Relato de Caso: Alterações metabólicas como causa de

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J Bras Nefrol 2000;22(2):78-84
Relato de Caso: Alterações metabólicas como causa de
rabdomiólise e insuficiência renal aguda
Benedito J Pereira, Américo L Cuvello Neto, e Regina CRM Abdulkader
Resumo
Serviço de Nefrologia do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência:
Regina CRM Abdulkader
Faculdade de Medicina da USP
Laboratório de Fisiopatologia Renal (LIM 16)
Av. Dr. Arnaldo, 455, 3o andar, sala 3342
CEP 01246-903 São Paulo, SP
Tel./ fax: (0xx11) 3068-9428/883-1693
Rabdomiólise. Hiperosmolaridade.
Hipofosfatemia. Hipocalemia. Insuficiência renal aguda.
Rhabdomyolysis. Hyperosmolality. Hypophosphatemia. Hypokalemia. Acute
renal failure.
A rabdomiólise não traumática pode ter como causas metabólicas a
hiperosmolaridade, a hipofosfatemia e a hipocalemia. É relatado um caso de
paciente diabético não insulino dependente, que desenvolveu coma hiperosmolar,
convulsões, hipofosfatemia, tendo evoluído com rabdomiólise e insuficiência
renal aguda não dialítica. São revistos os principais mecanismos fisiopatológicos
envolvidos na gênese da rabdomiólise provocada por alterações metabólicas,
o tratamento da conseqüente insuficiência renal aguda e a sua prevenção.
)>IJH=?J
Metabolic alterations as hyperosmolality, hypophosphatemia and hypkalemia have
been described as causes of nontraumatic rhabdomyolysis. A case of a noninsulin
dependent diabetic patient with hyperosmolal coma, convulsions, hypophosphatemia, rhabdomyolysis and acute renal failure is reported. The main mechanisms involved in the pathophysiology of the rhabdomyolysis are discussed, as
well as, the acute renal failure treatment and prevention.
Introdução
O tecido muscular corresponde aproximadamente a
40% da massa corporal total e pode ser alvo de grande
variedade de agressões tóxicas, isquêmicas, infecciosas,
inflamatórias ou metabólicas. A lesão resulta em destruição da fibra muscular ou rabdomiólise e na liberação de
componentes intracelulares potencialmente tóxicos na circulação sistêmica.1 As primeiras referências a complicações renais decorrentes da rabdomiólise foram feitas por
Bywaters e Beall (Crush Sydrome) sobre 4 pacientes que
desenvolveram insuficiência renal aguda (IRA) como resultado de esmagamento durante os bombardeios em Londres no período da segunda guerra mundial.2 Desde então, outras etiologias de rabdomiólise também têm sido
descritas: (1) drogas, como heroína e anfetaminas; (2)
álcool; (3) compressão muscular por imobilização; (4)
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exercício físico extenuante; (5) convulsão; e (6) distúrbios metabólicos como hipocalemia, hipo ou hipernatremia, hipofosfatemia, mixedema, cetoacidose diabética e
estado hiperosmolar.3-5 A rabdomiólise ocorre também
nas doenças imunológicas, (ex. polimiosite ou dermatomiosite), nas moléstias infecciosas, como influenza, mononucleose, tétano, leptospirose e as que decorrem de
picadas de insetos e de acidente ofídico, e nas deficiências enzimáticas musculares congênitas.6-8
O marcador mais sensível da lesão muscular é a
concentração sérica de creatinoquinase (CK). O nível de CK parece ter correlação direta com o grau
de lesão muscular. 9
A rabdomiólise não traumática ocorre de 5% a 7%
de todos os casos de IRA e em 25% de todos os casos
de NTA. Por outro lado, a prevalência de IRA em pacientes com rabdomiólise varia entre 16,5% e 33%, pro-
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vavelmente refletindo o efeito da seleção dos casos
nos diversos estudos.10-15 A Tabela apresenta as principais causas de rabdomiólise.
