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J. Bras. Nefrol. 1995; 17(2): 122-126
R. Ferraboli et. al - Insuficiência renal aguda por rabdomiólise de causa infecciosa
Insuficiência renal aguda por rabdomiólise de causa infecciosa:
relato de dois casos e revisão de literatura
Rosiani Fer raboli, Regina Célia Rodrigues de Moraes Abdulkader, Patrício Stavale Malheiro,
Emmanuel Almeida Burdmann
A rabdomiólise é uma das possíveis causas de insuficiência renal aguda. Mais freqüentemente
a rabdomiólise é decorrente de esmagamento ou trauma de massas musculares. No entanto,
agentes infecciosos também podem causar rabdomiólise. São descritos dois casos de
rabdomiólise associada a processo infeccioso e que levaram a necrose tubular aguda comprovada por biópsia. No primeiro caso os agentes infecciosos foram Streptococcus viridans e
Haemophilus influenzae e no segundo, vírus sincicial respiratório. São discutidas a etiologia, a
fisiopatologia e a profilaxia da insuficiência renal aguda associada à rabdomiólise.
Serviço de Nefrologia, Departamento de Clínica Médica, Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo,
São Paulo, SP
Endereço para correspondência: Regina Abdulkader
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Laboratório de Fisiopatologia Renal
Av. Dr. Arnaldo, 455, 3º andar, sala 67
CEP: 01246-903 - São Paulo SP
Fone: (011) 851-4011 ramal 464 ou 262
FAX: (011) 883-1693
Insuficiência renal aguda, necrose tubular aguda, rabdomiólise,
doenças infecciosas.
acute renal failure, acute tubular necrosis, rhabdomyolysis,
infectious diseases.
Introdução
Infecções virais e bacterianas podem causar rabdomiólise, algumas vezes levando à insuficiência renal aguda (IRA) severa. 1,2 No presente artigo são relatados dois casos de IRA por rabdomiólise de origem
infecciosa. Em um a infecção aguda foi por vírus
sincicial respiratório e no outro por infecção pulmonar por Streptococcus viridans e Haemophilus influenzae. Em ambos os casos realizaram-se biópsia renal e
muscular. Embora rara, a rabdomiólise deve ser lembrada como possível causa de IRA quando existe quadro infeccioso associado.
Relato dos Casos
Caso 1 - Uma jovem de 16 anos, branca, previamente sadia, com história de uma semana de febre
alta, mialgia em membros, dorso e região cer vical
que nos dois dias prévios à internação tornou-se tão
intensa que impedia a deambulação. Na véspera da
internação iniciou-se tosse com expectoração amarelada com laivos de sangue e oligúria severa. A
paciente também relatou pequenas micções de cor
acastanhada, artralgias em joelhos, cotovelos e ombros. O exame físico de admissão revelou paciente
desidratada, PA 130 x 90 mmHg, temperatura 37°C,
dor intensa à palpação dos músculos dos membros e
exame neurológico nor mal. Exames de entrada: Na
125 mEq/L, K 8,0 mEq/L, Uréia 202 mg/dL, Hemoglobina 13,5 g/dL, Hematócrito 41%, Leucócitos
57.700/mL, sendo bastonetes14%, segmentados
68%, linfócitos 14%, monócitos 4%, urina: pH 5,0,
densidade 1035, pigmento heme presente sem
leucocitúria ou hematúria porém com numerosas
células epiteliais, Creatinofosfoquinase (CPK) 2.567
U/L, Cálcio 8,8 mg/dL, Fósforo 5,6 mg/dL, Ácido
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Úrico 12,5 mg/dL, Transaminase glutâmico-oxálica
(TGO) 162 U/L (nor mal até 18 U/L), Transaminase
glutâmico-pirúvica (TGP) 191 U/L (normal até 18 U/
L), Raio X de tórax: pneumonia lobar direita. O
ultrassom abdominal mostrou rins de tamanho normal e ecotextura aumentada. A paciente foi hidratada e iniciou-se antibioticoterapia endovenosa
com penicilina cristalina e oxacilina. Como permanecesse oligúrica e em IRA foram realizadas duas sessões de diálise peritoneal intermitente e 7 sessões de
hemodiálise. Realizou-se biópsia renal percutânea no
9º dia de internação que mostrou necrose tubular
aguda com células tubulares fortemente positivas
para mioglobina (imunoperoxidase). A partir do 17º
dia de internacão houve recuperação progressiva da
diurese chegando à poliúria. A CPK manteve-se elevada (2.500 U/L) até o 5º dia de internação, caindo
para 600U/L no 15º dia, nor malizando a seguir. A
leucocitose chegou a um máximo de 66.500 leucócitos/mL no 4º dia de internação, caindo lentamente até 12.000 leucócitos/mL no 20º dia de
internação. Nas culturas de escarro houve crescimento de Streptococcus viridans e Haemophilus influenzae. As hemoculturas foram negativas, bem como sorologias para: Legionella, Mycoplasma, vírus
entéricos, respiratórios e HIV. A biópsia de músculo
feita no 9º dia de internação mostrou necrose muscular ativa com fibras em regeneração. Quatro meses
após o quadro, a paciente apresentava Creatinina 0,9
mg/dL, Uréia 20 mg/dL, Urina: pH 5,0, densidade
1020, proteinúria < 0,05 g/L, hemácias 0/campo,
leucócitos 2/campo.
