidades são morais ou não. [...]43 (p. 175 e 176, tradução nossa). Vimos que a máxima - “regra de vida” - possui uma amplitude maior que o mero propósito, por isso sua universalidade pode ser testada sob a fórmula do imperativo categórico kantiano. O’Neill (1989) também analisa essa diferenciação e acrescenta que máximas, quando muito restritas a ponto de serem bem específicas, tornam-se simples intenções, motivando interpretações equivocadas do imperativo categórico, uma vez que sob essa condição elas também podem ser universalizadas sem apresentar contradições. As intenções, caracterizadas pela especificidade, apresentam-se como no exemplo “- Manterei escravos se eu estiver numa posição de poder suficiente” e se adequam aos imperativos hipotéticos, onde há interesse e condição. Para O’Neill, uma máxima pode apresentar contradições conceituais (de ideia) ou inconsistências volitivas, no entanto, a universalização de uma simples intenção sem contradição conceitual não implica numa falha do imperativo categórico: “[...] Precisamente porque o Imperativo Categórico formula um teste de universalidade que se aplica a máximas, a não apenas a alguma intenção, ele não é refutado pelo fato de que 43 “Las máximas establecen para un ámbito vital, por ejemplo para todos los casos de necesidad, el principio directivo: la servicialidad o la indiferencia. Las normas de acción contenidas en una máxima concretan en cambio el principio directivo con situaciones típicas dentro del ámbito general de la vida. [...] [ ] [...] Como las máximas versan sobre principios generales de la vida, evitan que la biografia de una persona se disgregue en una serie interminable de normas o en innumerables acciones concretas. Ellas permiten integrar las diversas prociones de una vida en unidades de sentido, y el imperativo categórico examina si tales unidades son morales o no [...] (HÖFFE, op. cit., p. 175 e 176, tradução nossa).” 64 relativamente intenções específicas geralmente possam ser universalizadas sem contradição conceitual. […]44 (p. 97, grifo da autora, tradução nossa)”. Detalhando a explicação anterior, O’Neill observa que em uma contradição conceitual admitem-se exceções e o agente coloca-se numa situação especial diante da máxima. Por exemplo, uma máxima como “- Quero ser um senhor de escravos”, não é universalizável porque ao menos um senhor de escravos deve existir e, neste caso, o próprio agente se coloca numa posição especial, que não se sujeita à universalização, pois ele não admitirá ser escravo de outrem. A inconsistência volitiva ocorre em máximas como “- Não deve haver beneficência”, que não é contraditória, mas também não se sustenta na universalidade porque a intenção do agente é não auxiliar ninguém que precise de ajuda, contudo exige-se dele o compromisso de nunca aceitar uma ajuda alheia quando precisar (Ibidem, p. 98 e 99). Vale adicionar que a inconsistência volitiva relaciona-se com a tentativa de universalizar máximas negligenciando inteiramente virtudes sociais imprescindíveis para os seres racionais alcançarem seus objetivos: [...] Esses argumentos podem revelar as inconsistências volitivas envolvidas em tentar universalizar máximas negligenciando inteiramente as virtudes sociais – beneficência, solidariedade, gratidão, sociabilidade e outras semelhantes – para seres que são racionais e que ainda não estão sempre aptos a alcançar o que intentam sem auxílio. Segue desse ponto que as virtudes sociais são interpretadas de forma bem diferente nas éticas Kantiana e heterônoma. Uma teoria ética para agentes não heterônomos enxerga as virtudes sociais como moralmente necessárias, não porque são desejadas ou queridas, mas porque são exigências necessárias para a ação num ser que não é autossuficiente.45 […] (Ibidem, p. 101, tradução nossa). Agir segundo princípios ou segundo uma vontade (ou ainda segundo a representação das leis) é agir pela razão prática, como já vimos. O sentido de razão prática auxilia na compreensão do conceito de máxima, tomando como pressuposto que princípios são máximas. Desse ponto, inferimos que máximas não são leis objetivas do agir, apresentam 44 “[...] Precisely because the Categorical Imperative formulates a universality test that applies to maxims, and not just to any intention, it is not rebutted by the fact that relatively specific intentions often can be universalized without conceptual contradiction. [...] (O’Neill, 1989, p. 97, grifo da autora, tradução nossa).” 45 “[…] Such arguments can reveal the volitional inconsistencies involved in trying to universalize maxims of entirely neglecting the social virtues – beneficence, solidarity, gratitude, sociability and the like – for beings who are rational yet not always able to achieve what they intend unaided. It follows from this point that the social virtues are very differently construed in Kantian and in heteronomous ethics. An ethical theory for nonheteronomous agents sees the social virtues as morally required, not because they are desired or liked but because they are necessary requirements for action in a being who is not self-sufficient. [...] (Ibidem, p. 101, tradução nossa).” 65 apenas uma lei válida do querer para uma ação futura de um ser racional, por isso esta lei é diferente de uma lei teórica, que tem validade objetiva independentemente de ser ou não representada. A máxima depende inteiramente de o ser racional querer que ela seja a lei das suas ações futuras e dele representá-la como lei válida, e é exatamente isso que o faz ser autônomo, pois a sua lei não provém de um estatuto externo. (cf. BITTNER, op. cit., p. 17). Aderimos expressamente a este sentido de máxima como regra de vida, pois ele nos dá a orientação necessária para entender por que não é qualquer máxima que pode ser considerada válida universalmente: máxima não é mero propósito. Diante das implicações deste sentido dado à máxima verifica-se que tomar como nossa a máxima de mentir, por exemplo, pressupõe que todos, em situações semelhantes, queiram para suas vidas que a mentira seja um princípio ou uma regra e, quem esperaria tirar vantagem querendo uma máxima universal desse tipo seria também vítima de infinitas e constantes mentiras, resultando que o proveito esperado pelo agente não seria extraído do seu princípio do querer. Esse é o motivo pelo qual a máxima imoral se contradiz, é por isso que ela não se sustenta como uma lei universal. Salientamos também, seguindo a classificação dos imperativos proposta por Kant, que o cálculo de meios e fins caracteriza imperativos hipotéticos (que não têm validade universal), não categóricos. Assim, não podemos atribuir ao imperativo categórico um caráter de vacuidade, pois o alvo de uma mentira ou promessa falsa – o ser humano -, vinculado ao ideal do “reino dos fins” de Kant, seria usado como meio para atingir um fim e não considerado um fim em si mesmo. Tal uso do imperativo categórico não se coaduna com a nossa leitura de Kant e nem com os comentadores que nos auxiliam no entendimento do texto kantiano, que ratificam não se tratar de uma fórmula vazia de conteúdo, e que não pode ser preenchida com qualquer querer. As explicações de Paton (1971, p. 58 e 61) nos auxiliam a reforçar que o valor moral da ação não existe para satisfazer nenhuma inclinação, nem depende de resultados visados ou a atingir46 - uma forma de Kant rejeitar qualquer forma de utilitarismo, mesmo tendo ciência 46 E é precisamente neste sentido que Kelsen traz o exemplo, na obra A Justiça e o Direito Natural ([1960], 2009), em que o indivíduo egoísta pode querer que todos ajam tal qual, ou seja, ele deseja que o egoísmo impere universalmente para que possa (ou com o fim de) renunciar a ajuda ao próximo, tratando os demais seres racionais como meios para atingir este fim e desejando este resultado final, ou seja, não está agindo pelo dever. Necessário citar aqui as palavras de Kant: “Para desenvolver, porém o conceito de uma boa vontade altamente estimável em si mesma e sem qualquer intenção ulterior, conceito que já reside no bom senso natural e que mais precisa ser esclarecido do que ensinado, este conceito que está sempre no cume da apreciação de todo o valor das nossas ações e que constitui a condição de todo o resto [...] (KANT, 1960, p. 26, grifo nosso)”. Conjugando o exemplo kelseniano com esta citação kantiana, vemos que o julgamento moral já reside previamente na razão 66 de que as ações pelo dever também produzirão resultados -, mas o fator distintivo é que o valor moral independe dos resultados visados ou conseguidos. Através da teoria kantiana, concebemos as máximas sob dois aspectos: o formal e o material. O último baseia-se nas inclinações sensíveis, é o aspecto material, ou “a posteriori” das máximas, que depende da nossa experiência ou desejo; já quando as máximas não se baseiam em inclinações sensíveis, nem dependem da experiência ou do desejo, estão sob o aspecto formal e são “a priori”47; é aqui (sob o aspecto formal) que o homem age pelo dever. A máxima, por ser um princípio subjetivo do querer, não precisa necessariamente confundir-se com o sentido de realizar os desejos particulares do agente e nem sempre confundir-se com valores heterônomos. O que Kant propõe com o imperativo categórico é um teste da aceitabilidade moral do que nos propusermos a realizar, que se concretiza sob a seguinte reflexão: Embora máximas sejam princípios da ação de agentes particulares em momentos particulares, um mesmo princípio tem de ser adotado como uma máxima por muitos agentes em vários momentos ou por dados agentes em numerosas ocasiões. Este é um corolário da concepção de Kant de liberdade humana, em que podemos adotar ou descartar máximas, incluídas aquelas que se referem aos nossos desejos48 (O’NEILL, 1989, p. 84, tradução nossa). Ressalte-se que as máximas não são meramente princípios que podemos conceber (ou mesmo desejar), mas sim os que queremos ou adotamos como princípios da ação. Querer não se trata apenas de desejar algo em um caso, mas envolve um comprometimento para fazer algo quando a oportunidade surge e é reconhecida. Este conceito advém da posição de Kant de que quem quer o fim também quer os meios necessários para realizá-lo (cf. O’NEILL, 1989, pág. 90). vulgar e o que Kant busca é fundamentá-lo na Metafísica dos Costumes, “[...] não só por motivos de ordem especulativa para investigar a fonte dos princípios práticos que residem a priori na nossa razão, mas também porque os próprios costumes ficam sujeitos a toda a sorte de perversão enquanto lhes faltar aquele fio condutor e norma suprema do seu exacto julgamento.