Tabela
Causas de rabdomiólise
Lesão muscular direta
“Crush Sindrome”, incluindo necrose por pressão (induzida por
imobilização)
Choque elétrico, congelamento, queimadura
Exercício físico extenuante
Esportes, treinamento militar
Convulsões, mioclonia
Necrose isquêmica
Oclusão vascular, compressão externa
Desordens metabólicas
Cetoacidose diabética/coma hiperosmolar não cetótico
Hipotireoidismo
Distúrbios eletrolíticos (hipocalemia, hipofosfatemia)
Intoxicação hídrica
Sepse (bacteriana, viral)
Hipertermia maligna
Miopatia inflamatória (polimiosite, miopatia infecciosa)
Desordens hereditárias
Deficiências enzimáticas glicogenólicas (como Síndrome
MacAdle’s)
Deficiências do metabolismo lipídico (carnitina-palmitotransferase)
Miscelândia (hipertermia maligna /síndrome neuroléptica
maligna)
Drogas (álcool, cocaína, anfetamina, opiáceo, clofibrato, lovastatina)
Toxinas (tétano, tifóide, estafilococos, toxinas de insetos)
A IRA associada à rabdomiólise tem como fatores fisiopatológicos o efeito tóxico direto da mioglobina, ao qual
se acrescenta a vasoconstrição renal decorrente da hipovolemia. Essa é ocasionada pelo terceiro espaço que se
forma nas grandes massas musculares lesadas e pela ação
de citoquinas liberadas durante a lesão muscular.1
No presente estudo é descrito um caso de coma hiperosmolar com rabdomiólise e IRA, sendo analisados
os diferentes fatores envolvidos na sua fisiopatologia.
Caso clínico
Paciente masculino, 45 anos, natural da Bahia e procedente de Taboão da Serra (SP). O paciente relatava,
como antecedentes, hipertensão arterial sistêmica, angina estável, dislipidemia e tabagismo (1 maço de cigar-
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ros/dia durante 20 anos). Estava em uso de hidralazina
(100 mg/d), enalapril (40 mg/d), metildopa (100 mg/d) e
clortalidona (50 mg/d). Deu entrada no Pronto Socorro
do Hospital das Clínicas da FMUSP com queixas de 4
dias de poliúria e astenia, seguidas por náuseas, vômitos
e sonolência. Apresentou crise convulsiva tônico-clônica
generalizada na internação. No exame de admissão encontrava-se em regular estado geral: PA=230X130 mmHg,
desidratado (+++/4), febril (temperatura axilar: 37,9ºC).
Ausculta pulmonar: murmúrio vesicular audível em toda
área pulmonar, com estertores subcrepitantes em base
direita. Ausculta cardíaca: ritmo regular em 2 tempos,
bulhas normofonéticas, sem sopros, FC= 96 bpm. Abdome: plano, flácido, indolor, com ruídos hidroaéreos presentes, fígado e baço não palpados. Exame neurológico:
rebaixamento do nível de consciência (Glasgow 10), sem
rigidez de nuca ou déficits de sensibilidade e motores,
pupilas isocóricas e fotorreagentes. Evoluiu em menos
de 5 horas, com piora do nível de consciência (Glasgow
7), sendo colocado em ventilação mecânica. Durante a
entubação foi verificado haver secreção purulenta traqueal. A avaliação laboratorial inicial mostrou: Na=131 mEq/
L, K=4,9 mEq/L, uréia= 162 mg/dL, creatinina=5,0 mg/
dL, pH=7,37, HCO3=20,8 mEq/L, hemoglobina=17,2 mg/
dL, hematócrito = 54,2%, leucócitos=17.900/mm3, plaquetas=339.000/mm3, glicemia=1.925 mg/dL, CK=1.620 U/L;
cálcio total =4,6 mg/dL, fósforo=0,4 mg/dL. A osmolalidade plasmática calculada foi de 396 mOsm/Kg H2O. Foi
colhido liquor que se mostrou límpido, xantocrômico com
8 células/mm3 e 5 hemácias/mm3, proteínas=83 mg/dL,
glicose=562 mg/dL, cloro=652 mg/dL, citologia oncótica
negativa, flora bacteriana ausente, pesquisa de BAAR
negativa. Tomografia computadorizada de crânio (sem
