PROTEÇÃO NORMATIVA AO MEIO AMBIENTE SUMÁRIO: 1. O Estado de direito: uma visão macro; 2. A Constituição como um processo histórico; 3. O historicismo constitucional e o meio ambiente; 4. Dano ao bem ambiental; 5. O conceito legal de dano ambiental; 6. A proteção normativa ao meio ambiente. 1. O Estado de Direito: uma visão macro O Estado, sem deixar de ser Estado de Direito, protetor das liberdades individuais, e sem deixar de ser Estado Social, protetor do bem comum, passou também a ser Democrático, visando, com isso, à participação popular no processo político, nas decisões do Governo, no controle da Administração Pública. O princípio da democracia econômica e social, defendido por Canotilho1, “constitui uma autorização constitucional no sentido de o legislador democrático e os outros órgãos encarregados da concretização político-constitucional adaptarem as medidas necessárias para a evolução da ordem constitucional sob a óptica de uma <<justiça constitucional>> nas vestes de uma <<justiça social>>.” Com a nova concepção do Estado de Direito, o interesse público se humaniza à medida que passa a se preocupar não só com os bens materiais que a liberdade de iniciativa almeja, mas também com valores considerados essenciais à existência digna, numa mistura de liberdade com dignidade, exigindo uma atuação firme do Estado para reduzir as desigualdades sociais e levar a toda coletividade o bemestar social. Os interesses sociais são comuns a um conjunto de pessoas, e somente a estas, estão espalhados e informais à tutela de necessidades coletivas, sinteticamente referíveis à qualidade de vida, interesses de massa, que comportam ofensas de massa e que colocam em contraste grupos, categorias, classes de pessoas. Não mais se trata de um feixe de linhas paralelas, mas de um leque de linhas que convergem para um objeto comum e indivisível. Aqui se inserem os interesses dos consumidores, ao ambiente, dos usuários de serviços públicos, dos investidores, dos beneficiários da previdência social e 1 CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 468. de todos aqueles que integram uma comunidade, compartilhando de suas necessidades e seus anseios2. Sem embargo, o reconhecimento e a necessidade de tutela desses interesses puseram de relevo sua configuração política. Deles emergiram novas formas de gestão da coisa pública, em que se afirmaram os grupos intermediários. Uma gestão participativa, como instrumento de racionalização do poder, que inaugura um novo tipo de descentralização, não mais limitada ao plano estatal, mas estendida ao plano social, com tarefas atribuídas aos corpos intermediários e às formações sociais, dotados de autonomia e de funções específicas. O que se buscou, portanto, foi a substituição da idéia de Estado Legal, puramente formalista, por um Estado de Direito vinculado aos ideais de justiça, submetendo-se o Estado ao direito e não à lei em sentido apenas formal, donde surge a expressão Estado Democrático de Direito, que compreende o aspecto da participação do cidadão, Estado Democrático, e o da justiça material, Estado de Direito. Trata-se de uma nova forma de limitação ao poder do Estado, em que o conceito unitário de soberania, entendida como soberania absoluta do povo, delegada ao Estado, é limitado pela soberania social atribuída aos grupos naturais e históricos que compõem a nação. 2. A Constituição como um processo histórico Para Hesse3, as funções das Constituições na vida da comunidade são aplicáveis, antes de mais nada, a duas tarefas fundamentais: a formação e manutenção da unidade política, assim como a criação e manutenção do ordenamento jurídico, e, segundo ele, ambas estão estreitamente ligadas, o que é um fato. Seria a Constituição um ordenamento jurídico que caracteriza os organismos supremos do Estado, suas diretrizes e, ainda, uma posição de respeito e garantia aos direitos fundamentais individuais frente ao poder estatal, de forma integrada, organizada e juridicamente direcionada. Para tanto os cidadãos, comuns ou que componham o poder estatal, devem ter responsabilidades civis e políticas, e isto depende de inúmeros fatores extrajurídicos, nos dizeres de Heller4, como as tradições, o nível de consciência política e os líderes. A formação de uma unidade política depende da sua organização e de um 2 GRINOVER, Ada Pellegrini, Defesa do Meio Ambiente em Juízo como conquista da Cidadania, no site www.boletimjuridico.com.br, em 15.05.2000. 3 HESSE, Conrado. Manual de Derecho Constitucional. Madrid: Instituto Vasco de Administración Pública, 1996, p. 3. 