[...] (Ibidem, p. 16, grifo do autor).” 47 Não há consenso quanto a esta classificação: “Um conhecimento, que decide a regra do meu agir, será a cada vez um tipo de experiência – nem máximas nem propósitos podem ser constituídos a priori. Mas, conforme esclarecido anteriormente, são experiências de tipos distintos (BITTNER, Rüdiger. Máximas. Trad. Mauro Luiz Engelmann e Rogério Passos Severo, rev. Valério Rohden. In: Studia Kantiana – Revista da Sociedade Kant Brasileira, n. 5, 2004, p. 13, grifo do autor).” 48 “Although maxims are the principles of action of particular agents at particular times, one and the same principle might be adopted as a maxim by many agents at various times or by a given agent on numerous occasions. It is a corollary of Kant’s conception of human freedom that we can adopt or discard maxims, including those maxims that refer to our desires (O’NEILL, 1989, p. 84, tradução nossa).” 67 Sob uma análise primária e superficial pode-se dizer que o argumento de Kant sobre a fórmula do imperativo categórico demonstra ter uma fragilidade, certo que a máxima para o agente moral deve ser formal e excluir a busca pela produção de resultados, mas, se assim fosse, a única característica de um princípio formal (a máxima com a forma de uma lei) que tivesse toda a sua matéria excluída seria a sua universalidade, ou mais, seria apenas uma conformidade com a lei universal. A saída encontrada para esta aparente objeção – idêntica à objeção levantada por Kelsen, vale lembrar – é excluir da máxima que rege a ação toda a referência à satisfação das inclinações e à busca por resultados, tomando em tal caso uma máxima puramente formal e que não esteja a serviço das inclinações, que tenha validade para todos os agentes racionais (cf. PATON, op. cit., p. 71 e 72). O formalismo e o legalismo atribuídos à filosofia moral kantiana também são objeto de defesa para Paton. Segundo ele, isso tem conexão com a crença de que Kant proíba (ou condene) ações pelos nossos próprios motivos e mande agir em prol de uma vaga abstração cuja denominação é a lei. Mas segundo Kant, toda ação visa um resultado, fim ou objeto, a nossa vontade é patologicamente determinada e isso gera interesses no homem para agir conforme suas inclinações. Quando agimos sob este aspecto temos uma ação mediata, porque visamos um objeto de desejo ou inclinação, no entanto temos um interesse imediato por ações morais. Isso significa que quando agimos moralmente não agimos somente por respeito a uma abstração vazia intitulada a lei, mas, contrariamente, tomamos interesse imediato na ação quando a validade universal da sua máxima é suficiente para determinar as bases da vontade.49 Posto que a lei (universal) é o princípio e a forma próprios da ação moral, as consequências derivam da lei: não se deve fazer o contrário, obedecer a lei por causa das consequências, estas que não podem ser a base para que uma ação tenha valor moral. O teste de universalização do imperativo categórico tem a função de observar se a máxima da ação é compatível com a natureza da lei universal que mantenho para mim e para os outros. (Ibidem, p. 75). A máxima (conduta de vida) válida para todos os seres racionais, longe de ser um mero propósito momentâneo, orienta a ação moral. Conjugar este conceito de máxima com o que expusemos sobre o método de isolamento das inclinações auxilia no entendimento do 49 É este interesse imediato pela ação moral, também chamado de reverência (ou respeito à lei), que dificulta a distinção entre a ação moral e a ação movida por inclinações imediatas, como o caso da benevolência e da compaixão; logo, a lei não é um fim para o qual a ação é um meio, tratando-se sim da forma ou princípio próprio da ação. 68 conteúdo do imperativo categórico, que não é uma fórmula vazia. Desta forma, diferentemente do que Kelsen atestou, máximas imorais não podem tornar-se leis universais válidas para todos os seres racionais. Veremos adiante como máximas podem ser alçadas a leis universais válidas para todos mediante o uso público da razão e, posteriormente, como isso possibilita a relação e o convívio de vários agentes autônomos em sociedade, regulados pelo direito. 3.2. Uma leitura contemporânea de Kant: Onora O’Neill e a importância do uso público da razão De acordo com O’Neill (2004), o conceito de autonomia kantiano foi relacionado ao longo do tempo com outros conceitos como autocontrole, autorrealização ou autolegislação, todos difundidos contemporaneamente, dando suporte a um individualismo autocentrado e possessivo, supervalorizador da independência, dissociando a autonomia do sentido de solidariedade e de um contexto social. Kant então surge neste panorama como o proponente de uma ética individualista e a maior dificuldade relacionada à autonomia kantiana é saber como pode haver um conceito coerente que não seja político ou individualista: “[...] Como podemos dar sentido a uma Fórmula da Autonomia que apela para ‘a ideia do querer de todo ser racional como uma vontade que legisla universalmente’? (O’ NEILL, 2004, p. 183, grifo da autora, tradução nossa)”50. A pergunta anterior é seguida por outras também de interpretação literal: Como imaginar cada um, na pluralidade de agentes racionais, legislando universalmente para todos sem haver conflito entre os princípios dos legisladores? Como uma pluralidade de vontades não harmonizadas previamente pode ser ou se tornar uma legislação universal? A resposta a estas questões só se encontra se os agentes que legislam universalmente seguirem estritamente duas condições: primeiro escolher princípios que todo e qualquer ser racional poderia selecionar e segundo, escolher princípios que todo e qualquer ser racional possa adotar como 50 “[...] How can we even make sense of a Formula of Autonomy that appeals to ‘the idea of the will of every rational being as a will giving universal laws’? (O’NEILL, Onora. Autonomy, Plurality and Public Reason. In: New Essays on the History of Autonomy: A Collection Honoring J. B. Schneewind. Natalie Brender e Larry Krasnoff (org.). EUA, New York: Cambridge University Press, 2004, p. 183, tradução nossa, grifo da autora).” 69 uma base para conduzir suas vidas51, evitando segregações, do contrário, não seria uma legislação universal (Ibidem, p. 184, tradução nossa). Numa breve digressão acerca da indagação sobre como várias normas diferentes podem refletir numa moralidade universal, incluímos aqui Eric Engle (2008, p. 48) que também propõe, na tentativa de alcançar a resposta, uma análise dos significados de lei e de direito: Como diferentes sociedades podem ter regras diferentes que contudo refletem uma moralidade universal? Enquanto diferentes sociedades têm padrões de justiça diferentes, aquelas diferenças são funções do seu modo de produção que, devido aos avanços tecnológicos, está em constante melhora. Dentro de um dado modo de produção, entretanto, os padrões morais da sociedade são em sua maioria aceitos e intersubjetivos. Eles refletem o julgamento moral e a capacidade de julgamento da sociedade dependendo do seu estado de desenvolvimento econômico. Os padrões são então universais no sentido de que nós não podemos condenar uma sociedade por sua pobreza quando não havia alternativa para aquela pobreza. [...] Neste sentido, os direitos humanos fundamentais são como uma roda, sempre movendo-se para frente. Mesmo fora do sentido intersubjetivo, há padrões morais universais em que algumas normas, como a proibição de matança ilegal, são atemporais e universais. Ademais, os princípios morais de uma sociedade tendem a sobreviver às transições e entrar numa fase seguinte de desenvolvimento. [...] Princípios morais universais existem – mas eles não são inevitavelmente ou necessariamente executáveis. As teorias jusnaturalistas, tanto quanto as positivistas, apenas têm a metade da resposta para a questão ‘qual a relação entre lei e justiça’. Cada uma deveria reexaminar a outra, preferencialmente sob a perspectiva do materialismo histórico, para entender suas próprias falhas e as contribuições que a outra perspectiva pode trazer (grifo do autor, tradução nossa).52 Retornando para as colocações de O’Neill (op. cit., p. 185), vemos que ter como premissa a perspectiva de pluralidade de agentes aproxima a “fórmula da autonomia” ao conceito de “reino dos fins” de Kant, não se tratando portanto de uma fórmula incoerente nem 51 É patente que esta definição harmoniza-se com o sentido de máxima sugerido por Bittner (2004), por isso tratam-se de posicionamentos aos quais nos filiamos. 