IRA por Rabdomiólise Após Cirurgia Bariátrica: Relato de Caso

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IRA por Rabdomiólise Após Cirurgia Bariátrica:
Relato de Caso
RESUMO
Nos últimos anos, a cirurgia bariátrica vem se popularizando devido à sua eficiência no tratamento da obesidade mórbida, e é esperado que um número
cada vez maior deste procedimento venha a ser realizado nos próximos anos.
Dentre as complicações pós-operatórias, a ocorrência de insuficiência renal
aguda (IRA) por rabdomiólise é pouco reconhecida. Pretendendo chamar a
atenção para este fato, os autores apresentam um caso de IRA por rabdomiólise em paciente submetido à cirurgia de tratamento da obesidade, fazem
uma breve revisão sobre o tema e apresentam medidas preventivas e de tratamento inicial para esta condição. (J Bras Nefrol 2004;26(3): 145-148)
Descritores: Rabdomiólise. Insuficiência renal aguda. Obesidade mórbida.
Derivação gástrica.
Vinicius Daher Alvares
Delfino
Reynaldo Miguita Junior
Altair Jacob Mocelin
Anuar Michel Matni
Abel Esteves Soares
Dênis Rogério Aranha
da Silva
Ana Maria Marques
Fracaro
José Carlos Lacerda
de Souza
Ivete Nahomi Yamaguti
ABSTRACT
ARF due to Rhabdomyolysis Following Bariatric Surgery: Case Report.
In recent years bariatric surgery has become popular due to its effectiveness in treat ing morbid obesity and a crescent number of this procedure is expected to be per formed in the years to come. Among the post-operative complications, the occur rence of acute renal failure (ARF) due to rhabdomyolysis is not frequently recog nized. Intending to draw attention to this fact, the authors present a case of ARF
caused by rhabdomyolysis in a patient submitted to surgery for treatment of morbid
obesity, make a short review on the theme, and present preventive measures and
initial treatment for this condition. (J Bras Nefrol 2004;26(2): 145-148)
Keywords: Rhabdomyolysis. Acute kidney failure. Morbid obesity. Gastric bypass.
INTRODUÇÃO
A obesidade afeta mais de 250 milhões de pessoas no mundo, é causa
de resistência insulínica que leva à intolerância à glicose e, em alguns casos,
ao diabetes melito tipo 2. A probabilidade de desenvolver diabetes dobra a
cada 20% de aumento no peso ideal 1. Pacientes morbidamente obesos têm
índice de massa corpórea maior que 40, ou que 35, no caso de comorbidade
importante como diabetes2,3.
A gastroplastia redutora tornou-se um tratamento comum para pacientes
com obesidade mórbida. Os benefícios proporcionados pela cirurgia vão muito
além do bem estar, recuperação da auto-estima e reintegração social do
paciente. A perda de peso melhora o controle do diabetes, da hipertensão arterial e reduz o risco cardiovascular1,2.
Obesos mórbidos apresentam maior risco de complicações cirúrgicas, especialmente infecções e complicações pulmonares. Rabdomiólise pós-operatória
pode ocorrer e representa morbidade significativa por poder desencadear insufi-
Instituto do Rim de Londrina
(VDAD, RMJ, AJM, AMM, AES,
DRAS & AMMF) e Hospital Mater
Dei de Londrina, Londrina, PR.
Recebido em 24/11/2003
Aprovado em 26/05/2004
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IRA por Rabdomiólise Após CirurgiaBariátrica:
Relato de Caso
ciência renal aguda e outras complicações clínicas sérias4,5.
Relatamos um caso de rabdomiólise em um paciente
morbidamente obeso submetido à cirurgia bariátrica.
O objetivo deste relato é chamar a atenção para
esta possibilidade frente a um paciente no pós-operatório
de cirurgia bariátrica com insuficiência renal aguda de
causa não claramente identificável.
