54 Curso: Relações Públicas Disciplina: Filosofia Professor: Luiz Paulo Rouanet Data: 03/06/2008 Kant e a moral Sob esse título aparentemente anódino, esconde-se um projeto de grande envergadura. Kant procurou dar à moral uma certeza que antes ela não apresentava. Não se falava da moral, mas de uma moral. Kant mostra que é possível dar à moral o mesmo fundamento de certeza que possuem as leis naturais, ou leis científicas. Posteriormente, como vai ocorrer em toda história da Filosofia, esse projeto vai ser posto em questão, alguns considerando-o como demasiado abstrato Hegel , outros como expressando a moral do funcionário público Nietzsche. Mas, para refutar algo, ou criticar algo, é preciso saber do que se está falando. Eis porque vou apresentar a vocês, hoje, a moral kantiana. Em uma obra intitulada Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Immanuel Kant (1724-1804) procurou mostrar como a moral se acha presente no ditado popular “Não faça ao outro aquilo que não queres que façam a ti”. Progressivamente, Kant passa da moral popular à moral filosófica, isto é, deduzida segundo as leis da razão. Ele vai mostrar que o que existe por trás dessa afirmação é algo que pode ser universalizado, isto é, generalizado sem que se caia em contradição. Ele vai mostrar que existe uma única lei da razão, ou seja, a lei moral. Esta, diz ele, e somente esta, obriga de forma incondicional, isto é, segui-la é agir de modo moral, não fazê-lo é agir de modo imoral, ou contrário à moral. Existem outros imperativos, como ele chama os comando que obrigam a ação, mas somente aquele que segue a lei moral é categórico. Segundo Kant, “O imperativo é uma regra prática pela qual uma ação em si mesma contingente se torna necessária.” (AB 21). Existe, por exemplo, o imperativo de prudência: se eu não fizer isto, posso ser preso, então...”; existe o imperativo condicional: “se eu fizer isto, então...”. Já o imperativo categórico ordena, sem condições; não o faço por qualquer outro motivo, mas porque é meu dever fazê-lo. Apesar de ser um só, o imperativo categórico pode ter pelo várias formulações: 55 “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza”; “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”; “Age segundo máximas que possam simultaneamente ter-se a si mesmas por objeto como leis universais da natureza”. Ao seguir o imperativo categórico, na verdade o indivíduo está apenas seguindo a si mesmo, à sua razão. Deste modo, está agindo de forma autônoma, ou seja, não está sendo governado em suas ações por nada de fora a si mesmo. Como diz a própria palavra autonomia: dar-se as suas próprias leis. Heteronomia, por contraste, é ser governado por algo externo a si mesmo, por motivos outros que não os determinados por sua própria razão. Assim, agir de forma autônoma é dar o assentimento à lei universal da razão. Como diz Kant, o homem é dotado de instinto (impulso) e razão, e esta, segundo ele, deve dominar para que o homem se diga tal, para que se diferencia dos demais animais, justamente chamados de irracionais. Ao seguir a razão, o homem está sendo autônoma e sendo propriamente homem; ao seguir os instintos, está agindo de forma heterônoma, pois sua ação está sendo determinado por algo estranho à razão. Ao agir apenas por impulso, portanto, jamais estaremos tendo um comportamento moral, pois pode ou não coincidir que esta ação seja recomendável pela razão. Se estiver agindo apenas para atender a meus próprios interesses, mesmo que com a aparência de uma ação virtuosa, como uma obra filantrópica, por exemplo (porque quero ganhar uma eleição, digamos), não estarei agindo moralmente. Muitas críticas foram feitas à moral kantiana, a de ser muito rigorista, de não levar em conta indivíduos concretos, de defender uma moral impossível, de ter por fundamento uma idéia de verdade absoluta, de não levar em conta a intersubjetividade, etc. Algumas dessas críticas procedem, como veremos, mas isso não impede que devamos refletir sobre o que Kant nos apresenta. Vamos examinar cada uma delas. 56 Rigorismo: Essa crítica consistiria em que Kant ordena algo que os homens comuns não podem seguir; que se trata de uma moral abstrata, não leva em conta os indivíduos em carne e osso (Hegel); esta crítica é falsa, pois Kant admite exceções individuais à regra, desde que se admita a mesma. O imperativo categórico me ordena isto, mas, mesmo sabendo disso, não vou fazê-lo, ou vou fazer algo proibido pela lei moral. Estarei agindo de maneira contrária à moral. Isto não invalida a tese de que existe uma lei moral. A lei moral está no horizonte, ela existe, mesmo que os homens não a sigam sempre, ou quase nunca; A verdade absoluta: Esta crítica é mais procedente. Com efeito, Kant segue os princípios da geometria de Euclides, segundo os quais haveria uma única demonstração possível, e um único resultado. Para uma geometria pós-euclidiana, haveria várias demonstrações possíveis, e vários resultados possíveis. Com efeito, o que seria a razão? Isto serve de base para obrigar outros a agirem de uma determinada maneira? E a si mesmo? Pode até ser, mas nesse caso devo admitir que estou agindo assim porque o quero, não porque seja um mandamento universal; Trata-se de uma moral de escravos, ou de uma moral para uso do funcionário público (Nietzsche). Esta crítica procede, até certo ponto, pois envolve a noção de culpa. Além disso, como vimos recentemente, na Alemanha, o argumento de cumprimento do dever foi usado até por diretores de campos de concentração para justificar o massacre de pessoas (judeus, intelectuais, etc.). Em última instância, parece sempre subjetivo dizer-se que se está agindo em nome da razão. Todos podem afirmar isso para justificar suas próprias ações, e não há um juiz universal para dizer quem está certo. Nesse sentido, a lei jurídica parece mais eficaz, e mesmo mais justa. Ela já preestabelece o que é e o que não é justo, evitando pronunciar-se sobre o motivo das ações. O que conta, para a Justiça, é a ação, e não o motivo, embora este possa servir de atenuante ou agravante, conforme o caso. Para concluir, a doutrina do direito de Kant, primeira parte de sua obra Metafísica dos Costumes, inspirou juristas de orientação positiva, ou normativa, dentre os quais o mais destacado foi Hans Kelsen, autor de Teoria Pura do Direito. Segundo essa doutrina, o que é certo é o que é determinado pela lei. O direito é posto positivamente, isto é, é objeto de 57 deliberação ou consenso entre os homens, e não fruto de uma lei natural, ou divina, embora seja deduzido da razão. Já a “Doutrina das virtudes”, segunda parte da Metafísica dos costumes, foi até hoje pouco estudada, e é em geral considerada como uma obra menor, alguns até mesmo falando que isto se deve à senilidade do filósofo. Não concordo com esse juízo, mas voltarei a tratar disto oportunamente. BIBLIOGRAFIA KANT, I., Textos selecionados, SP: Abril Cultural (Os Pensadores), 1980. _____., Métaphysique des moeurs, v. I, trad. A Philonenko, Paris: Vrin, 1979. KELSEN, H., A justiça e o direito natural, trad. João Baptista Machado, 2ª ed., Coimbra: Arménio Amado, Sucessor, 1979.