2 processo ordenado para tanto, de modo a encontrar a adesão das pessoas que vivem sob sua hierarquia. Esta a tarefa básica que cabe à Constituição, mediante a estipulação dos direitos fundamentais, na medida em que se pode considerá-la como o ordenamento jurídico do processo de integração estatal, cujo idealizador, conforme leciona o Prof. Ivo Dantas5, “necessariamente terá que enxerga-lo sob a óptica valorativa, procurando a melhor regulamentação para o Estado, o exercício do seu poder e suas relações com o indivíduo em determinado momento”, conforme o historicismo constitucional, valorados como de primeira, segunda ou terceira gerações, o que veremos no capítulo seguinte. O princípio que deve nortear essa tarefa, tendo como fim um meio ambiente ao menos sustentável, diz respeito ao direito natural, voltado exclusivamente para a dignidade do ser humano, pois cabe ao Estado preservar esse direito, já que o ser humano é o verdadeiro destinatário da ordem social e jurídica de cada país. Estes imprescindíveis contornos jurídicos são delineados pela Constituição, diante de um complexo sistema valorativo, que poderão ser modificados conforme as conclusões dos estudos relacionados ao meio ambiente, por força das consequências realmente imprevisíveis decorrentes de fatores como clonagem de animais e seres humanos, a questão dos transgênicos, o uso de energia atômica, o uso indiscriminado dos oceanos, a poluição excessiva dos rios, o desmatamento, questões que, num curto a médio espaço de tempo, serão cruciais à sobrevivência do planeta. Uma visão histórica e comparativa, vinculada a situações anteriormente já configuradas em outras regiões, faz-se de suma importância, indo, entrementes, além desse ponto, pois é preciso se levar em consideração, para o futuro, mecanismos de prevenção e de correção à ocorrência dos denominados danos ambientais, como essenciais à sociedade, aos interesses do ser humano, cuja conceituação será abordada oportunamente. 3. O historicismo constitucional e o meio ambiente Compete-nos, de início, alargar o que seria meio ambiente, não apenas na concepção singela do âmbito em que vivemos, mas como sendo “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento 4 5 HELLER, H., em HESSE, op. cit., p. 3. DANTAS, Ivo. Instituições de Direito Constitucional Brasileiro. Curitiba: Juruá, 2000, p. 37. 3 equilibrado da vida em todas as suas formas”6. A integração busca exatamente assumir uma concepção unitária do ambiente compreensiva dos recursos naturais e culturais, passando a ser, conforme veremos no desencadear deste capítulo, uma preocupação do Poder Público, e, por conseqüência, do próprio Direito, em sua norma fundamental. Nesta ordem de alinhamento, os direitos fundamentais previstos nas Constituições acompanharam a evolução do Estado, que a cada época, de acordo com suas necessidades sociais e políticas, vai priorizando determinadas garantias como forma de direcionar sua atuação, entendidas pelos legisladores como essenciais ao bem estar comum, não sob uma visão individualista, mas primordialmente coletiva, sendo deveras recente a necessária atenção constitucional devotada ao meio ambiente. As primeiras dessas garantias constitucionais a surgir de que se tem conhecimento, foram os direitos e garantias individuais e políticos clássicos, ou direitos e garantias de primeira geração, que surgiram no século XVIII, tornando-se a base do Estado de Direito, originando o Estado Moderno. Caracterizavam-se esses princípios pelo lema francês laissez-faire, laissez-passer, ou deixar fazer, deixar passar, que pregava a liberdade de iniciativa das atividades econômicas, e, pelo contexto histórico, foi transplantado para a Política e para o Direito, surgindo o Estado Liberal ou Estado de Direito. Era um Estado caracterizado pela total submissão dos governantes e pelo mínimo de intervenção estatal no domínio econômico, posto que qualquer interferência estatal na autonomia e liberdade dos indivíduos era digna de desconfiança e tida como uma vedação à liberdade dos cidadãos, garantia-se primordialmente a liberdade de religião, de reunião, de profissão. O Estado era então concebido para assegurar segurança, garantir a propriedade e praticar os atos dos três poderes, ou seja, administrar, legislar e julgar, época do surgimento do princípio da legalidade. Com o advento do Estado Liberal, foram reconhecidos os chamados direitos de primeira geração, que se constituem, primordialmente, num plano jurídicoobjetivo, segundo Canotilho, em normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente suas ingerências na esfera jurídica individual, e num plano jurídico-subjetivo, “o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)”7. 