ÉTICA DO DISCURSO JURÍDICO? Crisnanda Pane Siscar1 RESUMO O Direito possui pressupostos éticos mínimos inarredáveis, assim como qualquer outro discurso racional. Isso pode ser demonstrado pelo simples fato de que, se o discurso jurídico possui pretensão de racionalidade, ele não pode incorrer em auto-contradições performativas. Palavras-chave: Ética do discurso, discurso jurídico, justiça. ABSTRACT The Law has minimum ethics presuppositions wich can´t be moved, as wouldn´t any other racional speech. That can be clearly seeing in the fact that if the juridical speech has the intention of been racional, it can´t contradict itself. Keywords: Ethics of speech, legal and juridical speech, justice. 1. INTRODUÇÃO O principal objetivo desse artigo é evidenciar a relação necessária que existe entre Ética e Direito, a partir da demonstração de que todo discurso racional já contém em si, necessariamente, princípios éticos dos quais não podemos nos afastar. Assim sendo, aos juristas e demais operadores do direito em geral não cabe o argumento de que no Direito vale apenas a razão estratégica, em que o que vale é vencer a qualquer custo uma demanda ou discussão jurídica, por se tratar apenas de um jogo. Ora, todo e qualquer ser humano possui hoje um compromisso com relação não apenas nosso próprio destino, como também dos nossos semelhantes e do nosso mundo. Não é casual e nem contingente, portanto, a ênfase que se tem dado atualmente, desde a tenra idade, à educação ambiental, ao respeito às diferenças, ao estímulo à solidariedade e cooperação mútua, para citar apenas alguns exemplos. 1 Mestre (2002) e Doutora (2007) em Filosofia de Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Graduada em Direito pela UFMG (1997). Prof.ª das Faculdades de Direito Batista e Pitágoras. O discurso jurídico deveria, portanto, atender a determinados princípios éticos pelo simples fato de pretender o status de racional, ou seja, algo que é próprio do ser humano. A propósito do poder argumentativo contra uma simples imposição de força, vale lembrar o debate na narrativa de Sófocles, que se dá entre o tirano Creonte e o seu filho. Ao tentar demovê-lo da sua decisão de levar a cabo a punição de Antígona, por ter enterrado o seu irmão, em desobediência a uma ordem expressa de Creonte, Hêmon assim argumenta: “Os deuses, pai, implantam no homem a razão - o bem maior de todos... Mas os outros também podem ter boas idéias... Não tenhas, pois, um sentimento só, nem penses que só tua palavra e mais nenhuma outra é certa, pois se um homem julga que só ele é ponderado e sem rival no pensamento e nas palavras, em seu íntimo é um fútil (...) Nos homens o ideal seria nascer já saturados de toda ciência, mas, se não é assim, devemos aprender com qualquer um que fale para o nosso bem.” (SÓFOCLES, Antígona, 765-820) Por outro lado, o discurso jurídico tem a especificidade de apresentar-se, não apenas formalmente ético, mas também materialmente, ao enfocarmos seu conteúdo de justiça, que é, por sua vez, o fundamento do Direito. Dessa forma, uma interpretação ético-discursiva do Direito implicaria, primeiramente, na tentativa de fixação de elementos para uma teoria da justiça à luz da Ética do discurso, sob pena de a proposta de trazer para o Direito o tema da linguagem permanecer em análises lingüísticas superficiais e casuísticas. Ora, sem dúvida a pragmática é essencial para uma Hermenêutica jurídica atualizada, uma vez que é somente da interação das três funções do signo (sintática, semântica e pragmática) que o significado advém adequadamente. A relação triádica do signo ficou cabalmente demonstrada por Tércio Sampaio Ferraz Jr.2 O próprio Ferraz Jr. admite, entretanto, que não tem a pretensão de “atingir as dimensões transcendentais propostas por Habermas e Apel”.3 Essa dimensão transcendental supra referida apresenta-se, porém, necessária em um trabalho que tenha por escopo alcançar um nível filosófico de reflexão hermenêutica sobre o Direito, como é o caso do presente. Deve ficar claro que, para isso, não basta discutir significados possíveis das expressões lingüísticas em contextos dialógico-performativos diferenciados. O grande mérito do ilustre professor da USP foi ter aberto uma perspectiva de interlocução entre o Direito e a Semiótica. Mas é importante, ainda, darmos continuidade a essa tarefa, radicalizando essa relação num plano filosófico. A Semiótica particularizado. é naturalmente Para um adentrarmos ramo a do seara conhecimento filosófica, é científico, logo imprescindível a universalização desse conhecimento, bem como do próprio conhecimento científico do Direito, (também particularizado), através do método transcendental, elevando a discussão ao patamar do fundamento do Direito, que é a idéia de justiça. Logo, a proposta desse trabalho é relacionar Direito e Ética, a partir da Filosofia da linguagem, mas para além da Semiótica. Apel não se contenta com a análise particularizada do discurso, no âmbito da relação científica S - O. Ele entende que o discurso argumentativo é um tema legitimamente filosófico. Como a Filosofia não pode renunciar à sua vocação para o universal, Apel empreende, então, uma busca pelas condições transcendentais de possibilidade do próprio discurso, ou seja, de seus pressupostos universais de validade. 2 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2ª ed, São Paulo: Saraiva, 1997. 3 FERRAZ JÚNIOR. Op. Cit., p. 12. Nessa mesma trilha, o percurso desse trabalho deverá chegar ao termo com a demonstração dos pressupostos universais do discurso jurídico, com vistas à idéia de justiça num desenvolvimento ético-discursivo, mas buscando evitar o formalismo em que Apel acabou incorrendo. O fundamento último do discurso a que Apel chega apresenta-se numa proposição formal, destituída de conteúdo, exatamente como o Imperativo Categórico de Kant. 2. VIRADA LINGÜÍSTICA DA FILOSOFIA 2.1. Significado da virada lingüística da Filosofia O tema linguagem tem tido uma posição de destaque em diversas correntes filosóficas da atualidade. A virada lingüístico-pragmática não é, porém, um movimento filosófico que dispensa toda a história da Filosofia precedente, mas sim uma tentativa de reinterpretar determinadas concepções filosóficas do passado, em especial a filosofia kantiana, à luz do paradigma da razão comunicativa. O próprio tema linguagem não é novo para a Filosofia. Seu atual destaque consiste somente na sua explicitação, pois sempre esteve implícito em toda a história da Filosofia. A Ética do discurso de Apel mesmo é uma tentativa de renovação da filosofia transcendental kantiana, introjetando nela a semiótica. Dessa forma, Apel pretende superar, principalmente, duas das dificuldades kantianas: a limitação de sua aplicabilidade ao indivíduo como instância consciencial última de racionalidade e o chamado déficit abstrativo na análise das possíveis conseqüências concretas do agir moral. Por um lado, Apel pretende, ao ressaltar o aspecto pragmático da linguagem, retomar o sujeito na hermenêutica filosófica que, com o rumo dado pelo estruturalismo, tornou-se, a partir das décadas de 60 e 70, extremamente formalista e lógico-abstrata. Sua teoria reivindica, por outro lado, pressupostos hermenêutico-transcendentais do discurso, de conteúdo ético-racional, tendo em vista que a Filosofia analítica da linguagem desenvolvida no séc. XX acabou conduzindo a um relativismo ético semelhante ao provocado pelos sofistas, na Grécia antiga. A virada lingüístico-pragmática não exclui, dessa forma, aquelas mesmas perguntas de que vem se ocupando a Filosofia ao longo de mais de dois mil anos e meio, tal como a pergunta de Sócrates sobre “como devemos viver”, que marca a fundação da Ética como ciência, superando as explicações míticas do comportamento do homem.4 Deve ficar claro, portanto, que a virada lingüística da filosofia não significa que a linguagem foi descoberta como um novo campo da realidade a ser explorado de primeira mão pela Filosofia, mas apenas um novo referencial para a releitura da própria Filosofia. Trata-se de “uma nova maneira de articular as perguntas filosóficas.”5 O paradigma filosófico que tem a linguagem como centro de suas reflexões apresenta-se como novo, na medida em que desenvolve uma forma diversa de entender a realidade, ultrapassando o conceito de linguagem como mero objeto da reflexão filosófica e instrumento de exteriorização do pensar, para considerá-la na esfera dos fundamentos do próprio pensar com sentido. Nesse sentido, pretende-se demonstrar que, mesmo aquele que pensa solitariamente, ao se utilizar de um sistema lingüístico de articulação das idéias, já reivindica, no mínimo, a compreensão de todos aqueles que partilham com ele a mesma língua. Se esse pensar apresenta-se discursivamente, ou seja, se toma uma forma lingüística racional e organizada, ainda que não tenha se exteriorizado, de fato, em uma relação comunicativa, ele levanta consigo, necessariamente, pretensões 4 VAZ, Henrique Cláudio Lima. Escrito de Filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 1999, p. 96. 