Caso 2: Jovem de 20 anos, amarelo, com história
de uma semana de febre alta, cefaléia, vômitos, fraqueza muscular prog ressiva, parestesias de extremidades, diminuição do volume de diurese e escurecimento da urina. Fez duas consultas em pronto-socorro, sendo na primeira vez medicado com dose única
de metoclopramida. Na segunda consulta foi feito
diagnóstico de IRA pela oligúria e aumento de uréia
e creatinina. Não tinha antecedentes mórbidos e negava uso de drogas. Ao exame físico de admissão
estava hidratado, afebril, com fraqueza muscular proximal com diminuição de reflexos patelares. Exames
de entrada: Na 130 mEq/L, K 8,0 mEq/L, Cálcio 7,2
mg/dL, Fósforo 12,0 mg/dL, Ácido úrico 19,2 mg/dL,
Uréia 228 mg/dL, Creatinina 6,6 mg/dL, Urina: pH
5,0, proteinúria 5 g/L, hemácias >1 milhão /mL,
leucócitos 3.000/mL, ortotoluidina +++, Gasometria:
pH 7,26, bicarbonato 16 mEq/L, Hemoglobina 18,2
g/dL, Hematócrito 56%, Leucócitos 12.800/mL, sendo 6% bastonetes, 64% segmentados, TGO 340 U/L,
TGP 210 U/L, CPK 112.000 U/L, Desidrogenase
láctica 5.700 U/L, sorologia positiva (IgM) para vírus
sincicial respiratório com elevação do título inicial
de 1/24 para 1/320. Necessitou 7 sessões de diálise
peritoneal inter mitente, passando a apresentar recuperação da função renal a partir do 16º dia de internação. No 7º dia a CPK era de 2.800U/L, e a seguir
nor malizou. A biópsia renal realizada no 3º dia de
internação revelou necrose tubular aguda intensa
com obstrução da luz tubular por pigmento identificado como mioglobina (imunoperoxidase). Biópsia
de músculo realizada no 3º dia de internação mostrou necrose focal de múltiplas fibras e na rebiópsia
realizada no 60º dia somente pequenos focos de
atrofia. Um mês após o início do quadro o paciente
apresentava Uréia 27 mg/dL e depuração de creatinina de 80 mL/min.
Discussão
A rabdomiólise é a injúria do tecido muscular
esquelético que permite o escape do conteúdo intracelular para o meio extracelular. Pode ser diagnosticada pela elevação de enzimas musculares no soro
como: TGO, TGP, aldolase, e a mais específica, CPK.
Em decorrência da lesão muscular ocorre aumento no
plasma de eletrólitos (K e fósforo), aumento do
catabolismo das purinas (que se reflete no aumento
de ácido úrico plasmático), e a mioglobina se torna
presente no plasma e urina. Pode ocorrer influxo significativo de cálcio para as células musculares causando hipocalcemia. 1,2,3,4
O diagnóstico de rabdomiólise é estabelecido
quando a CPK aumenta de cinco ou mais vezes em
relação ao normal, com quadro clínico sugestivo de
rabdomiólise, na ausência de lesão cardíaca e/ou
cerebral, quando ocorrerá aumento de frações específicas da CPK. O diagnóstico pode também ser confirmado com mapeamento com gálio ou ressonância
magnética nuclear, na presença do quadro clínico
característico. 2,3,5
As causas mais comuns de rabdomiólise estão
relacionadas: 1) ao uso de álcool e outras drogas, 2)
à compressão muscular contra uma superfície dura
aonde o peso do corpo é suficiente para obstruir o
fluxo sanguíneo para o músculo que fica edemaciado,
isquêmico e com consequente aumento de pressão
intracompartimental, 3) a traumas ou esmagamen-
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tos. 1,2,3 Causas metabólicas de rabdomiólise como
coma hiperosmolar diabético, 2 hipocalemia, 6 hiponatremia, 7 hipofosfatemia, 8 hipoter mia, 9 anormalidades
genéticas no metabolismo dos carboidratos e lipídios
também são descritas, 10,11,12 assim como causas infecciosas. Entre os agentes infecciosos associados a
rabdomiólise citam-se os vírus: influenza A, 13,14
citomegalovírus, 15 coxsackie, 16 herpes simples, 17 HIV, 18
echovirus, 18 Epstein-Barr, 20 e as bactérias tais como:
Staphilococcus
aureus, 21
Legionella, 22
Clostridium
23
tetani,
Salmonella tiphi e enteritidis, 24,25 Streptococcus
pneumoniae, 26,27
Haemophilus
influenzae, 28
29
30,31
Escherichia
coli,
Lepstospira
e Francisella tularensis 32 e protozoários como o plasmódio. 33 Não temos conhecimento de relato anterior de IRA decorrente de rabdomiólise causada por vírus sincicial respiratório como ocorreu no segundo caso.