contraste) sem alterações. Ultrassonografia renal mostrou
rins de topografia habitual, contornos regulares, hiperecogenicidade do parênquima. Rim direito de 12 cm e cortical de 2,1 cm e rim esquerdo de 11,9 cm e cortical de 2,3
cm. Foi iniciada hidratação intravenosa com solução hipotônica e reposição de insulina regular até a estabilização dos níveis glicêmicos. Utilizou-se também ceftriaxone 2g/dia e metronidazol 1.500 mg/dia durante 15 dias
para tratar o foco infeccioso pulmonar. Em 3 dias houve
melhora acentuada dos níveis glicêmicos (glicemia =162
mg/dL) e do nível de consciência, sendo o paciente extubado no quarto dia de internação. Entre o terceiro e o
quinto dias de internação, a CK atingiu um pico de 1817
U/L, a uréia de 160 mg/dL e a creatinina de 8,5 mg/dL. O
paciente, porém, manteve-se com boa diurese e não necessitou de diálise, recebendo alta hospitalar no 19º dia
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de internação, totalmente assintomático e com os seguintes exames: uréia=38 mg/dL, creatinina=1,7 mg/dL,
Na=139 mEq/L, K=3,4 mEq/L, glicemia =160 mg/dL, cálcio total=8,4 mg/dL, fósforo=4,0 mg/dL e exame de urina
I: pH=6,5, densidade=1.015, proteínas<0,05g/L, leucócitos=0, hemácias=0. Na alta o paciente estava em uso de
nifedipina 40 mg/dia, enalapril 20 mg/dia e glibenclamida (Daonil) 12,5 mg/dia. Exames ambulatorias: uréia=44
mg/dL, creatinina=1,4 mg/dL, Na=145 mEq/L, K=3,5 mEq/
L, glicemia=120 mg/dL, hemoglobina glicosilada=6,4%,
cálcio total=10,6 mg/dL, fósforo=3,6 mg/dL e depuração
de creatinina= 78 mL/min.
Discussão
A musculatura esquelética constitui-se de numerosas fibras musculares, cujo diâmetro varia entre 10 m a
80 m. Cada fibra muscular, por sua vez, é formada por
unidades menores, as miofibrilas. Cada miofibrila apresentam-se, dispostos lado a lado, cerca de 1.500 filamentos de miosina e 3.000 filamentos de actina, moléculas protéicas responsáveis pela contração muscular.
Reconhecem-se 3 principais tipos de fibra muscular: tipo
I, de contração lenta, resistente à fadiga, rica em enzimas oxidativas, porém pobre em enzimas glicolíticas;
tipo II A, com fibras de contração intermediária, resistentes à fadiga, ricas em enzimas glicolíticas e com conteúdo intermediário de enzimas oxidativas e tipo II B
com fibras com baixa resistência à fadiga, de contração
rápida, ricas em enzimas glicolíticas e pobres em enzimas oxidativas.16,17 A membrana plasmática do miócito
ou sarcolema mantém gradiente de potencial elétrico
transcelular de aproximadamente 90 mV, resultado da
atividade da bomba de Na+K+ATPase. Em resposta ao
impulso neuronal, terminais nervosos liberam acetilcolina na fenda sináptica que, abrindo os canais rápidos
de sódio, levam à despolarização da célula e à liberação do cálcio do réticulo endoplasmático, induzindo a
fixação do filamento de actina à troponina. Esse complexo atua fixando a tropomiosina à actina, permitindo
a repetida fixação das pontes de miosina à actina. Cada
fixação está associada a uma alteração da conformação
das pontes, o que exerce uma força sobre o filamento
de actina, no sentido do centro do sarcômero, resultando na contração muscular. No processo de relaxamento
muscular ocorre o transporte de cálcio de volta ao retículo sarcoplasmático, restabelecendo-se a inibição de
troponina-tropomiosina e o desligamento das pontes
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entre actina e miosina. Tanto a contração muscular como
o relaxamento são processos ativos que consomem ATP.