6 7 SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 2. CANOTILHO, op. cit., pp. 537-538. 4 Os direitos clássicos de primeira geração, representados pelas ditas tradicionais liberdades negativas, com o correspondente dever de abstenção por parte do Poder Público, passaram a não mais atender aos anseios da população, como forma de garantir o pleno exercício das liberdades, consolidando-se, então, o Estado Social, como ficou conhecido, que surgiu no início do século XX, mas só se desenvolveu e atingiu seu ápice ao fim da II Grande Guerra, priorizando os direitos sociais, a saúde, a educação, a previdência social, a segurança, como exigência do cidadão ao Estado, composto de liberdades positivas, ao contrário do Estado Liberal. Caracterizava-se o Estado Social pelo grande intervencionismo estatal em setores que antes eram reservados aos cidadãos, como os setores econômicos estratégicos, a siderurgia, a energia, o petróleo, o Estado cria empresas, passa a se responsabilizar e a regular as questões entre patrões e empregados, surgindo os chamados direitos de segunda geração, que se identificam, no dizer do Ministro Celso de Mello8, em “liberdades positivas reais ou concretas”, ou seja, em direitos que clamam por uma atuação positiva do Estado e que se concretizam, não raras vezes, pela edição de atos legislativos. A partir do fim da década de 70 (setenta), este último modelo de Estado já se encontra defasado. Surge então o modelo estatal pós-modernista, o Estado Democrático de Direito, garantido pelos direitos e garantias fundamentais de terceira geração, sem que isso viesse implicar em abandono das idéias já consolidadas, ao contrário, somaram-se os direitos de solidariedade, decorrentes dos interesses sociais. E assim foi que, o que aparecia inicialmente como mero interesse, elevou-se à dimensão de verdadeiro direito, conduzindo à reestruturação de conceitos jurídicos, que se amoldassem à nova realidade. Esse modelo reconheceu novos valores, acima das noções de desenvolvimento meramente econômico, inclinando-se ao chamado crescimento sustentável, administrando-se os recursos naturais em defesa de um meio ambiente sadio e equilibrado, mesmo que em detrimento do puro crescimento econômico, instituindo os também denominados direitos de solidariedade ou fraternidade. O respeito aos direitos difusos, porque exercidos não mais por pessoas determinadas, mas por uma coletividade indeterminada, representando interesses de grupos menos determinados de pessoas, sem vínculo jurídico ou fático muito preciso entre eles, como os direitos ambientais, do consumidor, a questões relativas ao patrimônio histórico-cultural da humanidade, entre outros, é a base desse Estado, que 8 BRASIL. STF, Pleno, MS 22.164/SP, Rel. Min. Celso de MELLO, DOJ 17/11/95. 5 ampliou a noção de cidadania, modificando a relação existente entre sociedade e Estado, antes conflitantes e totalmente diversas, vendo-as como interdependentes e ligadas por um objetivo comum, que é a realização do Direito. Materializaram-se, dessa forma, poderes de titularidade coletiva, atribuídos genericamente a todas as formações sociais, que consagraram o princípio da solidariedade e constituíram um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizando-se como valores fundamentais indisponíveis. Assim, superou-se o então absolutismo do poder dever do Estado, limitado pela natureza, frente à ação responsável e questionadora do que pode ou não ser feito, tendo como limite a própria consciência, na busca do bem comum, de uma qualidade de vida digna, levando-se em consideração o meio ambiente como fator de equilíbrio e meio de suma e vital importância para que se chegue a esse tento. Na prática, o ambientalismo passou a ser tema de elevada valoração nas Constituições mais recentes, não mais como simples aspecto da atribuição de órgãos ou de entidades públicas, porém como direito fundamental da pessoa humana9, o que observamos, e aqui se destaca, na Constituição da República Federal da Alemanha, de 1949, em seus art. 74, 20º e 24º, e art. 75, 3º; na da Suíça, de 1957, com emendas de 1962 e 1971, em seu art. 24, 4º, 6º e 7º; na da Bulgária, de 1971, em seu art. 31; na de Cuba, de 1976, em seu art. 27; na de Portugal, de 1976, em seu art. 66; na da Espanha, de 1978, em seu art. 45; na da China, de 1982, em seu arts. 9º e 26, como também a do Brasil, de 1988, que dedicou todo um capítulo ao meio ambiente, inserido no título da ordem social, Capítulo VI do Título VIII, que só contém o art. 225, com seus parágrafos e incisos, tido, como já referido, como parte da ordem social, tratando-se o direito ambiental, portanto, como direito social do homem. 