52 “How can differing societies have differing rules which nonetheless reflect a universal morality? While differing societies have different standards of justice those differences are functions of their mode of production which, due to technological advances, is constantly improving. Within a given mode of production however the moral standards of society are generally accepted and are intersubjective. They reflect the moral judgment and capacity of judgment of the society depending upon the society’s state of economic development. So the standards are universal in the sense that we cannot condemn a poor society for its poverty when there was no alternative to that poverty. […] In this sense, fundamental human rights are like a ratchet, ever moving forward. Even outside of the intersubjective sense, there are universal moral standards in that some standards, such as the prohibition of unlawful killing, are timeless and universal. Further, the moral principles of a society at one phase of development tend to survive its transition as it enters into its next developmental phase. […] Universal moral principles do exist – but they are not inevitably or necessarily enforced. The naturalist theories of law, like the positivists, only have half of the answer to the question “what is the relation between law and justice”. Each should reexamine the other, preferably from the perspective of historical materialism, to understand its own flaws and the contributions that the other perspective might bring (ENGLE, op. cit., p. 48, tradução nossa, grifo do autor).” 70 vazia. As leis têm uma estrutura formal e são formuladas como princípios para um certo campo de domínio; a autolegislação (no sentido kantiano) tem, por sua vez, uma remissão dupla à universalidade, com a ideia de que a legislação é realizada por todos os agentes e para todos os agentes. Dessa conclusão percebe-se que o sentido kantiano de autonomia não leva em conta a vida de agentes individuais, mas as vidas de uma pluralidade de agentes, então a chave para uma leitura coerente da fórmula da autonomia de Kant é reconhecer que há uma restrição na exigência de uma legislação universal de todos para todos, pois os legisladores só podem legislar aqueles princípios que poderiam ser selecionados por todos e que seriam prescritivos para todos. Pode-se até objetar dizendo que a autonomia é um princípio que deriva de padrões eternos da razão previamente estabelecidos ou então da obediência a um conhecimento precedente do que seria a bondade. Pelo contrário, a moral baseada na autonomia não se confunde com a irracionalidade ou a insensatez, pois ao fazer do princípio da autonomia o princípio fundamental da nossa vontade, não nos subordinamos aos padrões anteriores da razão, mas inventamos (ou construímos) padrões racionais de pensar e agir, que assumem a forma de autoridade reconhecida em geral e que podem ser considerados como uma exigência racional. Fica mais fácil esse entendimento sabendo que dois traços marcam todas as discussões de Kant sobre razão: um é saber que não há nenhum cânone (da razão) previamente dado para padronizar a razão humana e o outro traço é que, não havendo esses padrões, devemos construí-los conjuntamente numa pluralidade de agentes. Ocorre que, com o pressuposto de que não transferimos a fonte da obrigação da nossa vontade para os cânones da razão, surge o problema de explicar como podemos ter padrões racionais sem submetê-los a um despotismo moral ou cognitivo, ou seja, como saber se a vontade autônoma é ou não racional (Ibidem, p. 186 e 187, tradução nossa). Para responder ao problema acima a autora observa que as demandas (ou exigências) da razão no querer e pensar (na prática e na teoria) correm em paralelo, ou seja, ambas são constituídas e construídas pela estrutura específica que tem de ser imposta ao pensamento e à ação, mas com a condição de que os agentes livres, na pluralidade, estejam aptos a seguir os pensamentos e as ações uns dos outros. Isso quer dizer que apenas quando os agentes são livres é que podem disciplinar o seu pensar e agir de forma que os outros possam seguir, além do que, desta forma, os seus pensamentos e práticas exemplificam as exigências da razão, o que é fundamental. A autonomia no pensar (falar e escrever) e no agir não é nada mais do que 71 tentarmos nos conduzir com base nos princípios que supomos que os outros se conduziriam também e a razão é, em primeiro lugar, uma questão de esforço pela autonomia nas esferas do pensar e do agir. Os textos kantianos mais úteis para entender essa base da razão na autonomia são: Resposta à pergunta: “O que é o Iluminismo?” ([1784], [2008?]) e Que significa orientar-se no pensamento? ([1786], [2008?]), pois cada um dos textos declara respectivamente que a concessão da razão às autoridades civis ou eclesiásticas é prejudicial porque tem de ser livre e, que se o uso livre da razão não for disciplinado, não perdurará porque não poderá ser seguido pelos outros. O’ Neill (op. cit., p. 188) explica que, ao buscar seguir uma estrutura de “forma de lei” – cuja característica é a universalidade - o pensamento ou a ação podem ser racionais, tomando somente o cuidado de evitar a confusão entre “ter a forma da lei” e “ser legal”, pois “ser legal” insinua uma fonte da razão ou legitimação inexplicada. Para assegurar que esta exigência da razão de ter a forma de lei não seja um argumento fraco, nem para que permaneçam dúvidas quanto a uma possível remissão a uma moralidade de obediência (a algum tipo de autoridade), o texto Que significa orientar-se no pensamento? expressa a ideia central de que o pensamento não disciplinado engendra um uso ilegal das nossas capacidades, guiando-nos para a incoerência, e também a ideia de que sujeitar-se a um uso do pensamento disciplinado por uma autoridade exterior é anuir com a obediência. O texto Resposta à pergunta: “O que é o Iluminismo?” também tem considerações sobre razão e autonomia voltadas para a vontade e para a ação como pensar (comunicação falada, escrita). Tomando parte em concepções iluministas, as ideias remetem-se ao esclarecimento pressupondo a autonomia na condução do pensamento e da vida, condenada a sua cessão a qualquer autoridade; tudo ocorre sob um processo de libertação pela autodisciplina no uso das capacidades pessoais - incompletas no uso privado da razão e livres no uso público da razão, onde não há interferência da arbitrariedade das autoridades. Segundo a autora, é possível entender no texto qual é o alcance do uso público e do uso privado da razão: O uso privado da razão foi criado para ser seguido apenas por um público restrito: ele pressupõe ao menos algumas hipóteses arbitrárias, definidas e compartilhadas por este público restrito. Os princípios da razão privada todavia não podem ser legislados universalmente. Na medida em que contam com um uso parcial e privado das nossas capacidades da razão, obedecemos e nos conformamos com a autoridade dada, para a qual não podemos dar razão, então só podemos oferecer razões que são condicionadas àquela autoridade. [...] Em alguns contextos da vida, a confiança 72 nesses argumentos de autoridade pode ser o suficiente, mas em outros não será sustentável. Apenas pensar e querer sem pressupor nenhum tipo de autoridade arbitrária permite alcançar os outros; apenas este raciocínio é completamente público e tem a forma de lei. O uso completamente público da razão é criado para alcançar “o mundo em geral” […] (O’NEILL, op. cit., p. 190, tradução nossa). 53 O uso público da razão demanda a possibilidade de se tornar pública, ou “publicizar” [sic] a comunicação, o que difere de apenas dar-lhe publicidade. Naquela, a especificidade reside em que, independentemente dos meios disponíveis, a comunicação falhará se o interlocutor não seguir valores (ou padrões) interpretáveis pelos outros. O conceito de uso privado da razão, por seu turno, não tem conotação meramente individual ou pessoal, pois os exemplos de cargos de oficiais, clérigos e servidores civis, que exigem o uso privado da razão e aos quais Kant se refere em Resposta à pergunta: “O que é o Iluminismo?” têm regras definidas pelo estado e pela igreja e os meios de expressão dos agentes (atos e opiniões), enquanto sujeitos a estas regras, não visam a alcançar o “mundo em geral”, mas sim um público restrito e definido por alguma autoridade (Idem, 1989, p. 33, tradução nossa). Entendemos com isso que a teoria kantiana não obriga a sermos autônomos no pensar e agir, nem a fazermos um uso da liberdade na forma da lei, mas, se escolhermos ser autônomos, nossas escolhas serão de fato autolegisladas. O texto kantiano anteriormente mencionado também enfatiza que é mais cômodo ser obediente (subserviente) do que ser autônomo, mas há um preço a se pagar por isso: ter o pensar e o agir cerceados por arbitrariedades e pela subserviência. É assim que se explica como Kant lança mão da razão, porquanto se fôssemos perguntados sobre o que esperaríamos que a razão oferecesse, a resposta seria: que proporcionasse um padrão (ou valor) que fosse acessível, que pudéssemos organizar e estruturar nosso agir e nosso pensar de modo a que os outros pudessem fazer o mesmo. Como os valores (ou padrões) não são postos de cima, temos que construí-los com confiança no fato de que qualquer coisa que for considerada racional tem de ser aproveitável pela pluralidade de seres livres com quem nós busquemos viver e interagir (Idem, 2004, p. 191). 