Quando ocorre depleção de ATP, as pontes de actinamiosina permanecem ligadas e o músculo torna-se rígido como na rigidez cadavérica.1,17
A necrose muscular decorre de distúrbios na produção de energia na via oxidativa ou glicolítica resultantes
da depleção de ATP. Vários mecanismos levam à liberação de cálcio do retículo endoplasmático do miócito, tais
como lesão direta do sarcolema, devido a trauma físico
ou a exercício extenuante, ou lesão tóxica da membrana
sarcoplasmática. Quando ocorre diminuição concomitante
dos estoques ATP, existe falência da Ca++ATPase, resultando em influxo sustentado de cálcio. A depleção de
ATP, interferindo no seqüestro normal do cálcio intracelular no réticulo sarcoplasmático e na mitocôndria, ou a
destruição dessas organelas resultam em acúmulo de cálcio intracelular, o que é letal para o miócito.1
O aumento da concentração intracelular de cálcio
ativa a fosfolipase A2 e proteases neutras, como a calpaína, resultando em lesão da miofibrila e da membrana celular, em influxo de sódio e em morte celular.16
Em geral, a rabdomiólise é de causa multifatorial,
como ocorreu no caso clínico apresentado neste relato, no qual havia hiperosmolaridade, hipofosfatemia
e convulsão.18,19
O estado de hiperosmolaridade apresenta amplo
espectro clínico, desde sintomas mínimos do sistema
nervoso central até quadros graves, como coma.20,21
Caracteriza-se por grave hiperglicemia, em média em
torno de 1.000 mg/dL, na ausência de cetoacidose, além
de desidratação, hipovolemia e desorientação. O coma
hiperosmolar geralmente ocorre em pacientes idosos
com diabetes mellitus não insulino dependente, que,
devido a alterações do centro da sede, são incapazes
de repor adequadamente as perdas decorrentes da diurese osmótica provocada pela glicosúria, o que resulta
em desidratação grave e hipernatremia. Muitas vezes a
causa precipitante pode ser identificada, como o tratamento com esteróides, diuréticos ou fenitoína.22 Outros fatores também podem estar associados a estados
hiperosmolares como infecções, eventos vasculares
cerebrais ou manobras terapêuticas como diálise peritoneal hipertônica ou nutrição parenteral.22
A hiperosmolaridade pode ser causa de rabdomiólise mesmo quando não estão presentes outros fatores
como a hipocalemia e a hipofosfatemia, porém, na
maioria das vezes, vem acompanhada desses e de outros fatores predisponentes para rabdomiólise, como
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convulsões e compressão muscular decorrente da imobilidade pelo coma.21 Em estudo analisando 31 pacientes em estado hiperosmolar, a rabdomiólise ocorreu quando a hiperosmolaridade estava associada à
deficiência de potássio que, pode estar mascarada pelo
achado de normo ou hipercalemia decorrente da liberação aguda de potássio pela célula muscular lesada.
Cinqüenta por cento desses 31 pacientes apresentavam aumento significativo da CK, sugerindo que a ocorrência de rabdomiólise subclínica seja complicação
comum do estado hiperosmolar.10,20
No entanto, nos estados hiperosmolares, o diagnóstico clínico de rabdomiólise com mioglobinúria ocorre
raramente. Ainda não está totalmente esclarecido se a
rabdomiólise é decorrente da hiperosmolaridade por si
ou somente da hiperglicemia. Existe relato de rabdomiólise em paciente com diabetes insipidus central, com agravamento da hiperosmolaridade pela hipernatremia, sem
outros fatores predisponentes, sugerindo que o estado
hiperosmolar talvez seja o fator mais importante.21
O mecanismo pelo qual a hiperglicemia levaria à
rabdomiólise, embora não seja claro, seria resultado
da inativação da bomba de Na+K+ATPase. Estudos experimentais com ratos diabéticos, induzidos por estreptozocina, mostraram aumento no sódio intracelular do tecido muscular e diminuição, na mesma
proporção, no número de bombas de Na+K+ATPase.
Essas alterações foram completamente prevenidas com
o tratamento com insulina. O aumento no conteúdo
intracelular de sódio pode levar a um aumento do cálcio intracelular que, atingindo um valor crítico, ativa
proteases neutras, acarretando lesão muscular.10
A IRA associada à rabdomiólise secundária ao coma
hiperosmolar não-cetótico em geral tem bom prognóstico. Dois casos relatados na literatura tiveram recuperação espontânea sem necessidade de terapia dialítica, como
ocorreu no presente caso.10 No entanto, mesmo sem necessidade de diálise pode ocorrer óbito, como no caso
descrito por Lustman et al.23 Se a diálise for necessária,
deve ser realizada de maneira extremamente cuidadosa,
objetivando a normalização lenta e gradual da osmolaridade e evitando, assim, as complicações associadas à
sua correção rápida, como o edema cerebral. Todavia,
Higa et al descreveram um caso de IRA por rabdomiólise
com coma hiperosmolar que necessitou de uma sessão
de hemodiálise convencional e que não apresentou complicações.12 Tozzo et al descreveram 11 pacientes com
IRA tratados por hemodiálise diária de alta eficiência sem
intercorrências e que tiveram total recuperação da fun-
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ção renal.24 Fernandez et al, estudando 59 pacientes admitidos com rabdomiólise não traumática, verificaram que
8 (13,5%) apresentaram IRA, porém somente 1 necessitou de hemodiálise, não havendo relato de complicações.25
Leung et al descreveram 1 paciente com IRA por rabdomiólise associada a coma hiperosmolar, no qual foi utilizada hemodiafiltração veno-venosa contínua com ajuste
periódico da concentração de sódio na solução de reposição, que sobreviveu.26 Nos pacientes muito hipercatabólicos, a hemodiafiltração contínua é o método mais
eficiente para controlar a uremia.27 As membranas utilizadas em hemofiltração apresentam alto coeficiente de permeabilidade, permitindo, talvez, a remoção de mioglobina que tem peso molecular de 16.800 daltons.