4. Dano ao bem ambiental A proteção ambiental, abrangendo a preservação da natureza em todos os seus elementos essenciais à vida humana e à manutenção do equilíbrio ecológico, visa exatamente tutelar a qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida, como uma forma de direito fundamental da pessoa humana como garantia constitucional que já observamos, não escapando, destarte, da ocorrência de danos, mesmo com a 9 SILVA, op. cit., p. 23. 6 institucionalização de todos os mecanismos e aparatos legais disponíveis, face ora à falta de consciência, ora à ganância, ora à simples perversão do ser humano. A ação predatória do meio ambiente natural, objeto deste estudo, manifesta-se de várias formas, quer destruindo os elementos que o compõem, como utilizando ancoras de ferro pontiagudas sobre os recifes de corais, quer contaminandoos com substâncias que lhe alterem a qualidade, impedindo seu uso normal, como se dá com a poluição do ar, das águas, do solo e da paisagem, que se entrelaçam na manutenção da vida orgânica10. A contaminação de um componente ambiental compromete também a pureza dos outros, seja de forma direta, seja indireta. Desse modo, define o art. 3º da Lei nº 6.938/81, diploma básico para o tratamento jurídico do dano ambiental no Brasil, como degradação da qualidade ambiental qualquer alteração adversa das características basilares do meio ambiente que, direta ou indiretamente, dentre outros, afetem a biota, o que se constatou plenamente em relação aos recifes de corais na praia de Tamandaré, e que será demonstrado em capítulo próprio, conforme estudos levados a efeito por especialistas, redundando em uma série de ações normativas e técnicas. Aqui surge a questão do dano público, contra o meio ambiente em si, bem de uso comum do povo (art. 225 da CF), de natureza difusa e que atinge um número indefinido de pessoas, como no caso em análise, do dano privado, que dá ensejo à indenização dirigida à recomposição do patrimônio individual das vítimas, para fins de responsabilização, a qual independe de culpa. O Prof. Andreas Krell11 cita a afirmação de José Afonso da Silva de que a responsabilidade pelo dano ambiental existe mesmo que o poluidor exerça a sua atividade dentro dos padrões fixados, "o que não exonera o agente de verificar, por si mesmo, se uma atividade é ou não prejudicial, está ou não causando dano", apontando no mesmo sentido Rüdiger Breuer, Umweltschutzrecht, in: Ingo von Münch/Eberhard Schmidt-Aßmann, Besonderes Verwaltungsrecht, 9. ed., 1992, Verlag W. de Gruyter, Berlim, p. 444. Esta "verificação", afirma, pode ser efetuada somente em casos de uma certa evidência do dano ambiental, bem como a obviedade dos efeitos negativos que a atividade causa no ambiente local, como a morte de animais, a destruição da vegetação ou reclamações constantes da população sobre doenças diretamente ligadas às emissões. 10 DUBOS, Bárbara Ward-René. Uma Terra Somente, tradução de Antônio Lamberti. São Paulo: EDUSP, 1973. 11 KRELL, Andreas Joachim. Concretização do Dano Ambiental – Algumas Objeções à Teoria do “Risco Integral”, Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito, da UFPE, nº 8, 1997, Recife-PE, p. 40. 7 É de suma importância levar em consideração a capacidade específica que tem o agente poluidor de reconhecer os danos por ele causados, uma vez que pelo potencial que possui, por exemplo, uma grande empresa, equipada de técnicos e laboratórios próprios, exige tratamento diverso do que em relação ao dano acidentalmente causado por um particular. O Prof. Krell arremata que “isto é uma conseqüência dos princípios do "risco-proveito" e do "poluidor-pagador", através dos quais surge uma maior densidade de responsabilidade para o poluidor economicamente mais forte, que utiliza, de maneira intensa, recursos naturais para gerar o seu lucro”12. Os órgãos ambientais estatais, dessa forma, são obrigados por lei a impedir qualquer ato danoso contra o meio ambiente. “As concentrações populacionais, as indústrias, o comércio, os veículos motorizados, e até a agricultura e a pecuária produzem alterações no meio ambiente. Essas alterações, quando