5 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 12. universais de validade (de sentido, de verdade, de correção e de veracidade)6 que o remetem à esfera do outro, que co-existe com ele na comunidade de comunicação real, e também na ideal. Com isso, o centro dos questionamentos filosóficos se desloca da pergunta pelas condições de possibilidade do conhecer, do agir e do pensar humano, para a pergunta pelas condições de possibilidade do próprio discurso intersubjetivamente válido, daí a analogia com a virada copernicana de Kant. É essa a linha de pensamento da Filosofia da linguagem contemporânea, expressa na sustentação de que é impossível tratar qualquer questão filosófica sem antes esclarecer a questão da linguagem. A linguagem não é apenas o espaço de expressividade do mundo, mas também a instância de articulação de sua inteligibilidade.7 A Ética do discurso de Apel não é aqui tratada como um sistema filosófico que inovou radicalmente a Ética, suplantando o que já foi alcançado implicitamente na história da Filosofia ocidental, mas sim como um movimento de idéias que só tem algo a contribuir na evolução do pensamento filosófico, na medida em que se conecta às grandes vertentes da Ética filosófica de todos os tempos. Essa maneira de entender sua Ética do discurso é autorizada pelo próprio Apel, ao esclarecer que sua proposta consiste, em termos gerais, em estabelecer, “à luz da racionalidade do discurso a ser integrada reconstrutivamente, o vínculo histórico entre a racionalidade do diálogo humano, descoberto já na Grécia antiga, e o logos nas ciências hermenêuticas ou da compreensão, no sentido mais amplo.”8 O relativismo ético a que levou a teoria da linguagem do século XX, por trazer consigo a questão das diferenças culturais e lingüísticas do povos e por privilegiar o uso das expressões lingüísticas em contextos performativos determinados, reanima os mesmos problemas vividos na democracia grega, com a perda do poder coercitivo das explicações míticas da realidade. 6 APEL, Karl-Otto. ¿Limites de la ética discursiva? In: CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria. 3ª ed. Salamanca: Sígueme, 1995. p. 239. 7 OLIVEIRA. op. cit. p. 13. 8 APEL, Karl-Otto. O desafio da crítica total da razão e o programa de uma teoria filosófica dos tipos de racionalidade. Novos Estudos do CEBRAP, nº 23, 1989, p. 78. Ora, nada mais funesto do que esse relativismo poderia acontecer, no plano teórico, para uma sociedade globalizada como a atual. É claro que ele é fruto de uma deturpação do papel da linguagem, não apenas na Filosofia, como também na Política e no Direito, e pode ser refutado, em um primeiro momento, com o simples argumento de que, apesar de os diversos jogos lingüísticos terem sua particularidade, existem neles caracteres universais de compreensibilidade, sem os quais não seriam sequer traduzíveis. Isso em si já é um a priori, por mais rasteiro que possa parecer como argumento. Esse movimento relativista desencadeado, dentre outros fatores, pela descoberta da relatividade lingüística, pode ser designado de destranscendentalização da Filosofia, e se deve, em geral, a Heidegger, Nietzsche e Foucault, e, em especial, a Rorty e Lyotard, auto-intitulados de pós-modernistas.9 Com Saussure, dentre outros, surgiu a ciência empírica da linguagem. Só que, pelo simples fato de ser ciência, logo uma forma particularizada de conhecimento, esse saber contém em si uma limitação, uma vez que não esgota as possibilidades de seu objeto. A proposta de Apel é de adotar uma postura filosófica perante a linguagem, inserindo-a como tema-chave nessa “busca incessante de totalidade de sentido, na qual se situem o homem e o cosmos”10, que é a Filosofia. Apel e Habermas se dizem pós-metafísicos, porque a atual complexidade do mundo exclui, segundo eles, a possibilidade de uma análise unificadora da sociedade. Nesse sentido, Habermas seria mais pós-metafísico do que Apel, uma vez que rejeita até mesmo a possibilidade de fundamentação última da Ética do discurso. Assim, para ser coerente com sua alcunha de pós-metafísico, de que maneira Apel entende ser possível sua proposta de semiótica-transcendental como um paradigma 9 APEL. Op. Cit., p. 67. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 12ª edição. São Paulo: Ed. Saraiva. 1987. p. 06. 10 de prima philosophia? Se a Filosofia primeira é exatamente uma tentativa de dar à totalidade do real uma explicação racional, como é possível uma Filosofia primeira que não seja metafísica? Parece que a discussão sobre a metafísica pressupõe, antes de mais nada, a fixação do sentido em que essa palavra é entendida. Ora, a fundamentação última que Apel propõe é exatamente uma tentativa de retomada da metafísica. A situação atual apresenta-se como um desafio ético principalmente em dois sentidos, que não podem deixar de ser abordados por uma Ética universal do desenvolvimento da humanidade: - O atual estágio de desenvolvimento técnico-científico do homem sobre a natureza; - O desafio político representado pela consagração quase universal do regime democrático, associada, entretanto, ao esvaziamento ético da política, que torna a democracia muito mais um instrumento retórico no jogo estratégico do poder, do que mecanismo de realização e legitimação do indivíduo como cidadão.11 Esses desafios tornam-se ainda mais graves, ao atentarmos para o descaso ético com que a informação é veiculada pelos meios de comunicação, usando a linguagem de forma a manipular a opinião pública e, às vezes, até mesmo para minimizar problemas que atingem a humanidade no seu âmago, estimulando uma certa apatia e imunização do ouvinte perante a notícia. Se se perde de vista uma concepção universal de ser humano, segundo a qual existe entre as pessoas uma igualdade essencial, não apenas as formas discriminatórias, que motivam os movimentos das minorias, como as próprias reações dos atingidos, tendem a perder, por completo, o sentido ético, sendo, em verdade, concepções particularistas de determinado grupo. 11 APEL, Karl-Otto e KETTNER, Mathias (Org.) Zur Anwendung der Diskursethik in Politik, Recht und Wissenschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1993. p. 30. A globalização econômica e técnico-científica tomou um rumo sem volta. Resta, portanto, dar a ela um sentido humano universal, pela Ética, o que, por sua vez, é deveras problemático. 