Estudos clássicos de IRA experimental por rabdomiólise mostraram que, além da mioglobina, dois fatores
são críticos para se produzir IRA: diminuição do volume
intravascular efetivo e presença de pH urinário ácido.1,15
A hipovolemia leva à vasoconstrição renal e o pigmento heme presente na mioglobina e na hemoglobina
pode precipitar no lúmen tubular, formando cilindros,
aumentando a pressão intratubular e diminuindo, assim, a filtração glomerular. A precipitação do pigmento
heme é favorecida pela alta osmolaridade urinária e pelo
baixo pH urinário que normalmente acompanham os
estados hipovolêmicos graves, aumentando a nefrotoxicidade direta da mioglobina.1,15,28,29 A mioglobina também é reabsorvida nos túbulos proximais pelo processo de pinocitose. A globina e o heme são rapidamente
metabolizados e o ferro presente no anel pirrólico é
acumulado na célula tubular. O ferro possui a capacidade de doar e receber elétrons (ferro catalítico). Essa
propriedade permite a catalização de reações oxidativas, gerando radicais livres que são lesivos às células.
Os radicais livres reagem com as membranas lipídicas,
alterando suas funções, podendo resultar em morte celular.30 Zager et al, em estudo experimental de rabdomiólise por glicerol, mostraram que 4 horas após a injeção
do glicerol os túbulos proximais que estavam repletos
de mioglobina apresentavam maior lesão celular. Essa
lesão estava associada ao acúmulo de ácido melanodialdeído, o que caracteriza a peroxidação lipídica.1
A hipofosfatemia é outro fator que predispõe à rabdomiólise. No caso aqui descrito, o paciente apresentava hipofosfatemia grave: fósforo sérico de 0,4 mg/
dL. Hipofosfatemia moderada ou severa em geral é
encontrada na cetoacidose diabética ou na hiperglicemia não cetótica. Esse distúrbio eletrolítico é resultado de múltiplos fatores que interferem no balanço de
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fósforo.31,32 A glicosúria induz a diurese osmótica e, em
conseqüência, fosfatúria e balanço negativo de fósforo. A diminuição do fósforo sérico pode estar presente
muitos dias antes que seja diagnosticada. A hipofosfatemia sintomática pode se desenvolver quando a cetoacidose diabética está acompanhada de insuficiência
cardíaca congestiva, alcoolismo ou alcalose respiratória. No alcoolismo crônico, a hipofosfatemia estaria
relacionada à diminuição de ingesta, bem como ao uso
de quelantes de fósforo, freqüentemente usados no
tratamento da gastrite dos alcoólatras. Alguns estudos
têm mostrado não existir benefício na terapia de suplementação de fósforo na cetoacidase diabética, já que
também, a hiperglicemia pode levar à passagem do
fósforo do intracelular para o extracelular e mascarar
a hipofosfatemia.20,31,33,34 Na cetoacidose diabética não
tratada, a deficiência de insulina e o aumento da osmolaridade poderiam levar à hiperfosfatemia, como
resultado do deslocamento do fosfato intracelular para
o extracelular. Esse deslocamento, por sua vez, é conseqüencia do aumento da osmolaridade extracelular
resultante da hiperglicemia e do acúmulo de ânions
orgânicos, como o ácido butírico.31,35
A rabdomiólise induzida pela hipofosfatemia provavelmente está relacionada à deficiência do fósforo
inorgânico intracelular, limitando a produção de ATP.