53 “Private uses of reason are designed to be followed only by some restricted audience: they presuppose at least some arbitrary assumptions, which define and are shared by that restricted audience. The principles of private reasoning cannot therefore be universally legislated. Insofar as we rely on partial, private uses of our reasoning capacities, we conform to or obey some given authority, for which we can give no reason, so can offer only reasons that are conditional on that authority. […] In some contexts of life, reliance on such arguments from authority may be enough, but in others it will be question-begging. Only thinking and willing that do not presuppose any such arbitrary authorities are fit to reach all others; only such reasoning is fully public and fully lawlike. Fully public reasoning is designed to reach ‘the world at large’ [...] (O’NEILL, op. cit., p. 190, tradução nossa).” 73 O uso público da razão pode alcançar o mundo em geral desde que sob uma forma adequada, ou seja, deve apenas assumir uma autoridade que possa ser aceita por um público irrestrito. Uma vez que o conceito de “mundo em geral” não corresponde à aceitação de uma autoridade externa, a única autoridade que pode ser assumida tem que ser intrínseca à comunicação, que para Kant, é a razão (Idem, 1989, p. 35). É por esse motivo que Kant faz menção à liberdade do pensamento em Que significa orientar-se no pensamento?, ressaltando o quão necessário é a razão submeter-se às leis que ela própria se dá e não submeter-se às leis provenientes de autoridades exteriores: [...] a liberdade de pensamento significa ainda que a razão não se submete a nenhumas outras leis a não ser àquelas que ela a si mesmo dá; e o seu contrário é a máxima de um uso sem lei da razão (para assim, como imagina o génio, ver mais longe do que sob a restrição imposta pelas leis). A consequência que daí se tira é naturalmente esta: se a razão não quer submeter-se à lei, que ela a si própria dá, tem de se curvar sob o jugo da lei que um outro lhe dá; pois, sem lei alguma, nada, nem sequer a maior absurdidade, se pode exercer durante muito tempo. Por conseguinte, a consequência inevitável da declarada inexistência de lei no pensamento (a libertação das restrições impostas pela razão) é esta: a liberdade de pensar acaba por se perder e, porque a culpa não é de alguma infelicidade, mas de uma verdadeira arrogância, a liberdade, no sentido genuíno da palavra, é confiscada (KANT, [2008?], p. 16, grifos do autor). Encontramos na filosofia de Kant uma tentativa de mostrar como o pensar e o agir podem, não obstante, incorporar valores (ou padrões) autênticos para comunicação e crítica, que inclusive compreendem restrições. Legislar universalmente implica a imposição de autolimitações, ou melhor, implica disciplinar o pensar e o agir, assim, O’Neill (2004, p. 192) descreve a autonomia kantiana: [...] é a prática de disciplinar o pensamento e a ação de forma que sejam acompanháveis pelos outros – e se formos completamente autônomos, por todos. A estrutura de forma de lei e a estratégia que os agentes autônomos incorporam no seu pensar e agir, considerados em abstrato, são as estruturas e estratégias básicas da razão, às quais todos os outros princípios racionais se subordinam. As implicações mais determinadas da ação e da vontade definem o alcance da ação permitida, e os limites (da vontade) do querer determinam os princípios da ação em que haja razão para rejeitar, e assim fixam a forma básica dos princípios da obrigação dentre a pluralidade (grifo da autora, tradução nossa). 54 54 “[...] is the practice of disciplining thought and action in ways that make them followable by others – and if we are fully autonomous, by all others. The lawlike structure and strategy that autonomous agents incorporate in their thinking and willing, considered in the abstract, are the basic structures and strategies of reason, to which all other reasoned principles are subordinate. The more determinate implications of autonomous willing and action define the range of permissible action, and the limits of autonomous willing determine the principles of 74 Depreendemos desta exposição que em vez de conceber um valor ou juízo moral anteriormente estabelecido ou, no lugar de sugerir que o imperativo categórico seja vazio porque não contém um conteúdo pré-definido, podemos racionalmente (fazendo uso público da razão, na pluralidade de agentes autônomos) chegar a um ou mais valores (ou padrões) morais que preencham esta fórmula da moralidade, tendo ela a forma de lei válida universalmente. Passaremos agora para a relação desta concepção de uso público da razão com o direito feita por O’Neill (1989, 2004), apresentando-se como uma alternativa à metodologia kelseniana. 3.3. Kant, Kelsen, o direito e a ciência jurídica: uma valoração ponderada Começaremos este tópico com o objetivo de sugerir alguns desdobramentos da análise kelseniana sobre Kant, procurando demonstrar ser possível uma valoração sobre o direito e, para tanto, traremos para discussão a relação existente entre o direito e a moral sob o princípio universal do direito apresentado no livro A Metafísica dos Costumes, ([1797], 1991), onde se desenvolve a doutrina jurídica kantiana. Faremos paralelos entre as teorias de Kant e Kelsen com o suporte das obras de Matos (2006) e Gomes (2004) e de forma concomitante justificaremos nossa opção teórica, não tão distante da interpretação kelseniana, haja vista suas importantes contribuições, mas que permita a incidência dos juízos de valor sobre o direito, trabalhando também com o conceito de uso público da razão trazido por O’Neill (1989, 2004) e com as críticas à obra de Kelsen feitas por Machado (2009). Kant, na Metafísica dos Costumes, descreve o direito como “[...] a soma das condições pelas quais a escolha de alguém pode unir-se à escolha de outro conforme uma lei universal de validade 55 (KANT, 1991, p. 56, tradução nossa)” e assenta o seu princípio universal: “Qualquer ação é correta se puder coexistir com a liberdade de todos em conformidade com uma lei universal, ou se na sua máxima a liberdade de escolha de cada um puder coexistir action that there is reason to reject, and thereby fix the basic shape of principles of obligation among the plurality (O’NEILL, op. cit., p. 192, tradução nossa, grifo da autora).” 55 “[...] the sum of the conditions under which the choice of one can be united with the choice of another in accordance with a universal law of freedom (KANT, Immanuel. The Metaphysics of Morals. Trad. (inglês) Mary Gregor. EUA, Nova Iorque: Cambridge University Press, 1991, p. 56, tradução nossa).” 75 com a liberdade de todos em concordância com uma lei universal56 (Idem, ibidem, grifo do autor, tradução nossa).” Kant (1991, p. 42) traça a relação da razão prática com as escolhas do ser racional, de forma que a escolha que pode ser determinada por ela denomina-se livre arbítrio e a escolha que pode ser determinada somente pela inclinação (incluídos nesta o estímulo e o impulso sensíveis) denomina-se arbítrio animal (ou bruto). Sobre esta diferença explica ainda que embora a vontade humana possa ser afetada pelas inclinações, há nela a liberdade de determinar-se pela razão pura. A consequência dessa liberdade na determinação da vontade é o estabelecimento da moral como um gênero ao qual pertencem as espécies – direito e ética (esta no sentido de moral “stricto sensu”) - com suas respectivas leis e campos de atuação57: [...] Em contraste com as leis da natureza, essas leis da liberdade chamam-se leis morais. Quando direcionadas meramente a ações externas e à sua conformidade à lei, são chamadas de leis jurídicas; mas, se elas também requererem que as próprias leis sejam os fundamentos determinantes das ações, são leis éticas e, então, pode-se dizer que a conformidade com as leis jurídicas é a legalidade numa ação, e a conformidade com as leis éticas é sua moralidade. A liberdade à qual as primeiras leis se referem só pode ser liberdade no uso externo da escolha, mas a liberdade à qual as últimas se referem é liberdade tanto no uso externo como no interno da escolha, porquanto é determinada por leis da razão [...] (Idem, ibidem, grifos do autor, tradução nossa).58 Como doutrina sistemática, o direito apoiando-se somente em princípios “a priori”, considera-se direito natural, e quando é proveniente da vontade do legislador, é chamado de direito positivo. Quanto aos deveres, se submetidos à legislação externa, são deveres do direito e quando não se submetem ao alcance da legislação externa, são deveres da virtude (ou internos) (Ibidem, p. 63 e 64). Resulta disso que a mera ação conforme ao dever pode significar uma legalidade, mas não implicar na moralidade, ou seja, a ação pode estar conforme a uma lei externa (ser legal) e não ser moral; isso ocorre porque na ação moral o 56 “Any action is right if it can coexist with everyone’s freedom in accordance with a universal law, or if on its maxim the freedom of choice of each can coexist with everyone’s freedom in accordance with a universal law (Idem, Ibidem, tradução nossa, grifo do autor).” 57 Manteremos nossa interpretação quanto a esta divisão, embora haja a divergência expressa de Gomes (2004): “Como vimos, a ética kantiana divide-se em Moral e Direito. [...] (GOMES, Alexandre Travessoni. O Fundamento da Validade do Direito: Kant e Kelsen. 2ª ed.rev., atual., ampl. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004).” 