APRESENTAÇÃO DO CASO
Paciente de 40 anos, masculino, branco, morbidamente obeso (peso= 160kg, altura= 1,75m, IMC> 50),
diabético, com hipertensão arterial e colecistopatia litiásica, interna eletivamente para ser submetido à colecistectomia e cirurgia bariátrica (bypass gástrico em Y de
Roux). Os exames pré-operatórios são normais e sua creatinina é de 0,8mg/dL. As medicações em uso consistiam
de insulina, ácido acetilsalicílico e fumarato de formoterol. Não tomava estatinas. A cirurgia durou aproximadamente 7 horas (colecistectomia videolaparoscópica
e bypass gástrico em Y de Roux no mesmo tempo cirúrgico), e a oferta parenteral durante a cirurgia foi próxima
de 3,5 litros de ringer-lactato, a pressão arterial mantevese em torno de 110/80mmHg sem apresentar hipotensão
no controle do anestesista. As medicações anestésicas utilizadas foram propofol, besilato de atracúrio, cloridrato de
remifentanil e lidocaína. No pós-operatório (PO) imediato, apresentou 200ml de diurese nas primeiras 12 horas. O
plano parenteral consistia de 3000ml diários na forma de
soro glicosado a 5% com 34mEq/L de sódio e15mEq/L de
potássio. As medicações de potencial nefrotóxico eram
cefalotina e tenoxican. Nas 24 horas seguintes, sua
diurese foi de 550ml. A urina I do 1o PO apresentava pH
5, densidade 1020, glicose +, proteínas ++, hemoglobina
+++, leucócitos 336.000, hemácias 528.000, células
epiteliais 10.000 e bactérias +++. O paciente queixava-se
de dores em região lombar e glútea. No 2o PO, mantevese oligúrico, sua creatinina era de 6,6mg/dl e foi solicitada avaliação da nefrologia. Nesse momento, o paciente
apresentava febre e hiperemia em parede abdominal na
proximidade da cicatriz cirúrgica compatível com
celulite. A pressão arterial era de 140/100mmHg e não
havia sinais de depleção do espaço extracelular. Apresentava, também, significativa balanopostite. A cefalotina foi
suspensa e foram acrescentados teicoplanina, ciprofloxacino, metronidazol e fluconazol, oferecendo ampla cobertura para infecção dos sítios cirúrgico e urinário. O ácido
úrico sérico encontrava-se normal e um ultra-som excluiu
causas obstrutivas pós-renais. O paciente permanecia
oligúrico e com níveis crescentes de uréia e creatinina
chegando a 186mg/dL e 10,51mg/dL, respectivamente,
no 4o PO, exigindo hemodiálise por cateter de duplolúmen. A creatinofosfoquinase (CPK) do 6o PO era de
8.000U/L (normal de 26 a 189U/L) e, nesta ocasião, a palpação das panturrilhas ainda mostrava-se muito dolorosa.
O paciente foi submetido a 3 sessões de hemodiálise em
dias alternados. Evolui com recuperação da diurese,
sendo retirado o cateter de duplo-lúmen no 9o PO. Os
níveis de uréia e creatinina permaneceram em um platô
por 3 dias e depois diminuíram progressivamente. A CPK
caiu para 1.873U/L no 8o PO. O paciente permaneceu
internado até o 27o PO (devido ao tratamento das complicações infecciosas), recebeu alta da nefrologia quando a
creatinina estava em 2,4mg/dL. Voltou ao consultório
para reavaliação 45 dias após receber alta hospitalar,
apresentando-se bem disposto e com creatinina de
1,5mg/dL. Quatro meses após a cirurgia, já havia emagrecido 42kg e não mais necessitava utilizar insulina para
o adequado controle glicêmico.
DISCUSSÃO
A síndrome clínica e laboratorial da rabdomiólise
tem espectro de gravidade amplo, podendo provocar
desde elevações assintomáticas das enzimas musculares
até situações potencialmente fatais com distúrbios
eletrolíticos severos e insuficiência renal aguda. Devido
ao extravasamento de outros elementos tóxicos intracelulares em adição à mioglobina para a circulação, pode
ocorrer, em casos de extensa rabdomiólise, quadros de
disfunção hepática, síndrome da angústia respiratória
aguda, coagulação intravascular disseminada e falência
de múltiplos órgãos 6,7.