A deficiência de ATP predispõe ao acúmulo de cálcio
intracelular, podendo levar à morte do miócito. Knochel postulou que a depleção de fósforo somente seria importante na indução de rabdomiólise na presença de lesão muscular prévia.34,36
A hipocalcemia encontrada nos casos de rabdomiólise provavelmente é secundária a outros fatores, conseqüentes da lesão muscular, e não a responsável por
essa. Veenstra et al descreveram a presença de hipocalcemia (cálcio < 2 mmol/L) em 41% dos pacientes de
seu estudo. Outros autores têm descrito freqüência de
hipocalcemia de 37% a 63%.11,14 A hiperfosfatemia e a
precipitação de sais de cálcio nos tecidos moles é uma
das causas de hipocalcemia na rabdomiólise, bem como
a interferência na síntese de 1,25(OH)2 vitamina D e a
resistência da musculatura esquelética ao hormônio
da paratireóide. Nesse caso clínico está claramente ilustrado que a função renal foi o fator mais importante na
hipocalcemia induzida pela rabdomiólise.
Embora a hipocalemia não tenha sido encontrada
no presente caso, poderia existir um déficit de potássio, que seria um fator predisponente para a rabdomiólise. Pacientes com hiperglicemia não-cetótica apre-
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sentam déficit de potássio que pode atingir 3-5 mg/
kg.37 Inúmeros fatores contribuem para essa alteração,
particularmente, aumento da perda urinária de potássio, conseqüente da diurese osmótica induzida pela
glicosúria e pelo aumento da negatividade intratubular pela excreção de ânions cetoácidos que não são
absorvidos. Perdas gastrintestinais também podem
contribuir para a hipocalemia. Apesar dessas perdas,
a concentração plasmática de potássio na descompensação diabética é habitualmente normal, como ocorreu no presente caso, ou elevada em 1/3 dos casos.38
A deficiência de potássio corporal total pode em alguns casos, no entanto, estar mascarada devido à acidose metabólica, que acarreta a saída do potássio do
intracelular para o extracelular, além da própria liberação de potássio pela célula muscular lesada. A combinação de deficiência de potássio, acidose, hipernatremia e estado hiperosmolar poderia inibir a bomba
Na+K+ATPase, levando a um acúmulo de sódio intracelular. A deficiência de insulina, diminuindo a entrada
de glicose na célula, também pode contribuir para a
diminuição da atividade da bomba Na+K+ATPase e,
conseqüentemente, predispor à rabdomiólise.39
Zager et al propõem 2 mecanismos para explicar a
rabdomiólise associada à hipocalemia. No primeiro, a
depleção de potássio pode diminuir a síntese de glicogênio, levando à diminuição da energia. No segundo,
a deficiência do potássio pode interferir na vasodilatação adaptativa que ocorre durante a contração muscular. O aumento do fluxo, que é dependente de uma
alta concentração de potássio no interstício muscular
(em torno de 10 mEq/L a 15 mEq/L), produzida pela
sua liberação do miócito, é pré-requisito para que haja
maior aporte de oxigênio durante a contração muscular. A diminuição de glicogênio e insuficiente aporte
de O2 podem induzir à depleção de energia e iniciar a
morte da célula muscular.1
Nos estados hiperosmolares é importante sempre
investigar a existência de rabdomiólise, além de correção dos fatores predisponentes acima descritos. A
medida profilática mais efetiva para prevenção da IRA
na rabdomiólise ainda continua sendo a expansão
volêmica.40 Tem sido sugerido que o uso de manitol
ou furosemida poderia impedir a obstrução intratubular por meio da precipitação da mioglobina pelo aumento do fluxo urinário. Além disso, o manitol é capaz de remover radicais livres, porém o seu uso pode
agravar a hiperosmolalidade nos estados hiperosmolares.8 A administração de bicarbonato de sódio au-
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menta a solubilidade da mioglobina por aumento do
pH urinário, embora possa agravar a hipernatremia se
administrado em grandes quantidades.3,39 A diálise,
quando necessária, deve ser feita de forma lenta e se
graduando o sódio do banho de diálise ou da solução
de reposição. Dessa maneira, evitam-se condições graves como o edema cerebral.
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