58 “[...] In contrast to laws of nature, these laws of freedom are called moral laws. As directed merely to external actions and their conformity to law they are called juridical laws; but if they also require that they (the laws) themselves be the determining grounds of actions, they are ethical laws, and then one says that conformity with juridical laws is the legality of an action and conformity with ethical laws is its morality. The freedom to which the former laws refer can be only freedom in the external use of choice, but the freedom to which the latter refer is freedom in both external and the internal use of the choice, insofar as it is determined by laws of reason [...] (KANT, 1991, p. 42, tradução nossa, grifos do autor).” 76 agente estabelece os princípios que regem a ação (universalmente válidos) e ele próprio os obedece (se submete) (Ibidem, p. 51). A teoria de Kant, de acordo com Höffe (1986), por prever a convivência de seres racionais sob o princípio da moralidade, deve necessariamente revestir-se de um caráter jurídico. O direito aqui não se trata de um sistema arbitrário no qual os homens creiam, pelo contrário, implica num critério para julgamento da legitimidade de todas as leis positivas, doravante não é qualquer prescrição jurídica que pode ser considerada lícita ou obrigatória: [...] São racionais ou legítimas unicamente aquelas prescrições que tornam compatível a liberdade de um com a liberdade de todos os outros, conforme leis estritamente gerais. Este critério é na esfera da teoria jurídica o equivalente ao que é o imperativo categórico na esfera da ética (teoria da virtude). Obriga a comunidade livre a cumprir a legalidade geral, exatamente igual o imperativo categórico obriga a vontade pessoal a cumprir máximas autoimpostas59 (p. 201, grifo nosso, tradução nossa). O’Neill (1989, p. 103) sustenta que do imperativo categórico derivam, sem dúvidas, princípios específicos da justiça em Kant, onde há a necessidade da legislação exterior a partir do direito. Deste modo, o teste de universalização kantiano tem a função de guiar os seres racionais em suas deliberações morais e também possibilita compreender que nunca haverá certeza a respeito das máximas alheias, na avaliação do valor moral das ações a partir dos aspectos exteriores. Daí pode-se até considerar que a teoria moral kantiana não permita julgar o valor moral das ações dos outros e, nesse caso, aspectos exteriores da ação não teriam importância, porém, segundo a autora, inevitavelmente esses aspectos são de interesse público e o direito existe para regulá-los. Loparic (2003, p. 8) também contribui no sentido de descrever o propósito último da metafísica dos costumes: Vimos que o objetivo último da metafísica da natureza é servir de programa a priori da pesquisa científica. O propósito último da metafísica dos costumes é análogo: legislar a priori sobre a práxis humana e, desta feita, possibilitar a priori a resolução de todos os problemas – jurídicos e outros – que surgem do uso externo da nossa 59 “[...] Son racionales o legítimas únicamente aquellas prescripciones que hacen compatible la libertad de uno con la libertad de todos los otros, conforme a leyes estrictamente generales. Este criterio es en la esfera de la teoria jurídica el equivalente de lo que es el imperativo categórico en la esfera de la ética (teoria de la virtud). Obliga a la comunidad libre a cumplir la legalidad general, exactamente igual que el imperativo categórico obliga a la voluntad personal a cumplir las máximas autoimpuestas (HÖFFE, op. cit., p. 201, grifo nosso, tradução nossa).” 77 liberdade (das relações entre os livres arbítrios dos agentes humanos) (grifos do autor). O direito em Kant possui definitivamente um princípio moral subjacente em seu fundamento e é exatamente neste ponto que Kelsen diverge, separando a moral do direito para analisá-lo sob uma ciência jurídica isenta de interferências. Havíamos começado esta seção asseverando que optamos por um direito que possa ser valorado, mas deve ser feito de uma forma ponderada: o que isso significa? Aliás, para podermos extrair uma possível valoração ponderada dentre essas duas teorias do direito, seria possível fazermos um paralelo no direito entre Kant e Kelsen? Gomes (2004) trabalhou exatamente neste estudo comparado e denota que, em Kelsen, o elemento básico da discussão em Kant - a liberdade - é considerado estático pelo fato de a razão poder, “a priori”, distinguir algo como bom e a partir daí determinar o conteúdo do direito e da moral. A teoria relativista de Kelsen não considera haver um bom “a priori”, pois cada um pode ter um conceito do que seja o bom: “[...] A diferença entre a norma fundamental e a liberdade kantiana decorre, portanto, da insuperável divergência entre a Ética kantiana, absolutista na linguagem kelseniana, e o relativismo filosófico que acompanha o positivismo de Kelsen (p. 288).” Ocorre que em Kant, respectivamente, à moral e ao direito correspondem a autonomia e a heteronomia, além de o direito fundamentar-se na moral. O direito, por seu turno, serve para manter a coexistência das liberdades de todos em sociedade, pelo fato de o ser racional possuir o livre arbítrio e poder querer agir em desacordo com as liberdades alheias: é desta forma que o direito se fundamenta na liberdade e na moral, coagindo o ser racional através da pena a conduzir-se conforme a lei jurídica, uma vez que a moral não coage externamente (cf. GOMES, op. cit., p. 141 e 143). Em um complemento ao que foi dito anteriormente, vê-se que a liberdade tem seu valor materializado através da exteriorização das normas jurídicas positivas, o que permite a coexistência livre dos seres racionais e demonstra que os conteúdos da lei moral e do direito em Kant não são somente formais, esquema que, aliás, não difere muito da criação kelseniana: [...] Os valores da liberdade e da igualdade fundamentam, em Kant, o valor da justiça, que vincula o direito e a moral. Se é correto que a Filosofia prática kantiana é formal, não se pode esquecer de que o valor que a fundamenta, a liberdade (que 78 traz também o valor da igualdade), determina o conteúdo da lei moral e do direito, sendo, nesse sentido, material. [ ] Kelsen, repetindo a posição kantiana, afirma que o valor decorre da norma. Mas, para Kelsen, a ordem normativa não é, ao contrário do que pensa Kant, fundada em um valor transcendental, mas em uma norma fundamental. A crítica dirigida pela Axiologia moderna à Filosofia prática kantiana caberia se endereçada a Kelsen, para quem o valor decorre da norma, não estando a norma fundada num valor transcendental a priori como em Kant. Em Kant os valores decorrem da lei moral, mas a lei moral decorre de um valor hierarquicamente superior (liberdade); em Kelsen, igualmente, os valores decorrem das normas, mas não há, como veremos, um valor superior que fundamente essas normas (Ibidem, p. 149, grifo do autor). Todavia, pelo fato de as liberdades serem reguladas exteriormente pelo direito, isso não significa que esta relação jurídica recaia na individualidade (relações jurídicas baseadas apenas nos arbítrios dos sujeitos), perdendo seu caráter social, porque se deve manter em foco o caráter universal regulador das ações humanas: Contudo, parece-nos que a crítica sofrida por Kant, a de que uma relação jurídica tal como ele propõe apresenta elementos individualistas, é superada na medida em que seja compreendido e aceito o caráter universal do princípio regulador das relações humanas neste âmbito, bem como a capacidade que todos os sujeitos têm de cumprir este princípio e impor a si mesmos a partir de sua vontade, igual a dos demais, já que sujeitos racionais e livres (PEDROSO, 2007, p. 94). Gomes (op. cit., p. 244) adiciona outra diferença entre a norma fundamental de Kelsen e a liberdade em Kant, que consiste em a Teoria Pura do Direito não justificar de forma ética e nem de forma política seu fundamento de validade, porque o conteúdo da ordem jurídica não mantém relação com a norma fundamental, diferente das teorias jusnaturalistas, onde a ordem posta pela natureza tem uma autoridade superior e fundamenta a validade jurídica. Segue que a norma fundamental kelseniana origina-se de uma pressuposição a partir do meio empírico, da experiência da ordem normativa positiva: A norma fundamental pode, portanto, ser comparada à liberdade em Kant, pois há uma semelhança evidente entre os esquemas de pressuposição desses fundamentos de validade. Mas há uma diferença significativa: a liberdade, por ser idéia, independe da experiência e constitui o fundamento puramente racional: é preciso se pensar a liberdade para que seja possível a Ética (moral e direito) [sic], independentemente da experiência de uma moral ou de um direito positivo. A norma fundamental, ao contrário, é pressuposta a partir de uma ordem positiva (a partir da experiência) (GOMES, 2004, p. 273). A posição kelseniana acerca da axiologia jurídica, conforme Machado (2009), envolve duas circunstâncias: a primeira é o conceito positivista acerca de ciência e o segundo o preconceito positivista de que todo conhecimento se desdobra no empirismo das ciências 79 naturais ou no conhecimento das ciências formais hipotético-dedutivas (ex. lógica). Inicialmente a ciência jurídica resumiu-se à sociologia jurídica, baseando-se em fatos verificáveis empiricamente, mas Kelsen se opôs a esta corrente buscando trazer autonomia para a ciência jurídica perante a psicologia e a sociologia jurídicas, que segundo ele ocupavam-se de fatos empíricos. Entende, portanto, a ciência do direito como ciência normativa (que se ocupa das próprias normas), mais próxima das ciências hipotéticodedutivas e afastada das ciências empíricas, desta forma, sua metodologia