A rabdomiólise não traumática é causa de 5 a 7%
das IRAs “sensu latu”. 1,34 O mecanismo exato da lesão
muscular induzida por agentes infecciosos é pouco
conhecido. A lesão tem sido atribuída à invasão direta
do músculo pelo agente infeccioso ou à liberação de
toxinas que impediriam a utilização de energia pela
célula muscular. 34
A mioglobina é um pigmento respiratório vermelho encontrado no músculo esquelético que compreende 1 a 4% do peso seco do músculo. 4 Tem a
função de ligar o oxigênio e liberá-lo para o metabolismo oxidativo na célula muscular. Quando livre no
plasma liga-se fracamente a uma 2 globulina. 34 Em
contraste com outra hemoproteína, a hemoglobina
(PM 68.000 daltons), a mioglobina pesa apenas
17.000 daltons e sua depuração renal é 75% da depuração da creatinina, portanto na ocasião do diagnóstico da IRA por rabdomiólise a presença da
mioglobina no plasma e/ou mioglobinúria podem ou
não existir devido à sua rápida depuração renal. 4 A
mioglobina aparece na urina quando sua concentração é maior que 1,5 mg/dL, e se torna visível na
urina quando maior que 100 mg/dL. 4 A depuração da
CPK é bem mais lenta, com decaimento aproximado
de 40% ao dia, com meia vida de 1,5 dias, sendo por
isso o meio mais importante para o diagnóstico de
rabdomiólise. 1
Os testes por fita para a detecção de pigmento na
urina não diferenciam entre hemoglobina e mioglobina pois apenas detectam a presença do radical
heme pela ortotoluidina. No entanto consistem em
métodos simples, sensíveis e satisfatórios para o diagnóstico de mioglobinúria quando há suspeita clínica e
aumento das enzimas no soro, particular mente quando não há hematúria ou sinais de hemólise. 4
A mioglobina isoladamente não parece ser nefrotóxica “in vivo”. 34 Para haver lesão renal devem haver
outros fatores agressores concomitantes como hipovolemia, levando à concentração da urina e/ou acidose metabólica causando baixo pH urinário. 35 Presume-se que o radical heme seja transportado pela célula tubular renal interferindo no metabolismo energético da célula causando lesão tubular. 36 A rabdomiólise em si, causa edema muscular importante
com grande sequestro de volume o que pode levar à
hipotensão grave, diminuição e redistribuição do fluxo sangüíneo renal, obstrução tubular por precipitação de cilindros de mioglobina e liberação de
proteases e cininas vasoativas do músculo lesado
causando lesão renal. 1,2,36 A hematina liberada da
mioglobina é tóxica para o rim, bem como para o
sistema reticuloendotelial e vascular. Também a
hematina e o ácido úrico podem precipitar em urina
ácida e concentrada e levar à obstrução tubular. 3 O
ferro liberado do radical heme estimula a produção
de radicais livres com peroxidação de lípides e dano
à membrana do túbulo proximal. 37 No modelo de IRA
por rabdomiólise induzida pela injeção intramuscular
de glicerol ocorrem importante vasoconstrição e diminuição do fluxo sangüíneo renal, mediadas por: aumento da atividade simpática, aumento da atividade
do sistema renina-angiotensina, diminuição da síntese
intrarrenal de prostaglandinas vasodilatadoras, aumento do nível circulante de vasopressina e microtrombos glomerulares. 38
A medida profilática mais efetiva para a prevenção
da IRA causada por rabdmiólise é a expansão do
volume extracelular através da infusão de fluidos. 36,39
O uso de manitol ou furosemida pode impedir a
obstrução intratubular através de aumento do fluxo.
Além disso, o manitol é capaz de remover radicais
livres. 40 A administração de bicarbonato de sódio
aumenta a solubilidade da mioglobina por aumento
do pH urinário, embora em grandes quantidades possa agravar a hipocalcemia e produzir hipernatremia. 4,35,39
Em conclusão, quando existir quadro infeccioso
precedendo um episódio de IRA, a rabdomiólise deve
sempre ser lembrada como causa possível embora
rara de necrose tubular aguda, como ocorreu nos dois
casos descritos. Embora grave, estas lesões são potencialmente reversíveis desde que o diagnóstico seja
precoce permitindo tratamento adequado.
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Summary
Acute renal failure may be associated with
rhabdomyolysis, of which the most common etiology
is crush syndrome. Infections have also been
implicated in rhabdomyolysis-induced acute renal
failure. Two cases of rhabdomyolysis acute renal
failure associated with infection are described. In the
first case, the infeccious agents were Streptococcus
viridans and Haemophilus influenzae and in the
second, respiratory syncytial virus. The etiology,
pathophysiology and prophylaxis of rhabdomyolysisinduced acute failure are reviewed.
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