Existem várias causas de rabdomiólise (revistas
nas referências 6 e 7), sendo mais comuns as seguintes
etiologias:
1-Injúria direta em casos de esmagamento muscular acidental ou decorrente da compressão muscular
provocada por confinamento em uma mesma posição por
período prolongado em decorrência de coma, condições
psiquiátricas e procedimentos cirúrgicos 8;
2-Atividade muscular excessiva (como conseqüência de convulsões, atividades físicas extenuantes,
como corridas de maratonas);
3-Defeitos enzimáticos musculares hereditários (síntese reduzida de ATP). A deficiência de carnitina palmitiltransferase é o distúrbio aeróbico, e a de miofosforilase
(doença de McArdle) o anaeróbico, mais freqüentemente
encontrados. Deve-se suspeitar de defeito enzimático frente
a episódios repetidos ou história familial de rabdomiólise;
4-Drogas e toxinas são importantes causas de rabdomiólise. Estado comatoso decorrente do etanol pode
J Bras Nefrol Volume XXVI - nº 3 - Setembro de 2004
acarretar compressão muscular prolongada, e o etanol contribui diretamente para a injúria muscular ao inibir o acúmulo de cálcio pelo retículo sarcoplasmático e a bomba
sódio-potássio ATPase. Diuréticos podem provocar
hipocalemia severa o suficiente para causar rabdomiólise.
As estatinas (inibidores da 3-hidroxi-3-metilglutaril coenzima A redutase) podem induzir rabdomiólise. Especulase que as estatinas inibam uma coenzima que desenvolve
uma função importante na produção de ATP nas mitocôndrias. O risco de rabdomiólise eleva-se significativamente
quando estatinas são utilizadas em associação a fibratos.
Quanto às drogas ilícitas, existem vários casos descritos
em associação com o uso de cocaína. Picadas de abelhas,
vespas e serpentes podem provocar rabdomiólise;
5-Alterações metabólicas como hipocalemia (por
impedir a vasodilatação e boa perfusão da musculatura,
suprimir a síntese e estoque de glicogênio e alterar o
transporte iônico celular), hipofosfatemia, hipernatremia,
cetoacidose diabética, hipotireoidismo, hipertireoidismo,
estados hiperosmolares, feocromocitoma etc.
O diagnóstico de rabdomiólise inclui história clínica de dores musculares e fraqueza, urina de aspecto “marrom-avermelhado” (mioglobinúria) e elevação da creatinofosfoquinase (mais de 5 vezes o valor normal é diagnóstico), na ausência de infarto do miocárdio ou miopatia
inflamatória7. Quando necessária distinção, as determinações das frações MM (músculo estriado esquelético) e
MB (músculo cardíaco) esclarecem o diagnóstico.
A desintegração da musculatura estriada resulta em
liberação de vários compostos orgânicos e inorgânicos para
o plasma. Dentre esses constituintes está a mioglobina,
uma proteína transportadora de oxigênio de peso molecular
de 18.000 daltons. Em situação de normalidade, a mioglobina presente na circulação encontra-se ligada a outras
globulinas, e apenas uma fração mínima alcança a urina.
Na rabdomiólise, uma quantidade maciça de mioglobina é
liberada na circulação, excedendo-se sua capacidade de ligação a proteínas plasmáticas; a mioglobina é filtrada pelos
glomérulos e alcança os túbulos. Os principais mecanismos
fisiopatológicos da insuficiência renal aguda mioglobinúrica incluem: vasoconstrição renal, formação de cilindros
intraluminais e citotoxicidade direta da mioglobina. Paralelamente, ocorre uma elevada produção e excreção urinária
de ácido úrico, podendo piorar a obstrução tubular. O baixo
pH urinário, comum na rabdomiólise, favorece a precipitação de ácido úrico e mioglobina 6.
Rabdomiólise decorrente de posicionamento cirúrgico é bastante incomum (ou pouco diagnosticada). Cerca
de 60 casos estão relatados na literatura mundial, implicando o posicionamento cirúrgico como etiologia da rabdomiólise5. A rabdomiólise em pacientes obesos mórbidos
que segue a cirurgia bariátrica parece decorrer de imobi-
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lização prolongada numa mesma posição na mesa de cirurgia, levando à isquemia muscular pela pressão sustentada.