procede somente das normas jurídicas porque não poderia ter esteio nos fatos sociais nem naturais. A pureza metodológica tornou-se indispensável para garantir a cientificidade e a autonomia do direito, evitando que “sincretismo metodológico” da jurisprudência tradicional da época informasse o processo mental do jurista (cientista do direito) no ato da análise: KELSEN, com efeito, empreendeu uma vez mais superar o velho complexo de inferioridade da ciência jurídica, fundar o seu carácter científico, determinando-lhe um objecto: as normas jurídicas e as conexões <<de validade>> entre elas, e fixando-lhe um método específico: o método normológico, que se caracteriza por fazer abstracção do substrato sociológico do Direito – dos conteúdos ético-jurídicos, político-sociais ou político-econômicos e dos fins dos preceitos jurídicos -, limitando a incidência da sua visualização àquelas conexões <<de validade>> e às relações lógicas entre conceitos fundamentais de natureza formal. Assim constituída, a ciência jurídica satisfaz aos postulados da cientificidade, já que opera tão-somente com conceitos rigorosamente definidos a partir de alguns axiomas fundamentais, utilizando o instrumento da lógica formal, e exclui por completo todos os conceitos indeterminados (isto é, insusceptíveis de definição precisa nos quadros de uma axiomática), assim como todos os juízos de valor (MACHADO, op. cit., p. 11, grifos do autor). Japiassu (1975, p. 100) revela que a ciência atual (incluímos neste gênero a ciência jurídica apresentada acima), gera um profundo hiato entre o conhecimento objetivo a e teoria dos valores, pois a cientificidade corresponde a ignorar os valores e, com isso torna-se incapaz de fundar uma ética objetiva. A posição dos cientistas diante desta situação segue duas vertentes: ou eles aceitam sua alienação como algo natural, perpetuando a dicotomia entre a responsabilidade de criação e a utilização de seu saber, ou reagem contra, abandonando a ideia de que a ciência seja positiva e neutra e adotam em relação a ela uma atitude mais crítica e responsável. Cabe, portanto, a quem se debruça sobre o objeto científico a fim de estudá-lo, em nosso caso o direito, reconhecer os valores que o permeiam e apontar o caminho para aprimorá-lo: [...] Por sua indiferença relativamente à construção de um ‘projeto coletivo’ para os homens, e por seu ceticismo em face das transformações verdadeiramente humanas da sociedade, a ‘ciência neutra’ contribui poderosamente para aumentar e reforçar 80 não apenas a alienação dos homens em geral, dos cientistas em especial, mas a eficácia alienante dos processos naturais e históricos, no quadro das estruturas sócioculturais existentes. Ora, uma sociedade que ‘diviniza’ e privilegia este tipo de ciência, está privando-se de um grande potencial de consciência crítica. Donde a necessidade de redefinir os fundamentos epistemológicos da ciência. Porque, na prática, ela está penetrada pelas normas, pelos valores e pelas ideologias de seu meio sócio-cultural. E descobrir a importância desses fatores é sumamente importante para que os cientistas se sintam também responsáveis por aquilo que fazem (Ibidem, p. 108, grifos do autor). A principal questão a saber é se esta leitura estrutural (ou leitura lógico-objetivante) do fenômeno jurídico, que visa o direito apenas como um “dado” - abstraindo os fins das normas e os conteúdos ético-políticos destas -, é capaz de nos permitir apreender todas as dimensões do jurídico. Obtendo êxito ao negar o direito como um dado abriremos então caminho para a valoração na ciência jurídica. Compartilhamos com a posição de Machado (op. cit.), para quem a tarefa da jurisprudência (ciência jurídica) é realizar concretamente o direito, fazendo-o operar sobre as situações da vida, pretendendo dirigir o curso dos aconteceres, moldando a história. A leitura kelseniana positivista e lógico-objetivante não é suficiente para a apreensão das diversas dimensões do direito. O direito surge como intencionalidade operatória, pois ele não se realiza ou cumpre em normas, mas intenta intervir no processo histórico sem deixar-se transformar em fato (ou dado) inerte; considerar o direito como um dado é vê-lo como mero desenho de encaixe estrutural: “[...] a jurisprudência não pode bastar-se com a <<leitura>> estrutural do Direito, com a perspectiva lógico-objectivante – pois que a esta escapa a dimensão vital do jurídico, o seu sentido modelador da vida. (MACHADO, op. cit., p. 15, grifo do autor)”. E assegura que: “[...] toda e qualquer ciência só pode manter-se na medida em que consinta uma abertura dialéctica no seu sistema, por modo a facultar uma adultação <<estratégica>> às exigências da praxis (Ibidem, p. 37, grifos do autor).” Pelo exposto acima vemos que a leitura de Kant proposta por O’Neill (1989, p. 47) atende como método à necessidade de uma ciência jurídica que se adeque continuamente às exigências dessa intencionalidade operatória do direito, através da construção de uma forma de comunicação entre os seres a quem não foi dada nenhuma coordenação natural ou préestabelecida, que resulta no desenvolvimento da comunicação entre eles e fundamenta-se nos princípios da razão. Em conjunto, os seres racionais conviventes em sociedade têm a capacidade de avaliar e inclusive de testar moralmente, fazendo uso público de sua razão, se os valores e as normas jurídicas às quais se submetem correspondem às suas necessidades e 81 são válidas universalmente, ou seja, que todos possam adotar e seguir. Esse é o primeiro passo para a construção racional de princípios que sirvam para reger o convívio social. Usar publicamente a razão no agir e no pensar é uma mudança importante para evitar uma recondução à possibilidade do uso instrumental da ciência jurídica, para que ela não se submeta às manipulações de quem, em suma, deveria ser seu destinatário: Vê-se, pois, que o Direito tem de transcender a sua fórmula. Na verdade, se o Direito fosse redutível à sua estrutura formal, como <<dado>> – tal como postularia aquele tipo de visualização científica responsável pela construção da imagem técnica do mundo -, ou seja, se ele fosse adequadamente pensável independentemente da sua intencionalidade operatória, seria legítimo encará-lo como objecto ou instrumento de uma outra intenção que não a sua própria. Mas não terá o Direito de sobrepor-se às manipulações de seus destinatários – tal como tem de se sobrepor ao aleatório do fluxo dos aconteceres do processo histórico -; não tem ele que se erguer para além do alcance das possíveis manobras combinatórias dos indivíduos que <<tecnicamente>> o procuram afeiçoar aos seus desígnios, se quer reservar-se o papel de agente, o lugar de comando? (MACHADO, op. cit., p. 19, grifos do autor). O motivo de Kelsen não reconhecer cientificidade à sociologia jurídica e ao jusnaturalismo deve-se ao fato de a sua própria teoria e a sua posição sobre justiça e direito natural condicionarem-se ambas por um conceito de ciência resultante da teoria transcendental kantiana que, para o positivismo, traduz o único tipo de conhecimento válido: A posição de Kelsen, é pois, paralela da do jusracionalismo – só que tem na base uma razão teorético-gnoseológica: não é possível saltar para fora do plano geral e abstracto da redução científica (e da formulação das normas) sem abandonar, do mesmo passo, o terreno da ciência – a qual só pode ter por objecto aquilo que se revela como denknotwendig: como forma necessária do pensamento. Por essa razão, KELSEN, aplicando as categorias e esquemas da razão teorética num domínio da razão prática, deixa escapar o verdadeiro sentido do normativo. Como todo o positivismo, também o normativismo se dirige à dominação técnica e não à compreensão do Direito [...]. Decorre das considerações anteriores que uma tal posição é informada e condicionada por uma concepção idealista e transcendental da ciência a qual isola o processo científico da praxis, hipostasiando as suas formas (Ibidem, p. 33, grifos do autor). Quanto a análise específica do conceito de razão prática kantiana feita por Kelsen, Machado (op. cit., p. 39) arremata: “[...] cremos que ela não é conforme com a interpretação tradicional da doutrina kantiana nem com o ethos desta mesma doutrina – se bem que nos pareça que o próprio KANT deve ser responsabilizado pela crítica que Kelsen agora lhe faz (grifo do autor).” 