normais e toleráveis não merecem contenção e repressão, só exigindo combate quando se tornam intoleráveis e prejudiciais à comunidade, caracterizando-se poluição reprimível. Para tanto, há necessidade de prévia fixação técnica e legal dos índices de torelabilidade, ou seja, dos padrões admissíveis de alterabilidade de cada ambiente, para cada atividade poluidora”.13 Pouco interessa se a atividade poluidora se verificou dentro dos limites previamente ordenados, a responsabilidade surgirá, seja de forma coletiva, quando atingido difusamente o meio ambiente ecologicamente equilibrado, seja de forma individual, quando o particular, seja ele pessoa física ou jurídica, sofre prejuízo em relação aos seus bens patrimoniais ou à sua saúde, por força da degradação do meio ambiente ou de um recurso natural, como o são os recifes de corais e seu imenso ecossistema. Neste particular, o próprio Estado, ante a ausência do serviço adequado ao seu defeituoso ou omissivo funcionamento, inclusive por demora, estaria obrigado a reparar os danos decorrentes, em agravo aos administrados14. Finaliza afirmando que “a concretização do dano ambiental se opera no mundo fático bem como no mundo jurídico. Pode haver dano ambiental embora que 12 KRELL, op. cit., p. 41. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 492. 14 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 663. 13 8 nenhuma norma do direito material seja infringida. Por outro lado, já é considerado poluidor quem libera emissões além dos padrões permitidos pela autorização do empreendimento; nesse caso, a ultrapassagem dos limites estabelecidos leva à presunção da existência de um dano ao meio ambiente”.15 5. O conceito legal de dano ambiental A qualidade do meio ambiente é na verdade um bem, a quem o direito reconhece e protege como patrimônio ambiental16, e cuja qualidade é objeto do direito social previsto no art. 225 da Constituição Federal. Porém aqui surge o questionamento se esse patrimônio ambiental seria público ou privado. Afora a visão legal e restrita de que os bens públicos seriam apenas aqueles pertencentes à União, aos Estados e aos Municípios, sejam eles de uso comum, como os mares e rios; de uso especial, como os prédios públicos, e os dominais, do patrimônio público, como objeto de direito pessoal ou real, e que os demais bens seriam privados, conforme disposição do art. 65 do Código Civil, a doutrina moderna17 vem se inclinando no sentido de configurar outra categoria de bens, denominados bens de interesse público, na qual estão inseridos não só os bens públicos propriamente ditos, como também os particulares, caso haja interesse para a consecução de um fim público em relação ao mesmo. Esses bens, essenciais à sadia qualidade de vida, ficam subordinados a um peculiar regime jurídico relativamente ao seu gozo e disponibilidade e também a um particular regime de polícia, intervenção e de tutela pública18, condicionando determinadas atividades e negócios relativos a esses bens, de forma a controlar-lhes a situação jurídica e o seu uso. Esses atributos do meio ambiente não podem ser de apropriação privada, mesmo quando seus elementos constitutivos pertençam a particulares, posto que vinculados a um fim de interesse coletivo. Dano ambiental, portanto, seria para José Afonso da Silva “qualquer lesão ao meio ambiente causada por condutas ou atividades de pessoa física ou jurídica 15 KRELL, op. cit., p. 42. SILVA, op. cit., p. 55. 17 SILVA, idem, p. 56, menciona os doutrinadores italianos GIANNINI, Massimo Severo; PASINI, Gastone, e D´URSO, Mario. 18 PASINI, Gastone, em SILVA, op. cit., p. 56. 16 9 de direito público ou privado”19, para Sérgio Ferraz, “toda lesão defluente de qualquer agressão à integridade ambiental”20, e para Helli Alves de Oliveira, “todo dano causado ao meio, independente de suas repercussões sobre as pessoas e seus bens”21, podendo atingir um número indefinido de pessoas, de forma difusa, quando dará margem à propositura de Ação Civil Pública ou Ação Popular, ou apenas o particular, ocasião em que ensejará ação indenizatória dirigida à recomposição do patrimônio vitimado. O Prof. Krell aponta, entretanto, que o cerne do problema parece estar situado na questão do entendimento correto do conceito do dano ambiental no sentido do art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81, o que restou indefinido, sendo pacífico na doutrina, segundo afirma, que a questão o que seja um dano ao meio ambiente é respondida pela legislação material referente à