2.2. Importância de uma reflexão filosófica sobre a linguagem Os atuais teóricos da linguagem costumam desprezar as concepções clássicas, rechaçando-as por tratarem da linguagem como simples instrumento do pensamento, que seria possível independentemente de sua expressão lingüística, sempre secundária com relação à essência por ela designada. Entretanto, o tema da linguagem na Filosofia clássica platônico-aristotélica merece uma análise mais detida, pela riqueza do material que oferece para reflexão, ainda atualmente. Isto é, não se trata simplesmente de uma refutação ou de uma apologia da totalidade dessas concepções, extraindo delas somente o elemento que corrobora esse posicionamento, mas sim de uma compreensão mais ampla e desinteressada das mesmas, através da retomada dos temas abordados como ponto de partida, para daí extrairmos conclusões relevantes. É uma postura de abertura para o que o texto pode nos oferecer, evitando pré-posicionamentos radicais, que obscurecem seu bom aproveitamento. Nesse sentido, o diálogo Crátilo12 de Platão apresenta-se como um excelente ponto de partida para uma reflexão sobre a linguagem. O texto é apontado como o primeiro esboço de uma Filosofia da linguagem, visto que nele, Platão, a propósito da discussão sobre a exatidão dos nomes e da formação das palavras, acaba oferecendo subsídios para uma análise da totalidade da linguagem. 12 PLATÃO. Cratilo, o de la extitud de las palabras. In: Platon - Obras Completas. p. 497/553. É claro, todavia, que o estudo lingüístico constante do diálogo é apenas um pretexto para a afirmação de sua teoria do conhecimento, que tem como pressuposto a cisão entre o mundo sensível e o mundo das idéias, sendo este o lugar das verdades perfeitas e imutáveis. Platão questiona, assim, a validade da linguagem como fonte de conhecimento das coisas. Para o conhecimento das mesmas, deve-se recorrer às próprias coisas, e não ao nome que as designa, uma vez que este, como representação sensível da idéia daquelas, será sempre apenas um “pálido reflexo”, necessariamente mutável e imperfeito. Fica claro o vínculo desse diálogo com a teoria do conhecimento de Platão (teoria das idéias), na passagem em que Sócrates, incitado por Hermógenes a analisar a exatidão dos nomes dos deuses13, exclama que essa seria uma tarefa necessariamente fadada ao fracasso, pois, dos deuses e dos nomes que os deuses podem dar-se a si mesmos, os homens não podem afirmar absolutamente nada, a não ser que se tratam de nomes verdadeiros. Uma vez reconhecida a incapacidade humana referida acima, no entanto, Sócrates inicia a investigação proposta por Hermógenes, concentrando-se, porém, não sobre a questão dos deuses em si, mas sim sobre os homens e sobre a opinião que, dos deuses, eles poderiam ter ao darlhes os nomes. Daí a afirmação de Platão de que a linguagem não é fonte segura para o conhecimento da verdade. A essência das coisas traduz-se na sua idéia, que é definida e estável. Esta é a conclusão a que chega Sócrates para rebater a posição de Hermógenes, de que a atribuição de nomes às coisas não passa de uma convenção ou acordo, e qualquer um pode denominá-las como bem entender. O desapego ao sentido das palavras expressa a concepção dos sofistas, que exercitavam a arte de manipular o interlocutor através do discurso vazio. Isso 13 PLATÃO. Cratilo, o de la extitud de las palabras. In: Platon - Obras Completas. p. 522, (400b). significa que a concepção de que o que faz a palavra é o seu uso não é nova, bem como que os sofismas não foram (e talvez nunca serão) abolidos da comunicação humana. A consideração da linguagem como mero instrumento de persuasão, criticada por Platão, é nada mais nada menos do que algo de fundamental sobre a comunicação: não é ético usar a palavra destituída de conteúdo, seja para enganar, seja para persuadir ou manipular. Nesse sentido, a palavra é veículo, não é um ente que existe por si só. Trata-se de um veículo necessário, uma vez que os elementos só se designam pelos nomes (pela linguagem) e não por si mesmos. E, exatamente por isso, sua forma pode variar de acordo com a combinação de sílabas distintas, de tal maneira que um leigo possa pensar que designam coisas distintas, ainda que estejam se referindo à mesma coisa, expressando-se, porém, de forma variada,14 que é o que ocorre nos casos de sinonímia. Platão ilustra esse raciocínio com a hipótese de, a remédios idênticos, serem dadas cores distintas. Para uma pessoa comum, que os vê apenas na sua superficialidade, tratam-se de remédios distintos. Mas, para o médico, que os enxerga a partir de sua virtude curativa, eles continuam sendo um só remédio, pois ele não se deixa impressionar pela cor, que, como mera aparência, é apenas uma característica acessória do mesmo. A mesma postura deveria adotar, segundo Platão, aquele que possui ciência dos nomes: ele examina o seu valor e não se deixa enganar pelo fato de ter sido acrescida, removida ou trocada uma letra, como tampouco se surpreende se o valor do nome se expressa por meio de letras inteiramente distintas. Palavras como “Astianax” e “Héctor” não têm mais do que uma só letra em comum, o t, e, não obstante, o seu sentido é idêntico.15 14 15 Op. cit. p. 516, (394b) PLATÃO. loc. cit. Com isso, Platão aponta para a importância de o intérprete se ater mais ao sentido da palavra, do que à fórmula empregada para expressá-lo, o que não significa, por outro lado, que a palavra nada tem a ver com a essência daquilo que ela designa. Pelo contrário, Platão busca demonstrar, ao longo de todo o diálogo, que deve haver uma relação de coerência entre a palavra (signo) e o seu sentido (significado). Esse entendimento fica claro, por exemplo, na passagem em que Sócrates responde à pergunta de Hermógenes sobre o significado de “corpo” (sôma).16 Sócrates explica que esse não é um nome de fácil compreensão. Alguns o definem como tumba ou sepulcro (sêma) da alma, ou seja, onde ela estaria atualmente encerrada. Esse sentido é associado ao do corpo como prisão, no qual a alma expia seus pecados, tese atribuída aos órficos. Esse tema aparece também nos diálogos Górgias (493a) e Fedon (62b). Relevante nesse momento é, porém, a associação que Platão faz da noção de corpo com a função do signo (sêma), uma vez que é através do corpo que a alma se expressa. Ora, essa constatação oferece uma boa visualização sobre a base da diferenciação hermenêutica entre signo e significado, pois o corpo está para a alma, assim como o signo está para o significado. Ou seja, assim como o corpo é a base material da alma, a palavra é o veículo que nos conduz ao significado. Veículo este que deve, todavia, ser conduzido eticamente. A entificação do discurso levou a graves equívocos, dentre eles a sofisticação excessiva do discurso formal em detrimento do entendimento. Se o objetivo é comunicar algo pelo discurso, então a transmissão de conteúdos não pode se perder em fórmulas quase matemáticas e em frases que chegam a ser enigmáticas de tão prolixas. 16 PLATÃO. op. cit., p. 521 (400b). Esta postura, por trás da aparência de cientificidade e rigor filosófico, encobre a ausência de conteúdo daquilo que se está afirmando. O Crátilo, bem como outros diálogos de Platão, é um exemplo de simplicidade formal associada à transmissão de um conteúdo denso. Os próprios filósofos contemporâneos da linguagem incorrem nesse defeito de comunicação. E o incompreensível ou de difícil compreensão nem sempre expressa conclusões de grande profundidade. A vantagem estratégica do método é que, até que alguém os desvende, suas obras passam por geniais. A análise da palavra democracia pode servir bem à demonstração da importância da compreensão lingüística no Direito. As definições léxicas desse termo são claras, tal como as que selecionamos a seguir: democracia. S. f. 1. Governo do povo; soberania popular. 2. Doutrina ou regime político baseado nos princípios da soberania popular e da distribuição eqüitativa do poder, ou seja, regime de governo que se caracteriza, em essência, pela liberdade do ato eleitoral, pela divisão dos poderes e pelo controle da autoridade, i. e., dos poderes de decisão e de execução. 3. País cujo regime é democrático. 