82 Valorar de forma ponderada o direito sob a ótica da ciência jurídica é possível, desde que considerado o conhecimento do homem em relação ao mundo como fundamentalmente do tipo operatório, através de um “a priori” dinâmico; é sobre este pressuposto que Machado (op. cit., p. 23) sustenta a sua posição: “[...] Aderimos, pois, ao ponto de vista do que alguns chamam de <<transcendentalismo aberto>>, elemento motor e constituinte de uma <<aprendizagem>> no decurso da qual ele próprio evoluciona e se redefine (grifos do autor).” Esse ponto de vista, por ser aplicado ao direito - o objeto da ciência jurídica -, mantém relação com o texto O Conflito das Faculdades ([1798], 1993), em que Kant faz uma reflexão sobre o movimento iluminista e da redefinição dos valores da época, além de seus reflexos para a posteridade. Nesse texto, Kant também examina especificamente o conflito entre a faculdade de direito e a faculdade filosófica, questionando se o gênero humano estaria ou não sob um constante progresso para o melhor, de forma a perscrutar a “história moral” dos homens vivendo em sociedade. Nele, Kant admite a existência de uma narrativa sobre um futuro iminente, sendo uma descrição “a priori”, que se torna possível se “o próprio adivinho faz e organiza os eventos que previamente anuncia (KANT, 1993, p. 95, grifo do autor).” Além disso, ele descreve de que forma o homem tem a capacidade de construir seu próprio futuro, além de, em outras palavras, poder predizê-lo ou profetizá-lo: Se ao homem se pudesse atribuir uma vontade inata e invariavelmente boa, embora limitada, ele poderia vaticinar com certeza a progressão da sua espécie para o melhor, porque ela diria respeito a um evento que ele próprio pode produzir. Mas face à mescla do bem e do mal na disposição, e cuja proporção ele não conhece, não sabe que efeito daí pode esperar (Ibidem, p. 100). A apresentação da leitura kantiana que enfatiza o uso público da razão complementa as citações acima, pois ela prevê um princípio nuclear na autonomia - a não submissão às autoridades infundadas (autoridades exteriores), enquanto deve ser fundamentada na razão. A autonomia kantiana é viver segundo os princípios da razão, não deve ser confundida com autoafirmação nem independência, mas sim com a procura por agir e pensar de acordo com os princípios que todos possam, através da comunicação, adotar e seguir livremente (O’NEILL, 1992, p. 299). Sob o uso público da razão ainda é possível a construção de direitos e obrigações, levando em consideração requisitos mínimos de racionalidade e condição humana, sem que se 83 siga uma forma arbitrária e nem apelando para uma mera pluralidade de intuições morais sem ordem. Sua base é análoga ao modelo de construção de um edifício, onde as partes são unidas visando a coerência e o funcionamento da estrutura, portanto ela deve ser forte o suficiente para guiar as ações e reflexões de uma pluralidade de seres racionais distintos: “[…] Ela propõe que construamos uma explicação racional de exigências éticas que pressuponha apenas sermos seres desagregados cuja interação não é mediada por instintos naturais nem por programação sobrenatural, mas por processos de razão prática60 (Idem, 1989, p. 194, tradução nossa).” Ademais, o caminho para o estudo valorativo do direito não nos parece obscuro, até porque as contribuições são fundamentais para que haja um acompanhamento e adequação constantes entre as normas e a sociedade. Há até quem julgue o direito e a ética serem disciplinas gêmeas: Há três razões em que a ética é uma disciplina altamente produtiva para pesquisa jurídica. Primeiro, seu assunto, a moralidade, e a disciplina acadêmica dividem características importantes com o direito e a pesquisa jurídica, respectivamente. Segundo, há uma sobreposição no conteúdo, e as disciplinas têm muitos conceitos centrais em comum, como democracia, direitos humanos e justiça. Terceiro, como o direito é normativamente uma prática aberta, referências a ideias morais e consequentemente as preocupações com a ética são inevitáveis. Se advogados ou juristas querem explorar os limites do direito à privacidade ou o que um ‘homem razoável’ deve fazer, eles precisam recorrer à ética. Logo, devemos considerar a pesquisa jurídica e a ética como disciplinas gêmeas: proximamente relacionadas e em muitos aspectos similares61 (BURG, 2010, p. 2, tradução nossa). Refutamos a hipótese de que o processo da valoração do direito, o objeto de estudo da ciência jurídica - atentando à sua redefinição e aprimoramento62 -, não possa ser considerado ciência, sendo que estará sob a ressalva da submissão ao uso público da razão: “E não se diga que um tal proceder é incientífico, pois, como vimos, toda e qualquer ciência só pode manter- 60 “[...] It proposes that we construct a rational account of ethical requirements that pressuposes only that we are separate beings whose interaction is mediated neither by natural instinct nor by supernatural programming, but by processes of practical reasoning (O’NEILL, 1989, p. 194, tradução nossa).” 61 “There are three reasons that ethics is a highly productive discipline for legal research. First, its subject, morality, and the academic discipline itself share important characteristics with law and legal research, respectively. Both disciplines are hermeneutic, normative, argumentative, and interdisciplinary. Second, there is an overlap in content, and the disciplines have many central concepts in common, such as democracy, human rights, and justice. Third, as law is a normatively open practice, references to moral ideas and hence to exercises in ethics are often unavoidable. If lawyers or legal researches want to explore the limits of the legal right to privacy or what a ‘reasonable man’ should do, they need to have recourse to ethics. Therefore, we may regar legal research and ethics as twin disciplines: closely related and in many respects similar (VAN DER BURG, 2010, p. 2).” 62 Incluídos os valores morais e jurídicos. 84 se na medida em que consinta uma abertura dialéctica no seu sistema, por modo a facultar uma adultação <<estratégica>> às exigências da praxis (MACHADO, op. cit., p. 37).” Entendemos que as ciências humanas, incluída nelas a ciência jurídica, não podem prescrever leis da mesma forma que as ciências naturais. Além disso, diferentemente das ciências naturais, naquelas há o fator da vontade humana, que incide inevitavelmente sobre o comportamento do homem; assim, podemos dizer que a ciência jurídica não é uma ciência nomotética, porque quando ocorre o evento X não é certo que o resultado será Y, por isso ela precisa constantemente se redimensionar. A divergência entre a vontade do legislador e a vontade do indivíduo sujeito à lei pode ocorrer com frequência, por isso o papel do cientista jurídico é conciliar a lei prática (positiva) e a lei acadêmica ou erudita (lei nos livros), através das duas formas de estudo da lei: a lei como descrição e a lei como prescrição (cf. ENGLE, 2008, p. 33 e 47). Evitamos, assim, polarizar o estudo jurídico apenas sob a forma lógicoobjetivante. Enfim, a exigência de uma ciência jurídica que não se resuma a apenas descrever seu objeto é iminente e, para que possa adequar-se à volatilidade da convivência humana, necessita de instrumentos além do que a mera “lente” imparcial e simplesmente descritiva do jurista. O uso público da razão talvez não seja o único desses instrumentos, mas dentro de nossa pesquisa ele demonstrou ser adequado à tarefa de integrar através da comunicação, o pensamento e a ação, tudo sob a direção da teoria moral kantiana que atesta os princípios práticos da razão. Tendo desconstruído o mito de que a neutralidade isenta a ciência da responsabilidade, podemos inferir que o cientista jurídico – o jurista – não pode permitir que seu objeto de estudo seja utilizado para um fim que não a progressão da humanidade para o melhor, conforme havia já apontado Kant. Fazendo uso desse processo racional, em que todos podem adotar e seguir princípios válidos universalmente, será possível construir valores jurídicos e morais que permitam com que as liberdades alheias coexistam em harmonia. 85 CONCLUSÃO Encerramos esta dissertação com uma leitura de Kant que traz consigo uma mensagem implícita: a filosofia kantiana não se encerra em seu período. Por isso, julgamos que um conhecimento considerado pacífico ou inatacável possa ser estudado e reinterpretado sob outros pontos de vista, como o que fizemos com Kelsen, algo que decerto despertará novas questões. Importa salientar que as objeções de Kelsen não se limitam aos dois pontos que destacamos, mas transitam por várias obras de Kant. O que fizemos, no entanto, foi alternar entre duas obras principais, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a Teoria Pura do Direito, tarefa que se mostrou árdua pelo fato de envolver vários temas paralelos, como a justiça, o conceito de bom etc. Num primeiro momento, buscamos atingir o propósito de explicar como Kelsen conseguiu inovar com sua teoria jurídica, afastando-a dos princípios da natureza, dos fatos, fenômenos naturais, do mundo do “ser”, refutando o direito natural com seus fundamentos e fixando a norma fundamental como fundamento de validade da ordem jurídica. Além disso, apresentamos as respectivas implicações de toda essa separação, exemplo disso é a diversidade de interpretações do termo “pureza”, como ele próprio ressaltou em seus prefácios e em Direito e Natureza. Em seguida trouxemos passagens importantes de Direito e Ciência, que nos permitiram expor a forma pela qual Kelsen concebe a ciência jurídica. A ciência jurídica não admite influências na descrição do seu objeto por parte de outras disciplinas, como a psicologia, a moral, a política, a sociologia; é uma ciência que busca a neutralidade, fazendo a mera descrição de seu objeto sem implicar numa sugestão de resultados aplicáveis aos casos concretos. É este trecho da obra kelseniana que declara a visível diferença entre a sua teoria e o direito kantiano: na Teoria Pura do Direito não há fundamento moral e a liberdade tem outro papel, que foge da ligação com a autonomia kantiana, pois Kelsen só prevê a liberdade 86 jurídica (a que a lei confere). O princípio regente do direito em Kelsen é a imputação, bem diverso do princípio universal do direito anunciado por Kant. Passamos então a analisar a relação entre direito e moral na obra kelseniana. De início, o autor nos informa que o único ponto em comum entre a moral e o direito é sua característica de dever-ser: o Kelsen neokantiano descarta a filosofia prática de seu mentor e inclusive a considera superada, levantando diversas objeções. Nas duas críticas que destacamos para análise pudemos identificar falhas de interpretação, pois