proteção ambiental22, até porque nem toda alteração negativa do meio ambiente pode ser concebida como poluição ou dano, juridicamente falando. Para Viana Bandeira23, a cujo entendimento me filio, somente se pode cogitar de um dano ambiental se a conduta for considerada injurídica no respectivo ordenamento legal. Assim a antijuridicidade decorre da violação de um interesse juridicamente protegido, de forma que não basta a simples opinião pessoal do aplicador do Direito de que o ato praticado agride o meio ambiente, é necessária a existência de uma norma que proíba certa atividade ou que proteja determinado bem ecológico. O art. 3º, III, da Lei nº 6.938/81, que cuida da Política Nacional do Meio Ambiente, conceitua poluição de forma bastante ampla, como sendo “degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; afetem desfavoravelmente a biota; afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos”, de onde se abstrai que onde ocorrer poluição, muitas vezes vai haver também um dano ambiental, de acordo com o art. 1º, inc. I, da Lei 7.347/85, visto que a definição do conceito de dano da lei processual se rege pelas normas do direito ambiental material. 19 SILVA, op. cit., p. 207. FERRAZ, Sérgio. Responsabilidade Civil por Dano Ecológico, RDP 49/50, p. 35. 21 OLIVEIRA, Helli Alves de. Da responsabilidade do Estado por danos ambientais. Rio: Forense, 1990, p. 49. 22 KRELL, op. cit., p. 23. 23 VIANA BANDEIRA, Evandro Ferreira de, O Dano Ecológico nos Quadros da Responsabilidade Civil, Coord. Adilson A. Dallari e Lúcia V. Figueiredo. Temas de direito urbanístico – 2. São Paulo: RT, 1991, pp. 265, 268. 20 10 Portanto, nem toda alteração negativa do meio ambiente pode ser qualificada como poluição ou dano. Na verdade, o conceito e o conteúdo do dano ambiental na legislação ficaram relativamente indefinidos24. As doutrinas de Paulo Leme Machado25 e de Fábio Lucarelli26 apontam três características do dano ambiental: a sua anormalidade, que existe onde houver modificação das propriedades físicas e químicas dos elementos naturais de tal grandeza que estes percam, parcial ou totalmente, sua propriedade ao uso; a sua periodicidade, não bastando a eventual emissão poluidora e a sua gravidade, devendo ocorrer transposição daquele limite máximo de absorção de agressões que possuem os seres humanos e os elementos naturais. Toda esta problemática em relação à definição do que seja dano ambiental se torna inócua se não buscarmos analisar a legalidade ou não da atividade que gerou a lesão à integridade ambiental, como forma de imputar responsabilidade ao seu efetivo causador. 6. A proteção normativa ao meio ambiente Como já dito anteriormente, o direito ambiental pátrio encontra seu núcleo normativo no art. 225 da Constituição Federal, parte da ordem social, direito social do homem, especificando diretrizes primordiais no sentido de que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado pertence a todos, incluindo aí as gerações presentes e as futuras, seja qual for a nacionalidade. O dever de defender o meio ambiente e preservá-lo, no entanto, é imputado ao Poder Público e à coletividade. Faz observar que o meio ambiente é um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, sendo assim indisponível, que se deve lidar com as espécies de modo a conservá-las ou recuperá-las, quando for o caso, cuidando dos ecossistemas, de forma a equilibrar as relações entre a comunidade biótica e seu habitat, que se deve preservar todas as espécies, através do fator caracterizante e diferenciador da imensa quantidade de espécies vivas do país, incluindo-se aí todos os reinos biológicos. 24 Em KRELL, op. cit., p. 25, citando GEVAERD FILHO, Jair Lima. Anotações sobre os conceitos de meio ambiente e dano ambiental, in Revista de Direito Agrário e Meio Ambiente, Curitiba, 1987, p. 17. 25 LEME MACHADO, Paulo Affonso. Direito ambiental brasileiro. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 253. 26 LUCARELLI, Fábio Dutra. Responsabilidade Civil por Dano Ecológico, RT, nº 700, fev. 1994, p. 10. 