4. As classes 17 populares; povo, proletariado. Hans Kelsen fez desse tema foco de suas reflexões no artigo Essência e valor da democracia, que compõe a obra publicada sob o título A Democracia, que foi escrita nos fins da década de 20, quando, segundo ele, a palavra democracia nunca fora tão requisitada como palavra de ordem de movimentos radicalmente opostos, e nunca fora também tão destituída de significado, sendo, por isso, até mesmo combatida.18 Nas suas próprias palavras, Kelsen assim desabafa: [...] Democracia é a palavra de ordem que, nos séculos XIX e XX, domina quase universalmente os espíritos; mas, exatamente por isso, ela perde, como qualquer outra palavra de ordem, o sentido que lhe seria próprio. Para acompanhar a moda 17 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988, pág. 200. 18 KELSEN, Hans. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1993, pág. 25. política, acredita-se dever usar a noção de democracia – da qual se abusou mais do que de qualquer outra noção política – para todas as finalidades possíveis e em todas as possíveis ocasiões, tanto que ela assume os significados mais diversos, muitos deles bastante contrastantes, quando a costumeira impropriedade do linguajar político não a degrada deveras a uma frase convencional que não mais exige sentido 19 determinado. Ora, é exatamente no intuito de criticar essa degradação das palavras pelo uso indevido, em detrimento da essência a ser transmitida por elas, através do conceito, que Platão dedica grande parte do diálogo Crátilo. Ademais, Sócrates critica, no diálogo, a forma como os homens, por vaidade, preocupações estéticas, ou mesmo para mascarar a realidade, não se importam em desfigurar os nomes das coisas só para embelezá-los, como supõe, por exemplo, ter ocorrido com o nome do deus “Poseidón”, ou para torná-los mais aceitáveis, ou desejáveis, como acha que se deu com o nome de “Hades” (aeïdés – invisível), que, em função do medo que o termo desperta nos mortais, foi chamado de “Pluton”.20 Para o Sócrates do diálogo, quem procede desse modo não tem nenhum compromisso com a verdade, pois se esforça tanto para modelar o aspecto da palavra, que, ao final, ser humano algum é capaz de compreender o que ela quer significar.21 Hermógenes sustenta a posição dos sofistas, de que a atribuição de nomes às coisas não passa de uma convenção ou acordo, sendo que qualquer um pode denominá-las como bem entender.22 Esse personagem representa um papel que, até os dias atuais, é bastante interpretado, não apenas pelos políticos, como também com especial dedicação pelos juristas: o de descomprometimento com o sentido da palavra. De tão ocupados que se encontram em persuadir o interlocutor, o argumento racional, que levaria ao convencimento por demonstração, não tem valor funcional, 19 KELSEN, op. cit. p. 25 PLATÃO. Cratilo, o de la extitud de las palabras. In: Platon - Obras Completas. p. 523, (402e) 21 PLATÃO. op. cit. p. 532, (413c) 22 PLATÃO. op. cit. p. 509, (384 c / 385 b). 20 pois tem-se por certa a obtenção dos resultados almejados, sem a necessidade de se alcançar tal nível de compreensão. Para o exercício legítimo do poder em um modelo de estado ético, que se perdeu na história e cuja recuperação parece ser a meta de evolução da vida em sociedade do ser humano, mesmo no seu atual estágio de desenvolvimento técnico-científico, faz-se essencial que o poder não seja outorgado pelo povo através de “ato formal de poucos segundos e que depois desaparece.“23 A legitimidade do Estado encontra-se, portanto, no exercício permanente e contínuo do poder pelo povo, seja através de instrumentos políticos e jurídicos, seja por mecanismos administrativos, na linha da chamada democracia participativa.24 Entretanto, a participação ativa do indivíduo no destino da comunidade em que vive só é possível através de sua capacitação lingüística, adquirida tanto pela educação formal, quanto pelo próprio convívio com os outros, pelo seu desenvolvimento como ser humano racional no exercício da comunicação. O ser humano que não possui capacitação lingüística para o discurso não apenas não participa do poder da forma expressa acima, como ainda não compreende adequadamente o que se passa a seu redor, ou compreende somente num grau de superficialidade suficiente para que seja simples massa de manobra. Ora, quando a palavra é dita exclusivamente em função de sua articulação, para produção de sons determinados, ela perde exatamente a característica que faz dela algo de propriamente humano, equiparando-se aos ruídos emitidos pelos animais irracionais. Dessa forma, a necessidade de transmissão de um sentido, por meio da palavra, é decorrência da própria condição do ser humano como ser racional, pois o homem não usa a palavra vazia impunemente, do ponto de vista ético. 23 SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado Ético e o Estado Poiético. Revista do Tribunal de Contas de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, abr/jun. 1998. p. 53. 24 SALGADO. op. cit. p. 53. Deve ficar claro, portanto, o motivo que leva Platão a considerar a linguagem como mero instrumento do conceito, que é a idéia, já que a palavra deve servir de meio para o conhecimento da essência por ela designada. Daí a linguagem não ser concebida como fim em si mesma, e nem simplesmente como constitutiva do conhecimento, sendo apenas um meio necessário para o ser humano alcançar a verdade contida na idéia.25 Na verdade, sobre a relação de precedência, seja do pensamento sobre a linguagem, seja da linguagem sobre o pensamento, entendemos que o que existe é a interdependência e implicação recíproca entre os dois, como manifestação de um único logos humano, para o que já chamava a atenção Aristóteles.26 Aristóteles, ao afirmar a civilidade do homem como animal social por natureza, associa essa sua essência ao dom que possui da palavra, que faz dele até mais social do que as abelhas ou as formigas, pois a linguagem humana não se confunde com a capacidade apenas de emitir sons, como expressão de sensações agradáveis ou desagradáveis. Demonstra, assim, que o atributo da linguagem é decorrência da própria racionalidade humana, que não se esgota, porém, no uso da palavra pela palavra, mas que pressupõe também o conhecimento desenvolvido, que implica na percepção, ainda que obscura, “... do bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, objetos para a manifestação dos quais nos foi principalmente dado o órgão da fala. Esse comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil.”27 É certo que, sem a linguagem, o ser humano talvez não fosse capaz de expressar objetos que só possuem existência abstrata. Faz parte da racionalidade humana alcançar, pelo pensamento, aquilo que não pode perceber pelos sentidos, mas sua comunicação com o outro só é possível pela linguagem. Logo, o fato de o ser humano apresentar-se, necessariamente, como um ser de linguagem, decorre não 25 APEL. Karl-Otto. El lenguaje como tema y medio de la reflexion trascendental. In: ____. La transformation de la filosofia. Vol. II. Madrid: Ed. Taurus. p. 298. 26 ARISTÓTELES. A Política. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1998. p. 5. 27 ARISTÓTELES, loc. cit. apenas da sua natureza social, mas também de sua capacidade de criar objetos reais ou ideais, que não foram dados na natureza, transformando-a e criando seu mundo de cultura. Que o indivíduo desenvolve-se na condição de ser racional através da linguagem não há dúvida. Afinal, sua educação ocorre precipuamente de forma discursiva.28 Afirmar, todavia, que a linguagem é constitutiva para o pensamento e para a descoberta do mundo pelo homem trata-se de algo não apenas de comprovação problemática, bem como de origem incerta, considerando que, se a linguagem vem antes do pensar e do conhecer, ela se confunde com a própria racionalidade humana. Ora, o pensar, o conhecer e o agir não são nada mais nada menos do que diferentes usos de uma mesma razão. Se esses usos dependem necessariamente da linguagem, e linguagem não é apenas um outro nome para a própria racionalidade, então existe, necessariamente, uma interdependência entre linguagem e razão. Por isso, Apel a denomina medium. Parece haver uma certa diferença entre linguagem como medium e linguagem como instrumento. A simples recusa de utilização do termo meio, para traduzir a expressão latina medium, obviamente, não tem o condão de evitar a aproximação exatamente daquela concepção clássica de redução da linguagem a mero instrumento. A crítica à sua consideração como instrumento parece residir somente no fato de que o instrumento pode ser usado ou não, sendo que da linguagem não temos como renunciar. 