Kelsen mostrou ter feito um estudo superficial, ou no mínimo enviesado, da teoria kantiana. Nossa próxima investida foi demonstrar, com auxílio dos comentadores, que o imperativo categórico não provou poder abarcar qualquer máxima (mesmo que imoral), como Kelsen afirmava, e também que a ação moral descrita na Fundamentação da Metafísica dos Costumes não se concretiza somente quando contraria as inclinações naturais do homem. Neste momento tivemos que explicar que a interpretação errônea de máxima feita por Kelsen era o que o fazia entender que a fórmula do imperativo fosse vazia de conteúdo, mas conseguimos provar que máxima trata de um conceito mais amplo, tendo a natureza de “regra de vida”, que denota um princípio do querer que conduz o ser racional de uma forma diferente de um mero propósito. Demonstramos também que o método de isolamento de Kant auxilia a entender que as inclinações não devem ser contrariadas para que a ação seja moral, mas sim desconsideradas (ou isoladas) no momento de determinar o princípio da ação. Por derradeiro, acreditamos que o direito possa ser valorado, diferentemente do apregoado por Kelsen e, para esta confirmação, em nosso último capítulo, nos serviu a leitura contemporânea de Kant feita por O’Neill (1989, 2004), que trouxe uma renovação do conceito kantiano de uso público da razão, um meio de os seres racionais construírem racionalmente valores através de princípios válidos e adotáveis por todos (ou seja, universais). Machado (2009) também foi de grande apoio para complementar a ideia da necessidade de superação deste modelo jurídico “neutro”, contribuindo na desconstrução da teoria kelseniana, apresentando como saída a “intencionalidade operatória do direito”, que demanda um transcendentalismo mais dinâmico, diferente do kelseniano, no qual a ciência se redefine e reconstrói para adequação à praxis. 87 De toda esta exposição, envolvendo o diálogo Kelsen/Kant, restam muitos outros desdobramentos, mas nos cabe ao menos tentar enumerar o que doravante possa ser objeto de novas indagações: 1. Não obstante a interpretação de Kelsen em certos aspectos ter sido contestada, permanece evidente que seu modelo ainda é utilizado na transmissão acadêmica do conhecimento jurídico, diante de sua inegável contribuição. Como definir, hoje, uma ciência jurídica que aspira por uma valoração e, ao mesmo tempo, quer firmar-se como autônoma? Mapeá-la partindo de seus limites provou-se método equivocado, como vimos... seria o caso então de firmá-la a partir de suas interseções com as outras áreas do conhecimento: dos pontos em comum? 2. Em que medida podemos saber quais valores são válidos universalmente diante da diversidade na disposição geográfica e cultural existente, apesar do fato da globalização? Como proceder a uma interação no pensar e no agir, ou ainda em outros termos, como exatamente fazer o uso público da razão, visto tratar-se de um instrumento válido? 3. Como garantir que as minorias tenham voz na construção dos direitos e obrigações pelo uso público da razão? Haverá uma mediação entre as posições a escolher? O que fazer para que o uso público da razão não seja também instrumental, tal qual foi feito com a ciência sob a suposição de sua “neutralidade”? Urge pensarmos logo nessas considerações, pois o que diz respeito ao direito e à moral reflete de forma imediata na sociedade e nos indivíduos. Tendo como premissa que diversos aspectos aqui discutidos permeiam tanto o âmbito individual quanto o social de forma concomitante, esta investigação filosófica buscou contribuir com reflexões que possam se aprimorar na dinâmica social, resultando em menos tecnicidade no meio jurídico e mais eficácia jurídica visível. 88 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BITTNER, Rüdiger. Máximas. Trad. Mauro Luiz Engelmann e Rogério Passos Severo, rev. Valério Rohden. In: Studia Kantiana – Revista da Sociedade Kant Brasileira, n. 5, 2004, p. 7 25. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Maria Celeste C.J. Santo, 10ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. COELHO, Fábio Ulhoa. Para Entender Kelsen. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. FASSÒ, Guido. Historia de la Filosofía del Derecho: Siglos XIX y XX. Trad. (espanhol) José F. Lorca Navarrete. Espanha, Madri: Ediciones Pirámide, 1996. 3 v. GOMES, Alexandre Travessoni. O Fundamento da Validade do Direito: Kant e Kelsen. 2ª ed.rev., atual., ampl. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Trad. (espanhol) Diorki. Espanha, Barcelona: Editorial Herder, 1986. JAPIASSU, Hilton. O Mito da Neutralidade Científica. Rio de Janeiro: Imago, 1975. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 1999. __________. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Portugal, Coimbra: Edições 70, 1960. __________. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. In: Kant’s gesammelte Schriften: Kant’s Werke. Alemanha, Berlim: Georg Reimer, 1911, p. 385 – 464. 4 v. __________. O Conflito da Faculdades. Trad. Artur Morão. Portugal, Lisboa: Edições 70, 1993. __________. The Metaphysics of Morals. Trad. (inglês) Mary Gregor. EUA, Nova Iorque: Cambridge University Press, 1991. KELSEN, Hans. A Justiça e o Direito Natural. Trad. João Baptista Machado. Portugal, Coimbra: Almedina, 2009. 89 __________. O Problema da Justiça. Trad. João Baptista Machado, 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. __________. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado, 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. LOSANO, Mario Giuseppe. Introdução (à edição italiana). In: KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. Trad. João Baptista Machado, 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. MACHADO, João Baptista. Nota Preambular. In: KELSEN, Hans. A Justiça e o Direito Natural. Trad. João Baptista Machado. Portugal, Coimbra: Almedina, 2009. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do Direito e Justiça na Obra de Hans Kelsen. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. O’NEILL, Onora. Autonomy, Plurality and Public Reason. In: New Essays on the History of Autonomy: A Collection Honoring J. B. Schneewind. Natalie Brender e Larry Krasnoff (org.). EUA, Nova Iorque: Cambridge University Press, 2004, p. 181 - 194. __________. Constructions of Reason: Exploration of Kant’s Practical Philosophy. Reino Unido, Cambridge: Cambridge University Press, 1989. __________. Vindicating Reason. In: The Cambridge Companion to Kant. Paul Guyer (org.). Reino Unido, Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 280 - 308. PASCAL, Georges. Compreender Kant. Trad. Raimundo Vier. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. PATON, Herbert James. The Categorical Imperative: A study in Kant’s moral philosophy. EUA, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1971. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 10ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1983. REALE, Miguel. A Visão Integral do Direito em Kelsen. In: KARAM, Munir; PRADO, Luiz Regis (coord.). Estudos de Filosofia do Direito: uma visão integral da Obra de Hans Kelsen. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1985, p. 15 - 30. SICHES, Luis Recaséns. Tratado General de Filosofia del Derecho. 19ª ed. México, Cidade do México: Editorial Porrúa, 2008. INTERNET: 90 BURG, Wibren van der. Law and Ethics: The Twin Disciplines. In: Erasmus Working Paper Series on Jurisprudence and Socio-Legal Studies. nº 10 - 02, 2010. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1631720>. Acesso em 20/02/2013 (às 10:05). CLEMENS, Jaboner. Kelsen and his Circle: The Viennense Years. In: European Journal of International Law, vol. 9, nº 2, Symposium: The Changing Structure of International Law Revisited (Part 4), 1998. Disponível em: <http://207.57.19.226/journal/Vol9/No2/art9.html#pdf>. Acesso em 20/09/2011 (às 22:03). ENGLE, Eric. Law as Lex v. Ius. In: The Journal Jurisprudence, Volume One, “What is Law?”. Austrália, Melbourne: The Elias Clark Group, 2008, p. 31 - 50. Disponível em: <http://www.jurisprudence.com.au/back.htm>. Acesso em 08/01/2013 (às 10:08). KANT, Immanuel. Que significa orientar-se no pensamento? Trad. Artur Ferreira Pires Morão. Portugal, Covilhã: Lusosofia Press, [2008?]. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/kant_que_significa_orientar_se_no_pensamento__1786_.pdf . Acesso em: 29/01/2013 (às 08:15). __________. Resposta à pergunta: “O que é o Iluminismo?” Trad. Artur Ferreira Pires Morão. Portugal, Covilhã: Lusosofia Press, [2008?]. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/kant_o_iluminismo_1784.pdf. Acesso em: 29/01/2013 (às 08:17). LAVADAC, Nicoletta Bersier. Hans Kelsen (1881 - 1973) Biographical Note and Bibliography. In: European Journal of International Law, vol. 9, nº 2, Symposium: The Changing Structure of International Law Revisited (Part 4), 1998. Disponível em: <http://207.57.19.226/journal/Vol9/No2/art11.pdf>. Acesso em 20/09/2011 (às 22:05). LOPARIC, Zeljko. As Duas Metafísicas de Kant. In: Kant e-prints International Journal, vol. 2, nº 5, 2003. Disponível em: <ftp://ftp.cle.unicamp.br/pub/kant-eprints/vol.2,n.5,2003.pdf>. Acesso em 20/02/2013 (às 09:50). PEDROSO, Greici Inticher. A Análise de Kelsen e Bobbio das Distinções Kantiana entre Direito e Moral. 2007. 110 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia)-Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Santa Maria, 2007. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obr a=111876>. Acesso em 20/02/2013 (às 12:31).