Há relato de necrose da musculatura glútea, necessitando
de desbridamento4. Os indivíduos sob maior risco de rabdomiólise pós-operatória são homens com hipertensão e
diabetes, insuficiência renal prévia, depleção do extracelular, cirurgias com duração superior a 5-6 horas e com peso
corporal acima de 30% do normal4,5,7.
O paciente do caso apresentado era hipertenso, diabético, com elevado IMC, e a duração da cirurgia foi de
quase sete horas. Sua queixa principal no pós-operatório
foi de dores em regiões lombar e glútea. No primeiro
momento da avaliação, a causa da insuficiência renal não
parecia óbvia. As drogas utilizadas durante a anestesia não
representavam potencial nefrotóxico relevante (e em retrospecto, também não estão ligadas à rabdomiólise),
aparentemente o paciente não havia apresentado depleção
do extracelular significativa e não existiam evidências
ultra-sonográficas de componente pós-renal. Obstrução
intratubular por hiperuricemia associada à obesidade mórbida foi excluída pela verificação de níveis séricos de
ácido úrico. O quadro foi inicialmente interpretado como
possível nefrotoxicidade devido ao uso combinado de antiinflamatório não hormonal à cefalotina no estado pósoperatório, mas o grau de insuficiência renal aguda parecia desproporcional. A queixa de dores lombares e na
região glútea despertou a hipótese diagnóstica de rabdomiólise como causa da insuficiência renal. Outra indicação poderia ter sido dipstick urinário positivo para
hemoglobina na ausência de hemoglobinúria. No paciente
em questão, no entanto, havia balanopostite associada,
com leucocitúra, hematúria/hemoglobinúria na Urina I.
A elevação da CPK atinge seu pico em aproximadamente 24 a 36 horas da injúria e decresce aproximadamente 40% por dia7, mas pode ter meia vida de 42
horas segundo outro autor9. Devido ao seu peso molecular (80.000), sua cinética de eliminação parece não ser
muito alterada na insuficiência renal aguda. Levando em
consideração que a CPK do 6o pós-operatório era de
8.000U/L, especulamos que níveis em excesso a
40.000U/L deveriam estar presentes no 1o pós-operatório.
A importância e gravidade dessa complicação
pouco observada da cirurgia bariátrica reforça a necessidade de atenção para medidas simples que podem prevenir a rabdomiólise e seus efeitos deletérios. Posicionamento adequado do paciente na mesa de cirurgia e limitação do tempo cirúrgico nos pacientes de alto risco
(alterando a posição do paciente mesmo durante a cirurgia, se esta durar mais de 3 horas) são os passos iniciais.
Deve-se evitar depleção de volume e, nos casos de rabdomiólise estabelecida, o objetivo do tratamento é promover vigorosa expansão do intravascular com salina
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isotônica (monitorização hemodinâmica pode ser
necessária em pacientes idosos e naqueles com reserva
cardíaca ou renal comprometida), visando diluir os produtos tóxicos e facilitar sua excreção. Neste sentido,
alcalinização urinária pela administração endovenosa de
bicarbonato de sódio e promoção de diurese osmótica
com manitol são medidas complementares úteis. Distúrbios metabólicos e ácido-básicos, especialmente hiperpotassemia, hiperfosfatemia e hipocalcemia, estão freqüentemente presentes e devem ser corrigidos.
Gostaríamos, aqui, de destacar que, embora na
avaliação inicial o paciente não parecesse estar com
depleção do extracelular, ele recebeu cerca de metade do
volume de fluidos recomendados pela sociedade americana de anestesiologia para cirurgias semelhantes10, o que
deve ter contribuído para o aparecimento de necrose tubular aguda no contexto de rabdomiólise. Chamamos a
atenção, ainda, para o fato de que em grandes obesos é
muito difícil avaliar-se clinicamente o extracelular na
ausência de monitoração venosa invasiva, a qual não é
isenta de risco nestes pacientes. Além disto, há sempre
um certo receio em se administrar quantidades generosas
de fluidos no trans-operatório destes indivíduos, pois,
devido à disfunção diastólica que eles freqüentemente
apresentam, há risco aumentado de edema agudo de pulmão com este procedimento 11.
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Endereço para correspondência:
Vinicus Daher Alvares Delfino
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