28 Apel chamou a atenção para o fato alarmante de que pelo menos 70% da população mundial pode ser considerada incapaz para o discurso, em palestra proferida em Belo Horizonte, em 1993. Apesar de Apel não haver citado a fonte dessa estatística, esse com certeza é um indicativo da degradação da própria razão humana. APEL, Karl-Otto. Fundamentos filosóficos da Ética do discurso. 23/09/1993. FAFICH – UFMG. Belo Horizonte. Pois bem, então a linguagem é medium intransponível. Mas essa afirmação difere apenas nominalmente, não substancialmente, da de que a linguagem é instrumento, porém, necessário. O que importa, realmente, é o que se pretende alcançar através da linguagem, ou melhor, qual o seu fundamento último. A pergunta pelo fundamento último da linguagem nos remete, entretanto, ao fundamento último da própria existência humana. Esse tema tem ocupado as reflexões da humanidade desde as origens do chamado milagre grego, com a descoberta da razão demonstrativa. Logo, trata-se apenas de explicitar algo contido desde sempre na história da Filosofia, como expressão sistemática da intervenção do homem sobre o mundo. Por conseguinte, a linguagem não é uma descoberta genial, a ponto de se comparar essa mudança de enfoque com a virada copernicana. É certo que ela não é fim em si mesma, mas a explicitação de sua importância é necessária para a Ética filosófica, em dois sentidos: - Primeiramente, porque a linguagem aponta para a dimensão do outro, servindo como uma espécie de antídoto contra o solipsismo da filosofia moderna, na medida em que apresenta a razão como comunicativa; - Num segundo sentido, decorrente deste, o fato de remontar à dimensão do outro implica, necessariamente, na existência de princípios éticos que orientem o seu uso. Evidenciados estes dois sentidos, fica claro também porque que não se trata realmente de uma grande novidade. Ora, a primeira preocupação ocupou com maior destaque Hegel, no final do século XIX, apesar de já estar presente de forma clara em Aristóteles. Quanto ao segundo motivo, ele se encontra presente desde a célebre pergunta atribuída a Sócrates: como devo viver? É nesse momento, aliás, em que a Ética passa a ser uma racionalização do comportamento humano, e, enquanto tal, orientadora da ação humana rumo ao Bem, já que o ethos histórico, ou seja, as tradições, e a razão mítica não eram mais eficazes à essa boa condução do homem, desde a descoberta da ciência. 2.3. O problema de um conceito filosófico de linguagem O fenômeno da linguagem, em especial a partir de meados do século XX, tem sido foco de estudos não apenas da Filosofia como de quase todas as ciências humanas particulares, que começam a dar relevo aos aspectos lingüísticos de seu próprio objeto. Em função disso, a definição de linguagem tem sido extremamente problemática, uma vez que as ciências particulares apresentam apenas aspectos parciais da questão da linguagem. Apesar da dificuldade de se encontrar um conceito filosófico de linguagem, a Filosofia não pode mais ficar alheia ao mesmo, pois o problema da linguagem é pressuposto da problemática fundamental da construção científica de conceitos e teorias e dos próprios enunciados filosóficos, isto é, da formulação com sentido, e válida intersubjetivamente, do conhecimento enquanto tal. Segundo Apel, a “’filosofia primeira’ já não é a investigação da natureza ou da essência das coisas ou do ente (ontologia), e nem tampouco a reflexão sobre as representações ou conceitos da consciência ou da razão (teoria do conhecimento), mas sim a reflexão sobre o significado ou o sentido das expressões lingüísticas (análise da linguagem).”29 Nesse sentido, as ciências particulares, a Filosofia teórica e a Filosofia prática pressupõem a mediação metódica de uma análise filosófica do uso da linguagem. Além de fazer compreensíveis, criticamente, todas as abstrações metódicas das ciências particulares, de tal forma que permita valorar o alcance dos resultados 29 APEL, Karl-Otto. El concepto hermenéutico-trascendental del lenguaje. In: ___. La transformatión de la filosofia; el a priori de la comunidad de comunicación. Vol. II. Madrid: Taurus Ediciones, 1985. p. 317. alcançados por elas, um conceito filosófico de linguagem deve assumir a reflexão sobre os próprios pressupostos lingüísticos da Filosofia.30 Para Apel, o conceito hermenêutico-transcendental da linguagem cumpre esse objetivo, na medida em que demonstra que a linguagem é uma magnitude transcendental, no sentido kantiano, ou seja, é a condição de possibilidade do pensamento conceitual e de todo fazer e agir com sentido.31 Esse conceito é obtido a partir de uma transformação da filosofia transcendental, realizada a partir da filosofia da linguagem, notadamente em duas etapas: 1) Destruindo e reconstruindo criticamente a história da filosofia da linguagem, Apel mostra em que medida as determinações da linguagem que partem da função de designação e de comunicação não são falsas, mas sim filosoficamente insuficientes. 2) Reconstruindo criticamente a idéia da filosofia transcendental, mostra que esta pode corrigir-se decisivamente trazendo elementos lingüísticos concretos ao conceito de razão. No desenvolvimento do item 1 acima, Apel demonstra que a Filosofia grega desvaloriza o fenômeno lingüístico, ao reduzi-lo à função de designação, ignorando o possível consenso dialógico acerca do significado ou a regra do uso das palavras. A concepção platônica das idéias como realidades ou essências extra e supralingüísticas conduz a uma distinção radical entre pensamento e linguagem, sendo esta mera expressão secundária ou instrumento daquele. Aristóteles, por sua vez, reduz a linguagem a uma diversidade de sons e signos que representam as coisas reais. Essa é uma concepção própria do sentido comum, que limita a linguagem à função convencional de designação, ocultando a dimensão hermenêuticotranscendental da linguagem. Nesse sentido, é necessária uma reconstrução crítica da Filosofia clássica, pois a linguagem não pode ser analisada independentemente de sua função na 30 31 APEL. op. cit. p. 318. APEL. op. cit. p. 318. comunicação intersubjetiva, que não se trata apenas da transmissão de informações sobre estados de coisas pensados, mas também do acordo sobre o sentido das palavras e sobre o sentido do ser das coisas, mediadas pelo significado das palavras. A dimensão hermenêutico-transcendental do acordo pragmático intersubjetivo sobre o sentido consiste na pré-compreensão lingüística do mundo, que deveria surgir do acordo sobre o sentido de uma comunidade ilimitada de comunicação.32 A crítica de Apel à Filosofia moderna é, principalmente, em dois sentidos: contra a idéia da evidência pré-lingüística do conhecimento e contra o solipsismo ou individualismo metódico, que marcam esse paradigma.33 Para Apel, o que possibilita a específica relação entre sistema lingüístico, uso da linguagem, experiência condicionada lingüisticamente e práxis vital humana, é a auto-reflexividade da linguagem natural ordinária, que se mostra como sua própria metalinguagem. Efetivamente, o uso comunicativo da linguagem humana não pode conceber-se suficientemente como pura transmissão de informações sobre fatos, que deixe intacta a compreensão do mundo dos interlocutores, nem como atualização privada do sistema lingüístico, que deixe intacta sua estrutura semântica. Isso significa que a possibilidade e necessidade de um acordo sobre o sentido, seja dos objetos da experiência, seja dos signos lingüísticos em que consistem as palavras, expressa a mesma reflexividade da razão humana. A razão, com a ajuda da linguagem, tem que elaborar uma interpretação do mundo e, com a ajuda da interpretação do mundo, construir um sistema semântico da linguagem.34 Apel entende, entretanto, que não basta substituir com Wittgenstein o modelo lingüístico da designação pela exigência de descrever as múltiplas funções e regras do jogo do uso da linguagem, por mais necessária que seja a ampliação pragmática 32 APEL, Karl-Otto. El concepto hermenéutico-trascendental del lenguaje. In: ___. La transformatión de la filosofia; el a priori de la comunidad de comunicación. Vol. II. Madrid: Taurus Ediciones, 1985. p. 322. 