11 Na linha de criação e manutenção do ordenamento jurídico, a Constituição especificou a obrigatoriedade de definir espaços territoriais e seus componentes, como no caso em estudo, a serem especialmente protegidos, onde mesmo o uso do patrimônio privado ali inserido ficará condicionado a disposições constantes de lei, realizando-se, de forma preventiva contra degradações irremediáveis, estudo prévio de impacto ambiental. Estipula-se ainda, como base na elaboração de normativas, o controle da produção, comercialização e emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente, inclusive permitindo a ingerência do Poder Público no patrimônio privado, e, por fim, a promoção da educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente, como meta futura preservacionista27. O Poder Público28, através de seus variados órgãos públicos, é assim responsável pela defesa da saúde da população e a salubridade do meio ambiente, nas suas três esferas federativas, elaborando normativas capazes de minimizar e especialmente prevenir perigo ao ambiente, impactos ecológicos significativos, degradação ambiental ou risco à saúde pública. Esse poder, ao deliberar discricionariamente, portanto, licenciamento de atividades capazes de causar impactos ambientais, que oneram os recursos naturais, através de licenciamentos, já deve levar em consideração efeitos nocivos sobre o meio ambiente, o que necessita ser objeto de cálculo e avaliação próprios em relação aos riscos da futura oneração do meio natural provocados pela atividade e os proveitos oriundos da atividade poluidora29. Podemos afirmar, assim, ser certo que a legislação protetora toma como objeto de proteção, não tanto o ambiente globalmente considerado, mas dimensões setoriais, ou seja, propõe-se à tutela da qualidade de elementos setoriais constitutivos do meio ambiente, como a qualidade do solo, do patrimônio florestal, da fauna, do ar atmosférico, da água, do sossego auditivo e da paisagem visual30. Quando, no entanto, o dano já se encontra configurado, quando a alteração ambiental já causou impacto negativo, seja por omissão do Poder Público, seja 27 Exposição bem apresentada sobre esse aspecto em SILVA, op. cit., pp. 31/32. Expressão genérica que se refere a todas as entidades territoriais públicas, para que cada uma exerça suas competências nos limites outorgados pela Constituição. 29 KRELL, op. cit., p. 32, onde cita MILARÉ, Edis/BENJAMIM, A. Herman. Estudo prévio de impacto ambiental. São Paulo: RT, 1993, p. 67ss. 30 SILVA, op. cit., p. 54. 28 12 pelas ações humanas empreendidas, só resta a tentativa de reparação, ocasião em que as normas de restrição são não só preliminares para o início da atividade restauradora, mas na verdade uma necessidade para o efetivo controle dos danos causados. Não poderíamos deixar de finalizar o presente estudo ressaltando que antes da vinculação normativa do compromisso de defesa ambiental ínsito no exercício do princípio da precaução ou cautela ambiental, há um compromisso ético que orienta a vinculação indissociável entre homem e natureza como garantia do adequado exercício dos direitos de defesa ambientais. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA POR ORDEM DE CITAÇÃO CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra: Almedina, 1993. GRINOVER, Ada Pellegrini. Defesa do Meio Ambiente em Juízo como conquista da Cidadania, no site www.boletimjuridico.com.br, em 15.05.2000. HESSE, Conrado. Manual de derecho constitucional. Madrid: Instituto Vasco de Administración Pública, 1996. DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro. Curitiba: Juruá, 2000. SILVA, José Afonso. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994. DUBOS, Bárbara Ward-René. Uma terra somente, tradução de Antônio Lamberti. São Paulo: EDUSP, 1973. KRELL, Andreas Joachim. Concretização do Dano Ambiental – Algumas Objeções à Teoria do “Risco Integral”, Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito, da UFPE, nº 8, 1997, Recife-PE, pp. 40. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 492. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 1999. FERRAZ, Sérgio. Responsabilidade Civil por Dano Ecológico, RDP 49/50, p. 35. OLIVEIRA, Helli Alves de. Da responsabilidade do Estado por danos ambientais. Rio: Forense, 1990. VIANA BANDEIRA, Evandro Ferreira de, O Dano Ecológico nos Quadros da Responsabilidade Civil, Coord. Adilson A. Dallari e Lúcia V. Figueiredo. Temas de direito urbanístico – 2. São Paulo: RT, 1991, pp. 265, 268. 13 LEME MACHADO, Paulo Affonso. Direito ambiental brasileiro. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 253. LUCARELLI, Fábio Dutra. Responsabilidade civil por dano ecológico, RT, nº 700, fev. 1994, p. 10. Por Ricardo de Oliveira Paes Barreto Desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco Titular da 8ª Câmara Cível, com especialidade em Direito Público, do TJPE Mestre em Direito Público pela UFPE Professor de Direito Processual Civil da UNICAP e da ESMAPE 14