33 Cf. APEL. op. cit. p. 323/324. 34 APEL, Karl-Otto. El concepto hermenéutico-trascendental del lenguaje. In: ___. La transformatión de la filosofia; el a priori de la comunidad de comunicación. Vol. II. Madrid: Taurus Ediciones, 1985. p. 327/328. do horizonte lingüístico.35 Reconhecendo a unilateral orientação lógico- epistemológica da Filosofia da linguagem, Apel desenvolve a tese do jogo lingüístico transcendental, que é antecipado sempre em cada jogo lingüístico fático. O ponto de partida para essa tese apeliana é a conclusão oferecida por Wittgenstein sobre a impossibilidade de uma linguagem privada. Só que o enfoque de Apel é, porém, no que há de comum entre todos os jogos lingüísticos. Nessa medida, ele identifica como universalmente presente em todos os jogos lingüísticos o fato de que, com a aprendizagem de uma língua, adquire-se basicamente a competência para refletir sobre a própria linguagem ou forma de vida e para comunicar-se com todos os demais jogos lingüísticos.36 Isso possui implicações ético-filosóficas radicais, pois só podemos postular uma instância para controlar o seguimento humano de regras: o jogo lingüístico ideal, no sentido normativo, de uma comunidade ideal de comunicação. Aqueles que cumprem uma regra antecipam, sem dúvida, esse jogo ideal da linguagem como possibilidade real do jogo lingüístico ao qual se encontram ligados; isto é, pressupõem-no como condição de possibilidade e validez de seu fazer com sentido. Ora, quem pretende atuar com sentido o antecipa implicitamente, ao passo em que, quem argumenta o antecipa explicitamente.37 Esse jogo transcendental da linguagem é a base para a proposta de Apel de transformação da Filosofia transcendental clássica, efetuada a partir da perspectiva lingüística. A virada lingüístico-pragmática, na perspectiva transcendental, implica, portanto, que uma definição filosoficamente relevante tem que poder sujeitar-se sempre ao uso vigente das palavras de um modo inteligível, incorporar as mais recentes colocações da experiência e da discussão sobre o assunto e antecipar, no marco de um 35 APEL, op. cit. p. 330. APEL, op. cit. p. 331. 37 APEL, Karl-Otto. El concepto hermenéutico-trascendental del lenguaje. In: ___. La transformatión de la filosofia; el a priori de la comunidad de comunicación. Vol. II. Madrid: Taurus Ediciones, 1985. p. 331/332. 36 determinado jogo lingüístico, a estrutura do jogo ideal da linguagem, à qual poderiam e deveriam ascender todos os seres racionais.38 É certo que é absurdo esperar uma síntese dos diversos modos de compreender lingüisticamente, mas tem pleno sentido a análise filosófica de um acordo lingüístico sobre o sentido entre os que pertencem a diversas comunidades lingüísticas, já que esse plano da competência comunicativa depende de universais pragmáticos. Tal exigência de definições essenciais deve se satisfazer, segundo Apel, a partir do acordo lingüístico conceitual da comunidade ilimitada de comunicação, que se apresenta como um princípio regulativo, no sentido kantiano.39 Dessa forma, em uma reconstrução da Filosofia transcendental, à luz do conceito hermenêutico-transcendental da linguagem, o elemento decisivo consiste em substituir o ponto supremo da teoria kantiana do conhecimento, a síntese transcendental da apercepção, como unidade da consciência do objeto, pela síntese transcendental da interpretação mediada lingüisticamente, como unidade do acordo sobre algo em uma comunidade de comunicação, síntese esta que fundamenta a validez pública do conhecimento.40 Ou seja, no lugar da consciência enquanto tal, postulada por Kant, Apel põe, como garantidor da validade intersubjetiva do conhecimento, o princípio regulativo da formação crítica do consenso numa comunidade comunicativa ideal, que ainda deve ser realizado na comunidade comunicativa real. Isso significa que a simples utilização de uma regra lingüística revela ao sujeito, por reflexão transcendental, a sua pertinência a uma comunidade de falantes, de tal forma que o “eu penso” de Kant torna-se um “nós argumentamos.” 38 APEL, op. cit. p. 333. APEL, Karl-Otto. El concepto hermenéutico-trascendental del lenguaje. In: ___. La transformatión de la filosofia; el a priori de la comunidad de comunicación. Vol. II. Madrid: Taurus Ediciones, 1985. p. 336. 40 APEL. Op. cit. p. 337/338. 39 A hermenêutica crítica de Apel tem, como centro de reflexão, a pergunta principal da filosofia kantiana sobre as condições de possibilidade e validez do conhecimento, que são basilares para qualquer argumentação com sentido, no plano de sua fundamentação. Mas a suposição metódico-solipsista do sujeito cognoscitivo cartesiano constitui, ao modo de ver de Apel, o fundamento da incapacidade cientificista de reconhecer os pressupostos hermenêuticos das ciências naturais e da técnica e, nesse sentido, a complementaridade e a postura metódica das ciências de compreensão hermenêutica. O logos da ciência da natureza e da técnica axiologicamente neutra pressupõe o logos hermenêutico da compreensão intersubjetiva e, simultaneamente a este, também o logos de uma ética da comunidade daqueles que investigam a verdade. Para ele, a equivalência entre o logos normativo do processo ocidental da racionalização e a racionalização técnicocientífica e instrumental representa uma simplificação grosseira e, por conseguinte, um falseamento das relações.41 Apel não tem em conta somente o conjunto de categorias do a priori da consciência, mas também do a priori da linguagem, do a priori cognoscente prático e dos interesses do conhecimento; isto é, todas aquelas condições de possibilidade e validez do conhecimento, pelas quais se opera efetivamente a mediação da consciência pela práxis.42 2.4. Conclusão A Ética do discurso de Apel vista em linhas gerais nesse trabalho, oferece elementos para a elaboração de uma Ética do discurso jurídico. 41 CORTINA, Adela. Karl-Otto Apel.Verdad y Responsabilidad. In: APEL, Karl-Otto. Teoria de la verdad y etica del discurso. Barcelona: Paidos/I.C.E. da Univ. Autonoma de Barcelona, 1995. p. 11/12. 42 CORTINA . op. cit. p. 18. A condição de existência do Direito é que ele possa ser formulado numa linguagem, pois o postulado da alteridade43, inerente ao fenômeno jurídico, o vincula necessariamente a um contexto comunicativo. A tese adotada no trabalho é, portanto, a do Direito como linguagem. Trata-se de um estudo de natureza filosófica que tem em vista os pressupostos pragmáticotranscedentais do discurso argumentativo. Deve ter ficado claro que a concepção de linguagem adotada não abarca simplesmente o seu aspecto sintático, mas também na sua dimensão de jogos estratégicos, tais como a ação e reação, a situação do administrado perante as instituições, as relações de força44, compreendida nestes a coercibilidade jurídica. A sustentabilidade do discurso jurídico não pode, entretanto, decorrer apenas da possibilidade de uso da força como garantia de sua eficácia, devendo, ao contrário, pressupor que o destinatário da norma jurídica é um ser humano autônomo, cuja adesão pode ser obtida por convencimento. A racionalidade do discurso, porém, obviamente “não emerge do acordo ou consenso sobre o que se diz, isto é, sobre temas, ... conceitos ..., mas do mútuo entendimento sobre as regras que nos permitem falar deles.”45 Ora, para ser racional, não é necessário que o discurso fundamente tudo, conforme prega o princípio da razão suficiente, bastando que ele esteja aberto à exigência de fundamentação. Isso não é, de forma alguma, incompatível como a impositividade do Direito. Aliás, o apelo à adesão por convencimento pode ser visto como mais um elemento que visa à eficácia do Direito, uma vez que nenhum Estado possui instituições coativas suficientes para impor e assegurar a ordem e a harmonia numa sociedade incapaz de compreender o discurso jurídico. 43 CAPELLA, Juan-Ramon. El derecho como lenguage. apud FERRAZ Jr., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 6. 44 FERRAZ Jr., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 8. 45 FERRAZ Jr., Tercio Sampaio. op. cit. p. 17. O Direito, seja na sua dimensão normativa, fática ou axiológica46, é constantemente passível de interpretação. O centro das indagações constantes desse trabalho é a demonstração da necessidade de que essa interpretação seja conduzida sempre por um fundamento de conteúdo ético: a justiça. Nesse caso, a relação entre Direito e Ética não seria extrínseca, mas intrínseca, sendo o Direito compreendido como uma espécie do gênero Ética, entendida como Filosofia prática, cujo objeto são os primeiros princípios do agir humano.47 A Ética do discurso de Apel apresenta-se como uma análise filosófica séria do atual status da linguagem no pensamento contemporâneo. Entretanto, muitas das questões levantadas por ele permanecem sem resposta, talvez porque sua teoria está ainda em plena atividade de produção teórica. 48 É de grande importância a re-interpretação que Apel faz da Filosofia transcendental kantiana à luz da concepção dos jogos de linguagem do Wittgenstein tardio 49 e da “indefinite Community of Investigators”, de Ch. S. Peirce,50 pois mostra a Filosofia como um constante movimento de idéias que circula permanentemente do novo ao velho. Nesse sentido, Apel substitui o eu que, na Filosofia transcendental kantiana é a síntese da apercepção, perante o qual o sujeito põe o objeto e a si próprio como ser pensante, pela comunidade transcendental de comunicação, “a única que pode confirmar a validade de sentido do conhecimento de si mesmo e do mundo.” 51 Essa transformação da Filosofia é o que possibilita que o conhecimento passe a argumento, e, segundo Apel trata-se de uma “concepção dialética aquém do idealismo e do materialismo.”52 Apel entende que o crivo crítico dessa comunidade ideal de comunicação é o que deve garantir às ciências sociais a validade de suas investigações, já que, como 46 Cf., dentre outras obras do mesmo autor, REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. São Paulo: Saraiva, 5ª ed. 1994. Cf. ainda SICHES, Luis Recaséns. Tratado general de Filosofia del Derecho. México: Porrua. 1959. p. 158-164. e ___. Introducción al estudio del Derecho. México: Porrua. 1970. p. 40 e segs. 47 Cf. DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Amado. 5ª ed. p. 303. 48 LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999. p. 448. 49 Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, Coleção Os Pensadores, 1996. 50 APEL, Karl-Otto. Estudos de Moral moderna. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 19. 51 APEL, op. cit. p. 18. 52 APEL, op. cit. p. 21. ciências compreensivas, não se adequam ao modelo das ciências naturais de separação entre sujeito e objeto.53 Isso não significa que, para ele, as ciências naturais ou explicativas sejam avalorativas, na medida em que cada argumento, por conter uma exigência de sentido ao ser exteriorizado dialogicamente, contém uma ética-mínima, intersubjetivamente vinculadora. A possibilidade de formação de consenso em uma comunidade de comunicação é condição da descoberta da verdade.54 Enfim, o princípio universal da responsabilidade argumentativa elaborado pela Ética do discurso pode ser assim sintetizado: válidos serão os proferimentos que possam ser fundamentados racionalmente por argumentos.55 Para Apel, esse princípio universal do discurso possui um conteúdo ético que se expressa nos princípios da moral ideal do discurso e da responsabilidade, sendo este um a priori da faticidade e da historicidade.56 Este é, aliás, um ponto de divergência de Apel com Habermas, filósofo também considerado como fundador da Ética do discurso, mas que acabou por dar a ela os contornos de uma teoria ou Filosofia do discurso. Habermas, diferentemente de Apel, afirma que o princípio do discurso mencionado acima “- como o próprio nível pós-convencional de fundamentação no qual a eticidade substancial se dissolve em seus componentes – tem, certamente, um conteúdo normativo, uma vez que explicita o sentido da imparcialidade de juízos práticos... [mas] é ainda neutro em relação ao direito e à moral ...”57 Mas permanece ainda a pergunta sobre qual é, afinal de contas, esse conteúdo ético-normativo do princípio do discurso. Apel deliberadamente não oferece uma tal 53 APEL, Karl-Otto. Estudos de Moral moderna. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 22 e 23. APEL, op. cit. p. 28. 55 HERRERO, Francisco Javier. Sujeito e Ética. Kriterion, Belo Horizonte, v. 88, 1993. p. 94. 56 APEL, Karl-Otto. Auflösung der Diskursethik? Zur Architektonik der Diskursdifferenzierung in Habermas’ Faktizität und Geltung. In: Auseinandersetzungen – In Erprobung des transzendental-pragmatischen Ansatzes. Frankfurt: Suhrkamp, 1998. p. 793. 57 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 142. Esse posicionamento de Habermas difere, inclusive, do que ele próprio sustentou anteriormente em: Direito e Moral (Tanner Lectures, 1986), publicado, na edição brasileira de Direito e Democracia, no vol. II, às págs. 193-247. 54 resposta, pois entende que, se o fizesse, estaria assumindo uma postura dogmática, por ele rejeitada.58 Ele faz questão de afirmar que a Ética do discurso não é uma análise da eticidade substancial ou uma Filosofia especulativa.59 Ele assume, portanto, que a Ética do discurso formalista e universalista, tal como a kantiana, porque acredita que a validade universal do princípio do discurso, irrenunciável numa macroética pós-convencional da humanidade, só pode ser fundamentado quando se faz a abstração da fundamentação de normas e valores materiais ligados a uma situação. O avanço que a Ética do discurso ofereceria, com relação à Ética kantiana da forma da boa vontade, seria a delegação da fundamentação de normas situacionais, materiais, ao discurso prático dos afetados, apresentando-se, dessa forma, como um mecanismo mediador entre o princípio formal e as normas materiais.60 A complementação crítica que se propõe não tem o objetivo de expandir a abrangência da Ética do discurso, mas sim de especificá-la materialmente, para que o princípio do discurso esteja apto para ser realmente aplicado de forma ética. Qual deve ser a diretriz ética essencial que se impõe aos afetados, na condução dos discursos práticos? Qualquer deliberação por eles tomada vai ter caráter ético, desde que fundamentada argumentativa, logo, racionalmente? Apel certamente responde negativamente a essas questões, mas deixa a desejar sobre o porquê desse seu posicionamento. Já a Ética filosófica de Lima Vaz, associada à sua Antropologia filosófica, oferece uma exposição exaustiva do que vem a ser racional para o ser humano, justificando e convalidando a resposta de Apel. 58 Ver APEL, Karl-Otto. Epílogo: ¿Limites de la ética discursiva? In: CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria. 3ª ed. Salamanca: Sígueme, 1995. p. 233-264. 59 APEL, op.cit. p. 247 e 261. 60 APEL, op.cit. p. 235. Nesse sentido, só é ética a deliberação que se sustente discursivamente, como expressão de uma razão comunicativa, em atenção à sua validade intersubjetiva, mas que tenha por fim a auto-realização do ser humano no Bem, especificação esta que extraímos da Ética de Lima Vaz. Essa interpretação é perfeitamente compatível com a Ética do discurso, que, conforme admitido por Apel, como uma Ética com pretensão racional de fundamentação, insiste no conhecimento racional da validade de um princípio do bom como o que deve-ser, opondo-se a todas as correntes do decisionismo, apesar de admitir como limite o “mistério irracional da livre decisão da vontade.”61 A Ética do discurso é deontológica, segundo Apel, “na medida em que se põe a pergunta pelo obrigatoriamente devido para todos («deon») previamente à pergunta platónico-aristotélica – e novamente utilitarista – pelo telos da vida boa, por exemplo, pela felicidade do indivíduo ou da comunidade.”62 Essa interpretação de Apel da Ética aristotélica certamente não se concilia com a de Lima Vaz, que não a vê como utilitarista, já que a ação ética é voltada para a própria perfeição do sujeito, e não de objetos exteriores, além de empobrecer o significado de eudaimonia.63 Um problema difícil de ser superado nessa tentativa de conciliação do pensamento de Apel com o de Lima Vaz é a persistência da Ética do discurso no modelo hipotético próprio da Filosofia moderna. Lima Vaz considera esse modelo incapaz de oferecer um suporte teórico adequado “para sobre ele se edificar o edifício conceptual que abrigue juntamente a Ética e o Direito ou no qual se integrem, a universalidade subjetiva da pessoa – a liberdade – e a universalidade objetiva do Direito – a lei.”64 Como uma Ética crítico-universalista, Apel afirma que 61 APEL, Karl-Otto. Epílogo: ¿Limites de la ética discursiva? In: CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria. 3ª ed. Salamanca: Sígueme, 1995. p. 234. 62 APEL, op. cit. p. 235/236. 63 LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Escritos de Filosofia V: Introdução à Ética filosófica 2. São Paulo: Loyola, 2000. p. 106/107. ___. Escritos de Filosofia II: Ética e cultura. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2000. p. 157. 64 LIMA VAZ, op. cit. p. 171. APEL, op. cit. p. 241. a Ética do discurso não pode e nem quer prescrever aos homens – por exemplo, como Platão e todos os criadores de utopias posteriores a ele – uma forma total de vida, no sentido da unidade da justiça, da virtude e da felicidade, ou, como Hegel, concebê-la como necessária «realidade da eticidade substancial». Mas tampouco a Ética discursiva pode ou quer – enquanto Ética crítico-universalista – aceitar, junto com o necessário reconhecimento de formas perfeitas de vida, uma pluralidade de «morais» no sentido de diversos princípios da justiça, tal como o relativismo ou o neoaristotelismo relativista. Pelo contrário, recorrendo ao discurso que as diversas formas de vida podem e têm que manter, a Ética discursiva pode mostrar que, nos casos de conflito, as diversas formas de vida ... hão de subordinar seus projetos de vida .. a condições restritivas e 65 universais. Apel demonstra o conteúdo ético-normativo do princípio do discurso simplesmente evidenciando a autocontradição performativa em que incorre aquele que tenta negar explicitamente o pressuposto discursivo de correção. Ora, a afirmação de que a argumentação não necessita pressupor a validade de normas pragmático- comunicativas, no sentido da igualdade de direitos de todos os participantes na argumentação, como membros de uma comunidade ideal ilimitada de comunicação, só tem significado enquanto afirmação como capaz de consenso em uma comunidade ideal de comunicação de interlocutores com iguais direitos.66 Entendemos, todavia, que essa diretriz não é suficiente para orientar o agir ético. A Ética do discurso tem, entretanto, também um aspecto teleológico, necessário para superar a omissão da Ética formal da boa vontade de Kant, de se debruçar sobre a questão dos fins e das conseqüências da ação. Trata-se da parte B da Ética do discurso, na qual Apel desenvolve sua Ética da responsabilidade, como telos ou estratégia moral para a aproximação das condições reais de comunicação às condições ideais ainda não plenamente realizadas, como norma regulativa para os discursos práticos.67 Afinal, não resulta da Ética do discurso nenhum princípio para a ação do indivíduo, mas somente princípios para a legitimação pública de normas? Para uma boa compreensão do distanciamento entre o ideal e o real, entretanto, não vemos sentido em apresentarmos nesse trabalho apenas elementos formais e procedimentais para uma Ética do discurso jurídico, na linha da Ética do discurso de 65 APEL, Karl-Otto. Epílogo: ¿Limites de la ética discursiva? In: CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria. 3ª ed. Salamanca: Sígueme, 1995. p. 236. 66 APEL, op. cit. p. 243. 67 APEL, op. cit. p. 236/237, 246 e 249. Apel, por entendermos ser também necessária a discussão sobre o delineamento de um conteúdo de justiça devido, ainda que essa seja talvez a tarefa mais árdua que sempre se apresentou ao jurista. Essa discussão pode se perder em devaneios inconclusivos e em fórmulas inócuas. Não vemos nisso o dogmatismo que Apel tanto receia, mas sim a necessidade de indicar caminhos para a solução da “crise espiritual sem precedentes, que atinge a civilização ocidental.”68 Entendemos, com Lima Vaz que para a descoberta desses caminhos faz-se necessária a rememoração do passado do pensamento ético, numa “retranscrição sempre renovada no conceito... segundo as condições intelectuais de determinado tempo histórico, de seus problemas e desafios, isto é, da experiência e do saber dos séculos depositados nessa tradição de pensamento que denominamos justamente Filosofia.”69 Lima Vaz atribui a crise ética da atualidade ao ...progressivo esmaecer em seu horizonte simbólico das constelações de valores espirituais que orientaram até o presente sua marcha através dos azares do tempo. Tais são, por exemplo, a distinção e oposição entre o bem e o mal, a primazia dos bens do espírito, a aceitação do caráter normativo e de uma ordem hierárquica dos bens que conferem à vida o imperativo e a dignidade de um dever-ser propriamente humano. O paradoxo reside aqui na aparente violação de uma lei fundamental do processo de criação cultural e que está na origem do fenômeno histórico do ethos, a saber, a lei que prescreve ao ser humano criador de seu mundo, que é o mundo da cultura, a necessidade de uma ordenação normativa de sua atividade criadora em termos de bens 70 e fins que atendam ao imperativo ontologicamente primeiro de sua auto-realização. Ora, isso significa que o ser humano é livre, no sentido de ser dotado de autonomia racional, mas também necessariamente responsável, papel este que lhe cabe assumir a partir de uma emancipação ética. O objetivo desse texto pode considerar-se cumprido, na medida em que provoca, apesar de não chegar nem perto de realizá-la, uma profunda reflexão sobre o fundamento e a finalidade do Direito, que é a justiça, valor que deve orientar constantemente o desenvolvimento de um Direito cada vez melhor. 68 LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999. p. 7. 69 LIMA VAZ, op. cit. p. 8. 70 LIMA VAZ, op. cit. p. 7/8. BIBLIOGRAFIA APEL, Karl-Otto. O desafio da crítica total da razão e o programa de uma teoria filosófica dos tipos de racionalidade. Novos Estudos do CEBRAP, nº 23, 1989. ___. Estudos de Moral moderna. Petrópolis: Vozes, 1994. ___. ¿Limites de la ética discursiva? In: CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria. 3ª ed. Salamanca: Sígueme, 1995. ___. El lenguaje como tema y medio de la reflexion trascendental. In: ____. La transformation de la filosofia. Vol. II. Madrid: Ed. Taurus. ___. 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